analzira pereira do nascimento

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS DA RELIGIO

    MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO

    ANALZIRA NASCIMENTO

    SO BERNARDO DO CAMPO, 2013

  • ANALZIRA NASCIMENTO

    MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO

    Tese apresentada Universidade Metodista de So Paulo, Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio para obteno do grau de Doutor. rea de Concentrao: Religio, Sociedade e Cultura Orientador: Jung Mo Sung

    SO BERNARDO DO CAMPO, 2013

  • FICHA CATALOGRFICA

    N17m

    Nascimento, Analzira Misso e alteridade : descolonizar o paradigma missiolgico /Analzira

    Nascimento -- So Bernardo do Campo, 2013.

    165fl. Tese (Doutorado em Cincias da Religio) -- Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps-Graduao Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo Bibliografia Orientao de: Jung Mo Sung

    1. Misso 2. Alteridade 3. Igreja (Paradigma) 4. Dilogo inter-religioso I. Ttulo

    CDD 266

  • FOLHA DE APROVAO

    A tese de doutorado intitulada: MISSO E ALTERIDADE: DESCOLONIZAR O PARADIGMA MISSIOLGICO, elaborada por ANALZIRA NASCIMENTO, foi

    apresentada e aprovada em 27 de setembro de 2013, perante banca examinadora

    composta por Prof. Dr. Jung Mo Sung (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Lauri Emilio

    Wirth (Titular/UMESP), Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (Titular/UMESP), Prof.

    Dr. Gedeon Freire de Alencar (Titular/ FTB-SP), Prof. Dr. Edin Sued Abumanssur

    (Titular/ PUC-SP)

    ______________________________________ Prof. Dr. Jung Mo Sung

    Orientador e Presidente da Banca Examinadora

    ______________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders

    Coordenador do Programa de Ps-Graduao

    Programa: Ps-Graduao em Cincias da Religio

    rea de Concentrao: Religio, Sociedade e Cultura

    Linha de Pesquisa: Religio e Dinmicas Psicossociais e Pedaggicas

  • AGRADECIMENTOS

    Viver uma constante busca pelo sentido de estar neste planeta, e esta tese

    uma das formas de deixar algum legado para o movimento missionrio brasileiro.

    Minha orao diria tem sido baseada nas palavras do apstolo Paulo,

    quando disse no livro de Atos 20.24: Todavia, no me importo, nem considero a

    minha vida de valor algum para mim mesmo, se to-somente puder terminar a

    corrida e completar o ministrio que o Senhor Jesus me confiou, de testemunhar do

    evangelho da graa de Deus (NVI).

    No foi possvel eu pesquisar como pretendia, pois muitas vezes fiquei refm

    desta minha proposta pessoal de vida: o que realmente importa completar o

    ministrio e terminar a corrida.

    Agradeo a Deus por sua misericrdia comigo, aos meus lderes pela

    compreenso de minha ausncia em alguns momentos, minha famlia pelo apoio de

    sempre, e ao meu orientador pela pacincia com as minhas limitaes.

    E CAPES e ao IEPG pelo apoio financeiro.

  • NASCIMENTO, Analzira. Misso e Alteridade: descolonizar o paradigma

    missiolgico. Tese (Doutorado em Cincias da Religio). Universidade Metodista de

    So Paulo.

    SINOPSE

    A igreja, no decorrer da Histria, adotou prticas evangelizadoras que foram

    sedimentando um paradigma de misso que veio a ser fortemente marcado pelos

    empreendimentos de expanso colonialista. A partir do sculo XVI, uma bifurcao

    feita com a Reforma, mas este projeto tambm no consegue fugir da lgica

    colonial. Acompanhamos a trajetria deste modelo que, influenciado pelo

    puritanismo e o pietismo, e com o retoque das ideias iluministas, vem a ser

    formatado nos Estados Unidos da Amrica, dando origem ao paradigma missionrio

    protestante dominante.

    Sustentamos que a igreja, em seus encontros com o outro, zelosa por cumprir

    programas de expanso, continua a reproduzir a mesma lgica colonialista de

    dominao que refora a negao da identidade do outro.

    O primeiro captulo retrata a crise paradigmtica sociocultural e epistemolgica que

    tambm afetou o movimento missionrio contemporneo em virtude do

    descompasso entre estratgias usadas pela igreja e as novas demandas e desafios

    que o mundo apresenta. O captulo dois mostra a caminhada do movimento

    missionrio atravs da Histria, destacando os eventos que viriam contribuir para a

    configurao do paradigma de misso. O captulo trs acompanha a sua trajetria

    protestante depois da Reforma e como ele se tornou o modelo dominante nos EUA.

    Finalmente, o captulo quatro traz a reflexo a respeito de um novo jeito de pensar a

    misso, propondo uma missiologia dialgica descolonizada.

    Palavras-chave: misso; igreja; paradigma; colonialidade; alteridade; dialogicidade.

  • NASCIMENTO, Analzira. Mission and Otherness: decolonizing missiological

    paradigm. Thesis (Ph.D. in Religious Sciences). Methodist University of So Paulo.

    ABSTRACT

    Throughout history the Church has adopted evangelizing practices which

    consolidated a mission paradigm that became tightly influenced by colonialist

    expansion enterprises. As from sixteenth century took place an embranchment with

    the Reformation, although this draft also failed to break away colonial logic. We have

    gone along with this pattern trajectory as affected by puritanism and pietism, in

    addition to illuminist ideas retouching, it comes to be formatted at United States of

    America generating a missionary paradigm dominant protestant.

    In meeting the other, we support that the Church, zealous with fulfilling expansion

    programs, continues to play the same colonialist logic of domination that reinforces

    the denial of "other" identity.

    The first chapter depicts the socio-cultural and epistemological paradigmatic crisis

    which also has affected contemporary missionary movement due to the mismatch

    amidst strategies used by the church and the fresh requests and challenges

    presented by the world. The second chapter demonstrates the missionary movement

    journey throughout history highlighting the events that would contribute for

    missionary paradigm setting; the third chapter follows its trajectory after the

    Reformation and how it became the dominant model at USA. Lastly chapter four

    introduces a reflection on a new way of thinking about mission proposing a dialogical

    decolonized missiology.

    Keywords: mission, church, paradigm, colonialism, otherness, dialogicity.

  • LISTA DE SIGLAS

    AMTB Associao de Misses Transculturais Brasileiras

    BMS Sociedade Missionria Batista (Inglaterra)

    CBB Conveno Batista Brasileira

    IMB Junta de Misses Mundiais Batista da SBC

    JMM Junta de Misses Mundiais da CBB

    SBC Conveno Batista do Sul dos EUA

    MPLA - Movimento para Libertao de Angola UNITA - Unio Nacional para Independncia Total de Angola

  • SUMRIO

    INTRODUO ................................................................................................................... 10

    CAPTULO 1

    CRISE PARADIGMTICA: exausto de modelos ocidentais ............................................. 18

    1.1 A Crise Paradigmtica Sociocultural e Epistemolgica ................................................ 19

    1.2 A Crise Paradigmtica na Misso ................................................................................ 32

    CAPTULO 2

    PARCERIA MISSO E EXPANSO IMPERIALISTA:

    a sedimentao do paradigma missionrio dominante ....................................................... 55

    2.1 Cristianismo e cristandade .......................................................................................... 56

    2.2. Projeto eurocntrico e cristandade latina .................................................................... 65

    2.3. Expansionismo e subalternizao: a negao da alteridade ....................................... 69

    2.4. Colonizao e misso: a dominao que silencia ....................................................... 78

    CAPTULO 3

    A FORMATAO DO PARADIGMA MISSIONRIO PROTESTANTE DOMINANTE ........ 84

    3.1. As razes: puritanismo e pietismo ............................................................................... 84

    3.2. Implantao do protestantismo na Amrica do Norte ................................................. 89

    3.3. A hegemonia norte-americana e a expanso missionria protestante ....................... 93

    3.4. Misses protestantes na Amrica Latina e Brasil ........................................................ 98

    3.5. A crise do paradigma hoje: um exemplo entre os batistas ....................................... 105

    CAPTULO 4

    REENCONTRANDO O CAMINHO DA PRTICA DIALGICA:

    por uma missiologia descolonial ...................................................................................... 115

    4.1. Escapando da lgica colonialista .............................................................................. 116

    4.2. Vendo o mundo na perspectiva do outro ............................................................... 127

    4.3. Aprendendo com a Histria ....................................................................................... 133

    4.4 Buscando o ideal bblico ............................................................................................ 139

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 154

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................................. 161

  • 10

    INTRODUO A ideia desta pesquisa surgiu de uma constatao da necessidade de novo

    paradigma missionrio para o trabalho de misses, quando, em 1985, fui trabalhar

    em Angola, na frica, e l permaneci 17 anos. Logo de incio pude verificar que o

    modelo missionrio que reinava no Brasil e que me enviara no conseguia mais dar

    respostas para os novos desafios que despontavam no mundo, muito menos para as

    demandas locais que eu enfrentava nas rotinas dirias.

    Repentinamente, encontrei-me em um universo bastante estranho: convivendo

    com uma nova cultura bem diferente da ocidental e descaracterizada por duas

    guerras,1 um governo centralizador de linha marxista-leninista, e residindo em uma

    cidade que foi o epicentro do conflito armado, isolada em determinados perodos

    pelos combates.

    Depois de inmeras dificuldades de adaptao e alguns erros culturais,

    somente no retornei por motivos alheios minha vontade. Entretanto, minha

    formao em enfermagem possibilitou-me uma nova chance e veio nortear o meu

    projeto missionrio para aquela nao, dando um novo direcionamento para a minha

    vida. Foi assim que, sofrendo com a igreja angolana, decidimos no ficar refm da

    situao para no sucumbir diante da misria que nos era imposta pela guerra e

    seus desdobramentos. Juntos, organizamos o contra-ataque, resistimos e

    descobrimos que a crise traz oportunidades imperdveis para a igreja exercer a sua

    misso.

    Neste empreendimento de reavaliar motivos, sentido, objetivos e metas,

    precisei reinventar meu programa de trabalho, principalmente com o

    recrudescimento da situao poltico-militar que assolou todo o pas. Novas

    perguntas exigiam novas respostas, conduzindo-nos a focar as aes na formao

    de agentes de transformao e, com as lideranas locais, trabalhar pela

    transformao de realidades por meio de projetos de desenvolvimento, conforme

    1 Guerras de Angola Desde 1961, movimentos de resistncia ao regime colonial portugus iniciaram uma luta armada, at que em 1975 conseguiram a independncia de Angola. A partir deste ano, dois dos movimentos no se entenderam quanto a um governo de transio e aos protocolos assinados, iniciando um novo conflito protagonizado pelo MPLA, no governo do pas com o apoio da URSS e a UNITA, movimento de oposio ao regime marxista-leninista, auxiliada pelos EUA. A guerra s terminou em 2002 com a morte de Jonas Savimbi, lder da guerrilha e a assinatura dos acordos de paz.

  • 11

    escrevi na dissertao de mestrado: As necessidades e demandas que a

    devastao da guerra gerava no cotidiano colocavam para a comunidade batista a

    necessidade de reviso em sua eclesiologia para procurar responder s novas

    perguntas que surgiam.2 Houve um frutfero intercmbio com organizaes

    internacionais e foram implantados vrios projetos sociomissionrios, que geraram

    empregos e renda, devolveram a dignidade e a autoestima para as pessoas e

    contriburam para o desenvolvimento da cidade.

    Essa vivncia forjou minha prtica exatamente no processo do fazer dirio,

    do servio sacrificial, do negociar constantemente e do reconhecer a

    interdependncia para, juntos, e na medida do possvel, trabalharmos pela

    construo de uma sociedade melhor.

    Em agosto de 2002, fui convidada pela Junta de Misses Mundiais da

    Conveno Batista Brasileira a retornar ao Brasil para trabalhar com a formao de

    missionrios e assumir a coordenao do projeto Voluntrios Sem Fronteiras, que

    tem por objetivo preparar e enviar equipes de jovens para pases com baixo IDH,

    principalmente na frica. O plano pedaggico inicial visava programas de misso

    com engajamento em projetos de transformao social. O laboratrio em Angola j

    demonstrara que era possvel a transformao de comunidades pelo evangelho

    integral3 e, portanto, era fundamental rever nosso paradigma de misso que,

    segundo o pensamento de David Bosch, deve constituir um ministrio

    multifacetado.4 Para ele, a definio de misso est imbricada com a compreenso

    sobre o que a igreja foi chamada a realizar no mundo de seu tempo. Entretanto, a

    forte presso de algumas lideranas e as nfases da instituio para restringir o

    trabalho a aes de proclamao no s ameaavam descaracterizar o projeto, mas

    2 NASCIMENTO, Analzira. Crise e Esperana: A prxis pastoral da Igreja Batista na guerra de Angola, 2005.235 p Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) UMESP. So Paulo, p.154. 3 a evoluo de um conceito proveniente de um debate teolgico, pastoral e missional sobre a verdadeira significncia e prtica da mensagem de Jesus Cristo, que correu pela Amrica Latina (Congresso Latino-Americano de Evangelizao - CLADE I - em Bogot, 1969). Um dos desdobramentos foi o surgimento da Fraternidade de Telogos Latino-americanos (FTL -Cochabamba, 1970), e popularizou-se com o Congresso Internacional de Evangelizao Mundial realizado em Lausanne, Suia, em 1974. Tomava corpo, ento, a nascente teologia da misso integral cuja repercusso se faz presente at os dias de hoje pelo mote: O evangelho todo, para o homem todo. 4 David Bosch, missilogo sul-africano, em sua obra Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso faz uma anlise das Conferncias que influenciaram movimentos missionrios e sua compreenso de misso. Na Conferncia de Willingen (1952), foi adotada a frmula: MARTYRIA (conceito abrangente) = KERYGMA + DIACONIA + KOINONIA.

  • 12

    tambm me impeliam a fazer uma pausa ttica e empreender uma busca por

    caminhos alternativos.

    Desenvolver um programa inovador, enfrentando embates de uma mentalidade

    de manuteno, que se ope a dialogicidade com questes contemporneas, foi o

    que me motivou/desafiou a comear a trabalhar nesta pesquisa. Fui percebendo que

    a minha inquietao inicial, que aparentemente se resumia no mbito de estratgias

    e metodologias, agora ao entrar em contato com diferentes tendncias e correntes

    de pensamento no movimento missionrio atual, algumas evidncias comearam a

    mostrar que o descompasso no era s uma questo operacional batista, mas o

    Brasil protestante, de uma forma geral, reproduzia um modelo inspirado numa viso

    de mundo que apresentava claros sinais de esgotamento.

    No incio da pesquisa, o objetivo era passar alguns meses nos Estados Unidos

    da Amrica, na regio de Richmond, visitando os escritrios centrais da SBC,5

    especialmente as dependncias da IMB6 para coletar informaes que me

    fornececem subsdios para melhor compreenso do pensamento desta to famosa e

    considerada a maior agncia denominacional enviadora de missionrios em todo o

    mundo. Minha ideia era tambm estabelecer uma transversalidade com algumas

    escolas de formao missionria no Brasil, para analisar o quanto reproduzamos,

    ou no, o paradigma norte-americano em nossa missiologia brasileira e para ser

    mais especfica, a missiologia batista.

    Como docente em algumas escolas em diferentes regies do Brasil, percebi

    que os processos no eram como eu previa, e a confirmao veio com o silncio das

    escolas consultadas. S uma concedeu autorizao para a pesquisa, mas era

    insuficiente para a comprovao da tese. Sem acesso aos arquivos e documentos,

    desisti das duas possibilidades porque com esta metodologia eu estaria dependendo

    de informaes autorizadas e foi ento que optei pela pesquisa bibliogrfica.

    Com a caminhada na universidade, a investigao me conduziu para novas

    possibilidades e minha compreenso foi tomando outros rumos, ajudando-me a

    entender que o problema no se restringia simplesmente a uma necessidade de

    rever os jeitos de fazer. A convivncia com grupos de vanguarda, especialmente os

    que trabalhavam com uma abordagem holstica, trouxe uma contribuio para a 5 SBC Conveno Batista do Sul dos Estados Unidos (SBC), sediada em Richmond, na Virgnia. 6 IMB International Mission Board (Junta de Misses Mundiais), organizao denominacional pertencente SBC.

  • 13

    delimitao desta tese. Eu ainda ficava intrigada com uma questo: por que alguns

    cristos sinceros e bem-intencionados, preocupados com a situao espiritual ou

    mesmo com todos os aspectos da vida do ser humano, continuam reproduzindo uma

    prtica missionria caracterizada como os superiores que sabem e podem resolver

    os problemas do outro e decidir o que bom para ele? Por que at mesmo alguns

    defensores de um discurso que conclama a igreja contempornea a se inserir

    melhor na sociedade e educar o seu olhar para uma interpretao diferenciada

    quanto aos desafios alm dos seus portes, no conseguem construir uma relao dialgica-diaconal e escapar da lgica colonial em seus encontros com o outro?

    Minha hiptese que nos encontros com o outro, na nsia de cumprir uma

    agenda eclesistica, muitas vezes o missionrio no consegue reconhec-lo como

    sujeito, ou seja, o paradigma de misso que predomina, principalmente no mundo

    evanglico, continua a reproduzir a mesma lgica colonialista eurocntrica de

    dominao que refora a negao da identidade do outro e o reduz a objeto.

    Nesta pesquisa, trazemos propostas sobre como atuar numa nova lgica

    descolonizada que venha contrapor ao continusmo de um modelo que d sinais to

    claros de exausto e trabalhar por uma cultura de liminaridade7 que respeite outras

    cosmovises com seus saberes e as suas diferenas. A proposta vai discutir o

    paradigma dominante na prtica missionria, provocando uma reflexo em torno da

    temtica da alteridade que pressupe nos relacionamentos sociais a distino do que

    o outro, ou seja, os seres humanos interagem, so interdependentes, no entanto, o

    outro um ser distinto e a sua subjetividade deve ser preservada, em contraposio

    abordagem bancria8 que prioriza o depsito de contedos nas pessoas,

    especialmente as que vivem fora do arraial cristo.

    Esta tese no um estudo sobre teologia da misso e muito menos uma

    pesquisa histrica sobre modelos de misso, mas quer demonstrar como foi sendo

    configurado ao longo dos sculos este paradigma dominante que ainda hoje

    percebemos em quase todos os movimentos missionrios. Ela vai discorrer

    especificamente sobre a sedimentao do modelo missionrio dominante na

    7 Interao cultural entre diferentes indivduos onde no h supresso ou movimento de subalternidade da expresso cultural alheia, mas h interao dialgica e de troca de suas matrizes culturais. 8 Educao Bancria - Paulo Freire se refere a educao bancria como sendo uma metodologia em que o aluno simplesmente um recipiente onde os contedos so despejados. A postura apassivada, basta memorizar ou repetir. No existe relao de dialogicidade.

  • 14

    atuao da igreja nos encontros com o outro, especialmente a partir do projeto

    eurocntrico colonialista de dominao no sculo XVI. A temtica ser abordada

    numa transversalidade com os estudos Ps-Coloniais, porque acreditamos que, em

    se falando de alteridade, hoje o nosso estranhamento no encontro com o outro

    tambm tem suas razes na formatao de uma cosmoviso ocidental hegemnica,

    que foi fortemente influenciada pelos empreendimentos de expanso colonialista a

    partir de 1492. Exatamente aqui, Enrique Dussel vai trazer uma contribuio

    essencial para o texto sobre relaes de poder, dominao e subalternidade,

    quando a Europa pode se confrontar com o seu outro, se afirmar como centro do

    mundo e assim control-lo e venc-lo. Para ele, no houve descobrimento, mas um

    encobrimento do outro.

    Este um ponto chave nesta pesquisa, pois sua relevncia est em abrir uma

    discusso sobre o grau de cumplicidade dos programas missionrios com

    movimentos imperialistas hegemnicos, em alguns momentos da Histria, utilizando

    as mesmas estratgias de abordagem colonialista, inclusive at a atualidade, em

    pleno sculo XXI. Sua importncia tambm reside no s em estabelecer um dilogo

    com alguns tericos dos estudos Ps-Coloniais, mas tambm com o socilogo

    Boaventura de Sousa Santos para que, buscando uma compreenso melhor do

    homem e do mundo ao seu redor, seja possvel propor um paradigma missiolgico

    descolonizado9 que facilite reencontrar o caminho de uma prtica missionria

    dialgica.

    A maioria desses autores vincula o trabalho missionrio com os movimentos de

    expanso colonialista, assegurando serem interdependentes. Para eles, as

    misses foram parceiras nestes projetos etnocntricos que conduziram

    aniquilao de culturas locais.

    Outro referencial terico utilizado so as teses de David Bosch sobre o projeto

    missionrio ao longo da Histria e como a igreja de cada perodo compreendia seu

    papel na sociedade. Esse missilogo tambm sustenta que o paradigma de misso

    foi fortemente contaminado por sua origem no colonialismo ocidental e que ele

    precisa deixar de ser um smbolo da universalidade do imperialismo ocidental entre

    as novas geraes do mundo emergente, do contrrio a presente estrutura da

    9 Descolonizado extrair resqucios de colonialidade do paradigma missiolgico, ou seja, a partir dos conceitos dos tericos dos Estudos Ps-coloniais, seria eliminar vestgios de uma lgica estrutural de dominao colonialista do pensamento e prtica missionria.

  • 15

    misso moderna est morta.10 E por isto o projeto de misso precisa buscar novas

    possibilidades para conseguir reconquistar seu espao e ser relevante no presente

    sculo.

    Esclareo que no desenvolvimento da tese utilizo duas perspectivas como

    observadora do objeto: a da terceira pessoa, que analisa de fora o paradigma

    dominante; mas tambm da perspectiva da primeira pessoa, a partir da minha

    experincia de missionria, assumindo uma posio na discusso, particularmente

    no captulo 4, pois a motivao principal para a pesquisa surgiu a partir da vivncia

    pessoal de misso. Ali a fronteira entre pesquisador, objeto e sujeito ativo fica um

    pouco tnue, porque a confirmao e argumentao esto muito prximas da prtica

    e das evidncias. Foi preciso sair do camarote e tirar a luva como se refere Paulo

    Freire ao argumentar sobre a complexidade da neutralidade cientfica quando disse

    que: no me parece possvel nem aceitvel a posio ingnua ou, pior, astutamente

    neutra de quem estuda, seja o fsico, o bilogo, o socilogo, o matemtico, ou o

    pensador da educao. Ningum pode estar no mundo, com o mundo e com os

    outros de forma neutra,11 e principalmente no estudo desta temtica, no posso

    colocar-me de fora, quando me dedico a esta pesquisa, estou diante do espelho.

    Sem cair num empirismo alienante e ao mesmo tempo dando o devido valor

    experincia, fazemos um contraponto ao ceticismo epistemolgico ocidental que

    muitas vezes despreza a prtica e aproveitamos para lembrar a possibilidade do

    conhecimento objetivo, cuja efetivao se d na conjugao e no dilogo entre teoria

    e prtica.12 Procuramos objetividade possvel, mas sem negar que somos sujeitos

    inseridos no mundo e na Histria. A pretensa neutralidade do conhecimento cientfico, um dos mitos da cincia moderna ocidental, criticada por Boaventura de

    Sousa Santos, que a inclui na categoria de monocultura do saber e do rigor. Ele nos

    incentiva a discutir como podemos, no que diz respeito cincia, ser objetivos, mas

    no neutros; como devemos distinguir entre objetividade e neutralidade.13

    10 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 617. 11 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessrios pratica educativa, p. 86. 12 MARCONDES DE MORAES, Maria Clia; MLLER, Ricardo Gaspar. Histria e Experincia: contribuies de E.P. Thompson pesquisa em educao, p. 344.. 13 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e Reinventar a Emancipao Social, p. 23.

  • 16

    Essa racionalidade, que ele batizou de razo indolente, se considera nica e

    recusa a aceitar a existncia de conhecimentos alternativos ao conhecimento

    cientfico, por isto h um desperdcio de experincias porque no so legitimadas ou

    credibilizadas pelas cincias hegemnicas. Entretanto, elas podem se tornar

    sementes e embries de novas formas de produzir conhecimento.

    O texto est organizado em quatro captulos, sendo que o captulo um

    apresenta a crise paradigmtica sociocultural e epistemolgica que vivemos neste

    incio de milnio e que afetou tambm o projeto missionrio cristo. Segundo

    Boaventura de Sousa Santos, estamos em um perodo de transio paradigmtica

    que se caracteriza por vivermos um tempo de busca, no por um novo

    conhecimento, mas por um novo modo de produo de conhecimento. Ele nos incentiva a ter uma atitude crtica com esta razo ocidental que reina desde o

    Iluminismo, uma racionalidade que domina no Norte e que tem tido uma influncia

    enorme em todas as nossas maneiras de pensar, em nossas cincias, em nossas

    concepes da vida e do mundo.14 Ela uma razo indolente, porque se

    considera nica e no quer ver a diversidade epistemolgica e a riqueza de outras

    culturas. Ela produz monoculturas que encobrem o outro e o tornam invisvel,

    porque ele diferente e no se enquadra em sua concepo hegemnica de

    realidade.

    Neste captulo primeiro, mostramos o quanto o perodo das luzes influenciou o

    pensamento e prtica missionria, contribuindo para configurar o sentimento de

    superioridade ocidental que j vinha de uma caminhada histrica e foi fortalecido

    com os projetos colonialistas. E hoje, este modelo de ao missionria entrou em

    crise e precisa buscar uma adequao para superar o descompasso com um novo

    mundo que valoriza e respeita a diversidade cultural.

    O captulo dois faz uma retrospectiva na histria do cristianismo com foco no

    em relatos de acontecimentos importantes, mas trabalhando o conceito de

    cristandade desde o sculo IV, para expor como o paradigma de misso foi sendo

    sedimentado a partir da compreenso que a igreja tinha acerca do seu papel no

    mundo em cada poca. Fechando essa etapa, mostramos como o projeto ibrico

    atravs dos empreendimentos colonialistas na conquista da Amrica foi

    determinante para delinear o modelo atual da prtica missionria. 14 Ibid., p. 25.

  • 17

    Retomando o sculo XVI, o captulo trs vai percorrer o outro lado da

    bifurcao na histria do cristianismo, comeando com a Reforma Protestante, que

    vai dar origem a um novo paradigma, mas com um projeto tambm imperialista e

    monocultural. Com marcas do puritanismo e do pietismo, este modelo vai ser

    formatado nos Estados Unidos tornando-se uma matriz para o paradigma

    missionrio dominante. Encerramos esta seo comentando a crise que se instalou

    na maior agncia norte-americana enviadora de missionrios, por conta de sua

    intransigncia em no querer rever suas estratgias missionrias colonialistas, que

    j no conseguem mais se impor nos pases emergentes.

    A tese conclui com o captulo quatro propondo um reencontro com a

    dialogicidade na ao missionria para atuar numa nova lgica descolonizada, pois

    a prtica de misso que predomina j vem dando claros sinais de esgotamento h

    muito tempo. E para escapar da colonialidade que est impregnada no paradigma

    que impera na atualidade, defendemos a recuperao do modelo ideal bblico, o

    aprendizado com a Histria e a educao do olhar para ver o mundo na perspectiva

    do outro. Sustentamos a importncia de fugir de todo resqucio de colonialismo nas

    abordagens crists, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nada mais nada

    menos do que a incapacidade de estabelecer relao com o outro a no ser

    transformando-o em objeto.15 preciso parar de invadir a casa do outro, entender

    que ele tambm tem o que dizer e que, ouvindo, alcanaremos condies de

    dilogo.

    15 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 83.

  • 18

    Captulo 1 CRISE PARADIGMTICA:

    exausto de modelos ocidentais

    Vivemos tempos de sociedades intervalares,16 uma poca de transio

    caracterizada por grandes mudanas sociopolticas e culturais, tanto na esfera

    global como localizada. Estamos observando o esgotamento de modelos que foram

    referncia e determinavam as formas de pensar e fazer. Presenciamos o fim de um

    tipo de sociedade, um paradigma que se enfraquece e que foi construdo sobre a

    ideia de que a sociedade no tem outro fundamento seno o social (...) uma

    representao da sociedade na qual o mundo ocidental viveu durante vrios

    sculos.17

    No limiar entre um novo mundo que desponta e vai sufocando o anterior, que

    est ficando ultrapassado, surgem crises decorrentes no s da inadequao frente

    a novas realidades, mas como constatamos no decorrer da histria da humanidade,

    tambm pela presena de diferentes cosmovises que convivem simultaneamente

    em diferentes momentos de cada sociedade, gerando descompassos entre o

    conservadorismo e o emergente. Alguns crticos j identificam os nossos dias como

    um perodo de crise paradigmtica.

    Esses fenmenos que vm alterando os nossos quadros de referncia e

    conduzindo a novas maneiras de compreender a realidade tm desdobramentos nos

    mais variados segmentos da sociedade, atingindo de modo certeiro o mundo cristo

    e, em especial, o paradigma missionrio.

    Nossa sociedade mudou consideravelmente e a igreja continuou com o mesmo

    discurso dirigido a uma populao de dcadas passadas. Sua prtica segue uma

    metodologia que, no mbito da educao, Paulo Freire chama de educao

    bancria,18 em que o aluno simplesmente um recipiente onde os contedos so

    despejados. A postura apassivada, basta memorizar ou repetir. No existe relao

    16 O termo usado por Boaventura de Sousa Santos para se referir a perodos de transio. Momentos de mudanas de paradigmas. 17 TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 55. 18 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 2007, p. 66.

  • 19

    de dialogicidade, a ao educativa se torna um ato de depositar, em que os

    educandos so os depositrios e o educador o depositante.

    A atividade missionria da igreja, que possibilita o dilogo com o mundo fora da

    realidade eclesistica, tambm ficou em um descompasso sem precedentes. Se

    transportarmos/adaptarmos a educao bancria para a prtica missionria, o

    educando seria o outro, o objeto da prtica missionria, o depositrio, enquanto

    que o educador o missionrio, o depositante, o ltimo aquele que detm o saber

    e, por isso, ignora ou no considera o que as pessoas do local j sabem.

    Essa prtica j no consegue impor-se. Ela est dando respostas para

    perguntas que no so mais feitas.

    1.1 A Crise Paradigmtica Sociocultural e Epistemolgica Ao defender sua tese sobre a transio paradigmtica, Boaventura de Sousa

    Santos argumenta que o paradigma epistemolgico ocidental, que dominou por

    muitos anos, foi cada vez mais dando sinais de esgotamento e refletindo cada vez

    menos a prtica cientfica. J possvel concluir que a cincia em geral e no

    apenas as cincias sociais se pautavam por um paradigma epistemolgico e um

    modelo de racionalidade que davam sinais de exausto, sinais to evidentes que

    podamos falar de uma crise paradigmtica.19 Ele afirma que a condio da nossa

    condio estarmos em um perodo de transio, ou seja, temos problemas

    modernos para os quais no temos solues modernas. E isso d ao nosso tempo o

    carter de transio.20 uma crise do pensamento hegemnico que foi alicerado em uma razo

    eurocntrica. indolente, porque se recusa a ver outros saberes, buscar novas

    solues, e incapaz de produzir novas ideias.21

    Essa falncia, cada vez mais visvel, tambm expe de forma gritante o grande

    desafio de trabalhar para a construo/configurao de um modelo emergente,

    ainda de difcil identificao que esse socilogo tambm denomina de paradigma de

    um conhecimento prudente para uma vida decente. 22

    19 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 25. 20 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 19. 21 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 42. 22 IDEM. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 74.

  • 20

    Em outro texto, Boaventura trabalha com mais especificidade esse tema da

    crise paradigmtica, nem sempre relacionada com perodos de macro, mas tambm

    micromudanas. Segundo ele, h basicamente dois tipos de crise paradigmtica:

    crise de crescimento, quando h insatisfao com mtodos ou conceitos, e

    acontecem com maior frequncia, e crise de degenerescncia, que envolve todo o

    paradigma e tem a configurao mais lenta, comprometendo a prpria forma de

    inteligibilidade do real que um dado paradigma proporciona e no apenas os

    instrumentos metodolgicos e conceituais que lhe do acesso.23

    Thomas Kuhn, um fsico terico, que no transcorrer de suas pesquisas passou

    a se interessar muito pela Histria da Cincia e Filosofia, desenvolveu uma tese

    sobre crises e mudanas de paradigmas. Num primeiro momento, ele afirma que

    considera paradigma como as realizaes cientficas universalmente reconhecidas

    que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma

    comunidade de praticantes de uma cincia.24 Posteriormente, ele emprega o

    conceito no sentido sociolgico, que pode indicar toda a constelao de crenas,

    valores, tcnicas etc... partilhadas pelos membros de uma comunidade

    determinada.25

    Embora sua teoria seja restringida s cincias naturais, podemos considerar

    vlido aproveitar sua pesquisa e alguns conceitos como uma hiptese de trabalho,

    pois especialmente as suas ideias sobre o processo de substituio de modelos

    e assimilao de novos podem ser adaptadas para as cincias sociais. Segundo ele, o

    novo paradigma pode emergir ao menos embrionariamente antes que uma crise

    esteja bem instalada ou tenha sido amplamente reconhecida e decorre um tempo

    considervel entre a primeira conscincia do fracasso do paradigma e a emergncia

    de um novo.26

    Geralmente, s alguns indivduos de um grupo conseguem perceber a

    realidade de modo qualitativamente diferente de seus contemporneos e

    antecessores, e desta forma eles constatam que os modelos utilizados j no

    conseguem responder aos novos problemas que despontam. O autor comenta que

    no perodo em que a crise vai se configurando, h um sentimento de funcionamento

    defeituoso, que pode ser aplicado tanto no desenvolvimento cientfico como no 23 IDEM. Introduo a uma Cincia Ps-Moderna, p. 18. 24 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 13. 25 Ibid., p. 218. 26 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 118.

  • 21

    poltico. No livro, ele traa um paralelo entre revolues polticas e revolues

    cientficas, destacando que nos dois casos prevalece um sentimento comum de

    inadequao, descompasso e anseio por respostas, pois

    as revolues polticas iniciam-se com um sentimento crescente, com frequncia restrito a um segmento da comunidade poltica, de que as instituies existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revolues cientficas iniciam-se com um sentimento crescente, tambm seguidamente restrito a uma pequena subdiviso da comunidade cientfica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente.27

    Ao escrever sobre a origem das mudanas, Thomas Kuhn destaca que uma

    conscincia de anomalia precisa acontecer, e esta sensibilizao inaugura um

    perodo no qual as categorias conceituais so adaptadas at que, o que inicialmente

    era considerado anmalo se converta no previsto.28 H uma constatao de que os

    modelos vigentes no conseguem mais responder aos problemas que despontam.

    Entretanto, a transio para um novo paradigma ser um perodo de crise,

    caracterizada como um processo de desconstruo de tradies e construo de

    outros modelos.

    Portanto, a novidade no desponta com facilidade, pois mais cmodo e

    seguro trabalhar em cima do habitual e previsto, ignorando os novos problemas que

    se acumulam, do que admitir fracassos. justamente aqui que reside o aspecto

    positivo da crise: o efeito acumulativo que pode nos surpreender a cada momento,

    tambm nos impele a admitir que estamos ultrapassados e nos impulsiona a estar

    abertos para o novo que, segundo ele, reconhecer que chegou a ocasio para

    renovar os instrumentos. As crises oferecem comunidade possibilidades de

    confrontao, viabilizam novas escolhas e se tornam necessrias para que o novo

    possa emergir.

    O autor comenta que as crises podem terminar de diferentes maneiras, e

    enumera trs possveis questes pertinentes que merecem ser analisadas por ns

    que julgamos ser embaixadores do Reino de Deus29 neste mundo: 1. O problema

    pode resistir at novas abordagens, aparentemente radicais; 2. O fim da crise pode

    se dar quando a cincia normal pode se revelar capaz de tratar o problema; 3. Pode 27 Ibid, p. 126. 28 Ibid., p. 91. 29 Deve ser entendido como aqueles que se autointitulam representantes da vontade soberana do Sagrado e so portadores de Sua verdade.

  • 22

    terminar com a emergncia de um novo candidato a paradigma e uma subsequente

    batalha por sua aceitao.

    David Bosch, missilogo sul-africano, baseando-se nas ideias de Kuhn, aproveitou alguns conceitos para defender sua tese sobre a crise e a transio

    paradigmtica na misso. Comentando sobre a substituio de modelos, ele

    sustenta que, nas cincias naturais, o novo paradigma substitui o velho de uma

    maneira definitiva e irreversvel, entretanto, nas cincias humanas, os dois podem

    caminhar juntos por muito tempo e, no caso da teologia, possvel encontrar

    diferentes linhas e tendncias convivendo simultaneamente em perodos distintos da

    Histria. Nos dias atuais, por exemplo, em vrios grupos cristos possvel observar

    seguidores de Jesus Cristo pertencentes mesma denominao religiosa e, no

    entanto, com as mais diferentes inclinaes, como crentes fundamentalistas,

    conservadores, liberais e outros. Sua investigao sobre mudanas de paradigmas

    na Histria traz uma concluso que no campo da religio, uma mudana de

    paradigma sempre significa continuidade e cmbio, fidelidade ao passado e

    coragem para enfrentar o futuro, constncia e contingncia, tradio e

    transformao.

    Para o autor, os diferentes perodos da Histria, com seus contextos

    peculiares, afetou consideravelmente a compreenso dos cristos sobre a f bblica

    e, por consequncia, da misso crist. Bosch defende o conceito de paradigma

    tambm no sentido de modelos de interpretao, pois, segundo ele, os nossos

    pontos de vista constituem sempre meras interpretaes do que consideramos ser a

    revelao divina,30 e essa compreenso individual da revelao tambm pode ser

    condicionada por diversos fatores, entre eles a tradio eclesistica da pessoa, o

    contexto pessoal, a posio social, a personalidade e a cultura. Atualmente, vivemos

    dias que se caracterizam por um perodo de crise de paradigmas e no apenas uma

    crise no tocante misso. Ela afeta a igreja inteira, na verdade o mundo inteiro.31

    No s o paradigma missiolgico no d mais conta e no consegue responder a

    inmeras questes contemporneas, mas a crise atinge vrias Cincias. Sobre a

    crise na misso vamos desenvolver mais no prximo tpico.

    A reflexo inicial com base nos autores at aqui citados nos permite afirmar

    que tanto na Teologia como nas Cincias em geral, h uma estreita relao entre

    30 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 228. 31 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 19.

  • 23

    mudana de paradigma e diferentes percepes de mundo. Thomas Kuhn fala desta

    ligao imbricada ao comentar que, o que um homem v depende tanto daquilo que

    ele olha como daquilo que sua experincia visual-conceitual prvia o ensinou a

    ver.32

    assim que novos padres de interpretao despontam, como j comentamos,

    quando um grupo pequeno de determinado segmento ou sociedade/comunidade

    percebe que os modelos existentes se mostram incapazes de resolver problemas

    emergentes. Comea, ento, uma procura por um novo paradigma ou estrutura

    terica que responda mais adequadamente aos novos desafios do momento.

    Essas novas referncias no so decididas ou inventadas por algum grupo ou

    proposta individual. medida que o paradigma dominante vai se tornando

    incompatvel com novas realidades, o novo vai se infiltrando e se impondo, at

    que finalmente conquista o seu espao. Boaventura de Sousa Santos sustenta que

    vivemos na contemporaneidade uma crise epistemolgica do paradigma dominante,

    mas que tambm a sua caracterizao pode definir o perfil do paradigma

    emergente.33

    Defensores de modelos dominantes tendem a resistir s propostas do novo

    porque geralmente o cmbio compromete o seu projeto de vida. Com o novo h uma

    redefinio dos problemas e das incongruncias at ento insolveis e d-lhes uma

    soluo convincente; nessa base que se vai impondo comunidade cientfica. Mas

    a substituio do paradigma no rpida.34

    As pessoas que defendem o velho paradigma, muitas vezes, simplesmente

    no conseguem compreender os argumentos dos que propem o novo. Falando

    metaforicamente, um est jogando xadrez e o outro, damas, sobre um mesmo

    tabuleiro.35

    Embora seja difcil determinar qual tipo de crise domina determinado perodo

    histrico, trabalharemos com a hiptese de que atualmente estamos em uma crise

    de degenerescncia, conforme referncia de Boaventura de Souza Santos, e esse

    posicionamento pode determinar o tipo de reflexo epistemolgica que vamos

    32 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 148. 33 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crtica da Razo Indolente: contra o desperdcio da experincia, p. 74. 34 KUHN, Thomas. A Estrutura das Revolues Cientficas, p. 134. 35 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 231.

  • 24

    privilegiar, porque esse mesmo autor afirma que a crise da cincia , assim,

    tambm a crise da epistemologia.36

    O esgotamento de paradigmas, e seu efeito domin que afeta a sociedade e

    cultura, pode tambm provocar mutaes em nossas estruturas tericas, e bem

    trabalhado por Michel de Certeau em seu livro Cultura no Plural. Para ele, essa crise

    que atinge os nossos modelos s vem atestar um desmoronamento das ideologias,

    e a recusa em aceitar que estamos ultrapassados na forma de produzir

    conhecimento, e que os nossos mapas oficiais esto ruindo, ilustrada pelo autor

    como duas formas de inconscincia: uma que se recusa a ver os destroos e,

    portanto, nega o problema; e a outra que se exime de reconstruir, ou seja, sua

    deciso desistir de buscar uma soluo.37

    Ao comentar sobre esta eroso nas instituies, Certeau aponta a inverso

    de objetivos que vem ocorrendo em muitas organizaes, onde lutar pela

    sobrevivncia se tornou uma meta acima da sua misso. uma estranha inverso!

    Apegamo-nos s expresses, e no mais ao que elas exprimem; aos benefcios de

    uma adeso, mais do que sua realidade.38 Para o nosso pensador, j no se

    aceita o fato de se declarar uma legitimidade porque ela preserva um poder, pois o

    desvanecimento das convices e o descrdito das autoridades, que se revelam nos

    questionamentos dos dogmas e dos paradigmas, so inevitveis.

    Como exemplo para estar atento aos sinais dos tempos, ele cita a viso de

    Ezequiel, no Antigo Testamento, livro de Ezequiel, captulos 10 e 11. O Esprito

    emigrara com o povo exilado para a Babilnia, abandonando a cidade. Agora

    restaram somente as lembranas de um passado glorioso, situao descrita por ele

    como liturgias da ausncia, pois Ele est em outro lugar. Ele no falta. Ele lhes

    falta... esvaziou-se o sentido do edifcio das instituies... s restavam apenas

    pedras.39 O passado tem a sua importncia e o seu valor, mas preciso reconhecer

    quando o modelo esgotou e no permitir a estagnao, resultado da necessidade de

    reassegurar posies e reverenciar relquias.

    Certeau no poupa crticas ao continusmo, uniformizao, ao mtodo linear

    de interpretar a Histria uma epistemologia que, segundo ele, governa em silncio

    36 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo a uma Cincia Ps-Moderna, p. 19. 37 CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural, p. 25. 38 Ibid., p. 27. 39 CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural, p. 29.

  • 25

    a profisso do historiador. Esse seu inconformismo revela a sensibilidade e busca

    por uma compreenso do homem no mundo em que est situado.

    O continusmo, alm de tolher a criatividade e inovao, sofre a tentao da

    uniformizao. A possibilidade de mudana traz muita insegurana, pois melhor o

    conforto da manuteno do que o risco do desconhecido e da novidade.

    A atitude/reao diante de mudanas pode se constituir em perigo: a ruptura

    total com o passado e negao de qualquer continuidade, ou a resistncia com

    posies blindadas e falta de humildade para a reflexo/discusso diante do novo.

    Para Certeau a verdadeira modernidade traz reconhecimento da diversidade,

    possibilidades de pluralismos e multiculturalismos, enquanto que a intransigncia, a

    inflexibilidade, a uniformizao e o dogmatismo so manifestaes do paradigma

    medieval que herdamos e ainda influencia o nosso modo de pensar.

    A temtica do conservadorismo e da rigidez epistemolgica tambm uma

    preocupao de Edgar Morin, quando descreve que ao determinismo de

    paradigmas e modelos explicativos associa-se o determinismo de convices e

    crenas, que, quando reinam em uma sociedade, impem a todos e a cada um a

    fora imperativa do sagrado, a fora normalizadora do dogma, a fora proibitiva do

    tabu.40

    Discorrendo sobre mudanas na sociedade e processos de transio, Zygmunt

    Bauman desenvolve os conceitos de liquidez, slido e fluidez como metforas

    adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas

    maneiras, na histria da modernidade.41

    A expresso derreter os slidos em seu texto empregada para descrever os

    fenmenos que atacam os congelamentos dos padres estabelecidos e

    convencionados pelo presente sistema como normativos, desencadeando novas

    mudanas e gerando alteraes nos quadros de referncia.

    Optar pela tradio e resistir liquefao promove o continusmo que conduz

    inflexibilidade para aceitar novas formas de pensar-fazer, no entanto, o autor nos

    adverte para os perigos dessa empreitada na construo de uma nova ordem.

    preciso cautela nas demolies e remoo dos entulhos! O medo de mudanas

    40 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessrios Educao do Futuro, p. 27. 41 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Lquida, p. 9.

  • 26

    causa estagnao, pois a preocupao com manter posies supera a abertura

    para refletir sobre motivaes e mtodos corretos.

    A mudana traz riscos porque at alcanar o status de normalidade, ela trava

    verdadeiras batalhas com o conservadorismo que luta pela preservao dos valores

    tradicionais. Entretanto, o embate entre diferentes cosmovises torna-se previsvel

    em fase de transio, e a caminhada para uma cristalizao do novo jeito de

    compreender ou fazer pode se tornar longa.

    Em sua obra, Impensar a Cincia Social: os limites dos paradigmas do sculo

    XIX, Immanuel Wallerstein traz uma interessante reflexo ao comentar os

    desdobramentos da Revoluo Francesa como evento histrico, perodo de

    transio dramtica, definitiva e, segundo ele, inevitvel, pois se tornou um marco da

    passagem do feudalismo para o capitalismo, de um Estado dominado por uma

    aristocracia a um Estado dominado por uma burguesia. Foram acontecimentos que

    se tornaram sementes para uma mudana qualitativa.

    Entretanto, o autor nos relembra que em todas as pocas e lugares houve

    uma ou vrias Weltanschauungen que determinaram o modo como as pessoas

    interpretavam seu mundo. Obviamente, as pessoas sempre construram a realidade

    mediante as lentes comuns historicamente manufaturadas.42

    Sua proposta no somente repensar, mas impensar a cincia social, porque

    sua esperana ao longo do texto mostrar que a constatao do descompasso

    entre vises de mundo (weltanschauungen) serve para estimular a busca de um

    novo paradigma, algo cuja construo vai requerer um tempo e um esforo

    considerveis de muitas pessoas.43

    A exausto de modelos e tentativas de compreenso das mudanas da

    sociedade para definies de novas lentes de interpretao so um assunto

    amplamente debatido por Touraine em seu livro Um Novo Paradigma: para

    compreender o mundo de hoje. O autor descreve como o final da Idade Mdia

    acelerou o desaparecimento da ordem religiosa no mundo e como a ordem poltica

    foi ocupando o seu lugar. Sculos depois, a Revoluo Industrial e o Capitalismo

    surgem como um marco para um novo momento na Histria, sinalizando assim um

    triunfo do paradigma econmico e social sobre o paradigma poltico. Entretanto, no

    sculo XXI podemos constatar que essas categorias sociais se tornam insuficientes

    42 WALLERSTEIN, Immanuel. Impensar a Cincia Social, p. 25. 43 Ibid., p. 9.

  • 27

    para explicar os fenmenos culturais que assistimos ou presenciamos no mundo

    atual e no conseguem dar as respostas almejadas. Sentimos a ruptura cada vez

    mais. Contemplamos as categorias culturais rapidamente substituindo as categorias

    sociais, pois estamos mudando de paradigma em nossa representao da vida

    coletiva e pessoal. Estamos saindo da poca em que tudo era expresso e explicado

    em termos sociais e devemos definir em que termos se constri esse novo

    paradigma....44

    O autor deixa claro seu objetivo de mostrar o final de um mundo e a passagem

    para outro diferente. Passamos dos movimentos sociais para os movimentos

    culturais, aquilo que ele tambm chama de decomposio do paradigma social.

    Essa crise do social est gerando um universo individualista capaz de produzir um

    novo sentido e esperana de vida que as instituies sociais e polticas j no

    conseguem atender.

    Outra contribuio para o agravamento da situao atual foi o capitalismo

    selvagem que incentivou a corrida pelo consumo e acmulo de bens, gerando uma

    cultura de mercado que rotula o ser humano pelo que ele tem e no pelo que ele ,

    o que somente reforou e provocou cada vez mais a definio dos contornos de uma

    crise.

    Essa busca por sentido e o desencantamento com instituies e valores da

    cultura ocidental, por sua vez, esto trazendo uma nova sensibilidade em relao

    ao mundo como um todo que est gerando novos valores, sonhos e

    comportamentos.45

    Boaventura de Sousa Santos indica que para escaparmos da crise em que

    nossa sociedade se encontra, devemos combater o que ele chama de globalizao

    neoliberal dominante e hegemnica e trabalhar por uma globalizao alternativa,

    que ele chama de contra-hegemnica,

    constituda pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizaes que, atravs de vnculos, redes e alianas locais/globais, lutam contra a globalizao neoliberal, mobilizados pela aspirao de um mundo melhor, mais justo e pacfico que julgam possvel e a que sentem ter direito.46

    44TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 12. 45 SUNG, Jung Mo. Educar para Reencantar a Vida, p. 112. 46 SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras Solues: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, p. 13.

  • 28

    Para o autor, essa globalizao hegemnica pode engolir iniciativas locais

    impondo ideologias, ditando modismos, lanando movimentos e reforando um modo

    de desenvolvimento predatrio. um mundo em constantes e rpidas mudanas, a

    informao flui e se propaga com uma velocidade muito grande, o que tambm

    possibilita transportar conhecimentos e gerar desenvolvimento em rinces outrora

    isolados. Entretanto, temos observado que a globalizao hegemnica tem

    canibalizado saberes locais, reforando a invisibilidade do outro e impondo sedutora

    e verticalmente novos conceitos ou expresses culturais.

    Escrevendo sobre perodos da Histria, Alain Touraine esclarece que a globalizao no uma etapa, mas um fenmeno dentro do atual momento, pois ela

    intervm no nvel dos modos de gesto da mudana histrica. Ela corresponde a

    um modo capitalista extremo de modernizao, categoria que no deve ser

    confundida com um tipo de sociedade, como a sociedade feudal ou a sociedade

    industrial.47 Por isso, ele tambm opta por outra nomenclatura, o

    altermundialismo, que um movimento antiglobal que luta em prol de uma outra

    mundializao, que no esmague os fracos, os interesses locais, as minorias e o

    meio ambiente em proveito unicamente dos que j detm a riqueza, o poder e a

    influncia.48

    Para se entender alguns fenmenos contemporneos como neoliberalismo,

    globalizao e outros da chamada sociedade ps-moderna, Walter Mignolo, um dos

    principais articuladores dos estudos descoloniais, defende que imprescindvel uma

    retrospectiva na Histria, especialmente at o sculo XVI, que ele apresenta como a

    preparao para o cenrio que vai contribuir para a construo do nosso atual sistema

    mundial,49 que ele denomina de Sistema Mundial Colonial/Moderno. O autor afirma que

    o ocidentalismo como imaginrio dominante do sistema mundial moderno foi uma mquina poderosa para subalternizar o conhecimento (dos primeiros missionrios da Renascena aos filsofos do Iluminismo) estabelecendo, ao mesmo tempo, um padro epistemolgico planetrio.50

    47 TOURAINE, Alain. Um Novo Paradigma: para compreender o mundo de hoje, p. 36. 48 Ibid, p. 36. 49 MIGNOLO, Walter. Histrias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pen-samento liminar, p. 43. 50 Ibid., p. 92.

  • 29

    Enrique Dussel trabalha o conceito de transmodernidade para se referir a um

    projeto mundial de libertao, que inclui o mundo perifrico e onde a alteridade se

    realize igualmente (solidariedade do centro com a periferia), ou seja, por um

    paradigma mundial descolonial. Podemos ver no grfico a seguir sua proposta que

    so dois paradigmas contraditrios: o da mera modernidade eurocntrica e o da

    modernidade subsumida (incluso da alteridade negada) que um processo de

    transmodernidade.

    Grfico 1 DOIS PARADIGMAS DE MODERNIDADE Enrique Dussel51

    (Simplificao esquemtica de alguns momentos que codeterminam a compreenso

    dos dois paradigmas.)

    I. Determinaes mais importantes:

    A: a Europa no momento do descobrimento (1492);

    B: o presente europeu moderno;

    C: projeto de realizao (habermasiana) da Modernidade;

    P: projeto do niilismo ps-moderno;

    D: a invaso do continente (da frica e sia mais tarde);

    E: o presente perifrico;

    51 DUSSEL, Enrique. 1492, O Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade, p. 188-189.

  • 30

    F: projeto dentro da nova ordem mundial dependente;

    G: projeto mundial de libertao Transmodernidade;

    R: Renascimento e Reforma;

    K: A Aufklrung (o capitalismo industrial).

    II. Relaes com certa direo ou flechas:

    a. histria europeia medieval (o pr-moderno europeu);

    b. histria moderno europeia;

    c. prxis de realizao de C;

    d. histria amerndia antes da conquista europeia (tambm da frica e da

    sia);

    e. histria colonial e dependente mercantilista;

    f. histria do Mundo perifrico ao capitalismo industrial;

    g. prxis de realizao de F (desenvolvimentismo);

    h. prxis de libertao ou de realizao de G;

    i. prxis de solidariedade do Centro com a Periferia;

    j. 1, 2 e 3 tipos histricos de dominao (de A sobre D, etc...)

    III. Os dois paradigmas de Modernidade:

    [ ] paradigma eurocntrico de Modernidade: [ R,K,B,C]

    { } paradigma mundial de Modernidade/Alteridade (para uma

    Transmodernidade): {A/D B/E G}

    Esses estudiosos da Teoria Ps-Colonial, tambm chamada de Estudos

    Descoloniais, sustentam que nas relaes desiguais entre o Norte e o Sul est a

    compreenso ou a explicao do mundo contemporneo e para eles, essas

    relaes foram constitudas historicamente pelo colonialismo e o fim do colonialismo

    enquanto relao poltica no acarretou o fim do colonialismo enquanto relao

    social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritria e

    discriminatria.52

    As modernidades, a partir do final do sculo XVI, construram uma concepo

    do conhecimento, subalternizando outras epistemologias, outras formas de 52 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 28.

  • 31

    conhecimento. A noo de superioridade ocidental (colonialidade do poder)

    pressupe a diferena colonial, transformando diferenas em valores. Segundo

    Mignolo, o iderio do expansionismo europeu teria a percepo do mundo como se

    fossem os herdeiros de No, portadores da promessa para Jaf, o que implicaria na

    necessidade de civilizar os que no foram abrangidos pela promessa. Para romper

    com esse formato/viso de mundo, Mignolo prope o pensamento liminar ou gnose

    liminar, uma espcie de pensamento de fronteira, como uma possibilidade para fugir

    dessa lgica, que pode

    transcender a diferena colonial da perspectiva da subalternidade, da colonizao e, portanto, de um novo terreno epistemolgico que o pensamento liminar est descortinando (...). O pensamento liminar, na perspectiva da subalternidade, uma mquina para a descolonizao intelectual, e, portanto, para a descolonizao poltica e econmica.53

    um conhecimento concebido a partir das margens externas do sistema

    mundial colonial/moderno. Esse pensamento liminar a razo subalterna que luta

    para colocar em primeiro plano a fora e a criatividade de saberes subalternizados

    durante um longo processo de colonizao do planeta que foi, simultaneamente, o

    processo atravs do qual se construram a modernidade e a razo moderna.54

    Em se falando de reconhecimento da diversidade e dilogo de culturas,

    Boaventura nos adverte sobre os perigos de cair na armadilha da uniformizao, e

    que tambm no devemos esquecer que a hegemonia uma tentativa de criar

    consenso baseada na ideia de que o que ela produz bom para todos.55 O

    reconhecimento da diversidade/pluralidade fundamental no dilogo intercultural.

    Esse socilogo defende que a sada para a humanidade no a renncia a

    projetos coletivos, mas a pluralidade de projetos coletivos articulados de modo no

    hierrquico por procedimentos de traduo que se substituem formulao de uma

    teoria geral de transformao social.56 assim que, para ele, o Frum Social Mundial

    tem sido uma possibilidade de intercmbio/cooperao entre pases em

    desenvolvimento/perifricos, numa busca de modelos alternativos de desenvolvimento

    uma Conversa da Humanidade. Ele efetivamente incita a unio dos fracos,

    53 MIGNOLO, Walter. Histrias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, p. 76. 54 Ibid., p. 36. 55 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 55. 56 IDEM. A Gramtica do Tempo: para uma nova cultura poltica, p. 29.

  • 32

    estimulando adotar estratgias que aprofundem alianas e incentivando a centrar a

    diferena entre opressores e oprimidos e no na diferena entre os que, de vrias

    perspectivas e lugares, lutam contra a opresso.57

    Paulo Suess, ao escrever sobre os encontros entre diferentes culturas no

    decorrer da Histria, mostra como os nossos conceitos e tambm as nossas

    prticas, inclusive a missionria, podem sofrer mutaes nesses contatos, pois

    teoria e prxis as verdades da f tanto como as prticas pastorais sofrem

    sempre a interferncia de mediaes culturais e histricas.58

    Para a Missiologia,59 resta o alerta de aprender com a Histria, no s

    valorizando boas experincias, mas tambm ter a humildade de reconhecer no

    presente que o surgimento dos emergentes muitas vezes est atrelado falta de

    respostas e falta de confiana no estabelecido. Comparando o paradigma

    missionrio dominante com as novas possibilidades que esto despontando,

    percebemos que possvel trabalhar de forma contra-hegemnica, aceitando o

    desafio de pensar uma epistemologia do Sul que consiga superar a matriz

    colonizadora.

    1.2 A Crise Paradigmtica na Misso A crise paradigmtica que tomou conta da nossa poca afetou tambm a

    igreja e o seu empreendimento missionrio. O paradigma iluminista, que a partir do

    sculo XVII instalou-se nas cincias e deixando as suas marcas, contaminou

    tambm, com a sua influncia, a teologia, contribuindo assim para consolidar uma

    concepo crist do outro que j estava impregnada anteriormente com a lgica

    dos movimentos de expanso colonialista e agora viria a definir o tipo de

    abordagem empregada nesse encontro com o desconhecido e diferente na ao

    missionria.

    57 SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a Teoria Crtica e reinventar a emancipao social, p. 35. 58 SUESS, Paulo. Culturas e Evangelizao a unidade da razo evanglica na multiplicidade de suas vozes: pressupostos, desafios e compromissos, p. 112. 59 MISSIOLOGIA: Samuel Escobar define missiologia como uma abordagem interdisciplinar para entender a ao missionria. Ela olha para os fatos missionrios das perspectivas das cincias bblicas, teologia, histria e das Cincias Sociais (...). Uma abordagem missiolgica d ao observador uma estrutura compreensiva de referncia a fim de olhar para a realidade de uma forma crtica. Missiologia uma reflexo crtica da prxis, luz da Palavra de Deus. Pode-se dizer que, a partir desta considerao, uma poro significante dos escritos do apstolo Paulo missiolgica em sua natureza (Missiologia Global para o Sculo XXI p. 145).

  • 33

    David Bosch, em seu livro Misso Transformadora: mudanas de paradigma na

    teologia da misso, empreendeu uma interessante pesquisa analisando os

    diferentes paradigmas da misso ao longo da histria da igreja e termina a sua obra

    dando os contornos de um novo paradigma missionrio. Mas a concluso da sua

    empreitada se limita a revelar alguns elementos deste suposto paradigma

    emergente. Ele faz um diagnstico do atual quadro da misso, que tambm uma

    sntese da sua tese principal, afirmando categoricamente que o empreendimento

    missionrio moderno em sua ntegra est to contaminado por sua origem no

    colonialismo ocidental e sua estreita associao com ele, que irremedivel; temos

    que encontrar uma imagem completamente nova hoje.60

    Nesse trabalho, o autor tambm se empenhou para demonstrar como as

    mudanas sociopolticas podem conduzir a uma reflexo e necessidade de rever

    mtodos de ao em vrios setores da sociedade, afirmando que vivemos em um

    perodo de transio, na zona limtrofe entre um paradigma que no mais satisfaz e

    um outro que ainda , em grande parte, amorfo e opaco. Uma poca de mudana de

    paradigma constitui, por sua prpria natureza, um tempo de crise.61 Ao analisar os

    paradigmas que marcaram os diferentes perodos da Histria, ele sustenta que cada

    um constitui o fim de um mundo e o nascimento de outro. Vivemos no limiar entre o

    velho e o novo paradigma, identificado como um perodo de incertezas e crises.

    Bosch dividiu a histria do cristianismo em seis grandes paradigmas, e no

    captulo 2 esses critrios so amplamente comentados. Ele fez uma retrospectiva

    histrica da caminhada missionria, mapeando o panorama sociocultural de cada

    perodo, delineando assim as tendncias e como a igreja interpretava o mundo da

    sua poca. Ele usa os ltimos captulos do seu trabalho para apontar alguns

    elementos de um paradigma emergente, mas finaliza seus argumentos declarando

    que essa busca remete a uma anlise cuidadosa das estratgias missionrias

    empregadas pela igreja na histria do cristianismo, que deve conduzir a uma atitude

    de reconhecimento e arrependimento, para ento surgir uma possibilidade de

    recuperao dos objetivos originais de Jesus Cristo na ao missionria.

    A primeira parte da sua pesquisa apresenta um estudo nos modelos

    neotestamentrios de misso desde Jesus e aos apstolos, em geral, e concluindo

    60 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 617. 61 Ibid., p. 439.

  • 34

    com uma caracterizao do paradigma missionrio paulino. A parte dois vai abordar

    os paradigmas histricos da misso e conclui com a terceira parte que esboa

    alguns elementos de um paradigma emergente. A segunda parte comea com o

    paradigma missionrio da Igreja Oriental e o Imprio Bizantino e, a seguir, o

    paradigma missionrio catlico romano medieval com um destaque para as guerras

    missionrias e os movimentos de expanso colonialista. Ele separa os

    empreendimentos colonizadores em dois momentos, sendo que os do sculo XVI e

    XVII prioritariamente eram de subjugao e evangelizao, capitaneados pelos

    catlicos romanos. Os movimentos do sculo XVII em diante, inicialmente eram de

    interesses mercantis, coordenados por companhias de comrcio e no governos.

    Posteriormente, no sculo XIX, essa expanso colonial volta a adquirir matizes

    religiosos e se vincula estreitamente misso.

    Ele prepara o cenrio para a construo do paradigma missionrio da Reforma

    protestante, mapeando todo o contexto histrico que marca o fim da Idade Mdia e

    os acontecimentos que vo introduzindo a Renascena e a Modernidade. Alm de

    descrever o movimento da Reforma, sua natureza e como os reformadores

    entendiam a misso, Bosch esclarece a importncia do avano pietista, a Segunda

    Reforma e o Puritanismo para a compreenso de misso naquela poca.

    Esse missilogo analisa o Iluminismo, dando um contorno de toda a sua

    cosmoviso, e comprovando a profunda influncia que ele exerceu sobre o paradigma

    missionrio do protestantismo, particularmente a crena na vitria do progresso. Essa

    concepo alavancou a expanso missionria, porque de fato havia uma ampla e

    quase inconteste confiana na capacidade dos cristos ocidentais de oferecer uma

    panaceia aos males do mundo e de assegurar progresso a todas as pessoas

    atravs da difuso ou do conhecimento do evangelho.62

    A premissa da superioridade da razo reinou por sculos. Em um mundo

    marcado por um antropocentrismo radical, predominava a ideia do indivduo

    emancipado e autnomo e no havia lugar para Deus. Com a eliminao do

    propsito, o planejamento humano substituiu a confiana em Deus, o mundo passou

    a ser crescentemente governado no pelo propsito, mas pelo crculo fechado de

    causa e efeito. Todos os problemas eram, em princpio, solucionveis. A rigorosa

    separao iluminista entre sujeito e objeto nas cincias naturais tambm se aplicou 62 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 413.

  • 35

    teologia. O domnio sobre a natureza e sua objetivao e a sujeio do mundo

    fsico mente e vontade humana tiveram consequncias desastrosas, entre elas o

    agravamento do desequilbrio ecolgico que assola o mundo dos nossos dias.

    A posio de Bosch que o iluminismo tambm reduziu, de forma contnua,

    mas implacvel, a outrora to abrangente gama de interesses da igreja pela vida e

    sociedade como um todo.63 Ele sustenta a ideia de que, somente anos mais tarde,

    as pessoas tocadas nos Despertares, ou seja, nos movimentos de

    reavivamentos,64 voltaram a se compadecer dos pobres e excludos e um dos

    exemplos concretos o de William Carey, que protestou contra a importao de

    acar procedente das plantaes nas ndias Ocidentais cultivadas por escravos.

    Elas mudavam sua concepo de misso quando tinham uma experincia especial

    de converso na f evanglica.

    As ideias de progresso e superioridade nutridas pelo Iluminismo incentivaram

    os conquistadores a se aventurarem em busca de ampliar os domnios, pois foi, em

    grande parte, o pensamento iluminista orientado pelo progresso que engendrara o

    projeto de expanso colonial.65

    Uma crena norte-americana sedimentada e enriquecida pela cosmoviso

    iluminista foi a do Destino Manifesto, fruto tambm de um forte nacionalismo,

    enraizada na superioridade ocidental e com forte tendncia a tratar os povos de

    outras culturas como inferiores. Alcanou sua expresso mxima na expanso

    colonial do Ocidente, e foi uma poca considerada o apogeu do colonialismo. Os

    norte-americanos acreditavam que Deus os escolheu, por causa de suas

    qualidades, para serem seus representantes perante outros povos. Os civilizados,

    no apenas se sentiam superiores aos no civilizados, mas tambm responsveis

    por eles. Embora tenhamos conhecimento de vrios trabalhos missionrios com

    motivaes sinceras, precisamos tambm reconhecer que nessa mesma esteira

    seguia o empreendimento missionrio ocidental, que nesse perodo

    63 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 342. 64 Bosch defende que o compromisso com a Reforma Social era decorrncia do entusiasmo herdado pelos reavivamentos... a unidade evangelical moldada pelos Despertares estava prestes a se desintegrar; o vasto rio do evangelicalismo clssico se dividiu em um delta, com correntes mais rasas enfatizando o ecumenismo e a renovao social, esquerda, e a ortodoxia confessional e o evangelismo, direita. No incio do sculo 20, o primeiro segmento evolura para o evangelho social e o segundo, para o fundamentalismo (p. 344). 65 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 427.

  • 36

    partia no apenas da premissa da superioridade da cultura ocidental sobre as demais, mas tambm da convico de que Deus, em sua providncia, escolhera as naes do Ocidente, com base em suas qualidades nicas, para serem os porta-bandeiras de sua causa, inclusive nos confins da terra.66

    No captulo trs, aprofundaremos esse assunto, mas por enquanto temos que

    admitir que os movimentos missionrios foram parceiros e cmplices nesses

    programas imperialistas etnocntricos que conduziram aniquilao de culturas

    autctones. A misso e a colonizao eram projetos interdependentes.

    A cultura iluminista, grande responsvel pela concepo ocidental de

    conhecimento e racionalidade, imprimiu assim a sua matriz na cincia, filosofia,

    educao, sociologia, literatura, tecnologia, mas interpretou mal tanto a humanidade

    quanto a natureza, e no apenas em alguns aspectos, mas de uma forma radical e

    completa.67 Essas ideias tambm fortaleceram um sentimento de superioridade tal

    que os ocidentais sentiam-se com mais racionalidade que os outros povos.

    A igreja no conseguiu romper com essa lgica e modelo iluminista, e as

    palavras do autor s vm confirmar que todo movimento missionrio dos ltimos trs

    sculos emergiu desta matriz:

    Era inevitvel que o Iluminismo influenciasse profundamente o pensamento e a prtica missionrios, sobretudo se considerarmos que todo o empreendimento missionrio moderno , em grau muito significativo, produto do Iluminismo. Afinal, foi a nova cosmoviso expansionista que ampliou os horizontes da Europa para alm do Mediterrneo e do Atlntico e preparou, assim, o caminho para a expanso mundial da misso crist. No captulo anterior, mostrei que o prprio termo usado para designar essa expanso eclesistica e cultural, isto , a palavra misso, surgiu junto com o incio da expanso imperialista do Ocidente.68

    Bosch, alm de responsabilizar o Iluminismo pela construo da hegemonia

    epistemolgica ocidental, onde outras formas de produzir conhecimento no foram

    respeitadas, mas subalternizadas, tambm fortalece a nossa constatao de que

    todo o movimento missionrio ocidental dos ltimos trs sculos emergiu da matriz

    do Iluminismo.69

    Dentro desse quadro, e a partir dele, surgem as foras de renovao com os

    reavivamentos espirituais, como tentativas de resistncia s ideias iluministas. Elas

    vieram dar um novo impulso ao movimento missionrio moderno, embora

    66 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 362. 67 Ibid., p. 426. 68 Ibid., p. 334. 69 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 414.

  • 37

    predominantemente as misses modernas tiveram a sua origem no ambiente do

    colonialismo ocidental moderno, numa cumplicidade com as potncias coloniais,

    pois a ideia colonial em sua acepo moderna est intimamente vinculada

    expanso global das naes crists do Ocidente.70

    Ao escrever sobre os movimentos de expanso colonialista no sculo XVI, esse

    missilogo sul-africano sustenta que as razes dos conquistadores e de todo o

    fenmeno da colonizao europeia do resto do mundo em princpio foram geradas a

    partir dos ensinamentos medievais sobre a guerra justa (...) a colonizao era a

    continuao moderna das Cruzadas.71 Os povos conquistados eram assimilados pela cultura dominante, trazendo como uma das consequncias a escravizao de

    povos no ocidentais, e que posteriormente levou ao trfico de povos africanos. Os

    ocidentais vencedores consideravam os outros inferiores.

    Tzvetan Todorov em seu livro, A Conquista da Amrica: a questo do outro,

    tambm aprofunda essas questes de dominao e poder, quando aborda a temtica

    da alteridade e monoculturalidade se empenhando em demonstrar as reais intenes

    dos descobridores, especialmente os ideais cruzados de Colombo. Ele denuncia a

    cumplicidade da igreja, tanto do lado catlico como protestante, nesses movimentos

    hegemnicos de colonizao, apontando sua participao em verdadeiros estupros

    culturais. Sem dvida, foram atos que comprometeram a prtica missionria, pois

    em ambos os casos nega-se a identidade do outro; quer seja no plano da

    existncia, como no caso dos catlicos; ou no plano dos valores, como os

    protestantes; um tanto derrisrio procurar saber qual dos times o recordista na via

    da destruio do outro.72

    Os relatos de exploradores e mercadores como Marco Polo e Colombo, ainda

    que protagonistas de pocas diferentes mostram que os empreendimentos

    martimos para alm do desejo de encontrar riquezas expressavam motivaes do

    movimento das Cruzadas. Todorov e Dussel apontam, por exemplo, os intentos

    hegemnicos dos mandatrios reis da Espanha, que s investiram nas viagens

    esperando grandes lucros e os objetivos do navegador Colombo: chegar s ndias e

    possibilitar a expanso do cristianismo. Isto se tornou uma obsesso, pois ele

    70 Ibid., p. 366. 71 Ibid., p. 279. 72 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica: a questo do outro, p. 278.

  • 38

    morreu em 1506 com a clara conscincia de ter descoberto o caminho pelo

    Ocidente para a sia.73

    Sua busca incansvel por ouro em pelo menos trs viagens se explica, porque

    representaria o reconhecimento do seu pioneirismo. Retornar com riquezas iria

    referendar seu empreendimento, justificar os gastos e alimentar a ambio dos reis,

    para quem prometia as condies para reconquistar a Terra Santa para a igreja,

    conforme afirma Todorov, aps ter estudado vrias cartas organizadas por

    Bartolomeu de Las Casas.74 Na correspondncia, h trechos em que Colombo

    escreve: Depois de ali ter estado e visto a terra, escrevi ao Rei e Rainha, meus

    Senhores, dizendo-lhes que dentro de sete anos disporia de cinqenta mil homens a

    p e cinco mil cavaleiros, para a conquista da Terra Santa.75

    O empreendimento imperialista das Cruzadas tinha ficado no passado, mas a

    mentalidade persistiu. A lgica do movimento sobreviveu na Modernidade e at hoje

    ainda est presente em algumas formas de expanso crist. O projeto religioso, que

    vai principalmente do sculo XI ao XIII, e s termina realmente no sculo XV,

    apontado por alguns historiadores como um movimento que legitimou a violncia em

    nome de Deus, embora no haja unanimidade na indicao da motivao religiosa

    para fundamentar a belicosidade presente no empreendimento.

    A ambio por terras e riquezas certamente foi tambm uma forte razo para a

    mobilizao de tantos voluntrios para essa causa. Era, acima de tudo, um

    sentimento de desconfiana com relao ao desconhecido, ao que se apresentava

    diferente, ou seja, aquele que possua outros quadros de referncia, o que veio

    gerar a insegurana que culminou na organizao dessas expedies ao Oriente,

    para lutar e demarcar as fronteiras do cristianismo. Nayan Chanda escreve que a

    motivao aparente foi a libertao da Terra Santa do domnio rabe, mas tambm

    no era segredo que a ganncia foi o fator que impulsionou as expedies. O autor

    comenta que talvez o exemplo mais chocante dessa cobia tenha sido o saque de

    Constantinopla por soldados da quarta cruzada em 1204,76 que roubaram tanto

    73 DUSSEL, Enrique. 1492 O Encobrimento do Outro: a origem do mito da modernidade, p. 31. 74 Frei catlico, que no decorrer de sua militncia se tornou dominicano. Foi uma voz proftica de denncia, e o primeiro europeu a advertir contra os abusos cometidos pelos conquistadores nas ndias Ocidentais. Considerado um vanguardista na defesa dos direitos humanos do ndio na Amrica Latina, gastou quase toda a sua vida nesta causa. 75 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica: a questo do outro, p. 14. 76 CHANDA, Nayan. Sem Fronteira: os comerciantes, missionrios, aventureiros e soldados que moldaram a globalizao, p. 173.

  • 39

    ouro e outras preciosidades e provocaram tantos vandalismos, que era quase

    impossvel contar.

    Karen Armstrong, ao discutir as diferentes formas de fundamentalismos,

    argumenta que a raiz desses posicionamentos geralmente se encontra no

    estranhamento com o diferente ou o novo, trazendo insegurana que pode gerar

    isolamento ou necessidade de uniformizao, entretanto,

    importante reconhecer que essas teologias e ideologias se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras, fixar limites e segregar os fiis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observncia da lei, deve-se ao pavor da extino...77

    Na lgica das Cruzadas, o uso da fora era justificado, porque o inimigo

    comum era o outro que no se enquadrava nos moldes, no professava a mesma

    f e prejudicava o equilbrio da sociedade europeia.78 Essa ideia tem uma de suas

    origens no pensamento de Santo Agostinho, mais conhecida como Guerra Justa

    (bellum justum). Ele afirmava que a guerra sempre m, todavia existia a

    possibilidade quando envolvia autodefesa. O confronto passa a ser legitimado se

    tiver o objetivo de manter a justia e restabelecer a paz e nunca com objetivo de

    conquista. O ensinamento de Agostinho tornou-se a pedra angular da teoria

    europeia da guerra79 e os idealizadores e organizadores das Cruzadas se

    apropriaram desse pensamento e, na lgica daqueles homens, eles representavam

    o exrcito do Senhor trabalhando pela harmonia dentro do Reino de Deus na luta

    contra os infiis os inimigos de Deus. O uso da fora justificado contra os

    inimigos de Cristo, os pagos selvagens que no pertencem ao Seu Reino.

    A Espanha, grande potncia imperial colonial, com Portugal desempenharam

    um papel fundamental no movimento de colonizao e de destruio do outro.

    Todorov transcreve um dos ltimos textos de Las Casas, famoso pelo seu contedo

    imprecatrio, uma mescla de maldio e profecia, como ilustrao do sentimento

    despertado e que at hoje no foi bem resolvido:

    77 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judasmo, no cristianismo e no islamismo, p. 406. 78 Veja BINGEMER, Maria Clara, em Violncia e Religio, que discute tambm como esse medo do outro, porque um elemento estranho, culturalmente diferente e fisicamente desconhecido, pode se tornar um produtor de ameaa enquanto no compreendido (p. 159). 79 BOSCH, David. Misso Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso, p. 276.

  • 40

    Creio que por causa dessas obras mpias, criminosas e ignominiosas, perpetradas de modo to injusto, tirnico e brbaro, Deus derramar sobre a Espanha sua fria e sua ira, porque toda a Espanha, bem ou mal, teve o seu quinho das sangrentas riquezas, usurpadas custa de tanta runa e extermnio.80

    Todorov, no entanto, e de modo semelhante Enrique Dussel, apresenta

    Colombo como o homem que inaugura a era moderna, ao sair do continente

    como um enviado oficial, apesar de toda contradio e disparates que envolvem a

    sua misso. Torna-se paradoxal constatar que, ao mesmo tempo em que Colombo

    o primeiro homem moderno, ainda preserva a mentalidade medieval que quer dar

    continuidade a um projeto conversionista e expansionista ultrapassado e que estava

    sendo abandonado com o fim da Idade Mdia.

    No transcorrer do seu trabalho, o autor vai incluindo toda a Europa e

    abrangendo outros colonizadores nessa responsabilidade coletiva. Diante de tantas

    atrocidades cometidas, com a conivncia ou no da igreja, infelizmente s nos resta

    incluir as prticas missionrias do cristianismo nesse esquadro de ocupao e

    dominao no perodo colonial.

    O prprio Las Casas, em princpio foi um encomendero,81 espcie de

    fazendeiro com ndios em regime de servido, quando chegou ao Caribe, por volta

    de 1508. Posteriormente, e paulatinamente, a sua cosmoviso foi sendo

    transformada ao contemplar os abusos cometidos no tratamento desumano

    dispensado aos ndios e, provavelmente, os sermes de Frei Antonio Montesinos

    tambm contriburam para essa nova perspectiva. Em 1514, teve uma experincia

    de converso ao ser confrontado com a Bblia Sagrada, quando preparava um

    sermo para a Festa de Pentecoste, especialmente nos temas direito do

    trabalhador, salrio justo, dever de restituio e outros. Nesse perodo, ele renuncia

    aos ndios que estavam em sua posse e inicia uma caminhada como um apstolo

    incansvel na luta contra todas as formas de escravido e opresso contra os

    indgenas.

    Constantemente incomodando as autoridades ao alertar sobre os desmandos

    que aconteciam na colnia, seguiu o exemplo dos dominicanos, que corajosamente

    j denunciavam esses procedimentos. Esse inconformismo trouxe muitas oposies 80 TODOROV, Tzvetan. A Conquista da Amrica, p. 357 81 Encomienda foi um sistema de distribuio de terra na Amrica espanhola que consistia na doao de terra pela autoridade competente aos colonizadores, com