anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...pararobertmooreedouglasgillette,emsuaobrarei,...

14
A narrativa e o combate interno do guerreiro, em “Portões de Fogo”, de Steven Pressfield, como jogos de luzes e sombras – uma leitura junguiana Max Müller Cerqueira Sobrinho http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238362X.n1.2018.9 RESUMO O sentido da análise que se propõe é o de estabelecer como elemento formal uma estética de jogo de luzes e sombras, tanto quanto à escolha da narrativa da obra em foco, elaborada por múltiplos pontos de vista, quanto ao combate interno do guerreiro, sendo este um arquétipo em luta com sua sombra, em processo de amadurecimento psíquico. Para tanto, utilizou-se do romance histórico: Portões de Fogo, de Steven Pressfield, uma narrativa do sacrifício dos Trezentos de Esparta e seus aliados, contra a invasão persa, na Batalha das Termópilas de 480 de antes de nossa Era, com o objetivo de se buscar traços da evolução de espartanos, entendidos neste trabalho como manifestação do que os pós-junguianos Robert Bly, Robert Moore e outros, chamaram de arquétipo do masculino maduro. Uma leitura junguiana a partir de vestígios do inconsciente na escrita. Palavras-chave: Arquétipo do Guerreiro, Sombra, Masculino Maduro, Psicologia e Literatura, Inconsciente e Escrita. ABSTRACT The aim of the analysis in this article is to establish as a formal element an aesthetic play of light and shadow, in relation to the choice of the narrative in focus – elaborated by multiple points of view, as well as the internal struggle of the warrior, an archetype in struggle with his shadow, in the process of psychological growth. As such, the historical novel Gates of Fire by Steven Pressfield is discussed, which is a narrative about the sacrifice of the Three hundred of Sparta and their allies against the invasion of Persia, in the Battle of Thermopylae in 480 BC. The objective is to find traces of the evolution of the Spartans, understood in this study as a manifestation of what post-Jungians, Robert Bly, Robert Moore and others call the archetype of the mature male. One presents a Jungian interpretation based on traces of the unconscious in the narrative. Keywords: Archetype of the Warrior, Shadow, Mature Male, Psychology and Literature, the Unconscious and the Narrative. brought to you by CORE View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk provided by Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

Upload: others

Post on 26-Mar-2021

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

A narrativa e o combate interno do guerreiro, em “Portões de Fogo”, deSteven Pressfield, como jogos de luzes e sombras–uma leitura junguiana

Max Müller Cerqueira Sobrinho

http://dx.doi.org/10.18830/issn.2238362X.n1.2018.9

RESUMO

O sentido da análise que se propõeéo de estabelecercomo elemento formal uma estética de jogo de luzese sombras, tanto quantoàescolha da narrativa da obraem foco, elaborada por múltiplos pontos de vista,quanto ao combate interno do guerreiro,sendo esteum arquétipo em luta com sua sombra,em processode amadurecimento psíquico.Para tanto,utilizou-sedo romance histórico: Portões de Fogo, de StevenPressfield,uma narrativa do sacrifício dos Trezentosde Esparta e seus aliados,contra a invasão persa,naBatalha das Termópilas de480de antes de nossa Era,com o objetivo de se buscar traços da evolução deespartanos, entendidos neste trabalho comomanifestação do que os pós-junguianos Robert Bly,Robert Moore e outros,chamaram de arquétipo domasculino maduro.Uma leitura junguiana a partir devestígios do inconsciente na escrita.

Palavras-chave: Arquétipo do Guerreiro, Sombra,Masculino Maduro, Psicologia e Literatura,Inconsciente e Escrita.

ABSTRACT

The aim of the analysis in this article is to establish as aformal element an aesthetic play of light and shadow,in relation to the choice of the narrative in focus –elaborated by multiple points of view,as well as theinternal struggle of the warrior,an archetype in strugglewith his shadow, in the process of psychological growth.As such, the historical novel Gates of Fire by StevenPressfield is discussed,which is a narrative about thesacrifice of the Three hundred of Sparta and their alliesagainst the invasion of Persia, in the Battle ofThermopylae in480BC.The objective is to find traces ofthe evolution of the Spartans,understood in this studyas a manifestation of what post-Jungians,Robert Bly,Robert Moore and others call the archetype of themature male.One presents a Jungian interpretationbased on traces of the unconscious in the narrative.

Keywords:Archetype of the Warrior,Shadow,MatureMale,Psychology and Literature, the Unconscious andthe Narrative.

brought to you by COREView metadata, citation and similar papers at core.ac.uk

provided by Universidade de Brasília: Portal de Periódicos da UnB

Page 2: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

88 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

1Sombra: Segundo a psicologiajungu iana, aquela parte de nós

que pode ser tanto negativa,quanto positiva, a depender denossa maturidade psíqu ica norelacionamento com ela. Em

especial, a sombra revela nossasmais profundas fraquezas

e  impulsos obscuros, temidos,destrutivos. Mas que, por isso

mesmo, nos dá a conhecer quem,o que e como realmente somos.Ou seja, a sombra é uma mestra

interior que nos dá aoportun idade de nos encararmos

a fundo, de  lutarmos contranosso maior adversário - nós

mesmos -, e assim nossuperarmos, para nos tornarmos

pessoas melhores.

“Viver é combater.” Sêneca, em “Cartas a Lucílio”.“Nunca dê uma espada a um homem que não sabe dançar.” Ditado celta.“O artista usa botas de combate.” Steven Pressfield, em “A Guerra da Arte”.

A necessidade de autoproteção, de si, de umacomunidade, de uma nação ou país, levou àorganização de forças de defesa especiais.Historicamente,em todo o mundo temos exemplosnotáveis de guerreiros que se organizaram emescolas preparatórias, mosteiros, casernas, paraestudarem táticas e técnicas de defesa, tendo emvista a salvaguarda de suas comunidades e seusinteresses.Desse modo,a humanidade conheceu oskshatryas (casta de guerreiros) indianos,os temíveishoplitas de Esparta, os legionários romanos, osmonges Shao Lin chineses, os ninjas e samuraisjaponeses,os cavaleiros jaguares e cavaleiroságuiasastecas,os cavaleiros medievais europeus,entretantos outros,cada um com seus próprios métodosde combate e particulares códigoséticos e morais deconduta.E, justamente,a partir daíque o arquétipodo guerreiro se tornou marca indelével noinconsciente coletivo, transpondo eras e lugares.

Carl Gustav Jung,expoente da psicologia analítica,também chamada de psicologia profunda,ou ainda,junguiana,em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo(2014:51-52),descreve o conceito de arquétipo comosendo um conteúdo inconsciente,modificável por suaconscientização e percepção, diferenciando-seconforme manifestações da consciência individual.Arquétipo indica determinadas formas na psiquehumana, temas recorrentes,padrões onipresentes,equeémais claramente abstraído a partir dos mitos,dos ensinamentos esotéricos,dos contos de fadas,dasnarrativas orais,entre outros meios.O inconscientecoletivo,de sua parte, representa a acumulação deexperiências milenares da humanidade,e se exprimepor meio dos arquétipos.

Arquétipos definem os conteúdos eminentementehumanos,da nossa psique,que fazem o elo essencialentre os seres dessa mesma espécie, presentes emanifestos em todos os tempos, lugares,etnias e culturas.

Para Robert Moore e Douglas Gillette,em sua obra Rei,Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dosarquétipos do masculino (1993: Introdução),conteúdosinconscientes maculados pela sombra1,postuladospor Carl G.Jung, têm raízes no patriarcado.Para ospesquisadores estadunidenses,o patriarcado seriafundado no medo–medos típicos de criança,medosde masculino imaturo.Em sua percepção,Moore e

Gillette atestam que a criança tem medo tanto demulheres,como também de homens–de homens deverdade.Se tais conteúdos não forem assumidos deforma madura,o que se teméque "os que se prendemàs estruturas e à dinâmica desse sistema buscamdominar igualmente homens e mulheres”.

No entanto, esse problema não seria exclusivo demasculinidade,mastambémdefeminilidadeimatura:“É possível,na verdade,que nunca tenha havido nahistóriadahumanidadeumperíododeascendênciadamasculinidade (ou feminilidade)amadurecida.Nãotemoscertezaquantoaisso.Oquesabemoséqueelanão predomina atualmente”. (1993: idem). Comoconsequência, ter-se-iam crianças mal formadas,dominadaspelasmarcassombriasdoarquétipodoPueraeternus (a ‘eterna criança’ dentro de nós), mesmoenquantopessoasemidadeavançada.MooreeGillettedefendemque,aocontráriodoquesepossapensar,a"nossasociedadeéviolentanãoporcausadeumexcessodemasculinidade,mas,sim,devidoaumacarênciademasculinidademadura",cujosvaloresarquetípicossãoformadores de uma psique desenvolvida em quatroaspectos:soberana(Rei),protetora(Guerreiro),criativa(Mago)eamorosa(Amante).

Do conceito de sombra,Andrew Samuels,em Jung eos pós-junguianos (1989: 117) descreve-a como:“patologicamente,uma rejeição da instintividade, logouma despotencialização da personalidade,ou umaprojeção de facetas inaceitáveis da personalidadesobre os outros”, e ainda: “uma forma de inflaçãonegativa que se expressa em forma deautodepreciação, falta de autoconfiança,medo dosucesso (e um estado ‘analítico’peculiar em que tudoé reduzido a motivações inconscientes obscuras edesagradáveis)”.

Paolo Francesco Pieri,em Dicionário Junguiano (2002:434),dáao conceito mais contornos:

Na psicologia analítica o termo éassumido como o significado específicodo outro lado da personalidade e, porisso, daquela parte obscura da psique,enquanto tal inferior e indiferenciada,que, de diversos modos, énecessariamente remetida (eoperativamente remissível) à partesuperior e diferenciada da própria

Page 3: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

89Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em“PortõesdeFogo”

psique durante o processo deindividuação.

Para maior esclarecimento, Jung, em Sobresentimentos e a sombra (2015),assevera que a sombranão é necessariamente má. Ela é algo íntimo einquietante, ao mesmo tempo transformadora dapsique. Ela sempre existirá como lugar depossibilidade para autoconhecimento eamadurecimento, em meio a desafio, dor edesestruturação do ego–um pouco do que o bobo fazcom o rei: trazê-lo ao mundo dos pés no chão. Asombra seria,para Jung,em outras palavras,um “mal”necessário: “O fato de sabermos que o malé real, tãoreal quanto o bem–é isso que encarrega a teologia deum problema muito difícil. (...)Gostaria de poupá-los,maséum problema enormemente difícil, istoé:Comolidar com o lado da sombra?” (Idem:62)

Ele mesmo diria, em “Psicologia do Inconsciente”(1980:87),que háum“medo arcaico dos conteúdosdo inconsciente coletivo”. E que:“O diabo é umavariante do arquétipo da sombra, istoé,do aspectoperigoso da metade obscura,não reconhecida pelapessoa.” (Idem:86).Pessoa,neste caso,o ego.

A. Samuels (1987: 43), delimita melhor sobre estarelação entre ego e sombra:

Embora seja possível que o ego se torneconsciente daquilo que está contido nasombra, essa consciência jamais poderáser total. O paradoxo está no fato de quetornar alguma coisa consciente tambémengloba a inconsciência porque umaestá sempre em relação com a outra.Quando a ego-consciência iluminaalguma coisa, o que está na periferia ficana escuridão.

De acordo com o sítio eletrônico Mankind ProjectInternational2 ,o qual se ocupa de pesquisas e partilhascom pessoas do mundo todo, sobre ocomportamento,o modo de ser masculino, comoforma de resgate do homem não subjugado pelopatriarcado,os homens de hoje estão carentes deenergia guerreira.

Para os estudiosos e homens do sítio supracitado,interligados nessa rede de reconstrução do masculino,nós,nossos pais e nossos filhos fomos mal informadose mal educados,em todas as nossas vidas,de que aagressividade é algo ruim e que nós, homens,deveríamos apenas trabalhar para sermos "caraslegais".Porém,verificaram que o que o mundo maisprecisa, atualmente, é de homens que acessem evivenciem o Arquétipo do Guerreiro.

O Guerreiro,a Guerreira,na linguagem da psicologiaanalítica arquetípica, é a energia interior que nosimpulsiona a desafiarmos e a lutarmos por uma causadigna,seja noâmbito pessoal,seja no social ou nogeral.

De certa forma,podemos entender que somos, todos,guerreiros, desde nosso nascimento, até nossapassagem.Agora,aprender a lidar com as sombras nocaminho do guerreiro, e daí se tirar lições sábias evitais, issoépara poucos.Porque requer iniciação,aqual se faz por ensinamentos, como os das artesmarciais,de mestres a discípulos,por conselhos deverdadeiros orientadores e guias (o mentor,o“anciãodo ritual”, o xamã, o pajé, o guru), ou por leiturasaprofundadas sobre o tema–o qual se encontra naliteratura mundial,na psicologia,nos estudos de casosde antropólogos,e entre outras fontes que a própriavida nos dá,no dia a dia.Requer, inclusive,um longoprocesso de autoconhecimento, físico, mental eespiritual.Portanto,nãoéuma tarefa simples de seconseguir,sem o compartilhamento de experiênciasindividuais e coletivas.

O objeto de estudo desses pesquisadores,e de outrosgrupos espalhados mundo afora,como o brasileiro“Movimento Guerreiros do Coração”,que ao mesmotempo constitui-se de uma proposta de estilo de vida,éo mesmo que para autores como Robert Bly,RobertMoore,Douglas Gillette,George Groddeck,Gurdieff,Warren Farrell,Carl Jung,Joseph Campbell,GeorgesDumézil,entre muitos outros,échamado de masculinomaduro.

Diz,C.G.Jung,em O Homem e Seus Símbolos (1969),que o mito do herói é o mais comum e o maisconhecido de todos os tempos e lugares. Inegávelconsiderar sua capital importância psicológica,comoimagem primordial e forma universal, ampla eprofunda: “A figura do heróiéum arquétipo,que existehá tempos imemoriais.” (Idem:73)

Não por acaso,um dos maiores mitólogos de todos ostempos,Joseph Campbell,dedicara toda uma obra ecuidado especial a esse arquétipo,especialmente porsua contribuição pelo o conceito de monomito(também chamado de Jornada do Herói),o qual foratomado emprestado, pelo norte-americano, doFinnegan’s Wake,de autoria do escritor irlandês JamesJoyce, para compor o seu famoso trabalho depesquisa, intitulado O Herói de Mil Faces. Importantefrisar que Campbell se utiliza em sua obra daconcepção junguiana de arquétipo para elaborar o seuconceito.

2Conferir: “The Mankind Project:Empowering men to live theirtrue potential.” “O ProjetoMasculino: Empoderandohomens para viverem seuverdadeiro potencial.” Pelo sítioeletrôn ico:https://mankindprojectuki .org/

Page 4: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

90 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

Segundo o mitólogo estadunidense,monomitoéoconceito que identifica,em inúmeras narrativas,desdeas mais ancestrais às suas repercussões erepresentações atuais,as mais variadas,a ideia de umatrajetória marcada no inconsciente universal,pela qualuma jornada exterior reflete um percurso interior doindivíduo–o herói–que, se conseguir completá-la,elepoderáatingir uma maturidade espiritual, sendo esseprocesso identificável em mitos,contos,narrativasorais, literaturas e outras artes (como o cinema, jogosvirtuais,etc),presentes em diversas culturas eépocashistóricas. Importante destacar,nesse processo deamadurecimento do herói,o condicional“se”.

Maria Zelia de Alvarenga, em Mitologia Simbólica:estruturas da psique e regências míticas (2010)apresenta um estudo dos divinos gregos comoregências da consciência,no sentido de viabilizar umacaracterização de tipos humanos e,assim,possibilitarmeios para o desenvolvimento da personalidade decada divino, entendidos, aqui, como estruturasarquetípicas, dentro da abordagem psicológicaanalítica. À medida que se torna possível essatipologia, com base nos modelos dos divinosmitológicos gregos, inaugura-se uma novametodologia para a humanização do arquétipo e,assim,para o desenvolvimento da personalidade deum indivíduo.

Desta forma,ao partir dos arquétipos mitológicos,Alvarenga (p.163) relata o Hino Homérico a Ares comouma elegia aos méritos,àcoragem,àbravura.Deustido como protetor, mantenedor da juventude, einvocado como aquele que auxilia a perseverar nocaminho da paz.No entanto, a mesma autora citaJunito Brandão (Mitologia Grega,1988),o qual nosapresenta outras características,sombrias,de Ares,relacionando seu nome com ‘aré’, ao conotar‘desgraça’, ‘infortúnio’.Brandão ainda recorda de umaantiga referência ao deus, também chamado“Ara”,que quer dizer ‘maldição’, e de que seu culto seriaoriginário da Trácia,cujo povo era considerado pelosgregos como rude, inculto e bárbaro.Daíque se tornamais compreensível o fato de que o hino do deus sejauma elegia–composição poética e canto de cunhotriste,de lamento,especialmente para funerais–,eque os templos dedicados a ele eram os menosnumerosos,comparativamente aos outros deuses,entre os povos gregos.

Ares,na mitologia grega,sempre acompanhava seusfilhos,esses,não menos conotadores de desgraças,Fobos (personificação do medo)e Deimos (o terror);ede seus irmãos,Ênio (a devastação)e Éris (a discórdia).

Para Alvarenga,quando tratamos de tipologia,deve-se ter em conta que háarquétipos mais dominantesque outros, portanto, nossas personalidades seexpressam por meio de vários,não de apenas um.Sendo assim,conflitos internos são inerentesànossapersonalidade.Uma concordância com Jung,quandose fala do embate com a sombra.

Robert Bly ressalta a qualidade do guerreiro autêntico,de estar a serviço de um objetivo maior do que elepróprio.Para ele,mitologicamente,o guerreiro estáaserviço do Rei Verdadeiro,e que se este for corrupto,ou se for ausente, o guerreiro estará servindo porambição,poder.Desse modo, seránada mais quesoldado,não guerreiro de fato.Nas suas palavras:“Todas as vezes que usamos bem o guerreiro, nãoestamos apenas travando batalhas,mas acordando oRei.” (1991:168).E que: “Uma das grandes tarefas dohomem contemporâneoé reimaginar,agora que asimagens do guerreiro eterno e do guerreiro exterior jánão constituem o modelo, o valor do guerreiro nasrelações,nos estudos literários,no pensamento,naemoção.” (Idem:169).

Lívia Borges,psicóloga junguiana,em sua obra“Almade Guerreiro” (2006:78-96),no segundo capítulo,sobo título Despertando o Guerreiro Adormecido,reconhece e evoca a necessidade de não se perder aconsciência e a dignidade desse arquétipo,mas,aocontrário,de cultivá-la.

Portões de Fogo (2001),de Steven Pressfield,escritooriginalmente em 1998, um romance épicoambientado em480de antes de nossa Era,narra amemorável resistência de combatentes espartanos eoutros aliados, a histórica Batalha das Termópilascontra a iminente invasão persa,comandada pelo ReiXerxes.Os protagonistas maiores são os Trezentos deEsparta,membros da temível formação de soldadosda infantaria pesada,conhecidos por hoplitas,poiseram especialistas no uso do hoplon,escudo de bronzemarcado pela letra lambda (“Λ”, inicial da região daLacedemônia),arma esta símbolo especial da culturaguerreira espartana. À frente desses, estava o ReiLeônidas,cujas atitudes o colocavam num patamardiferenciado, se comparado ao próprio rei persa eoutros,pois não apenas comandava a partir de umtrono,mas lutava,ombro a ombro,na linha de frente,com seus comandados.

No decorrer da narrativa,são expostos,sob o pontode vista do narrador-personagem,Xeones,servo dooficial espartano Dienekes, todo o modo de vida,ideais,costumes e valores desses ilustres guerreiros,

Page 5: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

91Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em“PortõesdeFogo”

tanto em suas experiências militares, quanto nasvivências do cotidiano,em tempos de paz.A Batalhadas Termópilas (de ‘termas’, referente a umdesfiladeiro da Grécia central, onde se encontramáguas termais;daí,Portões Quentes),configurou-seuma missão e uma estratégia suicida para a qual foramenviados os Trezentos, para que, ao ofereceremresistência, por uma semana, dariam o temponecessário para que todo o efetivo de tropas da Héladese reunisse e, posteriormente àquele combatehistórico,pudesse reagir a contento aos invasores–oque, de fato, só se concretizou nas Batalhas deSalamina (480de antes de nossa Era)e de Platéia (479de antes de nossa Era).

A narrativaéentremeada por pontos de vista variadose se processa pelas vozes de múltiplos narradores:onarrador geral da história,o qual se manifesta comoonisciente,mas que empresta sua voz a personagens,principalmente a Xeones, nativo de outra pólis,Astacus,mas que servia a Esparta,nos campos debatalha,ao lado de seu senhor,Dienekes.É Xeonesquem, feridoàbeira da morte, resgatado pelos persas,é intimado a contar ao rei Xerxes sobre o modo de serdos espartanos. É, desta forma, um narrador-personagem.Em outros trechos,a narração passa paraGobartes,historiador oficial do rei,queéquem tomanota de tudo o que Xeones diz.Gobartes faz as vezes,de narrador-observador, por não participardiretamente das ações,nem conhecer os fatos,apenaspelo ponto de vista de Xeones.Em outro trecho,quaseao final,Xeones relata um fato,mas na fala da senhoraParaleia, esposa do veterano Olympieus e mãe dojovem Alexandros,para deixar claro aos persas,e aoleitor,o porquêde o general Leônidas ter nomeado osTrezentos,entre homens experientes e alguns jovens,como o próprio filho de Paraleia. Esta escolha danarrativa,desse trecho,numa voz feminina,de umamãe,evidenciaria melhor as nuances de sentimentoque o autor queria dar ao relato.Tudo isso constitui ojogo da narrativa, o qual remete à questão daveracidade e da verossimilhança,na confluência depretensões de narrar da História e do Romance.

Cabe,aqui,um questionamento:aos olhos do leitormoderno, como apreender esse arquétipo doguerreiro,a partir da proposta de leitura junguiana daobra em estudo?Necessário se faz desvinculá-lo dequalquer representação normativa e se buscar pelostraços deixados pela própria narrativa, sendo elamesma parte do jogo.

As primeiras linhas da narrativa estão na voz donarrador geral,onisciente,que fala a partir de uma

“Nota Histórica” (p. 9), mas que em seguidadesaparece,para dar lugar ao historiador oficial dospersas,Gobartes (p.10),o qual documenta tudo doque o então prisioneiro,Xeones,conta sobre “a históriados soldados da infantaria”de Esparta (p.13).O tomprincipal da narrativa é dado justamente por esteúltimo,o que o configura,um narrador-personagem,porém,do modo típico dos romances históricos–oque dávoz aos excluídos da história.

Configura-se,assim,uma forma típica de narrativamatrioska3.Matrioskas são bonecas ocas, talhadas emmadeira,atéum tamanho em que não se permita maisum entalhe,como um aninhamento ou nidificação,representando gerações de mulheres,geralmente a‘avó’,a ‘mãe’e a ‘filha’,cujo significado implícitoéapreservação das raízes de uma cultura.No entanto,pode-se encontrar matrioskas com cinco, seis,até setebonecas.De todo modo,a ideiaéde que sua formasimples, arredondada, simboliza o acolhimentofeminino,como que contando uma história do amormaterno.Porém,em se tratando de simbologia, todainterpretaçãoé relativa e inesgotável.

O que importa, relativamenteà técnica narrativa emsi,éque a obra em questão foi construída sobre umahistória contada,como que de boca a boca,àmaneiradas narrativas orais,de modo que cada voz do textotraz uma outra face da verdade,um outroângulo doprisma narrativo geral.Tal qual a matrioska, tratar-se-ia de um jogo narrativo cuja pretensão é a deevidenciar que mesmo a História tem sua carga deliterariedade, e vice-versa: a Literatura carrega,também,seu peso histórico.

Embora as duas obras utilizadas na presente pesquisasejam exemplos de ficções ou romances históricos,faz-se,neste ponto,uma breve observação,mas nãofugindo do foco,queé literatura e psicologia.Apenaspara abranger o espectro de compreensão dofenômeno literário.

Considerando o romance histórico como um espaçopara o contraditório,para o outro lado da dita“HistóriaOficial”,pode-se questionar atéque ponto o históricoembrenha-se pela literatura,e atéonde a literaturaabarca o histórico,de modo que História e Ficção nãosejam tão antagônicas entre si,mas representações nasquais prevalecem as vozes do protagonismo de tal outal personagem,desta ou daquela classe social,deacordo com os interesses e as realidades que se queirammanifestar,se inscrever como fato.O literário pode sermais histórico do que o propriamente histórico,o qualpode ser mais fictício do que uma ficção.

3Matrioska: Do russo, ‘ϺаТЬ’ ,‘mãe’. Embora no Ocidentetenham sido d ifund idas comobonecas “russas”, há ligaçõesque podem ser feitas comreferência à cultura japonesa dosbonecos “kokeshi”, de fundobud ista, representando nossos“deuses internos”.

Page 6: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

92 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

A própria prática da escrita pode estar revestida einvestida de fenômenos,em diálogo e interferênciaentre o consciente e o inconsciente do autor.Daíque,não raro,a crítica atenta pode encontrar em dada obraliterária,manifestações tais quais as estudadas pelalinha teórica psicológica em questão, a profunda.Porém, longe de querer uma auratização do textoliterário, a partir de tal perspectiva, aqui estáapresentada, tão-somente,mais uma perspectiva,dentre todas as existentes. E quando se fala em‘existentes’,se está referindo a todas,não somenteàsreconhecidas pelos círculos acadêmicos.

Em Pólemos e o Belo–O Sistema Canônico Brasileiro–Seminários de Literatura (2000),Flávio RenéKotheentende que o fenômeno literário é superior aqualquer manifestação literária isolada que,ao excluiroutras,pretenda se definir como Literatura.

“Os estudos literários voltam-se para umobjeto indefinível: a obra literária.Coloca-se a questão central: qual é anatureza da obra literária? – Antes depretender dizer o que é literatura, épreciso perguntar o que é dizer ‘o que é’.Dar uma resposta à pergunta – o que éisso? – implica assumir o pressuposto daprópria pergunta. O é, o ser assimdefinido, ao pretender universalidade enecessidade, ao propor-se dizer o ser detodas as obras –, pretende dizer o que éliteratura para todos os tempos e todosos lugares.” (2000: 7).

Neste caso específico,a interpretação da obra literária:“Portões de Fogo”,de Steven Pressfield,a partir dalinha teórica comparatista entre literatura e psicologiaanalítica, tem como objetivo não ser outra coisa queum,possível,ponto de vista.

F.Kothe traz a questão da polêmica em relação com aestética,como um fundamento teórico sine qua nontoda crítica,em arte e literatura,se tornaria inválida,porque propensa a um totalitarismo.Ele evidencia obelo no contraste e a luta de opostos.Há,aqui,umasintonia profunda com Jung,quando este trata dospares de opostos.Para o autor suíço,os opostos napsique humana,atuam em contraposiçãoà lógicaaristotélica tradicional,partindo do princípio de queeles podem ser reconciliados, de modo a superarpossíveis conflitos ou o maniqueísmo típico dopensamento ocidental,o qualé refutado pela filosofiaintegrativa taoísta,por exemplo.

Em sua obra “I Ching, o Livro das Mutações”, cujoprefácioéde Carl Jung,Richard Wilhelm evoca essepensamento: “As coisas que se harmonizam em tom,vibram em conjunto.As coisas que entre si têm afinidadeem suas essências mais íntimas atraem-semutuamente.” (2006: 292). Isto quer dizer que, aomesmo tempo em que se fala de uma luta decontrários,está implícita uma força de atração.Diálogoé isto.Polêmica também.Háuma certa harmoniainerente ao combate.Talvez combate seja entendidocomo outra forma de dança.

Há, inclusive,uma arte marcial oriental,das Filipinas,que se chama “Yaw Yan”, redução da expressão“sayaw ng kamatayan”,que quer dizer “dança damorte”. Outra forma de combate, chinesa, o“Taijiquan”, ou Tai Chi Chuan, se expressa porprincípios teóricos e práticos fundamentados nosímbolo taoísta do“taijitu”–um círculo dividido emduas partes, sendo uma branca,que contém em si umponto preto,e outra preta,que comporta um pontobranco, estando ambas, ao mesmo tempo, emcontraste,mas em perfeita adaptação umaàoutra.Esse símboloéuma representação de duas forçasopostas e complementares, chamadas de “Yin”, oprincípio feminino,passivo,noturno, lunar,negativo;e“Yang”,o masculino,ativo,diurno,solar,positivo.Portanto,uma simbologia de uma ‘união de opostos’,numa dança cósmica.

Essa concepção era também comum na Grécia antiga.F.Kothe traz a mesma referência de Heráclito,paraembasar seu pensamento: “Tudo se faz por contraste;da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia.”(KOTHE,2000:7.Epígrafe).Assim como o fez C.Jung,em Psicologia do Inconsciente:“O velho Heráclito,queera realmente um grande sábio, descobriu a maisfantástica das leis da psicologia:a função reguladorados contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia(correr em direção contrária),advertindo que um diatudo se reverte em seu contrário.” (JUNG,1980:64).

Kothe postula que “a verdade não está apenas napalavra,mas no silêncio (ou no gesto)” (p.17).Trata-se de um silêncio que produz compreensão ourevelação.

“Nesse silêncio está contida acompreensão, que depois pode revelar-se em muitas palavras, mas que nãocontém substancialmente nada mais doque aquilo que foi entendido sempalavras. Na prática psicanalítica, omudo intercâmbio do inconsciente do

Page 7: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

93Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em“PortõesdeFogo”

analista com o inconsciente do pacienteé que propicia uma compreensão quevai além de qualquer palavra e é capaz,inclusive, de entender a verdade peloavesso da fala. O escritor recebeimagens, sensações e palavras básicasditadas por seu inconsciente, oriundasde uma fonte energética que não éanterior a qualquer uma das palavrasque procura expressá-la. A percepçãoestética se dá em um movimentointuitivo, num momento que vivenciasem palavras o transmitido pelo artista.”(2000: 17-18).

Com base nessa ideia,propõe a presente análise queuma obra como“Portões de Fogo”,de S.Pressfield,composta em múltiplas narrativas,contrastantes entresi,manifesta-se como um fenômeno literário que podeser entendido,nesta leitura,como uma estética decontrários pela qual a obra vai se revelando,conformecada narrador vai fazendo uso de sua fala,e dando aoleitor,no decorrer da ação,cada vez mais clareza sobreos pontos obscuros dos fatos narrados;ao mesmotempo,vai evidenciando que,mesmo com todas aspalavras,a verdade por ela mesma,ainda permanecesob um véuúltimo–o da verdade estética,sublime,subliminar,que vaga no eterno silêncio que nenhumregistro escrito pode traduzir.Assim como a matrioska,uma boneca que esconde outra boneca,que ocultaoutra,a verdade, também,esconde outras verdades:“Tudo o queéhumanoé relativo,porque repousa numaoposição interior de contrários, constituindo umfenômeno energético”. (JUNG,1980:68).

Esta leitura entende como fenômeno energético, tantona abordagem de Kothe, como na de Jung, comoaquela moção interior que háem todo ser humano,em seu inconsciente,que faz comunicar por meio detraços cuja imagemé real,mas difusa,por meio deuma linguagem instintiva, para além do códigolinguístico verbal.Algo como que uma linguagem dealmas.

Não detalharemos, aqui, questões filosóficas elinguísticas sobre as palavras e as coisas,porque nãoéesse o eixo do presente trabalho.Apenas que fiqueregistradoqueacompreensãodeumaobraliteráriapode ser feita dentro desses parâmetros de uma críticaliterária arquetípica. O fenômeno literário estáintrinsecamente ligado ao fenômeno psicológicoanalítico. Há uma energia no fazer literário, a qualconforma a obra,que se dáa conhecer no processo deleitura,mesmo a partir dos silêncios de suas entrelinhas,dos não-ditos ou das ambiguidades,assim como o

analista pode acessar,de alguma maneira,pela práticada análise,um sentido oculto no conteúdo simbólico,expresso no inconsciente de seu paciente.

De volta a Portões de Fogo,antes de focar nas táticas,treinamento e na filosofia militar espartana,Xeonesfaz sua narrativa do modo de ser espartano,a partirdo seu próprio ponto de vista,como servo que era.Sendo estrangeiro,Xeones assume na narrativa umaposição de certo distanciamento,assim como era,emrealidade,a estratificação social da pólis espartana,em que somente os nascidos de espartanos,Spartiatai4, éque eram totalmente espartanos,oshomoioi–,Pares e Iguais (p.18).Xeones era um hilota,viviaàsombra de seu senhor, função dos escudeirosdos espartanos.Logo, seu lugar era entre os periféricosda pólis.

Esse distanciamento se percebe da contraposição deum mundo que se pretende solar,apolíneo, regidopela luz,pela razão,pela beleza simétrica,e outro,porseus opostos, sombrio,dionisíaco, irracional, feio,assimétrico.Xeones,ele mesmo,havia sido capturadopor donos de uma propriedade, quando tentavaroubar alimento para sobreviver.Fora posto suspensoe amarrado pelos pulsos, ferido gravemente nas mãospor pregos que lhe prendiam a hastes de madeira.Essadeformidade teria eliminado para sempre suapossibilidade de poder servir em Esparta,não fosse aintervenção do próprio Apolo-Febo,Deus da Beleza,personificador da luz, codinominado “brilhante,luminoso”, que, aparecendo-lhe em uma visão,oferecera-lhe uma alternativa: jáque incapacitado deempunhar a lança (que o próprio deus considerava“deselegante”),poderia usar do Arco e da Flecha (ouseja,seria capaz de lutar...àdistância).

Nas palavras desse narrador-personagem e servo:

“E por que ‘deselegante’? Tive aimpressão de que a palavra eradecisivamente deliberada, o precisotermo que o deus buscava. Pareciaconter um significado sutil, embora eunão fizesse a menor idéia de qualpudesse ser. Então, eu vi o arco de pratapendurado em seu ombro.

O Arqueiro em pessoa.

Apolo, o Atirador a Longa Distância.

(...)

O arco.

O arco me preservaria.” (p. 42-43)

4Sobre o modo de vida espartano,do ponto de vista h istórico,conferir: “Paideia: a formação dohomem grego”, de Werner Jaeger,onde há um estudo específicosobre a formação cidadã, física emilitar dos nativos de Esparta.

Page 8: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

94 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

Sob apelo do deus,Xeones jura servi-lo.Eésob suaproteção que, ao modo dos poetas e narradoresclássicos, invoca-o, para iniciar suas narrativas.Entretanto, há uma sombra nessa narrativa queaponta para outro foco,que pode estar numa luz,nofim desse túnel interpretativo.Há indícios de que ahistória narrada por um servo possa não condizer coma verdade,de que ela não seria digna de crédito.Nesseponto,éo historiador Gobartes quem conta,ao expora palavra do general Mardonius ao rei Xerxes:

Por que se afligir, Senhor, com essahistória contada por um escravo? Quesignificado pode ter a história de oficiaisobscuros e suas guerras triviais, (...)? Nãose inquiete mais com essa fantasiaengendrada por um selvagem que oodeia e odeia a Pérsia com cada nervode seu corpo. Aliás, suas histórias sãomentiras, se quer a minha opinião. (p.174)

O que fora“desmentido”por Sua Majestade:

“Pelo contrário, meu amigo, acredito queo relato desse homem é verdadeiro emtodos os aspectos, embora não possagaranti-lo ainda, principalmente quantoàs questões com que lutamos agora.” (p.174; grifos meus)

O narrador-personagem em questão mantém-se umavoz intrigante, instigante,que parece falar a verdade,ao menos a sua.Antes de começar seu relato,a pedidode Sua Majestade persa, ele invoca o deusArqueiro:“Assim como os poetas convocam a Musa parafalar através dela,emiti um grasnido inarticulado parao Agressor De Longe.” (p.16)

Soa a brincadeira o fato de que um narrador,estrangeiro–o que sugere estranheza–,que emprestasua voz a um deus que preside justamenteàbeleza,àharmonia,àpoesia,àmúsica,ao logos,ànarrativa(Apolo) –,mas que emite um“grasnido inarticulado”,sugerindo qualquer coisa desarmônica e confusa.Umavoz que conta uma história,do ponto de vista não deum espartano–pois que este evidenciaria o discursoautêntico,belo e simétrico–,mas, sim,o de um servo,feio e defeituoso. Uma voz que interfere comodissonância numa partitura, a priori de umacomposição concordante,mas que se expressa qualuma nota fora do tom.Algo como um intervalo detrítono,um diabolus in musica,cuja audição de certaforma perturba.Note-se que o nome do deus está,emtoda a narrativa,escrito por iniciais maiúsculas e queéchamado de Arqueiro,Atirador a Longa Distância,

Senhor do Arco,Agressor De Longe, remetendoàarmada qual o seu protegido e narrador-personagem émestre,o arco e a flecha,com a qual sópode combaterafastado–o que pressupõe,ao mesmo tempo,umametáfora da própria condição social desse narrador,seu papel no campo de batalha,sua voz e sua vez napolis.Assim, também,essa voz atinge, sombriamente,o leitor da obra.

Contradição,ou jogo?De qualquer forma, luz e sombraestão,aí,num par de opostos.E a pergunta kantiana,“O que se pode saber?”perpassa as entrelinhas dotexto,como um tênue feixe de luz num palco escuro.E o servo continua: “Se realmente me escolheu,Arqueiro,então que suas flechas com belas plumassejam lançadas de meu arco.Empreste-me sua voz,Arqueiro.Ajude-me a contar a história.” (p.16)

Se ele invoca Apolo,pode ser porque seu discurso sejaeficaz, reto, perfeito – como as setas do deus. Elereconhece sua condição e,humildemente,põe-seàdisposição para ser usado como ser, mesmoimperfeito,para se dignar a falar a pura verdade dosfatos.Entretanto,o condicional“se”,direcionado aodeus, remete a ambiguidade.Daí,por outro lado,esseartifício de linguagem, ou elaboração estética,apresente-se na obra para lembrar-nos de que adistância entre história e ficção,verdade e ilusão, talvezse expresse,mais,como uma questão de pontos devista,de que uma possa ser permeada ou abarcadapor outra,quer dizer:atéonde o literário perpassa ahistória e o histórico a literatura? Mas esta é umaquestão que cabe mais ao romance histórico,à ficçãohistórica,a menos que se trate de uma realização nãointencional do autor, de outro exemplo deinconsciente na escrita.Ou não.

Outra manifestação como jogo,em“Portões de Fogo”,está por certas compensações à falta de simetria,demarcadas,em alguns casos,para se pôr em maiorrelevo qualidades morais, sobre as assimetrias. Opersonagem Dienekes, veterano de guerra, eraexemplo disso, uma vez que, apesar de todas asmarcas horrendas que levava pelo rosto e corpo,aindaassim fora o escolhido da senhora Arete, quevalorizava, antes de tudo, suas qualidades debondade, coragem e amor: “Esse homem bom ecorajoso com quem me casaria (p.184)”.A luz da razãoelege o amor,acima da forma ilusória.

Se a psicologia junguiana descreve a sombra comonão sendo necessariamente má,porém“tudo aquiloque todo homem teme e despreza em si mesmo”,“algo íntimo e inquietante”,mas“que transforma a

Page 9: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

95Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em“PortõesdeFogo”

psique”,aqui se pode deduzir que,por exemplo,aojeriza do instrutor Polynikes ao pupilo Alexandros(porque este se dedicava mais ao canto do que aosexercícios militares)se explicaria por aquele sofrer degrande desconforto interior, causado por suaincapacidade de enxergar para além da aparência,daforma.Era obcecado por simetria,por ordem e poruma luminosidade olímpica.Mal vivido que era,nãoreconhecia que fixação por simetria tira do eixo;queordem demais,enlouquece;que muita luz, tambémpode cegar. Porém, outros trechos da narrativarevelam que ele também estava em processo de lutacom sua própria sombra,pois,no fundo,admirava ojovem Alexandros.

O embate entre ordem e desordem, luz e sombras,também se depreende de um conceito entre osespartanosqueditasuanoçãodepertencimento,queeles chamam de esoterike harmonia e exoterikeharmonia.A partir dos exercícios de phobologia,dodomínio do medo,o indivíduo buscava adquirir umestado de serenidade tal que se sintonizava consigomesmo,comseudaimon,semelhanteaomodocomouma corda de um instrumento musical se afinava,dentrodeumatonalidadeharmônica,elevibrariasomentesuanota. Istoéesoterikeharmonia.Quandoosindivíduosdapolischegavamnesseestágio,confluíamparaumaharmonia comum, a exoterike harmonia, princípioextensívelà formaçãodalinhadecombate,queguiava“afalangeemseusmovimentoseataquescomosefosseumúnicoorganismo,deumaúnicamenteevontade”(p.75).Omesmoseaplicavaàvidadecasal,aumcoral,àpolítica,àdevoçãoaosdeuses.

E quantoàsua própria relação com Esparta,cidadeque escolhera para si,Xeones o declara,em conversacom a senhora Arete,esposa de seu senhor Dienekes:

“- E porquê – perguntou ela – um garotosem cidade demonstra tal lealdade aessa região estrangeira, a Lacedemônia,da qual nunca fará parte?

(...) - O meu tutor instruiu-me que umgaroto deve ter uma cidade (...).

(...) - Então, por que não uma pólis dericos ou de oportunidades? (...)

(...) - Respondi com um provérbio (...) :outras cidades produzem monumentose poesias, Esparta produz homens.” (p.136)

Tal era o fascínio que os espartanos causavam emcidadãos de outras pólis que outros guerreiros

chegavam a lutar ao lado deles.Mesmo assim,nemtodos pareciam ter o mesmo sentimento.Na narrativa,Dekton,o filho bastardo de um espartano com umaserva de outra polis, um mothax, ou meio-irmão,odiava Esparta,por revolta devidoà sua condição.Eratido como irascível,maldoso, insubmisso,de aspectofísico meio grosseiro, assim como seu caráter de“orgulho e obstinação” (p.154).Ao menos,essa foi adescrição de Xeones,desmentida ao final da narrativa,quando o mesmo Dekton, outrora apelidado de“Galo”, revelou-se completamente de outro modo easpecto, conforme as palavras de Gobartes, ohistoriador dos persas:

“- Sou Dekton, filho de Idotychides. Foi omeu nome que você gritou quandodisse Galo.

O escrúpulo força-me a declarar aquique a descrição física desse homemapresentada pelo cativo Xeones não lhefazia a menor justiça. O guerreiro queestava àminha frente era um espécimeesplêndido na flor da idade e vigor, maisde um metro e oitenta de altura,possuidor de uma graça e nobreza deporte que desmentiam definitivamenteo nascimento e a posição inferior emque, era claro, foi criado nesse intervalo.”(p. 326)

No entanto,um fundo de verdade permaneceu danarrativa de Xeones,após Gobartes revelar tudo o quelhe fora contado por aquele, registrado no documentoque convenceu os espartanos do relato do historiador,apesar de alguns dados aumentados ou maquiados,serviu para que o persa fosse preservado com vida.Aqui,numa outra leitura:a literatura salva a história.

Em ‘Portões de Fogo’, o arquétipo do guerreiroespartano atinge sua plena maturidade na experiênciatrágica de não titubear em executar sua meta final, talcomo se expressa pelas palavras do Rei Leônidas aosseus irmãos de armas,de que ele não lutava por glória,que se tivesse salvado sua própria pele,não sóele,mas todas as pólis gregas em peso, também teriamcaído:Mas com nossa morte honrosa,aqui,diante dedesvantagens insuperáveis, transformamos a derrotaem vitória. (p.307)

Ora,qual nível de psique seria exigido para tal atitude,senão a de alguém que,antes de vencer outros, jánãotenha dominado a si mesmo e subjugado traços demedo,de puerilidade,de vício e de temeridade,nascâmaras mais recônditas de sua alma?Oêxito dos

Page 10: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

96 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

espartanos nas Termópilas veio justamente com suaaniquilação,com o extermínio de todos (afora aqueleque escapou,para contar a história,Xeones,na obrade Pressfield). O triunfo dos hoplitas consistiu deconverter seu sacrifício numa conquista humana.Eis,portanto,um sentido de trágico bem evidenciado naobra.

O jogo narrativo em Portões de Fogo parecedesconstruir toda uma visão de mundo que sepretenderia luminosa, uma arquitetura a prioriapolínea,mas que deixaàs claras fissuras,sinais deceder aos fundamentos de uma obra maishumanizada,dionisíaca.Aponta-se para a necessidadede que a parte de Dioniso, na arte e em nós, seusleitores,seja reivindicada,para que Apolo possa semanifestar de modo mais perceptível.As aparentescontradições que a narrativa dessa obra fazem suporsão justamente desmentidas pelo caráter deduplicidade estética em que o dionisíaco pode seexpressar, tomado aqui numa acepção nietzscheana.Ou seja, longe do racionalismo filosófico e científico,que levaram a humanidade ao pessimismo, aoniilismo,ànegação da vida,o estéticoéposto numpatamar em que o lado obscuro,sombrio,da vida,sempre acometido por sofrimentos e projeções futurasilusórias,é ressignificado:a arte permite um caminhoaberto ao conhecimento,por meio do belo,mas semque este seja sacrificado ou morto pela verdade.

Em O Nascimento da Tragédia ou Helenismo ePessimismo (1992:143-144),Nietzsche o explana:

“No entanto, daquele fundamento detoda existência, do substrato dionisíacodo mundo, só é dado penetrar naconsciência do indivíduo humanoexatamente aquele tanto que pode serde novo subjugado pela forçatransfiguradora apolínea, de tal modoque esses dois impulsos artísticos sãoobrigados a desdobrar suas forças emrigorosa proporção recíproca, segundo alei da eterna justiça. Lá onde os poderesdionisíacos se erguem tãoimpetuosamente, como nós o estamosvivenciando, lá também Apolo, envoltoem uma nuvem, lá deve ter descido aténós e uma próxima geração, sem dúvida,contemplará seus soberbos efeitos debeleza.”

Luz e sombra podem,de algum modo,conviver.Aliás,é por meio de sombras que a luz pode ser bemfocalizada. Igualmente,épor meio de luz que a sombraevidencia melhores contornos.

Desta forma,ao modo de conclusão, tanto a narrativaplural e enigmática de Portões de Fogo,quanto àsconformações da sombra junguiana no combateinterno dos guerreiros ali representados, comoexpressões de arquétipos do masculino maduro,expressam-se,ambas,qual um jogo de claro e escuro.Convém reforçar que esta construção,a partir de umexercício de percepção sensível, longe de uma verdadeque se pretenda absoluta, funda-se numaepistemologia de possibilidades–qual seja:desseromance como um projeto estético que permite aoleitor perceber nuances de luzes (conhecido) esombras (desconhecido),nele apresentadas.

Page 11: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

97Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em“PortõesdeFogo”

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA,Maria Zélia de. (Org.)Mitologia Simbólica:estruturas da psique e regências míticas. /Maria Zéliade Alvarenga. –2.Ed. –São Paulo:Casa do Psicólogo,2010.

BLY, Robert. João de Ferro: um livro sobre homens.Tradução de Wantensir Dutra. – Rio de Janeiro:Campus,1991.

BORGES, Lívia. Alma de guerreiro:psicologia,artesmarciais,espiritualidade; transformar,servir e liderarcomo fonte de poder e cura /Lívia Borges. –Thesaurus:Brasília,2006.

CAMPBELL,Joseph.O herói de mil faces. –São Paulo:Cultrix/Pensamento,1997.

JUNG,Carl Gustav.Aspectos do drama contemporâneo.Tradução de Márcia C.de SáCavalcante. –Petrópolis,RJ:Editora Vozes,1988.

________________.Os arquétipos e o inconscientecoletivo.9/1.11ed.Petrópolis,RJ:Vozes,2014.

________________.O Homem e Seus Símbolos.CarlG. Jung e M.-L. von Franz, Joseph L. Henderson,Jolande Jacobi,Aniela Jaffé;Tradução de Maria LúciaPinho. –5ª.ed.Rio de Janeiro,RJ:Nova Fronteira,1964.

________________.Psicologia do Inconsciente.Vol.VII/1.Tradução de Maria Luiza Appy.Petrópolis,Vozes,1980.

________________ .Sobre sentimentos e a sombra:sessões de perguntas de Winterthur.Petrópolis,RJ:Vozes,2015.

KOTHE, Flávio René. Pólemos e o Belo. O SistemaCanônico Brasileiro.Seminários de Literatura. Institutode Artes do Pará.Cadernos IAP,4,2000.

MOORE, Robert. Rei, Guerreiro, Mago, Amante – Aredescoberta dos arquétipos do masculino /RobertMoore, Douglas Gillette. Tradução de Talita M.Rodrigues. –Rio de Janeiro:Editora Campus,1993.

NIETZSCHE,Friedrich.O Nascimento da Tragédia ouHelenismo e Pessimismo.Tradução de J.Ginsburg. –São Paulo :Companhia das Letras,1002.

PIERE, Paolo Francesco. Dicionário Junguiano.Petrópolis,RJ:Vozes,2002.

PRESSFIELD,Steven.Portões de Fogo–Um RomanceÉpico da Batalha das Termópilas.Trad.de Ana LuízaDantas Borges–Rio de Janeiro:Objetiva,2001.

________________.A Guerra da Arte.Tradução de GeniHirata. -Rio de Janeiro:Ediouro,2005.

SAMUELS,Andrew.Jung e os pós-junguianos.Rio deJaneiro: Imago Ed.,1989.

“The Mankind Project:Empowering men to live theirtrue potential.” “O Projeto Masculino:Empoderandohomens para viverem seu verdadeiro potencial.”Pelosítio eletrônico:https://mankindprojectuki.org/

Page 12: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos

98 Revista Estética e Semiótica | Volume 8 | Número 1

Page 13: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos
Page 14: Anarrativaeocombateinternodoguerreiro,em ,de ...ParaRobertMooreeDouglasGillette,emsuaobraRei, Guerreiro, Mago, Amante - a redescoberta dos arquétiposdomasculino(1993:Introdução),conteúdos