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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL
DE DRAMATURGIA E TEATRO – TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Textos completos
ISSN 2358-405X
Universidade Estadual de Londrina
02, 03 e 04 de outubro de 2013.
Organizadores
Alexandre Villibor Flory
Jhony Adelio Skeika
Sonia Pascolati
Os textos aqui publicados são de inteira
responsabilidade de seus autores.
REGULAMENTO, NORMAS E OUTRAS INFORMAÇÕES
http://gtdramaturgiaeteatro.blogspot.com.br/
PROJETO GRÁFICO, CAPA E DIAGRAMAÇÃO
Jhony Adelio Skeika
ORGANIZADORES
Alexandre Villibor Flory
Jhony Adelio Skeika
Sonia Pascolati
Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S471a Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro (1. : 2013 : Londrina, PR) Anais do I Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro [livro
eletrônico] / Organizadores : Alexandre Villibor Flory, Jhony Adelio
Skeika e Sonia Pascolati. – Londrina, 2013.
1 livro digital.
Disponível em: https://anaisgtdramaturgiaeteatro.files.wordpress.com/2014/07/anais-2013.pdf
ISSN 2358-405X
1. Teatro – Congressos. 2. Dramaturgia – Congressos. 3. Artes Cênicas – Congressos. 4.Letras – Congressos. I. Flory, Alexandre Villibor. II. Skeika Jhony Adelio. III. Pascolati, Sonia. IV. Universidade Estadual de Londrina. V. Título.
CDU 792.09
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
SUMÁRIO
ORGANIZAÇÃO DO EVENTO
Coordenação
Alexandre Villibor Flory
Sonia Pascolati
Organização dos anais
Alexandre Villibor Flory (UEM)
Jhony Adelio Skeika (UEPG/UEL)
Sonia Pascolati (UEM)
Comitê científico
Alexandre Villibor Flory (UEM)
Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)
Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)
Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO)
Marise Rodrigues (UFF/UTFPR)
Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR)
Sonia Pascolati (UEL)
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Trabalho Dramaturgia e Teatro da ANPOLL – Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – iniciou suas atividades no biênio 1999-
2000 como expansão do GT Estudos Shakespearianos, congregando pesquisadores da
grande área Letras, Linguística e Artes em torno de questões teóricas, históricas e práticas
pertinentes aos estudos de dramaturgia e teatro. A partir de 2009, durante encontro do grupo
em Brasília (UNB), as atividades acadêmicas foram estendidas à participação de
pesquisadores não vinculados ao GT, movimento que se sedimentou com a realização do I
Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e Intermidialidade, em outubro
de 2013, na Universidade Estadual de Londrina (UEL). O objetivo maior é fomentar
pesquisas sobre dramaturgia e teatro e contribuir para a formação de pesquisadores nesse
campo de estudos acadêmicos que, embora tenha se fortalecido nas últimas décadas, ainda
necessita ampliar seu espaço nos cursos de Letras.
O encontro contou com a participação de pesquisadores de várias instituições do país
(UNB, UEPB, UEPG, UFMS, UEM, UEL, UNIANDRADE/PR, UNIOESTE,
UNICENTRO, UNOPAR, UFES, UFSCAR, UFV, UNESP, USP, UFSC, UFBA,
UNESPAR, UNICAMP) em diferentes níveis de especialização – desde Iniciação Científica
até Pós-doutores – cujas comunicações propiciaram debates sobre diversos campos, tais
como teoria do drama e da performance; dramaturgia, teatro e ensino; dramaturgia e teatro
brasileiros e estrangeiros; diálogos entre teatro e outras artes; teatro político; e teatro infantil.
Os debates reforçam a crença do GT Dramaturgia e Teatro de que as pesquisas nessa área
em dramaturgia e teatro oferecem muitas searas ainda inexploradas, mas também já
contribuem significativamente para os estudos literários e das artes cênicas.
Uma parte dos textos derivados das apresentações, as quais foram debatidas por
doutores especialistas na área, agora são reunidos em formato de anais a fim de espraiar as
discussões a outros pesquisadores e interessados nesse campo de estudos; contudo, a
diversidade de perspectivas fica mais evidente nos resumos, também aqui disponibilizados.
Parte dos resultados da pesquisa conjunta sobre teatro e intermidialidade realizada pelos
membros do GT está publicada no volume 25 da Revista Terra Roxa e Outras Terras, de
livre acesso pelo site da UEL, no dossiê “Dramaturgia, teatro, intermedialidade”; outra parte
está reunida em livro a ser lançado até o final de 2014, iniciativas do GT, cuja finalidade é
sistematizar as reflexões e torná-las acessível ao maior público possível.
Agradecemos o apoio financeiro recebido do Programa de Pós-Graduação em Letras
(Estudos Literários) e do Curso de Especialização em Literatura Brasileira, assim como o
apoio logístico de vários órgãos da Universidade Estadual de Londrina e dos monitores,
alunos de graduação e pós-graduação que tornaram possíveis as atividades acadêmicas e
culturais desses três dias de confraternizações teatrais.
A todos que estiveram conosco no encontro, nosso muito obrigado. Aos leitores, que
os textos sejam provocativos tanto quanto foram os debates durante o evento.
Sonia Pascolati
Alexandre Villibor Flory
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
SUMÁRIO
PROGRAMAÇÃO DO EVENTO
02 DE OUTUBRO - quarta-feira
14h: Sessão de abertura
“GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL: quem somos, o que fazemos”
Sonia Pascolati, Alexandre Flory, Diógenes Maciel, Margarida Gandara Rauen.
15h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento
19h: Apresentação artística.
Coffee-break de boas-vindas.
Lançamento do livro do GT - Penso teatro - com presença de autores para autógrafos.
20h: Reunião técnico-acadêmica do GT Dramaturgia e Teatro: “O que queremos”
03 DE OUTUBRO - quinta-feira
9h: Mesa redonda: “Teatro e intermidialidade” (I)
- A imaginação pictural de Shakespeare em Sonho de uma noite de verão
Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)
- Narrar, mostrar – cantar: relações intermidiáticas nas formas dramático-
musicais
Diógenes Maciel (UEPB/PPGLI)
- Reflexões em torno da ideia de intermidialidade e princípio performativo na
cena contemporânea
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)
- Intermidialidade e teatralidade: cruzamentos conceituais
Sonia Pascolati (UEL)
- Intermidialidade formal no complexo em torno de A ópera dos três vinténs, de
Bertolt Brecht: teatro, cinema, romance e crítica
Alexandre Villibor Flory (UEM/PLE)
14h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento
18h: Apresentação artística.
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I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
04 DE OUTUBRO - sexta-feira
9h: Mesa redonda: “Dramaturgia e teatro: pesquisa e ensino”
- Personas de Pagu
Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO)
- O teatro reunido de Maria Jacintha
Marise Rodrigues (UFF/UTFPR)
- “Um texto que a gente pode ver”: sobre a leitura de textos dramatúrgicos na
escola
Valéria Andrade (UFCG)
- Leituras Cruzadas – A leitura do texto Dramático
Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR)
14h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento
18h: Coffee-break de encerramento.
20h: Abertura do Festival de Dança de Londrina.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
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SUMÁRIO
SUMÁRIO
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A CRUELDADE NA PEÇA O JATO DE SANGUE DE ANTONIN ARTAUD Jhony A. Skeika (UEL) ......................................................................................................... 9
A EXCEÇÃO E A REGRA (1930): O RECURSO DE ESTRANHAMENTO, TEORIZADO
POR BRECHT, À LUZ DA TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO DE ISER Renata da Silva Dias Pereira de Vargas (Uniandrade) .......................................................... 20
ÁGUA, FOGO, TERRA E VENTO: A CONSTRUÇÃO E (RE)CONSTRUÇÃO DAS
PERSONAGENS NA BUSCA PELO SOL Aline Camara Zampieri (UFMS) ......................................................................................... 29
CIDADES E ROMANCE: APROPRIAÇÕES NO PROCESSO CRIATIVO DE “DAS
SABOROSAS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE” DO GRUPO TEATRO QUE RODA Lúcia Helena Martins (UNESPAR-FAP-PR) ....................................................................... 40
DENISE STOKLOS – O DRAMATURGO PENSADOR E A MÍMESIS DA PRODUÇÃO Pedro Leites Junior (UNIOESTE)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................... 48
DOMAR A MEGERA, ESSA É A QUESTÃO: METALINGUAGENS E JOGOS DE
PODER/SEDUÇÃO EM SHAKESPEARE E EM DÁ-ME UM BEIJO DE SIDNEY Climene de Moraes Favero (Uniandrade) ............................................................................ 58
INFÂNCIA E SONHOS: O TESTEMUNHO DE EXPERIÊNCIAS ONÍRICAS COMO
DRAMATURGIA ESPONTÂNEA Felipe Fernandes Freitas (UnB)
Winny Trindade (UnB)
Clarice da Silva Costa (UnB) .............................................................................................. 70
L’ILLUSTRE MOLIÈRE: UMA ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO TEATRO FRANCÊS
DO SÉCULO XVII Joice Rodrigues ZORZI (IBILCE/UNESP).......................................................................... 75
MEMÓRIAS DA CENA PARAIBANA: PRIMEIROS RASCUNHOS Duílio Pereira da Cunha Lima (UEPB) ................................................................................ 83
MODULAÇÕES E VARIAÇÕES DO TEMA E DA PERSONAGEM DO AVARENTO
NO CÔMICO Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................... 93
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MONTAGEM CÊNICA CONCEBIDA A PARTIR DA POESIA RETRATO DE
CECÍLIA MEIRELES Ana Carolina Conceição (UnB)
Clarice da Silva Costa (UnB)
Wanuza Marques (UnB) .................................................................................................... 104
NORA: ROMPIMENTO OU TRANSGRESSÃO? Vicentônio Regis do Nascimento Silva (UEL)
Sonia Pascolati (UEL) ....................................................................................................... 111
O “AUTO DA CATINGUEIRA”: TRANSVERSALIDADES DE UM LUGAR TEATRAL
NO SERTÃO Eduardo Cavalcanti Bastos (UFBA) .................................................................................. 117
O GÊNERO DRAMÁTICO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
PARA O ENSINO MÉDIO Anna Catharina Izoton Alves Mariano (UFES) .................................................................. 128
O GÊNERO ÉPICO-LÍRICO-DRAMÁTICO DE CAIO FERNANDO ABREU Ricardo Augusto de Lima (UEL)
Sonia Pascolati (UEL) ....................................................................................................... 138
O REI DA VELA E A TRANSGRESSÃO DO ESTATUTO COLONIAL ARTÍSTICO
BRASILEIRO Wallisson Rodrigo Leites (UNIOESTE)
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................. 148
OBSERVAÇÕES SOBRE O ÉPICO NA DRAMATURGIA/TEATRO DO COLETIVO
DE TEATRO ALFENIM: BALIZAS TEÓRICAS, ENGAJAMENTO E ATUAÇÃO
CRÍTICA (DÉCADAS DE 1990-2000) Rodrigo Rodrigues Malheiros (UEPB)
Diógenes André Vieira Maciel .......................................................................................... 159
POÉTICAS DO CORPO FRAGMENTADO Gabriela Fregoneis (UNICAMP) ....................................................................................... 166
REI LEAR, DE MICHAEL ELLIOT: UMA ABORDAGEM À LUZ DE TEORIAS DE
ADAPTAÇÃO E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA Vinícius Zorzal Rosi (UFV)
Sirlei Santos Dudalski (UFV) ............................................................................................ 170
UMA PEÇA RADIFÔNICA: AMOR POR ANEXINS Clarice da Silva Costa (UnB) ............................................................................................ 176
UTILIZAÇÃO DE SONS EM TEXTOS POÉTICOS Káshi Mello (UnB)
Clarice Costa (UnB) .......................................................................................................... 182
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– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
SUMÁRIO
A CRUELDADE NA PEÇA O JATO DE SANGUE DE ANTONIN ARTAUD
Jhony A. Skeika (UEL)1
Resumo: Antonin Artaud (1896 – 1948) foi um poeta, dramaturgo e ator francês cujas ideias acerca da arte
teatral culminaram na elaboração de uma proposta que ficou conhecida como “Teatro da Crueldade”. Para o autor, “sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de
degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos”
(ARTAUD, 2006, p. 114). Dessa forma, este estudo objetiva analisar a peça O jato de sangue, escrita por
Artaud em 1925, com o intuito de verificar a recorrência de alguns elementos para a criação da ideia de
Crueldade, em especial a fragmentação da linguagem e sua representação cênica, a criação de imagens como
recurso estético e o funcionamento da ideia de Corpo sem Órgãos.
Palavras-chave: Crueldade; O jato de sangue; Antonin Artaud.
Introdução
“Isto não é um cachimbo”, diz a inscrição da famosa pintura de René Magritte,
exemplificando a ideia do movimento Surrealista para a pintura. Nascido em Paris na década
de 1920, o Surrealismo propunha uma rejeição às imposições racionalistas da sociedade
burguesa da época, bem como seus valores impostos que ditavam padrões comportamentais
e moralistas, podando as vazões do sonho e imaginação. Isso pode ser visto claramente no
Manifesto Surrealista de André Breton (1924), marco de abertura do movimento: “a atitude
realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo
impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade,
ódio e insípida presunção” (BRETON, 1997, p. 176). As pinturas de Salvador Dali e Max
Ernst, bem como os textos cinematográficos de Luis Buñuel, exemplificam claramente a
tendência estético-ideológica desse movimento vanguardista, já que exploram imagens
completamente inusitadas de delírios, sonhos, pensamentos e outras associações insólitas.
Contemporâneo a essa corrente estético-literária é Antonin Artaud (1896 – 1948),
um poeta, dramaturgo e ator francês, cujas reflexões acerca da arte teatral culminaram na
elaboração de uma proposta que ficou conhecida como “O Teatro da Crueldade”. No entanto,
antes de chegar ao refinamento desta ideia, que vai começar a se definir a partir de 1927 com
1 Doutorando. Universidade Estadual de Londrina – UEL. Orientadora: Profa. Pós-Dra. Sonia Aparecida Vido
Pascolati. E-mail: [email protected]
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a fundação do Teatro Alfred Jarry – a primeira companhia de teatro fundada por ele2 – e a
apresentação da peça Les Cenci (1935)3, Artaud aderiu ao movimento Surrealista e
comungou de suas ideias por cerca de um ano4. Neste período, especificamente em 17 janeiro
de 1925, escreveu o ato dialogado intitulado O Jato de Sangue (1925)5, texto pelo qual este
artigo se interessa.
Mesmo o “Teatro da Crueldade” sendo teorizado anos mais tarde, especialmente a
partir dos textos O teatro alquímico (1931) e o Manifesto do Teatro da Crueldade (1932),
podemos perceber que já em 1925 a proposta já estava em gestação. Dessa forma, este estudo
procura identificar na peça O Jato de Sangue alguns elementos que já sugerem a proposta
do “Teatro da Crueldade”, como a fragmentação da linguagem e sua representação cênica, a
criação de imagens como recurso estético e o funcionamento da ideia de Corpo sem Órgãos.
Assim, o que se propõe é refletir sobre a composição do conceito de teatro artaudiano,
considerando a abordagem surrealista uma forte influência para o refinamento de tal
conceito.
A crueldade no teatro
Em O teatro e seu Duplo6 – coletânea de textos que foi publicada em 1938 – Artaud
revela sua visão sobre o teatro e sua função. Ele entendia a arte teatral como um lugar
privilegiado de interação e criação, um espaço capaz de despertar no ser humano sentimentos
inusitados, sensoriais, corporais:
[...] certamente precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte:
nervos e coração. [...] O longo hábito dos espetáculos de distração nos fez esquecer
a ideia um teatro grave que, abalando todas as nossas representações, insufle-nos
o magnetismo ardente das imagens e acabe por agir sobre nós a exemplo de uma
terapia da alma cuja passagem não se deixará mais esquecer. (ARTAUD, 2006, p. 96).
2 Com a parceria de Roger Vitrac e Robert Aron (cf. BERGHAUS, 2010, p. 22). 3 Adaptação da peça The Cenci, uma tragédia em cinco atos, de 1819, do inglês Percy Bysshe Shelley. 4 Artaud abandona o movimento em 10 de dezembro de 1926, após discordar com a associação do grupo ao
partido comunista francês (ARTAUD, 1983, p. 90-91). 5 Le Jet de Sang. “O manuscrito, datado de 17 de janeiro de 1925, está junto com outros dois textos (Paul, os
pássaros e O vidro do amor) em uma pasta intitulada Três Contos de Antonin Artaud, conservada na Biblioteca
Jacques Doucet em Paris. Ver: ARTAUD, Antonin, Obras Completas, vol. 1, Gallimard, Paris, 1970, p. 386.
A peça foi publicada em uma coleção de textos surrealistas de Artaud, O Umbigo dos limbos, Edição da Nova
Revista Francesa, Paris, 1925” (BERGHAUS, 2010, p. 21. Tradução minha). 6 Le Théatre et son double.
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– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
O Teatro da Crueldade propôs não apenas uma dissonância com as características do
teatro tradicional, mas, sobretudo, sugeriu uma nova forma de conceber teatro, passando a
considerar a arte como uma dicção do mundo, uma inusitada maneira de apreender as coisas
que nos cercam. Artaud queria que o teatro pudesse criar acontecimentos, uma tentativa de
atualizar o real e não apenas criar um decalque da vida, uma imagem virtual do mundo:
“Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o
coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação
verdadeira” (ARTAUD, 2006, p. 97). Daí advém o termo “crueldade”, já que nessa proposta
o teatro se dispõe a abalar certezas e concepções de vida, atualizando no palco sensações
que só podem ser reconhecidas enquanto marcadas pelo terror e pela crueldade.
Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de
modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve
ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. E com isso reivindico o direito de romper o sentido
usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar
enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos,
evocam sempre uma noção concreta. Pode-se muito bem imaginar uma crueldade
pura, sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a
crueldade? Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e
decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. (ARTAUD, 2006, p. 117
– 118. Sem grifos no original).
O dramaturgo sugere que a crueldade seja contemplada, só assim o teatro conseguiria
comunicar os sentidos insólitos e desprogramados, que talvez fossem mais significativos que
os significados grossos talhados nas palavras. Crueldade parece estar relacionada à
existência humana que não é propriamente estética e artística, mas crua e material, uma
verdade insuportável que seria melhor representada por uma linguagem desmontada, mais
abstrata e sem sentidos convencionados; encenar a crueldade parece procurar comungar de
sentidos secretos da vida.
Portanto eu disse "crueldade" como poderia ter dito "vida" ou como teria dito
"necessidade", porque quero indicar sobretudo que para mim o teatro é ato e
emanação perpétua, que nele nada existe de imóvel, que o identifico com um ato
verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico. (ARTAUD, 2006, p. 134).
Nessa ideia, Artaud propõe que o elemento físico seja valorizado, centrando-se na
experiência corpórea dos atores e do público; a proposta é quebrar a divisão entre o espaço
cênico e a plateia em favor de uma dicção teatral que seja mais física, ligada à expressão do
espaço, rompendo, assim, com o imperialismo da palavra: a sujeição do teatro ao texto. Essa
é outra característica do “Teatro da Crueldade”: a relação do dramaturgo/ator com a
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linguagem. “Isso significa que, em vez de voltar a textos considerados como definitivos e
sagrados, importa antes de tudo romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção
de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento”.
(ARTAUD, 2006, p. 101. Sem grifos no original).
Artaud parece negar a tradicional hegemonia do texto nas peças teatrais. Ele sugere
a destituição da palavra como uma tentativa de liberar outros inúmeros sentidos que antes
não eram possíveis pela limitação da materialidade do código linguístico. Assim, em muitos
dos seus textos teatrais e teóricos, as construções linguísticas são completamente inusitadas
e fora de uma convenção socialmente aceita, isso para não dizer esquizofrênicas logo de
início, uma vez que é uma linguagem labiríntica, embaralhada de outros signos e opera muito
mais pelo movimento de experimentação do que interpretação.
A participação reduzida do entendimento leva a uma compressão enérgica do
texto; a participação ativa da emoção poética obscura obriga a signos concretos.
As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens
novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens,
repleto de sons, também fala, se soubermos de vez em quando arrumar extensões
suficientes de espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade. (ARTAUD, 2006, p.
96. Sem grifos no original).
O autor sugere o funcionamento de uma outra linguagem, linguagem única, que
seja capaz de abarcar maiores sentidos, uma língua mais física, sensorial, sinestésica,
corporal, em que o ator pudesse dizer sem falar com a boca, sem usar palavras, mas dizer
com os movimentos do seu corpo criando imagens de sentidos, desarticulando a performance
cênica tradicional em favor de uma expressão que possa se comunicar com o espírito. O
autor, então, sugere uma ideia que ficou conhecida como Corpo sem órgãos – CsO –, uma
tentativa de liberar os sentidos dos automatismos pré-estabelecidos pela limitação do próprio
organismo enquanto máquina regida por órgãos.
Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar. (ARTAUD, 1983, p. 161 – 162).
Ao exercitar uma linguagem mais corporal que, de fato, coerentemente linguística,
Artaud sugere um teatro que opere pela experimentação do Corpo sem Órgãos. Segundo
Gilles Deleuze e Félix Guattari, dois filósofos franceses pós-estruturalistas que se
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apropriaram da ideia de CsO de Artaud, “Ele [CsO] é não-desejo, mas também desejo. Não
é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem
Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite”
(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 9).
CsO é uma ideia que na prática pouco se refere a um corpo propriamente dito7; é
um devir, uma experimentação não prevista, mas possível, como se o corpo inteligível se
projetasse em uma potencialidade a partir do seu limite. Assim, inusitadas associações
liberariam os sentidos convencionados/engessados e o público então experimentaria algo
que só poderia ser entendido fora da realidade empírica e racional das coisas.
Antonin Artaud sugere um teatro que envolva os expectadores como num sonho sutil
e leve em que a crueldade pudesse ser apresentada e tolerada sem se recorrer a significados
estanques, mas através de uma “linguagem única, caminho entre o gesto e o pensamento”
(ARTAUD, 2006, p. 101):
Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha
para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda
sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age
sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com
um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência
necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele
os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob a
condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só
pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade. Daí o apelo à
crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade
integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilidades. (ARTAUD, 2006, 97).
Essa ideia de Corpo sem Órgãos funcionando na experimentação de sentidos
completamente inusitados faz parte do refinamento do conceito de “Teatro da Crueldade”
de Antonin Artaud, o que acontece anos depois do seu desligamento do movimento
surrealista (1926). No entanto, pode-se perceber que a noção de CsO está muito ligada à
proposta estético-ideológica do Surrealismo, o que nos leva a pensar que mesmo Artaud
tendo rompido por motivos políticos os laços formais com a vanguarda, manteve uma
ligação ideológica com o movimento, deixando transparecer isso no “Teatro da Crueldade”.
7 “Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou:
corpo sem órgãos. ‘O corpo é o corpo. Ele é único e não precisa de órgãos. O corpo nunca é um organismo’.
Os organismos são os inimigos do corpo. O corpo sem órgãos opõe-se menos aos órgãos do que a essa
organização de órgãos chamada organismo. E um corpo intenso, intensivo. E percorrido por uma onda que
traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo não tem, portanto, órgãos,
mas limiares ou níveis”. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 14).
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O jato de sangue de Deus: surrealismo e crueldade
De acordo Florence de Mèredieu, biógrafa de Artaud, O jato de sangue é uma
paródia8 que “reinterpreta” de certo modo uma peça de Armand Salacrou, intitulada A bola
de vidro (La boule de verre).
Segundo André Masson, Antonin Artaud apareceu um dia para ler a peça que
acabara de criar, e declarou rindo: “Acabo de aplicar um golpe em Salacrou. Quero
lhe mostrar o que significa uma peça à la Salacrou”. Seu tom, ao fazer tal declaração, era sarcástico. Armand Salacrou falou depois sobre o contexto em que
havia escrito o texto. [...] Era a época dos entusiasmos e das discussões
apaixonadas. Ele e seus amigos questionavam o mundo incessantemente. Havia,
então, tentado explorar certas possiblidades. “Todos concordavam com o
essencial, nós divergíamos em nossas pesquisas e, somente como exemplo, assim
que mostrei ‘A Bola de Vidro’ a Antonin Artaud, ele refez imediatamente a peça
a seu modo, em dez páginas, com os mesmos personagens e a publicou em seu
primeiro livro, O Umbigo dos Limbos, com o título de ‘O Jato de Sangue’”. O
texto de Artaud é uma farsa drand-guinholesca e uma sátira ubuesca do texto de
Salacrou. Manifesta grande frescor e Artaud deve ter se divertido em colocar em
cena os diversos personagens [...] de um modo totalmente maluco. (MÈREDIEU,
2011, p. 282 – 283).
A sutil descrição da peça feita por Florence Mèredieu parece ser muito propícia ao
texto de Artaud: diversos personagens agindo de um modo totalmente maluco. Um casal de
namorados troca declarações de amor automatizadas e repetitivas. Em seguida um furacão
os separa no exato momento em que astros se chocam, deixando cair pernas em carne viva,
com pés, cabelos, perucas, máscaras, templos, colunas; caem também do acidente
astronômico escorpiões, pórticos, alambiques, uma rã e um escaravelho. Um cavaleiro
medieval discute com uma ama de peitos inflamados. Diversas personagens destoantes
entram em cena (padre, puta, sapateiro, juíza, bedel, vendedora de quatro estações), mas não
participam da representação mimética (exceto o padre), apenas presenciam a terra entrar em
colapso. Aparece uma mão gigante – a mão de Deus – que arranca os cabelos da puta, a qual
é incendiada às vistas do público. A proxeneta9 revida mordendo o punho divino, de onde
jorra um jato de sangue que mata a todos. Ama e cavaleiro voltam e encontram vivos apenas
a puta e o mocinho que aparentam ter vivido o jato de sangue como uma relação sexual; o
cavaleiro quer que a ama lhe dê queijo, mas ela lhe dá uma multidão de escorpiões que saem
debaixo da sua saia. A mocinha morta, que vem carregada pela Ama, é jogada no chão, se
8 De acordo com Eric Sellin (apud SONTAG, 1976, p. 604. Tradução minha), O jato de sangue também seria
uma grande sátira ou imitação de Les mamelles de Tirésias, de Guillaume Apollinaire, peça escrita em 1913,
produzida em 1917 e publicada em 1918. 9 Tradução feita por Isa Kopelman – tradutora de Eis Antonin Artaud, a biografia do autor escrita por Florence
de Mèredieu.
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quebra como uma bolacha; ao final, ela acorda maravilhada e diz: “A virgem! Então era isso
que ele queria”. (ARTAUD, 1982, p. 14).
Uma descrição rápida da peça já é capaz de demonstrar a complexidade de suas
construções, escolhas dramatúrgicas que levaram críticos, como Günter Berghaus (2010), a
realmente colocar em pauta a (im)possibilidade de execução cênica do texto: “a peça não é
apenas curta, ela também parece fazer exigências inviáveis para que alguém dê ao texto uma
realização cênica. Suas direções de palco [...] deram origem à suposição de que Artaud estava
buscando um ‘teatro impossível’” (BERGHAUS, 2010, p. 21. Tradução minha)10. Berghaus
pode estar se referindo às rubricas do texto que parecem ser praticamente impossíveis de
realização cênica, conferindo ao texto claramente uma marca surrealista; talvez no cinema
Luis Buñuel conseguisse a encenação do texto, mas tal proposta se tornou completamente
desafiadora e quase impossível para o teatro11.
(Silêncio, se ouve como o barulho de uma imensa roda que gira e desempenha o
vento. Um furacão os separa. Neste momento se veem dois astros que se
entrechocam e cai uma série de pernas em carne viva com pés, mãos, cabelos,
perucas, máscaras, colunas, pórticos, templos, alambiques. O desmoronamento é
feito aos poucos, lentamente, como se tudo caísse no vazio. Caem – ainda três
escorpiões, um atrás do outro, depois uma rã e um escaravelho com uma lentidão
desesperadora, nojenta). (ARTAUD, 1982, p. 13).
Sabe-se que Antonin Artaud era um esquizofrênico diagnosticado e, somado a isso,
neste período ele estava sob fortes influências da ótica surrealista. No entanto, independente
das motivações e influências, o autor acaba por articular um texto que sugere claramente o
que mais tarde ele chamará de Corpo sem Órgãos, ideia que, na peça analisada, dialoga com
as inúmeras imagens completamente desfragmentadas que surgem em cena em
agenciamentos insólitos e inusitados. Em nenhum momento há a explicação dos
elementos/personagens que aparecem, como os escorpiões, a rã e o escaravelho caindo em
uma lentidão nojenta, o que nos faz pensar que o texto funciona em um movimento de leitura
que preza mais pela experimentação – experiência sensória de presenciar o choque dos astros
e seus inusitados resíduos – do que pela lógica racional da interpretação.
10 The play is not only short, it also seems to make unfeasible demands on anybody trying to give it a scenic
realization. Its stage directions [...] gave rise to the assumption that Artaud was pursuing an ‘impossible
theatre’. 11 Digo quase impossível porque, mesmo com limitações e fracassos, algumas companhias teatrais tentaram a
realização cênica do texto. Cito, a partir do estudo de Günter Berghaus (2010, p. 21), a primeira produção
profissional da peça, dirigida em 1964 por Peter Brook e apresentada na Temporada da Crueldade em Londres
(London Season of Cruelty).
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Isso é resultado também da proposta surrealista, já que este movimento vanguardista
negava o imperialismo da razão e propunha textos que explorassem o sonho, o inusitado, o
delírio, o insólito, o grotesco. Em outra rubrica, Artaud sugere que seja encenada a ruína da
terra, quando a mão de Deus arranca os cabelos (peruca) da puta e a faz se incendiar perante
o público; em defesa, a puta morde o punho de Deus, de onde jorra um jato de sangue que
mata a todos. O estranhamento é inevitável, fazendo com que o leitor/expectador tenha
acesso a um texto que mais se aproxima de um delírio esquizofrênico do que uma história
passível de interpretação. Os surrealistas queriam se libertar dos automatismos da escrita e
das representações estanques da linguagem, criando agenciamentos que pudessem consagrar
uma poética do delírio, da alucinação, do sonho, da imaginação contra lógica castradora da
razão.
Neste período, os autores também buscavam questionar valores socialmente
impostos como o conceito de pai, patrão, pátria, família, religião. O Jato de Sangue, então,
se mostra como uma dicção dessa proposta, uma vez que subverte a figura de Deus,
apresentando-o em seu furor e crueldade, ao mesmo tempo em que o mostra voluvelmente
humano a ponto de sangrar com a mordida de uma puta incandescente; é do jato sangue de
Deus que toda a crueldade emana.
Devido às inúmeras construções inusitadas, a peça de Artaud também sugere a
subversão do corpo dos atores a partir de elementos que se referem à fragmentação,
evisceração e experimentação de fluídos corporais. Vejamos alguns exemplos: logo no início
da peça há uma personagem – A Ama – que tem os peitos inflamados, os quais ela segura
com as duas mãos. No final, o cavaleiro medieval quer o queijo que ela escondeu, então a
mulher ergue sua saia e de lá sai uma multidão de escorpiões, que começam a pular em seu
seio, agora achatado, que pega fogo e se racha, “tornando-se vidrado e brilhante como um
sol” (ARTAUD, 1982, p. 14). Outro exemplo está em uma rubrica que descreve um furacão
e o choque de dois astros, de onde “caem uma série de pernas em carne viva com pés, mãos,
cabelos, perucas, máscaras, colunas, pórticos, templos, alambiques” (Ibid., p. 13) – sem uma
lógica e explicação, o público espectador presenciaria uma cena extremamente grotesca de
partes de corpos caindo do teto, junto com outros elementos nada similares (imaginemos
como seriam templos, pórticos e colunas caindo...).
A tônica da peça está quando a puta morde o punho de Deus, de onde sai um imenso
jato de sangue que mata os personagens, fazendo alguma alusão, talvez, ao episódio bíblico
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que narra o episódio da morte de Jesus, quando jorrou sangue e água do seu peito12. O jato
de sangue da peça analisada pode ser visto como uma máxima grotesca: o fluído corporal
mais contagioso sendo derramado sobre o palco cênico, encharcando o cenário e os atores.
Sobre isso, Anaïs Nin afirma que Artaud13
falou dos antigos ritos de sangue. O poder do contágio. De como perdemos esta
magia do contágio. A religião antiga sabia organizar ritos que tornavam
contagiosos a fé e o êxtase. O poder dos ritos desapareceu. Ele quer devolver isso
ao teatro. Ele quer gritar de tal forma que as pessoas sejam novamente
reconduzidas ao fervor e ao êxtase. Nada de palavras. Nada de análise. O contágio
da representação de estados de êxtase. Nada de encenação objetiva, mas um rito
no meio do público. (NIN, 1986, p. 164)14.
Pode-se perceber que o sangue, entendido aqui como um elemento grotesco por estar
associado ao ritual do corpo em sua exposição inusitada e estapafúrdia, fazia parte da
proposta artaudiana de um teatro ritual que possibilitasse o contágio com o visceral, com o
corpo completamente desmontado e avariado funcionando como um elemento ativador de
sentidos, que não seriam possíveis através de um organismo organizado – proposta que tem
por base a ideia de Corpo sem Órgãos.
Voltando à proposta surrealista, em O jato de sangue, além dos inúmeros
personagens, elementos e ações inusitadas, desfragmentadas e desconectadas com o todo da
peça, há algumas incoerências no texto, como quando a rubrica diz que “uma mão enorme
arranca a peruca da puta” (ARTAUD, 1982, p. 14. Sem grifos no original), mas logo em
seguida “A puta morde os punhos de Deus” (op. cit.) – se era apenas uma mão, como pode
haver punhos, no plural? Outro exemplo é quando a rubrica seguinte diz que “O corpo da
puta aparece absolutamente nu e horroroso com um corpete e uma saia” (op. cit.) – como
ela está absolutamente nua quando, ao mesmo tempo, está vestida? Ao final da peça a
didascália afirma que o jato de sangue rasga a cena e “quando a luz se refaz, todos os
personagens estão mortos e seus cadáveres jazem por todas as partes, no chão” (op. cit.,
sem grifos no original). Logo em seguida, aparecem vivos a puta, o mocinho, o cavaleiro e
a ama, a qual carrega a mocinha nos braços como um pacote, morta. “A ama deixa a mocinha
cair na terra onde ela se quebra e se torna pálida como uma bolacha” (op. cit.), mas depois
12 Essa cena está no Evangelho de João, capítulo 19, versículo 34: “Contudo um dos soldados lhe furou o lado
com uma lança, e logo saiu sangue e água” 13 Anaïs Nin foi uma escritora e artista que conviveu com Artaud e sobre ele escreveu algumas impressões em
um diário pessoal, principalmente acerca da sua produção da década de 1930. 14 Trecho dos Diários de Anaïs Nin (Vol. 1 1931/33), apêndice de um livro organizado por Cláudio Willer que
traz alguns Escritos de Antonin Artaud (1986).
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que a puta e o mocinho fogem juntos como dois trepanados, a mocinha se levanta,
maravilhada.
Essas incoerências na linguagem e na construção/articulação das cenas e personagens
se mostram totalmente propositais, justamente porque a ideia da peça parece ser a de figurar
o não lógico, numa proposta que subverta a razão em prol de uma experimentação estética
do delírio, do pesadelo, do surreal. Dessa forma, podemos dizer que peça de Artaud preza
pela desarticulação da linguagem, dos sentidos convencionados na lógica do mundo e da
língua, da performance teatral tradicional calcada na representação mimética, do texto
baseado na tradição literária.
Considerações finais
Este estudo procurou analisar a peça O jato de sangue, escrita por Antonin Artaud
em 1925, com o intuito de verificar a recorrência de alguns elementos que mais tarde
delimitaram a ideia de “Teatro da Crueldade”, em especial a fragmentação da linguagem e
sua representação cênica, a criação de imagens como recurso estético e o funcionamento da
ideia de Corpo sem Órgãos. Considerando a abordagem do Surrealismo uma forte influência
para o refinamento do conceito artaudiano de crueldade, O jato de sangue revela uma
proposta de teatro ritual, teatro corporal, de experimentação linguística e ideológica.
A peça claramente dialoga com as ideias surrealistas, como a negação da razão em
prol de uma estética do delírio e o combate a conceitos castradores e moralistas, uma vez
que o texto subverte a figura de Deus, apresentando-o em seu furor e crueldade, ao mesmo
tempo em que o mostra voluvelmente humano a ponto de sangrar com a mordida de uma
puta incandescente: é do jato sangue de Deus que toda a crueldade emana. “Crueldade
significa extirpar pelo sangue e através do sangue a deus, o acidente bestial da animalidade
humana inconsciente, onde quer que se encontre” (ARTAUD, 1986, p. 160).
Referências
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______. O teatro e o seu duplo. Trad. Teixeira Coelho e Monica Stahel. 3 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
______. Escritos de Antonin Artaud. Tradução, seleção e notas de Cláudio Willer. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1986.
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BERGHAUS, G. Artaud’s Le Jet de Sang: an unperformable surrealist play? In: CROMBEZ,
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modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e
conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 174 – 208.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução
de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São
Paulo: Ed. 34, 1996.
JALLAGEAS, F. Antonin Artaud e o Surrealismo: distâncias e aproximações. Revista
Zunái, ano IV, edição XVI, outubro de 2008. Disponível em:
<http://www.revistazunai.com/ensaios/francine_jallageas_antonin_artaud.htm>. Acesso em
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MERÈDIEU, Florence de. Eis Antonin Artaud. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
SONTAG, S. Antonin Artaud: selected writings. Berkley and Los Angeles: University of
California Press, 1976.
ZOURABICHVILI, F. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de
Janeiro: Relume Dumará; Sinergia; Ediouro, 2009.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
A EXCEÇÃO E A REGRA (1930): O RECURSO DE ESTRANHAMENTO,
TEORIZADO POR BRECHT, À LUZ DA TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO DE
ISER
Renata da Silva Dias Pereira de Vargas (Uniandrade)1
Resumo: A peça didática A exceção e a regra (1930), de Bertolt Brecht, antes de ser representada, teve seu
texto executado como um jogo cênico em constante processo em espaços não convencionais. O objetivo
era desencadear reflexão para possibilitar a conscientização social e política dos participantes. Pretende-se
analisar a peça sob a ótica da estética da recepção, utilizando a teoria do efeito estético de Wolfgang Iser, ou seja, os efeitos produzidos no leitor pelo texto que ganha existência no momento da leitura. O recurso
de estranhamento, teorizado por Brecht, e as considerações críticas de Flávio Desgranges (2012) sobre a
relação do espectador com a cena também serão ferramentas importantes na análise do texto mencionado.
Palavras-chave: A exceção e a regra. Peça didática. Recurso de estranhamento. Estética da recepção.
Introdução
A exceção e a regra (1930), de Bertolt Brecht (1898-1956), uma das peças
didáticas mais conhecidas do autor, foi escrita primeiramente para ser levada às escolas e
fábricas com o intuito de promover aprendizado por meio da participação de todos no
jogo de cena. A primeira encenação no teatro foi realizada em Paris no ano de 1947. Esse
trabalho objetiva examinar os recursos de estranhamento da peça à luz da teoria do efeito
estético de Wolfgang Iser (1926-2007).
Breves considerações teóricas sobre oefeito estético de Iser
Wolfgang Iser (1926-2007), precursor da teoria dos efeitos, pesquisou a forma
como uma obra é recebida por um público no decorrer de sua história. Acreditava que a
recepção de uma obra, desde o momento em que é escrita até o contexto atual, deve ser
levada em consideração.
De acordo com Iser, um texto necessita de um leitor para adquirir vida. Neste
processo dialético, o leitor, provavelmente, tentará relacionar o texto a algo despertado
nele, condição básica para a eficácia do texto. O papel do leitor é fundamental, pois “(...)
o texto se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão
1 Mestranda. Uniandrade – Centro Universitário Campos de Andrade. [email protected]
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previamente constituída que os leitores introduzem na leitura” (ISER, 1996a, p.78). Mas
o leitor deve ficar atento, porque não é livre para imaginar o que quiser, embora o texto
se apresente como um leque de possibilidades dadas por diferentes ângulos. Várias visões,
vozes, perspectivas estão presentes no texto e o leitor perceberá isso no momento da
leitura. Dessa forma, Iser afirma que: “Os conflitos dos textos literários provocados no
ato da representação revelam em princípio uma rica variedade de matizes, esses conflitos
só se cumprem na experiência do leitor” (1996a, p. 93-94).
Ao escrever uma obra, o autor deixa lacunas que devem ser preenchidas pelo
leitor, por isso um texto nunca está acabado, o leitor é peça chave para completar essa
obra. O efeito desse texto é produzido no leitor no momento em que é lido, porque por
trás de um texto há sempre uma intenção que precisa ser descoberta pelo leitor.
É importante, também, salientar a condição de recepção de uma obra, pois a
recepção varia de acordo com o contexto em que essa obra está inserida e o horizonte de
expectativas do momento em que é escrita. E como o horizonte de expectativas tende a
mudar, há também uma mudança no modo de recepção desse texto. Segundo Iser: “Cada
época tem seus próprios sistemas de sentido, as transições epocais marcam, por
conseguinte, modificações significantes que se realizam no interior dos sistemas de
sentido que por sua vez são organizados segundo um modo hierárquico ou concorrente”
(ISER, 1996a, p. 133). Assim, o texto pode sofrer uma atualização, seguindo as estruturas
de efeito inseridas no texto.
O leitor, utilizando de seu repertório e de sua consciência imaginativa, vai
interpretar o texto e esta interpretação é um processo individual, por isso há várias
interpretações para um mesmo texto. “O repertório de textos ficcionais não consiste
apenas em normas extratextuais, retiradas dos sistemas da época; também incorpora, de
maneira ora mais ora menos acentuada, a literatura do passado” (ISER, 1996a, p. 147).
De alguma forma, a obra literária pode formular no leitor algo novo, afetando sua
consciência, trazendo-o para a reflexão e fornecendo estímulo a não se acomodar ao texto.
O não-dito e os lugares vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar as lacunas com seu
conhecimento de mundo. A partir de um estranhamento, o leitor se depara com um texto
que se afasta do seu horizonte de expectativas e apresenta certas ambiguidades, o que
acarreta a indeterminação do texto.
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Uma forma de salientar a indeterminação é a narração segmentada, esta aumenta
o número de lugares vazios de tal forma que deixa o leitor desnorteado a ponto de
deformar as representações empreendidas por ele. Cortar, adiar, além de manterem o
leitor preso ao texto, são fundamentais para criar o clima de suspense necessário para que
ele possa inferir informações e possibilitar o sucesso da comunicação entre autor, obra e
leitor.
O texto é objeto de uma descoberta progressiva, de uma percepção dinâmica
que muda constantemente; nesse processo, o leitor progride não só de surpresa
para surpresa, mas ao mesmo tempo, avançando, ele vê que sua compreensão
do lido se modifica, uma vez que cada novo elemento empresta uma nova dimensão aos elementos antecedentes, à medida que os repete, contradiz ou
desenvolve. (RIFFATERRE, citado em ISER, 1996b, p. 185)
A peça didática e o espectador teatral
Quando suas peças didáticas (Lehrstücke) foram traduzidas para o inglês, Brecht
preferiu a expressão learning play (peça de aprendizado), o que facilita para compreendê-
la como um processo que pode produzir aprendizagem, e não como algo finalizado,
fechado a interações.
Flavio Desgranges apresenta algumas considerações importantes a respeito do
espectador teatral que podem ser aproximadas à teoria de Iser.
Brecht teria concebido o texto da peça didática como um modelo de ação, e
não como uma obra acabada, sendo a participação dos atuantes fundamental
para o seu processo de construção (...), em que os jogadores são convidados a
participar do processo de criação da obra. (DESGRANGES, 2006, p. 83).
No caso de A exceção e a regra, o leitor se depara com um dilema antissocial que
o faz refletir a respeito da moral, da ética, do patrão que mata o carregador; o faz
questionar a atitude do agressor e também do comportamento do cule. O texto lança
questões que poderão ser respondidas pelo leitor, levado a especular por que o carregador
não reage, não se defende, e por que o comerciante atenta contra a vida de seu empregado,
e qual dos dois estaria certo.
Dessa forma, o ato da leitura instiga o leitor a indagações que solicitam dele
efetiva participação nos acontecimentos, desempenhando quase que um papel autoral
para que o texto se realize.
E que convida o leitor a abandonar as suas representações formadas, desvencilhando-se dos próprios produtos, e possibilitando a criação de
representações que seriam impossíveis se os hábitos familiares ainda fossem
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determinantes. O que, no limite, indica a produção de um sujeito-leitor que
antes não existia. (DESGRANGES, 2012, p. 28).
A leitura do texto solicita do leitor certa invenção que possa produzir sentidos, por
isso espera-se sua efetiva atuação e também o abandono de representações formadas e
adequação às necessidades do texto, assim, o leitor perceberá reflexos das condições
históricas que estão impregnadas no texto que requerem atitude crítica em relação à obra.
Dessa maneira, afirma Desgranges:
As modificações no contexto social solicitam soluções artísticas renovadas,
que façam frente às mudanças ocorridas no modo receptivo e consigam atingir
com efeito os espectadores de determinado tempo histórico, e, por outro lado,
o fazer artístico também participa e influencia essas alterações na
perceptividade, propondo modos distintos de o homem compreender e se
colocar diante do mundo. (DESGRANGES, 2012, p. 22).
Alguns temas apresentados pedem urgência discursiva e reflexiva que a princípio
parecem incompatíveis com o horizonte de expectativa do momento em que o texto é
lido, por isso a visão desses temas muda de acordo com a recepção da obra. A experiência
histórica do leitor é imprescindível para questionar este tema e entendê-lo historicamente,
de acordo com sua época algo que era inquestionável passa a ser questionável,
acarretando modificações nos modelos artísticos, como no teatro, por exemplo.
Brecht dá agora um passo radical: se não dá para mudar o público, invente-se um novo público (aquele dos esportes), e, se nem isso for possível, então mais
simplesmente, cometa-se o crime perfeito e suprima-se até mesmo a idéia de
público. E é assim que surgem as peças didáticas. O preço a pagar não deixa
de ser alto: abandona-se aquela diversão perdulária, e fica-se com a seriedade
do pedagógico, com o exercício ascético da racionalidade. (BORNHEIM,
1992, p. 182).
Sendo a obra em estudo uma peça didática, são perceptíveis as técnicas utilizadas
por Brecht, como o estranhamento, a quebra da ilusão dramática e a nomissão da função
catártica por afastamento, afinal, diante da morte e da injustiça, o leitor experimenta certa
felicidade por sua vida ser diferente daquela vivida pelos personagens, uma espécie de
prazer. Diante disso, o leitor sente-se mais à vontade para cumprir seu papel, preencher
os espaços vazios deixados no texto, acessando seu repertório e utilizando seu
conhecimento de mundo para interpretar o texto. Nessa linha de pensamento, Camati
afirma que: “A decodificação da enunciação verbalizada pelas vozes narrativas tende a
assumir diferentes contornos na imaginação dos espectadores, que têm a liberdade de
alçar vôos em diferentes direções, completando as lacunas do texto” (2009, p.163).
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O formato da peça didática pode instaurar no leitor um espírito crítico, tanto em
relação à moral tradicional como também uma discussão a respeito das mazelas sociais,
das injustiças sofridas pelos menos favorecidos, pela parcialidade do poderio da ordem
social, principalmente com as cenas de julgamento, frequentemente encontradas nessas
obras, que suscitam reflexão e produzem aprendizagem. Algumas dessas questões serão
discutidas a seguir.
O recurso de estranhamento brechtiano à luz da teoria do efeito estético em A
exceção e a regra
A peça didática A exceção e a regra faz uma crítica social aos padrões instaurados
tanto para a época em que foi escrita, de censura e forte repressão, de desigualdade social,
desemprego, como para o momento atual, em que o povo, descontente com salário,
emprego, saúde, transporte público, educação, altos impostos, vai para a rua reinvindicar
seus direitos. Nesse sentido, a peça “(...) é testemunho de uma época, condições sociais e
não perde capacidade de comunicação mesmo depois que sua mensagem se tornou
histórica” (ISER, 1996a, p. 39-40).
A mensagem dessa obra, embora histórica, é contemporânea: os poderosos se
aproveitam dos menos favorecidos, simplesmente porque acreditam que estes não
merecem melhor tratamento, porque são pobres e suas vidas não valem nada, que como
pessoas são de uma qualidade pior e ou de nenhuma qualidade. Exemplos disso são
percebidos no decorrer de toda a peça: “(...) essa gentinha não faz muita questão de estar
inteira ou mutilada (...). Doentes por natureza (...). Assim como jogam fora uma coisa que
não deu certo, eles jogam fora suas próprias pessoas” (BRECHT, 1990, p. 145). Essa
visão do comerciante pode causar indignação, mas faz parte da função do texto, de acordo
com a teoria de Iser:
Se a conduta dos personagens nos parece cada vez mais inverossímil, brutal,
ou até, inimaginável, então somos forçados a considerar o que determina
nossas concepções de verossimilhança, brutalidade e imaginabilidade. [...]
Focalizar algo através de uma deformação coerente do visível, induzindo o
receptor a constituir causas encobertas trabalhando com o estranhamento
(Verfremdung). (ISER, 1996b, p. 143, 194).
Para gerar no leitor o espírito crítico em relação a essas questões, a obra deve
causar estranhamento, chocá-lo, indigná-lo, forçá-lo a considerar os mecanismos do texto
que podem explicar as causas dos acontecimentos, fazendo-o rever suas concepções para
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entender certas condutas presentes no texto. Assim, o leitor é envolvido de tal forma que
é empurrado para o texto, revendo, de acordo com o contexto da obra, seus conceitos de
certo e errado, mas acima de tudo, entendendo as atitudes tomadas pelos personagens
porque são fundadas nos conceitos pré-estabelecidos pela moral vigente: “O acusado,
portanto, agiu em legítima defesa tanto no caso de ter sido realmente ameaçado quanto
no caso de apenas sentir-se ameaçado. Dadas as circunstâncias, tinha razões para sentir-
se ameaçado. Isto posto, absolve-se o acusado” (BRECHT, 1990, p. 160).
Por isso, é importante o leitor conhecer a história da recepção de uma obra. “A
leitura tem a mesma estrutura da experiência, na medida em que o envolvimento empurra
os nossos padrões de representação para o passado” (ISER, 1996b, p. 50). Atitudes dos
personagens que podem parecer negativas são totalmente aceitáveis no contexto da obra,
porque são parte da formação do personagem, então é verossímil que estes se comportem
de tal forma. A respeito disso: “O leitor procurará aspectos positivos da natureza humana,
no lugar daqueles que foram qualificados como negativos” (p. 74). Embora certos
comportamentos dos personagens gerem indignação, seria incoerente e inesperado, por
exemplo, que o comerciante fosse bom para seus empregados, porque isso é o correto a
se fazer, mas não é comum de acordo com sua formação. Bornheim diz que:
A obrigação do comerciante era crer-se ameaçado. Decidam, entretanto, os
participantes: ou bem aceitar a decisão monstruosa do juiz, ou recusar em bloco
toda a estrutura social capitalista, pressuposta pela ação criminosa. Brecht
pretende que, no sistema social vigente, a bondade é uma exceção. (1992, p.
189).
Há uma hierarquia, uma ordem social que sempre existiu, tanto no momento em
que a peça foi escrita como na atualidade, embora não sendo a forma mais justa, o que se
percebe é que o dinheiro, o poder, as posses, a famosa “carteirada” ainda ditam as regras
em muitos lugares. Mas as mudanças são percebidas, e é o que a obra propunha na época,
e é o que ela provoca no leitor hoje. “Cada época tem seus próprios sistemas de sentido,
as transições epocais marcam, por conseguinte, modificações significantes que se
realizam no interior dos sistemas de sentido que por sua vez são organizados segundo um
modo hierárquico ou concorrente” (ISER, 1996a, p. 133). O impacto do texto gera no
leitor uma mudança de significado diante de uma mesma situação. O sentido já não é mais
o mesmo, porque houve mudança também no horizonte de expectativas da peça. Exemplo
disso é encontrado no texto: “Ao forte todos ajudam, e o fraco não tem ninguém, (...)
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Deus, que fez todas as coisas, fez o patrão e o empregado, (...). E o bom é quem vive bem,
quem vive mal é o malvado” (BRECHT, 1990, p. 145).
Outro mecanismo teorizado por Iser, encontrado na peça de Brecht é a realidade
extratextual, deveras utilizado para prender a atenção do leitor, para que possa relacionar
o texto a situações que fazem parte do seu contexto. “As frases escritas de textos
ficcionais, ao serem enunciadas, sempre ultrapassam o texto impresso para relacionar o
receptor com realidades extratextuais” (ISER, 1996a, p. 105). E mesmo essa peça sendo
da década de trinta, já naquela época havia uma visão negativa em relação à polícia, não
uma negatividade relacionada ao cargo, mas mais como algo impregnado à questão do
poder, neste caso a polícia tem certo poder que é lhe dado pelo cargo e pelo distintivo, e
é este poder que é mal utilizado e que gera essa visão negativa. Essa visão fica clara pela
maneira como o comerciante se sente protegido dos pobres porque tem a polícia como
escudo, como se o fato de ser pobre, automaticamente levasse a pessoa para o mal. “Não
são de luta, não são de nada: é uma corja da mais baixa qualidade, que anda de rastos (...)
graças a Deus, a polícia está aí para manter a ordem” (BRECHT, 1990, p. 134). Esta é
uma concepção do patrão, mas que está presente também na realidade atual, a polícia está
ai para manter a ordem, mas nem sempre em prol dos mais necessitados, e sim de uma
minoria que depende que a ordem social continue como está.
Esta premissa de querer preservar a ordem social vigente é algo que o leitor
percebe no desenrolar do enredo. São ações implícitas que levam o leitor a refletir. Iser
argumenta: “Se todas as ações verbais fossem explícitas, a comunicação só conheceria
fracassos, (...) o não dito constitui condição básica para que o receptor possa produzir o
que se visa, (...) os “vazios” da fala formam o constituinte central da comunicação”
(1996a, p. 112). Como já foi dito acima, o sucesso da comunicação de uma obra depende
dos vazios deixados pelo autor, preenchidos no ato da leitura; dessa forma o jogo dialético
se completa. Como afirma Camati, o autor “conduz a plateia a um jogo imaginativo e a
novos modos de percepção, estimulando os espectadores a preencherem os vazios dos
cenários de palavras” (2009, p. 164).
Na peça A exceção e a regra há o seguinte trecho: “Quem morre é o homem
doente. O homem forte vai em frente” (BRECHT, 1990, p. 140). Nesta passagem, o leitor
poderá interpretar o que não é dito: o pobre, o carregador, o empregado são comparados
a homens doentes que precisam de tratamento, como se sua condição fosse uma doença
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que precisasse ser curada. Já o rico, o comerciante ou o patrão são os fortes e por causa
disso seguem em frente sem sofrer qualquer punição pelos seus atos. Até porque o juiz
não pode condenar o patrão, ele também é patrão e estaria condenando a si mesmo. A
sociedade capitalista em que estão inseridos não espera que o juiz aja de forma diferente,
porque sabe que os poderosos presentes ali, no julgamento, agiriam da mesma forma.
Consideraçoes finais
O diálogo entre texto e leitor somente se realiza graças à participação constante
do leitor na produção de sentido, a indeterminação é crucial para que o leitor infira seus
conhecimentos e interprete a obra, por exemplo: “Quem esquece disto é bobo: Vai dar de
beber a um homem, mas quem bebe mesmo é um lobo!” (BRECHT, 1990, p. 159). Neste
trecho há uma comparação entre o patrão e o lobo, o carregador em sua inocência quer
ajudá-lo, mas acaba morrendo porque o patrão, espelhando-se em si mesmo, só vê o mal
nas pessoas, neste caso o bobo é o cule que acreditou na bondade do comerciante, e este,
por sua vez, fez-se de cordeiro, mas na verdade era um lobo.
Repare-se em outro trecho da peça: “(...) um homem, mal remunerado, forçado
com violência a enfrentar um grande perigo, vendo-se prejudicado até em sua saúde, e
arriscando a vida quase a troco de nada, para outro ter vantagem, acabe tendo ódio desse
outro” (BRECHT, 1990, p. 154). Esta é uma perspectiva interna do texto, fundamentada
na concepção estrutural de cada personagem, por isso, embora o texto leve o leitor a
refletir, ele não pode escolher como bem quiser um ponto de vista, ele deverá levar em
consideração a filosofia de cada personagem para entender suas atitudes, assim ele
conseguirá aceitar o desfecho de determinadas ações, como no caso do carregador, que
mesmo depois de morto é condenado por algo que não fez, mas esperava-se que fizesse.
Segundo a teoria dos efeitos “Os atos de apreensão são bem sucedidos na medida em que
formulam algo em nós (...). Afeta a consciência existente e incorpora algo novo” (ISER,
1996b, p. 92, 94).
Ao final da peça, o coro profere as seguintes falas:
Humanidade é exceção.
Assim quem se mostra humano
Paga caro essa lição. (...)
E viram o que é comum O que está sempre ocorrendo. (...)
No que não é de estranhar
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Descubram o que há de estranho!
No que parece normal
Vejam o que há de anormal!
No que parece explicado
Vejam quanto não se explica! (BRECHT, 1990, p. 158, 160)
Diante disso, o leitor tem sua consciência imaginativa afetada, reflete sobre o que
lê e torna-se diferente do que era no início da leitura, é o que a peça didática A exceção e
a regra suscita: reflexão e discussão a respeito de temas universais, presentes ainda hoje
no nosso cotidiano. O leitor, diante de todas essas questões, tende a perceber que
acontecimentos comuns não podem ser vistos como normais, que o ser humano ainda tem
valor e que a honestidade deve ser a regra, não a exceção.
Referências
BORNHEIM, G. A. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
BRECHT, B. A exceção e a regra. Tradução de Geir Campos. In: BRECHT, B. Teatro
completo, v. 4. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 128-160.
CAMATI, A. S. Vozes narrativas no espaço cênico: o pós-dramático em (A)tentados de
Martin Crimp. Artefilosofia. n. 7, Ouro Preto, out. 2009, p. 158-166.
DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec,
2006.
______. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo:
Hucitec: 2012.
ISER, W. O ato da leitura, vol. 1. 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:
1996a.
______. O ato da leitura, vol. 2. 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:
1996b.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
ÁGUA, FOGO, TERRA E VENTO: A CONSTRUÇÃO E
(RE)CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NA BUSCA PELO SOL
Aline Camara Zampieri (UFMS)1
Resumo: Com base nas contribuições de Magaldi (1988), Pallottini (1989), Prado (1968), Moisés (1997) e
Ryngaert (1996), acerca do modo de estruturação do texto teatral; nos critérios propostos por Ubersfeld
(2005) e Pallotini (1989) no que tange à construção do personagem no gênero dramático, bem como os
pressupostos relacionados à estruturação simbólica de Chevalier e Gueerbrant (1998), este trabalho se
concentra na análise do processo de construção e transformação das personagens em cada etapa do caminho
pela busca do sol na peça infanto-juvenil A menina que buscava o sol, de Maria Helena Kuhner (1975). A
obra narra o caminhar da menina Putz a procura do sol, retratando o ritual de passagem da protagonista e de seu companheiro de viagem, que ora apresenta-se como coelho, ora como cavalo, ora como pássaro;
conforme vão avançando os quatro ciclos (vento, fogo, água e terra) da caminhada.
Palavras-chave: Teatro brasileiro contemporâneo; personagem; ritual de passagem; simbologia.
Introdução
Antes de iniciarmos a análise das personagens na obra A menina que buscava o
sol, de Maria Helena Kuhner (1975), é necessário conceituar brevemente o que é teatro,
bem com a importância do texto teatral.
Sábato Magaldi (1998) abre o primeiro capítulo de Iniciação ao Teatro
pontuando dois significados para a palavra teatro. O primeiro é o imóvel, o edifício onde
se realizam os espetáculos, munido de palco, artista e platéia. O segundo diz respeito ao
fenômeno/espetáculo que se processa a partir da tríade: ator, texto e público. Assim, “o
teatro existe quando o público vê e ouve o ator representar um texto” (MAGALDI, 1998,
p. 8).
É, também nesse sentido, que Massaud Moisés (1997) define o teatro como a
arte da representação que “realiza-se quando atores, encarnando personagens, simulam
viver, sobre um palco e perante um auditório, o conflito de suas existências” (MOISÉS,
1997, p. 260). Daí a importância dos elementos ator, que irá representar ações presentes
em um texto para uma platéia.
1 Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação e Mestrado em Estudos de
Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande. E-mail:
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Feitas as devidas e breves considerações sobre o fenômeno teatral, vamos nos
deter agora ao aspecto dramático. Magaldi (1998) ressalta o prestígio desse na análise do
fenômeno teatral e, retomando Baty (1949), afirma que o texto é a parte essencial do
drama. O teórico francês compara o texto teatral a um caroço; afinal “[...] do mesmo modo
que, saboreando o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos
semelhantes, o texto, quando desaparecem os prestígios da representação, espera numa
biblioteca ressuscitá-las algum dia.” (BATY, 1949, p. 218 apud MAGALDI, 1998, p. 15).
Nessa perspectiva, entendemos o texto como esqueleto do fenômeno teatral que
é constituído por didascálias e sustentado por diálogos, nos quais desenrolam o
enredo/ação concentrados num tempo e num espaço. Além disso, é, por meio dos diálogos
transmitidos pelos atores, que concebemos a criação/caracterização das personagens.
Na esteira de Magaldi (1989), importa salientar que etimologicamente drama
significa ação, ou seja, as peças são construídas a partir de uma ação central e microações
em rede. Ocorre, todavia, que estas ações não são referentes a qualquer espécie de ato
realizado pela personagem em cena. A ação em teatro requer uma vontade humana (ou
que metaforiza tal vontade) de realizá-la, sendo essencial que a atitude tomada tenha um
objetivo consciente como consequência do ato, agregando na ação a dramaticidade
necessária para que esta seja considerada uma ação dramática. Segundo Renata Pallottini
(1998, p 09), a “ação dramática é a ação de quem, no drama, vai à busca de seus objetivos,
consciente do que quer. É a ação de quem quer e faz”.
No texto de Kuhner (1975), a ação dramática está centrada na busca da
protagonista, Putz pelo Sol. E, para alcançar seu objetivo ela atravessa quatro etapas –
marcadas pelos elementos água, fogo, terra e vento – nas quais ela estabelece conflitos
com várias personagens que ora a impedirão, ora a ajudarão a avançar sua caminhada.
Assim, centraremos nossa análise na construção das personagens que permearão a ação.
Neste sentido, importa salientar, também, algumas diferenças entre as
personagens de um romance (texto narrativo) e as personagens do teatro (texto
dramático). Décio de Almeida Prado (1968) ressalta que no romance a personagem é um
elemento entre vários outros ao passo que no teatro as personagens constituem
praticamente a totalidade da obra, pois “nada existe a não ser através delas” (PRADO,
1968, p. 84).
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Para Prado, tanto o romance quanto o teatro falam do homem, porém o teatro se
faz por meio do próprio homem, na presença viva e carnal do ator. Daí a importância da
ação a qual acontece por intermédio da representação do ator da personagem. Para uma
melhor compreensão das personagens, dividiu-se este trabalho conforme a autora Maria
Helena Kuhner (1975) divide as ações do seu texto; dada a importância da ação na
construção dessas.
Destaque-se, contudo, que trabalharemos com um texto dramático, portanto
analisaremos as personagens por meio dos diálogos e das indicações marcadas pela autora
por meio das didascálias. Demais expressões corporais, faciais, entonação de voz,
cenário, entre outros acessórios não caberão nesta analise.
1. As quatro etapas do caminho
Maria Helena de Oliveira Kühner nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em
1933. É pesquisadora teatral e dramaturga. Destacou-se com obras infanto-juvenis, dentre
elas Os dentes do tigre; As aventuras do diabo malandro e Anchieta, vencedoras de
prêmios e concursos na década de 1970.
A obra A menina que buscava o sol ou Putz: a menina que buscava o sol, de
1975, conta a história de Putz, menina, que por não querer ter sua cor imposta – ser azul
como a mãe, ou vermelha como o pai, ou amarela como o irmão – decide seguir uma
difícil viagem em busca do Sol, pois acredita que é nele que se encontra todas as cores;
e, assim, ela pode escolher as quais quiser.
Para enfrentar esta viagem, que atravessa os reinos da terra, do ar, do fogo e das
águas, com seus estranhos habitantes e suas escolhas de vida, Putz tem ajuda de um
companheiro que é primeiro o Coelho, depois o Cavalo, depois o Pássaro; “pois quando
a gente cresce se transforma” (KUHNER, 1975, p. 21). Destaque-se que a peça já foi
encenada em vários estados brasileiros e em países como Argentina, México, Israel e
Portugal.
O texto inicia com uma extensa rubrica da autora, descrevendo como as
personagens devem entrar em cena. Para Anne Ubersfeld (2005), as rubricas (didascálias)
representam um importante elemento da dramaturgia, especialmente no teatro
contemporâneo. O lugar textual das didascálias nunca é nulo, pois elas abrangem os
nomes das personas, inclusive no interior do diálogo, além de comporem também o
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contexto espacial, destacando o lugar no qual a cena acontece. Há, nas peças de teatro,
duas camadas textuais distintas. Uma relativa ao autor, que fala por meio das didascálias,
as quais fornecem indicações e suporte para o leitor ou encenador. E outra que refere-se
ao conjunto dos diálogos que atribui como mediador, uma personagem. Nesse segmento,
a primeira personagem que surge na cena diegética é a protagonista Putz, que segundo
Kuhner, na apresentação dos seus personagens, “não pode deixar de ser viva, inquieta, e
disposta – mesmo quando triste.” (KUHNER, 1975, p. 3).
Logo na primeira cena, Putz se apresenta de maneira viva, observadora e agitada.
Mesmo em silêncio, com uma boneca no colo, olha tudo com “Cara de curiosa de quem
observa e busca e descobre e se alegra ou se intriga ou se espanta”. (KUHNER, 1975, p.
3).
Nesse viés, a menina age conforme um dos sentidos do seu nome, o qual diz
respeito a uma expressão inscrita na gíria brasileira popularmente utilizada como
interjeição, cujo significado recai em espanto ou susto.
Na dinâmica das cenas que se sucedem, outras personagens se materializam na
diegése. Na sequência, surgindo do meio da plateia, os ETC percebem Putz no palco e
questionam acerca de sua identidade: “Olha lá, olha lá, olha lá! / Que é aquilo? / Uma
menina...?” (KUHNER, 1975, p. 4).
Segundo o dicionário Aurélio (1999), “etc” é abreviação de et cetera, palavra de
origem latina que significa “e as demais coisas”, podendo ser usado também para pessoas.
Na peça, os ECT são figuras não humanas, afobados e confusos, sem uma quantidade
delimitada, os quais não gostam de gente. Embora curiosos sobre a identidade da
protagonista, eles estabelecem um curto diálogo com Putz, no qual ela já revela seu
objetivo na peça, e se despedem rapidamente, pois estão atrasados para o trabalho.
Neste momento, aparece um coelho branco, que já sabe que Putz busca o Sol e
propõe-se a ajudá-la.
PUTZ – Eu sou a Putz...
COELHO – Hum... E quer buscar o Sol. Já sei.
PUTZ – Sabe...?
COELHO – Claro.
PUTZ – Como é que você sabe?
COELHO – Eu sei das coisas. Por exemplo: também sei que vai querer que eu
lhe ensine o caminho (KUHNER, 1975, p. 6).
Como podemos verificar nas falas acima, o coelho é esperto, brincalhão e
intrometido. Aos poucos vai se apresentando como bom amigo e conselheiro, sempre
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desafiando a protagonista, como faz o Coelho com Alice, na obra Alice no país das
maravilhas de Lewis Carroll.
O Coelho, de A menina que buscava o sol, faz alguns testes com Putz e, quando
constata que ela é realmente decidida, teimosa e persistente adentram na Terra dos
Ventos. “PUTZ – Eu não vou desistir. / COELHO – Bom, pelo menos passou pela
primeira prova. Acho que vai saber buscar. (KUHNER, 1975, p. 9).
1.1. No proscênio textual: A Terra dos Ventos
Adentrando na Terra dos Ventos, Putz e o Coelho encontram com o menino
vento. Menino levado e brincalhão que se apresenta com um pequeno ventilador que junta
com o seu sopro e faz “um vento daqueles”. (KUHNER, 1975, p. 10).
Ocorre, todavia, que a Terra dos Ventos não é habitada só pelo menino vento.
Nela moram figuras que parecem estátuas, figuras robotizadas e medrosas que trabalham
para o Chefe. E como, no sentido do dicionário Aurélio (1999, p. 830), designam pessoas
imóveis, paradas, incapazes de tomar decisão ou arbítrio. Enfatize-se que essas
personagens, assim como o sentido do seu nome, representam as pessoas que aceitam seu
destino, que não fazem esforço para mudar, para cruzar uma nova etapa do caminho.
A Terra dos Ventos é um lugar frio e escuro, onde não se pode brincar, pois,
segundo o Chefe “Perder tempo brincando é um crime [...] Atrapalha o trabalho, diminui
a produção, vira tudo uma desordem” (KUHNER, 1975, p. 13).
O Chefe, personagem autoritária e ardilosa, procura de diferentes maneiras
convencer Putz de que ele é Sol. Entretanto, como essa não acredita, ele tenta prendê-la
a fim de transformá-la em estátua e obrigá-la a trabalhar para ele. Porém, a menina escapa
com ajuda do pequeno Vento Sul.
É importante ressaltar que o Coelho desaparece no momento que o Chefe entra
em cena. E, assim que Putz foge, ele reaparece, porém transformado, agora, em cavalo.
Segundo o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1999), lebres
e coelhos são considerados lunares porque sabem, assim como a lua, aparecer e
desaparecer com o silêncio e a eficácia das sobras. Acrescentam, ainda, que entre os
negros da África e da América, e também em algumas culturas indígenas, o coelho é
considerado um animal herói e mártir, associando-se, assim, ao cordeiro cristão, doce e
inofensivo e que segundo Radin “está pronto a sacrificar seu caráter infantil a uma
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evolução futura”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 541). Nesse sentido, o
Coelho de Kuhner também desaparece e reaparece em outra forma, pois “quando a gente
cresce se transforma”. (KUHNER, 1975, p. 14). Enfatize-se, que não somente o Coelho
cresce, mas também a personagem Putz.
1.2. A Terra do fogo
Adentrando na Terra do Fogo, Putz e seu companheiro de viagem encontram três
árvores enormes. A primeira é invejosa e resmungona. A segunda é simpática e afetuosa.
A terceira romântica e indisciplinada. Criaturas que pararam na Terra do fogo e foram
criando raízes, virando árvores, já que “É bom ter raízes crescendo na terra, e ser
agasalhada e aquecida por ela; sentir a chuva entrando na pele, devagar, até a raiz mais
funda; ver que sua sombra dá abrigo a quem passa na estrada...”. (KUHNER, 1975, p.
19).
Além das árvores, essa etapa do caminho também é habitada por um Grilo, que
no próprio sentido do dicionário diz-se de “indivíduo maçante, amolante e chato”.
(FERREIRA, 1999, p. 1010). O Grilo é uma espécie de guarda de trânsito “verde-
olivamente empertigado” (KUHNER, 1975, p. 19), que surge como uma crítica ao
sistema que nos impõe impostos absurdos, no caso do texto de Kuhner (1975), o
pagamento de impostos para andar: “Lei é lei: quem anda tem que pagar. Andar tem
preço. Ninguém anda sem pagar pelo que andou.” (KUHNER, 1975, p. 19).
Putz, que não tem dinheiro e também não quer ficar parada e criar raízes, recebe
novamente ajuda, desta vez das árvores, para fugir do Grilo e de sua multa e cruzar mais
uma etapa em busca do Sol. Assim que a menina escapa do Grilo, reaparece seu
companheiro transformado agora em pássaro.
Cabem, então, algumas considerações sobre o Pássaro e o Cavalo. De acordo
com Chevalier e Gheerbrant (1999), o cavalo é filho da noite e do mistério, portador da
vida e da morte ao mesmo tempo e ligado tanto ao elemento fogo quanto ao elemento
água. E assim, também o Cavalo de A menina que buscava o sol, está presente na
passagem da Terra do Fogo para a Terra da Água. Além de sua função de guia e de
intercessor, no texto de Kuhner (1975) na condução de Putz até o Sol, o cavalo da mesma
forma que “a noite conduz ao dia, e acontece que o cavalo, ao passar por esse processo,
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abandona suas sombrias origens para elevar-se até os céus em plena luz.” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1999, p. 203).
Percebemos, pelas palavras de Chevalier e Gheerbrant (1999), que não é sem
sentido que na peça de Kuhner (1975), o Cavalo se transforma em Pássaro, figura que
alça vôo ao céu e, por isso, está mais próxima de Deus. Sendo, segundo os pesquisadores
“sinônimo de presságio e mensageiro do céu” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p.
687). Afinal, agora, Putz está mais perto do Sol.
1.3. A Travessia: Água e Terra
Para cruzar as próximas etapas do caminho, Putz tem que atravessar o rio e subir
a montanha. É um percurso cansativo que ela terá que fazer sozinha tendo em vista que
seu companheiro transformou-se em pássaro. “Por isso virei pássaro: do alto é mais fácil
que no chão” (KUHNER, 1975, p. 22).
Sozinha, a menina atravessa o rio e chegando ao alto da montanha ouve a voz de
um Vaga-Lume e, em seguida depara-se com muitos deles. Os Vaga-lumes de A menina
que buscava o sol são personagens sabichonas e autoconfiantes, que acreditam que cada
um tem o sol dentro de si; crendo serem os próprios sois.
1º VAGA-LUME – Cada um que chega busca o seu. Constrói um lugar para
ele. E fica com ele guardado consigo.
– Mas iluminando também a sua volta.
PUTZ – É bom, trazer sua luz consigo...
– E em torno de nós há sempre luz.
– E quando nos juntamos, a luz cresce...
– Como se fosse a de um enorme Sol,
– Quer ver? (KUHNER, 1975, p. 24).
Os insetos vão juntando-se e a luz vai aumentando, contudo inicia-se uma
confusão entre eles, pois cada um quer ficar em mais destaque que o outro. O ocorrido
desanima a menina (que já não é mais tão criança, pois está crescendo) e a faz refletir e
perceber que este não é o Sol que ela almeja. Agora, aconselhada pelo 1º Vaga-Lume
segue adiante, em busca do verdadeiro Sol. Dessa vez, é o pirilampo que desempenha o
papel de conselheiro de viagem, pois “dá a luz”, ilumina, indica o caminho para que Putz
conclua mais uma etapa.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1999), na China, o inseto é tradicionalmente o
companheiro dos estudantes pobres, aos quais fornece luz para seus trabalhos noturnos.
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De certa forma, o 1º Vaga-Lume cumpre seu papel no texto de Kuhner (1975) ao auxiliá-
la na sua busca pelo Sol.
Assim, Putz segue seu caminho, sozinha, com medo, com frio e questionando-
se “Agora entendo porque aquelas estátuas têm medo... e as árvores desistem das flores...
e os da montanha chegam a pensar que sua luz pequena é o Sol... Era melhor ficar lá com
eles... Pelo menos andavam... e tinham um pouco de luz...” (KUHNER, 1975, p. 25). E
quando quase desfalece reencontra seu companheiro de viagem, o Pássaro, agora em
forma humana e Putz é, agora, uma mulher. Os dois se reconhecem e:
Da alegria e do encontro, surge, espontânea a brincadeira – pega-pega,
currupio e dança e riso e fala e canto e tudo. E, à medida que começam a brincar, outros mais vão surgindo, rotos igualmente livres. A cada um que
surge, recebido com alegria, uma nova cor se acrescenta a luz, que irá pouco a
pouco tornando a cena um enorme arco-íris (KUHNER, 1975, p. 26).
A presença do Sol surge, na peça, a partir de um efeito cênico de uma luz forte
representada pelo arco-íris. Mas, não é só o Sol que as personagens alcançam. É um ritual
de passagem, a viagem, a maturação. A transformação da menina em mulher. O
aprendizado, a passagem por vários obstáculos de um árduo caminho.
2. Do outro lado da montanha
Em O dorso do tigre, Benedito Nunes (1969), afirma que a viagem ou “travessia
das coisas” (NUNES, 1969, p. 179) é a vivência e descoberta do mundo de nós. Chevalier
e Gheerbrant (1999) também enfatizam, entre outros aspectos, que o simbolismo da
viagem “Em todas as literaturas, a viagem simboliza; portanto, uma aventura e uma
procura, quer se trate de um simples conhecimento, concreto ou espiritual (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1999, p. 952).
Do interior para o exterior, ou do exterior para o interior, Putz, de fato, alcança
amadurecimento interior conforme cruza cada etapa do caminho. Esse processo é
representado, na peça, não apenas pelo crescimento da menina, mas, e com maior ênfase
pelos sentimentos e atitudes que a personagem vai adquirindo ao longo de sua caminhada,
como refletir sobre o destino das personagens que cruzam seu caminho, até encontrar o
Sol.
Sol, que ainda de acordo com Chevalier e Gheerbrant (1999) é, para muitos
povos, o próprio Deus, além de símbolo, entre os Chineses, de ressurreição e
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imortalidade. Contudo, não é deus, ou a imortalidade que busca Putz. Ela, simplesmente,
não quer ser igual aos outros personagens que ela “vê” e convive, ela quer ter a essência
de cada cor, como num arco-íris. Nesse sentido, o Sol da personagem é o décimo nono
arcano maior do Tarô, pois “exprime a felicidade daquele que sabe estar em harmonia
com a natureza.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 840).
Nelly Novaes Coelho (1985), em Panorama Histórico da Literatura
Infantil/Juvenil assevera que em meados da década de 1970 houve uma explosão de
criatividade tanto na Literatura Intantil/Juvenil quanto no Teatro Infantil. Destacaram-se
nomes como Ana Maria Machado, Ziraldo e Marina Colassanti. Entre tantos outros que,
como Maria Helena Kuhner, obedecem a nova palavra de ordem: experimentalismo com
a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualismo do texto. Substituindo uma
literatura até então segura e confiante por uma literatura inquieta e transformadora “que
põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela
vive; questionando também os valores sobre os quais nossa sociedade está inserida”
(COELHO, 1985, p. 214).
Nesse sentido, as personagens ETC, Estátuas, Árvores e Vaga-lumes, bem como
o Chefe e o Grilo que surgem no texto de Kuhner (1975) como metáforas de atitudes e de
determinados valores impostos pela sociedade que vão de encontro com as teorias de
Anne Ubersfeld e Renatta Pallottinni.
Em Para ler o Teatro, Anne Ubersfel (2005) defende que a personagem pode
estar ligada a um discurso, funcionando como “metonímia ou sinédoque (figura que
representa a parte pelo todo) de um conjunto paradigmático, ou mesmo, como metonímia
de uma ou várias outras personagens” (UBERSFELD, 2005, p. 76).
Nesse viés, as personagens o Chefe e o Grilo – já analisadas anteriormente –, as
quais Putz encontra respectivamente na Terra dos Ventos e na Terra do Fogo, representam
o papel de “autoridade”, numa relação de imposição de poder. Afinal, o Chefe exige que
a menina trabalhe para ele, estampando um claro vinculo de exploração do mais forte para
o mais fraco. Ao passo que o Grilo requer receber o seu imposto, também, numa visível
analogia de exploração. Relações estas, impostas tanto pelo Estado, que cobra impostos
absurdos, quanto pelas vinculações trabalhistas, devidas ao sistema capitalistas, que
transforma seus dependentes em “estátuas” que não tem vontade própria; sendo apenas
robôs do sistema.
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Renata Pallottini (1989) em “A caracterização do personagem” destaca que tais
personagens que a autora denomina de arquetípicos, ou seja, porta-vozes de uma ideia,
geralmente não têm nomes próprios, sendo símbolos ou sumos de uma condição,
profissão e/ou status. “Movem-se como bonecos, às vezes, têm gestos marcados, caras
nítidas, falas irreais. São, obviamente, não-realistas. E rompendo a lógica no diálogo, são,
também, ilógicos”. (PALLOTTINI, 1989, p. 69).
Nesse viés o texto de Kuhner (1975) traz vários personagens arquetípicos como
os ETC que estão atrasados para o trabalho, como as Estátuas que se movem lentamente.
E, até mesmo das Árvores e dos Vaga-Lumes que quer seja por comodidade, quer se seja
por excesso de vaidade, param no meio do caminho e desistem de buscar o Sol,
renunciando mudar seus destinos.
Considerações Finais
Após análise das personagens de A menina que buscava o sol, pode-se considerar
que o texto de Maria Helena Kuner (1975) censura três características humanas: ”o
medo”, “a comodidade” e “a vaidade”. Defeitos ou sentimentos que pretendem impedir
não só a personagem Putz de chegar ao Sol; mas que surgem como metáforas de vícios
ou deficiências que obstruem a evolução.
Além disso, pode-se observar uma crítica, ainda que sutil, ao sistema capitalista,
ao Estado com seus impostos e leis absurdas e a nítida exploração do mais forte ao mais
fraco. Mas, que apesar disso, sempre há “amigos” – sejam eles coelhos, cavalos, árvores
ou vaga-lumes – que nos ajudam a encontrar o Sol; ou seja, evoluir, amadurecer, alcançar
nossos objetivos.
Assim, nas palavras de Ubersfel (2005) não há leitura nem encenação inocente.
Mesmo num texto infantil, no caso do de Kuhner (1975), aparentemente ingênuo, pede-
se refletir, questionar e enumerar várias possibilidades interpretativas.
Referências Bibliográficas
CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Tradução Isabel de Lorenzo e Nelson
Ascher. São Paulo: Objetivo, 2000.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da Literatura Infantil/Juvenil – Das
origens Indoeuropéias ao Brasil Contemporâneo. São Paulo: Quíron, 1985.
KUHNER. Maria Helena. A menina que buscava o sol: teatro. Série infanto-juvenil.
Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. Disponível em <http://www.cepetin.com.br>. Acesso em
04 set 2013.
KUHNER, Maria Helena. Maria Helena Kuhner: Pequeno memorial descritivo de
sua formação e carreira. [S.l.: s.n.], 2003. Disponível em:
<http://www.kuhner.com.br/mariahelena/>. Acesso em 19 set 2013.
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao Teatro. São Paulo: Ática, 1998.
MOISES, Massaud. A Criação Literária: Prosa. São Paulo: Cultrix, 1997.
NUNES, Benedito. O Dorso do Tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
PRADO, Décio de Almeida. A Personagem no Teatro. In. CANDIDO, Antonio (Org.).
A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.
PALLOTINI, Renata. Dramaturgia – a construção da personagem. Editora Ática. São
Paulo, 1989.
UBERSFELD, Anne. Para Ler o teatro. Trad. José Simões. São Paulo: Perspectiva,
2005.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
CIDADES E ROMANCE: APROPRIAÇÕES NO PROCESSO CRIATIVO DE
“DAS SABOROSAS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE” DO GRUPO TEATRO
QUE RODA
Lúcia Helena Martins (UNESPAR-FAP-PR)1
Resumo: Das Saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança – um
capítulo que poderia ter sido do grupo Teatro que Roda é um espetáculo em que o grupo, inspirado na silhueta
das cidades, reelabora alguns episódios do texto de Cervantes, a fim de criar uma poesia urbana sobre o sonho,
a loucura e o próprio sentido da cidade. O tema é o mesmo que o do romance de Miguel de Cervantes, porém
ele é recontextualizado em centros urbanos contemporâneos. Vários elementos do romance são transpostos
para a contemporaneidade. Este espetáculo “desorganiza” o fluxo da rua, interferindo na estrutura da lógica
das cidades pelas quais passa, embaralhando as polaridades arte e vida. Como estas manifestações invadem um
espaço que já está em movimento, elas jogam o tempo todo com o imprevisível, fazendo com que suas dramaturgias nasçam do e no espaço e tempo presente do acontecimento artístico. À luz dos conceitos de
estética relacional de Nicolas Bourriaud, dramaturgia do espaço de André Carreira e Evill Rebouças, este artigo
pretende discutir sobre o processo de criação do espetáculo, ou seja das apropriações tanto da silhueta urbana
com seus fluxos, quanto do romance de Cervantes no espetáculo analisado.
Palavras-chave: dramaturgia do espaço; processo de criação; apropriações; Teatro que Roda.
Introdução
De acordo com Claus Cluver, todas as artes e mídias, consideradas sistemas de
signos, podem ser pensadas como textos passíveis de serem lidos, “uma dança, um soneto,
uma catedral, um filme e uma ópera são todos ‘textos’ passíveis de serem lidos” (CLUVER,
2001, p. 338). Para André Carreira, “a cidade é dramaturgia, porque é produtora de sentidos,
e sempre interfere no espetáculo condicionando o seu funcionamento e estabelecendo
condições de recepção” (CARREIRA, 2009, p. 4).
Partindo destes conceitos, veremos no presente artigo, como se dá a construção da
dramaturgia no espetáculo Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu
fiel escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido do Grupo Teatro que Roda,
ou seja, como os textos-cidades dialogam com a fabula de Dom Quixote conforme os lugares
por quais o grupo passa.
1 Professora colaboradora de Licenciatura em Teatro, na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR-FAP-
PR). [email protected]
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Das Saborosas2 foi levado a diversas cidades do Brasil. Em cada uma destas cidades
a dramaturgia se modifica sutil ou bruscamente devido às especificidades dos locais. Ao
falar sobre a dramaturgia do espaço urbano e o teatro de invasão, André Carreira assevera
que o teatro de rua ocupa o espaço urbano e ressignifica o sentido da rua. Enquanto o
crescimento das cidades se dá pelo reforço das contradições sociais, o establishment tenta
manter uma ordem, deixando certos espaços “limpos, organizados e preservados”, para,
através deste mecanismo, apagar suas contradições e articular “aquilo que podemos
considerar como projetos de simulacros” (CARREIRA, 2005, p. 27), o teatro de invasão
busca revelar estas contradições através dos seus procedimentos. Os não-lugares3
representam a auto-imagem do sistema capitalista, e a cidade é submetida a ampliar cada vez
mais estes espaços de consumos (shoppings, lojas, condomínios fechados), em detrimento
de lugares relacionais. E é a estas questões que o fenômeno teatral “de invasão” aspira resistir
através de sua natureza vivencial, presencial e artesanal. Carreira acredita que na
dramaturgia do espaço, ao tomar a cidade como texto, o teatro invasor rompe com a lógica
da rua e os atores - invasores desorganizam seu fluxo construindo Lugares, “pois sugere aos
cidadãos redefinir sua relação com os espaços da cidade implicando uma leitura da silhueta
urbana como um pré-texto no qual devem ser percebidas as contradições” (CARREIRA,
2005, p. 28). O espetáculo Das Saborosas, além da apropriação de elementos do romance
Dom Quixote de Miguel de Cervantes, toma como texto a cidade:
[...] a idéia de repertório de usos do espaço urbano poderia interferir na construção
na nossa percepção de dramaturgia. Nesta dramaturgia interfeririam as linhas dos
edifícios, as tensões dos usuários, o trânsito das pessoas e dos veículos e o controle
social do lugar público. As regras da cidade funcionam como material
dramatúrgico na medida que constituem um texto que pode ser tomado como pré-texto para a construção da cena. (CARREIRA, 2005, p. 30).
Apropriações: cidade-romance-processo
Segundo o Grupo Teatro que Roda, a partir de uma oficina sobre o teatro de invasão,
e o pensamento/observação da cidade onde fica a sede do grupo, Goiânia, uma das atrizes
2 A partir daqui, me referirei ao espetáculo Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel
escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia ter sido apenas pelo início do título, por fins práticos. 3 Não-lugar: termo utilizado por Marc Augé e citado por Carreira que significa “espaços que não conformam
identidades senão que se oferecem como simulacros do paraíso capitalista, por isso, não definem pertinências
e apenas implicam em compromissos com o próprio consumo. O não-lugar representa um lugar que não é mais
que uma zona de consumo que opera sem construir nenhuma idéia de território ou de identidade” (CARREIRA,
2005, p. 28).
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viu uma estátua monumento de um bandeirante numa de suas praças, que lhe remeteu o
semblante de Dom Quixote. Esta imagem geradora foi o ponto de partida do espetáculo para
o grupo. André Carreira foi convidado para dirigi-los e, após o aceite, foi iniciado o processo
de concepção do espetáculo. Especulação da cidade, escolha dos locais de realização,
observação dos locais, dos edifícios, ruas e fluxos de seu entorno, dos transeuntes, possíveis
relações com a literatura, leitura de Dom Quixote de Cervantes, treino dos atores. Nestes
espetáculos os atores lidam o tempo todo com o imprevisível, então eles trabalham com
elementos de risco e devem estar prontos e abertos a toda forma de improvisação, mesmo
que haja como base um roteiro cênico. Em relação ao roteiro utilizado nos espetáculos de
dramaturgia do espaço, Carreira
Propõe uma grande proximidade com a escritura do roteiro cinematográfico
porque trabalha com imagens que constituem a matéria básica deste teatro, ou
melhor, desta dramaturgia da cidade. As imagens urbanas funcionam como elementos disparadores que propulsionariam a construção de seqüências de ações
dramáticas [...]. Disso nasceria a matriz para construção espetacular, de tal forma
que o diálogo com estas estruturas constituiria a própria fala do espetáculo.
(CARREIRA, 2005, p. 31)
A fábula de Dom Quixote narra a história de um ingênuo homem de meia-idade que
vive na zona rural e adora ler livros de cavalaria. Até que um dia, decide tornar-se um
cavaleiro andante e sair pelo mundo num velho pangaré batizado Rocinante, com o intuito
de andar pelo mundo desfazendo injustiças, salvando donzelas, principalmente sua amada
Dulcinéia, e combatendo gigantes e dragões. Conhece um lavrador chamado Sancho Pança
que o acompanha pela promessa de ganhar uma ilha como pagamento de seu heroísmo. Dom
Quixote vive sob a alucinação de que está vivendo no universo da cavalaria, vê pás de
moinhos de vento e imagina que são gigantes com braços enormes, além de outros delírios.
Com o desejo de combater as injustiças do mundo e homenagear sua dama, o personagem
enfrenta situações perigosas.
Em Das Saborosas, o grupo reelabora alguns episódios do texto de Cervantes, a fim
de criar uma poesia urbana sobre o sonho, a loucura e o próprio sentido da cidade. O tema é
o mesmo, Dom Quixote quer combater as injustiças do mundo, porém ele é
recontextualizado em centros urbanos contemporâneos. Dom Quixote, agora, é um homem
engravatado remetendo a um homem de negócios, que desce de um prédio alto por uma
corda gritando por Dulcinéia. Abandona seu terno e gravata e se faz cavaleiro com objetos
do lixo. Sancho Pança é um catador de lixo, que passa com seu carrinho e encontra Dom
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Quixote – este encontro parece uma coincidência, deixando dúvidas, a princípio entre os
espectadores, se Sancho era realmente um transeunte ou se fazia parte do espetáculo. E o
cavalo Rocinante, é o próprio carrinho carregado por Sancho. Vários outros elementos do
romance são transpostos para a contemporaneidade, como o dragão que é constituído de uma
colheitadeira, jovens punks são feiticeiros improvisados, estruturas de propaganda
confundidas com gigantes etc.
Como foi dito anteriormente, o teatro invasor busca mostrar as contradições do
mundo capitalista de consumo da contemporaneidade. Em Das Saborosas, por meio da
forma, podemos observar uma subversão da ideia de realidade e imaginação, conteúdo do
romance de Cervantes. Quando o performer/personagem Dom Quixote invade o fluxo
organizado da cidade, luta contra os dragões que representam as injustiças do caminho da
sua “suposta” imaginação, seria a revelação do que está por trás da aparência do mundo
capitalista? Quantas pessoas são exploradas para manter este aparente fluxo limpo, feliz e
organizado? Por meio deste espetáculo, também são lançados vários questionamentos: o que
é ilusão? O que é realidade? Quem é o louco? É Quixote que vive de alucinações num mundo
imaginário? Ou seriam as milhares de pessoas que vivem num mundo de ilusões, sofrendo
para manter o fluxo da “felicidade” do ter, possuir e comprar?
Diferentemente da aspiração moderna e romântica de arte – como Dom Quixote – de
mudar o mundo através da arte, este espetáculo mostra um universo possível – e real, que
pode ser outro (fazendo jus ao título: “um capítulo que poderia ter sido”). Percebe-se que
enquanto Dom Quixote, pouco se relaciona com o público, como que num universo
ficcional, está a lutar num mundo à parte, com os monstros que procura combater; Sancho
Pança – um catador de lixo que está à margem deste universo de empresários, funcionários
públicos etc. – se relaciona com o público real, construindo lugares de relação. Seria Sancho
o próprio lugar relacional que não é o shopping, nem os condomínios fechados, mas a própria
rua. Pública? Sancho ao ser abordado por Quixote, quando este lhe faz a promessa de uma
ilha em troca de sua companhia, diz: “Pois vou embora. Prefiro Sancho sem nenhuma terra,
que a Terra sem nenhum Sancho!” Sancho relaciona-se com as pessoas e fornece indícios a
respeito da realidade, como, por exemplo, quando diz que a panela, que Quixote acredita
ser o elmo de Manbrino, é apenas uma panela. Quixote acredita que é um objeto de valor,
talvez como muitos consumidores que precisam ter o que não precisam porque acreditam
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que aquilo tem valor e é necessário. Mas ao mesmo tempo, Quixote luta o tempo todo com
esta (sua/nossa) realidade.
Além da leitura marxista, a questão de metalinguagem em relação à história e função
da arte também marca presença. Ambos os personagens Quixote e Sancho Pança trazem
consigo o desejo de transformar o mundo num lugar melhor. Enquanto o romântico Dom
Quixote luta para formar uma nova realidade utópica – como aspirava a arte moderna ao
tentar mudar o mundo através de artes ficcionais, Sancho constrói relações na realidade,
sugerindo outras possibilidades de mundos – como aspira a arte contemporânea. Segundo
Bourriaud, a arte contemporânea representa um interstício social: “um espaço de relações
humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema
global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema”
(BOURRIAUD, 2009, p.22).
Paralelamente a essa interpretação metalinguística sobre ficção e realidade, podemos
também observar que a própria forma de dramaturgia do espaço comenta esta questão.
Quando o espetáculo invade a rua, o espectador não sabe o que faz parte do espetáculo (o
que é cena/ficção/representação) e o que é realidade (transeuntes/carros e objetos que estão
ali por acaso), pois tudo o que está ao entorno do acontecimento acaba fazendo parte do
espetáculo e da criação de sentido do mesmo, já que os atores jogam o tempo todo com o
imprevisível e com o que está acontecendo naquele tempo e espaço. O ator, o público, o
roteiro de ações e a cidade como texto ou a cidade como dramaturgia têm a mesma
importância, e o acontecimento, no instante do espetáculo, é composto através do discurso
do que se pode ver e vivenciar em cena. Segundo Rebouças (2009, p. 180), estes discursos
podem ser articulados em situações “a partir da interação de todos os elementos cênicos
explorados em uma representação: cartografia da cena, elementos visuais, sonoros, olfativos
etc.”. O público se mistura com a cena, e a acompanha como se fizesse parte dela, de tal
maneira que há um limite muito tênue para distinguir se é apreciador ou personagem da ação,
neste sentido, os espectadores, assim como os atores, são colocados em situação de risco,
visto que se relacionam, locomovem e atuam de acordo com os acontecimentos do aqui-
agora. Desta forma, todas as manifestações e atitudes do público, no espaço, compõem a
dramaturgia e o sentido da obra, ou seja, tanto os espectadores-transeuntes que estão no fluxo
do texto-cidade quanto atores, preenchem as lacunas/arestas que são inerentes a dramaturgia
do espaço.
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Como essa forma de dramaturgia nasce no e do espaço e tempo presente do
acontecimento teatral, ela depende do público que se encontra no local. O deslocamento, os
comentários, e as relações do espectador com ator, espectador com espectador, espectador
com o espaço urbano e espectador consigo mesmo são a própria dramaturgia.
Via de mão dupla: interferências locais e textuais
Das saborosas foi realizado em vários lugares, desde centros urbanos de grandes
cidades, passando por cidades interioranas, até em uma ilha de pescadores. Devido a esta
característica itinerante, que faz jus ao nome do Grupo Teatro que Roda, em cada espetáculo,
as características arquitetônicas, a atmosfera urbana e a população de transeuntes variam
conforme os lugares por onde passa. Apesar de a concepção da obra ser construída a partir
do espaço urbano, tendo como objetivo o teatro como invasão da cidade, o processo de
criação deu-se a partir da observação e vivência no centro de Goiânia, onde fica a sede do
grupo. Como investigação a priori deste espaço, um roteiro básico de ações foi concebido
junto com a movimentação dos atores no local de origem. Porém, ao transitar em outras
cidades, novas investigações vão sendo feitas à medida em que o grupo se apropria de novos
espaços que apresentam novas historicidades, carga semântica, arquitetura, população de
transeuntes e fluxo, e desta forma, o roteiro de ação também se modifica continuamente.
Como argumenta Rebouças, a arquitetura e a historicidade dos locais da representação
alteram a escrita dramatúrgica e cênica dos espetáculos, ou seja, “ela é ampliada ou ajustada
às características do espaço não convencional” (REBOUÇAS, 2009, 19).
Ao se apropriar de paisagens urbanas ou não urbanas, estes grupos que trabalham a
partir da dramaturgia do espaço não convencional levam em consideração a sua arquitetura,
a sua atmosfera e as pessoas que o circundam, havendo uma projeção de novas possibilidades
para as personagens. “Interferências do campo tátil, olfativo e da própria geografia do espaço
colaboram para a ampliação dos discursos” (REBOUÇAS, 2009, p. 58). Assim, as diferentes
localidades são apropriadas através de um processo minucioso do grupo ao chegar em cada
cidade de apresentação. Primeiramente, o grupo faz uma observação analítica em relação às
possibilidades de adaptação cênica e temática do espetáculo. Em centros urbanos, o grupo
procura uma praça onde exista um prédio alto para que Dom Quixote possa descer de rapel,
perto de uma rua onde possa passar uma colheitadeira com as Dulcineias e o carro de polícia
e, também, procura outras arquiteturas que possam dialogar com a ficção, como
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monumentos, bancos de praça etc. Porém muitas vezes este formato não dialoga com o local
de realização, como no caso de uma ilha de pescadores no Timor Leste, em que o grupo se
apresentou em 2009. Com o intuito de manter o tema do espetáculo de forma a dialogar com
a realidade do local, o grupo percebeu que um homem de terno e gravata seria um estrangeiro
naquele espaço, então decidiu que Dom Quixote entraria em cena dentro de um barquinho,
com figurinos baseados nas roupas costumeiras dos pescadores da ilha, fumando palheiro,
mudaria suas falas em relação ao combate as injustiças do lugar, de forma que dialogasse
com o local e se parecesse um morador da ilha. A maioria das cenas aconteceram na
praia.Desta forma o grupo recriou todo o roteiro de ações de maneira que dialogassem com
aquele universo. Por mais que houvesse uma tentativa de manter o tema, a carga semântica
e o discurso se transformam completamente, porém dialogam de outra forma com a realidade
daquela comunidade.
Como já foi mencionado, essa forma de espetáculo chamada de intervenção urbana
e/ou teatro de invasão, segundo André Carreira, traz um elemento de extrema importância,
a improvisação, pois, apesar de ter um roteiro-base, os atores jogam o tempo todo com a rua
que está em movimento e, desta forma, é imprevisível saber o que e como o público vai se
relacionar, assim como quando passará um carro pela rua etc. Então, os atores podem até
fazer um reconhecimento prévio do local, sua carga energética, semântica, histórica etc...,
mas a poesia no espaço só acontece no aqui-agora, é neste momento que os corpos e o espaço
realmente se manifestam em dramaturgia. Por exemplo, numa das apresentações do grupo
estava acontecendo um comício político, interferência de extrema importância, na qual os
atores têm que jogar o universo ficcional de Dom Quixote com a realidade que acontece no
aqui-agora do local, transformando significativamente o discurso. Então, dependendo dos
locais por onde o grupo passa, a recepção do espetáculo é, em maior escala, alterado. Se,
segundo Rebouças, os temas abordados nos espetáculos acabam ganhando outras
possibilidades de leitura em função da historicidade do espaço, em Das saborosas, podemos
falar em múltiplas possibilidades in continuum.
Considerações finais
Vimos então que, o grupo se apropria das cidades e de tudo o que é inerente aos
locais onde acontece o evento como vetores que irão alterar o roteiro de ação. Desta forma,
sua passagem é constituída dentro de uma realidade existente, havendo a aproximação entre
arte e vida, pois ao invadir a cidade tudo o que se encontra no local é considerado matéria
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para a criação: a cidade é dramaturgia porque estabelece condições de produção de sentido
em cena. Perecebe-se então que a arte é criada a partir da sociabilidade e das interações
propostas pela cidade, que podemos falar por analogia que, são as arestas do texto aberto da
cidade. Ao tomar a cidade como texto, esse teatro invasor rompe com a lógica da rua e os
atores desorganizam seu fluxo construindo lugares relacionais e revelando contradições na
ordem do establishment. Essas questões podem ser vistas como metáfora do tema ficção e
realidade no texto de Cervantes, como crítica as contradições que permeiam o sistema
capitalista de consumo. E refletindo sobre processos de apropriações, romance e cidade,
poderíamos de certa forma, dizer que o processo de apropriação dos textos da cidade e do
romance é uma via de mão dupla, pois tanto o romance é referência para construção do
espetáculo, quanto os textos cidades são referências a dialogar com o romance.
Referências
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2009.
CARREIRA, A. Dramaturgia do espaço urbano e o teatro de invasão. Reflexões sobre a
cena. (Orgs) S. Diab Maluf e R. Bigi de Aquino. Maceió: EDUFAL, Salvador: EDUFBA,
2005.
CLÜVER, C. Estudos interartes: introdução crítica. In: BUESCU, H. C.; FERREIRA, J. D;
GUSMÃO, M. (orgs.). Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada.
Lisboa: Dom Quixote, 2001, p. 333-362.
COHEN, R. Performance como Linguagem. 2 ed. – São Paulo: Perspectiva, 2004.
GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PAVIS, P. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo,
Perpectiva, 2005.
REBOUÇAS, E. A dramaturgia e a encenação no espaço não-convencional. São Paulo:
Ed. UNESP, 2009.
GRUPO TEATRO QUE RODA, Vídeo do espetáculo Das saborosas aventuras de Dom
Quixote de la mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter
sido. Grupo Teatro que Roda.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
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SUMÁRIO
DENISE STOKLOS – O DRAMATURGO PENSADOR E A MÍMESIS DA
PRODUÇÃO1
Pedro Leites Junior (UNIOESTE)2
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)3
RESUMO: Tendo em vista as profundas transformações do gênero dramático no século XX e a crescente
necessidade e/ou preocupação de estudiosos e artistas de se pensar o teatro a partir de “novas” propostas
estéticas, que dialoguem com os anseios do sujeito inserido no contexto moderno, tecnocrático e de
determinantes socioculturais de base capitalista, este trabalho objetiva discutir o “teatro essencial” idealizado
e posto em prática por Denise Stoklos tomando por enfoque o papel da artista enquanto dramaturga e pensadora
da arte/teatro, assim como a relação que se pode verificar entre sua obra e aquilo que Luiz Costa Lima (2000,
p. 286, 2003, p. 179) denomina mímesis da produção.
PALAVRAS-CHAVE: Mímesis; Dramaturgia; Teatro essencial.
Introdução
Ao tratar do papel do dramaturgo enquanto pensador e buscar compreender como se
dá a dialética proposta por Lima (2000, p. 286, 2003, p. 179) entre uma mímesis da
representação e uma mímesis da produção – conforme sistematizaremos adiante – e tendo
em vista o projeto estético de Denise Stoklos de um “teatro essencial”, é oportuno partimos
das palavras de Eric Bentley (2001) quando este versa sobre a questão do lugar e propósito
do drama no cenário moderno, movido pelos imperativos do capital e carente de sujeitos que
pensam o mundo.
‘Uma peça’, como disse Oscar Wilde, ‘é uma forma pessoal e individual de
expressão, tanto quanto um poema ou um quadro’. Donde se conclui que um
dramaturgo precisa possuir algo dentro de si para expressar. Nossos escritores
comerciais são vazios. Podemos afirmar que dificilmente poderiam ser
considerados alguém. O dramaturgo imaginativo é alguém (BENTLEY, 2001, p.
41-42, grifos do autor).
1 O presente texto apresenta parte dos resultados da pesquisa de Mestrado do autor, desenvolvida sob orientação
da profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves. Uma versão mais extensa do estudo foi divulgada recentemente na
revista Todas as Letras, v. 15, n. 2, 2013. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras (área de concentração em Linguagem e Sociedade) e
Professor Assistente do curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) – Cascavel
– PR – Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP) e professora Associada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) –
Cascavel – PR – Brasil. E-mail: [email protected].
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Bentley4 parece partir de uma premissa básica: o teatro comercial e o teatro enquanto
expressão de arte são manifestações simbólicas e culturais distintas, ou melhor, com
características estéticas e propósitos sociais díspares, ainda que ambos devam ou possam ser
igualmente compreendidos enquanto pertencentes a uma mesma linguagem –
teatral/dramatúrgica – e que suas fronteiras não sejam estanques ou exclusivas.
Todavia, tem-se que, como sujeito que pensa o mundo, propõe a arte e a partir dela
atinge e dialoga com o público – visto como outro sujeito que pensa – o dramaturgo no papel
de pensador – ao mesmo tempo artista e intelectual, no sentido amplo do termo – opõe-se ao
dramaturgo como produtor do entretenimento, que tem uma função social, dir-se-ia, mais
técnica, pragmática, de promover no público o deleite, o prazer, efêmero e esvaziado de
caráter reflexivo.
Stoklos como dramaturgo-pensador
Por sua razão de ser, a obra de entretenimento se completa em si, ao fechar do pano,
ao passo que a expressão da arte reverbera-se no indivíduo, modifica-o e instiga-o à
construção de sentidos sobre o mundo; enfim, a um dramaturgo que é alguém está arrolado
um público que é ou caminha para ser alguém. Poder-se-ia dizer que este é mesmo o mote
para a proposição de Denise Stoklos de um teatro essencial, baseado na necessidade/angústia
do sujeito/dramaturgo/pensador, enquanto alguém, expressar ou trocar com um outro alguém
– posto no lugar de público/platéia/leitor – determinado conteúdo estético-simbólico que
promova a reflexão, a autorreflexão.
Nessa linha de proposição, Stoklos (2001) buscará no conceito grego de catarse –
segundo seu sentido mais profundo de purificação do espírito – o contraste entre um teatro
significativo para o indivíduo, que modifica o sujeito na medida em que promove uma
indagação interior, um autoquestionamento que atinge as camadas profundas de sua
condição humana, e um teatro do entretenimento do público, que pressupõe “mediocridade
e narcisismo, dois casos de pseudo-auto-satisfações inerentemente contrárias à ideologia
libertária da arte” (STOKLOS, 2001, p. 14):
Conta a história que os gregos entendiam o teatro como um elemento curativo da
alma, em doenças como a falta de compaixão que é tratável, mas provoca grandes
4 Deve-se mencionar que a obra de Eric Bentley data, em sua primeira edição, de 1946; é evidente, todavia,
que suas considerações, ainda que tenham por ponto de partida o teatro de então, permanecem pertinentes se
aplicadas à arte dramatúrgica dos decênios posteriores.
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dores e gera perversões inclusive sociais. [...] O público entrava em contato direto
com o que era comum à natureza interior e investigava-se. Os espetáculos
vivificavam, portanto, a grandeza de cada um (STOKLOS, 2001, p. 13).
Stoklos, frente um cenário em que o teatro é maciçamente o campo do
entretenimento, propõe um “teatro essencial”, que se revela como rota de fuga libertária para
o artista. Bentley (2001, p. 39) chega a falar de um teatro morto quando trata dos caminhos
percorridos pela dramaturgia moderna, mas afirma também que é justamente quando há
“uma calmaria”, quando há um esvaziamento do sentido na produção dramatúrgica, que
conseguimos manter o distanciamento e compreensão necessários para “revisitar-se a
situação”. É nesse caminho, então, que parece seguir Denise Stoklos. E, nesse rumo, em
contraposição ao caráter de passividade do público do teatro do entretenimento, o “teatro
essencial” se erige na relação dialógica e construtiva entre público e performer, sendo que,
para tanto, entende que o aspecto de ficcionalidade deva dar lugar a um teatro “de fricção”:
A essência teatral seria esse processo de clamor à ação do amor, que nos redime,
um chamamento à luta por transformação, por evolução do espírito. Não seria
aplicável, então, ao teatro essencial, a figura de linguagem que se refere a algo não verdadeiro, falso, como ‘é teatro’. Ou, a ideia de que no teatro nada é de verdade,
é ‘de mentirinha’. Num teatro essencial, pelo contrário, tudo é de verdade. Ali não
se cria ficção através de personagens em um enredo, mas se cria ‘fricção’ entre
presenças: a do ator e a do público em atração gravitacional, como gravetos a
produzir fogo. [...] Num teatro de ‘fricção’, o trabalho é fundamentado no ator. O
espetáculo só ‘existe’ se o público ‘entra’ no palco e, ‘através’ do ator, o público
é quem se constrói, propõe-se e mostra-se a si mesmo (STOKLOS, 2001, p. 13).
Se o público, no teatro essencial, não mais se esconde na passividade do papel de
espectador e abre-se para o diálogo, este diálogo só faz-se verdadeiro se o performer
igualmente revelar-se em toda sua constituição humana. “No teatro essencial não há
personagens. Há ‘persona’, há ‘in-corporamento’ das opções do próprio performer”
(STOKLOS, 2001, p. 5), isto é, o que para o ator do teatro de ficção é uma máscara de um
outro ser – ficcional –, para o performer refere-se a traços do seu próprio ser. O performer,
desta forma, deixa de ser um receptáculo de um outro para ser o “in-corporamento” desse
outro conforme a apropriação que se faz desse outro. Nessa perspectiva, em Des-medeia
(1995), por exemplo, ao passo que o ator representa Medeia, o performer revela o que
Medeia representa nele, performer, autor, dramaturgo, sujeito, de acordo com a leitura que
faz dessa Medeia e do dialogo que estabelece com essa Medeia. Do mesmo modo, em 500
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anos – um fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo5 (1992), o performer in-corpora
as angústias do sujeito latino-americano, angústias estas que fazem parte dele enquanto
indivíduo inserido em tal contexto e que anseia por expressar as tensões que emergem de si
por esta sua condição: não há espaço aqui para “fingimento”, há a necessidade de expressar
emoções que fazem parte do performer verdadeiramente – para ele.
Se em Strindberg essa dialética entre o eu e o(s) outro(s) se manifesta na construção
de seus personagens, como cita Bentley (2001, p. 88), “criados em estágios da civilização
vindos do passado e do presente, farrapos de humanidade, pedaços rasgados de roupas
domingueiras transformadas em trapos – remendados juntos como acontece com a própria
alma humana”, conforme a proposta do teatro essencial, convergindo-se no performer o
personagem e o ator/autor/pensador, o indivíduo multifacetado, fragmentado, corresponde
tanto ao personagem que está presente/materializado no palco, como a Denise Stoklos
enquanto indivíduo – ser humano, mulher, dramaturga, sujeito entre tantos outros bilhões
que andam sobre a terra, que tem suas angústias pessoais, fraquezas, necessidades e anseios
pessoais, etc. – como ao público que nestas encontra um espelho de si, ou, no mais, um
diálogo consigo.
Uma vez que “o performer essencial será sempre político” (STOKLOS, 2001, p. 5),
já que para ele “não importa [...] nada que na finalidade não signifique possibilidade de
convite a questionamento, reflexão, ação e transformação” (STOKLOS, 2001, p. 5), em 500
anos, por meio da desconstrução do “descobrimento”, Stoklos promove uma reflexão crítica
acerca de questões relativas ao discurso histórico hegemônico, à formação da identidade
latino-americana, assim como acerca do lugar do sujeito latino-americano em um cenário
sócio-cultural que se engendra meio milênio após a chegada do “descobridor”:
Diário de bordo. Há 15 bilhões de anos, a grande explosão que originou o Big
Bang, colocou-nos neste magnífico problema de estarmos, cada um de nós,
responsáveis pelo desenvolvimento do espírito da humanidade. [...] Há menos de
500 milhões de anos, o planeta era unido em apenas um grande continente. Há 500
anos, aparece Cristóvão Colombo, e o descobrimento, descobrimento, descobrimento da América. Sobre qual [descobrimento] escreverei na página de
hoje de um diário de bordo? Sobre o Descobrimento da América? Mas se á um
fato longe de basear-se no desenvolvimento do espírito da humanidade? Trata-se
apenas de um negócio muito rendoso, e acima de tudo válido apenas para alguns.
Colombo, Colombo, Colombo representa uma espécie de gnomo, um anão
maléfico que conseguiu fazer essa magia negra, essa feitiçaria, essa macumba de
manter subdesenvolvidos, por 500 anos, quase todos os países que desenvolveram
outros (STOKLOS, 1992, p. 5).
5 Obra doravante referida como “500 anos”.
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Em meio ao tom de manifesto que abre a obra, revisa-se o discurso histórico de
substrato etnocêntrico promovendo, por um lado, a desconstrução da imponência do feito do
Descobrimento – mísera travessia se comparável aos feitos magnânimos do universo ou
imensamente complexos da natureza humana –, e por outro o desvelar do caráter impositivo
e exploratório da atuação europeia sobre as terras e povos situados nesta porção do planeta
entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Em síntese, poder-se-ia afirmar que o trabalho
efetuado aqui por Denise Stoklos é o do destronamento e da inversão de valores; um
chamado à reflexão sobre verdades e crenças “desembarcadas” com Colombo, Cabral,
Américo e tantos outros. Por conseguinte, o questionamento e a autorreflexão nos colocam
no lugar do sujeito latino-americano que, ainda que consciente dos determinantes sócio-
históricos que levaram a sua formação e queira voltar-se contra um substrato ideológico
impositivo pelo veio etnocêntrico, não pode desvencilhar-se das marcas do passado. Nem
autóctone nem europeu, busca seu lugar no mundo. A herança multiforme traz consigo,
assim, a identidade do híbrido. Deste modo, pois, tornam-se também mais flexíveis as noções
de autoria, influência e propriedade cultural, por exemplo.
Estas parecem ser as premissas das quais parte Denise Stoklos em 500 anos, assim
como em Des-medeia, obra na qual a Medeia de Stoklos se conjecturará a partir da
desconstrução do mito da princesa da Cólquida e da figura canônica da feiticeira perversa e
assassina dos filhos:
CORO. O autor grego Eurípides escreveu a primeira peça sobre Medeia há muitos
anos. Medeia nasceu para o teatro em 431 antes de Cristo. Contando
regressivamente os minutos que nos restam até o ano dois mil falta pouco para
completar muito tempo que assistimos a tragédias sobre traições, enquanto traímos
incansavelmente aprimoradamente através dos séculos todas as causas humanas.
No berçário de ventre de Medeia que é este Brasil nossas aspirações são cesarianas
carpideiras que choram a possível reafirmação da morte. Nos ganchos do açougue
Brasil balançam os nossos sonhos traídos. As paixões estão penduradas por um fio
de aço. No ladrilho branco do chão do açougue desenham-se coágulos de amor com o sangue que quer voltar às carnes. Que pinguem em semente de vida, que
brotem revolução. Portanto nesse momento interrompemos a nossa transmissão.
Nossa transmissão do mito se desconstruirá. Que todo esse fogo apaixonado de
Medeia seja nosso impulso para a frente e não para trás. Alterar os verbos. Para
enfim a massa amar, não para massacrar e fim (STOKLOS, 1995, p. 26).
Ao fim e ao cabo, esta Medeia é já antagônica àquela tomada como referente; uma
des-Medeia, como anuncia o título, com base no prefixo latino que indica “separação, ação
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contrária”6, ou então uma anti-Medeia, conforme o prefixo grego que traz o sentido de
“oposição, ação contrária”7. Com efeito, a “ação contrária” inclusa no sentido assimilado
por ambos os prefixos indica esse movimento de necessária tomada de um rumo adverso do
anterior. Contudo, ao passo que uma anti-Medeia acusaria o enfrentamento entre os dois
referentes, uma des-Medeia alude ao abandono, à abdicação em favor da tomada de um outro
– “novo” – caminho. Se a ação contrária é o ato da negação, uma anti-Medeia acrescentaria
ao antagonismo o signo do enfrentamento, que significa dizer necessidade de apagamento,
destruição do outro. Ao revés, uma des-Medeia atua no sentido da desconstrução que, a partir
da necessidade de re-construção, admite a possibilidade de permanência desta Medeia
desconstruída, ainda que revertida, invertida ou remodelada, na “nova” Medeia.
O mito, pois, é resgatado intertextualmente para ser desconstruído, fragmentado e
reconstruído segundo novas significações. Se conforme a perspectiva grega politeísta o mito
engendra-se como denotação do real, no contexto contemporâneo, conforme suas releituras
e sua permanência na memória coletiva, fabuloso, é tomado como ficção, como metáfora da
realidade. Na obra de Stoklos, todavia, assumindo o caráter metafórico e sendo erigido de
acordo com novas molduras narrativas, o mito fabuloso é tomado como metáfora, metáfora
do modo como a sociedade ocidental se relacionou com as questões que formam o conteúdo
narrativo do mito, tais como a traição, a violência, e as manifestações do caráter feminino.
Há, desta forma, a convocação ao autoquestionamento. Metáfora da metáfora,
representação da representação, o mímema, a partir da indicação do mito como referente a
ser desconstruído, dirige o público/leitor a questões essenciais que se referem não só à
narrativa, mas ao modo como essa narrativa foi assimilada, à(s) resposta(s) que foi(ram)
dada(s) a ele. Essas respostas, pois, também passam pelo processo da desconstrução, que é,
em última análise, a desconstrução – reflexiva – do próprio sujeito (coletivo) que as operou.
Stoklos e a mímesis da produção
Para Lima, é necessário distinguir as obras quanto ao fundo de semelhanças
(homiosis)8 sobre o qual opera a mímesis; nesse sentido há uma mímesis da produção e
mímesis da representação (2000, p. 286, 2003, p. 179): As obras que refletem uma mímesis
6 (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 85). 7 (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 87). 8 (LIMA, 2000, p. 57).
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da representação seriam aquelas obras que atenderiam, de certo modo, aos horizontes de
expectativas do leitor, por exemplo: mantêm a perspectiva do tratamento do tema na obra
derivada de outra, guardam semelhanças com relação ao gênero, estrutura, perfil de
personagens, sentidos aproximados, enfim, aquilo que o leitor/público/plateia/observador
espera ver, ler ou contemplar em um mímema. Por outro lado, as obras que refletem a
mímesis da produção seriam aquelas que mesmo partindo do modelo o subvertem de tal
modo que rompem com os paradigmas da forma e do conteúdo, fazendo aparecer novas
leituras para o tema, novas possibilidades semânticas, simbólicas e estéticas, destoam da
série, rompem com os horizontes de expectativas dos
leitores/produtores/plateias/observadores. “Em consequência, o papel do sujeito se torna
mais mediatizado na mímesis da produção” (LIMA, 2000, p. 286). Nessa perspectiva, na
mímesis da produção, a imagem produzida pelo artista/escritor/dramaturgo abre outra cena
para a "verdade" contida na obra modelo, que incita leitor/plateia/observador a pensar. Nesse
sentido, existem as obras de representação e as obras de produção, estas últimas rompem
com a automatização, apresentam uma racionalidade fraturada, só produzida e ao mesmo
tempo lida por um sujeito fraturado (fratura na história).
[O autor/sujeito fraturado] nos dá a oportunidade de verificar o entrelaçamento
ente a produção da obra – como ela não apenas seleciona aspectos da realidade
mas cria algo que nela de antemão não se encontrava [...] – e a representação que
provoca. Representação [...] que, por seu caráter de efeito, não é automática quanto
à obra produzida. Assim, a recusa da palavra exortada para uns provocará asco,
para outros será apenas intrigante, para outros ainda vista como marca de um lugar
infernal etc. Se pensássemos que a representação-efeito é automática, estaríamos
mantendo uma das consequências, do ponto de vista da leitura, da concepção tradicional do sujeito: à sua centralidade expressiva corresponderia uma
interpretação correta. É o contrário o que se diz: a produção apenas começa na
obra; a representação que ela suscitará manterá seu caráter produtivo, portanto
potencialmente divergente (LIMA, 2000, p. 276-277, grifos do autor).
Corresponde à mímesis da produção, então, um “sujeito fraturado”9:
Se o [mímema] não se restringe a exprimir o sujeito, não deixa por isso de conter uma posição do sujeito. Como essa posição se constitui senão a partir da
apresentação (produção), a partir da qual se fala o que se fala? Essa posição não é
fixa, como se daria caso se tratasse de um sujeito centrado em si mesmo [que existe
enquanto substância], que então sempre exprimiria sua interioridade. Fraturado, o
sujeito é móvel e se mostra exatamente pela posição que assume. [...] Por sua
9 Conceituado por Luiz Costa Lima com base na oposição a Descartes efetuada a partir de Kant: “O sujeito
kantiano é apenas [...] condição formal, não reveladora de uma substância, despojando-se pois da suficiência
de que se revestia o sujeito cartesiano. [...] Sua passagem para o sujeito concreto e real [coloca-o] no limiar da
dicotomia entre entendimento e razão. [...] A unidade do sujeito kantiano implica, portanto, não só uma maior
complexidade senão alternativas antagônicas. Ou seja, fraturas” (LIMA, 2000, p. 104-105).
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mobilidade, o sujeito fraturado é aquele capaz de ser visto a ocupar posições
diversas no interior da sociedade (LIMA, 2000, p. 274-277).
O sujeito fraturado, pois, é aquele capaz de se multifacetar sendo em cada máscara
não a reprodução de um outro, mas sim o desvelar de uma parte de si, que ora assume. É
nesse sentido, então, que o mesmo sujeito/performer pode, sem “fingir”, ser Medeia, ser um
dramaturgo que pensa o teatro, ser um sujeito latino-americano revoltado com Colombo, ser
mulher, filha, irmã sendo um em todos ao passo que é todos em um, sem necessariamente
revelar-se em todas as suas facetas a um só momento.
Por conseguinte, “a possibilidade de uma nova posição do sujeito supõe a saída de
si; não em favor de um ‘pensamento de fora’, mas, como vimos no último Foucault, em prol
de um pensamento que se supunha na fronteira. [...] O sujeito fraturado é não só um sujeito
que não unifica e comanda suas representações senão que é visto no exercício de uma dupla
função: apresenta e recebe, produz e suplementa” (LIMA, 2000, p. 284-285).
Considerações finais
Mímesis da produção operada por um sujeito fraturado, cabe afirmar, nessa linha de
reflexão, que a obra de Denise Stoklos traz ao lado de um metafórico retrato do humano e
do social uma proposta para o humano e para o social. O enfrentamento é, pois, aos moldes
de Stoklos, uma proposição de um novo mundo, um recomeço do mundo, uma nova gênese
do humano e do social; e essa nova gênese só é possível a partir da desconstrução reflexiva
de um mundo passado, que é, necessariamente, a matéria prima para que se possa, em
verdade, “remendar os trapos”, como diria Bentley (2001, p. 88), para que se possa “re-
ajuntar” os referentes e significantes alocando novos sentidos e significações.
Com efeito, o lugar próprio – ou entre-lugar, como diria Silviano Santiago (2000, p.
9)10 – deste re-ajuntamento, da proposição de “novos” paradigmas, é à margem dos centros
produtores da intelligentia moderna, como nos indica Eduardo Coutinho (2003). É nesse
sentido, por conseguinte, que Denise Stoklos, representante do “escritor latino-americano”
de que nos fala Santiago,
10 “O escritor latino-americano [vive] entre a assimilação do modelo original, isto é, ente o amor e o respeito
pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue”
(SANTIAGO, 2000, p. 23). “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao
código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar
aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropofágico da
literatura latino-americana” (SANTIAGO, 2000, p. 26).
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brinca com os signos de um outro escritor, de uma obra [ou com os signos de
outros escritores e de outras obras, que, por meios da intertextualidade, operaram
modulações, também eles, nos signos do escritor e da obra primeiros]. As palavras
do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus
olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma
experiência sensual com o signo estrangeiro (SANTIAGO, 2000, p. 21).
A fascinação, com o mito, com o Diário, e a ânsia por com eles dialogar, agencia a
re-criação, que por si só significa re-elaborar sentidos11. Essa fascinação, todavia, pode ser
assimilada e encaminhada segundo o filtro da necessidade de moldar a obra tomada de
referência – ou os signos dela tomados – de maneira a subvertê-la, como nos aponta Jenny
(1979). O re-ajuntamento, pois, não vem sem a quebra ou inversão de hierarquias, estratégia
decorrente do direcionamento ideológico do intelectual que procura seu espaço discursivo
dentro de um contexto onde impera o etnocentrismo. A imagem produzida por Denise
Stoklos inaugura, então, outra cena para a "verdade", para a “realidade” contida no modelo,
que incita o público/leitor a pensar, refletir:
Se a “imitação” é, classicamente, o correlato das representações sociais e se estas
mostram ao indivíduo o meio a que está ligado, então a mímesis supõe algo antes
de si a que se amolda, de que é um análogo, algo que não é a realidade, mas uma
concepção da realidade. Este algo antes permanece em vigor mesmo quando o
produto mimético valoriza o oposto do que seria destacável segundo os valores
então dominantes. [...] Quando [...] a mímesis parte da destruição daquele
substrato, radicaliza seu trabalho no sentido de despojar-se ao máximo dos valores
sociais e da maneira como eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade [...]. E isso equivale a dizer que o ato mimético já não pode ser
interpretado como o correlato a uma visão anteriormente estabelecida da realidade
(LIMA, 2003, p. 180-181).
Por conseguinte,
rua de mão dupla, a mímesis não só tira do mundo mas lhe entrega algo que ele
não tinha. Que substancialmente continuará não tendo mas que, nem por isso,
deixará de incorporar. Ao fazer ver doutra maneira, ela reconhece a existência do
que ela não depende; ao mesmo tempo, provoca o conhecimento do que, sem ela,
não seria possível de se obter (LIMA, 2000, p. 328).
Conforme Luiz Costa Lima, pois, o mímema que não mais se prende na cópia, mas
sim ancora-se no modelo para propor uma “nova” realidade, provoca “o alargamento do
real”, já que, “se [...] o real é uma das formas do possível, a mímesis da produção consiste
em fazer o apenas possível transitar para o real” (2003, p. 181). É nesse sentido, então, que
11 “A citação mais literal já é, em certa medida, uma paródia. A simples retirada a transforma, a escolha na qual
eu a insiro, seu recorte, as diminuições que opero em seu interior, as quais podem substituir a gramática original
por uma outra e, naturalmente, a maneira como eu a abordo, como ela é tomada em meu comentário” (BUTOR,
1968, p. 18).
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a proposição de Stoklos agencia no público/leitor o despertar para uma forma de existência,
para uma realidade que não é só possível enquanto utopia, abstração imaginativa de um
mundo ideal, mas como um “real” que habita na força do sentimento do amor, isto é, o amor
justifica a crença de que esse mundo possível deva ser tomado como real desde que essa
crença seja partilhada pelo público/leitor: “só quem pode escrever essa Des-medeia é você”
(STOKLOS, 1995, p. 32).
Referências
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2001.
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de Janeiro: Nova fronteira, 2001.
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2000.
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio
de Janeiro: Rocco, 2000.
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2001.
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______. 500 Anos – um faz para Cristóvão Colombo. São Paulo: Denise Stoklos Produções
Artísticas, 1992.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
DOMAR A MEGERA, ESSA É A QUESTÃO: METALINGUAGENS E JOGOS DE
PODER/SEDUÇÃO EM SHAKESPEARE E EM DÁ-ME UM BEIJO DE SIDNEY
Climene de Moraes Favero (Uniandrade)1
RESUMO:O presente artigo visa apresentar no filme Dá-me um beijo (1953), de George Sidney, uma
transposição midiática realizada a partir de dois textos-fonte, A megera domada, de William Shakespeare, e o
backstage musical homônimo da Broadway, de Cole Porter. As fronteiras fluídas entre arte e vida,
problematizadas por meio do artifício de molduras entrelaçadas, são analisadas, tomando como referência as
músicas cantadas dentro e fora de cena. Mostra-se, ainda, que os jogos de poder e sedução entre pares, do texto
shakespeariano, são transformados em triângulos amorosos em Dá-me um beijo, refletindo a mudança das
mentalidades no contexto da década de 1950, época em que o filme musical é ambientado. Essa temática faz
parte de minha dissertação de mestrado (Domar a megera, essa é a questão: metalinguagens e jogos de poder/sedução em Shakespeare e nos filmes de Zeffirelli e Sidney), cuja pesquisa propõe a revisão de alguns
textos narrativos e dramáticos sobre possíveis textos-fonte em Shakespeare e nas filmagens, relacionando-os
com aspectos formais ou temáticos desenvolvidos em A megera domada (1592).
Palavras-chave: Shakespeare; Gênero; Metateatralidade; Adaptação fílmica.
Introdução
As estratégias de releitura, atualização e incorporação de vários textos em um texto
novo tornaram-se elementos principais do processo de construtividade textual na
contemporaneidade. Nesse artigo serão investigadas as linguagens utilizadas por George
Sidney e Cole Porter, que atualizam a obra do dramaturgo Shakespeare, resgatando seu
caráter popular e aproximando-a do espectador de então. Algumas letras das canções
apresentadas no filme são relevantes quanto à atualização e popularização da obra
shakespeariana, já que estabelece um diálogo, de forma irônica, com padrões de
comportamento da década de 50, a exemplo de Shakespeare em sua época. Os pressupostos
teóricos de críticos de cinema como Lawson-Peebles (1996) e Jane Feuer (1993) servirão de
norte para explorar especificidades, como fronteiras fluídas entre arte, vida e molduras
entrelaçadas, no filme Dá-me um beijo, de George Sidney.
1 Mestre em Teoria Literária, Centro Universitário Campos de Andrade, [email protected]
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Cruzamento de fronteiras entre a arte e vida PETRUCCIO [...] Come on, and kiss me, Kate. (SHAKESPEARE, 2010, p. 304)
A frase anterior, dita por Petrucchio, depois de ter ganhado a aposta feita com
Hortênsio e Lucentio de que Katherina seria a esposa mais obediente, serviu de mote ao
título do musical da Broadway, Kiss Me, Kate (1948), de Cole Porter, adaptado para a versão
cinematográfica homônima em 1953. A filmagem feita pelos estúdios da Metro Goldwyn
Mayer foi produzida por Jack Cummings, e dirigida por George Sidney e tem como enredo
principal a história de A megera domada (1590 – 1592), de Shakespeare.
Dá-me um beijo (1953) é um backstage musical dentro de um filme, subgênero do
teatro musical em que as fronteiras entre arte e vida se cruzam. Essa modalidade de teatro
musical coloca à mostra as dificuldades e rivalidades de um grupo de atores engajados na
montagem de uma versão musical baseada na peça A megera domada, de Shakespeare.
Nesse processo, são evidenciados romances fora de cena e outras complexidades do convívio
humano nos bastidores e camarins e as especificidades de construção da cena, como seleção
de atores para interpretar os diversos papéis, ensaios, marcações cênicas, preparação das
músicas etc. são flagradas.
O filme se apresenta através dos números musicais cantados dentro e fora de cena,
no palco e no backstage. A versão cinematográfica recuperou catorze músicas criadas para
o musical da Broadway por Cole Porter.
As músicas inseridas no filme se dividem em intradiegéticas e extradiegéticas. As
que recriam a peça de Shakespeare e acontecem no palco do Ford Theatre, em Baltimore
são: We Open in Venice (Estreamos em Veneza); Tom,Dick or Harry; I've Come to Wive It
Wealthily in Padua (Vim para casar ricamente em Pádua); I Hate Men (Odeio os homens);
Were Thine That Special Face (Que especial era teu rosto); Where Is the Life That Late I
Led? (Onde está a vida que eu tinha); Kiss Me, Kate (Dá-me um beijo).
E as canções interpretadas no backstage, cujas cenas acontecem nos bastidores da
montagem, camarins, terraços e pátios do teatro, etc. são: So in Love (Tão apaixonados);
Too Darn Hot (Está quente demais); Why Can't You Behave?(Por que não pode se
comportar?); Wunderbar (Maravilhoso); Always True to You in My Fashion (Sempre fui
fiel a você a minha maneira); Brush Up Your Shakespeare (Melhore seu Shakespeare).
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Nessa parte, as fronteiras entre arte e vida se entrecruzam em Dá-me um beijo mostrando
como o teatro traz a possibilidade de superar na arte as paixões que, muitas vezes, não
encontram vazão na vida normal, parecendo ser o que constitui o fundamento da criação
estética.
O filme que apresenta as diferentes realidades dos atores, dentro e fora de cena,
também, provoca a catarse de público que o assiste:
Eis por que a percepção da arte também exige criação, porque para essa percepção
não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento que dominou o
autor não basta entender da estrutura da própria obra: é necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar a sua catarse, e só então o efeito
da arte se manifestará em sua plenitude. (VYGOTSKI, 1999, p. 314)
Todos estariam envolvidos pela arte de representar, os atores que se desdobram entre
os planos da encenação e seus romances e o público que os assiste. Vigotski argumenta que
as emoções fora de nós realizam-se por força de um sentimento social objetivado, levado
para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tomaram
instrumento da sociedade. Consistiria em
[...] uma técnica social do sentimento, a qual incorpora ao ciclo da vida social os
aspectos mais Íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o
sentimento não se toma social, mas, ao contrário, toma-se pessoal: quando cada
um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar
de continuar social. (VYGOTSKI, 1999, p. 315)
Dessa forma todo o publico é levado a se identificar com as cenas interpretadas pelos
atores. O processo de identificação é pessoal, mas todos acabam por vivenciar a catarse
sugerida. Esse estado identificação aproxima as fronteiras entre a arte e a vida. Da mesma
forma, no backstge musical essas fronteiras se entrelaçam entre o palco e a vida dos atores.
Assim como na peça de Shakespeare, o filme apresenta estratégias metateatrais,
mostrando personagens com consciência dramática e que fazem reflexões sobre a
representação e a ilusão dramática. Podemos concebê-lo com duas molduras: a interna, ou
seja, da peça dentro da peça, marcada pela encenação de A megera domada, e a moldura
externa, caracterizada pelo backstage musical dentro do filme, que apresenta o processo de
montagem do espetáculo tanto no que diz respeito aos recursos tecnológicos, como das
relações pessoais que ocorrem entre os atores.
Jane Feuer (1993) argumenta que em um backstage musical a estrela do espetáculo
é o próprio espetáculo, o qual põe a nu o fazer artístico, revelando quais são os recursos da
magia teatral e mostrando o desempenho artístico com uma rotina: “A filmagem dos
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bastidores do teatro pode representar apenas mais uma visão interessante da apresentação,
ainda assim revela a mecânica das tomadas cinematográficas em si. Muitas vezes a tomada
de cena nas coxias é subjetiva, na qual um dos personagens observa outro, entretanto essa
visão acaba por
desmistificar a ilusão teatral” (p. 42).
Durante todo o filme é evidenciada a quebra de ilusão dramática ao se mostrar como
se monta o musical ou nas tomadas de cena de ensaios (Fig. 1), das coxias e bastidores (Fig.
2), da plateia que assiste ao musical, desdobrando metalinguisticamente a cena que assiste à
cena (Fig. 3).
Fig. 1 - Ensaio do final da peça (15’30”) Fig. 2 - Troca de cenário à mostra (1:29’05”)
Nesse contexto, o público assume a narratividade do espetáculo. Como se a nossa
subjetividade fosse colocada dentro do universo narrativo do filme. Feuer (1993, p. 26 – 27)
ressalta que esse público interno aplaudindo ao musical dentro do filme é uma compensação
por uma vivacidade perdida, presente no teatro, que a linguagem do cinema instaura. Como
se o público do filme fosse uma plateia ao vivo, tornando a película também viva. Por sua
vez, a plateia real que assiste ao filme no cinema identifica-se com ela e suas reações, tendo
a impressão de que também faz parte do filme. Seriam as caixinhas chinesas citadas por
Hodgdon (2010) “Nesse teatro de ilusões a estrutura da peça poderia ser comparada a uma
série de caixas chinesas, aninhando-se umas nas outras [...]” (p. 4). Com isso, ocorre uma
identidade com a tela mais significativa, de forma a obter uma relação direta do público, ou
possibilitar uma resposta ao filme.
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Fig. 3 Plateia dentro do filme (36’39”)
A interatividade e quebra da ilusão dramática, evidenciando o backstage musical
ocorre desde a primeira cena do filme. Fred Graham, ator Howard Keel, que encenará
Petrucchio, toma em suas mãos o script com as partituras de Dá-me um beijo, de autoria de
Cole Porter (Fig. 4). Na sequência, chega o compositor Cole Porter (Fig. 5), encarnado por
Ron Randel, e começam a conversar sobre o musical que irão montar.
Fig 4 - Script com partitura de Cole Porter (1’25”) Fig. 5 - Chegada do compositor (1’4”)
A chegada de Lilli Vanessi, a atriz Kathryn Grayson, que interpretará Katherina é
aguardada. Lilli e Fred são divorciados e se encontram por ocasião da montagem do musical.
Desde a primeira cena é mostrado ao público o entrelaçamento entre arte e vida, pois o casal
de atores vivia em briga, assim como Katherina e Petrucchio, personagens que irão
representar.
Nesse jogo metateatral, como nos coloca Patrice Pavis (2003) a problemática é
centrada no teatro que "fala", portanto, de si mesmo, se "autorepresenta". É o teatro dentro
do teatro. Não sendo necessário que os elementos teatrais formem uma peça interna contida
na primeira. “Basta que a realidade pintada apareça como já teatralizada: será o caso de peças
onde a metáfora da vida como teatro constitui o tema principal” (p. 240).
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No caso ocorrem os dois, o teatro é auto-representado, sendo, ao mesmo tempo, como
já mencionado anteriormente, um bakstage musical dentro de um filme. O musical é a
adaptação da peça de Shakespeare, sendo todos os preparativos e contingências da vida dos
atores com suas brigas, amores e dissabores um espelho de Katherina e Petrucchio e Bianca
com seus pretendentes.
Há uma constante alternância de cenas no palco e fora dele, nos bastidores, coxias e
até mesmo na casa dos atores, sendo o foco principal o processo de montagem.
A adaptação como processo é retomada em tom irreverente pelo diretor George
Sidney. Na época da criação do filme Dá-me um beijo as peças de Shakespeare eram
montadas de maneira formal e aristocráticas. Sidney ironiza esse fato dentro do filme de
maneira crítica ao quebrar com estereótipos. Podemos citar como exemplo, ainda na primeira
cena de Dá-me um beijo, a personagem Fred Graham parando na frente de um retrato pintado
a óleo com a figura de Hamlet (Fig. 6), parodiando o gesto da personagem da pintura.
Segundo Robert Lawson-Peebles (1996, p. 96), esse quadro retrata o personagem
Hamlet de Laurence Olivier, vivido sob sua própria direção no cinema, em 1948. George
Sidney faz uma referência crítica bem humorada às montagens formais do bardo ao incluí-
lo em sua cena. Tanto Fred como Cole Porter param em frente ao retrato. Fred imita o gesto
de Hamlet, que apoia sua cabeça, pensativamente, em sua mão. Nesse momento em que
planejam montar a comédia shakesperiana, agem como se precisassem da aprovação de
Olivier representado na pintura.
Fig. 6 - Quadro de Olivier como Hamlet (2’30”)
O retrato “conversa” com a cena. Parece assistir ao número musical de Lois Lane, a
atriz que interpretará Bianca. Segundo Robert Lawson-Peebles (1996, p. 98), essa cena
marca a irreverência do diretor George Sidney ao montar um musical de Shakespeare
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escolhendo para isso uma linguagem informal, em que a atriz sobe na mesa e, ousada e
sensualmente, dança sob o olhar pensativo de Olivier/Hamlet (Fig. 7).
Fig. 7 - Ousado número musical de Lois Lane (10’43”)
Ann Miller causava furor na época por sua sensualidade e graciosidade. Sua postura
indica uma leitura diferenciada do texto de Shakespeare, quebrando, conforme mencionado,
os estereótipos das encenações tradicionais.
De acordo com Lawson-Peebles (1996, p. 98), o filme desde a primeira cena contrasta com
os padrões de comportamento americanos e ingleses. Fred, um ator americano, possui um
mordomo chamado Paul, uma referência irônica ao modo de vida aristocrático dos ingleses.
Lois, ao sapatear para seduzir Fred, lança olhares também sedutores para a câmera,
simulando um striptease ao lançar jóias, luvas e lenços para Fred e para o espectador. Esse
recurso é recorrentemente usado, já que a película era feita em 3-D, dando a impressão que
os objetos saltavam para fora da cena. Essas ações eram realizadas como se fossem
observadas, pensativamente, por Olivier/Hamlet do retrato mencionado.
A pintura a óleo no apartamento de Fred Graham reproduz a cadeira e os detalhes da
caracterização de Hamlet no filme de Olivier, incluindo sua loira cabeleira no papel que
atuou e dirigiu, sendo a representação no quadro uma imagem de uma das cenas do filme
(Fig. 8).
Fig. 8 – Hamlet/Olivier – o pensador
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A imagem retratada pode ser considerada uma referência à escultura O pensador (Le
Penseur – 1880) de Auguste Rodin, caracterizando o que Irina Rajewski (2005. p. 11)
denomina referência intermidiática. A própria inserção do quadro de Laurence Olivier no
filme também pode ser considerada uma referência intermidiática.
A maioria das canções intradiegétcas são composições baseadas no texto do bardo,
ou seja, transposições intersemióticas de uma mídia verbal para a música. Em We Open in
Venice, (Abrimos em Veneza), a metateatralidade é gerada quando uma trupe de atores, Lili,
Fred, Lois e Bill, apresentam-se ao público do teatro como os atores que farão o musical que
irão assistir (Fig. 9). Verificamos uma moldura dentro da outra, ou seja, a trupe de atores
anunciando o musical que irão apresentar. O desdobramento metateatral ocorre no filme ao
contar a reduplicação de histórias de vida, ou apresentação de uma história dentro de outra
no palco.
Fig. 9 - Estreamos em Veneza (36’58”)
Essa cena de abertura mostra as cidades por onde passaram que, coincidentemente,
são os lugares onde o enredo da peça é ambientado, o que podemos verificar a partir da letra
da música no filme:
Estreamos em Veneza, nossa próxima peça em Verona,
em seguida em Cremona
Muitos bares em Cremona, nosso próximo salto é Parma, [...]
E Mântua, Pádua e, em seguida, vamos abrir novamente. Onde?2
Os atores se autodenominam um grupo de atores mambembes e não produzidos por
L. B. Mayer (Lois Burt Mayer), conhecido por lançar estrelas hollywoodianas pela Metro-
Goldwyn-Mayer (MGM) por mais de vinte e cinco anos. Como todos eles estavam sendo
lançados por L. B. Mayer ou pelos estúdios da MGM, pode-se considerar essas interpolações
como uma brincadeira metateatral.
2 Disponível em: http://www.stlyrics.com/lyrics/kissmekate/weopeninvenice.htm. Acesso em 10/10/2012
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Na sequência, Fred assume o papel do narrador para contar os rudimentos do enredo
de A megera domada (Fig. 10). Tudo marcado com um tom de extrema ironia e exagero na
apresentação dos personagens que ora congelam em cena, ora contracenam com o narrador.
As marcações dos atores, sob diferentes focos de luz a pino, evidenciam os recursos cênicos
propositadamente colocados à mostra. Conforme ressalta Jane Feuer (1993, p. 47), o público
toma consciência que irá assistir a uma montagem. Os recursos hollywoodianos, geralmente
ocultados são propositadamente flagrados.
Fig. 10 - Estreamos em Veneza (36’58”)
O estudo das músicas é relevante quanto à atualização e popularização de textos
clássicos, já que conversa, de forma irônica com padrões de comportamento da década de
50, a exemplo de Shakespeare em sua época (esse estudo poderá ser encontrado em
pormenor em minha dissertação de mestrado: Domar a megera, essa é a questão:
metalinguagens e jogos de poder/sedução em Shakespeare e nos filmes de Zeffirelli e
Sidney: disponível no site http://www.uniandrade.br/mestrado/defesa2013.php)
A canção interpretada por Petrucchio, por exemplo, Where Is The Life That Late I
Led? (Onde está a vida que eu tinha?), lembrando de sua vida de solteiro, é inspirada na fala
do Petrucchio de Shakespeare, no momento em que chega à sua casa após o casamento com
Katherina:
PETRUCCHIO
Safados, vão buscar a minha ceia.
(Saem alguns criados.)
(canta) Cadê a vida que eu levava?
Onde estão as...
Bem-vinda, Kate; pode sentar. Comida! (SHAKESPEARE, 1998, p. 98-99, minha ênfase)
Não sabemos o que pode ser sugerido em relação às reticências no trecho de
Shakespeare: “(canta) Cadê a vida que eu levava? Onde estão as...” Mas parecem ter servido
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de deixa a Cole Porter na suposição de que diria o nome de várias mulheres, com as quais
teria namorado:
Na querida Milano, onde está você, Momo?
Ainda está vendendo fotos das escrituras no Duomo?
E, Carolina, onde está você, Lina?
Ainda vendendo sua pizza nas ruas de Taormina?
E, em Firenze, onde está você, Alice,
Ainda está bonita em seu estilo itty-bitty Pitti Palace?
E a doce Lucrecia, tão jovem e alegre? Que escandolosas aventuras nas ruínas de Pompéia!3
Ele canta essa música em tom operístico, comentando a tragédia de não mais poder
vê-las. A relação com a ópera, provavelmente, atribui-se ao fato de suas namoradas viverem
na Itália, cenário em que viveu seus nostálgicos romances.
Adaptada à década de 50, a canção enaltece a virilidade masculina apresentando
Petrucchio como um grande conquistador, saudoso de suas antigas namoradas, mas
consciente de sua nova condição de casado. O que não deixa de caracterizar o
comportamento dos homens nos dias de hoje, ao contarem orgulhosamente suas conquistas.
Considerações finais
O estudo das músicas mostra que na adaptação de George Sidney há paralelismos
que geram relações que vão além dos da trama shakespeariana. Isso acontece ao analisarmos
as molduras entre arte e vida que se entrelaçam ao comporem o backstage musical. Nele, os
paralelismos assumem uma triangulação em que as atrizes que interpretam Bianca e
Katherina são ambas desejadas pelo ator Fred, que interpreta Petrucchio. Da mesma forma
a atriz Lilli, que atua como Katherina, namora um cowboy texano e Fred/Petrucchio. Lois
Lane, a atriz que encena Bianca, namora Bill, que atua como Lucentio, além de manter uma
relação com seu diretor Fred/Petrucchio.
Em A megera domada, de Shakespeare, o paralelismo que ocorre é entre as tramas
de Lucentio/Bianca e Petrucchio/Katherina. A primeira parece assumir um caráter de
protagonista em parte da peça, servindo a relação conflituosa de Petrucchio e Katherina
como um contraponto burlesco ao amor de Lucentio e Bianca. Batista Minola, pai de Bianca
e Katherina, concorda em dar a mão de sua filha mais nova em casamento, assim que
aparecesse um pretendente para Katherina. Enquanto Bianca era cortejada por três
3 Disponível em: http://letras.mus.br/cole-porter/1601315/ Acesso em 1010/2012
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pretendentes, Kate era cobiçada por Petrucchio que se gabava ser o único homem capaz de
domar o gênio da megera.
George Sidney, além de ampliar essas relações, também traz a público o
questionamento de valores vigentes, pois não ousou somente ao apresentar um Shakespeare
numa linguagem informal, mas também ao desafiar padrões de comportamento em uma
época, na qual a sociedade americana primava pela mulher dona de casa, que vivia a mística
feminina (FRIEDAN, 1971, p. 20), ao se realizar como esposa e mãe. A canção: Always
True to You in My Fashion (Sempre fui fiel a você à minha maneira), por exemplo, marca o
diálogo de Lois e Bill em relação aos acordos que deveriam manter, diante dos interesses e
infidelidades que viviam:
Mas eu sou sempre fiel a você, querido, à minha maneira
Sim, eu sou sempre fiel a você, querido, à minha maneira.
Fui convidada para fazer uma refeição Por um magnata grande em aço,
Se a refeição inclui um acordo, eu possa aceitar.4
Sidney reduplica as quebras de ilusão e realidade de Shakespeare, entrelaçando a
variedade caleidoscópica da arte e da vida. Sendo assim, podemos dizer que o teatro de
Shakespeare, retomado pela nova mídia aqui descrita inspira um jogo, no qual todos ganham.
Todos são convidados a participar, conhecer, mover suas peças, brincar e comover-se.
Entender as regras desse jogo e suas estratégias é um processo prazeroso e enriquecedor que
propõe reflexões e questionamentos acerca do pensamento ocidental, além de retratar
mistérios e complexidades da natureza humana.
Referências
A MEGERA domada. Direção de Franco Zeffirelli. EUA: The Burton-Zeffirelli; Columbia
Pictures, 1967. 1 dvd (122 min); son.
DÁ-ME um beijo. Direção de George Sidney. EUA: Jack Cummings; M-G-M, 1953. 1 dvd
(110 min); son.
FRIEDAN, B. A mística feminina. Tradução de Áurea Weissenberg. Petrópolis: Vozes, 1971.
4 Disponível em:
<http://www.stlyrics.com/songs/e/ellafitzgerald1351/imalwaystruetoyouinmyfashion636423.htm>
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RAJEWSKY, I. O. Intermediality, Intertextuality and Remediation: A Literary
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SUMÁRIO
INFÂNCIA E SONHOS: O TESTEMUNHO DE EXPERIÊNCIAS ONÍRICAS
COMO DRAMATURGIA ESPONTÂNEA
Felipe Fernandes Freitas (UnB)1
Winny Trindade (UnB)2
Clarice da Silva Costa (UnB)3
Resumo: A produção artística a partir da identidade pessoal vem ganhando força no teatro, através do
biodrama, a partir dos anos 2000. Na educação, o incentivo à autoidentificação ocorre desde as séries iniciais
em que os alunos relatam histórias pessoais, como experiências vividas nas férias ou a própria árvore
genealógica. Portanto, a autorreferência perpassa desde histórias profundas a relatos de uma simples
experiência, e não se limita a um acontecimento fático, mas também incluem desejos. Esse trabalho foi realizado por estudantes pesquisadores de Artes Cênicas da UnB, vinculados ao PIBID, na Escola Parque 304
Norte (Brasília/DF) com alunos entre 7 e 8 anos. Foram extraídos depoimentos de sonhos noturnos pessoais
que, ao serem narrados, estimulam na criança o devaneio poético e configuram uma dramaturgia espontânea.
Palavras-Chave: Biodramaturgia; Pedagogia do Teatro; Tecnologia.
Introdução
A fim de contextualizar o procedimento metodológico realizado compete discorrer
sobre o modelo da escola onde foi desenvolvido o trabalho, sob atuação de alunos
pesquisadores do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID. A
Escola Parque (E.P.) foi pensada em 1947 pelo professor Anísio Teixeira com o objetivo de
desenvolver projetos a partir da integração interdisciplinar, sendo a primeira unidade do país
fundada em 1950 em Salvador/BA (PEREIRA; COUTINHO; RODRIGUES, 2011). No
decorrer das décadas de funcionamento, a formatação das Escolas Parques brasilienses (que
hoje atuam nas áreas de Teatro, Educação Física, Música e Artes Plásticas) vêm se
adequando às realidades locais, atendendo cerca de 4/5 escolas de ensino regular, inclusive,
de comunidades mais distantes. As turmas perpassam por uma tríade de professores, de três
disciplinas diferentes, possuem cerca de 20 (vinte) alunos que frequentam a Escola Parque
uma vez por semana no mesmo turno das aulas na escola regular.
1 Bolsista PIBID, graduando- Universidade de Brasília ([email protected]). 2 Bolsista PIBID, graduanda – Universidade de Brasília ([email protected]). 3 Professora Coordenadora do PIBID – Universidade de Brasília ([email protected]).
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Na educação, o incentivo à autoidentificação ocorre desde as séries iniciais em que
os alunos relatam histórias pessoais como experiências vividas nas férias ou a própria árvore
genealógica. Portanto, a autorreferência perpassa desde histórias profundas a relatos de uma
simples experiência, e não se limita a um acontecimento fático, mas também incluem
projeções, sonhos no âmbito da pessoalidade e, principalmente, desejos.
O aluno que simplesmente decora um texto clássico e o espetáculo que se preocupa
apenas com a produção não refletem valores educacionais, se o sujeito da representação não foi mobilizado para uma ação espontânea. ( KOUDELA, 1984)
Óscar Cornago (2005) apresenta a dramaturgia confessional como “biodrama”, uma
linguagem usada como estratégia cênica no cinema, na dança, no teatro e até na literatura,
em que o corpo é convertido em sujeito histórico. Aqui se vê um estilo de oralidade ou de
escrita onde se preza um afastamento do fictício, aproximando-se do real. Noutros contextos,
como no cinema, a produção artística a partir da identidade pessoal tem se inserido desde a
metade do século XX, vindo a ganhar força no teatro latino-americano, através do biodrama,
a partir dos anos 2000, principalmente no teatro argentino (CORNAGO, 2009). Trata-se de
composições artísticas calcadas em fatos verídicos, deixando de lado tipos e formas caricatas
artificialmente construídas. Se não se considera ou se reconhece a comunicação íntima no
teatro é porque “continuamos vendo o teatro como algo isolado do resto da paisagem
cultural, mediática ou artística” e, assim, Cornago (2009) destaca a possibilidade de tornar a
confissão, dramaturgia em potencial, em objeto artístico na linguagem teatral.
Como procedimento metodológico, foi realizada a captação, por meio de suporte
tecnológico, de depoimentos pessoais (ou testemunhos) por meio de narrativas extraídas a
partir de jogos teatrais, estimulando a produção oral de poesias oníricas. Como método de
suporte pedagógico, as crianças foram instruídas a produzir desenhos para ilustrar seus
sonhos noturnos mais marcantes e, assim, auxiliá-los a compreender as diferenças entre as
imagens oníricas e a vida cotidiana real. Esses depoimentos, que são referências de sonhos
noturnos pessoais, ao serem narrados, atiçam na criança a memória e o devaneio poético que,
uma vez que é estimulada a oralidade, unida a um repertório de imagens de certezas
movediças e fantasiosas. Tanto Freud como Bachelard4 concordam ser um estado psíquico
criativo que nos liberta da função do real e que a felicidade e a leveza são indispensáveis
4 “O devaneio é então um pouco da matéria noturna esquecida na claridade do dia” (BACHELARD, 2009:
10)
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sendo, também, um estado natural de fantasia da criança. Aqui, o devaneio é citado por
parecer5 que as crianças, ao serem entrevistadas, mesclavam suas narrativas oníricas com
outras imagens; é como se estivessem acrescentando suas fantasias, desejos e experiências
cotidianas, ou seja, devaneando sobre o devaneio. Freud diz:
Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica,
foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma
forma que os devaneios - as fantasias que todos conhecemos tão bem. [grifo nosso]
(FREUD, 1907/1908)
E ainda:
Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor
- ênfase talvez desconcertante - deriva-se basicamente da suposição de que a obra
literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o
brincar infantil. (FREUD, 1907/1908)
Depois da pesquisa teórica pronta, iniciou-se a aplicação prática, pensando sempre
na inserção dessa criança nesse meio lúdico, a idade, a metodologia que melhor poderia ser
desenvolvida com crianças entre 7 e 8 anos de idade. De início aplicou-se jogos teatrais,
alguns já conhecidos pelos alunos, com o objetivo de concentrar e preparar as crianças para
relatarem e receberem os relatos umas das outras; em seguida houve uma conversa sobre
sonhos e perguntas como "alguém aqui lembra o que sonhou na noite passada?", "vocês tem
sonhos que se repetem?", "há alguma coisa que vocês nunca sonharam, mas desejam
sonhar?" foram levantadas como forma de manter esse desenvolvimento da capacidade
oratória e como forma de fazer uma diagnose da turma.
Finalizada a conversa, passou-se para a criação de desenhos, sendo o modo mais
simples para que as ideias saiam da forma subjetiva e incerta, se tornando-se “palpável” aos
olhos. A proposta de incentivar o desenvolvimento artístico da criança implica na
compreensão da relação entre imagem e pensamento (KOUDELA, 1984). É através do
desenho que observa-se o desenvolvimento intelectual, explorando o sensório-motor e
avalia-se a capacidade de criação símbolos e identificação de signos que a criança possui.
5 Desde a captação dos depoimentos (vídeo), nos perguntávamos se algumas crianças de fato estavam sendo fiéis à narrativa onírica. Curiosamente, ao ser mostrarmos os vídeos na reunião intermediária da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística - ANPOLL – na Universidade
Estadual de Londrina/PR, fomos questionados se, com base em pequenos gestos que delatam uma “invenção”, se as crianças não estariam extrapolando e a narrativa, o que nos levou a pensar se não estaria devaneando sobre o devaneio noturno.
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A caracterização serviu como meio de introduzir o aluno no universo lúdico que os
sonhos podem levar as pessoas e exerceu, também, a função de proteção ao aluno – já que
tudo seria documentado em vídeo – e ao aluno, que se sentiu protegido ao se mascarar,
livrando-se, inclusive, da vergonha de se expor para uma câmera. Cabe ressaltar que grande
parte das crianças respondeu a perguntas, sendo poucas as que contavam seus sonhos num
só lapso narrativo.
Como resultado temos uma série de vídeos e desenhos produzidos a partir de relatos
de sonhos. As crianças passaram a compreender o que é sonho noturno, a diferi-lo da
realidade, e a valorizar esse rico e subjetivo material, que é frequentemente ignorado. Os
alunos, ainda, mostraram uma aptidão nata a fantasiar sobre a própria historia que, conforme
relatado em parágrafo anterior, inventam narrativas que se conectam aos próprios
depoimentos. Percebeu-se, também, que, sob o olhar de Patrícia Silveira, os depoimentos,
quando narrados aos colegas, tornam-se dramaturgias espontâneas de improvisação por
estarem vinculados à oralidade imediata, ou seja, uma enunciação oral que ao mesmo tempo
em que não é intermediada pela escrita, se atrela ao contexto fazendo “prevalecer o aspecto
circunstancial da fala sem escrita, sua ligação com o contexto existencial (real ou ficcional)
do falante” (SILVEIRA, 2012). Ainda sobre os vídeos, a partir de uma perspectiva que Óscar
Cornago traça sobre o cinema,
a câmera converte o falante em testemunha de sua própria vida. Ela é convidada a
desenvolver um relato em primeira pessoa, que não é somente uma primeira
pessoa gramatical, mas também física. Frente à webcam, uma câmera próxima,
quase familiar, o falante se vê transformado em sua própria intimidade em um eu-
atuo cuja verdade resulta construída em forma de relato, não somente verbal, mas
também físico, o relato da experiência quando esta ainda não foi contada, a
experiência que fica escrita no corpo, em uma atitude, um modo de atuar, de
mover-se, de olhar o outro, de estar frente à câmera. Esses traços físicos são os
que convertem a testemunha em uma jóia preciosa do discurso contemporâneo
sobre a verdade pessoal ou coletiva, a verdade da história. (CORNAGO, 2009)
Considerações Finais
Concluímos que as produções que resultam de narrativas pessoais são melhor
assimiladas pelas crianças que passam a ter uma relação de empatia com os resultados. A
empatia surge de dois vieses: da sensação de pertencimento da criança que conta e da
identificação das semelhanças vivenciadas. Os sonhos, segundo Karl Gustav Jung (1977),
revelam uma camada mais profunda do inconsciente que, por sua vez, é coletiva, universal,
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ou seja, são idênticas em todos os seres humanos; possuem alta similaridade, revelando mitos
pertencentes ao inconsciente coletivo.
Em termos técnicos concluiu-se, também, que o depoimento pode ser uma confissão
ou mesmo um testemunho sendo que o primeiro termo surge a partir do cristianismo e
carrega o sentimento de culpa. Portanto, preferiu-se utilizar a “testemunho” como uma
variável de designação do depoimento, pois não objetivam um cunho terapêutico, mas
artístico. Também é um meio de avaliação do desenvolvimento da intelectual e cognitivo da
criança.
Referências
BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CORNAGO, Óscar. Biodrama: Sobre el Teatro de la Vida y la Vida del Teatro. Revista
FALL (Latin American Theatre Review), 2005: 5-28.
FREUD, S. Escritores Criativos e Devaneio. [S.l.: s.n.], 1908/1907. Disponível em
<http://quebracorpo.blogspot.com.br/2010/04/escritores-criativos-e-devaneio-1908.html>.
Acesso em 02 nov. 2013.
JUNG, Karl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. 4ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1984.
ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas, SP:
Papirus Editora, 1998.
PEREIRA, Eva Waisros; COUTINHO, Laura Maria; RODRIGUES, Maria Alexandra
(Orgs.) Nas Asas de Brasília: Memórias de uma Utopia Educativa (1956-1964).
SILVEIRA, Patrícia dos Santos. O Texto que Nasce do Corpo: relações entre escrita e
oralidade na construção do texto teatral. 180 fls. Dissertação (Mestrado em Teatro) –
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Florianópolis, 2012
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SUMÁRIO
L’ILLUSTRE MOLIÈRE: UMA ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO TEATRO
FRANCÊS DO SÉCULO XVII
Joice Rodrigues ZORZI (IBILCE/UNESP)1
Resumo: O espetáculo teatral L’Illustre Molière foi elaborado a partir de uma colagem de cinco peças do
dramaturgo epônimo, selecionadas e unidas em roteiro assinado por Sandra Corveloni, Lara Hassum e Mateus
Monteiro. O presente artigo pretende apresentar a pesquisa de mestrado em andamento, que tem como objetivo
principal analisar a estrutura dramatúrgica desta montagem teatral em busca dos indícios que o marcam como
um elemento fundamental para a construção do fenômeno teatral, com ênfase no processo de adaptação e
atualização estética e temática das obras originais, a saber: Escola de Mulheres, Tartufo, Don Juan, O Burguês
Fidalgo e As Eruditas. Nesse percurso, deverão ser notadas as características das obras francesas do século
XVII e da obra brasileira contemporânea. Espera-se encontrar no(s) texto(s) os elementos da dramaticidade que permitem a encenação, tais como a metalinguagem nas cenas intersticiais, a tradução das obras originais
de Molière e a sua adequação para o contexto brasileiro, a caracterização dos atores e as escolhas estéticas para
a representação das cenas das peças representadas dentro da peça.
Palavras-chave: L’Illustre Molière. Teatro.
Introdução
O presente artigo pretende apresentar as intenções basilares de um projeto de
pesquisa em nível de mestrado, no programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, sob orientação do prof. Dr. Peter James Harris.
A obra a ser pesquisada é o espetáculo teatral L’Illustre Molière, encenada pela
Companhia D’Alma nos anos de 2011, 2012 e 2013 em diversas cidades brasileiras,
notadamente a capital e cidades do interior do estado de São Paulo. Trata-se de uma
montagem de texto inédito, criado pelos roteiristas Sandra Corveloni, Mateus Monteiro e
Lara Hassum. A pesquisa, inicialmente, tem título homônimo a este artigo. Uma das questões
centrais desta pesquisa é verificar como se dá, no interior deste texto teatral, o processo de
adaptação e apropriação da obra do dramaturgo francês.
Na obra brasileira, encontramos cenas de cinco peças do dramaturgo francês, a saber:
L’École des femmes — Escola de Mulheres (1662), Le Tartuffe — Tartufo (1664), Don Juan
(1665), Le Bourgeois Gentilhomme — O Burguês Fidalgo (1670) e Les Femmes Savantes
1 Mestranda do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Universidade Estadual Paulista. Bolsista
CAPES. [email protected]
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— As Eruditas (1672). Estas cenas são entremeadas por uma criação própria dos roteiristas,
que mesclam elementos biográficos de Molière e de sua trupe teatral, a história de suas peças
e do próprio fazer teatral do dramaturgo — ficcionalizados, diga-se. Todos esses elementos
dão um tom metalinguístico à obra, materializado, na construção cênica, pela existência de
um metapalco (Figura 1). Esse metapalco serve, na maior parte do tempo, para a encenação
dos excertos de Molière, e, conjuntamente com efeitos de iluminação, constituem um código
para diferenciar os diferentes momentos da encenação.
Figura 1 — Imagem parcial do palco. Em cena, da esquerda para a direita, os atores Guilherme Sant’Anna, Lara Hassum e Mateus Monteiro, que encenam Escola de Mulheres. Crédito da foto: Bianca Salay.
A ação do espetáculo se passa na França do século XVII, com caracterização e
cenários que remontam a uma estética característica da época. Pelos figurinos, Zé Henrique
de Paula, figurinista do espetáculo, ganhou um prêmio Shell, importante reconhecimento no
segmento teatral brasileiro.
Interpretado pelo ator Guilherme Sant’Anna, também premiado com o Shell 2012
pelo trabalho, Molière é apresentado como dramaturgo, diretor e ator de sua própria
companhia teatral, já no auge da carreira. Entre os ensaios, apresentam-se cenas do cotidiano
de Molière e de sua companhia teatral, como a relação com o administrador La Grange, o
relacionamento amoroso com as atrizes da companhia, aspectos biográficos, como a relação
com o pai, tapeceiro do Rei, a sua infância, a paixão pelo teatro e a repercussão das críticas
à peça Tartufo.
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Desenvolvimento
Entendemos o teatro como uma manifestação artística complexa, que necessita de
diversos suportes, tendo como base a interdisciplinaridade. Há, no fenômeno teatral, uma
sobreposição de linguagens e signos, verbais e não verbais, que colaboram para a construção
da cena dramática. Esta composição possui caracteres que vêm da ordem de uma construção
espetacular e de uma construção textual, que, juntas, compõem cena e texto.
A análise pretende considerar alguns aspectos interdisciplinares da montagem de
L’Illustre Molière, visto que uma análise minuciosa de todos os elementos de um espetáculo
teatral não seria exequível no tempo disponível. Entre estes, destacamos o processo criativo
dos roteiristas: em 29 de junho de 2012 tivemos a oportunidade de gravar uma entrevista
com Sandra Corveloni, diretora de L’Illustre Molière, além de seus parceiros de criação do
roteiro, Mateus Monteiro e Lara Hassum, que também são atores do espetáculo (conforme
Figura 1). Na ocasião, foram levantadas questões a respeito da construção desta obra, em
que foi possível dialogar sobre os procedimentos e escolhas feitos pelos artistas na
composição do texto, bem como das alterações naturais advindas da própria prática teatral,
na inter-relação entre a diretora e os atores, durante os ensaios. Também foram tratadas as
escolhas dos roteiristas acerca da tradução das obras, procedimentos de escolha e recorte das
cenas originais, composição artística dos elementos biográficos que compõem as cenas
intersticiais, escolha das canções das peças, entre outros.
A entrevista foi resultado de um encontro preliminar, realizado em 17 de maio de
2012. Na ocasião, apresentamos o interesse em pesquisar a obra, e falamos sobre a
necessidade de ter acesso ao texto da montagem, bem como sobre a possibilidade de filmar
o espetáculo e conversar com os roteiristas e elenco sobre o processo criativo de composição
do espetáculo. Diante do aceite da diretora Sandra Corveloni, foi cedida uma versão do texto
inédito, além do registro da já citada entrevista e também uma filmagem da peça, realizada
em 28 de junho de 2012.
Todo esse material preliminar irá compor o corpus da pesquisa, que tem como
objetivo averiguar quais são os procedimentos criativos adotados na elaboração da obra
teatral contemporânea L’Illustre Molière, pensando nas estruturas textuais dos textos
originais (de autoria do próprio Molière), em sua tradução e adaptação para o palco
brasileiro, e nas cenas intersticiais que formam o fio narrativo do espetáculo.
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A pesquisa concentra-se no texto do espetáculo, mas não desconsidera ou ignora os
demais elementos presentes da obra. Nosso objetivo primeiro é estudar a estrutura
dramatúrgica da peça teatral contemporânea L’Illustre Molière e sua relação com as obras
originais do dramaturgo francês. Nesse percurso, deverão ser notadas as atualizações
estéticas e temáticas das obras, bem como a pertinência das cenas representadas no contexto
da montagem brasileira.
A intenção primeira era denominar o presente trabalho como “L’Illustre Molière:
uma adaptação brasileira do século XXI do teatro francês do século XVII”, mas
comprometeríamos a eufonia. É imprescindível notar que o espetáculo situa-se neste
contexto teatral brasileiro contemporâneo, que possui diversificadas formas de criação e
apresentação espetacular.
Pretendemos, com a análise da obra L’Illustre Molière, utilizarmo-nos de uma
montagem teatral como um campo fértil de análise para os estudos literários, já que
consideramos o texto teatral como elemento constituinte do fenômeno teatral. Esperamos
que este trabalho possa encontrar e descrever as diversas estruturas textuais dramáticas,
considerando que temos obras de autor canônico, e, assim, poderemos encontrar a
dramaticidade em suas características clássicas, mas também em suas formas mais
contemporâneas, já que o processo criativo dos roteiristas proporcionou a encenação
brasileira nos tempos atuais.
Com a investigação da dramaticidade presente no texto, poderemos responder às
questões concernentes a própria caracterização do texto de teatro e quais são seus elementos
que o inserem como parte constituinte e necessária à encenação teatral. Além disso,
prevemos investigar os processos de metalinguagem nas cenas intersticiais, a tradução
brasileira das obras originais de Molière e sua adequação para o contexto brasileiro, a
caracterização, a composição do cenário e as escolhas estéticas para a representação das
cenas das peças representadas dentro da peça.
Para esse percurso, pretendemos nos concentrar em estudos teóricos basilares da(s)
teoria(s) do teatro, como a Poética, de Aristóteles (1990?), e também a obra Uma Anatomia
do Drama, de Martin Esslin (1977), visto que em ambas as obras uma ampla visão sobre o
tema permite verificações concernentes tanto ao campo literário quanto ao campo da
representação teatral.
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O autor de Uma anatomia do drama (1977) tem tradição no campo teórico teatral:
estudioso acadêmico e professor de teatro, Esslin é notoriamente conhecido por cunhar o
termo e definir o conceito de teatro do absurdo. Sua obra homônima, publicada no Brasil em
1968, é considerada um dos livros mais influentes da década de 1960. Crítico e estudioso do
drama, foi chefe do departamento de radioteatro da BBC e diretor teatral. Esslin (1977)
define drama como uma representação concreta de uma ação à medida que ela efetivamente
se desenrola. O texto é a estrutura fixa do drama e tem a função de mostrar o modo que se
procederá a encenação; serve de meio para operar em diversos níveis da encenação. Seria
possível afirmar que, na estrutura textual, existem indícios que permitem identificar a
operacionalização de outros níveis para além do escrito? Para responder esta pergunta, vale
destacar que:
[...] o drama não é simplesmente uma forma de literatura (muito embora as
palavras usadas em uma peça, ao serem escritas, possam ser tratadas como
literatura). O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento
que reside fora e além das palavras, e que tem que ser visto como ação — ou
representado — para que os conceitos do autor alcancem sua plenitude. (ESSLIN,
1977, p.16, grifo nosso).
A escolha de Martin Esslin como teórico basilar deste trabalho deve-se à sua visão
ampla sobre as definições acerca do fenômeno dramático. O autor dá margem para novas
questões interpretativas do drama, que não o encerram em um conceito fechado e imutável,
além de lançar comentários sobre o valor das teorias:
As definições — e o pensar a respeito de definições — são coisas valiosas e
essenciais, porém jamais devem ser transformadas em absolutos; quando o são,
transformam-se em obstáculos ao desenvolvimento orgânico de novas formas, à
experimentação e à invenção. É precisamente porque uma atividade como o drama
tem delimitações fluidas que ela pode renovar-se continuamente a partir de fontes
que, até aquele momento, haviam sido consideradas como residindo para além de
seus limites. [...] O que é certo é que a arte do drama tem recebido [...] inspirações
e impulsos importantes, e por vezes, de avassaladora significação. (ESSLIN, 1977,
p. 13)
O seu valor, como apoio teórico, reside então no fato de abrir suas definições à análise
e possibilidade de questionamento, bem como o diálogo com outras teorias ou definições
que julgarmos pertinentes ao longo de nossa investigação, já que, para o autor, “as teorias
devem, de tempos em tempos, ser testadas por meio da experiência prática”. (ESSLIN, 1977,
p. 8)
A Poética traz questões tanto sobre a literatura quanto sobre a tragédia, em que esta
se sobrepõe àquela. Ainda temos que considerar as breves proposições de Aristóteles sobre
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a comédia e sobre a obra do poeta trágico, já que sua obra é inaugural nas descrições sobre
o fazer teatral da época.
Faz-se necessário ressaltar que a pesquisa ainda passa por processo de seleção de
outros modelos teóricos e/ou operacionais que poderão colaborar com fundamentação
teórica do trabalho, especialmente obras que compartilhem de uma visão que una texto e
cena. Até o momento, consideramos utilizar também as obras A Linguagem da Encenação
Teatral (Jean-Jacques Roubine), o brasileiro O texto no teatro (Sábato Magaldi); além de A
análise dos espetáculos (Patrice Pavis) e Metateatro (Abel Lionel).
Com a leitura crítica destas obras teóricas (além das demais que virão) pretendemos
reafirmar o papel do texto na construção do fenômeno teatral como seu elemento
constituinte, necessário para a sua completa realização. O lugar de onde partimos, então, é
aquele onde o texto teatral, é, acima de tudo, componente da encenação teatral, já que, nesta
análise, analisaremos também os elementos para além do texto, considerando, assim, o
fenômeno teatral em sua plenitude.
Considerações Finais
Com a verificação de equivalências e modificações nas estruturas textuais,
originárias da análise das obras criadas pelo dramaturgo francês, verificaremos quais e como
os elementos dramáticos (e dramatúrgicos) das obras de Molière ainda se fazem presentes
na versão contemporânea brasileira e quais são os processos de adaptação utilizados pelos
roteiristas. Poderemos então analisar como se dá o processo dramático interno da obra
L’Illustre Molière, através da análise de tensões presentes no espetáculo, como a
representação do século XVII no século XXI, a identidade do autor como sujeito da ação, as
questões metalinguísticas e as relações entre texto e montagem.
Desse modo, buscaremos comparar as obras teatrais em sua manifestação textual,
considerando o texto como a estrutura fixa do drama, que tem a função de mostrar o modo
que se procederá à encenação e que serve de meio para operar em diversos níveis. (ESSLIN,
1977, p. 37-46). Entretanto, para considerarmos o espetáculo teatral em sua plenitude de
encenação, utilizaremos os registros feitos em 28 de junho de 2012, em que poderemos
acessar os demais elementos interdisciplinares já citados: cenário, caracterização, música e
sonoplastia, iluminação, interpretação, contexto histórico, ambientação, estética de
encenação, entre outros componentes necessários à encenação teatral.
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O que se pretende com esta proposta de pesquisa, portanto, é descrever a
dramaticidade presente nos textos do século XVII e como permanece na obra contemporânea
L’Illustre Molière, servindo à encenação desta obra brasileira no século XXI. Com isso, será
possível avaliar qual é o local, na construção espetacular, dessa linguagem dramática nos
dias atuais, já que o texto dramático não pode ser analisado como um texto literário isolado,
em que a encenação pode ser ignorada e considerada elemento menor. Com estas
considerações, esperamos colaborar com a construção do panorama das relações entre texto
e cena, aprofundando nossa pesquisa na delimitação e investigação do local do texto teatral
na encenação teatral brasileira contemporânea e seu papel enquanto criação literária.
Referências
ABEL, L. Metateatro: uma visão nova da forma dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho.
Introdução e notas: Jean Voilquin e Jean Capelle. Estudo introdutório: Goffredo Telles
Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, [1990?].
CORVELONI, S.; MONTEIRO, M.; HASSUM, L. L’Illustre Molière. São Paulo, 2011.
Texto teatral. No prelo.
ESSLIN, M. Uma Anatomia do Drama. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro:
Zahar, 1977.
______. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MAGALDI, S. O texto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. 3ª Ed.
MOLIERE. As Sabichonas / Escola de mulheres. Tradução de Jenny Klabin Segall. São
Paulo: Martins, 1963.
______. Escola de Mulheres. São Paulo: Círculo do Livro, 1974.
______. O Tartufo; Escola de Mulheres; O burguês fidalgo. São Paulo: Abril Cultural,
1980.
______. Tartufo. Tradução: Guilherme Figueiredo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1959.
______. Teatro escolhido. Clássicos Garnier. Prefácio: Robert Jouanny. São Paulo: DIFEL,
1965.
______. Théatre Choisi. Avec Introduction, Bibliographie, Notes, Grammaire, Lexique et
Illustratins documentaires par Ch.-M. Des Granges. 12e édition. Paris: Libraire Hatier, 1947.
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I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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PAVIS, P. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro. São Paulo:
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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
SUMÁRIO
MEMÓRIAS DA CENA PARAIBANA: PRIMEIROS RASCUNHOS
Duílio Pereira da Cunha Lima (UEPB)
Resumo: Partindo da necessidade de escritas da história do teatro brasileiro para além do eixo Rio-São Paulo,
discute-se o desafio de encontrar procedimentos metodológicos adequados que respondam ao desafio de
desenvolver uma pesquisa em artes cênicas envolvendo a relação entre dois campos de atuação: o texto
dramático e a encenação. Compreendendo que a história do teatro de um dado lugar não se limita a uma história
da literatura dramática, nem tampouco na formulação de uma narrativa singular ou uma verdade absoluta,
busca-se compreender como fragmentos de discursos e imagens contidos em jornais, entrevistas, artigos e
registros fotográficos/videográficos podem corroborar para uma primeira reflexão, no âmbito dessa pesquisa,
sobre memórias, perspectivas e identidades na cena paraibana entre os anos de 1975 e 2000.
Palavras-chave: teatro da Paraíba; dramaturgia; encenação.
1. Introdução
Ao voltar o seu foco para o estudo do texto dramático na sua relação com os outros
elementos da linguagem teatral, este texto remete a questões recorrentes na minha prática
profissional, como artista (diretor teatral) e/ou professor de artes cênicas (principalmente
quando leciono as disciplinas de dramaturgia e história do teatro). Duas funções que, mesmo
guardando suas especificidades, se aproximam não apenas por terem as artes cênicas como
área comum, mas por lidarem diretamente com o texto dramático como um dos elementos
de referência, problematização ou alicerce na elaboração do seu ofício.
Sobre o texto dramático é preciso lembrar que as modificações ocorridas no cenário
teatral, desde o final do século XIX e ao longo do século XX, terminaram por redimensionar
o seu estatuto, tanto na construção da cena quanto nas pesquisas que envolvem os campos
da dramaturgia e da historiografia do teatro. Rompe-se com uma concepção textocêntrica,
ainda devedora de uma tradição construída no pós-Renascimento, em que esse texto escrito
para a cena é tratado como elemento hegemônico na criação dos espetáculos e como fonte
documental exclusiva para os estudos no âmbito teatral. Em contrapartida, constrói-se uma
nova relação de forças em que o texto passa a ser compreendido como um dos elementos
cênicos, reconfigurando o papel do dramaturgo e possibilitando, entre outras coisas, o
surgimento da encenação (enquanto arte autônoma) e da figura do encenador/diretor teatral
que passa a ser o responsável pela coordenação das várias funções e elementos do espetáculo.
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Atualmente quando pensamos no papel do encenador/diretor teatral paira a ideia de
que não basta transpor para o palco todas as rubricas e palavras dispostas no texto pelo
dramaturgo (atribuição destinada ao seu antecessor: o ensaiador). Espera-se desse
profissional uma leitura dos elementos e signos presentes no texto dramático/literário. Nesse
sentido, o diretor de teatro deixa de ser um ferrenho guardião do pensamento do dramaturgo
ou um mero marcador de entradas e saídas dos atores, capaz de conduzir a concepção de
cenários e dos demais recursos tecnológicos, para assumir a condição de “pensador ou autor
da cena”, propondo um modo particular de mergulhar no universo poético proposto pelo
autor, muitas vezes criando um novo texto a partir daquele outro, a que se chamará de texto
cênico.
Desse modo, o estudo a que nos propomos perpassa a recente historiografia da
encenação paraibana, que será recuperada (especialmente) a partir da memória de
dramaturgos, encenadores e atores responsáveis pela sua formação/consolidação como
forma de identificar as possíveis concepções de teatro que marcam a relação entre texto e
cena. Para tanto, é necessário tomar a inscrição histórica contraditória do teatro que, por um
lado, considera esse passado em que o estatuto do texto se sobrepunha aos demais elementos
cênicos, e por outro, não negligencia essa transformação cênica moderna/contemporânea
centrada na defesa da criação autônoma a partir de uma leitura particular do texto dramático,
ou mesmo, mais adiante, uma eliminação total do texto (enquanto elemento verbal exclusivo
e previamente escrito por um dramaturgo para, só depois, ser encenado) ou o seu uso como
mero pretexto, capaz de suscitar o conjunto de signos de natureza verbal e não-verbal
acionados pela encenação.
Soma-se a essa problemática inicial, a urgente necessidade de sistematizar aspectos
da história do teatro na Paraíba, haja vista a exiguidade de estudos e publicações específicas
nesse campo, principalmente quando a literatura disponível em que se supõe tratar de uma
história do teatro brasileiro é, quase sempre, por tradição ou por hábito, um estudo centrado
sobre os meios de produção cênica no eixo Rio-São Paulo. Essa produção será importante
como esfera de diálogo/reflexão entre o que aqui se produzia e os espetáculos que aportavam
advindos de outras localidades através de temporadas, projetos de circulação nacional e,
principalmente, da realização de encontros com espaços de formação, intercâmbio e difusão
teatral, tais como o Festival de Inverno de Campina Grande, o Festival Nacional de Artes
(FENART) em João Pessoa, entre outros.
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É preciso ressaltar que mesmo a pesquisa ficando delimitada nos últimos vinte e
cinco anos do século XX, não ambicionamos analisar todas as obras cênico-dramatúrgicas
produzidas nesse período, mas enxergar uma dinâmica geral presente no pensamento desses
artistas/obras capaz de localizar possíveis identidades que caracterizam essa heterogênea
produção teatral paraibana. Não se trata também de construir uma história saudosista,
encerrada no seu próprio tempo: pelo contrário, propomos uma mediação presente/passado
reconhecendo que o objeto teatro não cabe de uma história única e acabada ou, mesmo,
dentro de uma trajetória temporal linear progressiva. Não pretendemos construir uma
“única” história do teatro ou da encenação paraibana porque corroboramos com o
pensamento que ela não exista como fato singular (BRANDÃO, 2006).
2. Anotações para uma história do texto e da cena
As relações de tensão entre dramaturgia e teatro ultrapassam os limites do nosso
tempo e remontam o recente surgimento da noção de encenação dentro da história do teatro,
em meados do século XIX. Roubine (1998) nos ensina que seu aparecimento, enquanto arte
autônoma, está relacionado a uma contextualização histórica propícia, que unia uma recusa
a teorias e fórmulas superadas a condições técnicas que concretizassem esse desejo de
mudança, como por exemplo, a descoberta dos recursos da iluminação elétrica. Nesse
contexto, a função de encenador substitui ou redimensiona a figura do ensaiador, para
assumir o papel de aglutinador dos diversos elementos que compõem a cena teatral,
ultrapassando a idéia de mero articulador que vai, gradativamente, se desenvolvendo até
atingir o status de autor da cena. Ao assumir o posto antes exercido unicamente pelo
dramaturgo, ele passa a ser gerador da unidade, da coesão interna e da dinâmica da realização
cênica. É ele quem determina e mostra os laços que interligam cenários e personagens,
objetos e discursos, luzes e gestos.
Essa modificação de paradigmas dá um sentido global não apenas ao novo formato
de espetáculo, mas a prática do teatro de um modo geral. O desenvolvimento da arte da
encenação vem de encontro a um modelo de teatro que se concentrava sobre o dramaturgo,
mediante o texto, atribuindo-o a função de unificador da cena. Em meados do século XIX,
o mundo ocidental está envolvido com o intitulado textocentrismo, momento em que o texto
dramatúrgico assume um domínio exclusivo sobre os outros elementos componentes do
espetáculo. Neste período, o encenador passa a requerer para si a condição de criador e a
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sugerir que um texto poderia dar margem a diferentes leituras e sentidos. Assim, ao longo
do século passado, percebemos um verdadeiro conflito de poder: de um lado o dramaturgo,
que reclama das alterações em sua obra durante a transposição para o palco e, do outro lado,
o encenador que exige liberdade de criação nessa materialização cênica do texto. Tal fato
não impossibilitou o aparecimento de experiências que pudessem ressaltar um sentido de
cooperação entre estes dois pilares da criação no teatro, dando um novo tratamento e
significado ao texto dramatúrgico. Estas questões não cessaram, permanecendo em
discussão e mutação pelos atuais fazedores teatrais.
Gradativamente, toda essa contextualização histórica terminou favorecendo, por
parte dos artistas e da crítica, uma diferenciação entre escrita dramatúrgica e escrita cênica.
Essa noção de escrita cênica (mesmo quando não havia clareza dessa definição) não
representa necessariamente uma novidade, pois, como nos lembra Williams (2010) e Ramos
(2009), o texto dramático sempre abriga/abrigou em si mesmo uma espécie de encenação
imaginária, uma série de convenções que serão confrontadas com o horizonte de expectativas
do leitor/espectador ou, como prefere Williams, uma estrutura de sentimentos. De modo
presumido, essa escrita do palco sempre esteve presente na criação dos textos dramáticos e
acabava interferindo na realização dos espetáculos. Tais questões definem parte da cena
teatral desenvolvida ao longo do século XX seja para requerer uma independência da
linguagem cênica em relação ao texto dramático, seja para continuar reivindicando uma
centralidade do texto na criação do espetáculo ou para dar margem a novos modelos de
criação compartilhada, principalmente, entre dramaturgos, encenadores e atores.
O século passado reconheceu não apenas a assinatura do encenador, mas também as
criações compartilhadas (seja o modelo de criação coletiva presente no Brasil dos anos
setenta ou a perspectiva de processo colaborativo vigente desde os anos noventa em nossa
cena) e, de modo mais particular, a assinatura do ator. Este agente termina requerendo para
si a possibilidade de escrita dentro da estrutura do espetáculo, o modelo de ator que
reproduz/declama as palavras do autor sob o exclusivo norteamento do encenador vai
passando a conviver com um novo modelo de atuação em que o ator escreve na cena com
sua presença diferida através de ações corporais e vocais que revelam outras camadas de
memória, vivências e escritas dentro da cena. Desenvolvem-se experiências que refletem o
diálogo entre os vários níveis de escrita do espetáculo, tais como a Dramaturgia do ator, a
noção de ator compositor, o rompimento dos limites da categoria de interpretação (o ator
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não precisa ser mais mero intermediário entre o dramaturgo e a plateia) o que desemboca na
experimentação e na defesa por um modelo de ator que não interpreta mas representa. Em
alguns casos, podendo representar até a si mesmo ou sequer representar, rompendo com os
limites da estrutura teatral para estabelecer uma relação livre de jogo/interação entre o seu
corpo e aqueles que compartilham suas experiências na ordem de uma cena performática.
Em terras brasileiras essas tensões/inquietações seguem um curso muito próximo
daquilo que teria ocorrido na Europa, guardando apenas um deslocamento no tempo, pois
essas transformações só aportariam aqui a partir dos anos quarenta do século XX com o
surgimento tardio (COSTA, 1998) das modernas companhias de teatro, a exemplo do Teatro
Brasileiro de Comédia em São Paulo. Essa aproximação com a dinâmica europeia não se dá
casualmente, pois o processo de profissionalização da nossa cena teatral tem seu ponto de
virada com a chegada de diversos diretores de teatro europeus que deixam seus países em
função da Segunda Guerra Mundial. Nesse ponto inicia-se um marco na história do teatro
brasileiro, pois a experiência/vivência que esses profissionais trazem de seus países de
origem na mediação com a realidade cênica local (somado ao desejo dos produtores de
produzir um espetáculo com o padrão de qualidade dos palcos estrangeiros) será
determinante para dar um novo direcionamento não apenas aos espetáculos, mas a uma
dinâmica geral do movimento teatral (aperfeiçoamento de atores, formação de diretores e
demais funções técnicas, aquisição de novas tecnologias cênicas).
Outro movimento importante, nesse mesmo contexto histórico, é a saída de artistas
brasileiros que vão estudar fora do país para experimentar/aprender com outras realidades
cênicas. O retorno desses artistas, somado a nova vivência de teatro moderno que aqui se
desenvolve, será responsável pela renovação da cena brasileira com a formação de novas
companhias, a criação de espaços de formação artística, o surgimento de novos dramaturgos
e diretores preocupados com a representação cênica da realidade nacional, um projeto já
ambicionado desde os áureos tempos do romantismo brasileiro na primeira metade do século
XIX. Mesmo guardando a distância de nossos dias, é desse movimento que veremos surgir
os principais nomes (a exemplo de José Celso Martinez, Antunes Filho, Augusto Boal, Jorge
Andrade, Vianinha, Flávio Aguiar, entre outros) e as principais perspectivas de pensamento
e traços de identidade que caracterizam e influenciam, ainda hoje, grande parte das artes
cênicas brasileira.
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No que tange o desenvolvimento de um moderno teatro paraibano e/ou o
aparecimento de tensões na relação entre dramaturgia e teatro, não saberíamos precisar com
exatidão em que momento se deu essa transformação no âmbito local, devido a quase
inexistência de estudos que apontem esse rumo. O debruçar sobre os poucos livros e estudos
publicados até o presente momento, aponta para algumas semelhanças com a realidade do
eixo Rio-São Paulo (mesmo que não haja aqui registros da criação de companhias
profissionais naqueles moldes) e para um novo deslocamento no tempo, deixando ainda mais
tardia essa vivência de teatro moderno entre nós. E, semelhante ao que aconteceu na
realidade do sudeste do país, o retorno/aprendizado de nossos artistas ao conviver com outras
realidades cênicas também será determinante para lançar novos paradigmas sobre a nossa
produção (VIEIRA, 2011).
Diante desse quadro que reforça a importância do estudo do texto dramático na
relação com os outros meios da criação teatral e, principalmente, reconhecendo a exiguidade
de estudos e pesquisas sobre o teatro paraibano é que defendemos a realização dessa
pesquisa. Sua motivação principal tem o intuito de identificar o processo de formação da
encenação paraibana na mediação com o tempo presente, procurando trazer a tona o
pensamento dos principais artistas envolvidos na construção não apenas de espetáculos, mas
de pensamentos e identidades capazes de revelar as possíveis concepções de teatro que serão
determinantes para estudar os processos de colaboração entre artistas e as tensões entre texto
dramático e texto cênico, no período proposto pela pesquisa.
Tal justificativa se fortalece, ainda mais, na medida em que nos veículos de
comunicação (jornais, revistas, portais de notícias da internet, entre outros atuantes em nosso
Estado) não tínhamos/temos a presença de uma crítica especializada colaborando com o
registro e a reflexão da cena que aqui se produz. Quando muito, resta-nos a
publicação/leitura, nos cadernos de cultura, de releases fornecidos pelos próprios artistas e
grupos teatrais ou, ainda, a divulgação de textos “impressionistas”, revelando muito mais
um critério de gosto e um horizonte de expectativas pessoais de jornalistas que não possuem
uma formação adequada para tal exercício. Em contrapartida, nos últimos anos, é no âmbito
das universidades brasileiras e, particularmente, nos programas de pós-graduação que
enxergamos um aumento quantitativo e qualitativo de estudos e publicações no campo da
dramaturgia e das artes cênicas de um modo geral, contribuindo para reflexão mais crítica
em torno da memória e da produção cultural em nosso país.
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Mesmo assim, como já frisamos anteriormente, grande parte dessas publicações
sobre um suposto teatro brasileiro reduz, muitas vezes, essa cena nacional ao eixo Rio-São
Paulo, como se a produção teatral/artística de um país de dimensões continentais se
resumisse a essas duas cidades, ou mesmo, como se não tivéssemos particularidades em
nossa realização cênica que não justificasse um estudo específico em interação com outras
realidades nacionais. E aqui não se trata de um desmerecimento dessa produção do sudeste,
uma espécie julgamento de valor diante da diversidade cultural brasileira ou a defesa de um
isolamento artístico, mas a urgente necessidade de sistematização e reflexão de realidades
teatrais regionais como a desenvolvida na Paraíba, reconhecendo e dialogando, inclusive,
com os diversos deslocamentos e trânsitos culturais internos e externos entre artistas e suas
obras. Uma característica presente ao longo de nossa história, ainda mais, em nossa realidade
contemporânea sempre lembrada pela presença de uma crescente globalização mundial.
3. Anotações e questões para uma escrita da história
O primeiro desafio que envolve esse trabalho está na busca por procedimentos
metodológicos adequados que respondam ao desafio de desenvolver uma pesquisa em artes
cênicas envolvendo a relação entre dois campos de atuação: o texto dramático e a encenação.
Essa discussão está contemplada numa publicação com textos dos principais pesquisadores
nacionais nessa área (CARREIRA, 2006) que reconhecem se tratar de uma abordagem
relativamente recente, visto que a gradativa redefinição dessas duas dimensões do fazer
teatral corta todo século XX. Mesmo assim, baseados na sua experiência em curso, apontam
alguns rumos que norteiam o nosso encaminhamento.
Nossa proposta se caracteriza como uma pesquisa documental, nunca monumental,
na medida em que nosso objeto central de investigação trata-se de um conjunto de
espetáculos pertencentes a outro período histórico. Mesmo sendo recente e considerando que
alguns espetáculos ainda estão sendo apresentados, eles podem sair de cartaz a qualquer
momento e precisaríamos trabalhar com a sua ausência. Brandão (2006) nos lembra que nas
pesquisas em teatro o objeto não pode ser restaurado em sua integridade monumental, sendo
apenas recuperado através de referências e documentos.
Outro ponto relevante consiste em romper com uma tradição dominante nesses
estudos que insiste em tratar a história do teatro apenas como uma história da literatura
dramática. Rabetti (2006) defende que tal posicionamento não se trata de retirar da peça de
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teatro, de qualquer tempo e espécie, seu caráter documental. Mas, por outro lado, ao longo
do século XX, na medida em que esse texto sofre uma série de interferências e interpretações
impossíveis de se registrar no papel, não cabe mais ao pesquisador tratar o texto literário
dramático como fonte primária exclusiva. E, sendo a arte teatral de natureza efêmera
resistindo apenas ao tempo de duração do espetáculo, é imprescindível recorrer também a
outro tipo de documentação como fotografias, registros videográficos, divulgação em
jornais, estudos críticos.
Nesse sentido, juntamente com o levantamento bibliográfico e a permanente revisão
de literatura em torno dos conceitos que norteiam esse estudo (dramaturgia, encenação,
processos de criação, historiografia do teatro), um dos primeiros passos consiste na pesquisa
de campo junto a arquivos públicos e particulares como forma de levantar uma série de
documentos (textos, fotografias, vídeos, matérias de jornal, entre outros). A organização
desse material resultará num mapeamento dos principais espetáculos produzidos, no período
determinado pela pesquisa, nas cidades de João Pessoa e Campina Grande. Uma análise
primária revelará a recorrência de dados temas sociais, defesa por determinadas estéticas da
cena e os nomes dos artistas mais representativos da produção teatral dessa época, a partir
de critérios como número de espetáculos montados, quantidade de apresentações,
repercussão junto ao público e a crítica, premiação, circulação por outras localidades.
A próxima etapa da pesquisa de campo consiste na entrevista individual e/ou coletiva
com alguns desses dramaturgos, diretores e atores já apontados pelo mapeamento. Essas
entrevistas tem por finalidade a recuperação de referências e memórias desses agentes em
torno do processo de formação e consolidação da encenação paraibana, revelando narrativas
sobre a criação e apresentação das obras teatrais. Também será o momento para confirmar,
cruzar, complementar as informações e dados apontados pela da documentação levantada
anteriormente. A análise de todo material, na relação com os estudos já desenvolvidos nesse
campo da dramaturgia-teatro, é que possibilitará a identificação de possíveis concepções de
teatro presentes na cena local, principalmente no que tange as relações/tensões entre escritura
dramática e escritura cênica.
Segundo Rabetti (2006), seguindo uma orientação dos programas de História Oral, a
entrevista de um agente criador de uma obra cênica (seja ele encenador, dramaturgo ou ator)
não pode ser tratada como única alternativa documental, sendo necessário o cruzamento das
informações recebidas com outras fontes de pesquisa. Além disso, orienta que na
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interlocução entre pesquisador e a fonte (nesse caso, o artista) não deve se sustentar por uma
relação de submissão ou neutralidade, ao acreditar que não pode ferir uma suposta
impermeabilidade da obra de arte ou interferir na inquestionável autoria do criador.
De todo modo é preciso sempre lembrar que a possibilidade de uma sistematização
histórica de um dado tempo ou produção será sempre permeada pelo filtro e interpretação
desse pesquisador. Nesse campo não existe neutralidade
“Quando falamos a respeito da história, quando a estudamos ou pesquisamos, nela estamos
interferindo, na medida em que nosso ato já comporta, de alguma maneira, implicitamente,
atualização e interpretação” (RABETTI, 2006).
4. Primeiras hipóteses para não falar em considerações finais
No âmbito da produção teatral paraibana, a relação entre o texto dramático e o texto
cênico aponta, muito mais, para uma atmosfera de conciliação e complementaridade, na
medida em que grande parte dos diretores também acumula a função de dramaturgo ou
adaptador, sem que isso represente uma fixação ao modelo textocêntrico ou, mesmo, o não
desenvolvimento da linguagem cênica.
A defesa por um teatro, assim chamado, regional, é marcada por uma recorrência de
temáticas ligadas à terra e ao universo rural ou, ainda, por uma apropriação de elementos
ligados às formas da cultura popular nordestina. Tal defesa representa menos uma
permanência de formas “arcaicas” da relação cultura/sociedade e da linguagem cênica, do
que um traço de identidade de nossa produção ou a construção de uma tradição teatral muito
peculiar, dando margem a diversificadas abordagens e a uma riqueza de
representações/ressignificações desses elementos presentes em nosso imaginário e tradições
culturais e artísticas.
Na relação entre o texto dramático e os outros meios de produção percebe-se uma
diversidade de experiências que demonstram uma permanente busca por uma pesquisa de
linguagem cênica entre dramaturgos, diretores/encenadores e atores. Esse sistema de
colaboração entre artistas resulta tanto na formatação de espetáculos quanto na constituição
de procedimentos pedagógicos da criação teatral, fundamentais no processo de formação e
aperfeiçoamento desses profissionais da cena.
5. Referências
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SUMÁRIO
MODULAÇÕES E VARIAÇÕES DO TEMA E DA PERSONAGEM DO
AVARENTO NO CÔMICO
Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE)1
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)2
Resumo: Nosso trabalho consiste no estudo acerca da constituição das personagens avarentas que figuram nas
peças teatrais Aulularia (séc. II a. C.), de Plauto, O avarento (1668), de Molière, e O santo e a porca (1957),
de Ariano Suassuna. Propomos o estudo das representações estéticas de tais personagens a partir do pressuposto
de que o avarento se caracteriza como um dos muitos elementos oriundos do cômico. Nesse sentido, ao
atentarmos para as variações daquele, pretendemos também proceder à compreensão das modulações deste,
entendendo-o sob a perspectiva da ambivalência, tomada de Mikhail Bakhtin (1999). Valemo-nos dos
pressupostos da Literatura Comparada para analisar o diálogo estabelecido entre as três peças que compõem o
corpus da pesquisa.
Palavras-chave: Personagem avarento; Ambivalência cômica; Literatura Comparada.
Introdução
Este texto tem como foco o estudo da constituição das personagens avarentas que
figuram nas peças teatrais Aulularia (séc. II a. C.), de Plauto, O avarento (1668), de Molière,
e O santo e a porca (1957), de Ariano Suassuna. Propomos o estudo das representações
estéticas de tais personagens a partir do pressuposto de que o avarento se caracteriza como
um dos muitos elementos oriundos do cômico. Nesse sentido, ao atentarmos para as
variações daquele, pretendemos também proceder à compreensão das modulações deste,
entendendo-o sob a perspectiva da ambivalência, tomada de Mikhail Bakhtin (1999).
Em todos os textos em questão figura a avareza, vício cômico que já era criticado
desde a comédia clássica, e que, por sua grande representatividade como traço inerente à
comédia, parece-nos merecer estudo pormenorizado. Além disso, a opção por Aulularia, de
1 Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado, da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná (UNIOESTE) – Cascavel/PR. Bolsista Demanda Social/CAPES. Membro do Grupo de
Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens. E-mail: [email protected]. 2 Orientadora. Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista “Júlio
de Mesquita Filho” (UNESP) e professora Associada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE) – Cascavel/PR. Bolsista produtividade em pesquisa - Fundação Araucária (PR). Líder do Grupo
de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens. E-mail:
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Plauto, se deve ao fato de que é uma das mais antigas obras a que se tem acesso de forma
quase integral que traz ao palco a personagem avarenta, atribuindo-lhe destaque. É, também,
a partir do avarento dessa peça plautina que nascem muitos outros, a exemplo daqueles que
se encontram em Molière e Suassuna.
A comédia O avarento, de Molière, além de consistir em peça que dialoga
explicitamente com a anteriormente comentada, é também representativa em decorrência de
seu contexto de produção, que pode inclusive desvendar a que diversas situações esteve
sujeito o cômico ao longo dos tempos. Já a terceira obra do corpus, O santo e a porca,
consiste em produção de Ariano Suassuna que possibilita uma retomada do avarento
plautino, sem abdicar de um retorno à criação de Molière.
O cômico ambivalente
Com vistas às festas carnavalescas da Idade Média, Bakhtin propõe a seguinte
afirmação acerca da natureza do riso:
É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma relação individual
diante de um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro
lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à
própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é
universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no
carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu
aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente:
alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e
afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 1999, p. 10 – grifos
nossos).
Nesse aspecto, ele atenta para três questões que julga essenciais na compreensão do
cômico: a coletividade, a universalidade e a ambivalência. O riso é coletivo porque se
caracteriza como um ato social, isto é, não se ri sozinho, mas em grupo. Ele é também
universal porque não está limitado a determinados grupos de pessoas nem a determinados
temas, todo homem é capaz de rir, porque o riso é natural à condição humana, da mesma
forma que qualquer tema, inclusive aqueles que se presumem mais sérios, é suscetível ao
riso, desde as questões do baixo corporal até as mais filosóficas, como a morte.
Em terceiro lugar, Bakhtin reconhece no riso, além de sua capacidade de
ridicularizar, também o seu caráter regenerador. Assim, ao considerá-lo como elemento
responsável por propiciar concomitantemente a ridicularização e a festividade, o estudioso
reconhece sua ambivalência. A ambivalência cômica consiste, paradoxalmente, na
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capacidade de construir e desconstruir a um só tempo, rebaixar e soerguer, em apontar para
o início que sucede ao fim, o nascimento que decorre da morte, em negar e afirmar por meio
de um riso em que os opostos não se excluem; ao revés, se complementam. A ambivalência
é, pois, a multiplicidade e a negação do dogmatismo, da verdade absoluta e do estático.
Na visão bakhtiniana, essa ambivalência do cômico tende a ser desconsiderada na
contemporaneidade porque “os estudos que lhe foram consagrados incorrem no erro de
modernizá-lo grosseiramente, interpretando-o dentro do espírito da literatura cômica
moderna” (BAKHTIN, 1999, p. 11), o que acaba por limitá-lo como um “humor satírico
negativo” ou “riso alegre destinado unicamente a divertir”, sem profundidade e força.
“Pobre de mim!”
O avarento de Plauto não inaugura o tipo, mas deve ter sido resgatado nos modelos
gregos. Por isso, consoante o entendimento de Aída Costa (1967, p. 29), “Aulularia é, sem
dúvida, fruto de um compromisso entre várias peças da comédia nova, e Euclião uma
personagem com traços de vários avarentos gregos, ou, diríamos melhor, com os traços
universais do avarento”. Possivelmente, sua composição está relacionada ao método que
teria sido empregado por Plauto na construção de suas peças, a contaminatio, e, por esta
razão, ele não pode ser associado exclusivamente a determinado avarento da comédia nova,
da mesma forma que não se pode desvencilhá-lo daqueles tipos presentes na produção grega.
Em Aululária, tudo gira em torno da avareza de Euclião, o que faz com que a obra
seja classificada não apenas como uma comédia de intriga, mas também como uma comédia
de caracteres (COSTA, 1967, p. 27). Seja nos aspectos que lhe consolidam como comédia
de intriga, seja naqueles que a põem no grupo das comédias de caracteres, o fato é que a
avareza de Euclião, o velho, é o elemento que funciona como vício cômico e, como tal,
garante o surgimento do riso na peça.
Se cotejarmos Aulularia com aquilo que Décio de Almeida Prado afirma quanto à
personagem de teatro – que ela se caracteriza a partir de três aspectos: “o que a personagem
revela sobre si mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito” (PRADO, 1985, p.
88) –, veremos que a avareza de Euclião é revelada antes pelas palavras dos outros, entre os
quais merecem destaque os escravos, do que pelos próprios atos e palavras, visto que estes,
embora evidenciem certa avareza, são em determinados aspectos justificáveis.
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A avareza é mais significativa quando o poupar está relacionado àquilo que é de
pouco ou nenhum valor material. Nesse sentido, é cômico que um indivíduo seja avaro a
ponto de recolher as próprias unhas, quando lhe são cortadas, para não desperdiçá-las, como
relata o escravo Estrobilo ao zombar do velho: “Por Hércules, mesmo que lhe pedisses a
Fome êle ta negaria. Outro dia o barbeiro cortou-lhe as unhas; êle recolheu todos os
pedacinhos e os levou consigo” (PLAUTO, 1967, p. 92). Nessa perspectiva dizemos que as
palavras das demais personagens são imprescindíveis para a consolidação de Euclião como
um avarento. Megadoro, o velho pretendente da filha acusa o vício cômico do outro ao
afirmar que “não há ninguém no mundo que a pobreza tenha feito mais avarento que ele”
(PLAUTO, 1967, p. 85). Porém, são os escravos – com destaque para Estrobilo – que
procedem de forma mais incisiva no sentido de marcar a avareza do velho e de ridicularizá-
la, promovendo, assim, um riso alegre e, concomitantemente, regenerador (BAKHTIN,
1999).
Mesmo não se reconhecendo avarento e estando seguro de que age corretamente ao
proteger um tesouro, o que justifica algumas de suas hostilidades, há momentos em que estas
assumem proporções tais que lhe caracterizam, além de homem avarento, também como
rude e insensível, conforme prenunciado nos argumentos da peça. Um exemplo dessa
conduta é a resposta que dá à escrava Estáfila quando esta lhe pergunta por que apanha:
“Para que sejas mesmo infeliz, e para que, má, como és, leves uma vida infeliz, digna de tua
maldade” (PLAUTO, 1967, p. 77).
A hostilidade quanto a tudo e todos que lhe pareçam uma ameaça ao tesouro recém-
encontrado dá origem a comportamentos que assumem dupla função: por um lado, acabam
por intensificar o caráter reprovável e digno de correção do seu vício, a avareza, e, por outro,
garantem a constituição de cenas risíveis, como é o caso dos espancamentos que permeiam
a peça.
O fato de que repita basicamente as mesmas palavras em vários momentos, sob o
temor de haver sido roubado, lhe faz assumir um matiz cômico, o qual é intensificado por
aquilo que os outros comentam. Poder-se-ia afirmar que termo o “pobre”, ao qual Euclião
recorre em vários momentos ao longo da obra, assume conotações distintas. Primeiro, ele se
diz pobre para que os outros não suspeitem de que tem dinheiro e não lhe peçam nada: “[...]
tu és um homem rico, poderoso, enquanto eu sou um homem pobre, paupérrimo” (PLAUTO,
1967, p. 87). Em segundo lugar, se diz pobre porque, ainda que tenha saído dessa condição
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após encontrar o tesouro deixado pelo avô, segue vivendo como antes e se vê na sua condição
anterior, de pobre. Por último, o termo é empregado também nos momentos em que acredita
haver sido descoberto o seu tesouro; então, o uso assume uma conotação ainda mais
importante: acredita-se pobre porque pensa que seu ouro já não lhe pertence e se julga pobre
porque sofre com o temor de ser roubado (pobre como sinônimo de sofredor). Assim, de
uma forma ou de outra, pela repetição, o emprego do termo leva ao riso; e, porque revela o
ridículo daquele que o emprega, assume função cômica.
Além disso, devemos destacar que o texto da peça não chegou de forma integral aos
nossos dias. A versão a que temos acesso hodiernamente conta com um suplemento escrito
por Codrus Vrcevs, no século XV, com base no argumento, em versos citados por um
gramático e nas informações fornecidas pelo prólogo (COSTA, 1967, p. 125). Dessa forma,
não nos deteremos a esse suplemento em nossa análise, mas lembramos as palavras do
argumento II para referir-nos ao final reservado a Euclião: “Licônides devolve-o [o tesouro]
a Euclião, o qual lhe faz presente da mulher, do ouro e do filho” (PLAUTO, 1967, p. 74). A
partir de tal anúncio, podemos perceber que o final planejado por Plauto para seu avarento
consiste na superação do vício cômico.
Entendemos que dar o tesouro ao genro e, assim, livrar-se da avareza é uma ação que
se justifica em grande parte pelo entendimento por parte de Euclião relativamente ao
sofrimento que o vício lhe causava. Em decorrência de sua avareza, ele desconfiava de todos
e não estava tranquilo em momento algum; era tão pobre com o ouro como o seria sem ele.
Em um dos fragmentos da parte final a que se tem acesso, encontramos a seguinte fala: “E
nem de noite nem de dia tinha sossego; agora vou dormir” (PLAUTO, 1967, p. 124).
“Meu rico dinheirinho!”
O avarento, de Molière, consiste em uma das grandes obras que se voltou ao texto
plautino, estabelecendo uma relação de intertextualidade que, se por um lado resgata a obra
primeira, também a transforma, atribuindo-lhe novas cores. Entre essas novas cores,
comecemos por tratar do espaço que assumem os relacionamentos amorosos na peça.
Em Aulularia, havia a relação entre a filha de Euclião e o jovem que abusara dela nas
festas de Ceres, assim como a possibilidade de casamento entre essa filha e Eudoro;
justamente essas relações faziam com que a peça se caracterizasse não apenas como comédia
de caracteres, mas também como comédia de intriga. Ocorre que na peça plautina, a despeito
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da existência dessas relações, o destaque maior estava reservado para a caracterização de
Euclião como um avarento.
Na peça de Molière, há a manutenção do caráter avarento de Harpagão, mas a sua
avareza está associada a uma espécie de antagonismo que não havia em Aulularia.
Explicamo-nos: Harpagão é retratado como aquele cujas atitudes impedem a felicidade dos
próprios filhos, porque acaba por impedir as suas relações amorosas, as quais por seu lado
assumem certo protagonismo, compartilhando o espaço da cena com a avareza.
O fato de que Harpagão seja considerado um homem fora de juízo é a justificativa
para que os filhos não lhe prestem obediência e, mais do que isso, é o que permite a Molière
dispor personagens que mantêm a tradição da comédia grega e da romana, qual seja, a
oposição entre jovens e velhos, sem por outro lado desautorizar a tradição, fortalecida pela
concepção religiosa, da obediência aos pais. Se o avarento não terá a obediência de seus
filhos, não será pela ruptura da tradição da obediência aos pais, mas pelo simples fato de que
ele não se porta como um pai que quer o bem aos seus filhos, como expressa mais uma fala
de Cleanto: “[...] Poder-se-á ver algo de mais cruel do que esta tão rigorosa economia, do
que está estranha mesquinhice em que nos fazem padecer? (MOLIÈRE, 1971, p. 15 – grifos
nossos).
Harpagão não é de uma avareza ridícula como a de Euclião, não é temeroso, mas
mostra-se de uma avareza ferina, cruel, é capaz de fazer padecer a própria prole e dela quer
livrar-se como saberemos mais tarde, na cena 6 do ato 3: “HARPAGÃO – Vejo que vos
admirais por ter filhos tão crescidos; mas conto desfazer-me, em breve, quer de um, quer do
outro” (MOLIÈRE, 1971, P. 67). Tal é a gravidade de seus defeitos que o próprio filho
afirma: “CLEANTO – Que queres que eu faça? Eis a que chegam os jovens, por culpa da
maldita avareza dos pais; e há ainda quem se admire que lhes desejem a morte!” (MOLIÈRE,
1971, p. 38).
Se, como dissemos, Euclião era ao fim e ao cabo um pobre homem, Harpagão não
compartilha desses mesmos traços, pelo contrário, ele caracteriza-se como um homem rico
que explora homens pobres cobrando-lhes juros altíssimos. Isso acentua não o ridículo da
sua avareza, mas a insensibilidade e o caráter reprovável de suas ações.
Podemos dizer que nesse aspecto a caracterização da avareza que encontramos em
Molière já parece em alguma medida influenciada pela concepção cristã, de acordo com a
qual “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no
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reino de Deus”. Harpagão não é um pobre tal qual seu correspondente romano porque os
pobres são retratados na concepção cristã como homens bons, que serão recompensados. Ele
é um rico, e rico contaminado por um pecado capital, que acaba por levar ao sofrimento
aqueles com os quais convive.
Há que destacar, no entanto, que, embora não seja pobre, mas pelo contrário tenha
uma movimentação grande de dinheiro devido aos empréstimos que faz, o avarento de
Molière se aproxima do de Plauto por dizer-se pobre. Do mesmo modo que aquele, este não
admite ter dinheiro:
CLEANTO – Por Deus, meu pai, não tendes razão para vos queixar, pois todos
sabem que tendes bastante com que viver.
HARPAGÃO – O quê? Quem diz isso, mente! Não há nada de mais falso. Foi
algum patife que fez correr esse boato (MOLIÈRE, 1971, p. 22).
Não só ele tem com o que se preocupar, como é justamente com a possibilidade de
que saibam de sua fortuna que mais se preocupa. Este avarento, assim como o outro, entende
que admitir a existência de dinheiro é criar a possibilidade de que queiram roubar-lhe ou
pedir emprestado, enfim, que o conhecimento de que há dinheiro seja um risco à sua
existência.
Quando se vê roubado, ao final da peça, esse avarento não se conforma com a perda
e o único que quer é recuperar o dinheiro. Diante disso, quando seu filho lhe apresenta os
seguintes termos: “Trago novas do vosso dinheiro e venho dizer-vos que, se estais resolvido
a deixar-me casar com Mariana, ser-vos-á devolvido tudo” (MOLIÈRE, 1971, p. 109), o que
o velho faz é ceder à chantagem. Assim como Euricão, em O santo e a porca, se verá
obrigado a escolher entre o material e o espiritual, Harpagão tem de escolher entre o
casamento com Mariana e o seu dinheiro.
Harpagão não lamenta por haver poupado para economizar um dinheiro que foi
roubado, talvez porque ele não tenha se privado de nada para acumular, já que atuava como
usurário e por meio de juros abusivos conseguia multiplicar seus bens. Tampouco ele tem
dúvidas entre Mariana e o dinheiro, porque Mariana era um capricho seu, mas não a amava,
afinal, como disse Flecha “o amor não foi criado para gente como ele” (MOLIÈRE, 1971, p.
33). Por último, no desfecho da peça o avarento de Molière não se arrepende de sua avareza,
não faz doações, tal como Euclião, que entrega ao genro o tesouro recuperado, nem é punido
tão rigidamente como Euricão, que descobre a perda de validade das cédulas acumuladas.
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O que ocorre com Harpagão ao final é que recupera o dinheiro, ainda que para isto
tenha de abrir mão de Mariana, e consegue casar seus filhos com pessoas que lhe oferecem
dote. Isso ocorre porque se descobre que Anselmo, o velho rico com quem Elisa deveria se
casar por imposição do pai, é na verdade o pai de Valério, o amado de Elisa, e de Mariana,
a amada de Cleanto. Assim, satisfazem-se todos, já que os filhos se casam com aqueles que
amam, Anselmo irá reencontrar a esposa, de quem fora separado há muitos anos, e Harpagão,
de posse de seus bens, ainda encontrou um sogro rico para seus filhos, de forma que não
deverá gastar com as festas de casamento.
“Ai a crise, ai a carestia!”
Quando tratamos de Aulularia, dissemos que Euclião tinha uma preocupação muito
grande de dizer-se pobre e induzir os demais a pensarem que não possuía dinheiro algum. O
mesmo ocorre com Harpagão, em O avarento. Não será Euricão o avarento a fugir dessa
“regra”: logo no início da peça, quando, diante da possibilidade de que a carta de Eudoro
traga um pedido de dinheiro emprestado, ele afirma:
EURICÃO – E que ideia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou
espalhando isso! Foi você, Caroba miserável, você que não tem compaixão de um
pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você! CAROBA – Eu? Eu não!
EURICÃO – Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo que
se compra é pela hora da morte!
CAROBA – E o que é que o senhor compra? Me diga mesmo, pelo amor de Deus!
Só falta matar a gente de fome!
EURICÃO – Ai a crise, ai a carestia! E é tudo querendo me roubar! Mas Santo
Antonio me protege! (SUASSUNA, 1979, p. 9-10).
Baseando nossa análise nas considerações bergsonianas, queremos alertar ainda, com
base no trecho supracitado, para a repetição da seguinte frase: “Ai a crise, ai a carestia!”.
Adotando as palavras de Bergson relativamente à repetição de expressões, teremos que “a
repetição de uma expressão não é risível por si mesma. Ela só nos causa riso porque
simboliza certo jogo especial de elementos morais” (BERGSON, 1980, p. 43). Assim, na
repetição de Euricão, podemos encontrar a queixa, a qual, por seu lado, atua como indício
do caráter avarento do velho.
Apenas no título da obra – O santo e a porca –, em que a porca e o santo são ligados
por uma conjunção aditiva, é que há uma união entre tais elementos. Nos restantes episódios,
ainda que estejam postos lado a lado, Euricão sente que deve escolher entre um e outro, por
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isso a recorrência da conjunção alternativa “ou”, que indica a exclusão de um dos elementos.
Essa desarmonia entre o dinheiro, bem material, e o santo, o espiritual, acaba por evidenciar
traços da cultura cristã, em que se prega que os pobres e humilhados serão recompensados e
que os últimos é que serão os primeiros.
O fato de que se veja dividido entre o santo e a porca parece fazer com que Euricão
sofra. Além de sofrer com a avareza, que não lhe permite estar sossegado lhe faz pensar
constantemente que lhe podem roubar a porca, este avarento de Suassuna aparenta maior
sofrimento do que o de Plauto e o de Molière também porque foi motivado pelo sofrimento
a tornar-se avarento, foi a perda da mulher que o fez como é. Somado a isso, destaque-se
que Euricão não encontrou um tesouro por graça de deus algum, tampouco conseguiu
acumular riqueza por meio de juros abusivos. Ele guardou certo dinheiro porque se sujeitou
a viver em condições de pobreza, sem nem sequer alimentar-se bem. Em suma, Euricão é
um pobre avarento que sofre.
Outro aspecto inerente à capacidade criativa de Suassuna diz respeito ao tom
moralizante com que se encerra a peça, conforme podemos vislumbrar a seguir:
EURICÃO – Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem
seus destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar até tomar uma decisão. Mas
agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado diante da morte
e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei como estrangeiro e como
estrangeiro vou deixar. Mas minha condição não é pior nem melhor do que a de
vocês. Se isso aconteceu comigo, pode acontecer com todos, e se aconteceu uma
vez pode acontecer a qualquer instante. Um golpe do acaso abriu meus olhos,
vocês continuam cegos! (SUASSUNA, 1979, p. 81-82).
Percebamos que Euricão se dirige aos expectadores com o intuito de, pondo-se em
um mesmo nível que aqueles e exaltando aquilo que chama “justiça popular”, alertar para a
possibilidade de incorrerem no mesmo erro. Esse tom moralizante é, de acordo com Gomes
(2010), comum no teatro de Suassuna, “por conta das preocupações religiosas que interferem
nos temas e na concretização das ações cênicas” (GOMES, 2010, p. 33).
Por seu término, que se apresenta praticamente isento de comicidade, O santo e a
porca diferencia-se tanto da obra de Plauto como da de Molière. Se em Plauto tudo terminava
bem, com o avarento optando por doar seu tesouro ao genro, da mesma forma que em
Molière, em que o avarento permanecia com seu dinheiro e inclusive com possibilidades de
somar ao seu patrimônio, em Suassuna, o avarento é punido mais severamente por seu vício,
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porque além de ficar sem seu dinheiro, também opta por ficar só. O único que lhe conforma
é a companhia de Santo Antonio.
Considerações finais
A título de considerações finais, devemos destacar que as peças brevemente
comentadas acima apresentam uma relação intertextual evidente e a leitura comparada delas
permite a ressignificação de cada uma, possibilitando também a percepção das modulações
que a personagem avarenta, como elemento oriundo do cômico, assumiu a partir da
perspectiva de Plauto, Molière e Suassuna.
Ao cotejarmos as características dos três avarentos, percebemos que eles se
constroem por processos semelhantes, entre os quais se destaca a sua oposição aos demais
personagens. Esses personagens, principalmente os filhos e escravos/servos/empregados, na
posição de certa submissão, utilizam-se basicamente do poder da linguagem para consolidar
a caracterização do avaro como tal. Nesse processo de embate, há a produção do cômico de
forma ambivalente, em decorrência do baixo corporal e da carnavalização.
Euclião, Harpagão e Euricão, embora se assemelhem pela avareza, são diversos
devido ao tipo de relações que possuem, às razões de seu vício cômico e ao final a que
chegam. O primeiro e o último aparentam sofrer, em diferentes escalas, em decorrência do
seu vício cômico. Já o segundo é um homem insensível. Assim, seguindo o caminho natural
da comédia, que conduz ao apaziguamento, é natural também que os personagens de Plauto
e de Suassuna sejam “libertados” do seu vício enquanto o de Molière permaneça em
segurança com os seus bens.
Ainda no que se refere à ambivalência cômica, verificamos que – embora Bakhtin
(1999) nos alerte para a tendência de prevalecer na literatura hodierna seu aspecto unilateral
– em nas três produções em análise se mantém a importância do riso promotor da correção,
bem como do riso alegre e festivo. Entendemos que isso ocorre, entre outras razões, porque
as peças são representativas de períodos artísticos em que se evidencia a força cômica, sendo
que foram escritas por comediógrafos intimamente ligados à tradição da cultura popular.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Tradução de
Yara Frateschi. 4 ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
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BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução de Nathanael
C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
COSTA, Aída. Introdução. In: PLAUTO. Aulularia. São Paulo: Difusão Européia do Livro,
1967.
GOMES, Aline Aparecida de Souza. O Santo e a porca, de Ariano Suassuna: o imaginário
do sertão em nova cena. São Paulo: 2010. Disponível em:
<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=10780>. Acesso: 18
jul. 2011.
MOLIÈRE, J. B. P. O avarento. O senhor de Pourceaugnac. Tradução de António Manuel
Couto Viana. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.
PLAUTO. Aulularia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca e O casamento suspeitoso. 3 ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1979.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
MONTAGEM CÊNICA CONCEBIDA A PARTIR DA POESIA RETRATO DE
CECÍLIA MEIRELES
Ana Carolina Conceição (UnB)1
Clarice da Silva Costa (UnB)2
Wanuza Marques (UnB)3
Resumo: O presente resumo descreve o processo da montagem cênica concebida pelos alunos do 7º ano, de
uma escola de ensino fundamental II, localizada no Cruzeiro/DF. A montagem dialoga com poesia, teatro
físico e gravação de áudio à partir do aparelho celular. Desde o início deste ano os estudantes vem aprendendo
técnicas de habilidades corporais expressivas baseadas no método pedagógico desenvolvido por Jacques Lecoq tendo como referência o livro O corpo poético – Uma Pedagogia da Criação Teatral. Encarregada de falar sobre
Cecília Meireles na feira cultural da escola, a turma resolveu montar uma cena à partir da poesia Retrato da
autora, utilizando as técnicas desenvolvidas em sala de aula. Sendo que os alunos utilizam máscaras completas
em cena, a fala é impossibilitada, para sanar esta dificuldade durante a apresentação, as palavras faladas são
narradas em off. Como resultado cênico, enquanto o expectador visualiza os estudantes em cena muda ouve
concomitantemente a poesia Retrato sobreposta com entrevistas cedidas por pessoas quanto ao pensamento
sobre o que é envelhecer que foram gravadas pelos estudantes em seus próprios celulares.
Palavras-chave: teatro-físico; poesia; máscaras; áudio montagem
Introdução
O presente trabalho descreve o processo de montagem cênica desenvolvido em uma
escola de ensino fundamental II, localizada no Cruzeiro/DF, numa turma de 7º ano. Pretende
refletir, à partir da descrição do processo, sobre as metodologias utilizadas na escola,
destacando primeiro, o trabalho corporal em sala de aula, segundo, o texto lírico como
motivador de criação de cenas e por último a utilização de recursos audiovisuais na
construção de uma dramaturgia.
A montagem de cena para apresentação a um público externo, não é principal
objetivo da disciplina teatro, porém devido à natureza desta é resultado comum ao final de
um processo. Dentre os variados campos do saber teatral, optamos por desenvolver, numa
turma específica, técnicas de habilidades expressivas corporais partindo do método
1 Graduanda em Artes Cênicas com habilitação em licenciatura na UnB Universidade de Brasília. aluna bolsista
do PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Incentivo à Docência [email protected] 2 Doutora em Literatura Brasileira com a Tese de Doutorado Teatro e Teleteatro: Aproximações Híbridas
(2011) pelo Instituto de Letras UnB Universidade de Brasília [email protected]
3 Professora da Fundação Educacional de Brasília, professora supervisora do PIBID, Programa Institucional
de Bolsas de Incentivo à Docência [email protected]
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pedagógico de Jacques Lecoq4, tendo como base seu livro O corpo poético – Uma pedagogia
da criação teatral.
Sendo assim, nossas aulas abordaram necessariamente histórias e gestos cotidianos,
que eram trazidos pelos alunos de forma que, com o ocultamento de suas faces, era preciso
exagerar ou tornar os movimentos corporais mais precisos para que se fizessem
compreender.
“o treinamento da expressão corporal com uso de máscaras expressivas e fundo
poético comum” (LECOQ,2010)
“A expressão corporal visa ativar a expressividade do ator, desenvolvendo
principalmente seus recursos vocais e gestuais, sua faculdade de improviso. Ela sensibiliza
os indivíduos para suas possibilidades motoras e emotivas, para seu esquema corporal ...”
(PAVIS, 1947)
Para aumentar o campo de referências para os estudantes, foram apresentados vídeos
de Charles Chaplin, Mr.Bean dentre outros para que compreendessem a cena muda, depois
no intuito de aproximar um referencial mais atual os alunos assistiram o filme, O mentiroso
com a atuação de Jim Carrey, tendo que observar sua ação corporal.
As máscaras foram confeccionadas em sala de aula, com papel pardo em formato de
sacolas, cada aluno desenhou a face da forma que desejava, olhos imensos lacrimejantes,
dentes coloridos, bigodes, rostos sem boca, surgiram rapidamente, mas na hora de
experimentar as máscaras os inconvenientes como o calor, a pouca visibilidade e o fato de
não se ouvir o que falavam surgiram como dificuldades que muitos relutaram à continuar.
A utilização da máscara se justificava anteriormente pelo fato de exigir dos alunos a
criatividade em cena sem se apelar para caretas faciais ao tentar expressar sentimentos, “
com a finalidade de demonstrar como a máscara e seu caráter podem ser transformados
graças à conduta geral imposta ao nosso corpo e à diferente gestualidade produzida” (FO,
2004) porém durante rodas de conversas aos finais da aula percebemos que os estudantes
além de desenvolverem a percepção de como uma simples mudança na postura ou no andar
interferia completamente na intenção de seu personagem, se sentiam mais confortáveis para
Jacques Lecoq, foi ator, mímico e professor de teatro. Partindo da experiência corporal que adquiriu como
esportista, interessou-se pelo corpo como instrumento da interpretação e expressão do ator, em 1956 fundou a Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq em Paris, França, onde testou várias metodologias, as quais
compartilhou grande parte no livro citado.
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a ação em cena porque estavam mascarados, apesar da reclamação constante quanto ao seu
uso.
O constante treino e a repetição das mesmas cenas alternadas, ora com uso da
máscara ora sem o uso desta e os colegas se assistindo, possibilitou a adesão total da turma,
e cada um, foi adaptando-se à máscara, alguns gostavam tanto que cada aula levavam uma
com a expressão diferentes, já outros sempre esqueciam ou perdiam suas máscaras, para
estes eu levava várias reservas a fim de não prejudicar o treinamento, por fim quando
incentivados a apresentar algo com o uso das máscaras todos foram bem receptivos e
colaboraram bastante.
Em julho de 2013, iniciaram os preparativos para a realização da EXPOCEF5, à
turma em questão, coube pesquisar a vida e obra de Cecília Meireles6. Na orientação deste
estudo os alunos foram solicitados a procurar em livros ou na própria internet tanto sua
biografia quanto suas poesias.
O teatro físico prioriza a ação à palavra, a imagem ao texto oral, objetivando maior
apropriação dos alunos quanto as poesias solicitamos a produção de desenhos para traduzir
em imagens o que eles entendiam ou sentiam quanto a leitura das poesias da autora, sendo
este o primeiro passo para posterior construção de cenas mudas.
Divididos em grupos os alunos foram solicitados a representar uma poesia à livre
escolha. Dos quatro grupos, dois apresentaram a poesia Retrato, um a poesia Leilão de
Jardim e outro Leveza7.
As apresentações foram feitas com as máscaras e muitos recorreram a mimos para
representar animais ou plantas, os grupos que representaram a poesia Retrato chamaram a
atenção por utilizar exercícios teatrais para exemplificar versos. Cito como exemplo o trecho
em que a autora diz, “em que espelho ficou perdida minha face?”, um dos grupos se apoiou
no espelhamento, jogo teatral onde em pares, um colega imita a ação do outro como se fosse
um espelho.
Em conjunto com a turma decidimos utilizar para montagem a poesia Retrato, pois
ela trazia elementos que conversavam literalmente com tudo que estávamos trabalhando ao
5 Evento realizado anualmente no colégio, o qual incentiva os alunos pesquisarem sobre um assunto ou pessoa
pela perspectiva da disciplina do professor representante da turma. 6 Poetisa e educadora carioca (1901-1964), autora de inúmeras obras, tem grande reconhecimento dentro da
literatura brasileira. Sua vida foi marcada por perdas e falecimento de pessoas próximas desde a infância o que
marca bastante o seu lirismo. 7 As poesias foram levadas pelos alunos, que utilizaram a internet pesquisando pelo site de busca
www.google.com.br
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longo de dois bimestres, um corpo que se altera, características bem definidas ( triste, calmo,
amargo, mortas), a palavra face, a oposição (eu não tinha...) os próprios alunos iam
apontando as semelhanças e se empolgando ao imaginar a cena em que eles buscavam as
faces deles perdidas e as achavam embaixo das máscaras, que eram seus rostos construídos.
Com base nas apresentações propostas em aulas anteriores, e também na
interpretação da própria poesia a composição da cena foi se delineando de uma forma
coreográfica, no sentindo em que como diz Silva:
“...coreografar é definir uma sequência de movimentos que transmite uma
configuração de expressão em movimento em determinado espaço cênico.” (SILVA, 2001)
O espaço cênico em questão foi o pátio da escola, e devido a configuração da cena
nos preparamos para apresentar na forma de arena8, tal como no teatro de rua.
As palavras acionadoras da composição foram envelhecimento, tristeza, face e
procura, a apresentação foi dividida em três partes, sendo:
“Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro/ Nem estes
olhos tão vazios, nem o lábio amargo...” início com a entrada de um grupo feliz e enérgico,
depois um grupo de temperamento comum e mecânico, e por final um grupo triste e
cabisbaixo quase se arrastando no chão.
Interessante notar, que como os alunos estão na faixa etária de 11 a 13 anos, a ideia
que eles tem da velhice é como se fosse realmente o fim da vida, eles remetiam ao clichê da
bengala e das mãos na coluna, os pés se arrastando, notando esta configuração corporal eu
solicitava que eles fossem envelhecendo aos poucos, lembrava que para uma criança de 2
anos eles já eram mais velhos, que lembrassem de seus pais ou avós, se estes agiam daquela
forma, alguns tentavam buscar outro corpo mas a maioria insistia nos clichês.
“Eu não tinha essas mãos sem forças tão paradas e frias e mortas. Eu não tinha este
coração que nem se mostra.” cada grupo ia parando de acordo com a ordem de entrada até
ficarem totalmente imóveis.
“Eu não dei por esta mudança tão simples, tão certa tão fácil em que espelho ficou
perdida minha face?”, neste momento os alunos em cena voltavam a se movimentar
procurando na plateia a sua “face” perdida, alguns integrantes faziam parte da plateia e
quando chamados colocavam suas máscaras e entravam na arena para servirem de “espelho”.
8 Formato de palco que a apresentação se dá no meio de um círculo e a plateia fica ao redor da cena.
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Após o espelhamento os alunos formavam um círculo, retiravam suas máscaras e as
queimavam.
Uma das preocupações dos alunos era que, como eles conheciam a poesia, eles
entendiam o que estavam fazendo, mas os outros, a plateia não entenderia nada, visando
sanar esta “dificuldade” uma aluna gravou a poesia no celular e propôs uma cena com a
narração in-off, vislumbrando demais possibilidades da utilização do aparelho celular as
professoras sugeriram que os alunos pesquisassem junto aos seus familiares o que eles
pensavam sobre o envelhecer, e que gravassem seus depoimentos., poucos alunos
colaboraram nesta etapa, mas o material recolhido bastou para fazermos uma áudio
montagem.
A áudio montagem, foi composta da seguinte forma: 1) música eletrônica9de ritmo
moderado, para não interferir na movimentação dos grupos que deviam se apresentar de
formas distintas; 2) depoimentos de várias pessoas com diferentes faixas etárias sobre como
viam o envelhecimento; 3) a poesia Retrato declamada; 4) mais depoimentos e 5) a mesma
música do início.
Com a áudio montagem os estudantes se sentiram mais seguros quanto ao que
estavam fazendo, foi notável o crescimento da cena quando fizeram o ensaio com a audição,
alguns ensaios eram realizados sem as máscaras para podermos avaliar o desenvolvimento
da ação corpórea, muitos alunos se perdiam quando não as utilizavam, o que me fez
questionar até quando é interessante seu uso e quando ela passa a virar “muleta”, tanto que
para o bimestre posterior, continuaremos com a proposta de teatro físico de Lecoq mas
utilizando a maquiagem como alternativa à mascara a fim de compararmos os progressos
dos alunos quanto a sua expressividade corporal.
No dia da apresentação, todos os alunos estavam presentes, ficaram bastante
ansiosos, alguns fizeram novas mascaras, a apresentação ocorreu da forma planejada com
exceção de uma aluna que não colocou a máscara conforme o combinado, ao ser questionada
quanto à esta atitude, declarou que sentiu vergonha de colocar a máscara na frente dos
colegas de outras turmas, porém muitos nem perceberam e ao final todos comemoraram.
Na aula seguinte, conversamos sobre todo o percurso para a realização da cena,
muitos reclamaram que tiveram tanto trabalho para dez minutos de apresentação e pronto
terminou, esta observação serviu para debatermos sobre a efemeridade das coisas, e questões
9 Intro do grupo The XX
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filosóficas quanto a velhice e os movimentos da vida foram abordados de forma interessada.
Ainda sobre a apresentação, comentaram que colegas de outras turmas não entenderam
muito bem o que eles fizeram mas que acharam legal, dois alunos que sempre demonstraram
interesse no processo falaram que se emocionaram ao colocar suas máscaras no fogo.
Os relatos dos alunos são de extrema importância para avaliarmos se o
desenvolvimento de competências e habilidades que propomos estão se dando de forma que
faça sentido para eles, acreditando que:
“É possível evidenciar a importância da narrativa, não só como veículo de uma
pesquisa acadêmica, mas também como instrumento formativo de sujeitos do conhecimento,
que se tornam autores de sua história, ao fazerem a narrativa de seus processos...”
E ainda:
“Uma das características da narrativa é propiciar espaço para a singularidade...
Podemos vivenciar os mesmos acontecimentos, mas os vemos (e sentimos) de maneiras
diferentes. Nossas narrativas do vivido são nossas experiências sobre os acontecimentos e
não os acontecimentos em si. Trata-se do significado que atribuímos ao vivido. Dessa
maneira, ao ouvir a história de alguém, podemos extrair significados diferentes dos que ela
mesma atribui.” (WARSCHAUER, 1993)
Considerações finais
A adaptação do método de Jacques Lecoq, para sala de aula mostrou-se eficiente
quanto à melhoria da expressão corporal dos alunos, a utilização das máscaras os obrigavam
a manter-se presentes e focados, além de incentivar a imaginação para solução de problemas
da cena que apresentavam-se e não tinham resolução através do recurso oral.
Conceber uma montagem teatral trazendo à cena os exercícios foi um resultado
tangível para os próprios estudantes, muitos admitiram que antes desta proposta não
entendiam bem o que estavam fazendo.
A poesia de Cecília Meireles, intercalada com os depoimentos gravados à partir do
celular, possibilitou uma composição criativa que sugeriu vários desdobramentos tanto para
os que participaram da montagem como para os que assistiram.
Mesmo sabendo não ser novidade a utilização de recursos literários para composição
de cenas, não posso deixar de ressaltar como foi notável a melhor apreensão e facilidade dos
alunos conceberem uma montagem à partir do texto poético escolhido. Desde as
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interpretações mais literais até as coreografias mais elaboradas, foi possível perceber o
desenvolvimento de cada um, em sua maioria, que a cada ensaio, cada vez mais se
apropriavam do sentido da poesia e da apresentação cênica.
Por fim, mesclar linguagens e tecnologias nada mais é do que se adaptar ao nosso
tempo, e para conseguir tal feito não é preciso recursos de alta tecnologia ou dispendiosos,
no caso da montagem descrita, bastou a gravação em celulares, a edição num computador
com um software gratuito e a reprodução do áudio numa caixa de som.
Referências
FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
LECOQ, Jacques. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Editora
Senac/Edições SESC SP, 2010.
MEIRELES, Cecília. Obras reunidas. Teresópolis: Editora Vozes, 1956.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora HUCITEC, 1947.
SILVA, Soraia Maria. Profetas em movimento. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo / Imprensa Oficial, 2001.
WARSCHAUER, Cecília. Roda e o Registro: uma parceria entre professor, alunos e
conhecimento. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
NORA: ROMPIMENTO OU TRANSGRESSÃO?
Vicentônio Regis do Nascimento Silva (UEL)1
Sonia Pascolati (UEL)2
Resumo: Uma das leituras de Casa de bonecas possibilita vislumbrar o percurso de construção do sujeito,
representado por Nora, protagonista da trama de Henrik Ibsen. O sujeito – constituído pela consciência e pela
faculdade de fazer – atinge a autonomia individual quando, enfrentando e quebrando as regras do campo, ousa
desautorizá-las ou invalidá-las, instituindo nova percepção – particular e coletiva – da realidade. A autonomia
e a individualidade pressupõem a identidade. Conceituando rompimento (ação consciente, pactuada, ajustada,
coordenada, multilateral ou unilateral, voltada ao coletivo ou ao público) e transgressão (ação consciente ou
inconsciente de desrespeito ou de ultraje, unilateral, vertical, prejudicial ao público ou ao coletivo), indaga-se:
Nora rompe ou transgride as regras sociais na construção do sujeito feminino?
Palavras-chave: Ibsen; sujeito; autonomia; submissão feminina.
Introdução Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
Amar e malamar,
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?
(Carlos Drummond de Andrade – Amar)
O século XX já passara pelas profundas transformações sociais, culturais, políticas
e econômicas iniciadas ou consolidadas no anterior quando o poeta mineiro, cuja primeira
estrofe do poema transformamos em epígrafe, questionava a inexorabilidade do amor. Carlos
Drummond de Andrade não estava inteiramente incorreto ao se indagar que outras
finalidades o homem – ou a mulher – teria na vida, enquanto travestido no corpo e no espírito
de uma “criatura”, a não ser amar. Fragmentado por Platão em dezenas de espécies, o amor
se transforma tanto em destino de felicidade quanto de infelicidade, considerando o ponto
de vista de quem o emprega, de quem o aceita e de quem o modifica.
1 Doutorando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) – [email protected] 2 Professora Doutora do departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) –
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O amor paterno, geralmente envolto em boas intenções e destinado à proteção dos
filhos em todas as idades, nem sempre é bem recebido pelos destinatários que, a exemplo de
Kafka, de maneira mediata ou imediata, assimilam-no na condição de grades – não as que
protegem, porém as que os privam da liberdade. Protagonista de Casa de bonecas, peça de
Ibsen escrita em 1879, Nora vive em um confortável lar cujo chefe, depois de anos de
complicações financeiras, está na iminência de ocupar cargo de diretor bancário. A euforia
pela nova ocupação profissional e a possibilidade de oportunidades nos círculos sociais
encontra obstáculos quando o advogado Krogstad a procura: em retribuição ao auxílio em
empréstimo irregular que ela tomou no banco – o mesmo em que o marido trabalhará, ele
exige a manutenção de seu cargo para se manter em silêncio. Entre idas e vindas, a peça se
encerra com a leitura da denúncia da carta jogada na caixa do correio. O marido a amaldiçoa
reiteradamente, comparando o comportamento vil – falsificara uma assinatura – ao do pai.
Entre as ameaças, a possibilidade de afastá-la dos filhos e a reclusão – praticamente
isolamento – social. Em posse dos documentos incriminadores, entregues por mensageiro, o
marido retrata-se, ensaiando a volta à normalidade, prontamente rechaçada por Nora que,
sem grandes tergiversações, apronta as malas, abre mão da chantagem em torno dos filhos,
descarta a ameaça de repressão social, a respeitabilidade da família e o conforto da casa para,
criando nova realidade, em que se livra da casa de bonecas em que vivera com o pai,
posteriormente transmitida ao marido, avançar as portas rumo ao desconhecido –
desconhecida também a união que não se transformou em casamento.
Diferentemente do comportamento restrito às normas paternas anteriormente
instauradas e permanentemente exercidas ao longo de As três irmãs – peça de Tchekhov
concluída em 1900 e lançada em 1901 –, Nora redimensiona as regras de permissão e de
privação, estabelecendo novo contexto grupal: a dominação masculina sofre retrações, mas
não necessariamente retrocessos.
A formação da consciência
Se considerada gradativa a formação da consciência, Nora construiu-a aos poucos,
coletando, ao correr dos anos, elementos que pudessem formar sua convicção individual,
aprendendo a distinguir cidadão (aquele que tem função social ou grupal) de indivíduo
(quem busca verdades pessoais independentemente de questões alheias). A preocupação de
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Ibsen reside na construção da consciência individual (aproximando-se menos do cidadão do
que do indivíduo).
Descontente com tudo, salvo um novo começo, IBSEN considera impossível
identificar-se com qualquer dos partidos, sistemas ou programas existentes, ou
aliar-se sequer com qualquer dos princípios revolucionários vigentes. Em resumo,
a sua revolta é tão individualista que transcende inteiramente o domínio político.
(...) O cidadão é o homem domesticado, o agente das instituições vigentes, que identifica suas necessidades com as da comunidade (...). O indivíduo é o homem
revolucionário, superior a todos os imperativos sociais, políticos ou morais
condicionantes, que encontra sua finalidade na busca de uma verdade pessoal (...).
No espírito de IBSEN, esses dois tipos são como o escravo e o amo, tão
fundamentalmente opostos que a vitória para um acarreta inevitavelmente a
derrota do outro, pelo que os direitos do cidadão são sempre obtidos à custa da
liberdade do indivíduo. Em seu drama, talvez IBSEN possua uma atitude
sumamente ambígua em relação aos seus heróis rebeldes, mas, nesta questão, é
impossível por em dúvida de que lado ele pessoalmente se encontra: a auto-
realização é o valor supremo, e se isso conflitar com o bem-estar público, então o
bem-estar público pode ir para o inferno. (BRUSTEIN, 1967, p. 52-53)
Construída a consciência individual, à constituição do sujeito falta a faculdade de
fazer. Nora reúne as duas características essenciais do sujeito, consolidando-as no momento
em que, consciente de sua vida de fantasias afastada da realidade, toma a iniciativa das
mudanças, rompendo limites instituídos unilateralmente e aceitos imperceptivelmente. O
jogo de instituições unilaterais e aceitações imperceptíveis são os mecanismos por meio dos
quais se instala a dominação masculina manuseada, nas últimas décadas, através de artifícios
simbólicos.
A dominação masculina
Pierre Bourdieu já se notabilizara tanto no campo sociológico quanto no
historiográfico ao se debruçar sobre as relações simbólicas de poder quando, interessando-
se pelas relações específicas da mulher, constatou, em poucas palavras, a dominação
masculina não mais exclusivamente pela coação física, mas pelo exercício simbólico da
força, manifestado por símbolos, gestos, palavras, olhares, silêncios, costumes, crenças,
sistemas de valores propositalmente diferenciados e prejudiciais à mulher.
A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu pleno
exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na
objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas,
baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução
biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos
esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos
pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais
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históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como
transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução
biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum,
visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias
mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em
que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação
dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem
simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso,
atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se
pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que
ela sofre. (BOURDIEU, 2010, p. 45)
A dominação masculina tem por finalidade obstar a ascensão da mulher nos diversos
campos – sociais, políticos, educacionais, econômicos, culturais, religiosos etc – por meio
de convenções esdruxulamente estabelecidas. Duas maneiras de fugir dessas convenções: ou
a transgressão, ou a ruptura. A transgressão configura-se necessariamente pelo desrespeito
às regras simbólicas previamente estabelecidas, retornando o indivíduo, na condição de
transgressor, ao status quo. Já a ruptura conceitua-se pelo respeito às regras simbólicas
previamente estabelecidas, invalidando-as e, sucessivamente, escolhendo-se novas
diretrizes, livrando o indivíduo do status quo.
Se compararmos o comportamento de Nora ao das três irmãs de Tchekhov,
observaremos movimentos de ruptura e de continuidade das convenções estabelecidas:
As três irmãs Casa de bonecas
Dominação masculina: exercida
inicialmente pelo pai e, posteriormente,
pelo filho
Dominação masculina: exercida
inicialmente pelo pai e, posteriormente,
pelo marido
Transmissão da dominação: herança
simbólica expressa (o pai designa o filho o
responsável pela família e, portanto, líder a
ser respeitado e seguido)
Transmissão da dominação: herança
simbólica implícita (o pai transfere, por
gestos e ações, ao genro a liderança sobre a
filha)
Pai e irmão: frustram-se as expectativas
sociais, financeiras e profissionais do
irmão, previstas e propagadas pelo pai.
Mesmo na iminência da perda da casa, as
irmãs aceitam as jogatinas e o
comportamento perdulário do irmão.
Pai e marido: o marido realiza-se
profissional e financeiramente
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Continuidade: embora aparentemente
insatisfeitas com o comportamento do
irmão e da cunhada, as irmãs submetem-se,
dando continuidade à dominação
masculina simbolicamente instituída pelo
pai. Não se constituem sujeitos.
Ruptura: apesar de financeiramente
estável, Nora revolta-se com a ausência de
compreensão do marido por atos
praticados em benefício de sua saúde e,
sem delongas, abandona a casa. Rompe
com a estrutura, constituindo-se sujeito
(indivíduo que une consciência à faculdade
de fazer).
A diferença entre Nora e as três irmãs consagra-se no último quadro – continuidade
e ruptura – quando se estabelece o sujeito: enquanto as três irmãs tomam consciência dos
problemas causados ao longo dos anos e, no último ato, quando adentram os campos da
velhice, sem tomarem atitudes que impeçam os dissabores – especialmente os financeiros,
Nora toma consciência do mundo de fantasia em que se fechou e ousa sair de casa
enfrentando o marido aturdido.
A conscientização de Nora (consciência somada à faculdade de fazer) cria nova
realidade em que se erige a autonomia do sujeito calcada no rompimento das normas
simbólicas. Rompidas as normas simbólicas, estabelece-se nova convenção por meio da qual
o comportamento desviante provoca distúrbios na alteridade (ato em si e reação do outro),
concedendo ao sujeito nova realidade – nova em que, mesmo em lugares e contextos
amplamente conhecidos, desconhecidos tornam-se os trajetos e os destinos. Constituída em
sujeito, Nora rompe o conjunto de regras simbólicas na nova realidade percebida não apenas
por ela (ato em si), mas conhecida e reconhecida pelo marido (reação do outro) e, embora a
peça não comente, pela sociedade.
Já as três irmãs distanciam-se da autonomia: elas não rompem, apenas transgridem
as regras, desrespeitando a convenção sem efeitos pessoais ou grupais, posteriores ou
imediatos, retornando, sem grandes sobressaltos, à velha e permanente realidade, simulacro
de que não conseguem se libertar nem parecem dispostas a modificar.
Considerações finais
Parafraseando a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, o que desejaria uma
criatura senão amar? O que desejaria um pai senão a obediência da filha? O que desejaria a
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filha além do reconhecimento e do respaldo paternos? Obediência, reconhecimento e
respaldo são extensões do amor, ora causando felicidade em quem o distribui, ora resultando
em infelicidade de quem o recebe. A constituição do sujeito – recriação de regras simbólicas
– não acontece pacificamente assim como nenhuma transformação (e, abram-se parênteses,
transformação não é sinônimo de mudança) ocorre sem enfrentamentos, confrontos, revoltas.
Se, por um lado, o amor pode libertar, por outro, três de suas espécies – o paterno, o
erótico e o fraterno – possibilitam o aprisionamento abrindo caminhos à dominação
simbólica. O que pode desejar uma criatura senão amar? Pode, depois de se conscientizar,
utilizar sua faculdade de ação e, sem abandonar o amor, mudar de espécie, saindo das
sombras da prisão e andando rumo à luz da liberdade – nem sempre pacífica – do sujeito
inserido em nova realidade, em novo contexto, em novas regras simbólicas.
Referências
BALL, David. Para trás e para frente. São Paulo: Perspectiva, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
BRUSTEIN, Robert. Anton Checov. In: _____. O teatro de protesto. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1967, p. 156-201.
_____. Henrik Ibsen. In: _____. O teatro de protesto. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967,
p. 51-102.
IBSEN, Henrik. Casa de bonecas. Mairiporã: Veredas, 2012.
SZONDI, Peter. Ibsen. In: _____. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac&Naify,
2001, p. 37-46.
_____. Tchékhov. In: _____. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac&Naify, 2001,
p. 46-53.
TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. In: _____. As três irmãs/Contos. São Paulo: Abril
Cultural, 1979, p. 7-150.
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SUMÁRIO
O “AUTO DA CATINGUEIRA”: TRANSVERSALIDADES DE UM LUGAR
TEATRAL NO SERTÃO
Eduardo Cavalcanti Bastos (UFBA)1
Resumo: A obra “Auto da Catingueira” marca-se, inicialmente, pelo modo catártico e experimental de criação
e registro fonográfico. Esta obra rastreia certas memórias incutidas na cultura de homens bravios do Sertão e
seus grandes feitos. Em seu tema principal está a performance do desafio da Cantoria Nordestina, e é nesta
modalidade poético-musical que reside sua principal inspiração. Porém, nota-se que a obra adaptada para o
espaço cênico se depara com a problemática desta transposição: do registro inicial cancioneiro e fonográfico
para finalmente as montagens como peça musical – ópera -, conjuga-se um inesperado e furtivo caminho de
teatralidade. Do lugar teatral ao espaço cênico, Elomar e o “Auto da Catingueira”, autor e obra, fusionados na
mesma ambiência, ocupam vias transversais de releituras de uma obra-paisagem que perpassa o artista e a
afirma num complexo caminho de recriação.
Palavras-chave: Elomar Figueira Mello; cantadores; Auto da Catingueira; sertão.
Introdução
A partir do acervo discográfico de Elomar se revelam criações e produções na
Cantoria cujas análises são imprescindíveis para o estudo da constituição espetacular deste
acontecimento artístico. Essas produções inauguram conjunto performático composto pelos
três novos trovadores: Dércio Marques, Xangai e Elomar. Essa formação conjugada por obras
e espetáculos, cujo centro é formado por partituras e subpartituras2 – texto e subtexto –
(PAVIS, 2005, p. 90), de cada um dos três, possui características adequadas para imprimir e
nortear produções espetaculares dentro da Cantoria. A trajetória de cada um – o transir –
monta a sinergia necessária para convergência de vários signos visíveis e audíveis (ibid.,
2005, p. 88) entre si, sobre os quais diversas tipologias culturais e experiências pessoais com
outras culturas justificam a coexistência da tríade performática e musical.
Os fatores que tangíveis e intangíveis de união entre Elomar, Dércio e Xangai, ao que
parece, se marcam pela confluência de interesses e projetos criativos para a produção
espetacular de algumas de obras (Figura 01). Sendo assim, a partir de meados da década de
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC). E-mail:
[email protected] 2 Conceitos pertencentes às noções anteriormente discutidas por Stanislávski baseado no teatro psicológico do
texto (PAVIS, 2005).
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70 até meados da década de 80, a tríade formada por eles assinou apresentações e produções
musicais, elaborando o desenho performático da Cantoria, para, em 1983, atingir o ápice do
conjunto com a gravação do “Auto da Catingueira”, cuja autoria é de Elomar Figueira Mello.
Figura 01 - Elomar, Dércio Marques, Helena Rodrigues e Xangai ao fundo – 1979.
Apresentação em Vitória da Conquista/Ba. Foto do Acervo pessoal de Dércio Marques.
A obra “Auto da Catingueira” marca-se, inicialmente, pelo modo catártico e
experimental de criação e registro fonográfico. Em um esforço por aguçar a experiência
criativa e interpretativa do “Auto da Catingueira”, deslocaram-se para um ambiente atípico,
em relação a um studio de gravação, ou de um espaço cênico, os três cantadores e mais uma
equipe de músicos, técnicos e produtores. Reuniram-se, então, artistas e produtores, na
Fazenda Casa dos Carneiros, de propriedade de Elomar, situada na região de Gameleira, a 19
km de Vitória da Conquista.
A Casa dos Carneiros é celebrada como um dos portais para a representação de toda
cultura sertaneza tematizada no “Auto da Catingueira”, é, portanto, um local mítico que
respira a confecção de toda esta obra. O “Auto da Catingueira” é uma peça musical cuja
concepção teve circunstância complexa: foram 21 anos entre a composição e a gravação. No
entanto, segundo Elomar, do momento da gênese até a conclusão foram cerca de 10 anos.
A obra conta a história de Dassanta, mulher cabocla de considerável beleza casada
com o tropeiro Chico das Chagas. No enredo, o casal vive harmoniosamente e em
cumplicidade, apesar dos desafios do sertão. Certo dia, em uma festa de interior – quermesse
– um Cantador Nordestino corteja Dassanta. Chico das Chagas, marido da cabocla, indignado
propõe ao outro cantador um desafio. O embate se desdobra sob variadas modalidades
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poéticas do desafio até culminar na forma de Parcelas em que a peleja torna-se ainda mais
perigosa e violenta, ocorrendo, no final, mortes trágicas.
O “Auto da Catingueira” é uma tragédia. Na idealização do cenário e esforço por
impor veracidade à composição cênica, Elomar, em toda obra, utiliza o dialeto sertanez. Essa
afirmação leva em conta que este dialeto é constituído através de uma versão arcaica a partir
das referências lingüísticas e culturais do autor (SIMÕES, 2006, p. 48), cuja predominância
do dialeto catingueiro (GUERREIRO, 2005, p. 28) potencializa a originalidade temática
ambientada no sertão baiano.
A obra é composta de seis partes: o prólogo ou “Bespa” 3 e mais cinco atos, definidos
por Elomar como “Cantos”, assim denominados: “Da catingueira, Dos labutos, Das visage e
das latumia, Do pidido e Das violas da morte”.
No primeiro ato – “Da Catingueira” –, o narrador apresenta a genealogia de Dassanta,
o nascimento em meio às dificuldades da pobreza, o amadurecimento, a construção mítica de
mulher poderosa e fatal e culmina a morte insurrecta. Essa caracterização evoca uma
representatividade cujo propósito seja, talvez, de levar as audiências à catarse (SIMÕES,
2006, p. 48), como ocorre geralmente na forma das tragédias. No segundo ato – “Dos labutos”
– apresenta o cotidiano de Dassanta em meio aos dramas do sertão, trabalho e miséria,
revelando o encontro entre ela e Chico das Chagas. O terceiro ato – “Das Visage e das
Latumia” – é concebido através da “Tirana da Pastora”, cujo teor serve para evidenciar
aspectos existenciais de Dassanta: a afetividade; as frustrações; as superstições e a projeção
arquetípica de mulher-fada, envolta numa teia de lirismo e mitologias. No quarto ato – “Do
Pidido” – Dassanta abandona a aura de elevação e revela sua inteireza feminina, susceptível
e ornamentada por adereços materiais do universo cultural em que está inserida. O ato quinto
– “Das violas da morte” – é o desfecho da tragédia: o rompante do desafio entre Chico das
Chagas e o Cantador Nordestino, ambos buscam suplantar o adversário com os motes do
embuste e terminam por se tornarem dueladores que finalizam o litígio lírico, substituindo-o
pelo litígio físico, representado na troca dos instrumentos musicais pelas facas.
1. O Libretto4 de uma vida catingueira
3 Vésperas: preparativos que antecedem um evento (SIMÕES, 2006).
4 O Libretto do “Auto” é um produto gráfico produzido em 1984. Constitui um acervo raro que não está
disponível para venda em estabelecimentos comerciais. Deste Libretto, apenas foi produzido uma única edição.
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A história contada pelo “Auto da Catingueira” narra o universo de um povo dividido
em povoados, com suas culturas entrecruzadas. A busca pela hegemonia, contada na disputa
entre os cantadores do “Auto”, retrata um ideal colonialista do mundo, imbuído em
desagregar do outro suas posses ou o que existir de maior valor. O “Auto” rastreia, portanto,
certas memórias incutidas na cultura de homens bravios do sertão e seus grandes feitos. Lida
com posições constituídas no jogo do desafio da Cantoria Nordestina. É justamente nesta
modalidade poética que reside sua principal inspiração. Porém, nota-se que funde alguns dos
estilos musicais mencionados com outras formas da canção, como por exemplo, a canção
pastoral e o canto lírico, produzindo um conjunto poético-musical singular5.
A obra, espontaneamente, apresenta o autor e seu lugar teatral, com todas as
vicissitudes sertanejas; faz um apanhado sobre seu idealismo cotidiano inserido na cultura da
região nordestina do sudoeste baiano, permeado pela caatinga. Nesse sentido, Elomar monta
uma composição que reflete a própria vida, através de cenários compostos nas feiras típicas
do interior, onde tanto artefatos materiais de uso comum – pentes, águas de cheiro, trancelins
– e especiarias são facilmente encontrados, quanto elementos simbólicos como visagens,
aparições figuradas nas lendas da Caipora, das Almas Penadas, além de outros textos
arraigados na tradição oral brasileira a exemplo de versões do romanceiro ibérico, como o
ciclo do Cego Errante, personagem presente em algumas de suas canções.
No momento da gravação, quando foi “recuperado”, há oito anos, o “Auto”
encontrava-se esquecido (MELLO, 1984b, p. 07) em anotações espalhadas pelos recônditos
da Casa dos Carneiros. A partir daí, Elomar e os produtores6, músicos7 e cronistas8
Alguns poucos exemplares podem ser, até esta data, encontrados com o autor ou em algumas bibliotecas públicas, tais como o Centro de Estudos em Literatura Popular na Escola de Letras da Universidade Federal da
Bahia. O exemplar utilizado para esta pesquisa foi gentilmente cedido pela pesquisadora Simone Guerreiro. 5 Essa variação pode ser encontrada nas canções “Desafio” – trecho interpretador pelo Cantador do Nordeste
-: “Acho qui já tá na hora de fazê a lôvação/ dos sinhô e das senhora/ qui se encontra no salão” (MELLO,
1983); e na “Tirana da Pastora”, respectivamente. 6 Carlos Pita, Antônio Carlos Limongi e Luiz Carlos Henrique (Salvador); Albino Henriques (Rio de Janeiro);
Waldemar Gertner e Geraldo Vieira (São Paulo). 7 Marcelo Bernardes – flauta transversal, flauta de taquara, Báia, Borêta, Sax Tenor e Clarineta; Jacques
Morelenbaum – violoncelo; Andréa Daltro – canto; Xangai – voz e violão; Gutemberg Vieira, Júlio Oliveira,
Amélia, Cláudia, Rita, Marinalva, Duvije – coro; Dércio Marques – violas. 8 Ernani Maurílio e Adelina Renault.
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empenharam-se em refazer o trajeto da história e organizá-la para a primeira produção
fonográfica9.
O “Auto da Catingueira”, embora seja uma obra cujo conteúdo temático pertença a
uma referência mais antiga da cultura sertaneza – decorrente entre o século XVIII10 até
meados do século XX –, tem componentes atuais que residem no cancioneiro da Cantoria,
inclusive na prática cotidiana de seus artistas. Os atores desse acontecimento revestem-se de
ideais telúricos e orientam as buscas poéticas do ambiente sertanez elomariano. Não apenas
Elomar é sinal vívido da cultura sertaneza imbricada nesta ópera, mas Xangai e Dércio
também o são. Coparticipantes pertencem ao mesmo cenário ideológico e cultural de Elomar,
no qual sensações criativas rendem força e expressividade à interpretação do difícil texto11
do “Auto”:
Há nele [no “Auto”] um referencial telúrico imenso; ele é um compromisso com
a vida, embora, fale permanentemente na morte; é um compromisso com a cultura
catingueira (...) As fronteiras do Auto são as fronteiras culturais do Sertão da
Ressaca, Sudoeste da Bahia, a partir do Mato-Cipó. Contudo, essas fronteiras aí
não terminam, elas se alargam no grande mosaico cultural e humano que é o
Nordeste, para se projetar como um Canto Latino Americano, parte integrante de
um Canto Geral do Homem, da Terra e das Coisas do Eterno. (MELLO, 1984b,
p. 07).
O personagem interpretado por Elomar, na gravação original do “Auto” é, segundo
ele, o seu preferido. Tal personagem é o narrador, um cego cantador de feira, cronista que
libera a narrativa pelas memórias esparsas (ibid., 1984b, p. 07) colecionadas por meio dos
cantadores guardados na memória da infância12 de Elomar.
O apanhado histórico e temático do “Auto da Catingueira” está inscrito num campo
fenomenológico, isto é, no campo das essências e suas definições, onde se busca a
compreensão humana a partir de sua facticidade (PONTY, 2006, 01). Ou seja, o desenrolar
criativo e a construção da obra compõem, num apanhado de essências, experiências
constituídas do relato do espaço, tempo e mundo vivido por Elomar. É uma tentativa direta
9 Gravado em Nágara de 2 canais, mixagem direta, sem play-back, usando pilhas no gravador e baterias de 12
volts na mesa, nos estúdios da sala-de-visitas da Casa dos Carneiros, Gameleira – município de Vitória da
Conquista-Ba (MELLO, 1984b). 10 O período marcado pelo manejo do gado e do ouro em substituição à economia dos engenhos. Um tempo
que se afirma a cultura vaqueira e dos tropeiros no eixo que vai do Nordeste até o Brasil Central e conforma
um modo de vida centrado no pastoreio, no desbravamento, mecenato, na organização familiar, estruturas de
poder, culinária, religiosidade, sistemas de castas, etc (RIBEIRO, 2006). 11 Em sua grande parte, o texto do “Auto” é dialetal, sendo sua execução de difícil articulação e compreensão. 12 Zé Guelê, Zé Crau, João de Carrim, João Serradô e outros tantos cantadores viventes no Sudoeste da Bahia
(MELLO, 1984b)
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da experiência do artista tal como ela é sem apelos ou referências à sua gênese psicológica e
explicações causais que outros conhecimentos possam oferecer. No próprio autor se encontra
a unidade da fenomenologia13 e o seu melhor sentido. Nesse contexto, Elomar é uma fonte
originária, sua experiência não provém de seus antecedentes, do seu ambiente físico e social,
ela caminha em direção a eles e os sustenta.
Elomar e a obra “Auto da Catingueira” fundem-se na mesma ambiência. A paisagem
perpassa o artista. Ele, sendo como é, produz de acordo com o que vive e descreve, não está
nas mãos da cultura sertaneza, mas com ela articula e trabalha pela sua manutenção. Exemplo
disso é o áudio da gravação, registrado com interseções dos elementos sonoros de cabras,
galos e chocalhos do gado, misturados aos cânticos impostados dos cantadores e o canto
lamurioso da personagem Dassanta. Os sons do terreiro da roça estão evidentes,
propositadamente, nas gravações, no esforço sincero por deixar o registro mais autêntico do
universo em que está inserida a temática proposta. Nesse grande conjunto se evidencia o
esforço por construir numa obra performática a marca teatral de seu cotidiano.
No “Auto”, o autor deixa extravasar suas angústias frente a um mundo pautado,
segundo visão própria, por dores e sofrimentos causados pelo desconforto dos processos
civilizatórios urbanos, e pelas disputas travadas na desigualdade. É um texto em tempo real,
afinado com um artista que vive no ideal sertânico do que escreve, numa dimensão
itempestiva. Os escritos do “Auto” são relatos da consciência do autor, do seu tempo, arte e
ofícios.
2. Paisagens, cenas e sujeitos do “Auto da Catingueira”
O auto é um estilo dramatúrgico bem conhecido no Brasil. Ariano Suassuna, como
autor contemporâneo, reaviva esta modalidade dramática com o “Auto da Compadecida”,
Luís de Sttau Monteiro faz o “Auto da Barca do Motor Fora da Borda” e João Cabral de
Mello Neto o “Auto do Frade” (GUERREIRO, 2005, p. 130). Na definição de Elomar o
“Auto da Catingueira” “é uma ópera sertânica com estrutura de um auto da Idade Média.
Não tanto pelo formato, bem mais pelo assunto: os autos medievais tratavam dos santos,
suas vidas e seus martírios” (ibid., 2005, p. 130). Para Elomar, a tipologia de auto, em
13 O problema é compreender estas relações singulares que se tecem entre as partes da paisagem ou entre a
paisagem e mim enquanto sujeito encarnado, e pelas quais um objeto percebido pode concentrar em si toda
uma cena, ou tornar-se a imago de todo um segmento de vida (PONTY, 2006).
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detrimento de ópera, é decorrente da necessidade de distanciar-se do modelo europeu
generalizado e aproximar-se de maneira mais estreita apenas das culturas e herança ibérica,
estando esta última permeada pela presença dos mouros e árabes.
O “Auto da Catingueira” é um projeto cênico-musical. Trata-se de uma ópera
representada por vozes que trazem em seus timbres características específicas e possuem
compromisso com a cultura que identificam.
A peça começa com o Cego Cantador que entoa o cântico da “Bespa”. Na gravação
de 1983, Elomar é o intérprete deste personagem. A “Bespa” é uma composição introdutória,
espécie de canto de chegada, que invoca os temas (MELLO, 1984b, p.14) e a atenção dos
circunstantes. Há neste momento uma oferenda da cantoria ao plano místico das crenças,
geralmente a Deus e aos Santos, em que se busca benção para instalação da mesma.
Sinhores, dono da casa
O Cantadô pede licença
Pra puxá a viola rasa
Aqui na vossa presença
Pras coisa qui eu fô cantano
Assunta imploro atenção
Iantes porém eu peço
A Nosso Sinhô a benção (...) Pois sem Ele a idea é pensa pru cantá
E pru tocá é mensa à mão
Pra todos qui istão me ovino
Istendo a invocação
Sinhô me seja valido
Inquanto eu tive cantano
(MELLO, 1984b, p. 14).
A “Bespa” trata-se ainda de uma memória despertada do próprio autor através de
contações de histórias oriundas da infância vivida no São Joaquim, localidade da região
conquistense. Elomar traz ainda algo inventivo distribuído na geografia e personagens
imaginários. Faz, na “Bespa”, a cronologia da história, em que relatos de contações sobre a
trajetória de Dassanta se emendam a memórias transmitidas pela oralidade dos viventes
locais. É um aspecto elegante, uma deferência14 da contação de histórias do cantador, na qual
se propõe despertar a atenção da audiência para o que será narrado:
Foi lá nas banda do Brejo
Muito bem longe daqui
14 O poeta-cantador sabe que suas audiências não têm um compromisso com o entendimento das variantes
lingüísticas que preenchem o conteúdo dialetal dos textos. Neste caso, a narrativa da “Bespa”. O narrador se
compromete em “forrar” o terreno para que o público entenda/perceba o que será contado, muitas vezes
explicando todo conteúdo da canção. Embora tal característica ressoe como uma formalidade para o gênero
poético-musical, na verdade constitui uma tipologia do estilo, semelhante a um exórdio.
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Qui essas coisa se deu Num tempo qui num vivi
Nas terra qui meu avô
Herdô de meu bisavô e pai seu
Dindinha contô cuan meu avô morreu (...)
E hoje eu canto para os filhos meus
E eles amanhã para os filhinhos seus (...)
Dindinha contô pra mim
Viveu Dassanta a Fulô
Filha de um cantadô
Anjos Alvos Sinhorim
(MELLO, 1984b, p. 15).
Ao que parece, a apropriação desse temário de transmutação do humano para uma
criatura híbrida homem-pássaro, acompanha o mito universal de renovação. As Àjés são
entidades do Candomblé temidas entre os Iorubas, dotada de variadas denominações para
ser invocada ou saudada é conhecida popularmente como Osorongá, terrível bruxa que se
transforma num pássaro homônimo para romper a escuridão da noite com grito assustador.
As Íyámi Òsòróngà – Senhora dos Pássaros da Noite – compõem na religiosidade Iorubá
uma entidade feminina que deve ser considerada com exímio respeito face aos perigos de
suas represálias15, algo do rastro das tragédias de Dassanta, que também por onde passava
desandava o destino dos homens.
Para a Jaçanã Pomba-fulô, este Ente, recuperado por Elomar e nominada Passo
Japiassoca Assú (Figura 02) - está centrado na presença de antigas lendas indígenas, como
na obra musical “A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo” composta pelo cantador baiano
Carlos Pita e pela poetisa Myrian Fraga, em 1983. Nesta história poético-musical
encontramos mais uma vez a presença dessa metamorfose humano-animal. Os poemas da
história trazem uma das muitas variantes do mito indígena da descoberta do fogo em que
“um jovem guerreiro foi transformado em pássaro para ir ao céu roubar as chamas do palácio
do sol” (FRAGA; PITA, 1983, n.p.). Ao retornar do sol, o jovem tinha o seu rosto calcinado16
pelas chamas e usava uma máscara “disforme” que espantava a todos. O pajé então
15 Disponível em http://religioesafroentrevistas.wordpress.com/iyami-osoronga-a-senhora-dos-passaros-da-
noite/ (Acessado em 08/07/2013). 16 Cicatrizes (Myrian Fraga e Carlos Pita)/ A face calcinada,/ Ó desespero/ Do amargo desengano./ A alegria
se foi./ Restou-me o canto,/ Derradeiro refúgio/ Último quarto/ Da obscura morada./ Restou o canto/ Ao
pássaro,/ Restou o canto,/ O abecedário,/ A palavra;/ Inventário do homem./ Sobrou o que sobrou/ O estilete
na carne,/ Sobrou o que sobrou,/ O louco intérprete/ Da alma de ninguém/ Do coração de tudo./ Hoje o homem
é a sombra/ Do pássaro, Hoje o homem é o canto vivo/ Da ramagem/ A lembrança de fundas cicatrizes
(FRAGA; PITA, 1983).
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intercedeu por um encantamento transformando-o em pássaro, chamado Japu ou Japuaçu.
Também é frequente no acontecimento de cantadores essa evocação poética do lendário
pássaro num sentido libertário para o homem, um veículo de passagem para atingir desejos
e ideais, como pode ser observado na canção “Pavão Misterioso” de Ednardo, canção
homônima de um dos mais afamados contos da literatura de cordel.
Figura 02 – Jaçanã Pomba-fulô (Passo Japiassoca Assú) – Ilustração de Juarez Paraíso – 1983
Elomar, na tradição de histórias e referências temáticas do “Auto da Catingueira”,
acredita – assim como os catingueiros – que a Caatinga é uma terra que Deus batizou. A
Catingueira é, portanto, um lugar intransponível, situada numa esfera geográfica onde as
fronteiras foram perdidas, local distante, profundo, “terra de ninguém onde o mundo é
sempre pra lá, bem pra lá” (MELLO, 1984b, p.18). Um espaço atemporal aberto a refúgios
dos perseguidos, lugar de descanso. Dessa maneira, o autor procura não aludir a cangaceiros
e jagunços. Pois estes trazem a perturbação à terra, são proxenetas da desgraça. Embora no
desenrolar da trama surja um personagem que desafia essa circunstância: o Cantador do
Nordeste. Elomar não simpatiza com os arquétipos do cangaceiro, nem com as apologias
feitas em tornos destes, talvez por isso esta seja a única esfera temalógica sertaneza que não
faça parte da narrativa do “Auto”. Ela nega veemente a participação do cangaço, um dos
símbolos mais vistosos do cavaleiresco histórico catingueiro, em sua poética.
Considerações Finais
O “Auto da Catingueira” é uma produção norteadora para o momento da Cantoria,
além de ter congregado vários atores em sua produção. Outros grupos de artistas foram
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inspirados e, o são ainda hoje, pelas características imagéticas, de texto e música do projeto,
mas também pelo apelo ideológico e estético revelado em sua teatralidade.
Figura 03 – Cena do Auto da Catingueira, da Companhi Giramundo, com Xangai e o boneco do Cantador do
Nordeste. Foto: Kika Antunes, 2011.
O “Auto da Catingueira” era uma obra incompleta do ponto de vista midiático e
espetacular até o ano de 2011, período em que foi montado e encenado no Palácio das Artes
em Belo Horizonte, Minas Gerais, o espetáculo com a presença dos cantadores e de formas
animadas. Nesta montagem (Figura 03), do Grupo Giramundo, apresentam-se, novamente,
alguns artistas da gravação original, entre eles a cantora lírica Andréa Daltro e os cantadores
Elomar, Dércio Marques e Xangai. Não foi produzida para cumprir exigências da indústria
fonográfica, mas, pela experiência e gravação em 1983, funciona como marco para análise
da obra em detrimento do seu conjunto artístico – libretto e música - e conjuntural dos três
cantadores em relação à obra, dentro, principalmente, de um momento significativo para o
momento do cancionismo nordestino. É uma iniciativa que, contemporaneamente, destaca-se
como elemento norteador das criações e produções artísticas para afirmar a reunião de poetas-
cantadores dentro do acontecimento da Cantoria.
A Obra possui uma inclinação ideológica que tenta passar à dimensão cênica toda
espetacularidade de um cotidiano típico do sertão nordestino e onipresente na vida de seu
autor. Esse esforço de representação revela tipos de espetáculos e releituras que congregam,
na atualidade, um cotejamento da obra original – registro fonográfico - do “Auto da
Catingueira”. Essa exaltação do sertão, e de uma obra, sertaneja mostra, a da vida cotidiana
de seu autor, cuja espetacularidade é imbuída de um saber-se inserido numa teatralidade.
Muitas vezes, esta teatralidade segue complexa demais, buscando ainda atingir seu ápice
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numa encenação que esteja à altura do que foi gravado originalmente, lá na Casa dos
Carneiros.
Referência Bibliográficas
FRAGA, Myriam; PITA, Carlos. A Lenda do Pássaro Que Roubou o Fogo. [S.l.]: Edições
Macunaíma, 1983. 1 LP.
GUERREIRO. Tramas do Sagrado. A poética dos sertão de Elomar. Salvador: Vento Leste,
2007.
MELLO, Elomar; ERNANI, Maurílio. Auto da Catingueira. Libretto. Editora e Gravadora
Rio Gavião, 1984b.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PONTY, Maurice Merleau. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
RIBEIRO, Darcy. O Povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
SIMÕES, Darcília. (Org.). Língua e estilo de Elomar. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2006.
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SUMÁRIO
O GÊNERO DRAMÁTICO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA
PORTUGUESA PARA O ENSINO MÉDIO
Anna Catharina Izoton Alves Mariano (UFES)1
Resumo: Este é o trabalho que contém os resultados finais do subprojeto de pesquisa “O gênero dramático em
livros didáticos de língua portuguesa para o ensino médio”, vinculado ao projeto “Leitura, literatura e materiais
didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múltiplos objetos culturais escritos”, orientado pela profª
Drª Maria Amélia Dalvi (UFES). A pesquisa teve caráter bibliográfico-documental e o referencial teórico-metodológico foi a História Cultural de Roger Chartier. Foram lidas e analisadas teses e dissertações relativas
à pesquisa, livros especificamente sobre teatro, o Guia Nacional do Livro Didático e dois livros didáticos
indicados por esse Guia, sendo eles Português- Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Chochar
Magalhães, e Português – contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M.
Abaurre e Marcela Pontara. Neles foi procurado o gênero dramático – que foi encontrado de modo muito
esparso.
Palavras-chave: gênero dramático; teatro; livro didático; literatura.
Introdução
O subprojeto de pesquisa finalizado, que deu origem a este artigo, intitulado “O
gênero dramático em livros didáticos de ensino médio”, foi vinculado ao projeto
“Leitura, literatura e materiais didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múltiplos
objetos culturais escritos”. Ambos tiveram como referencial teórico a História Cultural
vincada em estudos do historiador Roger Chartier (2012, 2009, 2007, 2004, 2003, 2002a,
2002b, 2002c, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990). Tal subprojeto teve como objetivos: mapear
protocolos de leitura e apropriações culturais do gênero dramático nos livros didáticos
analisados; formar um corpo bibliográfico sobre leitura, literatura e materiais didáticos e
outro sobre esses assuntos especificamente no Espírito Santo; e socialização e debate dos
resultados em vistas de aprimoramento para pesquisas futuras. Além disso, a metodologia
empreendida compreendeu uma revisão bibliográfica de pesquisas atinentes ao subprojeto,
leitura de obras do autor do referencial teórico, escolha dos livros didáticos e, então, análise
do gênero dramático presente neles.
1 Graduanda em Letras Português pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail:
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– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
Então, nosso primeiro passo foi observar algumas teses e dissertações (PIROLA, 2008;
EGITO, 2010; FALCÃO, 2010; DALVI, 2011; SCHWARTZ, 2011) defendidas no PPGE
(Programa de Pós-Graduação em Educação) da UFES ou apresentadas por docentes
vinculados a este PPG (caso da profª Cleonara Schwartz) que escolheram o mesmo
referencial teórico que o subprojeto, e não só, que têm temáticas semelhantes à pesquisa,
pois se tratam de ensino de leitura e/ou literatura. Fomos, então, a elas para observar a
utilização do referencial histórico-cultural, para que contribuísse para este subprojeto, afinal
elas destacam as noções de práticas, representações e apropriações de Chartier, que são não
só relevantes como essenciais. Além disso, essas dissertações, teses e plano de trabalho de
Pós Doutorado evidenciam a relevância e pertinência de se pesquisar sobre literatura em
livros didáticos, no contexto específico do Espírito Santo, por meio da História Cultural de
Roger Chartier. Esses trabalhos foram bem sucedidos e serviram de exemplo para a pesquisa
que se deu e que aqui relatamos.
Metodologia
Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja abordagem
teórico-metodológica é histórico-cultural (a partir dos trabalhos de Roger Chartier: 2009,
2007, 2004, 2003, 2002a, 2002b, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990), a produção, a leitura e a
discussão de dados supôs a consideração privilegiada dos livros didáticos contemporâneos
de língua portuguesa, indicados pelo PNLD do ensino médio (especialmente no que diz
respeito ao gênero dramático), em diálogo com o referencial teórico eleito. As fontes
priorizadas foram os livros História Concisa do Teatro Brasileiro, de Décio de Almeida
Prado, Iniciação Ao Teatro, de Sábado Magaldi – ambos os autores foram apontados por
Antonio Candido como os críticos brasileiros de maior destaque em sua obra Iniciação à
Literatura Brasileira -, Do Palco À Página, de Roger Chartier e o Guia Nacional do Livro
Didático de 2012. Entramos em contato com as escolas estaduais do Espírito Santo com as
melhores pontuações no ENEM 2012 e perguntamos qual foi o livro didático utilizado com
o 3º ano do Ensino Médio2. Das seis escolas contactadas (sendo cinco do interior e uma da
capital) quatro utilizaram o livro Português- Linguagens, de William Roberto Cereja e
2 Após a apresentação deste trabalho no evento destes anais, um pesquisador que estava presente durante a
apresentação nos sugeriu a leitura da tese de Rodrigo Travitzki (TRAVITZKI, R. (2013). ENEM: limites e
possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolar. Tese
(doutorado em Educação). Universidade de São Paulo: São Paulo), que relativiza a hegemonia da escola e/ou
do livro didático quanto ao aprendizado do aluno, consequentemente quanto ao seu desempenho no exame.
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Thereza Chochar Magalhães e duas utilizaram Português – contexto, interlocução e sentido,
de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara. Então esses
livros foram adquiridos, lidos integralmente em busca de referências ao gênero dramático e
fotografados.
Essas fontes bibliográficas e documentais foram consideradas teórico-
metodologicamente a partir de uma pesquisa histórico-cultural, embasada nos trabalhos de
Roger Chartier (2009, 2007, 2004, 2003, 2002a, 2002b, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990).
Essa perspectiva visou a atender, com as sempre necessárias revisões, às mesmas
preferências dos autores de Les usages de l’imprimé, volume organizado por Roger Chartier
ainda na década de 1980: a) privilegiar, como documentos a serem analisados, impressos
que têm ampla divulgação; b) fazer uma escolha do particular, em lugar da generalidade; e
c) compreender as utilizações dos materiais escritos privilegiados inseridos no contexto
preciso, localizado, específico que lhes confere sentido.
Devemos dar uma explicação sobre a escolha de se utilizar o termo “gênero
dramático” no subprojeto, não “teatro”, como se poderia esperar. Magaldi (1991) afirma que
“o texto, alinhado na biblioteca, sem alguém que o encene, (...) não é teatro”, portanto, não
poderíamos utilizar “teatro”, já que nossa análise é delimitada aos textos escritos para serem
encenados que estão presentes em livros didáticos, no entanto não estão ali para serem
encenados. Isso nos remete às noções fundamentais que constituem a “instituição literária”
apontadas por Chartier (2002c, p. 19):
Primeiramente, a identificação da obra como um texto escrito fixo, estabilizado e
que, graças a esta permanência, presta-se à manipulação. Em seguida, a ideia de
que a obra é produzida para um leitor – e um leitor que lê silenciosamente, para si
e sozinho, ainda que esteja num espaço público. Em terceiro lugar, a
caracterização da leitura como uma procura de sentido, um trabalho interpretativo,
uma busca de significados.
4 – Resultados
4.1 História Concisa do Teatro Brasileiro
Tal obra de Décio de Almeida Prado é uma das historiografias do teatro brasileiro de
mais destaque, senão a de maior destaque. Por esse motivo, adquirimos o livro e utilizamos
a divisão de capítulos dele para sublinhar quais foram os dramaturgos citados pelo autor em
cada capítulo – visto que, se estão numa historiografia, não é em vão, têm reconhecimento
para isso. Então consultamos os dois livros didáticos escolhidos e procuramos tais autores.
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Nos capítulos identificamos 19 dramaturgos sendo citados (nos atentamos para seus
nomes apenas, não suas obras). Nenhum deles consta nos livros didáticos, mesmo Martins
Pena, que de todos os 19 é o mais conhecido (ao menos no área da dramaturgia). Isso
demonstra que, para o conselho editorial desses livros didáticos, não é relevante que alunos
concluintes do ensino médio conheçam tais autores e obras. Dessa forma, então, os alunos
de fato não conheceriam esses autores e obras a não ser que o professor, com um material
didático extra, apresentasse-os a eles – e essa é apenas uma suposição.
Não pretendemos defender que tais ou tais autores, canônicos, não poderiam deixar
de constar em um livro didático de ensino médio. Em vez disso defendemos que o gênero
dramático seja representado, esteja presente no livro. Décio de Almeida Prado não
simplesmente elege os dramaturgos de cada período de tempo da produção dramática
brasileira, ele lista aqueles que se destacaram até o início do século XX, somente (o que não
desclassifica a obra).
4.2 Guia Nacional do Livro Didático 2012
A seguir reproduzimos o primeiro texto presente no Guia Nacional do Livro Didático
de 2012:
Que livro didático de português (LDP) devo adotar para o ensino médio (EM), em
minha escola?
Nos próximos dias nossos professores e professoras das redes públicas estarão
empenhados em contribuir, o mais criteriosamente possível, para elaborar uma boa
resposta para essa pergunta. Afinal, considerando-se o que é e como funciona o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) — que agora atende
universalmente o EM — a decisão será válida para alunos e para professores de
Língua Portuguesa (LP) de toda a escola; e em sala de aula, será, ao longo dos
próximos três anos, uma ferramenta didático-pedagógica fundamental. Na seção central deste Guia, as resenhas apresentam aos educadores todas as
coleções didáticas de LP aprovadas pelo processo avaliatório oficial. Cada uma
delas pretende fornecer parte significativa daqueles recursos de que o docente
deverá lançar mão, nas séries em que atua, para:
• ampliar e aprofundar a convivência do aluno com a diversidade e a complexidade
da LP em diferentes esferas de uso, propiciando-lhe um acesso qualificado à
cultura escrita disponível para jovens e adultos;
• desenvolver sua proficiência, seja em usos públicos da oralidade, em leitura, em
literatura, em produção de gêneros textuais relevantes para a formação escolar,
para o ingresso no mundo do trabalho e para o pleno exercício da cidadania;
• propiciar-lhe tanto uma reflexão sistemática quanto a construção progressiva de
conhecimentos, não só sobre a LP, mas também sobre linguagens; • aumentar sua autonomia relativa nos estudos, favorecendo, assim, o desempenho
escolar e o acesso aos estudos de nível superior.
Muitas das possibilidades e dos limites do ensino-aprendizagem em LP, assim
como das práticas de sala de aula, estão em jogo nesse momento. Portanto, todo
cuidado é pouco.
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Partindo desse pressuposto, o objetivo deste Guia é o de colaborar para que nossas
escolas promovam uma escolha qualificada do LDP, ou seja, uma escolha
motivada por um processo de discussão o mais amplo e criterioso possível. E uma
boa forma de dar início a esse processo é resgatar, em suas linhas gerais, as
características do EM e o papel específico de uma disciplina como LP nesse nível
de ensino.
Alguns trechos desse texto introdutório do Guia devem ser destacados. Por exemplo,
os recursos didáticos os quais os docentes irão utilizar devem “ampliar e aprofundar a
convivência do aluno com a diversidade e a complexidade da LP em diferentes esferas de
uso (...)” e “desenvolver sua proficiência (...) em produção de gêneros textuais (...)
(Secretaria..., 2012). Esses trechos, indiretamente, logo remetem à utilização de gêneros
textuais, mas não escolhe esse ou aquele gênero como os mais importantes para a formação
do aluno como sujeito e futuro participante do mercado de trabalho. No entanto, por uma
questão histórica, estão implícitas muitas regras e costumes e a permanência de uma
legitimação de alguns conteúdos em detrimento de outros. Essa é, portanto, uma falha
presente no Guia.
Nesse Guia há uma descrição dos livros escolhidos – na descrição do livro Português:
contexto, interlocução e sentido, na parte de literatura, não há trecho que prometa que os
gêneros literários serão bem trabalhados; já na parte de literatura do Português – Linguagens
lê-se “pode limitar o trabalho a ser realizado o fato de alguns conteúdos, como a definição
dos gêneros da esfera literária, por exemplo, serem abordados de forma simplificada”. Esse
trecho não nega o que podemos ver no livro.
4.3 Livros didáticos
Como já descrito, fizemos uma busca pelo gênero dramático nos dois livros didáticos
e descrevemos o que encontramos na tabela comparativa a seguir:
Tabela 3 – ocorrência do gênero dramático nos livros didáticos
Obra (dados
bibliográficos):
autor, obra,
edição, cidade
da editora,
editora, ano de
publicação.
ABAURRE, Maria Luiza M.;
ABAURRE, Maria Bernadete M.
e PONTARA, Marcela.
Português: contexto, interlocução
e sentido. São Paulo: Moderna,
2010. Vol. 3
CEREJA, William Roberto;
MAGALHÃES, Thereza Cochar.
Português- Linguagens. São Paulo:
Atual, 2012. Vol. 3.
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Ocorrências de
GD
P. 153; p. 154; p. 214 a 218, p.
221, p. 228.
P. 122, p. 366 a 370. p. 380, p. 383,
p. 391 e p. 480.
Obras/
dramaturgos
mencionados
fora do
capítulo
específico de
teatro
- Leur âme, Mon couer balance, O
homem e o cavalo, O rei da vela e
A morta, de Oswald de Andrade.
Obras/
dramaturgos
mencionados
no capítulo
sobre o teatro
brasileiro
contemporâneo
(XX-XXI)
Vestido de Noiva, A Mulher Sem
Pecado, Valsa nº6, Álbum de
Família, Anjo Negro, Doroteia, A
Falecida, Perdoa-me por me
traíres, Os Sete Gatinhos, Boca de
Ouro - Nelson Rodrigues; O rei da
vela, Oswald de Andrade; A
moratória – Jorge Andrade; O
auto da compadecida – Ariano
Suassuna; Eles não usam black-tie
– Gianfrancesco Guarnieri; Rasga
coração - Oduvaldo Viana Filho;
O pagador de promessas – Dias
Gomes; Dois perdidos numa noite
suja e Navalha na carne – Plínio
Marcos; Trate-me leão – Asdrúbal
Trouxe o Trombone; Batalha de
arroz num ringue para dois –
Mauro Rasi; Como encher um
biquíni selvagem – Miguel
Falabella.
Assim é, se lhe parece, de
Pirandello; Uma mulher e três
palhaços, de Marcel Archad;
Vestido de noiva, Nelson
Rodrigues; Eles não usam black-
tie, de Gianfrancesco Guarnieri;
Revolução na América do Sul,
Arena conta Zumbi, Arena conta
Tiradentes, Castro Alves pede
passagem, do grupo Teatro de
Arena; O rei da vela, de Oswald de
Andrade; Liberdade, liberdade,
escrita pelo grupo Opinião com
textos de diversos autores e
canções; Ham-let, do grupo Teatro
Oficina.
Fragmentos
diretamente
abordados
Vestido de noiva – Nelson
Rodrigues.
Vestido de noiva – Nelson
Rodrigues.
Dramaturgos
citados sem
obras
- Jorge Andrade, Augusto Boal, Ruy
Guerra, Ferreira Gullar, Chico
Buarque de Hollanda, Oduvaldo
Viana Filho, Paulo Pontes, Plínio
Marcos, Millôr Fernandes, Pedro
Bloch, Lauro César Muniz, Leila
Assunção, Juca de Oliveira, Edla
van Steen, Alcides Nogueira,
Bráulio Pedroso, David George,
José Eduardo Vendrami, Antônio
Fagundes, Walcyr Carrasco,
Fernando Bonassi.
Peças referidas
por meio de
imagens
O auto da compadecida – Ariano
Suassuna (no entanto foi utilizada
uma imagem do filme
Macunaíma, dirigida por Antunes
Filho em 1978; Depois da queda,
de Arthur Miller, encenada em
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homônimo); Vestido de noiva –
Nelson Rodrigues - cena de uma
apresentação em São Paulo, 1974.
1964; Vestido de noiva, dirigida
por Gabriel Villela em 2009.
Características
dos exercícios
Há uma sessão “texto para
análise”, com um trecho de 22
falas do primeiro ato de Vestido de
Noiva. Dez questões discursivas
estão dispostas a seguir.
Há um exercício da Fuvest, no
qual há um trecho de Vestido de
Noiva em que os personagens
recitam partes do filme E O Vento
Levou e o enunciado pede pra que
seja marcada a alternativa que
explica esse uso na peça.
No primeiro exercício era
necessário apenas assinalar qual
era o gênero do texto ali colocado.
No segundo era preciso conhecer o
enredo da peça.
Outras
observações
O dramaturgo Antonin Artaud foi
mencionado sem referência a
alguma obra dele, assim como
Juca de Oliveira, Leilah
Assunção, Maria Adelaide
Amaral, Millôr Fernandes,
Walcyr Carrasco, Fernando
Bonassi, Naum Alves de Souza,
Mário Bortolotto e Rubens
Rewald. Alguns importantes
diretores de teatro foram
mencionados (p. 216). Na p. 221,
nas indicações de leitura, há O
Melhor Teatro de Gianfrancesco
Guarnieri, de Décio de Almeida
Prado.
Na página 380, no exercício 2, há o
fragmento de uma obra dramática
de José de Alencar, no entanto não
há o nome dela.
As primeiras ocorrências do gênero nos dois livros didáticos foram em citações de
obras de uma forma bastante rápida. Por outro lado, a primeira ocorrência atenta no
Português- Linguagens é em um capítulo intitulado “O teatro brasileiro nos séculos XX-
XXI”, mencionando importantes nomes da dramaturgia da época, como Gianfrancesco
Guarnieri, Augusto Boal, Nelson Rodrigues, Oduvaldo Viana Filho, Teatro de Arena e
Grupo Opinião, etc. No entanto, sabe-se, ao estudar a historiografia do teatro brasileiro, ou
mesmo consultando a História Concisa do Teatro Brasileiro, que há produção artística
teatral no Brasil antes do século XX, existiram autores de destaque que ainda hoje têm peças
sendo montadas e adaptadas, como Martins Pena (1815-1848); muitos autores e peças
estrangeiras tiveram participação primordial na construção da história do gênero dramático
no Brasil.
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Assim, essa parte da produção dramática brasileira não foi devidamente citada ou
introduzida no livro didático. É por isso que é preciso pensar em algumas noções definidas
por Chartier, sendo elas materialidade, prática e representação.
Segundo Chartier (2012), “o processo de publicação, seja qual for sua modalidade, é
sempre um processo coletivo, que implica numerosos atores e que não separa a materialidade
do texto da textualidade do livro ou da “performance”. Além disso, na mesma publicação,
Chartier afirma que “os autores não escrevem os livros, nem mesmo os seus. Os livros,
manuscritos ou impressos, são sempre resultado de múltiplas operações que pressupõem
decisões, técnicas e competências bem diversas (...)”. Por isso, não devemos ser ingênuos e
atribuir apenas aos autores dos livros didáticos a presença (ou ausência) desse ou daquele
autor, desse ou daquele movimento, etc. Há um percurso editorial que molda a produção
inicial, que supostamente pertencia apenas aos autores.
Considerações Finais
Avançando nas noções defendidas por Chartier, sendo elas prática e representação,
devemos pensar que o posicionamento perante os assuntos, sejam eles quais forem, de todos
os envolvidos com o percurso editorial do livro didático apenas denota o que seria a postura
da sociedade atual em relação à literatura dramática - que a considera menor, menos
importante. Então, aplicando as noções ao caso, a representação que temos de teatro ou
gênero dramático é uma modalidade de texto pouco importante, e a prática gerada por isso
é o esquecimento desse gênero, que por sua vez legitima a representação citada.
O que não pode passar despercebido, também, é que escolhemos livros usados em
escolas que obtiveram boa pontuação no ENEM – exame que a cada ano torna-se mais
importante para o ingresso de alunos em universidades brasileiras. Se o lugar do teatro em
livros didáticos considerados bons pelo conselho avaliatório oficial é esse que vimos, logo
podemos supor que também não há lugar de prestígio para ele nos exames e vestibulares
para as universidades – afinal o prestígio por estudar em uma universidade nunca diminui,
então os livros didáticos têm suas esquematizações de conteúdo voltadas para seus processos
seletivos.
Referências
CHARTIER, R. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
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ISSN: 2358-405X
I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
______. Inscrever e apagar: cultura escrita e literatura, séculos XI-XVIII. São Paulo:
Unesp, 2007.
______. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Unesp, 2004.
______. Formas e sentidos. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Campinas,
SP: Associação de Leitura do Brasil; Mercado de Letras, 2003.
______. Os desafios da escrita. São Paulo: Unesp, 2002a.
______. À beira da falésia: a História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre:
EdUFRS, 2002b.
______. Do palco à página. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002c.
______. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos
Aguirre Anaya, Jesús Anaya Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborito. Porto Alegre:
Artmed, 2001.
______. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Conversações com Jean Lebrun.
São Paulo: Unesp, 1998a.
______. (Org.). As utilizações do objecto impresso. Lisboa: Difel, 1998b.
______. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos
XIV e XVII. Brasília: UnB, 1994.
______. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
______. Literatura e cultura escrita: estabilidade das obras, mobilidade dos textos,
pluralidade das leituras. Escola São Paulo de Estudos Avançados. 2012. Disponível em:
http://www.espea.iel.unicamp.br/textos/IDtextos_138_pt.pdf. Acesso em 17 jan. 2013.
DALVI, M. A. Drummond: a invenção de um poeta nacional pelo livro didático. Vitória:
Edufes, 2011.
EGITO, Regina. Obrigação ou prazer: o mundo da leitura de alunos do curso de Letras-
Português da UFES. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2010.
FALCÃO, E. B. de L. História do ensino da leitura no Espírito Santo (1946-1960).
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória,
2010.
MAGALDI, S. Iniciação ao teatro. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991.
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I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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PIROLA, A. L. B. O livro didático no Espírito Santo e o Espírito Santo no livro didático:
história e representações. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória, 2008.
SCHWARTZ, C. M. O ensino da leitura e a formação do leitor na escola primária capixaba
na década de 1960. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, 2011.
SECRETARIA de educação básica. Língua Portuguesa: catálogo do Programa Nacional do
Livro para o Ensino Médio: PNLEM/2012. Brasília, DF: Ministério da Educação; Secretaria
de Educação Básica, 2011.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
O GÊNERO ÉPICO-LÍRICO-DRAMÁTICO DE CAIO FERNANDO ABREU
Ricardo Augusto de Lima (UEL)1
Sonia Pascolati (UEL)2
Resumo: Caio Fernando Abreu (1948-1996) possui em sua obra literária exemplos do gênero épico, lírico e
dramático. Pensamos que, uma vez comprovada sua tendência ao hibridismo, sua obra vai não apenas dar
exemplos desses gêneros, como quebrar a fronteira entre os três. Da mesma forma que ele contamina o leitor
com a dúvida do empirismo em sua narrativa, Caio Fernando vai contaminar o leitor com a dúvida em relação
ao gênero que ele está lendo. Desta forma, esta comunicação tem como objetivo principal analisar o cruzamento
entre os gêneros épico, lírico e dramático na prosa e no drama do autor gaúcho, identificando tal hibridismo
como uma das marcas principais de uma possível poética caiofernandiana.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; hibridismo; gêneros literários.
Introdução
Este artigo é parte de uma pesquisa que visa definir pela primeira vez uma possível
poética da literatura escrita por Caio Fernando Abreu. Suponho, primeiramente, três eixos
principais: a intertextualidade, a metalinguagem e a autoficção. Tais eixos resultariam em
vários efeitos de leitura, dentre os quais destaco, aqui, o hibridismo de gêneros.
A intertextualidade, muito analisada na obra em prosa de Caio Fernando, teve sua
exploração no teatro em um estudo anterior3. O teatro do autor, assim como toda sua prosa
e poesia, vai ser abundantemente intertextual, não apenas com referências clássicas, mas,
principalmente, com relações contemporâneas e até mesmo autocitações. No estudo citado
acima, também orientado pela Profª. Dr.ª Sonia Vido Pascolati, analisei a peça O homem e
a mancha, ponto de partida também para a discussão da poética de Caio Fernando. Nessa
peça, ocorre não apenas uma livre leitura do Dom Quixote de Cervantes, como uma alusão
1 Doutorando em Letras na Universidade Estadual de Londrina (UEL) – [email protected] 2 Professora Doutora do departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) –
[email protected] 3Verificar LIMA, Ricardo Augusto de. “Estas três paredes do meu apartamento”: intertexto, ruptura da ilusão
e autoficção como recursos metateatrais em O homem e a mancha, de Caio Fernando Abreu. Dissertação
(Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.
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à novela de cavalaria, como o uso de resumos de capítulos, aventuras errantes e paixões
platônicas.
Da mesma forma, citações de autores diversos, além do próprio Cervantes, criam
uma atmosfera familiar ao leitor. Dentre as citações, destaco Mario Quintana, Fernando
Pessoa, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade, Garcia Lorca, Manuel
Bandeira e Machado de Assis. Alusões e citações contemporâneas permeiam entre os
canônicos, como Vicente Pereira, Pedro Almodóvar, Antônio Bandeiras e o próprio Caio
Fernando Abreu.
A autoficção na literatura de Caio Fernando Abreu foi explorada em dois estudos
também recentes: na prosa, por Nelson Luís Barbosa, em tese na Universidade de São Paulo,
no ano de 2008; e no teatro pela dissertação acima indicada. Percebe-se na literatura
caiofernandiana um tom confessional que não se aproxima do autobiográfico por manter
certo distanciamento entre as personas do autor empírico e a da personagem ficcional.
Quebrando algumas “regras” que Serge Doubrovsky coloca para o gênero, a literatura de
Caio Fernando se aproxima da autoficção por criar, a partir da experiência do autor, um
mundo ficcional que não expõe explicitamente a identidade de seu protagonista. Por marcas
no próprio texto e em leitura paratextuais podemos perceber ser o próprio Caio F.
Tanto a intertextualidade como a autoficção deixam transparecer a metalinguagem
do discurso, que deixa de ser apenas um (o literário) para ser vários (literário, crítico,
histórico etc). Na prosa, tal metalinguagem aparece muitas vezes como reflexão sobre a
escrita propriamente dita, quando não como libertação. No teatro, o metateatro surge de uma
forma explícito e irônica, mostrando não apenas conhecimento de técnicas teatrais e cênicas
como a capacidade de ironizar tais técnicas e transformá-las em recursos de humor, por
exemplo.
Em todos os estudos, fica explícito uma característica da obra de Caio Fernando
Abreu que é bem pouco explorada: o hibridismo de gêneros que sua prosa, seu drama e sua
poesia possuem.É sobre isso que vou, neste artigo, me prender: verificar em que pontos a
Épica, a Lírica e o Drama se encontram na obra caiofernandiana.
O teatro épico de Caio Fernando Abreu
Por algum tempo se pensou o teatro do século XX enquanto seu tom épico na
modernidade. Imagino ser daí a busca pela teatralidade na obra de Caio Fernando Abreu,
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mesmo em prosa. Dado importante é o fato de hoje entrarem em cartaz mais peças adaptadas
de contos, crônicas e até mesmo cartas de Caio Fernando do que suas peças propriamente
ditas. Nos últimos anos assistimos a adaptações de contos como “Aqueles dois”, “Dama da
noite”, “Lixo e purpurina”, “Anotações Sobre um Amor Urbano”, “A visita”, entre outras.
Efeito contrário, as peças de Caio apresentam certa narratividade. Ora, Caio conhecia
o teatro europeu e norte-americano do século XX, e não era um desconhecedor quando
escreveu suas próprias peças. Assim, nelas se percebe influências que ajudam a enquadrar
esse teatro em um panorama geral.
Lídia Fachin (1998, p. 103) define narratividade no teatro a partir de Greimas:
princípio organizador de todo o discurso. O texto dramático, enquanto discurso, é marcado,
pois, pela narratividade, em menor ou maior grau. A questão não é a narração, visto que esta
pode existir nas ações dos personagens no palco ou pelo uso do presente do indicativo, mas
sim pelo fato de ocorrer uma “‘contaminação’ do gênero dramático pelo gênero épico”
(FARIA, 1998, p. 47) nas peças de Caio Fernando Abreu. E não só do épico no teatro, mas
uma contaminação completa entre os gêneros. Desta forma, percebemos os gêneros
contaminando e se deixando contaminar uns pelos outros.
Desde Aristóteles, a teoria dos gêneros se alterou, mantendo, entretanto, uma espécie
de cerne de cada um deles inabalável. Mesmo com todos os experimentalismos formais,
[...] a Lírica continua a exprimir uma voz subjetiva, a traduzir um estado de alma
em uma linguagem dotada de poeticidade; a Épica não deixou de ser o modo imitativo pelo qual uma história é contada por um narrador; e a Dramática,
finalmente, é o gênero que, desde sempre, necessita do ator para realizar-se em sua
plenitude, pois o seu modo de imitação, para lembrar as palavras de Aristóteles,
exige “pessoas que agem e obram diretamente” [...] (FARIA, 1998, p. 47).
Por algum tempo, se respeitou ao máximo essas definições, limitando com precisão
as fronteiras entre os gêneros. Principalmente na Dramática, Aristóteles deu bases para que
se fixassem as regras das unidades (de ação, tempo, espaço e tom). Hoje, porém, a teoria da
literatura propõe novas interpretações e leituras, não se prendendo aos limites desse ou
daquele gênero. “A moderna poética, desenganada de quaisquer tentações dogmáticas e
absolutistas, procurando na história a sua fundamentação, reabilitou o conceito de gênero
literário.” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 225). Temos, então, poemas com fortes traços
épicos e dramáticos, peças inteiras líricas e romances com passagens mais subjetivas e/ou
dramáticas. E os exemplos serão muitos.
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Vitor Manuel de Aguiar e Silva cita dois teóricos distintos que repensaram o conceito
e os limites dos gêneros literários: Emil Staiger e György Lukács. O primeiro é o que mais
nos interessa. Staiger publicou em 1952 sua obra Grundbegriffe der Poetik (Conceitos
fundamentais de poética), na qual mostra a distinção entre a forma substantiva e a forma
adjetiva dos gêneros literários. Em outras palavras, existe a possibilidade de que marcas
estilísticas de cada gênero existam em qualquer texto literário, sem restringi-lo a um único
gênero. Assim, os estilos épico, dramático e lírico podem ser considerados adjetivos,
enquanto a Épica, a Dramática e a Lírica são substantivos, pois um texto, mesmo sendo
contaminado pelos três gêneros, apresenta características principais de um deles.
“Condenando uma poética apriorística e anti-histórica, Staiger acentua a necessidade de a
poética se apoiar firmemente na história, na tradição formal concreta e histórica da literatura,
já que a essência do homem é a temporalidade” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 225).
Staiger compreendeu que o que define uma obra não é o gênero no qual estáinserida
(substantivo), mas o traço estilístico predominante (adjetivo). Sua constatação surge a partir
do momento em que escritores não se limitam ao gênero literário, quebrando barreiras e
deixando o texto ser contaminado por traços estilísticos alheios àquele gênero. Para ele, não
existe, então, uma obra puramente lírica, épica ou dramática, pois “qualquer obra autêntica
participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e [...] essa diferença de
participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente”
(STAIGER, 1975, p. 15). Sonia Pascolati (2009, p. 97) afirma que, no que diz respeito ao
texto dramático, importa menos o gênero e mais sua funcionalidade dramática, isto é, sua
teatralidade.
José Roberto Faria (1998, p. 49), por exemplo, aponta Bertolt Brecht comoo
dramaturgo no qual é mais evidente esse hibridismo; o autor é responsável
pelasistematização de um teatro épico, isto é, “um teatro no qual o traço estilístico
fundamental não é o dramático, mas o narrativo”.
Caio Fernando Abreu, desde sempre ligado principalmente ao gênero épico(contos e
romances), deixou-se contaminar pela prosa sua e de outros em seus textosdramáticos.
Exemplo claro desse hibridismo, a peça O homem e a mancha, de 1994. Nela, elementos
marcam (a) influência de Brecht e (b) indícios do que Peter Szondi (2003) chama de
epicização do texto dramático.
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Trata-se de um monólogo com cinco personagens que, em uma dimensão onírica, são
evocados primeiramente pelo personagem Ator. Após esse escolher (ou ser escolhido pelo)
seu personagem, Quixote, Homem da Mancha e Cavaleiro da Triste Figura vão se revezar
em forma de delírios e sonhos. Todos eles buscam algo: o Ator busca um personagem,
Miguel busca a fuga do mundo, Quixote busca aventuras e Dulcineia, Homem da Mancha
busca uma mancha imaginária (ou não) e Triste busca uma saída. Tal fragmentação de
personagens revela a fragmentação do próprio Ator, personagem inicial, e de Miguel,
personagem-eixo da peça.
Desde o início de O homem e a mancha, que começa com o “era uma vez”, marca
mais evidente e popular da narração, até seu final, recursos épicos estão presentes. Para
melhoridentificá-los, vamos nos prender ao texto dramático, marcado pelo uso de títulos e
resumos, além do Prólogo e do Epílogo. Entretanto, o Prólogo e o Epílogo em O homem e a
mancha não possuem as mesmas características desses elementos na tragédia grega, por
exemplo.
Enquanto lá a figura de um narrador é inserida a fim de marcar a narratividade, seja
ele constituído de um Coro ou mesmo pelo diálogo entre dois personagens, aqui temos o
personagem do Ator, metateatral por excelência.
ATOR — Era uma vez... era uma vez... era uma vez... era uma vez... era uma vez...
era uma vez... era uma vez. Era uma vez o quê, meu Deus? Era uma vez quem? E
quando, e onde era uma vez? É tão difícil escolher, é tão difícil começar. [...]
(ABREU, 2009, p. 220).
Nesse começo percebemos não apenas a presença do “era uma vez” como marca da
narratividade, mas a indagação dos principais elementos do texto narrativo: o quê,quem,
quando e onde. Ação, personagem, tempo e espaço são procurados pelo Ator, que, a partir
de uma crise imaginativa, inicia sua crise existencial.
Além dele, todos os outros personagens, motivados pelo próprio monólogo em que
estão inseridos, possuem discursos narrativos, diegéticos, que remontam um passado ou uma
função descritiva, como podemos verificar nos trechos a seguir.
ATOR — Era uma vez... eu. Claro, tem que ser alguma coisa que eu conheça bem. Eu, então. Faz quarenta anos que convivo comigo mesmo. Alguma coisa devo
conhecer. Sim, é isso mesmo. Eu. Por que não? Afinal, eu me acho bem
interessantezinho (ABREU, 2009, p. 221).
MIGUEL — Finalmente chegou o grande dia. Miguel Quesada – o desventurado
trabalhador anônimo, o solitário depressivo, o neurastêmico insuportável, o mal-
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amado, o zé-ninguém que nunca teve nada nesta vida além de seus loucos sonhos
impossíveis –, Miguel Quesada está livre (ABREU, 2009, p. 223).
HOMEM — Senhores, por mais que minhas idéias andem perturbadas, como
dizem – e talvez tenham razão –, certamente as idéias deste autor não o estavam
quando, para iniciar sua obra imortal, escolheu justamente a expressão “num lugar
da Mancha”. [...] (ABREU, 2009, p. 230).
QUIXOTE — Embora temporariamente fora de combate, por conta de um mal
nos rins (Apalpa as cadeiras, geme.) que quase me arrancou a vida, jamais deixarei
de pertencer à nobre ordem dos cavaleiros andantes (Altivo.) Defensor das
donzelas, amparador das viúvas e socorredor dos órfãos e desvalidos da sorte! [...]
(ABREU, 2009, p. 231). TRISTE (Para a Lua.) — Cavaleiro da Branca Lua, vencido estou. Branca, branca
Lua: a teus pés de prata deponho meus arroubos. Oh, Lua, desalmada e feiticeira...
Tamanha surra me deste, Cavaleiro Branca Lua, que já não valho um furo sequer
da sola das tuas negras botas. Adeus, dias de vinho e rosas (ABREU, 2009, p.
255).
Percebe-se que o uso do pretérito perfeito e do estilo narrativo (principalmente de
Miguel) comunga com a epicização da qual Peter Szondi (2003) trata. Além de evidente
presença de características do gênero lírico, mais visível na última citação, na qual o lírico
sobrepõe o épico, mantendo-se no dramático. Tal contaminação participado processo
intertextual no qual a peça é produzida, visto ser uma releitura do romance de Cervantes.
Desta forma, romance e texto dramático dialogam entre si não apenas com seus personagens
e certos trechos citados entre aspas, mas também nas próprias características do gênero épico
que servem como elo entre as duas escrituras.
O espaço diegético, isto é, aquele que não é visto, extra-cênico, comunicado
verbalmente nas falas e nos resumos/títulos de cenas, constitui o que restou do romance na
sua releitura dramática. A narração é transposta para o espaço mimético, ou seja, aquele que
é visto, transmitido sem mediação por meio do monólogo de cada personagem.
Outra diferenciação está no modo como se desenrola o enredo. Enquanto a narrativa
permite uma multiplicidade de núcleos narrativos desdobráveis em muitos episódios, o
drama se concentra em uma ação nuclear, circunscrita a poucos episódios (PASCOLATI,
2009, p. 96). Assim, temos em O homem e a mancha uma peça cujo caráter é misto, híbrido
de dramática com épica. Enquanto a primeira possui, essencialmente, cenas escritas uma em
função da outra, na segunda temos cada cena independente, sem encadeamento. Na peça de
Caio, ao mesmo tempo em que temos cenas em forma de monólogos aparentemente
independentes, temos uma linearidade composta por fragmentos. A obra de Caio Fernando
Abreu tem como traço formal a construção de um texto baseado em encaixes de outros, cujos
sentidos são modificados ou intensificados.Dito de outra forma, os fragmentos fazem parte
da mesma história, que se desdobra em personagens, espaços e épocas.
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Em um movimento similar, a lírica adentra na peça em vários momentos, fazendo
emergir um estado da alma que, se não fosse o personagem, soaria como uma espécie de eu
lírico no texto.
[...] Perdoai-me todos, se a alguns fiz mal. É que fugiu-se-me a razão, dizem, por
longo tempo, e só me torna agora. Tarde demais, pois a morte já anunciou sua
chegada. Que louco sonho ou pesadelo foi a minha vida, a tua vida, as nossas
vidas. Ah, somos todos inocentes nesta barca da Medusa a navegar insânias. E eu
de nada me arrependo (ABREU, 2009, p. 256).
Em vários outros momentos os personagens deixam-se guiar pelo subjetivo, seja para
falar sobre o amor ou sobre a morte: “MIGUEL — Tu foste a única pessoa que poderia ter
emprestado alguma cor à minha vida em sépia” (ABREU, 2009, p. 233).
Da mesma forma, a intertextualidade com poetas deixa emergir um tom lírico ao
drama, como nos exemplos a seguir.
QUIXOTE - Dulcinéia, minha estrela da manhã (Recita Manuel Bandeira.) “Pura
ou degradada até a última baixeza eu quero a estrela da manhã!” [...]
MIGUEL (Citando Machado de Assis.) — Carolina! “Querida, ao pé do leito
derradeiro!”
[...]
ATOR (Citando Clarice Lispector.) — “Ter nascido me estragou a saúde.”
[...]
ATOR (Citando Oswald de Andrade.) — “Ah o amor, o amor, o amor: eu quero
porque quero da vida!” (ABREU, 2009, p. 254-5).
QUIXOTE – Ah aleives, urdiduras, tramas vis! Novamente a negra falange
dos devotos de Lúcifer intenta confundir-me com sua astúcia maligna! Pois
saibam que não os temo, demônios! (Caminha hierático para a boca de cena e declama Mario Quintana.):
“Vinde, corvos, chacais, ladrões de estrada!
Ah! Desta mão avaramente adunca!
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!” (ABREU, 2009, p. 229).
MIGUEL (Para o manequim.) — [...] Que horror, que lindo encontrar contigo
todas as manhãs de todos estes dias de todos estes anos, Carolina(Trágico.) Ai de
mim, platônico e patético! (Sofrendo muito, geme uns versos de Fernando
Pessoa/Álvaro de Campos, com leve sotaque lusitano.): “Serei sempre o que
esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma paredes em porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado.” (ABREU, 2009, p. 234).
E ainda:
[...] (Recita García Lorca, num último alento:) “Si muero,
deja del balcón abierto.
El niño come naranjas.
(Desde mi balcón lo veo.)
El segador siega el trigo.
(Desde mi balcón lo siento.)
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Si muero,
deja del balcón abierto!”
Com um esforço derradeiro, TRISTE joga a rosa para a platéia. Leva a mão
ao peito, geme (ABREU, 2009, p. 256-7).
Por fim, o Drama também contamina o Épico, o que explica, em partes, a frequente
adaptação para o teatro de contos e crônicas de Caio Fernando Abreu. Em alguns textos,
podemos dizer que já existe uma peça pronta, escrita na ironia desse hibridismo de gênero,
e não me refiro a situações dramáticas e de tensão apenas, mas mesmo em questões óbvias,
como a construção textual, como o conto “Diálogo”, inserido na coletânea Morangos
mofados, de 1983, mas também presente na edição do Teatro completa de Caio Fernando
Abreu, organizado por Luiz Arthur Nunes (para quem é dedicado esse conto/peça) e Marcos
Breda.
A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto. (ABREU, 2009, p. 33)
Além desse, outros textos são construídos como peças de teatro, contendo, inclusive,
rubricas:
“— Você tem um cigarro?
— Estou tentando parar de fumar.
— Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora. — Você tem uma coisa nas mãos agora.
— Eu?
— Eu.
(Silêncio)
[...]
— Você é de Virgem?
— Sou. E você, de Capricórnio?
— Sou. Eu sabia.
— Eu sabia também.
— Combinamos: terra. — Sim. Combinamos.
(Silêncio)”
(ABREU, 2005, p. 126; 128).
— Hein?
— Nada. Não disse nada.
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— Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com
eles.
— Quem?
— Você sabe. Como é que você os chama?
— Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.
— Eles têm voltado?
— Todas as noites.
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que,
se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais
precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura,
um brilho estranho nos olhos. [...] Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no
momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o
outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar
algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores
rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. [...])
— Hein?
— As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele
cheiro adocicado?
— Não reparei.
— Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.
(ABREU, 2005b, p. 106-7).
Conclusão
Nesses breves exemplos fica clara minha proposta: mostrar tendo como ponto de
partida a peça O homem e a mancha como a escrita de Caio Fernando Abreu apresenta como
poética o hibridismo de gêneros em menor ou maior escala. Resta verificar se esse
hibridismo nasce como ponto principal da poética caiofernandiana ou se ele é resultado
daqueles outros três eixos frequentes: intertextualidade, autoficção e metalinguagem.
Independente da resposta, basta-nos por enquanto a seguinte afirmação: o teatro, mesmo
quase esquecido em grande parte dos estudos acadêmicos, permanece presente na literatura
contemporânea. E às vezes é o próprio impulso para a escrita literária.
Referências bibliográficas
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2005. p. ???
______. O dia em que Júpiter encontrou Saturno. In: _____. Morangos Mofados. Rio de
Janeiro: Agir, 2005. p. 124-131.
______. A outra voz. In: _____. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro:
Agir, 2005b. p. 103-110.
______. O homem e a mancha. In: ______Teatro completo. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
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AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. Lisboa: Livraria Almedina,
1976.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
FACHIN, Lídia. O espaço da narrativa no teatro. Revista Itinerários. Araraquara, UNESP,
n. 12. p.103-10, 1998. Disponível em:
<http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2918/2683>.Acesso em: 20 mar. 2013.
FARIA, João Roberto. A narrativa no teatro. Revista Itinerários. Araraquara, UNESP, n.
12. p. 47-57,1998. Disponível em:
<http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2911/2673>. Acesso em: 20 mar. 2013.
PASCOLATI, Sonia Ap. Vido. Operadores de leitura do texto dramático. In: BONNICI,
Thomas; ZOLIN, Lucia Osana (Orgs.) Teoria literária: Abordagens e tendências
contemporâneas. 21. Maringá: Eduem, 2009. p. 93-122.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
1975.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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SUMÁRIO
O REI DA VELA E A TRANSGRESSÃO DO
ESTATUTO COLONIAL ARTÍSTICO BRASILEIRO
Wallisson Rodrigo Leites (UNIOESTE)1
Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)2
Resumo: No contexto brasileiro, o Modernismo serviu como marco inicial para um processo de ressignificação
da história, a exemplo, vale citar aqui o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade que, sob
influência das Vanguardas Europeias, propunha a deglutição dos padrões artísticos burgueses/coloniais da
época, para se repensar a cultura no país, tornando-se, deste modo, importante referência para a produção
artística nacional contemporânea no que se refere ao processo de desconlonização cultural. Considerando sua
importância artístico-social, parte desta produção ainda requer estudos mais aprofundados, a exemplo do teatro
de Oswald de Andrade. Desse modo, pretende-se, a partir do presente trabalho, aprimorar o entendimento dos
elementos constituintes da dramaturgia oswaldiana inserida na proposta artístico-social apresentada pelo
modernismo brasileiro. Para tanto, tomar-se-á como corpus de análise, o teatro de Oswald Andrade, aqui especificamente a obra O rei da vela, escrita em 1933, para uma leitura reflexiva que aponte para confluências
deste teatro com a proposta antropofágica de deglutição, assimilação e reformulação da arte e da cultura
nacional.
Palavras-chave: Transgressão estética e cultural; O Rei da Vela; o teatro oswaldiano e o processo de
descolonização cultural.
Introdução
Dentro do contexto nacional, o movimento modernista, iniciado com a Semana da
Arte Moderno, em 1922, revolucionou o perfil da arte no Brasil, buscando romper com os
padrões artísticos até então apresentados no país, estabelecendo novos modos de conceber a
arte. Influenciados pelos movimentos vanguardistas europeus, os artistas e pensadores da
cultura da época propunham um profundo rompimento com os modelos estéticos e
ideológicos que a arte vinha apresentando.
Nesta perspectiva, o teatro de Oswald merece destaque dentre os modernistas, dado
que a, partir de sua proposta teatral, buscava descrever o homem contemporâneo sem ater-
se a dubiedade ou a fragmentação do ser, mas escancarando aos olhos da sociedade o quão
ridículo ela é em suas relações interpessoais, ao se prender a padrões de comportamento e
pensamento de forma automatizada, superficial e não reflexiva. Nesse sentido, as caricaturas
1 Mestrando na UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. [email protected] 2 Professora na UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. [email protected]
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apresentadas pelo autor em sua produção teatral não se restringem às personagens, abarcando
também as próprias instituições sociais, como a família, a igreja e outras instituições,
mostrando que estas perderam seu valor e que, no entanto, continuam sendo “fundamentais”
para a vida em sociedade apenas por pura convenção e manutenção da ordem do sistema
social (automatismo). Segundo Cury, Oswald de Andrade representa, no panorama da
literatura brasileira, [...] o grande gerador de novas atitudes formais. Em qual- quer que seja
o recorte de sua obra – poesia, prosa, teatro -, a transgressão dos valores instituídos é a
característica preponderante. (CURY, 2003, p. 15).
Antes de ser conhecido por sua produção dramatúrgica, Oswald já havia marcado seu
nome entre os grandes autores de seu tempo com o Manifesto Antropófago (1924) e com o
Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1928), textos reveladores dos ideais propostos pelos
artistas da época. Nesses textos, o autor discute de forma crítica os modos de se fazer a
poesia, a literatura e a arte, atacando as chamadas escolas literárias. Para Oswald de Andrade
(1971) a arte está no mundo e se concretiza a partir da livre expressão do pensamento, e não
por meio de um pensamento orientado burocraticamente por padrões estéticos que servem
ao deleite do burguês, indo de encontro à noção de cânone literário e corroborando a
permanência da mentalidade colonial da práxis.
Para alcançar tal objetivo, o manifesto propõe a desacralização e a deglutição
consciente e crítica de todos os padrões artísticos de uma sociedade coisificada, na qual o
próprio pensamento se constitui por meio de uma sistematização lógica e funcional, para, a
partir de então, buscar novas perspectivas acerca da compreensão artística e,
consequentemente, do mundo, e, sobretudo, de uma identidade nacional. “[...] Era preciso
inverter o superior e o inferior, precipitar tudo que era elevado e antigo, tudo que estava
perfeito e acabado, nos infernos do ‘baixo’ material e corporal, a fim que nascesse
novamente depois da morte” (BAKHTIN, 1999, p. 70). Esta é a perspectiva carnavalizada e
antropofágica praticada pelos modernistas. Não obstante, “a antropofagia é antes de tudo o
desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e
absorção da alteridade” (PERRONE-MOISÉS, 1995, p.95).
A partir destas considerações, no próximo tópico a ser trabalhado no presente
trabalho, buscar-se-á realizar uma breve análise interpretativa da obra O rei da vela, de
Oswald de Andrade, procurando observar os aspectos constituintes do teatro oswaldiano
inserido na proposta Antropofágica, como perspectiva estética original para a produção
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crítica e literária no contexto latino americano, contribuindo para o processo de reelaboração
do conceito mimeses no ocidente.
O Rei da Vela e a proposta dramatúrgica oswaldiana
O Rei da Vela é uma das peças que marca o início do Modernismo no teatro
brasileiro. Escrita em 1933, editada somente quatro anos após, em 1937, por José Olympio
Editora e encenada pela primeira vez pela companhia Teatro Oficina de São Paulo em
setembro de 1967, compõe, juntamente com as obras O homem e o cavalo (1934) e A morta
(1937), a Trilogia da Devoração do teatro antropofágico de Oswald de Andrade, segundo
Magaldi (2005).
O Brasil passava por um período de grandes inovações nos campos da indústria e
da tecnologia. A chegada das primeiras grandes indústrias e, consequentemente, do capital
estrangeiro, abriu as portas do país para o comércio exterior. O que se criou, a partir de então,
foi uma grande via de mão dupla, em que ambos os lados saiam ganhando. Com a chegada
de capital, o país poderia investir em infraestrutura e na consolidação do comércio interno,
mas, que ao mesmo tempo, era fonte de exploração do capital vindo de fora, que encontrou
nos baixos custos de produção brasileira uma fonte de multiplicar dinheiro. Nas palavras de
Abelardo I, protagonista de O rei da vela, está contemplada tal perspectiva:
ABELARDO I – [...] compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que
trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você
acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil
pernas mais bonitas da terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão
Preto a Cingapura, de Manaus à Libéria? (ANDRADE, 2003, p.63).
Tal citação da obra de Oswald pode ser relida nas palavras de teóricos que abordam
a temática da des/colonização, abarcando o modo como o modus operandi do colonizador
reflete na constituição cultural do povo em diversos âmbitos. Segundo Mingnolo, seguindo
a mesma linha de pensamento de Oswald a cerca da visão do colonizador europeu:
La “idea” de América Latina es la de una región que comprende una enorme
superficie de tierra rica en recursos naturales donde abunda la mano de obra
barata. [...] También podría rastrearse [...] el traslado de plantas productivas de
empresas estadounidenses a países em vías de desarrollo con el propósito de
abaratar costos. Em cuanto al control de las finanzas, basta comparar la cantitad
y el tamaño de los bancos de Nueva York, Londres o Fráncfort con los de Bolivia,
Marruecos o la India. (MIGNOLO, 2007, p. 38).
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A ideia apresentada pela personagem Abelardo I é reforçada pelo pensamento de
Mignolo na obra La idea de America Latina. Para Mignolo, essa “idea” surge a partir do
pensamento do colonizador em relação às colônias, mantendo um estatuto colonial
econômico.
Tal fator, não representa, porém, nenhuma novidade. Sabe-se bem que os países que
têm maior domínio do capital aproveitam-se daquele que não o tem e, a partir de tal sistema,
o Brasil continuou cultivando um estatuto colonial. Há que se considerar que, além da
dependência comercial, esse colonialismo refere-se também à formação do pensamento
nacional, que calcado na matriz geradora judaico-cristã-ocidental, mantinha aspectos
comportamentais não condizentes com a realidade do país. A essa colonização do
pensamento, Mignolo vai se referir como “la colonización del ser” que:
consiste nada menos que en generar la idea de que ciertos pueblos no forman
parte de la historia, de que no son seres. Así, enterrados bajo la historia europea
del descubrimiento están las historias, las experciencias y los relatos conceptuales
silenciados de los que quedaron fuera de la categoria de seres humanos, de
actores históricos y de entes racionales (MIGNOLO, 2007, P. 30).
Tal prerrogativa poderia ser uma plausível explicação para a criação, no inconsciente
coletivo, da noção de inferioridade em relação aos países de “primeiro mundo”. Tal noção
estende-se desde a questão econômica até aos aspectos culturais, facilitando assim, a
recepção de produtos culturais advindos de fora em detrimento das culturas populares de cor
local. Em síntese, reside nesse contexto o pano de fundo da sátira oswaldiana, práticas e
mentalidades arcaicas em um país que se queria modernizar e apropriar-se da tecnologia,
conforme Alves (2011).
Tal aspecto, no entanto, só é de interesse ao passo que tais mudanças no âmbito
econômico interferem na constituição sociocultural, pois é esse o fator que será representado
de forma evidente nas manifestações artísticas e principalmente na obra de Oswald aqui
analisada, O rei da vela. Sua temática revela aspectos importantes da cultura nacional,
principalmente por abordar temas “delicados” para o período histórico de produção. Talvez
por isso a obra tenha sido engavetada por quatro anos após sua escritura, para ser editada e
encenada muitos anos mais após a publicação.
A peça retrata a história de um agiota, Abelardo I, também conhecido como “o rei
da vela”, que ganha a vida extorquindo dinheiro das pessoas, e a arruma um casamento com
Heloísa de Lesbos, de uma família de latifundiários de renome nacional. Todas as relações
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sociais que aparecem na obra tratam-se síntese, de negócios e relações humanas precárias
em sua hipocrisia. Todas as personagens que aparecem na peça estão interessadas única e
exclusivamente em seu próprio benefício.
Um dos exemplos que se pode depreender da peça é o casamento de Abelardo I e
Heloisa, já que, ele, apesar de ter muito dinheiro, não tem o peso do nome de uma família
de tradição e ela, apesar de pertencer a uma família “nobre”, com a falência dos negócios de
seu pai, devido à crise das oligarquias agrárias, não tem capital para manter o padrão de vida
no qual foi criada, padrão esse que tinha por objetivo manter determinada cultura do
comportamento implantada pela colônia e não condizente com a realidade de um país pobre.
Segundo Sartre (1979), em seu prefácio à obra Os condenados da terra, de Frantz Fanon, a
metrópole “fabricou em bloco uma burguesia de colonizados” que pudesse ao mesmo tempo
em que era explorada dar continuidade à exploração do povo. Assim, a união das
personagens supracitadas representa uma tentativa de sobrevivência dessa aristocracia e
consequentemente de uma cultura de estratificação. A partir do diálogo entre as personagens
Abelardo I e Abelardo II, logo no início da narrativa teatral, pode-se perceber a importância
dada pelo novo burguês aos valores tradicionais, pois esse novo homem de negócios que
surge conhece a necessidade de se diferenciar e de se destacar do povo.
ABELARDO I – Que importa? Para nós, homens adiantados que só conhecemos
uma coisa fria, o valor do dinheiro, comparar esses restos de brasão ainda é
negócio, faz vista num país medieval como o nosso! O senhor sabe que São Paulo
só tem dez famílias?
ABELARDO II – E o resto da população?
ABELARDO I – O resto é prole. O que estou fazendo, o que o senhor quer fazer
é deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece
teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo. (ANDRADE, 2003, p.43).
Percebe-se então, que o conceito de família trazida pelo autor, constitui-se a partir da
paródia dos valores sociais, esfacelando assim com a noção de que a referida instituição é
que mantêm a ordem da sociedade, pois, como observado no diálogo entre os Abelardos, no
mundo contemporâneo, onde o importante é o dinheiro, o casamento não passa de um
negócio com o qual se pode conseguir algum lucro, e no caso de Abelardo I e Heloísa, seria
lucrativo para ambos, pois enquanto Heloísa voltaria a ter um bom padrão de vida, Abelardo
I, teria um nome tradicionalmente respeitado devido sua origem nobre. Assim, “Os velhos
senhores da terra que tinham que dar valor aos novos senhores da terra!” (ANDRADE, 2003,
p. 62) e assim a “burguesia de colonizados” a que Sartre se refere poderia ter continuidade.
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Além de enriquecer emprestando dinheiro a juros altíssimos, Abelardo I era
fabricante e vendedor de velas, daí o título do livro e pseudônimo da personagem
protagonista. No entanto, não se trata de um produto qualquer, pois com os altos preços
cobrados pela energia elétrica, a vela se convertia na única saída para a maioria da população
brasileira. Não obstante, a vela pode ser associada à morte, já que, quando uma pessoa morre,
é velada. Logo, “o rei da vela”, além de explorar seus “clientes” até a morte, ainda lucrava
com a venda das velas que eram utiliza- das nos velórios das pessoas. Como se pode observar
a partir da fala da personagem Abelardo I:
ABELARDO I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O
Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando
nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das
escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais
pôde pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente.
Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário.) Para
o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende
e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no
mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a
passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada
morto nacional. (ANDRADE, 2003, p. 61-62).
Trata-se de uma forma de não perder a oportunidade de ganhar dinheiro, pois o fazia,
com os vivos e com os mortos. A todo o momento na peça a personagem Abelardo I busca
ridicularizar o povo com o objetivo de manter o cada um em seu lugar, como se de modo
pré-determinado existisse um lugar para o explorador e outro para o explorado. Esse aspecto
traduz o processo de colonização desde a chegada das primeiras caravelas, em que o
autóctone era visto, não como um homem, mas como um animal sendo, portanto, subjugado
ao europeu. Segundo Sartre [...] a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao
nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A
violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens
subjugados; procura desumanizá-los. (SARTRE, 1979, p.9). Oswald busca representar isso
por meio de sua peça ao apresentar os clientes (os explorados) de Abelardo (o explorador)
aproximando-os de animais selvagens, como se pode observar no trecho:
ABELARDO I – [...] Abra a jaula!
Abelardo II obedece de chicote em punho. A porta de ferro corre pesadamente
Mais clientes
Os clientes aparecem atropeladamente nas grades. É uma coleção de crise,
variada, expectante. Homens e mulheres mantêm-se quietos ante o enorme chicote
de Abelardo II. (ANDRADE, 2003, p. 22).
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Então, como observado, “instaura-se, pela linguagem, não um conflito que levaria à
catarse aristotélica, mas ao resgate da condição social brasileira, analiticamente observada
pelo conflito de classes.” (CURY, 2003, p. 50). De acordo com Candido (1976), a estrutura
econômica da sociedade, defendida pelas relações materiais de produção, constitui a base
sobre a qual a literatura e a arte se constroem, o que as torna, portanto inseparáveis do
processo histórico - e incompreensíveis fora dele, não em termos puramente mecânicos, mas
numa perspectiva dialética, em que arte e realidade, num jogo de ação e reação contínuas e
recíprocas, acompanham e ao mesmo tempo promovem seu desenvolvimento.
Diferentemente do teatro aristotélico, o que se apresenta na proposta de teatro
oswaldiano é uma problematização de uma dada realidade, apontando para formação de
princípios estéticos e ideológicos que se referem a escolhas do escritor e dramaturgo na
sociedade, conforme explica Alves (2011). Nesse sentido, o teatro oswaldiano tem papel
fundamental na contemporaneidade, pois se pretende por meio dele problematizar o poder
que o homem tem enquanto ser social formador de realidades, questionando o que está posto
ao invés de simplesmente o aceitar. Seu teatro, então, dialoga com o teatro épico, e passa a
influenciar os demais postulados teóricos acerca do estado da arte na contemporaneidade.
Em O teatro épico, Anatol Rosenfeld traça algumas características desse gênero idealizado
por Bertolt Brecht que valem aqui ser citadas:
Segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto
de todas as relações sociais e diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a única
capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção do mundo. (ROSENFELD, 2002, p. 147).
Rosenfeld, a partir do teatro brechtiano, aponta a arte teatral ressaltando seu valor
didático, engajado. No entanto, para que haja a reflexão e o questionamento, a catarse deve
ser desconsiderada, pois tal efeito faz com o que o público torne-se passível perante o mundo;
assim como ocorre no “teatro burguês”3, que primava pela estética em detrimento da política
social. Nesta perspectiva, Rosenfeld observa que:
3 Toma-se aqui o termo trazido pelo Dicionário de Teatro de Patrice Pavis: “Expressão frequente, hoje, utilizada para designar, de maneira pejorativa, um teatro e um repertório de boulevard produzido dentro de uma estrutura econômica de rentabilidade máxima e destinado, por seus temas e valores, a um público ‘(pequeno-) burguês’, que veio consumir com grande despesa uma ideologia e uma estética que lhes são, de cara, familiares. [...] se torna, no jovem Brecht, por exemplo, sinônimo de dramaturgia ‘de consumo’, baseado no fascínio e na reprodução da ideologia dominante.” (PAVIS, 1999, p. 376).
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O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o impacto mágico do teatro
burguês. Esse êxtase, essa intensa identificação emocional que leva o público a
esquecer-se de tudo, afigura-se a Brecht como uma das consequências principais
da teoria da catarse, da purgação e descarga das emoções através das próprias
emoções suscitadas. O público assim purificado sai do teatro satisfeito,
convenientemente conformado, passivo, encampado no sentido da ideologia
burguesa e incapaz de uma Idea rebelde. Todavia, ‘o teatro épico não combate as
emoções’ [...]. O que pretende é elevar a emoção ao raciocínio. (ROSENFELD,
2002, p. 148).
Tais conceitos podem ser vistos de forma bastante clara em trechos da obra, em que
o autor modernista busca desvendar a realidade dos fatos mundanos a partir de uma
representação escancarada. Trata-se de uma tentativa de um despertar-se para realidade a
partir de um choque moral, como se pode observar nos dois trechos que seguem:
ABELARDO I – Mas esta cena basta para nos identificar perante o público. Não
preciso mais falar dos meus clientes. São todos iguais. Sobretudo não me traga
mais pais que não podem comprar sapatos para os filhos. (ANDRADE, 2003, p.
43)
ABELARDO I – [...] isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é
novo.
ABELARDO II – Se é! A burguesia só produziu um teatro de classe. A
apresentação da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração. (ANDRADE,
2003, p. 44)
Com o objetivo de converter seu público em uma sociedade pensante, com condições
de reconhecer o estatuto social e o papel ocupado por cada cidadão nesse estatuto, Oswald,
antecipando o teatro brechtiano, vale-se do distanciamento crítico entre representação/texto
e plateia/leitor, mostrando que o que está diante destes é apenas uma representação, mas que,
no entanto, há uma realidade para a qual o homem deve despertar, para assim, passar a ser
um sujeito ativo na sociedade. Nota-se ainda que, além de fazer o homem refletir sobre a
condição social que se estabelece de modo exploratório, nos trechos observados, o
dramaturgo procura mostrar, valendo-se de um texto meta-teatral, como a arte que se
produzia no Brasil antes do Modernismo servia ao deleite do público burguês. Outro fato
relevante é a utilização do termo “espinafração”, que seria o próprio retrato da produção
artística de Oswald e do Modernismo, ao passo que buscavam produzir uma arte do
escândalo, que viesse a romper com os padrões morais da sociedade. No que se refere aos
valores familiares, no contexto teatral brasileiro, tal espinafração chega ao seu auge somente
na obra de Nelson Rodrigues. Nesse sentido, Oswald de Andrade antecipa em seu teatro a
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ideia de tornar a cena teatral nacional espaço para sair do puro entretenimento da comédia
de costume para o teatro que faz pensar. Conforme Alves:
A realização dos procedimentos antropofágicos na produção teatral de Oswald de
Andrade aparece no movimento de releitura crítica das manifestações da
vanguarda francesa, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e também no
reaproveitamento de técnicas oriundas do Teatro de Revista, do Circo e da Opereta e de outros dramaturgos lidos por Oswald. O modus vanguardista na linguagem
das peças de Oswald está assegurado pelo caráter de crítica à cultura dominante,
numa perspectiva de incorporação do novo o que implica reconhecer a inserção da
história e da sociedade no texto e do texto na história de forma ambivalente.
(ALVES, 2011, p. 09).
No que se refere à elaboração das personagens, percebe-se que se trata de
representações estereotipadas, caricatas de figuras da sociedade, característica recorrente do
no gênero cômico, pois a caricatura tem o poder de revelar aspectos que, pelas convenções
sociais não são reparadas, ou se são, não são comentadas.
Destarte, percebe-se o desenvolvimento de um sujeito imaginário baseado na figura
do colonizador, do opressor, do qual ninguém pretende ser vítima, mas em que, todos
desejam transformar-se. Somente após converter-se em colonizador, esse sujeito será
lembrado, será considerado sujeito. Assim como ocorrem com as nações e povos que
buscaram a independência para depois se converterem em exploradores, ocorre na peça
supracitada na relação entre os Abelardos I e II, em que o segundo passa a ocupar o lugar do
primeiro para continuar as negociatas com o investidor estrangeiro.
Oswald descreve um país invadido pela cultura exterior e refém do capital
estrangeiro. O produto produzido aqui para gerar o lucro para os países desenvolvidos é
vendido para as próprias pessoas que o fabricam, para que, com esses produtos, possam
demonstrar a “ascensão social”. Assim, o poder aquisitivo passa a ser a principal forma de
domínio que se pode conseguir em detrimento dos valores morais da família e da religião a
exemplo do casamento (sacramento religioso que passa a ser visto como um negócio) e da
produção do conhecimento, que na contemporaneidade, também passa a ser visto com um
produto, pois, ao passo que o conhecimento converte-se em fonte de libertação, se torna
desinteressante às elites dominantes a democratização deste. Segundo Fanon:
O regime colonial cristalizou circuitos, e a nação é obrigada, sob pena de sofrer
uma catástrofe, a mantê-los. [...] Se não se modificarem as condições de trabalho,
serão necessário séculos para humanizar este mundo tornado animal pelas forças
imperialistas. A verdade é que não devemos aceitar essas condições. Temos de recusar categoricamente a condição a que nos querem condenar os países
ocidentais. (FANON, 1979, p. 79; 80).
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Deste modo, o tratamento do tema e a elaboração das personagens oswaldianas
mostram-se significativos, não somente no contexto artístico, mas como leitura de um
cenário nacional que, apesar de moderno, apresenta, ainda, um pensamento arcaico,
subjugado ao pensamento eurocêntrico, o qual o autor procura desvelar.
Considerações finais
Os temas, as personagens, a sátira, a caricatura, as instituições, a família, são aspectos
constitutivos do pensamento crítico oswaldiano, que tem por objetivo construir um sujeito
que, consciente de sua realidade, possa pensar e discutir a identidade nacional brasileira e a
cultura do homem contemporâneo, dentro do contexto capitalista. A literatura dramatúrgica
de Oswald marca um período histórico, sua proposta artística, além de romper com os
padrões estatizados, sugere a modificação de uma estrutura ideológica da sociedade e de
uma cultura de absorção e incorporação que, mesmo incorporada ao mundo tecnológico, de
fácil acesso aos bens culturais e ao conhecimento, segue sendo colonizada.
Por isso, pode-se afirmar que a contribuição de Oswald não se restringe à inovação
estética, pois também as “revoluções sociais, políticas e filosóficas” (CURY, 2003, p. 26),
contempladas em sua obra, possibilitando o homem a repensar a sua cultura e a sua
identidade.
Referências
ALVES, L. K. Releituras da tradição e força criadora no teatro de Oswald de Andrade. In:
Línguas&Letras, Número Especial, 1 semestre, 2011. Cascavel: Edunioeste, 2011.
ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003.
_____. Obras completas -7. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
_____. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo:
Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1976.
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CURY, José João. O teatro de Oswald de Andrade: ideologia, intertextualidade e escritura.
São Paulo: Annablume, 2003.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Civilização Brasileita: Rio de Janeiro, 1979.
MAGALDI, Sábato. Panorama do fascismo/O homem e o cavalo/A morta/Oswald de
Andrade. São Paulo: Globo, 2005.
MIGNOLO, Walter D. La idea de América Latina – la herida colonial y la opción
decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2002.
SARTRE, Jean-Paul. Prefácio de Os condenados da terra. In: FANON, Frantz. Os
condenados da terra. Civilização Brasileita: Rio de Janeiro, 1979.
ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
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SUMÁRIO
OBSERVAÇÕES SOBRE O ÉPICO NA DRAMATURGIA/TEATRO DO
COLETIVO DE TEATRO ALFENIM: BALIZAS TEÓRICAS, ENGAJAMENTO E
ATUAÇÃO CRÍTICA (DÉCADAS DE 1990-2000)
Rodrigo Rodrigues Malheiros (UEPB)1
Diógenes André Vieira Maciel2
Resumo: Em terras paraibanas, o Coletivo de Teatro Alfenim tem como proposta construir um teatro que
discuta assuntos nacionais, incluindo um ponto de vista regional, a partir da colaboração dos atores e outros
profissionais envolvidos nas suas montagens. Surgida em 2007, a companhia já produziu quatro peças: Quebra-
Quilos (2008); Histórias de Sem Réis (2010); Milagre Brasileiro (2010) e O Deus da Fortuna (2011). Também
fortemente embasada pelos estudos em torno do pensamento estético de Brecht, a companhia visa, em sua
atuação estética, como a paulista, a uma reflexão crítica sobre as dinâmicas sociais e suas contradições no
contexto brasileiro, mediante uma intersecção com uma perspectiva política e histórica. O presente estudo tem
por proposta analisar a maneira como a dramaturgia/teatro do Coletivo de Teatro Alfenim filia-se a uma
tradição do teatro épico brasileiro, ao mesmo tempo em que aponta para re-significações no que diz respeito à
utilização das formas épicas no teatro. Para tanto é preciso examinar como são desenvolvidos alguns aspectos do teatro épico de Brecht na construção das peças em análise e discutir a relação texto/encenação e os processos
históricos, culturais e sociais no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: teatro épico-dialético; teatro brasileiro contemporâneo; dramaturgia não-aristotélica.
Introdução
Raymond Williams, ao estudar a relação entre as formas dramáticas e os processos
sociais, numa perspectiva dialética, afirma que determinadas formas de relação social estão
“profundamente incorporadas a outras formas de arte”. (WILLIAMS, 1992, p. 147) Para o
teórico, não se pode deixar de investigar também as condições sociais de produção, ou
melhor, as questões que não diz respeito diretamente às técnicas de produção, mas que
interferem na fatura final da obra. Portanto, na visão de Williams, a forma captura tanto as
questões técnicas provenientes de uma época em específico, que estão interligadas às
condições socioeconômicas, política e culturais de uma comunidade, como também a
maneira de sentir e perceber o mundo, numa perspectiva crítica e analítica.
Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (1880-1950), aponta para uma crise do
drama, visto que as características que definiam o drama, desde o Renascimento, começam
a ser substituídas por elementos épicos. Segundo o teórico, o drama se constrói a partir da
relação intersubjetiva, desconhece tudo externo a ele, é absoluto. Existe uma quarta parede
1 Doutorando. Linha de Pesquisa: Literatura Comparada e Intermidialidade/ PPGLI-UEPB. 2 Orientador.
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na relação espectador-drama e a separação e a identidade entre eles são perfeitas. Sendo
primário, o drama é sempre presente, no entanto, não é estático: o presente passa e se torna
passado quando já não está em cena, por isso pode-se dizer que a cena presente carrega em
si o gérmen da cena futura, que se torna possível pela via do diálogo. Em suma, a unidade
de tempo, de lugar e a exigência de motivação para a sucessão das cenas, bem como o
diálogo, tornam-se fundamentais para existência do drama.
Na virada do século XIX, autores como Ibsen (1828-1906); Tchékhov (1860-1904);
Strindberg (1849-1912); Maeterlinck (1862-1949) e Hauptmann (1862-1946) rompem com
as características que definiam o drama clássico, apresentando novos elementos formais na
construção de suas peças. Seguindo em sua análise, o teórico observa que a dramaturgia do
século vinte encontra no teatro naturalista de Zola, nas peças de um ato de O’Neill, entre
outros dramaturgos, uma tentativa de salvamento do drama. Porém, Szondi deixa claro que
o período de transição não é só marcado pela contradição entre a forma e o conteúdo
apresentado no drama, mas é importante observar que a superação da contradição é
preparada por elementos formais presentes já na antiga forma que se tornou problemática:
“E a mudança para o estilo em si não-contraditório se efetua à medida que os conteúdos,
desempenhando uma função formal, precipitam-se completamente em forma e, com isso,
explodem a forma antiga.” (SZONDI, 2001, p. 95). Em suma, de maneira bastante sucinta,
as formas são históricas.
Anatol Rosenfeld (2008), em sua obra O teatro épico, elabora um estudo sobre os
gêneros literários e seus traços estilísticos fundamentais. Num segundo momento, o teórico
examina as tendências épicas no teatro europeu do passado, elaborando um estudo sobre o
Teatro Grego, o Teatro Medieval, Pós-Medieval, Shakespeare e o Romantismo. Em terceiro
lugar, este autor estuda a assimilação da temática narrativa e a cena e dramaturgia épicas
(como se vê no teatro asiático e na intervenção do diretor teatral), para estabelecer a relação
entre as formas épicas presentes no teatro ocidental e, principalmente, na fundamentação de
um teatro épico, como o formula Brecht.
Iná Camargo Costa (1996), em A hora do teatro épico no Brasil, estuda o teatro épico
e sua recepção/difusão, produção/consumo no teatro moderno brasileiro, num exame que
começa em 1958, com a obra de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam Black-tie,
chegando até 1968, com a estreia de Roda Viva, encenada por Zé Celso a partir do texto de
Chico Buarque, numa visada que toma as propostas de teatro épico numa oscilação entre
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força produtiva, enquanto elemento estético-político, até que suas técnicas são incorporadas
a uma noção de consumo e convenção. Este foi um primeiro trabalho, de cunho acadêmico,
que se propôs a sistematizar a produção de um teatro e dramaturgia épicos no Brasil, em suas
relações com a recepção do pensamento estético e da própria dramaturgia de Bertolt Brecht,
discutindo, inclusive, a relação da crítica com tal produção, num primeiro momento,
incompreendida, mediante uma posição ainda bastante tradicional dos críticos em relação às
formas dramáticas.
Em terras paraibanas, O Coletivo de Teatro Alfenim pautam-se pela construção de
um teatro que discuta assuntos brasileiros, a partir da colaboração dos atores e envolvidos
nos ensaios. O grupo é formado por Adriano Cabral, Cecilia Retamoza, Daniel Araújo,
Gabriela Arruda, Lara Torrezan, Márcio Marciano, Paula Coelho, Verônica Sousa, Vilmara
Georgina, Vítor Blam, Zezita Matos e Wilame AC. Surgido em 2007, a companhia já
produziu quatro peças: Quebra-Quilos (2007); Histórias de Sem Réis(2010); Milagre
Brasileiro(2010) e O Deus da Fortuna (2011). Fortemente embasado pelos estudos de
Bertold Brecht, a companhia visa em sua atuação estética, a uma reflexão crítica sobre as
dinâmicas sociais e suas contradições no contexto brasileiro, mediante uma intersecção com
uma perspectiva política e histórica.
O caráter crítico de suas produções estabelece um diálogo aberto com as dinâmicas
sociais, presentes na contemporaneidade brasileira, e problematiza questões fundamentais
no interior desta sociedade, como a condição do homem explorado e reprimido pelo sistema
capitalista em suas relações de trabalho, uma cultura hegemônica que se constrói a partir da
exclusão e do perene conflito de classes. reprimido pelo sistema capitalista em suas relações
de trabalho, uma cultura hegemônica que se constrói a partir da exclusão e do perene conflito
de classes.
Em O Deus da Fortuna (2011), escrita em processo colaborativo entre os
componentes do Coletivo de teatro Alfenim, o recurso da parábola é utilizado como meio
textual para formalizar um tema épico, que necessariamente extrapola o universo das
relações inter-humanas, visto não mais haver unidade entre o sujeito e o acontecer objetivo.
A parábola, elemento essencialmente narrativo, é utilizada para tratar de um tema histórico
como o capital, o abandono de suas velhas formas de acumulação para o terreno da
especulação financeira. Para tanto, o Coletivo de Teatro Alfenim utiliza elementos formais
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da comédia clássica, como afirma Marciano e Coelho em Cinco tópicos para uma leitura
crítica:
De seus elementos constitutivos aproveita os mais adequados à construção da
narrativa épica, sem a preocupação de uma correspondência estrita às convenções
que determinam o gênero. Essa escolha metodológica nasce da observação de
procedimentos semelhantes adotados por Bertolt Brecht (MARCIANO;
COELHO, 2013, p. 61).
Antonio Candido, em Literatura e Sociedade (2000), adverte ao fato de que a análise
literária não admite um estudo em que texto e contexto são tratados como instâncias distintas,
mas que é preciso entender que essas duas instâncias que por muito tempo foram tidas como
duas maneiras distintas de chave interpretativa do texto literário correspondem-se
dialeticamente, pois o contexto (enunciado do conteúdo) formaliza-se na estrutura da obra a
partir de uma redução estrutural no processo de construção artística.
Essa observação não só implica em uma maneira diferente no tratamento
interpretativo de uma obra literária, como também compreende a forma como fenômeno
histórico. Os procedimentos estético-formais de uma obra literária estão dialeticamente
relacionados às temáticas por ela tratadas. Desse modo, é possível concluir que “o conteúdo
não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a forma não é nada mais que a
conversão do conteúdo em forma” (SZONDI, 2001, p.24 apud. HEGEL, p.303). Esse
entendimento torna-se de grande importância quando se pensa na construção da peça a ser
discutida, Quebra-Quilos (2007), principalmente quando a chave interpretativa para ela é a
análise de uma personagem aparentemente deslocada do contexto em que vive, a saber,
Floriana.
Na esteira dos estudos iniciados por Anatol Rosenfeld, Iná Camargo Costa (1996),
em A hora do teatro épico no Brasil, estuda o teatro épico e sua recepção/difusão,
produção/consumo no teatro moderno brasileiro, num exame que começa em 1958, com a
obra de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam Black-tie, chegando até 1968, com a estreia
de Roda Viva, encenada por Zé Celso a partir do texto de Chico Buarque, numa visada que
toma as propostas de teatro épico numa oscilação entre força produtiva, enquanto elemento
estético-político, até que suas técnicas são incorporadas a uma noção de consumo e
convenção. Partindo do mesmo princípio,de produção observado por Iná Camargo Costa
sobre as peças das décadas de 50 e 60 a peça Quebra-Quilos, de Márcio Marciano, foi escrita
mediante a colaboração dos atores que integram o Coletivo Teatral Alfenim, de João Pessoa
e estreada em dezembro de 2007. Trata-se, em linhas gerais, de uma mãe (Joaquina) que
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caminha com a filha Floriana rumo à Campina Grande, província da Parahyba em meados
de 1874, cuja época e lugar tornam-se cenário da revolta popular Quebra-Quilos.
Milagre Brasileiro (2010) tematiza, de maneira não convencional, um tempo
marcado pela opressão da Ditadura Militar aos jovens que militaram no movimento
estudantil e intelectuais de diversas áreas do conhecimento, bem como do universo artístico.
Os tempos de chumbo consegue silenciar da memória brasileira todo um leque de injustiças
contra aqueles que não entendiam o regime militar como legítimo, uma vez que o momento
histórico não era para ser marcado pelo terror, mas pelo progresso e pelo fortalecimento de
organizações populares.
Já no início da peça é preciso encarar as fotos dos desaparecidos, que caíram no
obscurantismo da história. O conflito é instaurado a partir de intercalações de quadros que
retratam a família ajustada aos padrões da Ditadura Militar e cenas de alta repressão, como
o interrogatório, ou a que se declama o AI-5 de 1968. Buscando técnicas oriundas do
universo épico para propor reconstruir uma lacuna de silêncio posta pelo poder hegemônico
opressor do regime militar, Antígona, a personagem de Eurípedes, conhecida na tradição
literária ocidental por não se curvar aos mandos do rei Creonte, uma vez que o rei proíbe a
realização do enterro do seu irmão- um direito natural, é evocada para simbolicamente
sepultar aqueles que tiveram seus direitos cerceados no período da Ditadura.
Nesse sentido, temos a arte re-costurando o tecido da história há muito silenciado. A
arte, por sua natureza questionadora, por conter em si o ímpeto de romper com a norma e os
valores fixos, contrários a liberdade de expressão, é utilizada para resolver um fato histórico
que se tornou traumático para aqueles que vivenciaram. A forma ajusta-se a um conteúdo
que não poderia ser dito por meios convencionais, o drama burguês e suas técnicas
dramáticas não suportam um assunto tão pautado na história. A não linearidade dos fatos; as
cenas aparentemente complacentes e que explode o discurso tradicional para fazer a crítica
por um viés irônico (sem preocupar-se com uma sequência cênica, mas com uma
reconstrução histórica); o uso da música como recurso crítico; a presença de Antígona, como
via possível de uma reparação histórica a partir da arte, leva-nos a constatar um teatro
compromissado com a tomada de consciência que precisa posicionar-se diante das
contradições que tentam escamotear uma realidade de injustiças. O ato de Antígona é
emblemático, quando arrebenta com as barreiras da arte e realidade histórica e reescreve na
história, via dramaturgia/teatro um capítulo silenciado da nossa memória.
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Considerações Finais
Antonio Candido (2000), em Formação da literatura brasileira, demonstra a
necessidade de entender a formação desta literatura como um processo histórico, no qual a
relação dialética deste com as formas literárias constroem paradigmas para o que
compreendemos hoje como literatura nacional. Assim, este artigo não se é apenas um relato
histórico, mas uma aproximação de entendimento do processo histórico, conforme propõe
Candido, necessário para demonstrar como as formas literárias se relacionam ao processo
histórico-social. Portanto, estamos lidando com questões de teoria e crítica literárias e não
apenas de história da literatura. Para tanto é preciso examinar como são desenvolvidos
alguns aspectos do teatro épico na construção das peças em análise e discutir a relação
texto/encenação e os processos históricos, culturais e sociais no Brasil contemporâneo.
Referências
ATUAÇÃO CRÍTICA. Entrevistas da Vitém e outras conversas/ Sérgio de Carvalho e outras
conversas. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular; Companhia do Latão, 2009.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003.
BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
BRECHT, Bertold. Teatro dialético: ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
CADERNO DE APONTAMENTOS- O DEUS DA FORTUNA- Coletivo Alfenim. João
Pessoa, 2013.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo
Horizonte, Editora Itatiaia Ltda, 2000.
________________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. São
Paulo: T.A. Queiroz, 2000. (Biblioteca de letras e Ciências Humanas- Série 2, Textos;9)
________________. Dialética da malandragem: caracterização das Memórias de um
sargento de milícias, Revista do Instituto de Estudos Avançados [IEB/USP], São Paulo, n.8,
p.67-89, 1970.
CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro na época moderna – séculos XVI-
XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 6.ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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________________. A arte do teatro: aulas de Anatol Rosenfeld (1968)/registradas por
Neusa Martins. São Paulo: Publifolha, 2009.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São
Paulo: Cosac Naify Edições, 2001.
WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Trad. Rogério Betoni. São Paulo: Cosac Naify,
2010.
__________________. Cultura. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992.
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SUMÁRIO
POÉTICAS DO CORPO FRAGMENTADO
Gabriela Fregoneis (UNICAMP)1
Resumo: O presente artigo tem o objetivo de investigar as poéticas cênicas em torno do conceito do pós-
humano e pós-antropocênico, tendo como ponto de partida reflexivo a influência das artes visuais eletrônicas
no fazer artístico teatral, ressaltando os cruzamentos existentes entre o uso de mídias e a cena. Quanto ao tema
abordado, uma primeira questão se faz necessária: qual a relação do corpo/mídia no teatro contemporâneo?
Para dar conta desse questionamento, busco refletir e analisar as idéias de Corpo na arte contemporânea, por
meio dos conceitos de Foucault da “morte do homem” e de “Homem-máquina” de Descartes e La Mettrie. O
homem moderno busca, por meio da arte, superar o limite e a potência de si mesmo. O homem pós-moderno
não é mais puramente real, ele ganhou um caráter virtual. É sobre esses temas híbridos e fronteiriços que se dedica o presente trabalho.
Palavras-chave: Teatro, mídias, corpo, poéticas cênicas.
Introdução
Muitos diretores contemporâneos têm utilizado novas tecnologias na cena para a
construção de uma poética própria, desenvolvendo processos criativos e trabalho com atores
de maneiras diversas e singulares. O fio condutor será o estudo das poéticas e aspectos
relacionais que envolvem a cena midiática contemporânea. Uma dúvida surge nesse
momento da pesquisa: Quais as possíveis diferenças entre o teatro pós-humano e o de
marionetes (que já pregava a superioridade da marionete frente ao humano)? Com o
desenvolvimento da pesquisa, notou-se que um número significativo de diretores estão
dedicando seus espetáculos à temática do pós-humano, como o canadense Denis Marleau e
sua peça Os Cegos, o japonês Oriza Hirata que criou uma actróide (atriz andróide) para atuar
na peça Sayonara, Zaven Paré, Edward Kienholz que trabalha com bonecos animados por
motores elétricos, Jean Tinguely e sua arte cinética, Stelarc que substitui partes do corpo por
implantes animados por computador e o grupo performático Survival Research Laboratories.
Logo, como se pode notar, esse tema é recente e conflituoso no que diz respeito ao
seu uso nas artes da cena e quando se fala sobre o uso de tecnologias no teatro surgem alguns
conceitos como: ciberteatro, teatro cinematográfico, cine-teatro, ciberespaço, teatro pós-
1 Doutoranda no curso de Pós-Graduação em Artes da Cena na Universidade de Campinas – UNICAMP; e-
mail: [email protected].
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antropocênico, dentre outros. As correntes de pensamento em torno do tema “pós-humano”
não é algo recente. O físico e filósofo René Descarte (1596-1650) e o médico e filósofo
Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), nos séculos XVII e XVIII já se questionavam sobre
a relação do homem com seu corpo, através do conceito de Homem-Máquina, utilizado por
ambos. Esse tema não é só antigo, quanto também de ampla discussão. Filosofia, medicina,
engenharias e as artes em geral, se debruçaram sobre a investigação desse assunto.
No que diz respeito à convergência do tema com a prática nas artes cênicas e
performativas, a fase de maior ebulição (e deixo bem claro que o início foi anterior a data
citada) iniciou nas décadas de 50 e 60 com vídeoarte, instalações multimídias,
ciberinstalações, videoperformance, etc. Wolf Vostell, Nam June Paik, o movimento Fluxus,
Otto Piene, Nicholas Schooffer, Wen-Ying Tsai, Joan Jonas, Allan Kaprow, são alguns dos
artistas que buscaram e alguns continuam buscando, por meio da arte, problematizar a
relação do homem com o mundo, (principalmente o tecnológico). Alguns artistas defendiam
a máquina como uma possibilidade de extensão da noção de Humano, e outros já remavam
contra o fluxo (fluxus) do desenvolvimento da tecnologia e da revolução industrial. Um
exemplo sobre a crítica à maquinação foi o trabalho desenvolvido pelo movimento Fluxus
na década de 60, como cita Lúcia Santaella (SANTAELLA, 2003):
O movimento Fluxus desenvolveu uma reação crítica e cética contra a máquina,
através da apropriação de seus produtos que eram deslocados de seus contextos e
maltratados. As máquinas Fluxus eram antimáquinas, híbridos deliberadamente
empobrecidos destinados a chocar e satirizar o estado de coisas da sociedade
industrial high tech, refletindo, desse modo, um mal-estar cultural geral para com
a tecnologia.2
Como se pode notar, o Fluxus era um movimento a favor da antiarte tradicional,
pensava o corpo como cerne do processo criativo, o corpo como a matéria principal de
questionamento, bem como suas relações com o mundo social. O coreano Nam June Paik
também criticava a cultura televisiva em suas obras, mas ao invés de simplesmente criticar
a cultura tecnológica ele colocava os próprios vilões como protagonistas, ou seja, monitores
como performers. Em sua videoinstalação Eletronics Superhighway 3, Paik empilhou do
chão ao teto inúmeras TVs que continham conteúdos variados: política,filmes, propagandas,
cenas da natureza, de guerras, etc. A sensação que tenho quando assisto essa obra do Paik, é
2 SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo:
Paulus, 2003, p.157. 3 Acesso em: http://www.youtube.com/watch?v=3rPZYGuCFdw
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que frente a tantas notícias e informações “vomitadas” pela mídia televisiva, o olhar se perde,
a reflexão do espectador frente a toda esse “poluição” visual e sonora cessa, e o que resta é
o caos! A arte de Paik leva a refletir a condição do homem frente à cultura tecnológica
moderna.
Inúmeros são os exemplos de performances e happenings que problematizam a
relação homem-máquina. Saindo das artes plásticas e performativas e unindo a essa
linguagem a cena teatral, o ator e diretor Gordon Craig problematizou a figura do ator em
cena, e criou uma versão inumana do mesmo através da ideia de Supermarionete. Como diz
o próprio Craig (CRAIG, 2012) “fica claro que para se produzir qualquer obra de arte
podemos trabalhar apenas sobre aqueles materiais que somos capazes de controlar. O homem
não é um desses materiais”4.
Craig traz a noção do ator enquanto ser instável, não controlável, motivado por
emoções e psicologismos, por isso precisa ser substituído por algo manipulável, porém
controlável, o que ele chamou de Supermarionete. Craig trouxe à tona questionamentos
cênicos em torno da fisicalidade, da possibilidade corpórea de um Corpo-máquina por meio
das Supermarionetes, desumanizando o ator, retirando sua alma e seu psicologismo e
transformando-o em simples matéria. O trabalho desenvolvido pelo grupo catalão La Fura
Del Baus é um exemplo do desdobramento da ideia da Supermarionete no teatro
contemporâneo. Espetáculos como Vulcano e Tempo de Encontros utilizam a figura da
supermarionete e problematizam a questão da fisicalidade e corporeidade pela (con)-
vivência entre o ator real carnalizado e a máquina-marionete descarnalizada.
Teatro de objetos, teatro de animação, teatro de marionetes, etc, são algumas das
linguagens cênicas que retratam a arte para além do humano. Hans-Thies Lehmann
(LEHMANN, 2007), explica que:
Teatro pós-antropocênico seria uma denominação pertinente para uma forma
importante – evidentemente não a única – que o teatro pós-dramático pode
assumir. Incluem-se aí o teatro de objetos, inteiramente sem atores, o teatro com
tecnologia e máquinas (como aquele do grupo Survival Research Laboratories) e
de modo geral o teatro que integra a figura humana como elemento em estruturas
espaciais semelhantes às paisagens5.
Uma inquietação permanece quanto a essa citação do Lehmann: O que faz do teatro
ser teatro se não mais a presença física de carbono do ator? (É importante lembrar que as
4 CRAIG, Edward Gordon. Ator e a supermarionete. Sala Preta, v.12, n.1, jun.2012, p.102. 5 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-Dramático.São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.134-135.
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máquinas de silício que “substituem” os atores, também são consideradas atores, mas nesse
caso atores pós-humanos). Qual a essência do teatro na era da Idade Midiática e Pós-
Humana? Com o presente e cada vez mais florescente hibridismo de linguagens artísticas e
tecnológicas surge algo novo que, sem perder o vínculo com o passado, nasce com uma
identidade própria. A ideia e imagem deleuziana de rizoma se enquadram efetivamente aqui.
As novas identidades vão surgindo e se hibridando com as antigas, e assim vão formando
teias e raízes que não possuem nem começo nem fim. Não há hierarquia. Assim como a
pintura não cessou de se desenvolver com o surgimento da fotografia, o teatro não deixará
de existir dentro da era do pós-humano. Hegel se questionou inúmeras vezes sobre o Fim da
Arte clássica e até hoje essa arte não deixou de existir. Novos filhos, novos olhares,
linguagens e singularidades vão surgindo a partir desses “pais”.
Em síntese, pode-se notar que o tema do Pós-humano e suas poéticas fragmentadas
tangenciam uma teia de questionamentos e inquietações no que diz respeito não só as artes,
mas também na Medicina e o desenvolvimento das nanotecnologias, a física e as viagens
nucleares, as engenharias e o amadurecimento cada vez maior da Robótica. O objetivo da
pesquisa de Doutorado é analisar e refletir sobre essas questões apresentadas acima, bem
como a figura do humano em cena, a encenação transhumana e pós-humana, buscando
problematizar seu material, por meio do corpo/mente e de seus processos de subjetivação.
Considerações finais
Como se pode ver é um campo amplo de investigação e com relevância inerente ao
desenvolvimento cênico na contemporaneidade. Em síntese, o artigo busca repensar a figura
do humano dentro do “vir-a-ser” tecnológico do mundo, tendo como alicerce o olhar
fenomenológico dentro das novas criações de imagens do ser humano e suas atuais
transformações.
Referências bibliográficas
CRAIG, Edward Gordon. Ator e a supermarionete. Sala Preta, v.12, n.1, jun.2012.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à
cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
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SUMÁRIO
REI LEAR, DE MICHAEL ELLIOT: UMA ABORDAGEM À LUZ DE TEORIAS
DE ADAPTAÇÃO E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA
Vinícius Zorzal Rosi1 (UFV)
Sirlei Santos Dudalski2 (UFV)
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a adaptação da tragédia Rei Lear, de William
Shakespeare, feita pelo diretor Michael Elliot e estrelada pelo conceituado ator Laurence Olivier, à luz de
teorias de adaptação e tradução, com ênfase na tradução intersemiótica, ou seja, um tipo de tradução que
consiste na transformação de uma determinada obra de um gênero a outro. Levando-se em conta, também, o
fato segundo o qual adaptações e traduções encontram-se inseridas em um determinado contexto, pretende-se
analisar também a performance dos atores e o que pode ter motivado a maneira de interpretação do personagem
Rei Lear conduzida por Laurence Olivier.
Palavras-chave: adaptação; tradução; tradução intersemiótica; interpretação.
Segundo Julie Sanders (2006, p. 18), adaptação é uma prática estilística que consiste
em converter um gênero em outro. Adaptação consiste também em uma tentativa mais
simples de escrever textos que sejam “relevantes” ou mais compreensíveis para novas
audiências e leitores através de processos de aproximação e atualização, assim como um
processo específico de transição de um gênero para outro: de romance para filme; de drama
para musical; dramatização de narrativa em prosa e ficção em prosa. Adaptações podem ser
encontradas em vários gêneros ou mídias: na televisão, nas telas de cinema, em musicais, no
teatro, na internet, em romances, em gibis e no parque temático mais próximo
(HUTCHEON, 2006, p. 2).
Estudos sobre a transição de literatura para cinema são lugares comuns nos dias de
hoje, e qualquer pesquisador interessado neste tipo de estudo estuda adaptação pensando
criticamente sobre o que significa adaptar ou apropriar. A finalidade destes estudos não é
identificar “boas” ou “más” adaptações. Segundo Linda Hutcheon (2006, p. 6-7),
proximidade ou fidelidade ao texto adaptado não é critério de julgamento ou foco de análise,
pois adaptação é repetição, mas repetição sem eco. Por trás do hábito de adaptar, há
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal de
Viçosa – UFV. E-mail: [email protected] 2 Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa – UFV. E-
mail: [email protected]
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diferentes intenções por parte do adaptador. Adaptação pode ser descrita como: uma
transposição reconhecida de um ou mais trabalhos reconhecíveis, um ato criativo e
interpretativo de apropriação/resgate, um compromisso intertextual com o texto adaptado.
Outro motivo pelo qual não há preocupação com adaptações fiéis às versões originais
se deve ao fato de que é justamente graças à infidelidade ao texto fonte que os trabalhos de
adaptação e apropriação se destacam, devido à criatividade dos autores. Com isso, os estudos
sobre adaptações não pretendem fazer julgamentos de valores, mas sim, analisar processo,
ideologia e metodologia (SANDERS, 2006, p. 19-20).
De acordo com Hutcheon (2006, p. 142), uma adaptação, assim como o texto
adaptado, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um lugar, uma sociedade e
uma cultura; ela não existe em um vácuo. Modas e valores também dependem de um
contexto. Muitos adaptadores lidam com essa realidade de recepção ao atualizar o tempo da
história em uma tentativa de encontrar ressonância contemporânea em seu público.
Por tradução, normalmente entende-se como o processo de converter uma linguagem
em outra, assim como a transmissão do que é expresso em uma língua ou conjunto de
símbolos em outra língua ou outro conjunto de símbolos. Entre estas duas definições, há algo
em comum entre ambas: pressupõe-se a existência de algo inerente ao texto, o sentido, que
vai ser transportado para outro texto. Por outro lado, quando levamos em consideração as
teorias segundo as quais o leitor é um construtor do texto e este existe somente na medida
em que é lido, vemos que é impossível a existência de um texto pronto em uma língua, cheio
de significados que o tradutor vai descobrir e, depois, transportar o texto para outra língua.
Desse modo, o trabalho do tradutor passa a ser visto também como uma atividade de leitor
(construção de sentido), indo além de ser apenas um escritor. O texto, como produto da
tradução, também é resultado de uma história de leitura (DINIZ, 1999, p. 27-28).
Thaïs Flores Nogueira Diniz (1999, p. 29) afirma que, no geral, há duas noções acerca
da tradução: fidelidade da tradução e originalidade do texto a ser produzido. A fidelidade
tem sido levada em conta principalmente no que diz respeito a textos centrais ou autoritários,
como a Bíblia Sagrada, o Manifesto Comunista ou as peças de Shakespeare. Em outros casos
em que não são feitas traduções de textos centrais ou autoritários, a tradução não é muito
fiel, mas bem elaborada. Neste contexto, entra em questão o aperfeiçoamento da linguagem
pela cultura receptora, uma vez que não é a relação direta com o texto original que está sendo
julgada, mas sim o fato de que as traduções são resultantes de diversas leituras.
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Do ponto de vista da tradução intersemiótica, o texto traduzido faz alusão a seu
respectivo texto-fonte e, com ele, mantém uma determinada relação ou o representa de algum
modo. Assim como a literatura, o teatro e o cinema também representam atividades
semióticas, pois existem para transmitir significado. Entre dois textos, um teatral e outro
fílmico, cada um pode ser considerado uma tradução ou adaptação do outro. Traduzir do
teatro para o cinema, por exemplo, é o mesmo que passar um texto de um sistema semiótico
para outro. A tradução intersemiótica já se manifesta quando um texto dramático é
transformado em texto teatral, isto é, encenado no palco (DINIZ, 1999, p. 31).
Rei Lear, do diretor Michael Elliot, é uma adaptação para a televisão (posteriormente
lançada em DVD) da tragédia homônima de William Shakespeare. Esta adaptação foi feita
no ano de 1983 e estrelada por Laurence Olivier, no papel do personagem Rei Lear. Laurence
foi um conceituado ator britânico que já havia interpretado outros personagens
shakespearianos no cinema em décadas anteriores, como Henrique V, Hamlet, Ricardo III,
Otelo e Shylock. Em Rei Lear, de Michael Elliot, Laurence realizou sua última atuação em
uma adaptação shakespeariana antes de sua morte, ocorrida seis anos depois.
Embora Michael Elliot tenha preservado os principais conflitos familiares ocorridos
na peça de Shakespeare, o que evidencia seu grau de proximidade ao texto-fonte, sua
adaptação também apresenta suas peculiaridades. A primeira delas encontra-se no cenário.
A primeira cena da peça, a da divisão do reino feita por Lear para suas filhas, é encenada em
um templo com pedras semelhantes às de Stonehenge, e a constituição da paisagem é
baseada nas charnecas estéreis localizadas no norte e oeste da Inglaterra. Além disso, as
mesmas paisagens são, durante boa parte do tempo, sombrias e nevoentas (MINTON, 2012,
p. 2).
Levando-se em conta o pressuposto segundo o qual as adaptações são julgadas não
pela fidelidade ou escassez desta ao texto-fonte, mas pela criatividade do autor, e também o
fato de que existe uma intenção por parte do adaptador no ato de adaptar, percebe-se que,
em Rei Lear, Michael Elliot direcionou seu foco para as performances dos atores. Assim
como uma das características do teatro elisabetano era o foco nas palavras, devido ao fato
do palco elisabetano quase não ter cenário e depender exclusivamente das palavras, Elliot
fez uma tradução intersemiótica de Rei Lear para a tela na qual foi preservada a característica
do teatro elisabetano que remete ao foco no discurso dramático. Daí a principal razão para a
presença de um cenário simples no filme, como descrito acima.
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Para Eric Minton (2012, p. 2), as performances dos atores são baseadas no conflito
entre juventude e velhice presente também na peça de Shakespeare. Este conflito manifesta-
se, principalmente, nas relações entre Lear e suas filhas, e nas intrigas criadas pelo bastardo
Edmundo contra seu pai, conde de Gloucester, e seu meio-irmão Edgar (filho legítimo e
natural herdeiro do conde). No filme de Elliot, a atriz Dorothy Tutin interpreta Goneril como
uma pessoa rígida em suas decisões e incapaz de demonstrar amor verdadeiro. Dessa forma,
o que ela sente por Edmundo provavelmente é cobiça, ao invés de paixão.
Diana Rigg interpreta Regan, a filha do meio. Regan, no filme de Elliot, revela-se
uma personagem intrigante. Ela diz, para usar uma expressão da peça, que é feita do mesmo
metal de sua irmã Goneril, mas diferentemente de sua irmã mais velha, é capaz de sorrir.
Porém, seus sorrisos podem ser tanto de adulação pelo seu pai quanto irônicos. Em suma,
Regan mostra afeto por seu pai em um momento na peça, até unir-se a Goneril e também
maltratar o pai.
Cordélia, a filha mais jovem de Lear, é interpretada por Anna Calder-Marshall. Na
própria peça de Shakespeare, é explicitado que Cordélia é a filha favorita de Lear, e Michael
Elliot demonstra esse grau de afeto na cena da divisão do reino, na qual Lear e Cordélia
entram em cena de braços dados. Vemos no filme uma Cordélia aparentemente ingênua em
relação às atitudes impensadas de Lear, devido ao fato de ser a filha mais jovem e Lear estar
mais velho (MINTON, 2012, p. 3).
Outro momento que merece destaque é o diálogo entre Gloucester (Leo McKern) e
Kent (Colin Blakely), no qual o primeiro apresenta seu filho Edmundo (Robert Lindsay).
Neste diálogo, Gloucester fala a Kent sobre a forma na qual Edmundo foi gerado: fora de
seu casamento. Gloucester demonstra atrevimento ao falar sobre esse assunto, enquanto
Edmundo apenas escuta pacientemente, mas visivelmente constrangido com a situação. Esta
cena põe a vilania de Edmundo em movimento, e este, no filme de Elliot, mostra-se um vilão
frio, e assim como Goneril, incapaz de dar um sorriso.
Por fim, temos o personagem Rei Lear, interpretado por Laurence Olivier. Este foi o
último personagem shakespeariano interpretado por Laurence nas telas antes de sua morte,
que aconteceu em 1989. Em 1983, ano em que foi feita a adaptação de Rei Lear abordada
neste trabalho, Laurence Olivier tinha 76 anos de idade e sua saúde estava bastante
debilitada. Laurence já havia atuado em uma encenação de Rei Lear no ano de 1938. Porém,
em 1983, a situação já era outra: um ator idoso interpretando um personagem idoso.
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Neste contexto, podemos compreender por que Michael Elliot fez sua tradução
intersemiótica de Rei Lear do teatro para a televisão ao escalar um ator já idoso para
interpretar o herói trágico. Percebe-se que sua intenção provavelmente foi instigar o público
a compreender o que é a velhice. O Rei Lear interpretado por Laurence demonstra, por vários
momentos, mudança de humor, impaciência, é egocêntrico e irascível, “tendências naturais
em homens que sabem que seus dias de vida estão diminuindo exponencialmente”
(MINTON, p. 2). Uma exceção é feita na cena em que Lear fica louco no descampado, uma
vez que, nesta parte, Lear interpretado por Laurence não apresenta acesso de raiva, apenas
faz um discurso.
De acordo com Minton (2012, p. 4), na cena em que Lear entra carregando o corpo
de Cordélia nos braços, Olivier interpreta não um Lear enlutado, mas um Lear frustrado.
Frustrado porque Cordélia não respira mais; frustrado porque algumas das pessoas por quem
Lear não tem muita proximidade ainda estão vivos e Cordélia, não mais; frustrado porque,
embora tenha matado o soldado que a enforcou, não conseguiu salvar a vida de sua filha, e
frustrado porque ele poderia fazê-lo se estivesse nos seus dias de jovem. Levando-se em
conta estas observações, concluímos que Michael Elliot aparentemente teve como intuito
demonstrar os efeitos da velhice nas pessoas, se considerarmos como contexto da época a
velhice e saúde debilitada de Laurence Olivier, que provavelmente influenciaram a
interpretação deste do personagem Rei Lear acima descrita.
Considerações finais
Tendo em vista os pressupostos teóricos sobre as versões de Rei Lear citados acima,
vemos que tanto adaptações quanto traduções são resultados de leituras diversas, levando-se
em conta que o adaptador/tradutor, seja ele dramaturgo ou diretor de teatro/cinema, é
também um leitor e constrói seu próprio sentido para a obra que deseja adaptar. Nunca é
demais lembrar que o próprio William Shakespeare foi também um adaptador, uma vez que
suas grandes tragédias foram escritas com base em histórias previamente existentes.
É importante observar também que teatro e cinema são manifestações artísticas
diferentes, cada uma delas possui suas especificidades, tais como: cenário físico, contexto
cultural, texto dramático, interpretação artística dos atores, no caso do teatro; montagem,
recursos de iluminação, filmagem etc, no caso do cinema. Devido a esta diferença entre
teatro e cinema, uma adaptação ou tradução intersemiótica não precisa ser composta com
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base em fidelidade ou proximidade ao texto-fonte, o que permite ao adaptador explorar
intensamente sua criatividade e sua própria leitura do texto a ser adaptado.
Referências bibliográficas
DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e Cinema: da Semiótica à Tradução Cultural.
Ouro Preto: Editora UFOP, 1999.
HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York: Routledge; London: Routledge,
2006.
MINTON, Eric. Olivier vs. Lear; Young vs. Old. Disponível em:
<http://www.shakespeareances.com/willpower/onscreen/King_Lear-GRAN84.html>.
Acesso em: 26 ago. 2013.
REI LEAR. Michael Elliot. Inglaterra: Granada Television: ClassicLine, 1983. DVD.
SANDERS, Julie. What is Adaptation? In: __Adaptation and Appropriation. New York:
The New Critical Idiom, 2006, p. 17-25.
VINEBERG, Steve. Olivier´s Lear. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/4383358>. Acesso em: 26 ago. 2013.
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SUMÁRIO
UMA PEÇA RADIFÔNICA: AMOR POR ANEXINS
Clarice da Silva Costa (UnB)1
Resumo: Esta pesquisa aborda a montagem de uma peça teatral na modalidade radiofônica. O projeto de
extensão Coletivo Transitório de Teatro da Universidade de Brasília produziu uma peça radiofônica a partir do
texto dramático Amor por Anexins, de Artur Azevedo. Foram exploradas as texturas das falas das
personagens, a ambientação das cenas, além da inserção de músicas de época. Artur de Azevedo na montagem
de suas peças utilizava-se da paródia de operetas famosas, nesse sentido, também foram adaptadas modinhas
do século XIX, para as letras de Artur Azevedo, pelas musicistas, Claudia Costa e Ilke Takada, professoras da
Escola de Música de Brasília, na busca de uma aproximação do que poderia ser uma encenação de uma obra de Artur Azevedo. Ao mesmo tempo, em que se buscou uma fidelidade à obra teatral, também se procurou a
uma renovação por meio do uso de uma tecnologia, a gravação radiofônica.
Palavras-chave: peça radiofônica; Artur Azevedo; teatro; tecnologia.
Introdução
O interesse em encenar Amor por Anexins2 adveio do convite para participar do
projeto de extensão Quartas Dramáticas3 no primeiro semestre de 2013, que versou sobre
peças nacionais do século XIX. O trabalho aqui apresentado foi elaborado pelo grupo de
extensão Coletivo Transitório de Teatro4. A escolha desse texto deveu-se ao tipo de
experimentação cênica que se buscava. O projeto tinha por finalidade a gravação em áudio
das peças selecionadas. A partir dessa premissa, o Coletivo Transitório de Teatro procurou
um texto dramático, o qual pudesse ser adaptado para o áudio, tendo a palavra falada como
componente fundamental. Nesse sentido, foi-se pensado a ambientação cênica em um
auditório de rádio da época áurea das peças radifônicas e das radionovelas, entre as décadas
de 1930 e 1960. Visto que nesse período havia uma ênfase no falar o texto dramático, como
também uma preocupação com elaboração dos efeitos de sonorização. Desse modo, a
concepção da encenação deu ênfase às entonações e inflexões das falas das personagens dada
a importância que os anexins e os provérbios têm no texto.
1 Professora doutora do Departamento de artes Cênicas-CEN, coordenadora do subprojeto PIBIDcen/UnB,
[email protected] 2 PINTO (2000, p.11) do árabe an naxid, dito sentencioso. 3 Projeto liderado pelo professor André Gomes do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. 4 Grupo de pesquisa cênica vinculado ao departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília, formado
por professores e alunos, liderado pela professora Clarice Costa.
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Para Ubersfeld (2006), há uma diferença entre o aspecto textual da peça e a sua
encenação por se tratar de duas formas diferentes de comunicação, uma vez que são
estruturados com códigos de linguagem díspares, os signos, os significantes e significados
se organizam de modos próprios. No caso da peça escrita, a organização textual determina a
mesma disposição dos componentes da escritura, embora possa haverá diversas
interpretações sobre o significado. A encenação, entretanto, permite que os códigos
adquiram distintos sentidos e disposições, pois não existe uma codificação única ou fechada,
inúmeras encenações teatrais podem se utilizar de um mesmo tipo de iluminação
avermelhada, por exemplo, todavia, na montagem teatral A, ela representar dor, na B: paixão
sexual, e na C: felicidade (numa referencia à cultura chinesa).
Anne Ubersfeld sugere os cadernos de encenação como um lócus de transição entre
o texto dramático e a sua elaboração cênica. Nessa perspectiva, o estudo desenvolvido pelo
Coletivo Transitório de Teatro iniciou-se pelo entendimento da peça, a escolha de concepção
cênica orientou-se pela observação de elementos considerados emblemáticos na obra de
Artur Azevedo como o cômico, a paródia, o entretenimento e o convite à plateia ao deleite.
A opção pelo formato radiofônico deu-se em parte em função da peça ser registrada em
áudio, mas também pelo fato de o rádio ser o primeiro suporte tecnológico do século XX, a
absorver o teatro e o apresentar a um contingente fabuloso de ouvintes.
Foi por volta de 1930, no Brasil, que o rádio tornou-se o primeiro veículo de
comunicação de massa, em sua primeira década de existência o rádio não teve objetivos
lucrativos, mas com a sua transformação em atividade comercial, muitas estações
radiofônicas foram fundadas e a programação diversificou-se. Os rádios teatros foram
programas de prestígio, pois eram tidos como um produto literário. De certa forma, as ideias
machadianas do teatro como elemento educador da sociedade ainda ecoavam, entretanto
eram as radionovelas que tinham grande audiência entre o público ouvinte.
De fato, eram dois formatos diferentes na construção das suas narrativas, as
radionovelas eram apresentadas três vezes por semanas em dias alternados, por meses, com
uma trama maleável ao sabor da oscilação da audiência. Por sua vez, a peça radiofônica
apresentava-se como um produto unitário (PALLOTTINI, 1998) numa extensão de tempo
determinada (entre uma a duas horas) e completa, ou seja, com começo, meio e fim. Além
de ser organizada a partir de um texto literário canônico.
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Embora, tratando-se de um produto artístico direcionado ao grande público e visando
retorno financeiro, a elaboração de um radioteatro demandava a cooperação de uma equipe
de indivíduos capacitados em distintas áreas artísticas como escritores (para adaptação
dramatúrgica), técnicos de áudio, atores, músicos (instrumentistas, arranjadores, cantores),
entre outros. Observa-se, assim, que a interação entre o teatro e o rádio demandava um
esforço conjunto de vários técnicos e especialistas, talvez até maior, do que aquele efetivado
pelos atores de teatro (numa encenação convencional) que estavam inseridos numa tradição
e seguros nas práticas dos fazeres cênicos, que não necessitavam se ajustar a outras formas
do fazer artístico com teor tecnológico. A dimensão da novidade e o interesse em interagir
entre uma forma tradicional de arte – o teatro – com um suporte tecnológico demandou sem
dúvida muito esforço, criatividade, deixando um referencial no imaginário como uma
atividade renovadora de grande qualidade.
Nesse sentido, a prática cênica desenvolvida pelo Coletivo Transitório de Teatro na
construção ou reconstrução da feitura de uma peça radiofônica justificou-se, pois todo legado
deve ser revisitado, estudado, incorporado e superado como referencial para novas
produções artísticas.
Na construção da encenação5 radiofônica de Amor por Anexins foram utilizados os
cadernos de encenação como o lócus de passagem do texto dramático para a cena. Elegidos
os aspectos norteadores como: a comicidade, a paródia e o divertimento da plateia, iniciou-
se a elaboração da encenação. Partindo do próprio texto que traz em si elementos de
comicidade, uma opção pela leveza e brevidade da dramaturgia, enfatizando a finalidade de
divertir, de entreter.
Trata-se de um texto dramático de ato único, que tem no desencontro amoroso das
duas personagens principais o eixo condutor. Ambos desejam contrair matrimônio, mas com
pretendentes idealizados. O desenho dramatúrgico apresenta desde o início as características
das personagens Inês e Isaías. Ela, a jovem viúva, sem filhos e costureira, revelando sua
condição financeira limitada; ele, um velho também sem filhos numa situação econômica
levemente melhor. O fio condutor não é o suspense, a trama envolvente, mas um jogo bufo
de sedução quase amorosa que constitui um enredo cômico entre o casal.
5 Encenação: designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num espaço de atuação, dos
diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática. (PAVIS, 2011, p. 122).
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Azevedo constrói Isaías como um velho pedante que se utiliza de ditos populares
para se comunicar o que produz o efeito cômico, pois seu discurso caracteriza-se como
estereotipado e mecânico. Segundo Bergson (1983), o gesto mecânico provoca o riso porque
se afasta do orgânico, ou seja, o indivíduo não interage com a realidade imediata, pois possui
um repertório fixo, repetitivo, que sempre se reproduz, distanciando-se de uma resposta ou
atuação apropriadas para o momento. Dessa forma, o mecânico manifesto pelo gesto
estereotipado provocaria uma destituição da condição humana, nessa situação, para Bergson
o riso seria uma dinâmica social para a limitação do comportamento mecânico.
Em Amor por Anexins (1872) pode ser observado como a personagem Isaías é a
exemplificação desse tipo de cômico, o texto do seu discurso é construído por meio de ditos
populares. Esses dois elementos dão a peça eficácia, pois o uso contínuo dos ditos populares
resulta no comportamento repetitivo de Isaías, gerando o efeito cômico, ao mesmo tempo
em que os ditos são de domínio do senso comum, permitindo à plateia acompanhar e
entender perfeitamente a proposta do autor. Para Pinto (2000), os anexins trazem em si
valores, conhecimentos e até mesmo preconceitos de forma resumida e de amplo
conhecimento social. Além dos anexins, a peça é composta por copla6, canto7, recitativo8,
didascálias9 e diálogo10, sendo um ato composto por sete cenas11. Artur Azevedo dispõe
esses componentes de modo a constituir o ritmo cômico: há cenas em que o ritmo é veloz
como no que se segue:
Isaías – o diabo não é tão feio como se pinta...
Inês – é feio, é!...
Isaías – quem ama o feio bonito lhe parece.
Inês – amá-lo, eu?! ... Nunca!... Isaías – ninguém diga: desta água não beberei...
Inês – é abominável! Irra!
Isaías – água amole em pedra dura, tanto dá...
Inês – repugnante!
Isaías – quem espera sempre alcança.
Inês – desengane-se.
Isaías – o futuro a Deus pertence.
6 Copla: música popular espanhola (HOUAISS, 2001, p.831). 7 Canto: parte musicada. 8 Recitativo: na ópera ou na cantada, parte declamada – e não cantada. (PAVIS, 2011, p.332). 9 Didascálias: indicação cênica ou rubrica. (PAVIS, 2011, p. 96). 10 Diálogo: conversa entre duas ou mais personagens. O diálogo dramático é geralmente uma troca verbal entre
as personagens. (PAVIS, 2011, p. 92). 11 Cena: na tradição ocidental organiza-se pela entra e saída de personagens.
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Ou lento como num non sense, quando as personagens encontram-se confusas, e a
pausa impõe-se como fator cômico:
Isaías (chegando mais a cadeira) – o que não tem remédio, remediado está.
Inês (afastando a sua) – o que mais deseja?
Isaías – diga-me cá: seu noivo?.... (Faz-lhe uma cara) Inês – não entendo.
Isaías – para bom entendedor meia palavra basta...
Inês – mas o senhor nem meia palavra disse!
Isaías – pergunto se... Fala francês?
Inês – como?
Isaías – ora bolas! Quem é surdo não conversa!
Inês – mas a que vem essa pergunta?
Isaías (naturalmente) – quem pergunta quer saber.
Inês – ora!
O dramaturgo vai alterando o ritmo – mais rápido, mais lendo – dos diálogos no
objetivo de manter a cadência da manutenção da comicidade. Também introduz as partes
cantadas em solos ou duetos, de modo paródico, pois era comum, no século XIX, a utilização
de uma melodia qualquer12, e letras ou versos próprio ou de vários autores. Artur Azevedo
também fez uso dessa prática, em Amor por Anexins, as letras das partes musicais são de
sua autoria. Por isso, o Coletivo Transitório de Teatro optou por manter as letras musicais
contidas na peça, e seguir a orientação da professora Claudia Costa13, parodiando as
melodias marcantes desse período histórico. Para tanto foram empregadas melodias das
modinhas imperiais copiladas por Mário de Andrade. Para a adaptação a pesquisadora usou
a prosódia musical, na qual o acento da fala do texto flexiona-se de acordo com o acento
musical, criando harmonia entre a melodia e a letra, o que acalenta o ritmo cômico, como no
momento em que a professora lança mão da melodia do hino nacional para a letra de
decepção de Inês, impondo um ritmo épico, ao mesmo tempo em que patético.
Desse modo, a encenação proposta pelo Coletivo Transitório de Teatro buscou
interagir aspectos teatrais com a tecnologia do áudio, tentando ao mesmo tempo, preservar
características relevantes do texto dramático e dialogar com o suporte radiofônico, elevando
a encenação além do efêmero característico do teatro.
Considerações finais
12 A ideia de patente ou autoria é um bem recente. 13 Claudia Costa é professora doutora da Escola de Música de Brasília e pesquisadora do Coletivo Transitório
de Teatro.
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O trabalho cênico apresentado foi elaborado por meio da interseção entre o texto
dramático e a encenação radiofônica. Em meados do século XX, a utilização de suportes
tecnológicos em montagens teatrais tornou-se usual, desde o uso de sonoplastias gravadas,
de iluminação, a utilização de microfones, a projeção de filmes, como a interação entre o
radio e o teatro. Atualmente, com a sofisticação tecnológica a utilização de tais recursos nas
cenas tornam-se mais atraentes a experimentações cênicas, entretanto, já estão presentes
desde Piscator, na década de 1920, na Alemanha.
Referências
AZEVEDO, Artur. Amor por Anexins. Disponível em: <www.bibvirt.futuro.usp.br>.
Acesso em 18 de março de 2013.
BERGSON, Henri. O Riso. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
HOUAISS. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LEVIN, Orna Messer. Teatro de Papel – certa dramaturgia de Artur Azevedo.
Disponível em: <www.portalabrace.org/vcongresso/textos/teatrobrasileiro/>. Acesso em 20
de março de 2013.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2011.
PINTO, Ciça Alves. Livro dos Provérbios, Ditados, Ditos Populares e Anexins. São
Paulo: SENAC, 2000.
UBERSFELD, Anne. Para ler o Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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SUMÁRIO
UTILIZAÇÃO DE SONS EM TEXTOS POÉTICOS
Káshi Mello (UnB)1
Clarice Costa (UnB)2
Resumo: Esta pesquisa aborda o desenvolvimento de um trabalho sonoro poético a partir de poemas de Cecília
Meireles, extraídos do livro “Ou isto ou aquilo”, publicado pela primeira vez em 1964. Utilizam-se recursos
tecnológicos como handycam, computador e celular para formatação da produção estética sonora, buscando o
intercâmbio sonoro lírico poético da obra da autora. O trabalho é desenvolvido com alunos do 5° ano de uma
Escola Parque, localizada em Brasília-DF. Esse processo viabiliza uma relação mais próxima dos alunos com
a poesia, com o lirismo e com os sons que se podem agregar à linguagem textual. As onomatopéias, por
exemplo, contidas na poesia, serão utilizadas como condutor sonoro para a construção de produção de sentidos,
desenvolvendo uma percepção auditiva diferenciada nos alunos. O processo em sala de aula é feito a partir dos jogos teatrais de Viola Spolin agregado a técnicas musicais, possibilitando trabalhar a integração e inclusão do
som ao texto poético, onde o lúdico é despertado pelos diversos sentidos estimulados.
Palavras-chave: Sonorização; poesia; jogos teatrais; tecnologia.
Introdução
O objetivo principal da pesquisa de Sonorização de textos poéticos é promover um
diálogo entre a música e o texto por meio da utilização de técnicas musicais para a construção
e sonorização de poesias com alunos do ensino fundamental.
O trabalho é organizado no fazer teatral unindo-o ao fazer musical, utilizando uma
pesquisa poético/textual que intensifica a relação entre narrador, ator, produtor sonoro e o
público. Exercer uma atividade conjunta entre a arte/educação e a importância da música no
processo de formação e entendimento do teatro está diretamente ligado entre teoria e prática
da educação artística, onde a prática deve ser introduzida inicialmente e logo após, os
conceitos teóricos necessários que colaborem no entendimento do processo.
Para a elaboração de uma sonorização poética a metodologia baseou-se na utilização
de instrumentos musicais simples, como o triângulo (que explora o som metálico, a
intensidade e o ritmo); o caxixi3, (que marca o tempo e o ritmo, além de produzir outros sons
de efeitos como a chuva); o apito (que utiliza a coluna de ar, produzindo diferentes alturas e
1 Bolsista PIBID, graduanda em Artes Cênicas Licenciatura. 2 Professora Drª do Dep. de Artes Cênicas, orientadora do PIBID. 3 Caxixi: Instrumento de percussão com o formato de um pequeno cesto de palha trançado, o fundo tampado
por cabaça com seu interior preenchido por sementes, utilizado comumente como chocalho. Nos jogos de
capoeira o caxixi é acompanhado principalmente pelo berimbau.
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timbres sonoros); o metallophone4, o qual introduz a noção de escalas e a diferenciação de
altura, entre o grave e o agudo, além do som metálico que insere um tom lúdico para a cena.
Também se promoveu a construção de instrumentos improvisados, elaborados
artesanalmente pelos educandos como, por exemplo, um chocalho feito com material
reciclável de copos de iogurte e sementes; um conjunto de chaves penduradas por um
barbante presas em um pequeno pedaço retangular de madeira, gerando um som semelhante
ao do carrilhão5, com o som metálico que também sugere um ambiente imagético para a
cena. Estes e outros objetos que possam servir de recurso sonoro para agregar o som ao texto
e à cena serão trabalhados e manuseados em sala de aula pelos alunos.
Esta pesquisa foi desenvolvida com alunos do 5° ano do ensino fundamental da
Escola Parque com duração de dois meses, iniciada em agosto de 2013, ainda em andamento,
sob supervisão do professor Márcio Vasconcelos e sob orientação da professora Clarice
Costa pelo PIBID6.
A Escola Parque é um projeto pedagógico idealizado pelo professor Anísio Spíndola
Teixeira em 1947, aplicada primeiramente na cidade de Salvador – Bahia em 1950. Sua linha
de pensamento segue os princípios de John Dewy, que defende a relação Educação/Ação,
onde só há educação quando existe prática de experiências da vida. O currículo deve centrar-
se também nas atividades cotidianas e não somente em matérias convencionais.
O projeto da Escola Parque (E.P.) chegou a Brasília no dia 20 de novembro de 1960
no mesmo ano de inauguração da capital. A primeira Escola Parque da cidade está localizada
na 308/309 sul. Anísio Teixeira era a favor do ajuste da educação à diversidade das condições
concretas, fazendo dela um instrumento de mudanças e desenvolvimento progressivo no
processo de aprendizagem. As aulas na E. P. são realizadas no turno contrário ao do ensino
básico da Escola Classe.
O ensino é composto por aulas de artes cênicas, artes visuais e música, onde os
próprios alunos podem optar entre duas das três atividades artísticas supracitadas, mais
educação física.
4 Metallophone: Instrumento musical percussivo semelhante ao vibrafone, porém, com o corpo no formato de
uma pequena caixa de madeira retangular e teclas de metal, utilizando-se baquetas para emissão do som. 5 Carrilhão: Instrumento de percussão, feito por vários e pequenos tubos de metal dispostos em fila crescente
que vai do tubo maior para o menor, sendo que o maior tubo irá emitir um som mais grave, e o menor o mais
agudo. A diferença do tamanho dos tubos é gradativa, simulando uma escala cromática. É muito utilizado por
percussionistas em shows e orquestra, dando um efeito mais lúdico em determinado momento da peça, seja
musical ou teatral. 6 Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência.
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A instituição atende por módulos:
Módulo I Módulo II Módulo III
EDUCAÇÃO
FÍSICA
ARTES VISUAIS ARTES
CÊNICAS
MUSICA
No Módulo III existe a opção entre artes cênicas ou música. Os alunos freqüentam a
Escola Parque uma vez por semana e suas atividades diárias são compostas por três aulas
com duração de 1 hora e meia cada e um intervalo de 30 minutos, contabilizando 5h por dia
na escola.
Os professores trabalham em trios e se revezam entre três turmas, que possuem em
média 15 a 20 alunos, além de realizarem projetos interdisciplinares, onde o tema varia de
acordo com a proposta pedagógica da escola estipulada para o ano corrente, tendo como
fundamento principal o desenvolvimento de competências e habilidades nos alunos,
auxiliando na formação de um novo cidadão capaz de ter uma consciência social
crítica/transformadora na sociedade em que vivem.
A pesquisa de sonorização de poesias surgiu pela necessidade de desenvolver
habilidades práticas que expressem sensações e estimulem os sentidos, utilizando a fala e
som para se trabalhar as palavras e a sonoridade natural presente em cada uma delas. O texto
poético de Cecília Meireles foi utilizado com base e referencia nas figuras de harmonia,
como exemplo a aliteração, presente no livro “Ou isto ou aquilo” de Cecília Meireles7. As
poesias foram pensadas exclusivamente por fazerem parte do universo infantil, onde as
palavras são usadas para comunicar e transmitir mensagens, contar histórias e sonhos da
infância, situações que muitas crianças já passaram ao brincar, correr, viver e sonhar.
As ideias transmitidas pelas poesias são sonoras e agradáveis de ouvir, o texto
comunica à criança que também pertence ao mundo dela, isso permite que a ela compreenda
a situação representada pelo poema, uma aproximação que faz com que a criança se entregue
à leitura e viaje no tempo e no espaço, com sons e imagens abstraídas das mentes dos jovens
sonhadores.
Nesse exercício de leitura e sonorização, com o auxílio de instrumentos musicais
simples de percussão para a difusão e ambientação sonora das poesias, o processo foi
7 Poesias do livro “Ou isto ou aquilo” utilizadas em sala de aula: Enchente, Pescaria, Ou isto ou aquilo, Chácara
do Chico bolacha, A língua do nhem, As meninas, O Eco.
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sistematizado a partir de um cronograma e um roteiro de atuação articulado para obtenção
de melhores resultados e possíveis alterações no processo metodológico.
Para realizar a proposta foi necessário elaborar um roteiro de atividades, onde a
abordagem adotada em sala de aula baseia-se nas:
Rodas de Conversa, utilizada para se obter melhores relações de convivência e troca de
experiências onde as conversas são relacionadas com o tema proposto para a execução
do trabalho; é uma abordagem necessária para compreensão e diagnose da turma
direcionando um foco para a atividade;
Exercícios de aquecimento vocal e corporal, necessários para a concentração e preparo
para a atividade, proposta onde se utilizarão o corpo e a voz como princípios básicos de
aplicação e concretização da proposta supracitada;
Leitura de poesias para familiarização e conhecimento prévio por parte da turma.
Divisão de grupos: de 5 a 6 alunos.
Produção de Desenhos, para cada grupo é solicitado o mínimo de dois desenhos, com
interesses coletivos, sobre a poesia escolhida;
Escolha do narrador, o grupo escolhe o narrador e a partir da leitura feita por ele, os
outros integrantes improvisam e experimentam os possíveis sons externos, produzidos
com instrumentos de percussão, agregando-os ao texto poético.
Para viabilizar o projeto também foi necessário contextualizar a proposta com os
jogos teatrais de Viola Spolin. Ao contextualizar os jogos teatrais com o cotidiano do aluno
é possível promover uma relação amistosa entre os envolvidos, instigando a criatividade e a
autonomia das crianças, tornando a aula mais produtiva quando esta se faz no rumo da
aprendizagem prática com ação concreta. Dessa forma, o professor traça um método
específico para lidar de forma diferenciada, seja com os jogos teatrais ou com qualquer outro
tipo de relação de convivência, particulares de cada indivíduo e cada turma.
No decorrer do trabalho, enquanto se introduziam as poesias, foi possível inserir
métodos interdisciplinares com objetivos direcionados para a concentração, foco e entrega à
proposta. Esses métodos funcionam como chave na inserção da aprendizagem artística como
fator de formação de crítica social do indivíduo.
A produção de desenhos feita pelos alunos foi pensada como pesquisa imagética
utilizada como metodologia para aplicação em sala com o objetivo de inserir o aluno no
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universo poético, necessário para captar a mensagem de cada poesia, facilitando o
entendimento para a reprodução falada e sonorizada.
O aluno lê a poesia e tenta captar a mensagem pela prática imagética, reproduzindo
a idéia e expressando-a com o desenho.
Jogo de Bola
A bela bola
rola:
a bela boda do Raul.
Bola amarela,
a da Arabela.
A do Raul,
azul.
Rola a amarela
e pula a azul.
A bola é mole,
é mole e rola.
A bola é bela,
é bela e pula.
É bela, rola e pula,
é mole, amarela, azul.
A de Raul é de Arabela,
e a de Arabela é de Raul.
O trabalho interdisciplinar entre música e teatro modifica as relações interpessoais
dos alunos, possibilitando maior foco, unificação, produção e resultado (pois este vê que é
capaz de realizar a atividade) qualificando o trabalho em grupo.
A música e a pesquisa da própria sonoridade corporal ajudam na reestruturação da
energia do grupo, possibilitando desenvoltura e conhecimento de sua capacidade de produzir
e criar.
Desenhos das alunas do 5° ano do Ensino
Fundamental da Escola Parque
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Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013
ISSN: 2358-405X
I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO
– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –
O processo de sonorização foi realizado de maneira interdisciplinar trabalhando de
forma conjunta com as artes visuais, cênicas, musicais mais a literatura. Seu resultado foi
satisfatório, pois possibilitou aos alunos o desenvolvimento de habilidades motoras além da
leitura e da fala. É um processo que não tem seu fim escrito, ainda está em construção e
adaptações, mas sua aplicação possui conteúdo prático e teórico, possibilitando um bom
retorno educacional, metodológico, prático e transformador para a educação artística de
alunos.
Considerações finais
O processo que relaciona o ensino da música com o teatro possibilita aos alunos uma
nova maneira de entendimento do texto e da cena a partir da busca pela sonorização. Sua
aplicação proporciona uma nova maneira dos alunos entenderem o teatro e sua forma sonora
sensibilizadora.
A música se torna determinante no processo de absorção e entrega. O aluno entende
seu benefício no processo de criação e improvisação de uma dramaturgia, fazendo-o produzir
de maneira convicta, segura e imagética buscando e aguçando uma sensibilidade sonoro-
artística, muitas vezes adormecida ou intocada.
Como resultado da proposta de sonorização de poesia um vídeo foi produzido com o
intuito de registrar os passos dos alunos, onde demonstram parte de sua pesquisa
sonoro/poética. O processo, ainda em andamento, foi apresentado no I Seminário de
Dramaturgia e Teatro – Teatro e Intermidialidade, um Evento de Extensão promovido pela
Universidade Estadual de Londrina – PR em outubro de 2013.
O processo de educação musical dentro do teatro tem como objetivo resgatar sua
conexão interdisciplinar, visto que ambas as áreas, quando trabalhadas em conjunto,
potencializam o ensino artístico além de auxiliar no processo de foco, criação, busca e
participação ativa do aluno.
Bibliografia
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_____________ e VIEIRA, Sulian, A produção Vocal em Altas Intensidades: uma
revisão da Teoria – Cronáxica de Raoul Husson. Brasília, 2004.
_____________ Voz e Palavra – Música e Ato. Rio de Janeiro, 2004
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FREIRE, Paulo: “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo
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LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de Experiência.
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É preciso ir aos porões. Maio-agosto 2012.
KOUDELA, Ingrid. Jogos Teatrais o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva,
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MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. São Paulo: Nova Fronteira, 1990.
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4ª Edição, Niterói RJ, 2010.