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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL

DE DRAMATURGIA E TEATRO – TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

Textos completos

ISSN 2358-405X

Universidade Estadual de Londrina

02, 03 e 04 de outubro de 2013.

Organizadores

Alexandre Villibor Flory

Jhony Adelio Skeika

Sonia Pascolati

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Os textos aqui publicados são de inteira

responsabilidade de seus autores.

REGULAMENTO, NORMAS E OUTRAS INFORMAÇÕES

http://gtdramaturgiaeteatro.blogspot.com.br/

PROJETO GRÁFICO, CAPA E DIAGRAMAÇÃO

Jhony Adelio Skeika

ORGANIZADORES

Alexandre Villibor Flory

Jhony Adelio Skeika

Sonia Pascolati

Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da

Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

S471a Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro (1. : 2013 : Londrina, PR) Anais do I Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro [livro

eletrônico] / Organizadores : Alexandre Villibor Flory, Jhony Adelio

Skeika e Sonia Pascolati. – Londrina, 2013.

1 livro digital.

Disponível em: https://anaisgtdramaturgiaeteatro.files.wordpress.com/2014/07/anais-2013.pdf

ISSN 2358-405X

1. Teatro – Congressos. 2. Dramaturgia – Congressos. 3. Artes Cênicas – Congressos. 4.Letras – Congressos. I. Flory, Alexandre Villibor. II. Skeika Jhony Adelio. III. Pascolati, Sonia. IV. Universidade Estadual de Londrina. V. Título.

CDU 792.09

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ANAIS DO I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO

– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013

ISSN: 2358-405X

SUMÁRIO

ORGANIZAÇÃO DO EVENTO

Coordenação

Alexandre Villibor Flory

Sonia Pascolati

Organização dos anais

Alexandre Villibor Flory (UEM)

Jhony Adelio Skeika (UEPG/UEL)

Sonia Pascolati (UEM)

Comitê científico

Alexandre Villibor Flory (UEM)

Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

Diógenes André Vieira Maciel (UEPB)

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)

Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO)

Marise Rodrigues (UFF/UTFPR)

Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR)

Sonia Pascolati (UEL)

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Universidade Estadual de Londrina 02, 03 e 04 de Outubro de 2013

ISSN: 2358-405X

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

O Grupo de Trabalho Dramaturgia e Teatro da ANPOLL – Associação Nacional de

Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística – iniciou suas atividades no biênio 1999-

2000 como expansão do GT Estudos Shakespearianos, congregando pesquisadores da

grande área Letras, Linguística e Artes em torno de questões teóricas, históricas e práticas

pertinentes aos estudos de dramaturgia e teatro. A partir de 2009, durante encontro do grupo

em Brasília (UNB), as atividades acadêmicas foram estendidas à participação de

pesquisadores não vinculados ao GT, movimento que se sedimentou com a realização do I

Seminário Nacional de Dramaturgia e Teatro – Teatro e Intermidialidade, em outubro

de 2013, na Universidade Estadual de Londrina (UEL). O objetivo maior é fomentar

pesquisas sobre dramaturgia e teatro e contribuir para a formação de pesquisadores nesse

campo de estudos acadêmicos que, embora tenha se fortalecido nas últimas décadas, ainda

necessita ampliar seu espaço nos cursos de Letras.

O encontro contou com a participação de pesquisadores de várias instituições do país

(UNB, UEPB, UEPG, UFMS, UEM, UEL, UNIANDRADE/PR, UNIOESTE,

UNICENTRO, UNOPAR, UFES, UFSCAR, UFV, UNESP, USP, UFSC, UFBA,

UNESPAR, UNICAMP) em diferentes níveis de especialização – desde Iniciação Científica

até Pós-doutores – cujas comunicações propiciaram debates sobre diversos campos, tais

como teoria do drama e da performance; dramaturgia, teatro e ensino; dramaturgia e teatro

brasileiros e estrangeiros; diálogos entre teatro e outras artes; teatro político; e teatro infantil.

Os debates reforçam a crença do GT Dramaturgia e Teatro de que as pesquisas nessa área

em dramaturgia e teatro oferecem muitas searas ainda inexploradas, mas também já

contribuem significativamente para os estudos literários e das artes cênicas.

Uma parte dos textos derivados das apresentações, as quais foram debatidas por

doutores especialistas na área, agora são reunidos em formato de anais a fim de espraiar as

discussões a outros pesquisadores e interessados nesse campo de estudos; contudo, a

diversidade de perspectivas fica mais evidente nos resumos, também aqui disponibilizados.

Parte dos resultados da pesquisa conjunta sobre teatro e intermidialidade realizada pelos

membros do GT está publicada no volume 25 da Revista Terra Roxa e Outras Terras, de

livre acesso pelo site da UEL, no dossiê “Dramaturgia, teatro, intermedialidade”; outra parte

está reunida em livro a ser lançado até o final de 2014, iniciativas do GT, cuja finalidade é

sistematizar as reflexões e torná-las acessível ao maior público possível.

Agradecemos o apoio financeiro recebido do Programa de Pós-Graduação em Letras

(Estudos Literários) e do Curso de Especialização em Literatura Brasileira, assim como o

apoio logístico de vários órgãos da Universidade Estadual de Londrina e dos monitores,

alunos de graduação e pós-graduação que tornaram possíveis as atividades acadêmicas e

culturais desses três dias de confraternizações teatrais.

A todos que estiveram conosco no encontro, nosso muito obrigado. Aos leitores, que

os textos sejam provocativos tanto quanto foram os debates durante o evento.

Sonia Pascolati

Alexandre Villibor Flory

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ISSN: 2358-405X

SUMÁRIO

PROGRAMAÇÃO DO EVENTO

02 DE OUTUBRO - quarta-feira

14h: Sessão de abertura

“GT Dramaturgia e Teatro da ANPOLL: quem somos, o que fazemos”

Sonia Pascolati, Alexandre Flory, Diógenes Maciel, Margarida Gandara Rauen.

15h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento

19h: Apresentação artística.

Coffee-break de boas-vindas.

Lançamento do livro do GT - Penso teatro - com presença de autores para autógrafos.

20h: Reunião técnico-acadêmica do GT Dramaturgia e Teatro: “O que queremos”

03 DE OUTUBRO - quinta-feira

9h: Mesa redonda: “Teatro e intermidialidade” (I)

- A imaginação pictural de Shakespeare em Sonho de uma noite de verão

Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)

- Narrar, mostrar – cantar: relações intermidiáticas nas formas dramático-

musicais

Diógenes Maciel (UEPB/PPGLI)

- Reflexões em torno da ideia de intermidialidade e princípio performativo na

cena contemporânea

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)

- Intermidialidade e teatralidade: cruzamentos conceituais

Sonia Pascolati (UEL)

- Intermidialidade formal no complexo em torno de A ópera dos três vinténs, de

Bertolt Brecht: teatro, cinema, romance e crítica

Alexandre Villibor Flory (UEM/PLE)

14h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento

18h: Apresentação artística.

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I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO

– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

04 DE OUTUBRO - sexta-feira

9h: Mesa redonda: “Dramaturgia e teatro: pesquisa e ensino”

- Personas de Pagu

Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO)

- O teatro reunido de Maria Jacintha

Marise Rodrigues (UFF/UTFPR)

- “Um texto que a gente pode ver”: sobre a leitura de textos dramatúrgicos na

escola

Valéria Andrade (UFCG)

- Leituras Cruzadas – A leitura do texto Dramático

Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR)

14h: Sessões de debates de pesquisas concluídas e/ou em andamento

18h: Coffee-break de encerramento.

20h: Abertura do Festival de Dança de Londrina.

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ISSN: 2358-405X

SUMÁRIO

SUMÁRIO

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A CRUELDADE NA PEÇA O JATO DE SANGUE DE ANTONIN ARTAUD Jhony A. Skeika (UEL) ......................................................................................................... 9

A EXCEÇÃO E A REGRA (1930): O RECURSO DE ESTRANHAMENTO, TEORIZADO

POR BRECHT, À LUZ DA TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO DE ISER Renata da Silva Dias Pereira de Vargas (Uniandrade) .......................................................... 20

ÁGUA, FOGO, TERRA E VENTO: A CONSTRUÇÃO E (RE)CONSTRUÇÃO DAS

PERSONAGENS NA BUSCA PELO SOL Aline Camara Zampieri (UFMS) ......................................................................................... 29

CIDADES E ROMANCE: APROPRIAÇÕES NO PROCESSO CRIATIVO DE “DAS

SABOROSAS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE” DO GRUPO TEATRO QUE RODA Lúcia Helena Martins (UNESPAR-FAP-PR) ....................................................................... 40

DENISE STOKLOS – O DRAMATURGO PENSADOR E A MÍMESIS DA PRODUÇÃO Pedro Leites Junior (UNIOESTE)

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................... 48

DOMAR A MEGERA, ESSA É A QUESTÃO: METALINGUAGENS E JOGOS DE

PODER/SEDUÇÃO EM SHAKESPEARE E EM DÁ-ME UM BEIJO DE SIDNEY Climene de Moraes Favero (Uniandrade) ............................................................................ 58

INFÂNCIA E SONHOS: O TESTEMUNHO DE EXPERIÊNCIAS ONÍRICAS COMO

DRAMATURGIA ESPONTÂNEA Felipe Fernandes Freitas (UnB)

Winny Trindade (UnB)

Clarice da Silva Costa (UnB) .............................................................................................. 70

L’ILLUSTRE MOLIÈRE: UMA ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO TEATRO FRANCÊS

DO SÉCULO XVII Joice Rodrigues ZORZI (IBILCE/UNESP).......................................................................... 75

MEMÓRIAS DA CENA PARAIBANA: PRIMEIROS RASCUNHOS Duílio Pereira da Cunha Lima (UEPB) ................................................................................ 83

MODULAÇÕES E VARIAÇÕES DO TEMA E DA PERSONAGEM DO AVARENTO

NO CÔMICO Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE)

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................... 93

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I SEMINÁRIO NACIONAL DE DRAMATURGIA E TEATRO

– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

MONTAGEM CÊNICA CONCEBIDA A PARTIR DA POESIA RETRATO DE

CECÍLIA MEIRELES Ana Carolina Conceição (UnB)

Clarice da Silva Costa (UnB)

Wanuza Marques (UnB) .................................................................................................... 104

NORA: ROMPIMENTO OU TRANSGRESSÃO? Vicentônio Regis do Nascimento Silva (UEL)

Sonia Pascolati (UEL) ....................................................................................................... 111

O “AUTO DA CATINGUEIRA”: TRANSVERSALIDADES DE UM LUGAR TEATRAL

NO SERTÃO Eduardo Cavalcanti Bastos (UFBA) .................................................................................. 117

O GÊNERO DRAMÁTICO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

PARA O ENSINO MÉDIO Anna Catharina Izoton Alves Mariano (UFES) .................................................................. 128

O GÊNERO ÉPICO-LÍRICO-DRAMÁTICO DE CAIO FERNANDO ABREU Ricardo Augusto de Lima (UEL)

Sonia Pascolati (UEL) ....................................................................................................... 138

O REI DA VELA E A TRANSGRESSÃO DO ESTATUTO COLONIAL ARTÍSTICO

BRASILEIRO Wallisson Rodrigo Leites (UNIOESTE)

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE) ............................................................................. 148

OBSERVAÇÕES SOBRE O ÉPICO NA DRAMATURGIA/TEATRO DO COLETIVO

DE TEATRO ALFENIM: BALIZAS TEÓRICAS, ENGAJAMENTO E ATUAÇÃO

CRÍTICA (DÉCADAS DE 1990-2000) Rodrigo Rodrigues Malheiros (UEPB)

Diógenes André Vieira Maciel .......................................................................................... 159

POÉTICAS DO CORPO FRAGMENTADO Gabriela Fregoneis (UNICAMP) ....................................................................................... 166

REI LEAR, DE MICHAEL ELLIOT: UMA ABORDAGEM À LUZ DE TEORIAS DE

ADAPTAÇÃO E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA Vinícius Zorzal Rosi (UFV)

Sirlei Santos Dudalski (UFV) ............................................................................................ 170

UMA PEÇA RADIFÔNICA: AMOR POR ANEXINS Clarice da Silva Costa (UnB) ............................................................................................ 176

UTILIZAÇÃO DE SONS EM TEXTOS POÉTICOS Káshi Mello (UnB)

Clarice Costa (UnB) .......................................................................................................... 182

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SUMÁRIO

A CRUELDADE NA PEÇA O JATO DE SANGUE DE ANTONIN ARTAUD

Jhony A. Skeika (UEL)1

Resumo: Antonin Artaud (1896 – 1948) foi um poeta, dramaturgo e ator francês cujas ideias acerca da arte

teatral culminaram na elaboração de uma proposta que ficou conhecida como “Teatro da Crueldade”. Para o autor, “sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de

degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos”

(ARTAUD, 2006, p. 114). Dessa forma, este estudo objetiva analisar a peça O jato de sangue, escrita por

Artaud em 1925, com o intuito de verificar a recorrência de alguns elementos para a criação da ideia de

Crueldade, em especial a fragmentação da linguagem e sua representação cênica, a criação de imagens como

recurso estético e o funcionamento da ideia de Corpo sem Órgãos.

Palavras-chave: Crueldade; O jato de sangue; Antonin Artaud.

Introdução

“Isto não é um cachimbo”, diz a inscrição da famosa pintura de René Magritte,

exemplificando a ideia do movimento Surrealista para a pintura. Nascido em Paris na década

de 1920, o Surrealismo propunha uma rejeição às imposições racionalistas da sociedade

burguesa da época, bem como seus valores impostos que ditavam padrões comportamentais

e moralistas, podando as vazões do sonho e imaginação. Isso pode ser visto claramente no

Manifesto Surrealista de André Breton (1924), marco de abertura do movimento: “a atitude

realista, inspirada no positivismo, de São Tomás a Anatole France, parece-me hostil a todo

impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade,

ódio e insípida presunção” (BRETON, 1997, p. 176). As pinturas de Salvador Dali e Max

Ernst, bem como os textos cinematográficos de Luis Buñuel, exemplificam claramente a

tendência estético-ideológica desse movimento vanguardista, já que exploram imagens

completamente inusitadas de delírios, sonhos, pensamentos e outras associações insólitas.

Contemporâneo a essa corrente estético-literária é Antonin Artaud (1896 – 1948),

um poeta, dramaturgo e ator francês, cujas reflexões acerca da arte teatral culminaram na

elaboração de uma proposta que ficou conhecida como “O Teatro da Crueldade”. No entanto,

antes de chegar ao refinamento desta ideia, que vai começar a se definir a partir de 1927 com

1 Doutorando. Universidade Estadual de Londrina – UEL. Orientadora: Profa. Pós-Dra. Sonia Aparecida Vido

Pascolati. E-mail: [email protected]

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a fundação do Teatro Alfred Jarry – a primeira companhia de teatro fundada por ele2 – e a

apresentação da peça Les Cenci (1935)3, Artaud aderiu ao movimento Surrealista e

comungou de suas ideias por cerca de um ano4. Neste período, especificamente em 17 janeiro

de 1925, escreveu o ato dialogado intitulado O Jato de Sangue (1925)5, texto pelo qual este

artigo se interessa.

Mesmo o “Teatro da Crueldade” sendo teorizado anos mais tarde, especialmente a

partir dos textos O teatro alquímico (1931) e o Manifesto do Teatro da Crueldade (1932),

podemos perceber que já em 1925 a proposta já estava em gestação. Dessa forma, este estudo

procura identificar na peça O Jato de Sangue alguns elementos que já sugerem a proposta

do “Teatro da Crueldade”, como a fragmentação da linguagem e sua representação cênica, a

criação de imagens como recurso estético e o funcionamento da ideia de Corpo sem Órgãos.

Assim, o que se propõe é refletir sobre a composição do conceito de teatro artaudiano,

considerando a abordagem surrealista uma forte influência para o refinamento de tal

conceito.

A crueldade no teatro

Em O teatro e seu Duplo6 – coletânea de textos que foi publicada em 1938 – Artaud

revela sua visão sobre o teatro e sua função. Ele entendia a arte teatral como um lugar

privilegiado de interação e criação, um espaço capaz de despertar no ser humano sentimentos

inusitados, sensoriais, corporais:

[...] certamente precisamos antes de mais nada de um teatro que nos desperte:

nervos e coração. [...] O longo hábito dos espetáculos de distração nos fez esquecer

a ideia um teatro grave que, abalando todas as nossas representações, insufle-nos

o magnetismo ardente das imagens e acabe por agir sobre nós a exemplo de uma

terapia da alma cuja passagem não se deixará mais esquecer. (ARTAUD, 2006, p. 96).

2 Com a parceria de Roger Vitrac e Robert Aron (cf. BERGHAUS, 2010, p. 22). 3 Adaptação da peça The Cenci, uma tragédia em cinco atos, de 1819, do inglês Percy Bysshe Shelley. 4 Artaud abandona o movimento em 10 de dezembro de 1926, após discordar com a associação do grupo ao

partido comunista francês (ARTAUD, 1983, p. 90-91). 5 Le Jet de Sang. “O manuscrito, datado de 17 de janeiro de 1925, está junto com outros dois textos (Paul, os

pássaros e O vidro do amor) em uma pasta intitulada Três Contos de Antonin Artaud, conservada na Biblioteca

Jacques Doucet em Paris. Ver: ARTAUD, Antonin, Obras Completas, vol. 1, Gallimard, Paris, 1970, p. 386.

A peça foi publicada em uma coleção de textos surrealistas de Artaud, O Umbigo dos limbos, Edição da Nova

Revista Francesa, Paris, 1925” (BERGHAUS, 2010, p. 21. Tradução minha). 6 Le Théatre et son double.

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O Teatro da Crueldade propôs não apenas uma dissonância com as características do

teatro tradicional, mas, sobretudo, sugeriu uma nova forma de conceber teatro, passando a

considerar a arte como uma dicção do mundo, uma inusitada maneira de apreender as coisas

que nos cercam. Artaud queria que o teatro pudesse criar acontecimentos, uma tentativa de

atualizar o real e não apenas criar um decalque da vida, uma imagem virtual do mundo:

“Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o

coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação

verdadeira” (ARTAUD, 2006, p. 97). Daí advém o termo “crueldade”, já que nessa proposta

o teatro se dispõe a abalar certezas e concepções de vida, atualizando no palco sensações

que só podem ser reconhecidas enquanto marcadas pelo terror e pela crueldade.

Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de

modo exclusivo. Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve

ser considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é atribuído. E com isso reivindico o direito de romper o sentido

usual da linguagem, de romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar

enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos,

evocam sempre uma noção concreta. Pode-se muito bem imaginar uma crueldade

pura, sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a

crueldade? Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e

decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta. (ARTAUD, 2006, p. 117

– 118. Sem grifos no original).

O dramaturgo sugere que a crueldade seja contemplada, só assim o teatro conseguiria

comunicar os sentidos insólitos e desprogramados, que talvez fossem mais significativos que

os significados grossos talhados nas palavras. Crueldade parece estar relacionada à

existência humana que não é propriamente estética e artística, mas crua e material, uma

verdade insuportável que seria melhor representada por uma linguagem desmontada, mais

abstrata e sem sentidos convencionados; encenar a crueldade parece procurar comungar de

sentidos secretos da vida.

Portanto eu disse "crueldade" como poderia ter dito "vida" ou como teria dito

"necessidade", porque quero indicar sobretudo que para mim o teatro é ato e

emanação perpétua, que nele nada existe de imóvel, que o identifico com um ato

verdadeiro, portanto vivo, portanto mágico. (ARTAUD, 2006, p. 134).

Nessa ideia, Artaud propõe que o elemento físico seja valorizado, centrando-se na

experiência corpórea dos atores e do público; a proposta é quebrar a divisão entre o espaço

cênico e a plateia em favor de uma dicção teatral que seja mais física, ligada à expressão do

espaço, rompendo, assim, com o imperialismo da palavra: a sujeição do teatro ao texto. Essa

é outra característica do “Teatro da Crueldade”: a relação do dramaturgo/ator com a

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linguagem. “Isso significa que, em vez de voltar a textos considerados como definitivos e

sagrados, importa antes de tudo romper a sujeição do teatro ao texto e reencontrar a noção

de uma espécie de linguagem única, a meio caminho entre o gesto e o pensamento”.

(ARTAUD, 2006, p. 101. Sem grifos no original).

Artaud parece negar a tradicional hegemonia do texto nas peças teatrais. Ele sugere

a destituição da palavra como uma tentativa de liberar outros inúmeros sentidos que antes

não eram possíveis pela limitação da materialidade do código linguístico. Assim, em muitos

dos seus textos teatrais e teóricos, as construções linguísticas são completamente inusitadas

e fora de uma convenção socialmente aceita, isso para não dizer esquizofrênicas logo de

início, uma vez que é uma linguagem labiríntica, embaralhada de outros signos e opera muito

mais pelo movimento de experimentação do que interpretação.

A participação reduzida do entendimento leva a uma compressão enérgica do

texto; a participação ativa da emoção poética obscura obriga a signos concretos.

As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens

novas falam, mesmo que feitas com palavras. Mas o espaço atroador de imagens,

repleto de sons, também fala, se soubermos de vez em quando arrumar extensões

suficientes de espaço mobiliadas de silêncio e imobilidade. (ARTAUD, 2006, p.

96. Sem grifos no original).

O autor sugere o funcionamento de uma outra linguagem, linguagem única, que

seja capaz de abarcar maiores sentidos, uma língua mais física, sensorial, sinestésica,

corporal, em que o ator pudesse dizer sem falar com a boca, sem usar palavras, mas dizer

com os movimentos do seu corpo criando imagens de sentidos, desarticulando a performance

cênica tradicional em favor de uma expressão que possa se comunicar com o espírito. O

autor, então, sugere uma ideia que ficou conhecida como Corpo sem órgãos – CsO –, uma

tentativa de liberar os sentidos dos automatismos pré-estabelecidos pela limitação do próprio

organismo enquanto máquina regida por órgãos.

Se quiserem, podem meter-me numa camisa de força

mas não existe coisa mais inútil que um órgão.

Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos

então o terão libertado dos seus automatismos

e devolvido sua verdadeira liberdade. Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas

como no delírio dos bailes populares

e esse avesso será

seu verdadeiro lugar. (ARTAUD, 1983, p. 161 – 162).

Ao exercitar uma linguagem mais corporal que, de fato, coerentemente linguística,

Artaud sugere um teatro que opere pela experimentação do Corpo sem Órgãos. Segundo

Gilles Deleuze e Félix Guattari, dois filósofos franceses pós-estruturalistas que se

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– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

apropriaram da ideia de CsO de Artaud, “Ele [CsO] é não-desejo, mas também desejo. Não

é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem

Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite”

(DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 9).

CsO é uma ideia que na prática pouco se refere a um corpo propriamente dito7; é

um devir, uma experimentação não prevista, mas possível, como se o corpo inteligível se

projetasse em uma potencialidade a partir do seu limite. Assim, inusitadas associações

liberariam os sentidos convencionados/engessados e o público então experimentaria algo

que só poderia ser entendido fora da realidade empírica e racional das coisas.

Antonin Artaud sugere um teatro que envolva os expectadores como num sonho sutil

e leve em que a crueldade pudesse ser apresentada e tolerada sem se recorrer a significados

estanques, mas através de uma “linguagem única, caminho entre o gesto e o pensamento”

(ARTAUD, 2006, p. 101):

Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha

para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda

sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age

sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com

um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência

necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele

os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob a

condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só

pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade. Daí o apelo à

crueldade e ao terror, mas num plano vasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade

integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilidades. (ARTAUD, 2006, 97).

Essa ideia de Corpo sem Órgãos funcionando na experimentação de sentidos

completamente inusitados faz parte do refinamento do conceito de “Teatro da Crueldade”

de Antonin Artaud, o que acontece anos depois do seu desligamento do movimento

surrealista (1926). No entanto, pode-se perceber que a noção de CsO está muito ligada à

proposta estético-ideológica do Surrealismo, o que nos leva a pensar que mesmo Artaud

tendo rompido por motivos políticos os laços formais com a vanguarda, manteve uma

ligação ideológica com o movimento, deixando transparecer isso no “Teatro da Crueldade”.

7 “Para além do organismo, mas também como limite do corpo vivido, há o que Artaud descobriu e nomeou:

corpo sem órgãos. ‘O corpo é o corpo. Ele é único e não precisa de órgãos. O corpo nunca é um organismo’.

Os organismos são os inimigos do corpo. O corpo sem órgãos opõe-se menos aos órgãos do que a essa

organização de órgãos chamada organismo. E um corpo intenso, intensivo. E percorrido por uma onda que

traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo não tem, portanto, órgãos,

mas limiares ou níveis”. (DELEUZE apud ZOURABICHVILI, 2004, p. 14).

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O jato de sangue de Deus: surrealismo e crueldade

De acordo Florence de Mèredieu, biógrafa de Artaud, O jato de sangue é uma

paródia8 que “reinterpreta” de certo modo uma peça de Armand Salacrou, intitulada A bola

de vidro (La boule de verre).

Segundo André Masson, Antonin Artaud apareceu um dia para ler a peça que

acabara de criar, e declarou rindo: “Acabo de aplicar um golpe em Salacrou. Quero

lhe mostrar o que significa uma peça à la Salacrou”. Seu tom, ao fazer tal declaração, era sarcástico. Armand Salacrou falou depois sobre o contexto em que

havia escrito o texto. [...] Era a época dos entusiasmos e das discussões

apaixonadas. Ele e seus amigos questionavam o mundo incessantemente. Havia,

então, tentado explorar certas possiblidades. “Todos concordavam com o

essencial, nós divergíamos em nossas pesquisas e, somente como exemplo, assim

que mostrei ‘A Bola de Vidro’ a Antonin Artaud, ele refez imediatamente a peça

a seu modo, em dez páginas, com os mesmos personagens e a publicou em seu

primeiro livro, O Umbigo dos Limbos, com o título de ‘O Jato de Sangue’”. O

texto de Artaud é uma farsa drand-guinholesca e uma sátira ubuesca do texto de

Salacrou. Manifesta grande frescor e Artaud deve ter se divertido em colocar em

cena os diversos personagens [...] de um modo totalmente maluco. (MÈREDIEU,

2011, p. 282 – 283).

A sutil descrição da peça feita por Florence Mèredieu parece ser muito propícia ao

texto de Artaud: diversos personagens agindo de um modo totalmente maluco. Um casal de

namorados troca declarações de amor automatizadas e repetitivas. Em seguida um furacão

os separa no exato momento em que astros se chocam, deixando cair pernas em carne viva,

com pés, cabelos, perucas, máscaras, templos, colunas; caem também do acidente

astronômico escorpiões, pórticos, alambiques, uma rã e um escaravelho. Um cavaleiro

medieval discute com uma ama de peitos inflamados. Diversas personagens destoantes

entram em cena (padre, puta, sapateiro, juíza, bedel, vendedora de quatro estações), mas não

participam da representação mimética (exceto o padre), apenas presenciam a terra entrar em

colapso. Aparece uma mão gigante – a mão de Deus – que arranca os cabelos da puta, a qual

é incendiada às vistas do público. A proxeneta9 revida mordendo o punho divino, de onde

jorra um jato de sangue que mata a todos. Ama e cavaleiro voltam e encontram vivos apenas

a puta e o mocinho que aparentam ter vivido o jato de sangue como uma relação sexual; o

cavaleiro quer que a ama lhe dê queijo, mas ela lhe dá uma multidão de escorpiões que saem

debaixo da sua saia. A mocinha morta, que vem carregada pela Ama, é jogada no chão, se

8 De acordo com Eric Sellin (apud SONTAG, 1976, p. 604. Tradução minha), O jato de sangue também seria

uma grande sátira ou imitação de Les mamelles de Tirésias, de Guillaume Apollinaire, peça escrita em 1913,

produzida em 1917 e publicada em 1918. 9 Tradução feita por Isa Kopelman – tradutora de Eis Antonin Artaud, a biografia do autor escrita por Florence

de Mèredieu.

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quebra como uma bolacha; ao final, ela acorda maravilhada e diz: “A virgem! Então era isso

que ele queria”. (ARTAUD, 1982, p. 14).

Uma descrição rápida da peça já é capaz de demonstrar a complexidade de suas

construções, escolhas dramatúrgicas que levaram críticos, como Günter Berghaus (2010), a

realmente colocar em pauta a (im)possibilidade de execução cênica do texto: “a peça não é

apenas curta, ela também parece fazer exigências inviáveis para que alguém dê ao texto uma

realização cênica. Suas direções de palco [...] deram origem à suposição de que Artaud estava

buscando um ‘teatro impossível’” (BERGHAUS, 2010, p. 21. Tradução minha)10. Berghaus

pode estar se referindo às rubricas do texto que parecem ser praticamente impossíveis de

realização cênica, conferindo ao texto claramente uma marca surrealista; talvez no cinema

Luis Buñuel conseguisse a encenação do texto, mas tal proposta se tornou completamente

desafiadora e quase impossível para o teatro11.

(Silêncio, se ouve como o barulho de uma imensa roda que gira e desempenha o

vento. Um furacão os separa. Neste momento se veem dois astros que se

entrechocam e cai uma série de pernas em carne viva com pés, mãos, cabelos,

perucas, máscaras, colunas, pórticos, templos, alambiques. O desmoronamento é

feito aos poucos, lentamente, como se tudo caísse no vazio. Caem – ainda três

escorpiões, um atrás do outro, depois uma rã e um escaravelho com uma lentidão

desesperadora, nojenta). (ARTAUD, 1982, p. 13).

Sabe-se que Antonin Artaud era um esquizofrênico diagnosticado e, somado a isso,

neste período ele estava sob fortes influências da ótica surrealista. No entanto, independente

das motivações e influências, o autor acaba por articular um texto que sugere claramente o

que mais tarde ele chamará de Corpo sem Órgãos, ideia que, na peça analisada, dialoga com

as inúmeras imagens completamente desfragmentadas que surgem em cena em

agenciamentos insólitos e inusitados. Em nenhum momento há a explicação dos

elementos/personagens que aparecem, como os escorpiões, a rã e o escaravelho caindo em

uma lentidão nojenta, o que nos faz pensar que o texto funciona em um movimento de leitura

que preza mais pela experimentação – experiência sensória de presenciar o choque dos astros

e seus inusitados resíduos – do que pela lógica racional da interpretação.

10 The play is not only short, it also seems to make unfeasible demands on anybody trying to give it a scenic

realization. Its stage directions [...] gave rise to the assumption that Artaud was pursuing an ‘impossible

theatre’. 11 Digo quase impossível porque, mesmo com limitações e fracassos, algumas companhias teatrais tentaram a

realização cênica do texto. Cito, a partir do estudo de Günter Berghaus (2010, p. 21), a primeira produção

profissional da peça, dirigida em 1964 por Peter Brook e apresentada na Temporada da Crueldade em Londres

(London Season of Cruelty).

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Isso é resultado também da proposta surrealista, já que este movimento vanguardista

negava o imperialismo da razão e propunha textos que explorassem o sonho, o inusitado, o

delírio, o insólito, o grotesco. Em outra rubrica, Artaud sugere que seja encenada a ruína da

terra, quando a mão de Deus arranca os cabelos (peruca) da puta e a faz se incendiar perante

o público; em defesa, a puta morde o punho de Deus, de onde jorra um jato de sangue que

mata a todos. O estranhamento é inevitável, fazendo com que o leitor/expectador tenha

acesso a um texto que mais se aproxima de um delírio esquizofrênico do que uma história

passível de interpretação. Os surrealistas queriam se libertar dos automatismos da escrita e

das representações estanques da linguagem, criando agenciamentos que pudessem consagrar

uma poética do delírio, da alucinação, do sonho, da imaginação contra lógica castradora da

razão.

Neste período, os autores também buscavam questionar valores socialmente

impostos como o conceito de pai, patrão, pátria, família, religião. O Jato de Sangue, então,

se mostra como uma dicção dessa proposta, uma vez que subverte a figura de Deus,

apresentando-o em seu furor e crueldade, ao mesmo tempo em que o mostra voluvelmente

humano a ponto de sangrar com a mordida de uma puta incandescente; é do jato sangue de

Deus que toda a crueldade emana.

Devido às inúmeras construções inusitadas, a peça de Artaud também sugere a

subversão do corpo dos atores a partir de elementos que se referem à fragmentação,

evisceração e experimentação de fluídos corporais. Vejamos alguns exemplos: logo no início

da peça há uma personagem – A Ama – que tem os peitos inflamados, os quais ela segura

com as duas mãos. No final, o cavaleiro medieval quer o queijo que ela escondeu, então a

mulher ergue sua saia e de lá sai uma multidão de escorpiões, que começam a pular em seu

seio, agora achatado, que pega fogo e se racha, “tornando-se vidrado e brilhante como um

sol” (ARTAUD, 1982, p. 14). Outro exemplo está em uma rubrica que descreve um furacão

e o choque de dois astros, de onde “caem uma série de pernas em carne viva com pés, mãos,

cabelos, perucas, máscaras, colunas, pórticos, templos, alambiques” (Ibid., p. 13) – sem uma

lógica e explicação, o público espectador presenciaria uma cena extremamente grotesca de

partes de corpos caindo do teto, junto com outros elementos nada similares (imaginemos

como seriam templos, pórticos e colunas caindo...).

A tônica da peça está quando a puta morde o punho de Deus, de onde sai um imenso

jato de sangue que mata os personagens, fazendo alguma alusão, talvez, ao episódio bíblico

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que narra o episódio da morte de Jesus, quando jorrou sangue e água do seu peito12. O jato

de sangue da peça analisada pode ser visto como uma máxima grotesca: o fluído corporal

mais contagioso sendo derramado sobre o palco cênico, encharcando o cenário e os atores.

Sobre isso, Anaïs Nin afirma que Artaud13

falou dos antigos ritos de sangue. O poder do contágio. De como perdemos esta

magia do contágio. A religião antiga sabia organizar ritos que tornavam

contagiosos a fé e o êxtase. O poder dos ritos desapareceu. Ele quer devolver isso

ao teatro. Ele quer gritar de tal forma que as pessoas sejam novamente

reconduzidas ao fervor e ao êxtase. Nada de palavras. Nada de análise. O contágio

da representação de estados de êxtase. Nada de encenação objetiva, mas um rito

no meio do público. (NIN, 1986, p. 164)14.

Pode-se perceber que o sangue, entendido aqui como um elemento grotesco por estar

associado ao ritual do corpo em sua exposição inusitada e estapafúrdia, fazia parte da

proposta artaudiana de um teatro ritual que possibilitasse o contágio com o visceral, com o

corpo completamente desmontado e avariado funcionando como um elemento ativador de

sentidos, que não seriam possíveis através de um organismo organizado – proposta que tem

por base a ideia de Corpo sem Órgãos.

Voltando à proposta surrealista, em O jato de sangue, além dos inúmeros

personagens, elementos e ações inusitadas, desfragmentadas e desconectadas com o todo da

peça, há algumas incoerências no texto, como quando a rubrica diz que “uma mão enorme

arranca a peruca da puta” (ARTAUD, 1982, p. 14. Sem grifos no original), mas logo em

seguida “A puta morde os punhos de Deus” (op. cit.) – se era apenas uma mão, como pode

haver punhos, no plural? Outro exemplo é quando a rubrica seguinte diz que “O corpo da

puta aparece absolutamente nu e horroroso com um corpete e uma saia” (op. cit.) – como

ela está absolutamente nua quando, ao mesmo tempo, está vestida? Ao final da peça a

didascália afirma que o jato de sangue rasga a cena e “quando a luz se refaz, todos os

personagens estão mortos e seus cadáveres jazem por todas as partes, no chão” (op. cit.,

sem grifos no original). Logo em seguida, aparecem vivos a puta, o mocinho, o cavaleiro e

a ama, a qual carrega a mocinha nos braços como um pacote, morta. “A ama deixa a mocinha

cair na terra onde ela se quebra e se torna pálida como uma bolacha” (op. cit.), mas depois

12 Essa cena está no Evangelho de João, capítulo 19, versículo 34: “Contudo um dos soldados lhe furou o lado

com uma lança, e logo saiu sangue e água” 13 Anaïs Nin foi uma escritora e artista que conviveu com Artaud e sobre ele escreveu algumas impressões em

um diário pessoal, principalmente acerca da sua produção da década de 1930. 14 Trecho dos Diários de Anaïs Nin (Vol. 1 1931/33), apêndice de um livro organizado por Cláudio Willer que

traz alguns Escritos de Antonin Artaud (1986).

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que a puta e o mocinho fogem juntos como dois trepanados, a mocinha se levanta,

maravilhada.

Essas incoerências na linguagem e na construção/articulação das cenas e personagens

se mostram totalmente propositais, justamente porque a ideia da peça parece ser a de figurar

o não lógico, numa proposta que subverta a razão em prol de uma experimentação estética

do delírio, do pesadelo, do surreal. Dessa forma, podemos dizer que peça de Artaud preza

pela desarticulação da linguagem, dos sentidos convencionados na lógica do mundo e da

língua, da performance teatral tradicional calcada na representação mimética, do texto

baseado na tradição literária.

Considerações finais

Este estudo procurou analisar a peça O jato de sangue, escrita por Antonin Artaud

em 1925, com o intuito de verificar a recorrência de alguns elementos que mais tarde

delimitaram a ideia de “Teatro da Crueldade”, em especial a fragmentação da linguagem e

sua representação cênica, a criação de imagens como recurso estético e o funcionamento da

ideia de Corpo sem Órgãos. Considerando a abordagem do Surrealismo uma forte influência

para o refinamento do conceito artaudiano de crueldade, O jato de sangue revela uma

proposta de teatro ritual, teatro corporal, de experimentação linguística e ideológica.

A peça claramente dialoga com as ideias surrealistas, como a negação da razão em

prol de uma estética do delírio e o combate a conceitos castradores e moralistas, uma vez

que o texto subverte a figura de Deus, apresentando-o em seu furor e crueldade, ao mesmo

tempo em que o mostra voluvelmente humano a ponto de sangrar com a mordida de uma

puta incandescente: é do jato sangue de Deus que toda a crueldade emana. “Crueldade

significa extirpar pelo sangue e através do sangue a deus, o acidente bestial da animalidade

humana inconsciente, onde quer que se encontre” (ARTAUD, 1986, p. 160).

Referências

ARTAUD, A. O Jato de Sangue. In: Cadernos de Teatro, n. 95. INACEN, 1982,

______. O teatro e o seu duplo. Trad. Teixeira Coelho e Monica Stahel. 3 ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2006.

______. Escritos de Antonin Artaud. Tradução, seleção e notas de Cláudio Willer. Porto

Alegre: L&PM Editores, 1986.

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BRETON, A. Manifesto do Surrealismo. In: TELES, G. M. Vanguarda europeia e

modernismo brasileiro: apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e

conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. 18. ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 174 – 208.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução

de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São

Paulo: Ed. 34, 1996.

JALLAGEAS, F. Antonin Artaud e o Surrealismo: distâncias e aproximações. Revista

Zunái, ano IV, edição XVI, outubro de 2008. Disponível em:

<http://www.revistazunai.com/ensaios/francine_jallageas_antonin_artaud.htm>. Acesso em

15 set. 2013.

MERÈDIEU, Florence de. Eis Antonin Artaud. Tradução de Isa Kopelman. São Paulo:

Perspectiva, 2011.

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Janeiro: Relume Dumará; Sinergia; Ediouro, 2009.

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SUMÁRIO

A EXCEÇÃO E A REGRA (1930): O RECURSO DE ESTRANHAMENTO,

TEORIZADO POR BRECHT, À LUZ DA TEORIA DO EFEITO ESTÉTICO DE

ISER

Renata da Silva Dias Pereira de Vargas (Uniandrade)1

Resumo: A peça didática A exceção e a regra (1930), de Bertolt Brecht, antes de ser representada, teve seu

texto executado como um jogo cênico em constante processo em espaços não convencionais. O objetivo

era desencadear reflexão para possibilitar a conscientização social e política dos participantes. Pretende-se

analisar a peça sob a ótica da estética da recepção, utilizando a teoria do efeito estético de Wolfgang Iser, ou seja, os efeitos produzidos no leitor pelo texto que ganha existência no momento da leitura. O recurso

de estranhamento, teorizado por Brecht, e as considerações críticas de Flávio Desgranges (2012) sobre a

relação do espectador com a cena também serão ferramentas importantes na análise do texto mencionado.

Palavras-chave: A exceção e a regra. Peça didática. Recurso de estranhamento. Estética da recepção.

Introdução

A exceção e a regra (1930), de Bertolt Brecht (1898-1956), uma das peças

didáticas mais conhecidas do autor, foi escrita primeiramente para ser levada às escolas e

fábricas com o intuito de promover aprendizado por meio da participação de todos no

jogo de cena. A primeira encenação no teatro foi realizada em Paris no ano de 1947. Esse

trabalho objetiva examinar os recursos de estranhamento da peça à luz da teoria do efeito

estético de Wolfgang Iser (1926-2007).

Breves considerações teóricas sobre oefeito estético de Iser

Wolfgang Iser (1926-2007), precursor da teoria dos efeitos, pesquisou a forma

como uma obra é recebida por um público no decorrer de sua história. Acreditava que a

recepção de uma obra, desde o momento em que é escrita até o contexto atual, deve ser

levada em consideração.

De acordo com Iser, um texto necessita de um leitor para adquirir vida. Neste

processo dialético, o leitor, provavelmente, tentará relacionar o texto a algo despertado

nele, condição básica para a eficácia do texto. O papel do leitor é fundamental, pois “(...)

o texto se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e a compreensão

1 Mestranda. Uniandrade – Centro Universitário Campos de Andrade. [email protected]

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previamente constituída que os leitores introduzem na leitura” (ISER, 1996a, p.78). Mas

o leitor deve ficar atento, porque não é livre para imaginar o que quiser, embora o texto

se apresente como um leque de possibilidades dadas por diferentes ângulos. Várias visões,

vozes, perspectivas estão presentes no texto e o leitor perceberá isso no momento da

leitura. Dessa forma, Iser afirma que: “Os conflitos dos textos literários provocados no

ato da representação revelam em princípio uma rica variedade de matizes, esses conflitos

só se cumprem na experiência do leitor” (1996a, p. 93-94).

Ao escrever uma obra, o autor deixa lacunas que devem ser preenchidas pelo

leitor, por isso um texto nunca está acabado, o leitor é peça chave para completar essa

obra. O efeito desse texto é produzido no leitor no momento em que é lido, porque por

trás de um texto há sempre uma intenção que precisa ser descoberta pelo leitor.

É importante, também, salientar a condição de recepção de uma obra, pois a

recepção varia de acordo com o contexto em que essa obra está inserida e o horizonte de

expectativas do momento em que é escrita. E como o horizonte de expectativas tende a

mudar, há também uma mudança no modo de recepção desse texto. Segundo Iser: “Cada

época tem seus próprios sistemas de sentido, as transições epocais marcam, por

conseguinte, modificações significantes que se realizam no interior dos sistemas de

sentido que por sua vez são organizados segundo um modo hierárquico ou concorrente”

(ISER, 1996a, p. 133). Assim, o texto pode sofrer uma atualização, seguindo as estruturas

de efeito inseridas no texto.

O leitor, utilizando de seu repertório e de sua consciência imaginativa, vai

interpretar o texto e esta interpretação é um processo individual, por isso há várias

interpretações para um mesmo texto. “O repertório de textos ficcionais não consiste

apenas em normas extratextuais, retiradas dos sistemas da época; também incorpora, de

maneira ora mais ora menos acentuada, a literatura do passado” (ISER, 1996a, p. 147).

De alguma forma, a obra literária pode formular no leitor algo novo, afetando sua

consciência, trazendo-o para a reflexão e fornecendo estímulo a não se acomodar ao texto.

O não-dito e os lugares vazios do diálogo incentivam o leitor a ocupar as lacunas com seu

conhecimento de mundo. A partir de um estranhamento, o leitor se depara com um texto

que se afasta do seu horizonte de expectativas e apresenta certas ambiguidades, o que

acarreta a indeterminação do texto.

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Uma forma de salientar a indeterminação é a narração segmentada, esta aumenta

o número de lugares vazios de tal forma que deixa o leitor desnorteado a ponto de

deformar as representações empreendidas por ele. Cortar, adiar, além de manterem o

leitor preso ao texto, são fundamentais para criar o clima de suspense necessário para que

ele possa inferir informações e possibilitar o sucesso da comunicação entre autor, obra e

leitor.

O texto é objeto de uma descoberta progressiva, de uma percepção dinâmica

que muda constantemente; nesse processo, o leitor progride não só de surpresa

para surpresa, mas ao mesmo tempo, avançando, ele vê que sua compreensão

do lido se modifica, uma vez que cada novo elemento empresta uma nova dimensão aos elementos antecedentes, à medida que os repete, contradiz ou

desenvolve. (RIFFATERRE, citado em ISER, 1996b, p. 185)

A peça didática e o espectador teatral

Quando suas peças didáticas (Lehrstücke) foram traduzidas para o inglês, Brecht

preferiu a expressão learning play (peça de aprendizado), o que facilita para compreendê-

la como um processo que pode produzir aprendizagem, e não como algo finalizado,

fechado a interações.

Flavio Desgranges apresenta algumas considerações importantes a respeito do

espectador teatral que podem ser aproximadas à teoria de Iser.

Brecht teria concebido o texto da peça didática como um modelo de ação, e

não como uma obra acabada, sendo a participação dos atuantes fundamental

para o seu processo de construção (...), em que os jogadores são convidados a

participar do processo de criação da obra. (DESGRANGES, 2006, p. 83).

No caso de A exceção e a regra, o leitor se depara com um dilema antissocial que

o faz refletir a respeito da moral, da ética, do patrão que mata o carregador; o faz

questionar a atitude do agressor e também do comportamento do cule. O texto lança

questões que poderão ser respondidas pelo leitor, levado a especular por que o carregador

não reage, não se defende, e por que o comerciante atenta contra a vida de seu empregado,

e qual dos dois estaria certo.

Dessa forma, o ato da leitura instiga o leitor a indagações que solicitam dele

efetiva participação nos acontecimentos, desempenhando quase que um papel autoral

para que o texto se realize.

E que convida o leitor a abandonar as suas representações formadas, desvencilhando-se dos próprios produtos, e possibilitando a criação de

representações que seriam impossíveis se os hábitos familiares ainda fossem

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determinantes. O que, no limite, indica a produção de um sujeito-leitor que

antes não existia. (DESGRANGES, 2012, p. 28).

A leitura do texto solicita do leitor certa invenção que possa produzir sentidos, por

isso espera-se sua efetiva atuação e também o abandono de representações formadas e

adequação às necessidades do texto, assim, o leitor perceberá reflexos das condições

históricas que estão impregnadas no texto que requerem atitude crítica em relação à obra.

Dessa maneira, afirma Desgranges:

As modificações no contexto social solicitam soluções artísticas renovadas,

que façam frente às mudanças ocorridas no modo receptivo e consigam atingir

com efeito os espectadores de determinado tempo histórico, e, por outro lado,

o fazer artístico também participa e influencia essas alterações na

perceptividade, propondo modos distintos de o homem compreender e se

colocar diante do mundo. (DESGRANGES, 2012, p. 22).

Alguns temas apresentados pedem urgência discursiva e reflexiva que a princípio

parecem incompatíveis com o horizonte de expectativa do momento em que o texto é

lido, por isso a visão desses temas muda de acordo com a recepção da obra. A experiência

histórica do leitor é imprescindível para questionar este tema e entendê-lo historicamente,

de acordo com sua época algo que era inquestionável passa a ser questionável,

acarretando modificações nos modelos artísticos, como no teatro, por exemplo.

Brecht dá agora um passo radical: se não dá para mudar o público, invente-se um novo público (aquele dos esportes), e, se nem isso for possível, então mais

simplesmente, cometa-se o crime perfeito e suprima-se até mesmo a idéia de

público. E é assim que surgem as peças didáticas. O preço a pagar não deixa

de ser alto: abandona-se aquela diversão perdulária, e fica-se com a seriedade

do pedagógico, com o exercício ascético da racionalidade. (BORNHEIM,

1992, p. 182).

Sendo a obra em estudo uma peça didática, são perceptíveis as técnicas utilizadas

por Brecht, como o estranhamento, a quebra da ilusão dramática e a nomissão da função

catártica por afastamento, afinal, diante da morte e da injustiça, o leitor experimenta certa

felicidade por sua vida ser diferente daquela vivida pelos personagens, uma espécie de

prazer. Diante disso, o leitor sente-se mais à vontade para cumprir seu papel, preencher

os espaços vazios deixados no texto, acessando seu repertório e utilizando seu

conhecimento de mundo para interpretar o texto. Nessa linha de pensamento, Camati

afirma que: “A decodificação da enunciação verbalizada pelas vozes narrativas tende a

assumir diferentes contornos na imaginação dos espectadores, que têm a liberdade de

alçar vôos em diferentes direções, completando as lacunas do texto” (2009, p.163).

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O formato da peça didática pode instaurar no leitor um espírito crítico, tanto em

relação à moral tradicional como também uma discussão a respeito das mazelas sociais,

das injustiças sofridas pelos menos favorecidos, pela parcialidade do poderio da ordem

social, principalmente com as cenas de julgamento, frequentemente encontradas nessas

obras, que suscitam reflexão e produzem aprendizagem. Algumas dessas questões serão

discutidas a seguir.

O recurso de estranhamento brechtiano à luz da teoria do efeito estético em A

exceção e a regra

A peça didática A exceção e a regra faz uma crítica social aos padrões instaurados

tanto para a época em que foi escrita, de censura e forte repressão, de desigualdade social,

desemprego, como para o momento atual, em que o povo, descontente com salário,

emprego, saúde, transporte público, educação, altos impostos, vai para a rua reinvindicar

seus direitos. Nesse sentido, a peça “(...) é testemunho de uma época, condições sociais e

não perde capacidade de comunicação mesmo depois que sua mensagem se tornou

histórica” (ISER, 1996a, p. 39-40).

A mensagem dessa obra, embora histórica, é contemporânea: os poderosos se

aproveitam dos menos favorecidos, simplesmente porque acreditam que estes não

merecem melhor tratamento, porque são pobres e suas vidas não valem nada, que como

pessoas são de uma qualidade pior e ou de nenhuma qualidade. Exemplos disso são

percebidos no decorrer de toda a peça: “(...) essa gentinha não faz muita questão de estar

inteira ou mutilada (...). Doentes por natureza (...). Assim como jogam fora uma coisa que

não deu certo, eles jogam fora suas próprias pessoas” (BRECHT, 1990, p. 145). Essa

visão do comerciante pode causar indignação, mas faz parte da função do texto, de acordo

com a teoria de Iser:

Se a conduta dos personagens nos parece cada vez mais inverossímil, brutal,

ou até, inimaginável, então somos forçados a considerar o que determina

nossas concepções de verossimilhança, brutalidade e imaginabilidade. [...]

Focalizar algo através de uma deformação coerente do visível, induzindo o

receptor a constituir causas encobertas trabalhando com o estranhamento

(Verfremdung). (ISER, 1996b, p. 143, 194).

Para gerar no leitor o espírito crítico em relação a essas questões, a obra deve

causar estranhamento, chocá-lo, indigná-lo, forçá-lo a considerar os mecanismos do texto

que podem explicar as causas dos acontecimentos, fazendo-o rever suas concepções para

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entender certas condutas presentes no texto. Assim, o leitor é envolvido de tal forma que

é empurrado para o texto, revendo, de acordo com o contexto da obra, seus conceitos de

certo e errado, mas acima de tudo, entendendo as atitudes tomadas pelos personagens

porque são fundadas nos conceitos pré-estabelecidos pela moral vigente: “O acusado,

portanto, agiu em legítima defesa tanto no caso de ter sido realmente ameaçado quanto

no caso de apenas sentir-se ameaçado. Dadas as circunstâncias, tinha razões para sentir-

se ameaçado. Isto posto, absolve-se o acusado” (BRECHT, 1990, p. 160).

Por isso, é importante o leitor conhecer a história da recepção de uma obra. “A

leitura tem a mesma estrutura da experiência, na medida em que o envolvimento empurra

os nossos padrões de representação para o passado” (ISER, 1996b, p. 50). Atitudes dos

personagens que podem parecer negativas são totalmente aceitáveis no contexto da obra,

porque são parte da formação do personagem, então é verossímil que estes se comportem

de tal forma. A respeito disso: “O leitor procurará aspectos positivos da natureza humana,

no lugar daqueles que foram qualificados como negativos” (p. 74). Embora certos

comportamentos dos personagens gerem indignação, seria incoerente e inesperado, por

exemplo, que o comerciante fosse bom para seus empregados, porque isso é o correto a

se fazer, mas não é comum de acordo com sua formação. Bornheim diz que:

A obrigação do comerciante era crer-se ameaçado. Decidam, entretanto, os

participantes: ou bem aceitar a decisão monstruosa do juiz, ou recusar em bloco

toda a estrutura social capitalista, pressuposta pela ação criminosa. Brecht

pretende que, no sistema social vigente, a bondade é uma exceção. (1992, p.

189).

Há uma hierarquia, uma ordem social que sempre existiu, tanto no momento em

que a peça foi escrita como na atualidade, embora não sendo a forma mais justa, o que se

percebe é que o dinheiro, o poder, as posses, a famosa “carteirada” ainda ditam as regras

em muitos lugares. Mas as mudanças são percebidas, e é o que a obra propunha na época,

e é o que ela provoca no leitor hoje. “Cada época tem seus próprios sistemas de sentido,

as transições epocais marcam, por conseguinte, modificações significantes que se

realizam no interior dos sistemas de sentido que por sua vez são organizados segundo um

modo hierárquico ou concorrente” (ISER, 1996a, p. 133). O impacto do texto gera no

leitor uma mudança de significado diante de uma mesma situação. O sentido já não é mais

o mesmo, porque houve mudança também no horizonte de expectativas da peça. Exemplo

disso é encontrado no texto: “Ao forte todos ajudam, e o fraco não tem ninguém, (...)

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Deus, que fez todas as coisas, fez o patrão e o empregado, (...). E o bom é quem vive bem,

quem vive mal é o malvado” (BRECHT, 1990, p. 145).

Outro mecanismo teorizado por Iser, encontrado na peça de Brecht é a realidade

extratextual, deveras utilizado para prender a atenção do leitor, para que possa relacionar

o texto a situações que fazem parte do seu contexto. “As frases escritas de textos

ficcionais, ao serem enunciadas, sempre ultrapassam o texto impresso para relacionar o

receptor com realidades extratextuais” (ISER, 1996a, p. 105). E mesmo essa peça sendo

da década de trinta, já naquela época havia uma visão negativa em relação à polícia, não

uma negatividade relacionada ao cargo, mas mais como algo impregnado à questão do

poder, neste caso a polícia tem certo poder que é lhe dado pelo cargo e pelo distintivo, e

é este poder que é mal utilizado e que gera essa visão negativa. Essa visão fica clara pela

maneira como o comerciante se sente protegido dos pobres porque tem a polícia como

escudo, como se o fato de ser pobre, automaticamente levasse a pessoa para o mal. “Não

são de luta, não são de nada: é uma corja da mais baixa qualidade, que anda de rastos (...)

graças a Deus, a polícia está aí para manter a ordem” (BRECHT, 1990, p. 134). Esta é

uma concepção do patrão, mas que está presente também na realidade atual, a polícia está

ai para manter a ordem, mas nem sempre em prol dos mais necessitados, e sim de uma

minoria que depende que a ordem social continue como está.

Esta premissa de querer preservar a ordem social vigente é algo que o leitor

percebe no desenrolar do enredo. São ações implícitas que levam o leitor a refletir. Iser

argumenta: “Se todas as ações verbais fossem explícitas, a comunicação só conheceria

fracassos, (...) o não dito constitui condição básica para que o receptor possa produzir o

que se visa, (...) os “vazios” da fala formam o constituinte central da comunicação”

(1996a, p. 112). Como já foi dito acima, o sucesso da comunicação de uma obra depende

dos vazios deixados pelo autor, preenchidos no ato da leitura; dessa forma o jogo dialético

se completa. Como afirma Camati, o autor “conduz a plateia a um jogo imaginativo e a

novos modos de percepção, estimulando os espectadores a preencherem os vazios dos

cenários de palavras” (2009, p. 164).

Na peça A exceção e a regra há o seguinte trecho: “Quem morre é o homem

doente. O homem forte vai em frente” (BRECHT, 1990, p. 140). Nesta passagem, o leitor

poderá interpretar o que não é dito: o pobre, o carregador, o empregado são comparados

a homens doentes que precisam de tratamento, como se sua condição fosse uma doença

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que precisasse ser curada. Já o rico, o comerciante ou o patrão são os fortes e por causa

disso seguem em frente sem sofrer qualquer punição pelos seus atos. Até porque o juiz

não pode condenar o patrão, ele também é patrão e estaria condenando a si mesmo. A

sociedade capitalista em que estão inseridos não espera que o juiz aja de forma diferente,

porque sabe que os poderosos presentes ali, no julgamento, agiriam da mesma forma.

Consideraçoes finais

O diálogo entre texto e leitor somente se realiza graças à participação constante

do leitor na produção de sentido, a indeterminação é crucial para que o leitor infira seus

conhecimentos e interprete a obra, por exemplo: “Quem esquece disto é bobo: Vai dar de

beber a um homem, mas quem bebe mesmo é um lobo!” (BRECHT, 1990, p. 159). Neste

trecho há uma comparação entre o patrão e o lobo, o carregador em sua inocência quer

ajudá-lo, mas acaba morrendo porque o patrão, espelhando-se em si mesmo, só vê o mal

nas pessoas, neste caso o bobo é o cule que acreditou na bondade do comerciante, e este,

por sua vez, fez-se de cordeiro, mas na verdade era um lobo.

Repare-se em outro trecho da peça: “(...) um homem, mal remunerado, forçado

com violência a enfrentar um grande perigo, vendo-se prejudicado até em sua saúde, e

arriscando a vida quase a troco de nada, para outro ter vantagem, acabe tendo ódio desse

outro” (BRECHT, 1990, p. 154). Esta é uma perspectiva interna do texto, fundamentada

na concepção estrutural de cada personagem, por isso, embora o texto leve o leitor a

refletir, ele não pode escolher como bem quiser um ponto de vista, ele deverá levar em

consideração a filosofia de cada personagem para entender suas atitudes, assim ele

conseguirá aceitar o desfecho de determinadas ações, como no caso do carregador, que

mesmo depois de morto é condenado por algo que não fez, mas esperava-se que fizesse.

Segundo a teoria dos efeitos “Os atos de apreensão são bem sucedidos na medida em que

formulam algo em nós (...). Afeta a consciência existente e incorpora algo novo” (ISER,

1996b, p. 92, 94).

Ao final da peça, o coro profere as seguintes falas:

Humanidade é exceção.

Assim quem se mostra humano

Paga caro essa lição. (...)

E viram o que é comum O que está sempre ocorrendo. (...)

No que não é de estranhar

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Descubram o que há de estranho!

No que parece normal

Vejam o que há de anormal!

No que parece explicado

Vejam quanto não se explica! (BRECHT, 1990, p. 158, 160)

Diante disso, o leitor tem sua consciência imaginativa afetada, reflete sobre o que

lê e torna-se diferente do que era no início da leitura, é o que a peça didática A exceção e

a regra suscita: reflexão e discussão a respeito de temas universais, presentes ainda hoje

no nosso cotidiano. O leitor, diante de todas essas questões, tende a perceber que

acontecimentos comuns não podem ser vistos como normais, que o ser humano ainda tem

valor e que a honestidade deve ser a regra, não a exceção.

Referências

BORNHEIM, G. A. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BRECHT, B. A exceção e a regra. Tradução de Geir Campos. In: BRECHT, B. Teatro

completo, v. 4. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 128-160.

CAMATI, A. S. Vozes narrativas no espaço cênico: o pós-dramático em (A)tentados de

Martin Crimp. Artefilosofia. n. 7, Ouro Preto, out. 2009, p. 158-166.

DESGRANGES, F. Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec,

2006.

______. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo:

Hucitec: 2012.

ISER, W. O ato da leitura, vol. 1. 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:

1996a.

______. O ato da leitura, vol. 2. 34. ed. Tradução de Johannes Kretschmer. São Paulo:

1996b.

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SUMÁRIO

ÁGUA, FOGO, TERRA E VENTO: A CONSTRUÇÃO E

(RE)CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS NA BUSCA PELO SOL

Aline Camara Zampieri (UFMS)1

Resumo: Com base nas contribuições de Magaldi (1988), Pallottini (1989), Prado (1968), Moisés (1997) e

Ryngaert (1996), acerca do modo de estruturação do texto teatral; nos critérios propostos por Ubersfeld

(2005) e Pallotini (1989) no que tange à construção do personagem no gênero dramático, bem como os

pressupostos relacionados à estruturação simbólica de Chevalier e Gueerbrant (1998), este trabalho se

concentra na análise do processo de construção e transformação das personagens em cada etapa do caminho

pela busca do sol na peça infanto-juvenil A menina que buscava o sol, de Maria Helena Kuhner (1975). A

obra narra o caminhar da menina Putz a procura do sol, retratando o ritual de passagem da protagonista e de seu companheiro de viagem, que ora apresenta-se como coelho, ora como cavalo, ora como pássaro;

conforme vão avançando os quatro ciclos (vento, fogo, água e terra) da caminhada.

Palavras-chave: Teatro brasileiro contemporâneo; personagem; ritual de passagem; simbologia.

Introdução

Antes de iniciarmos a análise das personagens na obra A menina que buscava o

sol, de Maria Helena Kuhner (1975), é necessário conceituar brevemente o que é teatro,

bem com a importância do texto teatral.

Sábato Magaldi (1998) abre o primeiro capítulo de Iniciação ao Teatro

pontuando dois significados para a palavra teatro. O primeiro é o imóvel, o edifício onde

se realizam os espetáculos, munido de palco, artista e platéia. O segundo diz respeito ao

fenômeno/espetáculo que se processa a partir da tríade: ator, texto e público. Assim, “o

teatro existe quando o público vê e ouve o ator representar um texto” (MAGALDI, 1998,

p. 8).

É, também nesse sentido, que Massaud Moisés (1997) define o teatro como a

arte da representação que “realiza-se quando atores, encarnando personagens, simulam

viver, sobre um palco e perante um auditório, o conflito de suas existências” (MOISÉS,

1997, p. 260). Daí a importância dos elementos ator, que irá representar ações presentes

em um texto para uma platéia.

1 Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação e Mestrado em Estudos de

Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande. E-mail:

[email protected].

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Feitas as devidas e breves considerações sobre o fenômeno teatral, vamos nos

deter agora ao aspecto dramático. Magaldi (1998) ressalta o prestígio desse na análise do

fenômeno teatral e, retomando Baty (1949), afirma que o texto é a parte essencial do

drama. O teórico francês compara o texto teatral a um caroço; afinal “[...] do mesmo modo

que, saboreando o fruto, o caroço fica para assegurar o crescimento de outros frutos

semelhantes, o texto, quando desaparecem os prestígios da representação, espera numa

biblioteca ressuscitá-las algum dia.” (BATY, 1949, p. 218 apud MAGALDI, 1998, p. 15).

Nessa perspectiva, entendemos o texto como esqueleto do fenômeno teatral que

é constituído por didascálias e sustentado por diálogos, nos quais desenrolam o

enredo/ação concentrados num tempo e num espaço. Além disso, é, por meio dos diálogos

transmitidos pelos atores, que concebemos a criação/caracterização das personagens.

Na esteira de Magaldi (1989), importa salientar que etimologicamente drama

significa ação, ou seja, as peças são construídas a partir de uma ação central e microações

em rede. Ocorre, todavia, que estas ações não são referentes a qualquer espécie de ato

realizado pela personagem em cena. A ação em teatro requer uma vontade humana (ou

que metaforiza tal vontade) de realizá-la, sendo essencial que a atitude tomada tenha um

objetivo consciente como consequência do ato, agregando na ação a dramaticidade

necessária para que esta seja considerada uma ação dramática. Segundo Renata Pallottini

(1998, p 09), a “ação dramática é a ação de quem, no drama, vai à busca de seus objetivos,

consciente do que quer. É a ação de quem quer e faz”.

No texto de Kuhner (1975), a ação dramática está centrada na busca da

protagonista, Putz pelo Sol. E, para alcançar seu objetivo ela atravessa quatro etapas –

marcadas pelos elementos água, fogo, terra e vento – nas quais ela estabelece conflitos

com várias personagens que ora a impedirão, ora a ajudarão a avançar sua caminhada.

Assim, centraremos nossa análise na construção das personagens que permearão a ação.

Neste sentido, importa salientar, também, algumas diferenças entre as

personagens de um romance (texto narrativo) e as personagens do teatro (texto

dramático). Décio de Almeida Prado (1968) ressalta que no romance a personagem é um

elemento entre vários outros ao passo que no teatro as personagens constituem

praticamente a totalidade da obra, pois “nada existe a não ser através delas” (PRADO,

1968, p. 84).

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Para Prado, tanto o romance quanto o teatro falam do homem, porém o teatro se

faz por meio do próprio homem, na presença viva e carnal do ator. Daí a importância da

ação a qual acontece por intermédio da representação do ator da personagem. Para uma

melhor compreensão das personagens, dividiu-se este trabalho conforme a autora Maria

Helena Kuhner (1975) divide as ações do seu texto; dada a importância da ação na

construção dessas.

Destaque-se, contudo, que trabalharemos com um texto dramático, portanto

analisaremos as personagens por meio dos diálogos e das indicações marcadas pela autora

por meio das didascálias. Demais expressões corporais, faciais, entonação de voz,

cenário, entre outros acessórios não caberão nesta analise.

1. As quatro etapas do caminho

Maria Helena de Oliveira Kühner nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em

1933. É pesquisadora teatral e dramaturga. Destacou-se com obras infanto-juvenis, dentre

elas Os dentes do tigre; As aventuras do diabo malandro e Anchieta, vencedoras de

prêmios e concursos na década de 1970.

A obra A menina que buscava o sol ou Putz: a menina que buscava o sol, de

1975, conta a história de Putz, menina, que por não querer ter sua cor imposta – ser azul

como a mãe, ou vermelha como o pai, ou amarela como o irmão – decide seguir uma

difícil viagem em busca do Sol, pois acredita que é nele que se encontra todas as cores;

e, assim, ela pode escolher as quais quiser.

Para enfrentar esta viagem, que atravessa os reinos da terra, do ar, do fogo e das

águas, com seus estranhos habitantes e suas escolhas de vida, Putz tem ajuda de um

companheiro que é primeiro o Coelho, depois o Cavalo, depois o Pássaro; “pois quando

a gente cresce se transforma” (KUHNER, 1975, p. 21). Destaque-se que a peça já foi

encenada em vários estados brasileiros e em países como Argentina, México, Israel e

Portugal.

O texto inicia com uma extensa rubrica da autora, descrevendo como as

personagens devem entrar em cena. Para Anne Ubersfeld (2005), as rubricas (didascálias)

representam um importante elemento da dramaturgia, especialmente no teatro

contemporâneo. O lugar textual das didascálias nunca é nulo, pois elas abrangem os

nomes das personas, inclusive no interior do diálogo, além de comporem também o

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contexto espacial, destacando o lugar no qual a cena acontece. Há, nas peças de teatro,

duas camadas textuais distintas. Uma relativa ao autor, que fala por meio das didascálias,

as quais fornecem indicações e suporte para o leitor ou encenador. E outra que refere-se

ao conjunto dos diálogos que atribui como mediador, uma personagem. Nesse segmento,

a primeira personagem que surge na cena diegética é a protagonista Putz, que segundo

Kuhner, na apresentação dos seus personagens, “não pode deixar de ser viva, inquieta, e

disposta – mesmo quando triste.” (KUHNER, 1975, p. 3).

Logo na primeira cena, Putz se apresenta de maneira viva, observadora e agitada.

Mesmo em silêncio, com uma boneca no colo, olha tudo com “Cara de curiosa de quem

observa e busca e descobre e se alegra ou se intriga ou se espanta”. (KUHNER, 1975, p.

3).

Nesse viés, a menina age conforme um dos sentidos do seu nome, o qual diz

respeito a uma expressão inscrita na gíria brasileira popularmente utilizada como

interjeição, cujo significado recai em espanto ou susto.

Na dinâmica das cenas que se sucedem, outras personagens se materializam na

diegése. Na sequência, surgindo do meio da plateia, os ETC percebem Putz no palco e

questionam acerca de sua identidade: “Olha lá, olha lá, olha lá! / Que é aquilo? / Uma

menina...?” (KUHNER, 1975, p. 4).

Segundo o dicionário Aurélio (1999), “etc” é abreviação de et cetera, palavra de

origem latina que significa “e as demais coisas”, podendo ser usado também para pessoas.

Na peça, os ECT são figuras não humanas, afobados e confusos, sem uma quantidade

delimitada, os quais não gostam de gente. Embora curiosos sobre a identidade da

protagonista, eles estabelecem um curto diálogo com Putz, no qual ela já revela seu

objetivo na peça, e se despedem rapidamente, pois estão atrasados para o trabalho.

Neste momento, aparece um coelho branco, que já sabe que Putz busca o Sol e

propõe-se a ajudá-la.

PUTZ – Eu sou a Putz...

COELHO – Hum... E quer buscar o Sol. Já sei.

PUTZ – Sabe...?

COELHO – Claro.

PUTZ – Como é que você sabe?

COELHO – Eu sei das coisas. Por exemplo: também sei que vai querer que eu

lhe ensine o caminho (KUHNER, 1975, p. 6).

Como podemos verificar nas falas acima, o coelho é esperto, brincalhão e

intrometido. Aos poucos vai se apresentando como bom amigo e conselheiro, sempre

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desafiando a protagonista, como faz o Coelho com Alice, na obra Alice no país das

maravilhas de Lewis Carroll.

O Coelho, de A menina que buscava o sol, faz alguns testes com Putz e, quando

constata que ela é realmente decidida, teimosa e persistente adentram na Terra dos

Ventos. “PUTZ – Eu não vou desistir. / COELHO – Bom, pelo menos passou pela

primeira prova. Acho que vai saber buscar. (KUHNER, 1975, p. 9).

1.1. No proscênio textual: A Terra dos Ventos

Adentrando na Terra dos Ventos, Putz e o Coelho encontram com o menino

vento. Menino levado e brincalhão que se apresenta com um pequeno ventilador que junta

com o seu sopro e faz “um vento daqueles”. (KUHNER, 1975, p. 10).

Ocorre, todavia, que a Terra dos Ventos não é habitada só pelo menino vento.

Nela moram figuras que parecem estátuas, figuras robotizadas e medrosas que trabalham

para o Chefe. E como, no sentido do dicionário Aurélio (1999, p. 830), designam pessoas

imóveis, paradas, incapazes de tomar decisão ou arbítrio. Enfatize-se que essas

personagens, assim como o sentido do seu nome, representam as pessoas que aceitam seu

destino, que não fazem esforço para mudar, para cruzar uma nova etapa do caminho.

A Terra dos Ventos é um lugar frio e escuro, onde não se pode brincar, pois,

segundo o Chefe “Perder tempo brincando é um crime [...] Atrapalha o trabalho, diminui

a produção, vira tudo uma desordem” (KUHNER, 1975, p. 13).

O Chefe, personagem autoritária e ardilosa, procura de diferentes maneiras

convencer Putz de que ele é Sol. Entretanto, como essa não acredita, ele tenta prendê-la

a fim de transformá-la em estátua e obrigá-la a trabalhar para ele. Porém, a menina escapa

com ajuda do pequeno Vento Sul.

É importante ressaltar que o Coelho desaparece no momento que o Chefe entra

em cena. E, assim que Putz foge, ele reaparece, porém transformado, agora, em cavalo.

Segundo o Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1999), lebres

e coelhos são considerados lunares porque sabem, assim como a lua, aparecer e

desaparecer com o silêncio e a eficácia das sobras. Acrescentam, ainda, que entre os

negros da África e da América, e também em algumas culturas indígenas, o coelho é

considerado um animal herói e mártir, associando-se, assim, ao cordeiro cristão, doce e

inofensivo e que segundo Radin “está pronto a sacrificar seu caráter infantil a uma

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evolução futura”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 541). Nesse sentido, o

Coelho de Kuhner também desaparece e reaparece em outra forma, pois “quando a gente

cresce se transforma”. (KUHNER, 1975, p. 14). Enfatize-se, que não somente o Coelho

cresce, mas também a personagem Putz.

1.2. A Terra do fogo

Adentrando na Terra do Fogo, Putz e seu companheiro de viagem encontram três

árvores enormes. A primeira é invejosa e resmungona. A segunda é simpática e afetuosa.

A terceira romântica e indisciplinada. Criaturas que pararam na Terra do fogo e foram

criando raízes, virando árvores, já que “É bom ter raízes crescendo na terra, e ser

agasalhada e aquecida por ela; sentir a chuva entrando na pele, devagar, até a raiz mais

funda; ver que sua sombra dá abrigo a quem passa na estrada...”. (KUHNER, 1975, p.

19).

Além das árvores, essa etapa do caminho também é habitada por um Grilo, que

no próprio sentido do dicionário diz-se de “indivíduo maçante, amolante e chato”.

(FERREIRA, 1999, p. 1010). O Grilo é uma espécie de guarda de trânsito “verde-

olivamente empertigado” (KUHNER, 1975, p. 19), que surge como uma crítica ao

sistema que nos impõe impostos absurdos, no caso do texto de Kuhner (1975), o

pagamento de impostos para andar: “Lei é lei: quem anda tem que pagar. Andar tem

preço. Ninguém anda sem pagar pelo que andou.” (KUHNER, 1975, p. 19).

Putz, que não tem dinheiro e também não quer ficar parada e criar raízes, recebe

novamente ajuda, desta vez das árvores, para fugir do Grilo e de sua multa e cruzar mais

uma etapa em busca do Sol. Assim que a menina escapa do Grilo, reaparece seu

companheiro transformado agora em pássaro.

Cabem, então, algumas considerações sobre o Pássaro e o Cavalo. De acordo

com Chevalier e Gheerbrant (1999), o cavalo é filho da noite e do mistério, portador da

vida e da morte ao mesmo tempo e ligado tanto ao elemento fogo quanto ao elemento

água. E assim, também o Cavalo de A menina que buscava o sol, está presente na

passagem da Terra do Fogo para a Terra da Água. Além de sua função de guia e de

intercessor, no texto de Kuhner (1975) na condução de Putz até o Sol, o cavalo da mesma

forma que “a noite conduz ao dia, e acontece que o cavalo, ao passar por esse processo,

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abandona suas sombrias origens para elevar-se até os céus em plena luz.” (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1999, p. 203).

Percebemos, pelas palavras de Chevalier e Gheerbrant (1999), que não é sem

sentido que na peça de Kuhner (1975), o Cavalo se transforma em Pássaro, figura que

alça vôo ao céu e, por isso, está mais próxima de Deus. Sendo, segundo os pesquisadores

“sinônimo de presságio e mensageiro do céu” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p.

687). Afinal, agora, Putz está mais perto do Sol.

1.3. A Travessia: Água e Terra

Para cruzar as próximas etapas do caminho, Putz tem que atravessar o rio e subir

a montanha. É um percurso cansativo que ela terá que fazer sozinha tendo em vista que

seu companheiro transformou-se em pássaro. “Por isso virei pássaro: do alto é mais fácil

que no chão” (KUHNER, 1975, p. 22).

Sozinha, a menina atravessa o rio e chegando ao alto da montanha ouve a voz de

um Vaga-Lume e, em seguida depara-se com muitos deles. Os Vaga-lumes de A menina

que buscava o sol são personagens sabichonas e autoconfiantes, que acreditam que cada

um tem o sol dentro de si; crendo serem os próprios sois.

1º VAGA-LUME – Cada um que chega busca o seu. Constrói um lugar para

ele. E fica com ele guardado consigo.

– Mas iluminando também a sua volta.

PUTZ – É bom, trazer sua luz consigo...

– E em torno de nós há sempre luz.

– E quando nos juntamos, a luz cresce...

– Como se fosse a de um enorme Sol,

– Quer ver? (KUHNER, 1975, p. 24).

Os insetos vão juntando-se e a luz vai aumentando, contudo inicia-se uma

confusão entre eles, pois cada um quer ficar em mais destaque que o outro. O ocorrido

desanima a menina (que já não é mais tão criança, pois está crescendo) e a faz refletir e

perceber que este não é o Sol que ela almeja. Agora, aconselhada pelo 1º Vaga-Lume

segue adiante, em busca do verdadeiro Sol. Dessa vez, é o pirilampo que desempenha o

papel de conselheiro de viagem, pois “dá a luz”, ilumina, indica o caminho para que Putz

conclua mais uma etapa.

Segundo Chevalier e Gheerbrant (1999), na China, o inseto é tradicionalmente o

companheiro dos estudantes pobres, aos quais fornece luz para seus trabalhos noturnos.

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De certa forma, o 1º Vaga-Lume cumpre seu papel no texto de Kuhner (1975) ao auxiliá-

la na sua busca pelo Sol.

Assim, Putz segue seu caminho, sozinha, com medo, com frio e questionando-

se “Agora entendo porque aquelas estátuas têm medo... e as árvores desistem das flores...

e os da montanha chegam a pensar que sua luz pequena é o Sol... Era melhor ficar lá com

eles... Pelo menos andavam... e tinham um pouco de luz...” (KUHNER, 1975, p. 25). E

quando quase desfalece reencontra seu companheiro de viagem, o Pássaro, agora em

forma humana e Putz é, agora, uma mulher. Os dois se reconhecem e:

Da alegria e do encontro, surge, espontânea a brincadeira – pega-pega,

currupio e dança e riso e fala e canto e tudo. E, à medida que começam a brincar, outros mais vão surgindo, rotos igualmente livres. A cada um que

surge, recebido com alegria, uma nova cor se acrescenta a luz, que irá pouco a

pouco tornando a cena um enorme arco-íris (KUHNER, 1975, p. 26).

A presença do Sol surge, na peça, a partir de um efeito cênico de uma luz forte

representada pelo arco-íris. Mas, não é só o Sol que as personagens alcançam. É um ritual

de passagem, a viagem, a maturação. A transformação da menina em mulher. O

aprendizado, a passagem por vários obstáculos de um árduo caminho.

2. Do outro lado da montanha

Em O dorso do tigre, Benedito Nunes (1969), afirma que a viagem ou “travessia

das coisas” (NUNES, 1969, p. 179) é a vivência e descoberta do mundo de nós. Chevalier

e Gheerbrant (1999) também enfatizam, entre outros aspectos, que o simbolismo da

viagem “Em todas as literaturas, a viagem simboliza; portanto, uma aventura e uma

procura, quer se trate de um simples conhecimento, concreto ou espiritual (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1999, p. 952).

Do interior para o exterior, ou do exterior para o interior, Putz, de fato, alcança

amadurecimento interior conforme cruza cada etapa do caminho. Esse processo é

representado, na peça, não apenas pelo crescimento da menina, mas, e com maior ênfase

pelos sentimentos e atitudes que a personagem vai adquirindo ao longo de sua caminhada,

como refletir sobre o destino das personagens que cruzam seu caminho, até encontrar o

Sol.

Sol, que ainda de acordo com Chevalier e Gheerbrant (1999) é, para muitos

povos, o próprio Deus, além de símbolo, entre os Chineses, de ressurreição e

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imortalidade. Contudo, não é deus, ou a imortalidade que busca Putz. Ela, simplesmente,

não quer ser igual aos outros personagens que ela “vê” e convive, ela quer ter a essência

de cada cor, como num arco-íris. Nesse sentido, o Sol da personagem é o décimo nono

arcano maior do Tarô, pois “exprime a felicidade daquele que sabe estar em harmonia

com a natureza.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 840).

Nelly Novaes Coelho (1985), em Panorama Histórico da Literatura

Infantil/Juvenil assevera que em meados da década de 1970 houve uma explosão de

criatividade tanto na Literatura Intantil/Juvenil quanto no Teatro Infantil. Destacaram-se

nomes como Ana Maria Machado, Ziraldo e Marina Colassanti. Entre tantos outros que,

como Maria Helena Kuhner, obedecem a nova palavra de ordem: experimentalismo com

a linguagem, com a estruturação narrativa e com o visualismo do texto. Substituindo uma

literatura até então segura e confiante por uma literatura inquieta e transformadora “que

põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela

vive; questionando também os valores sobre os quais nossa sociedade está inserida”

(COELHO, 1985, p. 214).

Nesse sentido, as personagens ETC, Estátuas, Árvores e Vaga-lumes, bem como

o Chefe e o Grilo que surgem no texto de Kuhner (1975) como metáforas de atitudes e de

determinados valores impostos pela sociedade que vão de encontro com as teorias de

Anne Ubersfeld e Renatta Pallottinni.

Em Para ler o Teatro, Anne Ubersfel (2005) defende que a personagem pode

estar ligada a um discurso, funcionando como “metonímia ou sinédoque (figura que

representa a parte pelo todo) de um conjunto paradigmático, ou mesmo, como metonímia

de uma ou várias outras personagens” (UBERSFELD, 2005, p. 76).

Nesse viés, as personagens o Chefe e o Grilo – já analisadas anteriormente –, as

quais Putz encontra respectivamente na Terra dos Ventos e na Terra do Fogo, representam

o papel de “autoridade”, numa relação de imposição de poder. Afinal, o Chefe exige que

a menina trabalhe para ele, estampando um claro vinculo de exploração do mais forte para

o mais fraco. Ao passo que o Grilo requer receber o seu imposto, também, numa visível

analogia de exploração. Relações estas, impostas tanto pelo Estado, que cobra impostos

absurdos, quanto pelas vinculações trabalhistas, devidas ao sistema capitalistas, que

transforma seus dependentes em “estátuas” que não tem vontade própria; sendo apenas

robôs do sistema.

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Renata Pallottini (1989) em “A caracterização do personagem” destaca que tais

personagens que a autora denomina de arquetípicos, ou seja, porta-vozes de uma ideia,

geralmente não têm nomes próprios, sendo símbolos ou sumos de uma condição,

profissão e/ou status. “Movem-se como bonecos, às vezes, têm gestos marcados, caras

nítidas, falas irreais. São, obviamente, não-realistas. E rompendo a lógica no diálogo, são,

também, ilógicos”. (PALLOTTINI, 1989, p. 69).

Nesse viés o texto de Kuhner (1975) traz vários personagens arquetípicos como

os ETC que estão atrasados para o trabalho, como as Estátuas que se movem lentamente.

E, até mesmo das Árvores e dos Vaga-Lumes que quer seja por comodidade, quer se seja

por excesso de vaidade, param no meio do caminho e desistem de buscar o Sol,

renunciando mudar seus destinos.

Considerações Finais

Após análise das personagens de A menina que buscava o sol, pode-se considerar

que o texto de Maria Helena Kuner (1975) censura três características humanas: ”o

medo”, “a comodidade” e “a vaidade”. Defeitos ou sentimentos que pretendem impedir

não só a personagem Putz de chegar ao Sol; mas que surgem como metáforas de vícios

ou deficiências que obstruem a evolução.

Além disso, pode-se observar uma crítica, ainda que sutil, ao sistema capitalista,

ao Estado com seus impostos e leis absurdas e a nítida exploração do mais forte ao mais

fraco. Mas, que apesar disso, sempre há “amigos” – sejam eles coelhos, cavalos, árvores

ou vaga-lumes – que nos ajudam a encontrar o Sol; ou seja, evoluir, amadurecer, alcançar

nossos objetivos.

Assim, nas palavras de Ubersfel (2005) não há leitura nem encenação inocente.

Mesmo num texto infantil, no caso do de Kuhner (1975), aparentemente ingênuo, pede-

se refletir, questionar e enumerar várias possibilidades interpretativas.

Referências Bibliográficas

CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Tradução Isabel de Lorenzo e Nelson

Ascher. São Paulo: Objetivo, 2000.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da

língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da Literatura Infantil/Juvenil – Das

origens Indoeuropéias ao Brasil Contemporâneo. São Paulo: Quíron, 1985.

KUHNER. Maria Helena. A menina que buscava o sol: teatro. Série infanto-juvenil.

Rio de Janeiro: Cátedra, 1975. Disponível em <http://www.cepetin.com.br>. Acesso em

04 set 2013.

KUHNER, Maria Helena. Maria Helena Kuhner: Pequeno memorial descritivo de

sua formação e carreira. [S.l.: s.n.], 2003. Disponível em:

<http://www.kuhner.com.br/mariahelena/>. Acesso em 19 set 2013.

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao Teatro. São Paulo: Ática, 1998.

MOISES, Massaud. A Criação Literária: Prosa. São Paulo: Cultrix, 1997.

NUNES, Benedito. O Dorso do Tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.

PRADO, Décio de Almeida. A Personagem no Teatro. In. CANDIDO, Antonio (Org.).

A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 1968.

PALLOTINI, Renata. Dramaturgia – a construção da personagem. Editora Ática. São

Paulo, 1989.

UBERSFELD, Anne. Para Ler o teatro. Trad. José Simões. São Paulo: Perspectiva,

2005.

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SUMÁRIO

CIDADES E ROMANCE: APROPRIAÇÕES NO PROCESSO CRIATIVO DE

“DAS SABOROSAS AVENTURAS DE DOM QUIXOTE” DO GRUPO TEATRO

QUE RODA

Lúcia Helena Martins (UNESPAR-FAP-PR)1

Resumo: Das Saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança – um

capítulo que poderia ter sido do grupo Teatro que Roda é um espetáculo em que o grupo, inspirado na silhueta

das cidades, reelabora alguns episódios do texto de Cervantes, a fim de criar uma poesia urbana sobre o sonho,

a loucura e o próprio sentido da cidade. O tema é o mesmo que o do romance de Miguel de Cervantes, porém

ele é recontextualizado em centros urbanos contemporâneos. Vários elementos do romance são transpostos

para a contemporaneidade. Este espetáculo “desorganiza” o fluxo da rua, interferindo na estrutura da lógica

das cidades pelas quais passa, embaralhando as polaridades arte e vida. Como estas manifestações invadem um

espaço que já está em movimento, elas jogam o tempo todo com o imprevisível, fazendo com que suas dramaturgias nasçam do e no espaço e tempo presente do acontecimento artístico. À luz dos conceitos de

estética relacional de Nicolas Bourriaud, dramaturgia do espaço de André Carreira e Evill Rebouças, este artigo

pretende discutir sobre o processo de criação do espetáculo, ou seja das apropriações tanto da silhueta urbana

com seus fluxos, quanto do romance de Cervantes no espetáculo analisado.

Palavras-chave: dramaturgia do espaço; processo de criação; apropriações; Teatro que Roda.

Introdução

De acordo com Claus Cluver, todas as artes e mídias, consideradas sistemas de

signos, podem ser pensadas como textos passíveis de serem lidos, “uma dança, um soneto,

uma catedral, um filme e uma ópera são todos ‘textos’ passíveis de serem lidos” (CLUVER,

2001, p. 338). Para André Carreira, “a cidade é dramaturgia, porque é produtora de sentidos,

e sempre interfere no espetáculo condicionando o seu funcionamento e estabelecendo

condições de recepção” (CARREIRA, 2009, p. 4).

Partindo destes conceitos, veremos no presente artigo, como se dá a construção da

dramaturgia no espetáculo Das saborosas aventuras de Dom Quixote de la Mancha e seu

fiel escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter sido do Grupo Teatro que Roda,

ou seja, como os textos-cidades dialogam com a fabula de Dom Quixote conforme os lugares

por quais o grupo passa.

1 Professora colaboradora de Licenciatura em Teatro, na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR-FAP-

PR). [email protected]

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Das Saborosas2 foi levado a diversas cidades do Brasil. Em cada uma destas cidades

a dramaturgia se modifica sutil ou bruscamente devido às especificidades dos locais. Ao

falar sobre a dramaturgia do espaço urbano e o teatro de invasão, André Carreira assevera

que o teatro de rua ocupa o espaço urbano e ressignifica o sentido da rua. Enquanto o

crescimento das cidades se dá pelo reforço das contradições sociais, o establishment tenta

manter uma ordem, deixando certos espaços “limpos, organizados e preservados”, para,

através deste mecanismo, apagar suas contradições e articular “aquilo que podemos

considerar como projetos de simulacros” (CARREIRA, 2005, p. 27), o teatro de invasão

busca revelar estas contradições através dos seus procedimentos. Os não-lugares3

representam a auto-imagem do sistema capitalista, e a cidade é submetida a ampliar cada vez

mais estes espaços de consumos (shoppings, lojas, condomínios fechados), em detrimento

de lugares relacionais. E é a estas questões que o fenômeno teatral “de invasão” aspira resistir

através de sua natureza vivencial, presencial e artesanal. Carreira acredita que na

dramaturgia do espaço, ao tomar a cidade como texto, o teatro invasor rompe com a lógica

da rua e os atores - invasores desorganizam seu fluxo construindo Lugares, “pois sugere aos

cidadãos redefinir sua relação com os espaços da cidade implicando uma leitura da silhueta

urbana como um pré-texto no qual devem ser percebidas as contradições” (CARREIRA,

2005, p. 28). O espetáculo Das Saborosas, além da apropriação de elementos do romance

Dom Quixote de Miguel de Cervantes, toma como texto a cidade:

[...] a idéia de repertório de usos do espaço urbano poderia interferir na construção

na nossa percepção de dramaturgia. Nesta dramaturgia interfeririam as linhas dos

edifícios, as tensões dos usuários, o trânsito das pessoas e dos veículos e o controle

social do lugar público. As regras da cidade funcionam como material

dramatúrgico na medida que constituem um texto que pode ser tomado como pré-texto para a construção da cena. (CARREIRA, 2005, p. 30).

Apropriações: cidade-romance-processo

Segundo o Grupo Teatro que Roda, a partir de uma oficina sobre o teatro de invasão,

e o pensamento/observação da cidade onde fica a sede do grupo, Goiânia, uma das atrizes

2 A partir daqui, me referirei ao espetáculo Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel

escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia ter sido apenas pelo início do título, por fins práticos. 3 Não-lugar: termo utilizado por Marc Augé e citado por Carreira que significa “espaços que não conformam

identidades senão que se oferecem como simulacros do paraíso capitalista, por isso, não definem pertinências

e apenas implicam em compromissos com o próprio consumo. O não-lugar representa um lugar que não é mais

que uma zona de consumo que opera sem construir nenhuma idéia de território ou de identidade” (CARREIRA,

2005, p. 28).

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viu uma estátua monumento de um bandeirante numa de suas praças, que lhe remeteu o

semblante de Dom Quixote. Esta imagem geradora foi o ponto de partida do espetáculo para

o grupo. André Carreira foi convidado para dirigi-los e, após o aceite, foi iniciado o processo

de concepção do espetáculo. Especulação da cidade, escolha dos locais de realização,

observação dos locais, dos edifícios, ruas e fluxos de seu entorno, dos transeuntes, possíveis

relações com a literatura, leitura de Dom Quixote de Cervantes, treino dos atores. Nestes

espetáculos os atores lidam o tempo todo com o imprevisível, então eles trabalham com

elementos de risco e devem estar prontos e abertos a toda forma de improvisação, mesmo

que haja como base um roteiro cênico. Em relação ao roteiro utilizado nos espetáculos de

dramaturgia do espaço, Carreira

Propõe uma grande proximidade com a escritura do roteiro cinematográfico

porque trabalha com imagens que constituem a matéria básica deste teatro, ou

melhor, desta dramaturgia da cidade. As imagens urbanas funcionam como elementos disparadores que propulsionariam a construção de seqüências de ações

dramáticas [...]. Disso nasceria a matriz para construção espetacular, de tal forma

que o diálogo com estas estruturas constituiria a própria fala do espetáculo.

(CARREIRA, 2005, p. 31)

A fábula de Dom Quixote narra a história de um ingênuo homem de meia-idade que

vive na zona rural e adora ler livros de cavalaria. Até que um dia, decide tornar-se um

cavaleiro andante e sair pelo mundo num velho pangaré batizado Rocinante, com o intuito

de andar pelo mundo desfazendo injustiças, salvando donzelas, principalmente sua amada

Dulcinéia, e combatendo gigantes e dragões. Conhece um lavrador chamado Sancho Pança

que o acompanha pela promessa de ganhar uma ilha como pagamento de seu heroísmo. Dom

Quixote vive sob a alucinação de que está vivendo no universo da cavalaria, vê pás de

moinhos de vento e imagina que são gigantes com braços enormes, além de outros delírios.

Com o desejo de combater as injustiças do mundo e homenagear sua dama, o personagem

enfrenta situações perigosas.

Em Das Saborosas, o grupo reelabora alguns episódios do texto de Cervantes, a fim

de criar uma poesia urbana sobre o sonho, a loucura e o próprio sentido da cidade. O tema é

o mesmo, Dom Quixote quer combater as injustiças do mundo, porém ele é

recontextualizado em centros urbanos contemporâneos. Dom Quixote, agora, é um homem

engravatado remetendo a um homem de negócios, que desce de um prédio alto por uma

corda gritando por Dulcinéia. Abandona seu terno e gravata e se faz cavaleiro com objetos

do lixo. Sancho Pança é um catador de lixo, que passa com seu carrinho e encontra Dom

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Quixote – este encontro parece uma coincidência, deixando dúvidas, a princípio entre os

espectadores, se Sancho era realmente um transeunte ou se fazia parte do espetáculo. E o

cavalo Rocinante, é o próprio carrinho carregado por Sancho. Vários outros elementos do

romance são transpostos para a contemporaneidade, como o dragão que é constituído de uma

colheitadeira, jovens punks são feiticeiros improvisados, estruturas de propaganda

confundidas com gigantes etc.

Como foi dito anteriormente, o teatro invasor busca mostrar as contradições do

mundo capitalista de consumo da contemporaneidade. Em Das Saborosas, por meio da

forma, podemos observar uma subversão da ideia de realidade e imaginação, conteúdo do

romance de Cervantes. Quando o performer/personagem Dom Quixote invade o fluxo

organizado da cidade, luta contra os dragões que representam as injustiças do caminho da

sua “suposta” imaginação, seria a revelação do que está por trás da aparência do mundo

capitalista? Quantas pessoas são exploradas para manter este aparente fluxo limpo, feliz e

organizado? Por meio deste espetáculo, também são lançados vários questionamentos: o que

é ilusão? O que é realidade? Quem é o louco? É Quixote que vive de alucinações num mundo

imaginário? Ou seriam as milhares de pessoas que vivem num mundo de ilusões, sofrendo

para manter o fluxo da “felicidade” do ter, possuir e comprar?

Diferentemente da aspiração moderna e romântica de arte – como Dom Quixote – de

mudar o mundo através da arte, este espetáculo mostra um universo possível – e real, que

pode ser outro (fazendo jus ao título: “um capítulo que poderia ter sido”). Percebe-se que

enquanto Dom Quixote, pouco se relaciona com o público, como que num universo

ficcional, está a lutar num mundo à parte, com os monstros que procura combater; Sancho

Pança – um catador de lixo que está à margem deste universo de empresários, funcionários

públicos etc. – se relaciona com o público real, construindo lugares de relação. Seria Sancho

o próprio lugar relacional que não é o shopping, nem os condomínios fechados, mas a própria

rua. Pública? Sancho ao ser abordado por Quixote, quando este lhe faz a promessa de uma

ilha em troca de sua companhia, diz: “Pois vou embora. Prefiro Sancho sem nenhuma terra,

que a Terra sem nenhum Sancho!” Sancho relaciona-se com as pessoas e fornece indícios a

respeito da realidade, como, por exemplo, quando diz que a panela, que Quixote acredita

ser o elmo de Manbrino, é apenas uma panela. Quixote acredita que é um objeto de valor,

talvez como muitos consumidores que precisam ter o que não precisam porque acreditam

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que aquilo tem valor e é necessário. Mas ao mesmo tempo, Quixote luta o tempo todo com

esta (sua/nossa) realidade.

Além da leitura marxista, a questão de metalinguagem em relação à história e função

da arte também marca presença. Ambos os personagens Quixote e Sancho Pança trazem

consigo o desejo de transformar o mundo num lugar melhor. Enquanto o romântico Dom

Quixote luta para formar uma nova realidade utópica – como aspirava a arte moderna ao

tentar mudar o mundo através de artes ficcionais, Sancho constrói relações na realidade,

sugerindo outras possibilidades de mundos – como aspira a arte contemporânea. Segundo

Bourriaud, a arte contemporânea representa um interstício social: “um espaço de relações

humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema

global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema”

(BOURRIAUD, 2009, p.22).

Paralelamente a essa interpretação metalinguística sobre ficção e realidade, podemos

também observar que a própria forma de dramaturgia do espaço comenta esta questão.

Quando o espetáculo invade a rua, o espectador não sabe o que faz parte do espetáculo (o

que é cena/ficção/representação) e o que é realidade (transeuntes/carros e objetos que estão

ali por acaso), pois tudo o que está ao entorno do acontecimento acaba fazendo parte do

espetáculo e da criação de sentido do mesmo, já que os atores jogam o tempo todo com o

imprevisível e com o que está acontecendo naquele tempo e espaço. O ator, o público, o

roteiro de ações e a cidade como texto ou a cidade como dramaturgia têm a mesma

importância, e o acontecimento, no instante do espetáculo, é composto através do discurso

do que se pode ver e vivenciar em cena. Segundo Rebouças (2009, p. 180), estes discursos

podem ser articulados em situações “a partir da interação de todos os elementos cênicos

explorados em uma representação: cartografia da cena, elementos visuais, sonoros, olfativos

etc.”. O público se mistura com a cena, e a acompanha como se fizesse parte dela, de tal

maneira que há um limite muito tênue para distinguir se é apreciador ou personagem da ação,

neste sentido, os espectadores, assim como os atores, são colocados em situação de risco,

visto que se relacionam, locomovem e atuam de acordo com os acontecimentos do aqui-

agora. Desta forma, todas as manifestações e atitudes do público, no espaço, compõem a

dramaturgia e o sentido da obra, ou seja, tanto os espectadores-transeuntes que estão no fluxo

do texto-cidade quanto atores, preenchem as lacunas/arestas que são inerentes a dramaturgia

do espaço.

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Como essa forma de dramaturgia nasce no e do espaço e tempo presente do

acontecimento teatral, ela depende do público que se encontra no local. O deslocamento, os

comentários, e as relações do espectador com ator, espectador com espectador, espectador

com o espaço urbano e espectador consigo mesmo são a própria dramaturgia.

Via de mão dupla: interferências locais e textuais

Das saborosas foi realizado em vários lugares, desde centros urbanos de grandes

cidades, passando por cidades interioranas, até em uma ilha de pescadores. Devido a esta

característica itinerante, que faz jus ao nome do Grupo Teatro que Roda, em cada espetáculo,

as características arquitetônicas, a atmosfera urbana e a população de transeuntes variam

conforme os lugares por onde passa. Apesar de a concepção da obra ser construída a partir

do espaço urbano, tendo como objetivo o teatro como invasão da cidade, o processo de

criação deu-se a partir da observação e vivência no centro de Goiânia, onde fica a sede do

grupo. Como investigação a priori deste espaço, um roteiro básico de ações foi concebido

junto com a movimentação dos atores no local de origem. Porém, ao transitar em outras

cidades, novas investigações vão sendo feitas à medida em que o grupo se apropria de novos

espaços que apresentam novas historicidades, carga semântica, arquitetura, população de

transeuntes e fluxo, e desta forma, o roteiro de ação também se modifica continuamente.

Como argumenta Rebouças, a arquitetura e a historicidade dos locais da representação

alteram a escrita dramatúrgica e cênica dos espetáculos, ou seja, “ela é ampliada ou ajustada

às características do espaço não convencional” (REBOUÇAS, 2009, 19).

Ao se apropriar de paisagens urbanas ou não urbanas, estes grupos que trabalham a

partir da dramaturgia do espaço não convencional levam em consideração a sua arquitetura,

a sua atmosfera e as pessoas que o circundam, havendo uma projeção de novas possibilidades

para as personagens. “Interferências do campo tátil, olfativo e da própria geografia do espaço

colaboram para a ampliação dos discursos” (REBOUÇAS, 2009, p. 58). Assim, as diferentes

localidades são apropriadas através de um processo minucioso do grupo ao chegar em cada

cidade de apresentação. Primeiramente, o grupo faz uma observação analítica em relação às

possibilidades de adaptação cênica e temática do espetáculo. Em centros urbanos, o grupo

procura uma praça onde exista um prédio alto para que Dom Quixote possa descer de rapel,

perto de uma rua onde possa passar uma colheitadeira com as Dulcineias e o carro de polícia

e, também, procura outras arquiteturas que possam dialogar com a ficção, como

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monumentos, bancos de praça etc. Porém muitas vezes este formato não dialoga com o local

de realização, como no caso de uma ilha de pescadores no Timor Leste, em que o grupo se

apresentou em 2009. Com o intuito de manter o tema do espetáculo de forma a dialogar com

a realidade do local, o grupo percebeu que um homem de terno e gravata seria um estrangeiro

naquele espaço, então decidiu que Dom Quixote entraria em cena dentro de um barquinho,

com figurinos baseados nas roupas costumeiras dos pescadores da ilha, fumando palheiro,

mudaria suas falas em relação ao combate as injustiças do lugar, de forma que dialogasse

com o local e se parecesse um morador da ilha. A maioria das cenas aconteceram na

praia.Desta forma o grupo recriou todo o roteiro de ações de maneira que dialogassem com

aquele universo. Por mais que houvesse uma tentativa de manter o tema, a carga semântica

e o discurso se transformam completamente, porém dialogam de outra forma com a realidade

daquela comunidade.

Como já foi mencionado, essa forma de espetáculo chamada de intervenção urbana

e/ou teatro de invasão, segundo André Carreira, traz um elemento de extrema importância,

a improvisação, pois, apesar de ter um roteiro-base, os atores jogam o tempo todo com a rua

que está em movimento e, desta forma, é imprevisível saber o que e como o público vai se

relacionar, assim como quando passará um carro pela rua etc. Então, os atores podem até

fazer um reconhecimento prévio do local, sua carga energética, semântica, histórica etc...,

mas a poesia no espaço só acontece no aqui-agora, é neste momento que os corpos e o espaço

realmente se manifestam em dramaturgia. Por exemplo, numa das apresentações do grupo

estava acontecendo um comício político, interferência de extrema importância, na qual os

atores têm que jogar o universo ficcional de Dom Quixote com a realidade que acontece no

aqui-agora do local, transformando significativamente o discurso. Então, dependendo dos

locais por onde o grupo passa, a recepção do espetáculo é, em maior escala, alterado. Se,

segundo Rebouças, os temas abordados nos espetáculos acabam ganhando outras

possibilidades de leitura em função da historicidade do espaço, em Das saborosas, podemos

falar em múltiplas possibilidades in continuum.

Considerações finais

Vimos então que, o grupo se apropria das cidades e de tudo o que é inerente aos

locais onde acontece o evento como vetores que irão alterar o roteiro de ação. Desta forma,

sua passagem é constituída dentro de uma realidade existente, havendo a aproximação entre

arte e vida, pois ao invadir a cidade tudo o que se encontra no local é considerado matéria

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para a criação: a cidade é dramaturgia porque estabelece condições de produção de sentido

em cena. Perecebe-se então que a arte é criada a partir da sociabilidade e das interações

propostas pela cidade, que podemos falar por analogia que, são as arestas do texto aberto da

cidade. Ao tomar a cidade como texto, esse teatro invasor rompe com a lógica da rua e os

atores desorganizam seu fluxo construindo lugares relacionais e revelando contradições na

ordem do establishment. Essas questões podem ser vistas como metáfora do tema ficção e

realidade no texto de Cervantes, como crítica as contradições que permeiam o sistema

capitalista de consumo. E refletindo sobre processos de apropriações, romance e cidade,

poderíamos de certa forma, dizer que o processo de apropriação dos textos da cidade e do

romance é uma via de mão dupla, pois tanto o romance é referência para construção do

espetáculo, quanto os textos cidades são referências a dialogar com o romance.

Referências

BOURRIAUD, N. Estética Relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes,

2009.

CARREIRA, A. Dramaturgia do espaço urbano e o teatro de invasão. Reflexões sobre a

cena. (Orgs) S. Diab Maluf e R. Bigi de Aquino. Maceió: EDUFAL, Salvador: EDUFBA,

2005.

CLÜVER, C. Estudos interartes: introdução crítica. In: BUESCU, H. C.; FERREIRA, J. D;

GUSMÃO, M. (orgs.). Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada.

Lisboa: Dom Quixote, 2001, p. 333-362.

COHEN, R. Performance como Linguagem. 2 ed. – São Paulo: Perspectiva, 2004.

GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.

PAVIS, P. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo,

Perpectiva, 2005.

REBOUÇAS, E. A dramaturgia e a encenação no espaço não-convencional. São Paulo:

Ed. UNESP, 2009.

GRUPO TEATRO QUE RODA, Vídeo do espetáculo Das saborosas aventuras de Dom

Quixote de la mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança – um capítulo que poderia ter

sido. Grupo Teatro que Roda.

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SUMÁRIO

DENISE STOKLOS – O DRAMATURGO PENSADOR E A MÍMESIS DA

PRODUÇÃO1

Pedro Leites Junior (UNIOESTE)2

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)3

RESUMO: Tendo em vista as profundas transformações do gênero dramático no século XX e a crescente

necessidade e/ou preocupação de estudiosos e artistas de se pensar o teatro a partir de “novas” propostas

estéticas, que dialoguem com os anseios do sujeito inserido no contexto moderno, tecnocrático e de

determinantes socioculturais de base capitalista, este trabalho objetiva discutir o “teatro essencial” idealizado

e posto em prática por Denise Stoklos tomando por enfoque o papel da artista enquanto dramaturga e pensadora

da arte/teatro, assim como a relação que se pode verificar entre sua obra e aquilo que Luiz Costa Lima (2000,

p. 286, 2003, p. 179) denomina mímesis da produção.

PALAVRAS-CHAVE: Mímesis; Dramaturgia; Teatro essencial.

Introdução

Ao tratar do papel do dramaturgo enquanto pensador e buscar compreender como se

dá a dialética proposta por Lima (2000, p. 286, 2003, p. 179) entre uma mímesis da

representação e uma mímesis da produção – conforme sistematizaremos adiante – e tendo

em vista o projeto estético de Denise Stoklos de um “teatro essencial”, é oportuno partimos

das palavras de Eric Bentley (2001) quando este versa sobre a questão do lugar e propósito

do drama no cenário moderno, movido pelos imperativos do capital e carente de sujeitos que

pensam o mundo.

‘Uma peça’, como disse Oscar Wilde, ‘é uma forma pessoal e individual de

expressão, tanto quanto um poema ou um quadro’. Donde se conclui que um

dramaturgo precisa possuir algo dentro de si para expressar. Nossos escritores

comerciais são vazios. Podemos afirmar que dificilmente poderiam ser

considerados alguém. O dramaturgo imaginativo é alguém (BENTLEY, 2001, p.

41-42, grifos do autor).

1 O presente texto apresenta parte dos resultados da pesquisa de Mestrado do autor, desenvolvida sob orientação

da profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves. Uma versão mais extensa do estudo foi divulgada recentemente na

revista Todas as Letras, v. 15, n. 2, 2013. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras (área de concentração em Linguagem e Sociedade) e

Professor Assistente do curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) – Cascavel

– PR – Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

Filho” (UNESP) e professora Associada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) –

Cascavel – PR – Brasil. E-mail: [email protected].

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Bentley4 parece partir de uma premissa básica: o teatro comercial e o teatro enquanto

expressão de arte são manifestações simbólicas e culturais distintas, ou melhor, com

características estéticas e propósitos sociais díspares, ainda que ambos devam ou possam ser

igualmente compreendidos enquanto pertencentes a uma mesma linguagem –

teatral/dramatúrgica – e que suas fronteiras não sejam estanques ou exclusivas.

Todavia, tem-se que, como sujeito que pensa o mundo, propõe a arte e a partir dela

atinge e dialoga com o público – visto como outro sujeito que pensa – o dramaturgo no papel

de pensador – ao mesmo tempo artista e intelectual, no sentido amplo do termo – opõe-se ao

dramaturgo como produtor do entretenimento, que tem uma função social, dir-se-ia, mais

técnica, pragmática, de promover no público o deleite, o prazer, efêmero e esvaziado de

caráter reflexivo.

Stoklos como dramaturgo-pensador

Por sua razão de ser, a obra de entretenimento se completa em si, ao fechar do pano,

ao passo que a expressão da arte reverbera-se no indivíduo, modifica-o e instiga-o à

construção de sentidos sobre o mundo; enfim, a um dramaturgo que é alguém está arrolado

um público que é ou caminha para ser alguém. Poder-se-ia dizer que este é mesmo o mote

para a proposição de Denise Stoklos de um teatro essencial, baseado na necessidade/angústia

do sujeito/dramaturgo/pensador, enquanto alguém, expressar ou trocar com um outro alguém

– posto no lugar de público/platéia/leitor – determinado conteúdo estético-simbólico que

promova a reflexão, a autorreflexão.

Nessa linha de proposição, Stoklos (2001) buscará no conceito grego de catarse –

segundo seu sentido mais profundo de purificação do espírito – o contraste entre um teatro

significativo para o indivíduo, que modifica o sujeito na medida em que promove uma

indagação interior, um autoquestionamento que atinge as camadas profundas de sua

condição humana, e um teatro do entretenimento do público, que pressupõe “mediocridade

e narcisismo, dois casos de pseudo-auto-satisfações inerentemente contrárias à ideologia

libertária da arte” (STOKLOS, 2001, p. 14):

Conta a história que os gregos entendiam o teatro como um elemento curativo da

alma, em doenças como a falta de compaixão que é tratável, mas provoca grandes

4 Deve-se mencionar que a obra de Eric Bentley data, em sua primeira edição, de 1946; é evidente, todavia,

que suas considerações, ainda que tenham por ponto de partida o teatro de então, permanecem pertinentes se

aplicadas à arte dramatúrgica dos decênios posteriores.

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dores e gera perversões inclusive sociais. [...] O público entrava em contato direto

com o que era comum à natureza interior e investigava-se. Os espetáculos

vivificavam, portanto, a grandeza de cada um (STOKLOS, 2001, p. 13).

Stoklos, frente um cenário em que o teatro é maciçamente o campo do

entretenimento, propõe um “teatro essencial”, que se revela como rota de fuga libertária para

o artista. Bentley (2001, p. 39) chega a falar de um teatro morto quando trata dos caminhos

percorridos pela dramaturgia moderna, mas afirma também que é justamente quando há

“uma calmaria”, quando há um esvaziamento do sentido na produção dramatúrgica, que

conseguimos manter o distanciamento e compreensão necessários para “revisitar-se a

situação”. É nesse caminho, então, que parece seguir Denise Stoklos. E, nesse rumo, em

contraposição ao caráter de passividade do público do teatro do entretenimento, o “teatro

essencial” se erige na relação dialógica e construtiva entre público e performer, sendo que,

para tanto, entende que o aspecto de ficcionalidade deva dar lugar a um teatro “de fricção”:

A essência teatral seria esse processo de clamor à ação do amor, que nos redime,

um chamamento à luta por transformação, por evolução do espírito. Não seria

aplicável, então, ao teatro essencial, a figura de linguagem que se refere a algo não verdadeiro, falso, como ‘é teatro’. Ou, a ideia de que no teatro nada é de verdade,

é ‘de mentirinha’. Num teatro essencial, pelo contrário, tudo é de verdade. Ali não

se cria ficção através de personagens em um enredo, mas se cria ‘fricção’ entre

presenças: a do ator e a do público em atração gravitacional, como gravetos a

produzir fogo. [...] Num teatro de ‘fricção’, o trabalho é fundamentado no ator. O

espetáculo só ‘existe’ se o público ‘entra’ no palco e, ‘através’ do ator, o público

é quem se constrói, propõe-se e mostra-se a si mesmo (STOKLOS, 2001, p. 13).

Se o público, no teatro essencial, não mais se esconde na passividade do papel de

espectador e abre-se para o diálogo, este diálogo só faz-se verdadeiro se o performer

igualmente revelar-se em toda sua constituição humana. “No teatro essencial não há

personagens. Há ‘persona’, há ‘in-corporamento’ das opções do próprio performer”

(STOKLOS, 2001, p. 5), isto é, o que para o ator do teatro de ficção é uma máscara de um

outro ser – ficcional –, para o performer refere-se a traços do seu próprio ser. O performer,

desta forma, deixa de ser um receptáculo de um outro para ser o “in-corporamento” desse

outro conforme a apropriação que se faz desse outro. Nessa perspectiva, em Des-medeia

(1995), por exemplo, ao passo que o ator representa Medeia, o performer revela o que

Medeia representa nele, performer, autor, dramaturgo, sujeito, de acordo com a leitura que

faz dessa Medeia e do dialogo que estabelece com essa Medeia. Do mesmo modo, em 500

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anos – um fax de Denise Stoklos para Cristóvão Colombo5 (1992), o performer in-corpora

as angústias do sujeito latino-americano, angústias estas que fazem parte dele enquanto

indivíduo inserido em tal contexto e que anseia por expressar as tensões que emergem de si

por esta sua condição: não há espaço aqui para “fingimento”, há a necessidade de expressar

emoções que fazem parte do performer verdadeiramente – para ele.

Se em Strindberg essa dialética entre o eu e o(s) outro(s) se manifesta na construção

de seus personagens, como cita Bentley (2001, p. 88), “criados em estágios da civilização

vindos do passado e do presente, farrapos de humanidade, pedaços rasgados de roupas

domingueiras transformadas em trapos – remendados juntos como acontece com a própria

alma humana”, conforme a proposta do teatro essencial, convergindo-se no performer o

personagem e o ator/autor/pensador, o indivíduo multifacetado, fragmentado, corresponde

tanto ao personagem que está presente/materializado no palco, como a Denise Stoklos

enquanto indivíduo – ser humano, mulher, dramaturga, sujeito entre tantos outros bilhões

que andam sobre a terra, que tem suas angústias pessoais, fraquezas, necessidades e anseios

pessoais, etc. – como ao público que nestas encontra um espelho de si, ou, no mais, um

diálogo consigo.

Uma vez que “o performer essencial será sempre político” (STOKLOS, 2001, p. 5),

já que para ele “não importa [...] nada que na finalidade não signifique possibilidade de

convite a questionamento, reflexão, ação e transformação” (STOKLOS, 2001, p. 5), em 500

anos, por meio da desconstrução do “descobrimento”, Stoklos promove uma reflexão crítica

acerca de questões relativas ao discurso histórico hegemônico, à formação da identidade

latino-americana, assim como acerca do lugar do sujeito latino-americano em um cenário

sócio-cultural que se engendra meio milênio após a chegada do “descobridor”:

Diário de bordo. Há 15 bilhões de anos, a grande explosão que originou o Big

Bang, colocou-nos neste magnífico problema de estarmos, cada um de nós,

responsáveis pelo desenvolvimento do espírito da humanidade. [...] Há menos de

500 milhões de anos, o planeta era unido em apenas um grande continente. Há 500

anos, aparece Cristóvão Colombo, e o descobrimento, descobrimento, descobrimento da América. Sobre qual [descobrimento] escreverei na página de

hoje de um diário de bordo? Sobre o Descobrimento da América? Mas se á um

fato longe de basear-se no desenvolvimento do espírito da humanidade? Trata-se

apenas de um negócio muito rendoso, e acima de tudo válido apenas para alguns.

Colombo, Colombo, Colombo representa uma espécie de gnomo, um anão

maléfico que conseguiu fazer essa magia negra, essa feitiçaria, essa macumba de

manter subdesenvolvidos, por 500 anos, quase todos os países que desenvolveram

outros (STOKLOS, 1992, p. 5).

5 Obra doravante referida como “500 anos”.

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Em meio ao tom de manifesto que abre a obra, revisa-se o discurso histórico de

substrato etnocêntrico promovendo, por um lado, a desconstrução da imponência do feito do

Descobrimento – mísera travessia se comparável aos feitos magnânimos do universo ou

imensamente complexos da natureza humana –, e por outro o desvelar do caráter impositivo

e exploratório da atuação europeia sobre as terras e povos situados nesta porção do planeta

entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Em síntese, poder-se-ia afirmar que o trabalho

efetuado aqui por Denise Stoklos é o do destronamento e da inversão de valores; um

chamado à reflexão sobre verdades e crenças “desembarcadas” com Colombo, Cabral,

Américo e tantos outros. Por conseguinte, o questionamento e a autorreflexão nos colocam

no lugar do sujeito latino-americano que, ainda que consciente dos determinantes sócio-

históricos que levaram a sua formação e queira voltar-se contra um substrato ideológico

impositivo pelo veio etnocêntrico, não pode desvencilhar-se das marcas do passado. Nem

autóctone nem europeu, busca seu lugar no mundo. A herança multiforme traz consigo,

assim, a identidade do híbrido. Deste modo, pois, tornam-se também mais flexíveis as noções

de autoria, influência e propriedade cultural, por exemplo.

Estas parecem ser as premissas das quais parte Denise Stoklos em 500 anos, assim

como em Des-medeia, obra na qual a Medeia de Stoklos se conjecturará a partir da

desconstrução do mito da princesa da Cólquida e da figura canônica da feiticeira perversa e

assassina dos filhos:

CORO. O autor grego Eurípides escreveu a primeira peça sobre Medeia há muitos

anos. Medeia nasceu para o teatro em 431 antes de Cristo. Contando

regressivamente os minutos que nos restam até o ano dois mil falta pouco para

completar muito tempo que assistimos a tragédias sobre traições, enquanto traímos

incansavelmente aprimoradamente através dos séculos todas as causas humanas.

No berçário de ventre de Medeia que é este Brasil nossas aspirações são cesarianas

carpideiras que choram a possível reafirmação da morte. Nos ganchos do açougue

Brasil balançam os nossos sonhos traídos. As paixões estão penduradas por um fio

de aço. No ladrilho branco do chão do açougue desenham-se coágulos de amor com o sangue que quer voltar às carnes. Que pinguem em semente de vida, que

brotem revolução. Portanto nesse momento interrompemos a nossa transmissão.

Nossa transmissão do mito se desconstruirá. Que todo esse fogo apaixonado de

Medeia seja nosso impulso para a frente e não para trás. Alterar os verbos. Para

enfim a massa amar, não para massacrar e fim (STOKLOS, 1995, p. 26).

Ao fim e ao cabo, esta Medeia é já antagônica àquela tomada como referente; uma

des-Medeia, como anuncia o título, com base no prefixo latino que indica “separação, ação

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contrária”6, ou então uma anti-Medeia, conforme o prefixo grego que traz o sentido de

“oposição, ação contrária”7. Com efeito, a “ação contrária” inclusa no sentido assimilado

por ambos os prefixos indica esse movimento de necessária tomada de um rumo adverso do

anterior. Contudo, ao passo que uma anti-Medeia acusaria o enfrentamento entre os dois

referentes, uma des-Medeia alude ao abandono, à abdicação em favor da tomada de um outro

– “novo” – caminho. Se a ação contrária é o ato da negação, uma anti-Medeia acrescentaria

ao antagonismo o signo do enfrentamento, que significa dizer necessidade de apagamento,

destruição do outro. Ao revés, uma des-Medeia atua no sentido da desconstrução que, a partir

da necessidade de re-construção, admite a possibilidade de permanência desta Medeia

desconstruída, ainda que revertida, invertida ou remodelada, na “nova” Medeia.

O mito, pois, é resgatado intertextualmente para ser desconstruído, fragmentado e

reconstruído segundo novas significações. Se conforme a perspectiva grega politeísta o mito

engendra-se como denotação do real, no contexto contemporâneo, conforme suas releituras

e sua permanência na memória coletiva, fabuloso, é tomado como ficção, como metáfora da

realidade. Na obra de Stoklos, todavia, assumindo o caráter metafórico e sendo erigido de

acordo com novas molduras narrativas, o mito fabuloso é tomado como metáfora, metáfora

do modo como a sociedade ocidental se relacionou com as questões que formam o conteúdo

narrativo do mito, tais como a traição, a violência, e as manifestações do caráter feminino.

Há, desta forma, a convocação ao autoquestionamento. Metáfora da metáfora,

representação da representação, o mímema, a partir da indicação do mito como referente a

ser desconstruído, dirige o público/leitor a questões essenciais que se referem não só à

narrativa, mas ao modo como essa narrativa foi assimilada, à(s) resposta(s) que foi(ram)

dada(s) a ele. Essas respostas, pois, também passam pelo processo da desconstrução, que é,

em última análise, a desconstrução – reflexiva – do próprio sujeito (coletivo) que as operou.

Stoklos e a mímesis da produção

Para Lima, é necessário distinguir as obras quanto ao fundo de semelhanças

(homiosis)8 sobre o qual opera a mímesis; nesse sentido há uma mímesis da produção e

mímesis da representação (2000, p. 286, 2003, p. 179): As obras que refletem uma mímesis

6 (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 85). 7 (CUNHA; CINTRA, 2001, p. 87). 8 (LIMA, 2000, p. 57).

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da representação seriam aquelas obras que atenderiam, de certo modo, aos horizontes de

expectativas do leitor, por exemplo: mantêm a perspectiva do tratamento do tema na obra

derivada de outra, guardam semelhanças com relação ao gênero, estrutura, perfil de

personagens, sentidos aproximados, enfim, aquilo que o leitor/público/plateia/observador

espera ver, ler ou contemplar em um mímema. Por outro lado, as obras que refletem a

mímesis da produção seriam aquelas que mesmo partindo do modelo o subvertem de tal

modo que rompem com os paradigmas da forma e do conteúdo, fazendo aparecer novas

leituras para o tema, novas possibilidades semânticas, simbólicas e estéticas, destoam da

série, rompem com os horizontes de expectativas dos

leitores/produtores/plateias/observadores. “Em consequência, o papel do sujeito se torna

mais mediatizado na mímesis da produção” (LIMA, 2000, p. 286). Nessa perspectiva, na

mímesis da produção, a imagem produzida pelo artista/escritor/dramaturgo abre outra cena

para a "verdade" contida na obra modelo, que incita leitor/plateia/observador a pensar. Nesse

sentido, existem as obras de representação e as obras de produção, estas últimas rompem

com a automatização, apresentam uma racionalidade fraturada, só produzida e ao mesmo

tempo lida por um sujeito fraturado (fratura na história).

[O autor/sujeito fraturado] nos dá a oportunidade de verificar o entrelaçamento

ente a produção da obra – como ela não apenas seleciona aspectos da realidade

mas cria algo que nela de antemão não se encontrava [...] – e a representação que

provoca. Representação [...] que, por seu caráter de efeito, não é automática quanto

à obra produzida. Assim, a recusa da palavra exortada para uns provocará asco,

para outros será apenas intrigante, para outros ainda vista como marca de um lugar

infernal etc. Se pensássemos que a representação-efeito é automática, estaríamos

mantendo uma das consequências, do ponto de vista da leitura, da concepção tradicional do sujeito: à sua centralidade expressiva corresponderia uma

interpretação correta. É o contrário o que se diz: a produção apenas começa na

obra; a representação que ela suscitará manterá seu caráter produtivo, portanto

potencialmente divergente (LIMA, 2000, p. 276-277, grifos do autor).

Corresponde à mímesis da produção, então, um “sujeito fraturado”9:

Se o [mímema] não se restringe a exprimir o sujeito, não deixa por isso de conter uma posição do sujeito. Como essa posição se constitui senão a partir da

apresentação (produção), a partir da qual se fala o que se fala? Essa posição não é

fixa, como se daria caso se tratasse de um sujeito centrado em si mesmo [que existe

enquanto substância], que então sempre exprimiria sua interioridade. Fraturado, o

sujeito é móvel e se mostra exatamente pela posição que assume. [...] Por sua

9 Conceituado por Luiz Costa Lima com base na oposição a Descartes efetuada a partir de Kant: “O sujeito

kantiano é apenas [...] condição formal, não reveladora de uma substância, despojando-se pois da suficiência

de que se revestia o sujeito cartesiano. [...] Sua passagem para o sujeito concreto e real [coloca-o] no limiar da

dicotomia entre entendimento e razão. [...] A unidade do sujeito kantiano implica, portanto, não só uma maior

complexidade senão alternativas antagônicas. Ou seja, fraturas” (LIMA, 2000, p. 104-105).

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mobilidade, o sujeito fraturado é aquele capaz de ser visto a ocupar posições

diversas no interior da sociedade (LIMA, 2000, p. 274-277).

O sujeito fraturado, pois, é aquele capaz de se multifacetar sendo em cada máscara

não a reprodução de um outro, mas sim o desvelar de uma parte de si, que ora assume. É

nesse sentido, então, que o mesmo sujeito/performer pode, sem “fingir”, ser Medeia, ser um

dramaturgo que pensa o teatro, ser um sujeito latino-americano revoltado com Colombo, ser

mulher, filha, irmã sendo um em todos ao passo que é todos em um, sem necessariamente

revelar-se em todas as suas facetas a um só momento.

Por conseguinte, “a possibilidade de uma nova posição do sujeito supõe a saída de

si; não em favor de um ‘pensamento de fora’, mas, como vimos no último Foucault, em prol

de um pensamento que se supunha na fronteira. [...] O sujeito fraturado é não só um sujeito

que não unifica e comanda suas representações senão que é visto no exercício de uma dupla

função: apresenta e recebe, produz e suplementa” (LIMA, 2000, p. 284-285).

Considerações finais

Mímesis da produção operada por um sujeito fraturado, cabe afirmar, nessa linha de

reflexão, que a obra de Denise Stoklos traz ao lado de um metafórico retrato do humano e

do social uma proposta para o humano e para o social. O enfrentamento é, pois, aos moldes

de Stoklos, uma proposição de um novo mundo, um recomeço do mundo, uma nova gênese

do humano e do social; e essa nova gênese só é possível a partir da desconstrução reflexiva

de um mundo passado, que é, necessariamente, a matéria prima para que se possa, em

verdade, “remendar os trapos”, como diria Bentley (2001, p. 88), para que se possa “re-

ajuntar” os referentes e significantes alocando novos sentidos e significações.

Com efeito, o lugar próprio – ou entre-lugar, como diria Silviano Santiago (2000, p.

9)10 – deste re-ajuntamento, da proposição de “novos” paradigmas, é à margem dos centros

produtores da intelligentia moderna, como nos indica Eduardo Coutinho (2003). É nesse

sentido, por conseguinte, que Denise Stoklos, representante do “escritor latino-americano”

de que nos fala Santiago,

10 “O escritor latino-americano [vive] entre a assimilação do modelo original, isto é, ente o amor e o respeito

pelo já-escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue”

(SANTIAGO, 2000, p. 23). “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao

código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar

aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropofágico da

literatura latino-americana” (SANTIAGO, 2000, p. 26).

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brinca com os signos de um outro escritor, de uma obra [ou com os signos de

outros escritores e de outras obras, que, por meios da intertextualidade, operaram

modulações, também eles, nos signos do escritor e da obra primeiros]. As palavras

do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus

olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma

experiência sensual com o signo estrangeiro (SANTIAGO, 2000, p. 21).

A fascinação, com o mito, com o Diário, e a ânsia por com eles dialogar, agencia a

re-criação, que por si só significa re-elaborar sentidos11. Essa fascinação, todavia, pode ser

assimilada e encaminhada segundo o filtro da necessidade de moldar a obra tomada de

referência – ou os signos dela tomados – de maneira a subvertê-la, como nos aponta Jenny

(1979). O re-ajuntamento, pois, não vem sem a quebra ou inversão de hierarquias, estratégia

decorrente do direcionamento ideológico do intelectual que procura seu espaço discursivo

dentro de um contexto onde impera o etnocentrismo. A imagem produzida por Denise

Stoklos inaugura, então, outra cena para a "verdade", para a “realidade” contida no modelo,

que incita o público/leitor a pensar, refletir:

Se a “imitação” é, classicamente, o correlato das representações sociais e se estas

mostram ao indivíduo o meio a que está ligado, então a mímesis supõe algo antes

de si a que se amolda, de que é um análogo, algo que não é a realidade, mas uma

concepção da realidade. Este algo antes permanece em vigor mesmo quando o

produto mimético valoriza o oposto do que seria destacável segundo os valores

então dominantes. [...] Quando [...] a mímesis parte da destruição daquele

substrato, radicaliza seu trabalho no sentido de despojar-se ao máximo dos valores

sociais e da maneira como eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade [...]. E isso equivale a dizer que o ato mimético já não pode ser

interpretado como o correlato a uma visão anteriormente estabelecida da realidade

(LIMA, 2003, p. 180-181).

Por conseguinte,

rua de mão dupla, a mímesis não só tira do mundo mas lhe entrega algo que ele

não tinha. Que substancialmente continuará não tendo mas que, nem por isso,

deixará de incorporar. Ao fazer ver doutra maneira, ela reconhece a existência do

que ela não depende; ao mesmo tempo, provoca o conhecimento do que, sem ela,

não seria possível de se obter (LIMA, 2000, p. 328).

Conforme Luiz Costa Lima, pois, o mímema que não mais se prende na cópia, mas

sim ancora-se no modelo para propor uma “nova” realidade, provoca “o alargamento do

real”, já que, “se [...] o real é uma das formas do possível, a mímesis da produção consiste

em fazer o apenas possível transitar para o real” (2003, p. 181). É nesse sentido, então, que

11 “A citação mais literal já é, em certa medida, uma paródia. A simples retirada a transforma, a escolha na qual

eu a insiro, seu recorte, as diminuições que opero em seu interior, as quais podem substituir a gramática original

por uma outra e, naturalmente, a maneira como eu a abordo, como ela é tomada em meu comentário” (BUTOR,

1968, p. 18).

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a proposição de Stoklos agencia no público/leitor o despertar para uma forma de existência,

para uma realidade que não é só possível enquanto utopia, abstração imaginativa de um

mundo ideal, mas como um “real” que habita na força do sentimento do amor, isto é, o amor

justifica a crença de que esse mundo possível deva ser tomado como real desde que essa

crença seja partilhada pelo público/leitor: “só quem pode escrever essa Des-medeia é você”

(STOKLOS, 1995, p. 32).

Referências

BENTLEY, Eric. O dramaturgo como pensador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

2001.

BUTOR, Michel. Réportoire III. Paris: Minuit, 1968.

COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada na América Latina: ensaios. Rio de Janeiro:

EDUERJ, 2003.

CUNHA, Celso; CINTRA, Luís Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio

de Janeiro: Nova fronteira, 2001.

LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,

2000.

______. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. São Paulo: Paz e terra, 2003.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Rio

de Janeiro: Rocco, 2000.

STOKLOS, Denise. Calendário de pedra. São Paulo: Denise Stoklos Produções Artísticas,

2001.

______. Des-medeia. São Paulo: Denise Stoklos Produções Artísticas, 1995.

______. 500 Anos – um faz para Cristóvão Colombo. São Paulo: Denise Stoklos Produções

Artísticas, 1992.

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SUMÁRIO

DOMAR A MEGERA, ESSA É A QUESTÃO: METALINGUAGENS E JOGOS DE

PODER/SEDUÇÃO EM SHAKESPEARE E EM DÁ-ME UM BEIJO DE SIDNEY

Climene de Moraes Favero (Uniandrade)1

RESUMO:O presente artigo visa apresentar no filme Dá-me um beijo (1953), de George Sidney, uma

transposição midiática realizada a partir de dois textos-fonte, A megera domada, de William Shakespeare, e o

backstage musical homônimo da Broadway, de Cole Porter. As fronteiras fluídas entre arte e vida,

problematizadas por meio do artifício de molduras entrelaçadas, são analisadas, tomando como referência as

músicas cantadas dentro e fora de cena. Mostra-se, ainda, que os jogos de poder e sedução entre pares, do texto

shakespeariano, são transformados em triângulos amorosos em Dá-me um beijo, refletindo a mudança das

mentalidades no contexto da década de 1950, época em que o filme musical é ambientado. Essa temática faz

parte de minha dissertação de mestrado (Domar a megera, essa é a questão: metalinguagens e jogos de poder/sedução em Shakespeare e nos filmes de Zeffirelli e Sidney), cuja pesquisa propõe a revisão de alguns

textos narrativos e dramáticos sobre possíveis textos-fonte em Shakespeare e nas filmagens, relacionando-os

com aspectos formais ou temáticos desenvolvidos em A megera domada (1592).

Palavras-chave: Shakespeare; Gênero; Metateatralidade; Adaptação fílmica.

Introdução

As estratégias de releitura, atualização e incorporação de vários textos em um texto

novo tornaram-se elementos principais do processo de construtividade textual na

contemporaneidade. Nesse artigo serão investigadas as linguagens utilizadas por George

Sidney e Cole Porter, que atualizam a obra do dramaturgo Shakespeare, resgatando seu

caráter popular e aproximando-a do espectador de então. Algumas letras das canções

apresentadas no filme são relevantes quanto à atualização e popularização da obra

shakespeariana, já que estabelece um diálogo, de forma irônica, com padrões de

comportamento da década de 50, a exemplo de Shakespeare em sua época. Os pressupostos

teóricos de críticos de cinema como Lawson-Peebles (1996) e Jane Feuer (1993) servirão de

norte para explorar especificidades, como fronteiras fluídas entre arte, vida e molduras

entrelaçadas, no filme Dá-me um beijo, de George Sidney.

1 Mestre em Teoria Literária, Centro Universitário Campos de Andrade, [email protected]

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Cruzamento de fronteiras entre a arte e vida PETRUCCIO [...] Come on, and kiss me, Kate. (SHAKESPEARE, 2010, p. 304)

A frase anterior, dita por Petrucchio, depois de ter ganhado a aposta feita com

Hortênsio e Lucentio de que Katherina seria a esposa mais obediente, serviu de mote ao

título do musical da Broadway, Kiss Me, Kate (1948), de Cole Porter, adaptado para a versão

cinematográfica homônima em 1953. A filmagem feita pelos estúdios da Metro Goldwyn

Mayer foi produzida por Jack Cummings, e dirigida por George Sidney e tem como enredo

principal a história de A megera domada (1590 – 1592), de Shakespeare.

Dá-me um beijo (1953) é um backstage musical dentro de um filme, subgênero do

teatro musical em que as fronteiras entre arte e vida se cruzam. Essa modalidade de teatro

musical coloca à mostra as dificuldades e rivalidades de um grupo de atores engajados na

montagem de uma versão musical baseada na peça A megera domada, de Shakespeare.

Nesse processo, são evidenciados romances fora de cena e outras complexidades do convívio

humano nos bastidores e camarins e as especificidades de construção da cena, como seleção

de atores para interpretar os diversos papéis, ensaios, marcações cênicas, preparação das

músicas etc. são flagradas.

O filme se apresenta através dos números musicais cantados dentro e fora de cena,

no palco e no backstage. A versão cinematográfica recuperou catorze músicas criadas para

o musical da Broadway por Cole Porter.

As músicas inseridas no filme se dividem em intradiegéticas e extradiegéticas. As

que recriam a peça de Shakespeare e acontecem no palco do Ford Theatre, em Baltimore

são: We Open in Venice (Estreamos em Veneza); Tom,Dick or Harry; I've Come to Wive It

Wealthily in Padua (Vim para casar ricamente em Pádua); I Hate Men (Odeio os homens);

Were Thine That Special Face (Que especial era teu rosto); Where Is the Life That Late I

Led? (Onde está a vida que eu tinha); Kiss Me, Kate (Dá-me um beijo).

E as canções interpretadas no backstage, cujas cenas acontecem nos bastidores da

montagem, camarins, terraços e pátios do teatro, etc. são: So in Love (Tão apaixonados);

Too Darn Hot (Está quente demais); Why Can't You Behave?(Por que não pode se

comportar?); Wunderbar (Maravilhoso); Always True to You in My Fashion (Sempre fui

fiel a você a minha maneira); Brush Up Your Shakespeare (Melhore seu Shakespeare).

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Nessa parte, as fronteiras entre arte e vida se entrecruzam em Dá-me um beijo mostrando

como o teatro traz a possibilidade de superar na arte as paixões que, muitas vezes, não

encontram vazão na vida normal, parecendo ser o que constitui o fundamento da criação

estética.

O filme que apresenta as diferentes realidades dos atores, dentro e fora de cena,

também, provoca a catarse de público que o assiste:

Eis por que a percepção da arte também exige criação, porque para essa percepção

não basta simplesmente vivenciar com sinceridade o sentimento que dominou o

autor não basta entender da estrutura da própria obra: é necessário ainda superar criativamente o seu próprio sentimento, encontrar a sua catarse, e só então o efeito

da arte se manifestará em sua plenitude. (VYGOTSKI, 1999, p. 314)

Todos estariam envolvidos pela arte de representar, os atores que se desdobram entre

os planos da encenação e seus romances e o público que os assiste. Vigotski argumenta que

as emoções fora de nós realizam-se por força de um sentimento social objetivado, levado

para fora de nós, materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tomaram

instrumento da sociedade. Consistiria em

[...] uma técnica social do sentimento, a qual incorpora ao ciclo da vida social os

aspectos mais Íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o

sentimento não se toma social, mas, ao contrário, toma-se pessoal: quando cada

um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem com isto deixar

de continuar social. (VYGOTSKI, 1999, p. 315)

Dessa forma todo o publico é levado a se identificar com as cenas interpretadas pelos

atores. O processo de identificação é pessoal, mas todos acabam por vivenciar a catarse

sugerida. Esse estado identificação aproxima as fronteiras entre a arte e a vida. Da mesma

forma, no backstge musical essas fronteiras se entrelaçam entre o palco e a vida dos atores.

Assim como na peça de Shakespeare, o filme apresenta estratégias metateatrais,

mostrando personagens com consciência dramática e que fazem reflexões sobre a

representação e a ilusão dramática. Podemos concebê-lo com duas molduras: a interna, ou

seja, da peça dentro da peça, marcada pela encenação de A megera domada, e a moldura

externa, caracterizada pelo backstage musical dentro do filme, que apresenta o processo de

montagem do espetáculo tanto no que diz respeito aos recursos tecnológicos, como das

relações pessoais que ocorrem entre os atores.

Jane Feuer (1993) argumenta que em um backstage musical a estrela do espetáculo

é o próprio espetáculo, o qual põe a nu o fazer artístico, revelando quais são os recursos da

magia teatral e mostrando o desempenho artístico com uma rotina: “A filmagem dos

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bastidores do teatro pode representar apenas mais uma visão interessante da apresentação,

ainda assim revela a mecânica das tomadas cinematográficas em si. Muitas vezes a tomada

de cena nas coxias é subjetiva, na qual um dos personagens observa outro, entretanto essa

visão acaba por

desmistificar a ilusão teatral” (p. 42).

Durante todo o filme é evidenciada a quebra de ilusão dramática ao se mostrar como

se monta o musical ou nas tomadas de cena de ensaios (Fig. 1), das coxias e bastidores (Fig.

2), da plateia que assiste ao musical, desdobrando metalinguisticamente a cena que assiste à

cena (Fig. 3).

Fig. 1 - Ensaio do final da peça (15’30”) Fig. 2 - Troca de cenário à mostra (1:29’05”)

Nesse contexto, o público assume a narratividade do espetáculo. Como se a nossa

subjetividade fosse colocada dentro do universo narrativo do filme. Feuer (1993, p. 26 – 27)

ressalta que esse público interno aplaudindo ao musical dentro do filme é uma compensação

por uma vivacidade perdida, presente no teatro, que a linguagem do cinema instaura. Como

se o público do filme fosse uma plateia ao vivo, tornando a película também viva. Por sua

vez, a plateia real que assiste ao filme no cinema identifica-se com ela e suas reações, tendo

a impressão de que também faz parte do filme. Seriam as caixinhas chinesas citadas por

Hodgdon (2010) “Nesse teatro de ilusões a estrutura da peça poderia ser comparada a uma

série de caixas chinesas, aninhando-se umas nas outras [...]” (p. 4). Com isso, ocorre uma

identidade com a tela mais significativa, de forma a obter uma relação direta do público, ou

possibilitar uma resposta ao filme.

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Fig. 3 Plateia dentro do filme (36’39”)

A interatividade e quebra da ilusão dramática, evidenciando o backstage musical

ocorre desde a primeira cena do filme. Fred Graham, ator Howard Keel, que encenará

Petrucchio, toma em suas mãos o script com as partituras de Dá-me um beijo, de autoria de

Cole Porter (Fig. 4). Na sequência, chega o compositor Cole Porter (Fig. 5), encarnado por

Ron Randel, e começam a conversar sobre o musical que irão montar.

Fig 4 - Script com partitura de Cole Porter (1’25”) Fig. 5 - Chegada do compositor (1’4”)

A chegada de Lilli Vanessi, a atriz Kathryn Grayson, que interpretará Katherina é

aguardada. Lilli e Fred são divorciados e se encontram por ocasião da montagem do musical.

Desde a primeira cena é mostrado ao público o entrelaçamento entre arte e vida, pois o casal

de atores vivia em briga, assim como Katherina e Petrucchio, personagens que irão

representar.

Nesse jogo metateatral, como nos coloca Patrice Pavis (2003) a problemática é

centrada no teatro que "fala", portanto, de si mesmo, se "autorepresenta". É o teatro dentro

do teatro. Não sendo necessário que os elementos teatrais formem uma peça interna contida

na primeira. “Basta que a realidade pintada apareça como já teatralizada: será o caso de peças

onde a metáfora da vida como teatro constitui o tema principal” (p. 240).

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No caso ocorrem os dois, o teatro é auto-representado, sendo, ao mesmo tempo, como

já mencionado anteriormente, um bakstage musical dentro de um filme. O musical é a

adaptação da peça de Shakespeare, sendo todos os preparativos e contingências da vida dos

atores com suas brigas, amores e dissabores um espelho de Katherina e Petrucchio e Bianca

com seus pretendentes.

Há uma constante alternância de cenas no palco e fora dele, nos bastidores, coxias e

até mesmo na casa dos atores, sendo o foco principal o processo de montagem.

A adaptação como processo é retomada em tom irreverente pelo diretor George

Sidney. Na época da criação do filme Dá-me um beijo as peças de Shakespeare eram

montadas de maneira formal e aristocráticas. Sidney ironiza esse fato dentro do filme de

maneira crítica ao quebrar com estereótipos. Podemos citar como exemplo, ainda na primeira

cena de Dá-me um beijo, a personagem Fred Graham parando na frente de um retrato pintado

a óleo com a figura de Hamlet (Fig. 6), parodiando o gesto da personagem da pintura.

Segundo Robert Lawson-Peebles (1996, p. 96), esse quadro retrata o personagem

Hamlet de Laurence Olivier, vivido sob sua própria direção no cinema, em 1948. George

Sidney faz uma referência crítica bem humorada às montagens formais do bardo ao incluí-

lo em sua cena. Tanto Fred como Cole Porter param em frente ao retrato. Fred imita o gesto

de Hamlet, que apoia sua cabeça, pensativamente, em sua mão. Nesse momento em que

planejam montar a comédia shakesperiana, agem como se precisassem da aprovação de

Olivier representado na pintura.

Fig. 6 - Quadro de Olivier como Hamlet (2’30”)

O retrato “conversa” com a cena. Parece assistir ao número musical de Lois Lane, a

atriz que interpretará Bianca. Segundo Robert Lawson-Peebles (1996, p. 98), essa cena

marca a irreverência do diretor George Sidney ao montar um musical de Shakespeare

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escolhendo para isso uma linguagem informal, em que a atriz sobe na mesa e, ousada e

sensualmente, dança sob o olhar pensativo de Olivier/Hamlet (Fig. 7).

Fig. 7 - Ousado número musical de Lois Lane (10’43”)

Ann Miller causava furor na época por sua sensualidade e graciosidade. Sua postura

indica uma leitura diferenciada do texto de Shakespeare, quebrando, conforme mencionado,

os estereótipos das encenações tradicionais.

De acordo com Lawson-Peebles (1996, p. 98), o filme desde a primeira cena contrasta com

os padrões de comportamento americanos e ingleses. Fred, um ator americano, possui um

mordomo chamado Paul, uma referência irônica ao modo de vida aristocrático dos ingleses.

Lois, ao sapatear para seduzir Fred, lança olhares também sedutores para a câmera,

simulando um striptease ao lançar jóias, luvas e lenços para Fred e para o espectador. Esse

recurso é recorrentemente usado, já que a película era feita em 3-D, dando a impressão que

os objetos saltavam para fora da cena. Essas ações eram realizadas como se fossem

observadas, pensativamente, por Olivier/Hamlet do retrato mencionado.

A pintura a óleo no apartamento de Fred Graham reproduz a cadeira e os detalhes da

caracterização de Hamlet no filme de Olivier, incluindo sua loira cabeleira no papel que

atuou e dirigiu, sendo a representação no quadro uma imagem de uma das cenas do filme

(Fig. 8).

Fig. 8 – Hamlet/Olivier – o pensador

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A imagem retratada pode ser considerada uma referência à escultura O pensador (Le

Penseur – 1880) de Auguste Rodin, caracterizando o que Irina Rajewski (2005. p. 11)

denomina referência intermidiática. A própria inserção do quadro de Laurence Olivier no

filme também pode ser considerada uma referência intermidiática.

A maioria das canções intradiegétcas são composições baseadas no texto do bardo,

ou seja, transposições intersemióticas de uma mídia verbal para a música. Em We Open in

Venice, (Abrimos em Veneza), a metateatralidade é gerada quando uma trupe de atores, Lili,

Fred, Lois e Bill, apresentam-se ao público do teatro como os atores que farão o musical que

irão assistir (Fig. 9). Verificamos uma moldura dentro da outra, ou seja, a trupe de atores

anunciando o musical que irão apresentar. O desdobramento metateatral ocorre no filme ao

contar a reduplicação de histórias de vida, ou apresentação de uma história dentro de outra

no palco.

Fig. 9 - Estreamos em Veneza (36’58”)

Essa cena de abertura mostra as cidades por onde passaram que, coincidentemente,

são os lugares onde o enredo da peça é ambientado, o que podemos verificar a partir da letra

da música no filme:

Estreamos em Veneza, nossa próxima peça em Verona,

em seguida em Cremona

Muitos bares em Cremona, nosso próximo salto é Parma, [...]

E Mântua, Pádua e, em seguida, vamos abrir novamente. Onde?2

Os atores se autodenominam um grupo de atores mambembes e não produzidos por

L. B. Mayer (Lois Burt Mayer), conhecido por lançar estrelas hollywoodianas pela Metro-

Goldwyn-Mayer (MGM) por mais de vinte e cinco anos. Como todos eles estavam sendo

lançados por L. B. Mayer ou pelos estúdios da MGM, pode-se considerar essas interpolações

como uma brincadeira metateatral.

2 Disponível em: http://www.stlyrics.com/lyrics/kissmekate/weopeninvenice.htm. Acesso em 10/10/2012

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Na sequência, Fred assume o papel do narrador para contar os rudimentos do enredo

de A megera domada (Fig. 10). Tudo marcado com um tom de extrema ironia e exagero na

apresentação dos personagens que ora congelam em cena, ora contracenam com o narrador.

As marcações dos atores, sob diferentes focos de luz a pino, evidenciam os recursos cênicos

propositadamente colocados à mostra. Conforme ressalta Jane Feuer (1993, p. 47), o público

toma consciência que irá assistir a uma montagem. Os recursos hollywoodianos, geralmente

ocultados são propositadamente flagrados.

Fig. 10 - Estreamos em Veneza (36’58”)

O estudo das músicas é relevante quanto à atualização e popularização de textos

clássicos, já que conversa, de forma irônica com padrões de comportamento da década de

50, a exemplo de Shakespeare em sua época (esse estudo poderá ser encontrado em

pormenor em minha dissertação de mestrado: Domar a megera, essa é a questão:

metalinguagens e jogos de poder/sedução em Shakespeare e nos filmes de Zeffirelli e

Sidney: disponível no site http://www.uniandrade.br/mestrado/defesa2013.php)

A canção interpretada por Petrucchio, por exemplo, Where Is The Life That Late I

Led? (Onde está a vida que eu tinha?), lembrando de sua vida de solteiro, é inspirada na fala

do Petrucchio de Shakespeare, no momento em que chega à sua casa após o casamento com

Katherina:

PETRUCCHIO

Safados, vão buscar a minha ceia.

(Saem alguns criados.)

(canta) Cadê a vida que eu levava?

Onde estão as...

Bem-vinda, Kate; pode sentar. Comida! (SHAKESPEARE, 1998, p. 98-99, minha ênfase)

Não sabemos o que pode ser sugerido em relação às reticências no trecho de

Shakespeare: “(canta) Cadê a vida que eu levava? Onde estão as...” Mas parecem ter servido

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de deixa a Cole Porter na suposição de que diria o nome de várias mulheres, com as quais

teria namorado:

Na querida Milano, onde está você, Momo?

Ainda está vendendo fotos das escrituras no Duomo?

E, Carolina, onde está você, Lina?

Ainda vendendo sua pizza nas ruas de Taormina?

E, em Firenze, onde está você, Alice,

Ainda está bonita em seu estilo itty-bitty Pitti Palace?

E a doce Lucrecia, tão jovem e alegre? Que escandolosas aventuras nas ruínas de Pompéia!3

Ele canta essa música em tom operístico, comentando a tragédia de não mais poder

vê-las. A relação com a ópera, provavelmente, atribui-se ao fato de suas namoradas viverem

na Itália, cenário em que viveu seus nostálgicos romances.

Adaptada à década de 50, a canção enaltece a virilidade masculina apresentando

Petrucchio como um grande conquistador, saudoso de suas antigas namoradas, mas

consciente de sua nova condição de casado. O que não deixa de caracterizar o

comportamento dos homens nos dias de hoje, ao contarem orgulhosamente suas conquistas.

Considerações finais

O estudo das músicas mostra que na adaptação de George Sidney há paralelismos

que geram relações que vão além dos da trama shakespeariana. Isso acontece ao analisarmos

as molduras entre arte e vida que se entrelaçam ao comporem o backstage musical. Nele, os

paralelismos assumem uma triangulação em que as atrizes que interpretam Bianca e

Katherina são ambas desejadas pelo ator Fred, que interpreta Petrucchio. Da mesma forma

a atriz Lilli, que atua como Katherina, namora um cowboy texano e Fred/Petrucchio. Lois

Lane, a atriz que encena Bianca, namora Bill, que atua como Lucentio, além de manter uma

relação com seu diretor Fred/Petrucchio.

Em A megera domada, de Shakespeare, o paralelismo que ocorre é entre as tramas

de Lucentio/Bianca e Petrucchio/Katherina. A primeira parece assumir um caráter de

protagonista em parte da peça, servindo a relação conflituosa de Petrucchio e Katherina

como um contraponto burlesco ao amor de Lucentio e Bianca. Batista Minola, pai de Bianca

e Katherina, concorda em dar a mão de sua filha mais nova em casamento, assim que

aparecesse um pretendente para Katherina. Enquanto Bianca era cortejada por três

3 Disponível em: http://letras.mus.br/cole-porter/1601315/ Acesso em 1010/2012

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pretendentes, Kate era cobiçada por Petrucchio que se gabava ser o único homem capaz de

domar o gênio da megera.

George Sidney, além de ampliar essas relações, também traz a público o

questionamento de valores vigentes, pois não ousou somente ao apresentar um Shakespeare

numa linguagem informal, mas também ao desafiar padrões de comportamento em uma

época, na qual a sociedade americana primava pela mulher dona de casa, que vivia a mística

feminina (FRIEDAN, 1971, p. 20), ao se realizar como esposa e mãe. A canção: Always

True to You in My Fashion (Sempre fui fiel a você à minha maneira), por exemplo, marca o

diálogo de Lois e Bill em relação aos acordos que deveriam manter, diante dos interesses e

infidelidades que viviam:

Mas eu sou sempre fiel a você, querido, à minha maneira

Sim, eu sou sempre fiel a você, querido, à minha maneira.

Fui convidada para fazer uma refeição Por um magnata grande em aço,

Se a refeição inclui um acordo, eu possa aceitar.4

Sidney reduplica as quebras de ilusão e realidade de Shakespeare, entrelaçando a

variedade caleidoscópica da arte e da vida. Sendo assim, podemos dizer que o teatro de

Shakespeare, retomado pela nova mídia aqui descrita inspira um jogo, no qual todos ganham.

Todos são convidados a participar, conhecer, mover suas peças, brincar e comover-se.

Entender as regras desse jogo e suas estratégias é um processo prazeroso e enriquecedor que

propõe reflexões e questionamentos acerca do pensamento ocidental, além de retratar

mistérios e complexidades da natureza humana.

Referências

A MEGERA domada. Direção de Franco Zeffirelli. EUA: The Burton-Zeffirelli; Columbia

Pictures, 1967. 1 dvd (122 min); son.

DÁ-ME um beijo. Direção de George Sidney. EUA: Jack Cummings; M-G-M, 1953. 1 dvd

(110 min); son.

FRIEDAN, B. A mística feminina. Tradução de Áurea Weissenberg. Petrópolis: Vozes, 1971.

4 Disponível em:

<http://www.stlyrics.com/songs/e/ellafitzgerald1351/imalwaystruetoyouinmyfashion636423.htm>

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HODGDON, B. Introduction. SHAKESPEARE, W. The Taming of the Shrew. London:

Arden Shakespeare, 2010, p. 1-131.

LAWSON-PEEBLES, R. Brush-Up your Shakespeare: The Case of Kiss Me, Kate.

In:_____.

Approaches to the American Musical. Exeter: University of Exeter Press, 1966, p. 89 -

108.

PAVIS, P. Análise dos espetáculos. Tradução Sérgio Sálvia Coelho. São Paulo:

Perspectiva, 2003.

RAJEWSKY, I. O. Intermediality, Intertextuality and Remediation: A Literary

Perspective on Intermediality. Intermédialtés/ Intermedialities, nº 6, 2005, 43-64. Tradução

de Thaïs F. N. Diniz e Eliana Lourenço de Lima Reis.

SHAKESPEARE, W. The Taming of the Shrew. Ed. Barbara Hodgdon. The Arden

Shakespeare. Third Series. London: Methuen, 2010.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins

Fontes, 1998.

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SUMÁRIO

INFÂNCIA E SONHOS: O TESTEMUNHO DE EXPERIÊNCIAS ONÍRICAS

COMO DRAMATURGIA ESPONTÂNEA

Felipe Fernandes Freitas (UnB)1

Winny Trindade (UnB)2

Clarice da Silva Costa (UnB)3

Resumo: A produção artística a partir da identidade pessoal vem ganhando força no teatro, através do

biodrama, a partir dos anos 2000. Na educação, o incentivo à autoidentificação ocorre desde as séries iniciais

em que os alunos relatam histórias pessoais, como experiências vividas nas férias ou a própria árvore

genealógica. Portanto, a autorreferência perpassa desde histórias profundas a relatos de uma simples

experiência, e não se limita a um acontecimento fático, mas também incluem desejos. Esse trabalho foi realizado por estudantes pesquisadores de Artes Cênicas da UnB, vinculados ao PIBID, na Escola Parque 304

Norte (Brasília/DF) com alunos entre 7 e 8 anos. Foram extraídos depoimentos de sonhos noturnos pessoais

que, ao serem narrados, estimulam na criança o devaneio poético e configuram uma dramaturgia espontânea.

Palavras-Chave: Biodramaturgia; Pedagogia do Teatro; Tecnologia.

Introdução

A fim de contextualizar o procedimento metodológico realizado compete discorrer

sobre o modelo da escola onde foi desenvolvido o trabalho, sob atuação de alunos

pesquisadores do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID. A

Escola Parque (E.P.) foi pensada em 1947 pelo professor Anísio Teixeira com o objetivo de

desenvolver projetos a partir da integração interdisciplinar, sendo a primeira unidade do país

fundada em 1950 em Salvador/BA (PEREIRA; COUTINHO; RODRIGUES, 2011). No

decorrer das décadas de funcionamento, a formatação das Escolas Parques brasilienses (que

hoje atuam nas áreas de Teatro, Educação Física, Música e Artes Plásticas) vêm se

adequando às realidades locais, atendendo cerca de 4/5 escolas de ensino regular, inclusive,

de comunidades mais distantes. As turmas perpassam por uma tríade de professores, de três

disciplinas diferentes, possuem cerca de 20 (vinte) alunos que frequentam a Escola Parque

uma vez por semana no mesmo turno das aulas na escola regular.

1 Bolsista PIBID, graduando- Universidade de Brasília ([email protected]). 2 Bolsista PIBID, graduanda – Universidade de Brasília ([email protected]). 3 Professora Coordenadora do PIBID – Universidade de Brasília ([email protected]).

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Na educação, o incentivo à autoidentificação ocorre desde as séries iniciais em que

os alunos relatam histórias pessoais como experiências vividas nas férias ou a própria árvore

genealógica. Portanto, a autorreferência perpassa desde histórias profundas a relatos de uma

simples experiência, e não se limita a um acontecimento fático, mas também incluem

projeções, sonhos no âmbito da pessoalidade e, principalmente, desejos.

O aluno que simplesmente decora um texto clássico e o espetáculo que se preocupa

apenas com a produção não refletem valores educacionais, se o sujeito da representação não foi mobilizado para uma ação espontânea. ( KOUDELA, 1984)

Óscar Cornago (2005) apresenta a dramaturgia confessional como “biodrama”, uma

linguagem usada como estratégia cênica no cinema, na dança, no teatro e até na literatura,

em que o corpo é convertido em sujeito histórico. Aqui se vê um estilo de oralidade ou de

escrita onde se preza um afastamento do fictício, aproximando-se do real. Noutros contextos,

como no cinema, a produção artística a partir da identidade pessoal tem se inserido desde a

metade do século XX, vindo a ganhar força no teatro latino-americano, através do biodrama,

a partir dos anos 2000, principalmente no teatro argentino (CORNAGO, 2009). Trata-se de

composições artísticas calcadas em fatos verídicos, deixando de lado tipos e formas caricatas

artificialmente construídas. Se não se considera ou se reconhece a comunicação íntima no

teatro é porque “continuamos vendo o teatro como algo isolado do resto da paisagem

cultural, mediática ou artística” e, assim, Cornago (2009) destaca a possibilidade de tornar a

confissão, dramaturgia em potencial, em objeto artístico na linguagem teatral.

Como procedimento metodológico, foi realizada a captação, por meio de suporte

tecnológico, de depoimentos pessoais (ou testemunhos) por meio de narrativas extraídas a

partir de jogos teatrais, estimulando a produção oral de poesias oníricas. Como método de

suporte pedagógico, as crianças foram instruídas a produzir desenhos para ilustrar seus

sonhos noturnos mais marcantes e, assim, auxiliá-los a compreender as diferenças entre as

imagens oníricas e a vida cotidiana real. Esses depoimentos, que são referências de sonhos

noturnos pessoais, ao serem narrados, atiçam na criança a memória e o devaneio poético que,

uma vez que é estimulada a oralidade, unida a um repertório de imagens de certezas

movediças e fantasiosas. Tanto Freud como Bachelard4 concordam ser um estado psíquico

criativo que nos liberta da função do real e que a felicidade e a leveza são indispensáveis

4 “O devaneio é então um pouco da matéria noturna esquecida na claridade do dia” (BACHELARD, 2009:

10)

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sendo, também, um estado natural de fantasia da criança. Aqui, o devaneio é citado por

parecer5 que as crianças, ao serem entrevistadas, mesclavam suas narrativas oníricas com

outras imagens; é como se estivessem acrescentando suas fantasias, desejos e experiências

cotidianas, ou seja, devaneando sobre o devaneio. Freud diz:

Depois que trabalhos científicos conseguiram elucidar o fator de distorção onírica,

foi fácil constatar que os sonhos noturnos são realização de desejos, da mesma

forma que os devaneios - as fantasias que todos conhecemos tão bem. [grifo nosso]

(FREUD, 1907/1908)

E ainda:

Não se esqueçam que a ênfase colocada nas lembranças infantis da vida do escritor

- ênfase talvez desconcertante - deriva-se basicamente da suposição de que a obra

literária, como o devaneio, é uma continuação, ou um substituto, do que foi o

brincar infantil. (FREUD, 1907/1908)

Depois da pesquisa teórica pronta, iniciou-se a aplicação prática, pensando sempre

na inserção dessa criança nesse meio lúdico, a idade, a metodologia que melhor poderia ser

desenvolvida com crianças entre 7 e 8 anos de idade. De início aplicou-se jogos teatrais,

alguns já conhecidos pelos alunos, com o objetivo de concentrar e preparar as crianças para

relatarem e receberem os relatos umas das outras; em seguida houve uma conversa sobre

sonhos e perguntas como "alguém aqui lembra o que sonhou na noite passada?", "vocês tem

sonhos que se repetem?", "há alguma coisa que vocês nunca sonharam, mas desejam

sonhar?" foram levantadas como forma de manter esse desenvolvimento da capacidade

oratória e como forma de fazer uma diagnose da turma.

Finalizada a conversa, passou-se para a criação de desenhos, sendo o modo mais

simples para que as ideias saiam da forma subjetiva e incerta, se tornando-se “palpável” aos

olhos. A proposta de incentivar o desenvolvimento artístico da criança implica na

compreensão da relação entre imagem e pensamento (KOUDELA, 1984). É através do

desenho que observa-se o desenvolvimento intelectual, explorando o sensório-motor e

avalia-se a capacidade de criação símbolos e identificação de signos que a criança possui.

5 Desde a captação dos depoimentos (vídeo), nos perguntávamos se algumas crianças de fato estavam sendo fiéis à narrativa onírica. Curiosamente, ao ser mostrarmos os vídeos na reunião intermediária da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística - ANPOLL – na Universidade

Estadual de Londrina/PR, fomos questionados se, com base em pequenos gestos que delatam uma “invenção”, se as crianças não estariam extrapolando e a narrativa, o que nos levou a pensar se não estaria devaneando sobre o devaneio noturno.

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A caracterização serviu como meio de introduzir o aluno no universo lúdico que os

sonhos podem levar as pessoas e exerceu, também, a função de proteção ao aluno – já que

tudo seria documentado em vídeo – e ao aluno, que se sentiu protegido ao se mascarar,

livrando-se, inclusive, da vergonha de se expor para uma câmera. Cabe ressaltar que grande

parte das crianças respondeu a perguntas, sendo poucas as que contavam seus sonhos num

só lapso narrativo.

Como resultado temos uma série de vídeos e desenhos produzidos a partir de relatos

de sonhos. As crianças passaram a compreender o que é sonho noturno, a diferi-lo da

realidade, e a valorizar esse rico e subjetivo material, que é frequentemente ignorado. Os

alunos, ainda, mostraram uma aptidão nata a fantasiar sobre a própria historia que, conforme

relatado em parágrafo anterior, inventam narrativas que se conectam aos próprios

depoimentos. Percebeu-se, também, que, sob o olhar de Patrícia Silveira, os depoimentos,

quando narrados aos colegas, tornam-se dramaturgias espontâneas de improvisação por

estarem vinculados à oralidade imediata, ou seja, uma enunciação oral que ao mesmo tempo

em que não é intermediada pela escrita, se atrela ao contexto fazendo “prevalecer o aspecto

circunstancial da fala sem escrita, sua ligação com o contexto existencial (real ou ficcional)

do falante” (SILVEIRA, 2012). Ainda sobre os vídeos, a partir de uma perspectiva que Óscar

Cornago traça sobre o cinema,

a câmera converte o falante em testemunha de sua própria vida. Ela é convidada a

desenvolver um relato em primeira pessoa, que não é somente uma primeira

pessoa gramatical, mas também física. Frente à webcam, uma câmera próxima,

quase familiar, o falante se vê transformado em sua própria intimidade em um eu-

atuo cuja verdade resulta construída em forma de relato, não somente verbal, mas

também físico, o relato da experiência quando esta ainda não foi contada, a

experiência que fica escrita no corpo, em uma atitude, um modo de atuar, de

mover-se, de olhar o outro, de estar frente à câmera. Esses traços físicos são os

que convertem a testemunha em uma jóia preciosa do discurso contemporâneo

sobre a verdade pessoal ou coletiva, a verdade da história. (CORNAGO, 2009)

Considerações Finais

Concluímos que as produções que resultam de narrativas pessoais são melhor

assimiladas pelas crianças que passam a ter uma relação de empatia com os resultados. A

empatia surge de dois vieses: da sensação de pertencimento da criança que conta e da

identificação das semelhanças vivenciadas. Os sonhos, segundo Karl Gustav Jung (1977),

revelam uma camada mais profunda do inconsciente que, por sua vez, é coletiva, universal,

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ou seja, são idênticas em todos os seres humanos; possuem alta similaridade, revelando mitos

pertencentes ao inconsciente coletivo.

Em termos técnicos concluiu-se, também, que o depoimento pode ser uma confissão

ou mesmo um testemunho sendo que o primeiro termo surge a partir do cristianismo e

carrega o sentimento de culpa. Portanto, preferiu-se utilizar a “testemunho” como uma

variável de designação do depoimento, pois não objetivam um cunho terapêutico, mas

artístico. Também é um meio de avaliação do desenvolvimento da intelectual e cognitivo da

criança.

Referências

BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

CORNAGO, Óscar. Biodrama: Sobre el Teatro de la Vida y la Vida del Teatro. Revista

FALL (Latin American Theatre Review), 2005: 5-28.

FREUD, S. Escritores Criativos e Devaneio. [S.l.: s.n.], 1908/1907. Disponível em

<http://quebracorpo.blogspot.com.br/2010/04/escritores-criativos-e-devaneio-1908.html>.

Acesso em 02 nov. 2013.

JUNG, Karl Gustav. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. 4ª Edição. São Paulo: Perspectiva, 1984.

ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Campinas, SP:

Papirus Editora, 1998.

PEREIRA, Eva Waisros; COUTINHO, Laura Maria; RODRIGUES, Maria Alexandra

(Orgs.) Nas Asas de Brasília: Memórias de uma Utopia Educativa (1956-1964).

SILVEIRA, Patrícia dos Santos. O Texto que Nasce do Corpo: relações entre escrita e

oralidade na construção do texto teatral. 180 fls. Dissertação (Mestrado em Teatro) –

Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro.

Florianópolis, 2012

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SUMÁRIO

L’ILLUSTRE MOLIÈRE: UMA ADAPTAÇÃO BRASILEIRA DO TEATRO

FRANCÊS DO SÉCULO XVII

Joice Rodrigues ZORZI (IBILCE/UNESP)1

Resumo: O espetáculo teatral L’Illustre Molière foi elaborado a partir de uma colagem de cinco peças do

dramaturgo epônimo, selecionadas e unidas em roteiro assinado por Sandra Corveloni, Lara Hassum e Mateus

Monteiro. O presente artigo pretende apresentar a pesquisa de mestrado em andamento, que tem como objetivo

principal analisar a estrutura dramatúrgica desta montagem teatral em busca dos indícios que o marcam como

um elemento fundamental para a construção do fenômeno teatral, com ênfase no processo de adaptação e

atualização estética e temática das obras originais, a saber: Escola de Mulheres, Tartufo, Don Juan, O Burguês

Fidalgo e As Eruditas. Nesse percurso, deverão ser notadas as características das obras francesas do século

XVII e da obra brasileira contemporânea. Espera-se encontrar no(s) texto(s) os elementos da dramaticidade que permitem a encenação, tais como a metalinguagem nas cenas intersticiais, a tradução das obras originais

de Molière e a sua adequação para o contexto brasileiro, a caracterização dos atores e as escolhas estéticas para

a representação das cenas das peças representadas dentro da peça.

Palavras-chave: L’Illustre Molière. Teatro.

Introdução

O presente artigo pretende apresentar as intenções basilares de um projeto de

pesquisa em nível de mestrado, no programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de

Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita

Filho”, sob orientação do prof. Dr. Peter James Harris.

A obra a ser pesquisada é o espetáculo teatral L’Illustre Molière, encenada pela

Companhia D’Alma nos anos de 2011, 2012 e 2013 em diversas cidades brasileiras,

notadamente a capital e cidades do interior do estado de São Paulo. Trata-se de uma

montagem de texto inédito, criado pelos roteiristas Sandra Corveloni, Mateus Monteiro e

Lara Hassum. A pesquisa, inicialmente, tem título homônimo a este artigo. Uma das questões

centrais desta pesquisa é verificar como se dá, no interior deste texto teatral, o processo de

adaptação e apropriação da obra do dramaturgo francês.

Na obra brasileira, encontramos cenas de cinco peças do dramaturgo francês, a saber:

L’École des femmes — Escola de Mulheres (1662), Le Tartuffe — Tartufo (1664), Don Juan

(1665), Le Bourgeois Gentilhomme — O Burguês Fidalgo (1670) e Les Femmes Savantes

1 Mestranda do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da Universidade Estadual Paulista. Bolsista

CAPES. [email protected]

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— As Eruditas (1672). Estas cenas são entremeadas por uma criação própria dos roteiristas,

que mesclam elementos biográficos de Molière e de sua trupe teatral, a história de suas peças

e do próprio fazer teatral do dramaturgo — ficcionalizados, diga-se. Todos esses elementos

dão um tom metalinguístico à obra, materializado, na construção cênica, pela existência de

um metapalco (Figura 1). Esse metapalco serve, na maior parte do tempo, para a encenação

dos excertos de Molière, e, conjuntamente com efeitos de iluminação, constituem um código

para diferenciar os diferentes momentos da encenação.

Figura 1 — Imagem parcial do palco. Em cena, da esquerda para a direita, os atores Guilherme Sant’Anna, Lara Hassum e Mateus Monteiro, que encenam Escola de Mulheres. Crédito da foto: Bianca Salay.

A ação do espetáculo se passa na França do século XVII, com caracterização e

cenários que remontam a uma estética característica da época. Pelos figurinos, Zé Henrique

de Paula, figurinista do espetáculo, ganhou um prêmio Shell, importante reconhecimento no

segmento teatral brasileiro.

Interpretado pelo ator Guilherme Sant’Anna, também premiado com o Shell 2012

pelo trabalho, Molière é apresentado como dramaturgo, diretor e ator de sua própria

companhia teatral, já no auge da carreira. Entre os ensaios, apresentam-se cenas do cotidiano

de Molière e de sua companhia teatral, como a relação com o administrador La Grange, o

relacionamento amoroso com as atrizes da companhia, aspectos biográficos, como a relação

com o pai, tapeceiro do Rei, a sua infância, a paixão pelo teatro e a repercussão das críticas

à peça Tartufo.

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Desenvolvimento

Entendemos o teatro como uma manifestação artística complexa, que necessita de

diversos suportes, tendo como base a interdisciplinaridade. Há, no fenômeno teatral, uma

sobreposição de linguagens e signos, verbais e não verbais, que colaboram para a construção

da cena dramática. Esta composição possui caracteres que vêm da ordem de uma construção

espetacular e de uma construção textual, que, juntas, compõem cena e texto.

A análise pretende considerar alguns aspectos interdisciplinares da montagem de

L’Illustre Molière, visto que uma análise minuciosa de todos os elementos de um espetáculo

teatral não seria exequível no tempo disponível. Entre estes, destacamos o processo criativo

dos roteiristas: em 29 de junho de 2012 tivemos a oportunidade de gravar uma entrevista

com Sandra Corveloni, diretora de L’Illustre Molière, além de seus parceiros de criação do

roteiro, Mateus Monteiro e Lara Hassum, que também são atores do espetáculo (conforme

Figura 1). Na ocasião, foram levantadas questões a respeito da construção desta obra, em

que foi possível dialogar sobre os procedimentos e escolhas feitos pelos artistas na

composição do texto, bem como das alterações naturais advindas da própria prática teatral,

na inter-relação entre a diretora e os atores, durante os ensaios. Também foram tratadas as

escolhas dos roteiristas acerca da tradução das obras, procedimentos de escolha e recorte das

cenas originais, composição artística dos elementos biográficos que compõem as cenas

intersticiais, escolha das canções das peças, entre outros.

A entrevista foi resultado de um encontro preliminar, realizado em 17 de maio de

2012. Na ocasião, apresentamos o interesse em pesquisar a obra, e falamos sobre a

necessidade de ter acesso ao texto da montagem, bem como sobre a possibilidade de filmar

o espetáculo e conversar com os roteiristas e elenco sobre o processo criativo de composição

do espetáculo. Diante do aceite da diretora Sandra Corveloni, foi cedida uma versão do texto

inédito, além do registro da já citada entrevista e também uma filmagem da peça, realizada

em 28 de junho de 2012.

Todo esse material preliminar irá compor o corpus da pesquisa, que tem como

objetivo averiguar quais são os procedimentos criativos adotados na elaboração da obra

teatral contemporânea L’Illustre Molière, pensando nas estruturas textuais dos textos

originais (de autoria do próprio Molière), em sua tradução e adaptação para o palco

brasileiro, e nas cenas intersticiais que formam o fio narrativo do espetáculo.

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A pesquisa concentra-se no texto do espetáculo, mas não desconsidera ou ignora os

demais elementos presentes da obra. Nosso objetivo primeiro é estudar a estrutura

dramatúrgica da peça teatral contemporânea L’Illustre Molière e sua relação com as obras

originais do dramaturgo francês. Nesse percurso, deverão ser notadas as atualizações

estéticas e temáticas das obras, bem como a pertinência das cenas representadas no contexto

da montagem brasileira.

A intenção primeira era denominar o presente trabalho como “L’Illustre Molière:

uma adaptação brasileira do século XXI do teatro francês do século XVII”, mas

comprometeríamos a eufonia. É imprescindível notar que o espetáculo situa-se neste

contexto teatral brasileiro contemporâneo, que possui diversificadas formas de criação e

apresentação espetacular.

Pretendemos, com a análise da obra L’Illustre Molière, utilizarmo-nos de uma

montagem teatral como um campo fértil de análise para os estudos literários, já que

consideramos o texto teatral como elemento constituinte do fenômeno teatral. Esperamos

que este trabalho possa encontrar e descrever as diversas estruturas textuais dramáticas,

considerando que temos obras de autor canônico, e, assim, poderemos encontrar a

dramaticidade em suas características clássicas, mas também em suas formas mais

contemporâneas, já que o processo criativo dos roteiristas proporcionou a encenação

brasileira nos tempos atuais.

Com a investigação da dramaticidade presente no texto, poderemos responder às

questões concernentes a própria caracterização do texto de teatro e quais são seus elementos

que o inserem como parte constituinte e necessária à encenação teatral. Além disso,

prevemos investigar os processos de metalinguagem nas cenas intersticiais, a tradução

brasileira das obras originais de Molière e sua adequação para o contexto brasileiro, a

caracterização, a composição do cenário e as escolhas estéticas para a representação das

cenas das peças representadas dentro da peça.

Para esse percurso, pretendemos nos concentrar em estudos teóricos basilares da(s)

teoria(s) do teatro, como a Poética, de Aristóteles (1990?), e também a obra Uma Anatomia

do Drama, de Martin Esslin (1977), visto que em ambas as obras uma ampla visão sobre o

tema permite verificações concernentes tanto ao campo literário quanto ao campo da

representação teatral.

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O autor de Uma anatomia do drama (1977) tem tradição no campo teórico teatral:

estudioso acadêmico e professor de teatro, Esslin é notoriamente conhecido por cunhar o

termo e definir o conceito de teatro do absurdo. Sua obra homônima, publicada no Brasil em

1968, é considerada um dos livros mais influentes da década de 1960. Crítico e estudioso do

drama, foi chefe do departamento de radioteatro da BBC e diretor teatral. Esslin (1977)

define drama como uma representação concreta de uma ação à medida que ela efetivamente

se desenrola. O texto é a estrutura fixa do drama e tem a função de mostrar o modo que se

procederá a encenação; serve de meio para operar em diversos níveis da encenação. Seria

possível afirmar que, na estrutura textual, existem indícios que permitem identificar a

operacionalização de outros níveis para além do escrito? Para responder esta pergunta, vale

destacar que:

[...] o drama não é simplesmente uma forma de literatura (muito embora as

palavras usadas em uma peça, ao serem escritas, possam ser tratadas como

literatura). O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento

que reside fora e além das palavras, e que tem que ser visto como ação — ou

representado — para que os conceitos do autor alcancem sua plenitude. (ESSLIN,

1977, p.16, grifo nosso).

A escolha de Martin Esslin como teórico basilar deste trabalho deve-se à sua visão

ampla sobre as definições acerca do fenômeno dramático. O autor dá margem para novas

questões interpretativas do drama, que não o encerram em um conceito fechado e imutável,

além de lançar comentários sobre o valor das teorias:

As definições — e o pensar a respeito de definições — são coisas valiosas e

essenciais, porém jamais devem ser transformadas em absolutos; quando o são,

transformam-se em obstáculos ao desenvolvimento orgânico de novas formas, à

experimentação e à invenção. É precisamente porque uma atividade como o drama

tem delimitações fluidas que ela pode renovar-se continuamente a partir de fontes

que, até aquele momento, haviam sido consideradas como residindo para além de

seus limites. [...] O que é certo é que a arte do drama tem recebido [...] inspirações

e impulsos importantes, e por vezes, de avassaladora significação. (ESSLIN, 1977,

p. 13)

O seu valor, como apoio teórico, reside então no fato de abrir suas definições à análise

e possibilidade de questionamento, bem como o diálogo com outras teorias ou definições

que julgarmos pertinentes ao longo de nossa investigação, já que, para o autor, “as teorias

devem, de tempos em tempos, ser testadas por meio da experiência prática”. (ESSLIN, 1977,

p. 8)

A Poética traz questões tanto sobre a literatura quanto sobre a tragédia, em que esta

se sobrepõe àquela. Ainda temos que considerar as breves proposições de Aristóteles sobre

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a comédia e sobre a obra do poeta trágico, já que sua obra é inaugural nas descrições sobre

o fazer teatral da época.

Faz-se necessário ressaltar que a pesquisa ainda passa por processo de seleção de

outros modelos teóricos e/ou operacionais que poderão colaborar com fundamentação

teórica do trabalho, especialmente obras que compartilhem de uma visão que una texto e

cena. Até o momento, consideramos utilizar também as obras A Linguagem da Encenação

Teatral (Jean-Jacques Roubine), o brasileiro O texto no teatro (Sábato Magaldi); além de A

análise dos espetáculos (Patrice Pavis) e Metateatro (Abel Lionel).

Com a leitura crítica destas obras teóricas (além das demais que virão) pretendemos

reafirmar o papel do texto na construção do fenômeno teatral como seu elemento

constituinte, necessário para a sua completa realização. O lugar de onde partimos, então, é

aquele onde o texto teatral, é, acima de tudo, componente da encenação teatral, já que, nesta

análise, analisaremos também os elementos para além do texto, considerando, assim, o

fenômeno teatral em sua plenitude.

Considerações Finais

Com a verificação de equivalências e modificações nas estruturas textuais,

originárias da análise das obras criadas pelo dramaturgo francês, verificaremos quais e como

os elementos dramáticos (e dramatúrgicos) das obras de Molière ainda se fazem presentes

na versão contemporânea brasileira e quais são os processos de adaptação utilizados pelos

roteiristas. Poderemos então analisar como se dá o processo dramático interno da obra

L’Illustre Molière, através da análise de tensões presentes no espetáculo, como a

representação do século XVII no século XXI, a identidade do autor como sujeito da ação, as

questões metalinguísticas e as relações entre texto e montagem.

Desse modo, buscaremos comparar as obras teatrais em sua manifestação textual,

considerando o texto como a estrutura fixa do drama, que tem a função de mostrar o modo

que se procederá à encenação e que serve de meio para operar em diversos níveis. (ESSLIN,

1977, p. 37-46). Entretanto, para considerarmos o espetáculo teatral em sua plenitude de

encenação, utilizaremos os registros feitos em 28 de junho de 2012, em que poderemos

acessar os demais elementos interdisciplinares já citados: cenário, caracterização, música e

sonoplastia, iluminação, interpretação, contexto histórico, ambientação, estética de

encenação, entre outros componentes necessários à encenação teatral.

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O que se pretende com esta proposta de pesquisa, portanto, é descrever a

dramaticidade presente nos textos do século XVII e como permanece na obra contemporânea

L’Illustre Molière, servindo à encenação desta obra brasileira no século XXI. Com isso, será

possível avaliar qual é o local, na construção espetacular, dessa linguagem dramática nos

dias atuais, já que o texto dramático não pode ser analisado como um texto literário isolado,

em que a encenação pode ser ignorada e considerada elemento menor. Com estas

considerações, esperamos colaborar com a construção do panorama das relações entre texto

e cena, aprofundando nossa pesquisa na delimitação e investigação do local do texto teatral

na encenação teatral brasileira contemporânea e seu papel enquanto criação literária.

Referências

ABEL, L. Metateatro: uma visão nova da forma dramática. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho.

Introdução e notas: Jean Voilquin e Jean Capelle. Estudo introdutório: Goffredo Telles

Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, [1990?].

CORVELONI, S.; MONTEIRO, M.; HASSUM, L. L’Illustre Molière. São Paulo, 2011.

Texto teatral. No prelo.

ESSLIN, M. Uma Anatomia do Drama. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro:

Zahar, 1977.

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MAGALDI, S. O texto no teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. 3ª Ed.

MOLIERE. As Sabichonas / Escola de mulheres. Tradução de Jenny Klabin Segall. São

Paulo: Martins, 1963.

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______. Teatro escolhido. Clássicos Garnier. Prefácio: Robert Jouanny. São Paulo: DIFEL,

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______. Théatre Choisi. Avec Introduction, Bibliographie, Notes, Grammaire, Lexique et

Illustratins documentaires par Ch.-M. Des Granges. 12e édition. Paris: Libraire Hatier, 1947.

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PAVIS, P. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro. São Paulo:

Perspectiva, 2008.

______. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

ROUBINE, J. A Linguagem da Encenação Teatral. São Paulo: Ed. Jorge Zahar, 1998.

TEIXEIRA, U. Dicionário de teatro. São Luís: Editora Instituto, Geia, 2005.

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SUMÁRIO

MEMÓRIAS DA CENA PARAIBANA: PRIMEIROS RASCUNHOS

Duílio Pereira da Cunha Lima (UEPB)

Resumo: Partindo da necessidade de escritas da história do teatro brasileiro para além do eixo Rio-São Paulo,

discute-se o desafio de encontrar procedimentos metodológicos adequados que respondam ao desafio de

desenvolver uma pesquisa em artes cênicas envolvendo a relação entre dois campos de atuação: o texto

dramático e a encenação. Compreendendo que a história do teatro de um dado lugar não se limita a uma história

da literatura dramática, nem tampouco na formulação de uma narrativa singular ou uma verdade absoluta,

busca-se compreender como fragmentos de discursos e imagens contidos em jornais, entrevistas, artigos e

registros fotográficos/videográficos podem corroborar para uma primeira reflexão, no âmbito dessa pesquisa,

sobre memórias, perspectivas e identidades na cena paraibana entre os anos de 1975 e 2000.

Palavras-chave: teatro da Paraíba; dramaturgia; encenação.

1. Introdução

Ao voltar o seu foco para o estudo do texto dramático na sua relação com os outros

elementos da linguagem teatral, este texto remete a questões recorrentes na minha prática

profissional, como artista (diretor teatral) e/ou professor de artes cênicas (principalmente

quando leciono as disciplinas de dramaturgia e história do teatro). Duas funções que, mesmo

guardando suas especificidades, se aproximam não apenas por terem as artes cênicas como

área comum, mas por lidarem diretamente com o texto dramático como um dos elementos

de referência, problematização ou alicerce na elaboração do seu ofício.

Sobre o texto dramático é preciso lembrar que as modificações ocorridas no cenário

teatral, desde o final do século XIX e ao longo do século XX, terminaram por redimensionar

o seu estatuto, tanto na construção da cena quanto nas pesquisas que envolvem os campos

da dramaturgia e da historiografia do teatro. Rompe-se com uma concepção textocêntrica,

ainda devedora de uma tradição construída no pós-Renascimento, em que esse texto escrito

para a cena é tratado como elemento hegemônico na criação dos espetáculos e como fonte

documental exclusiva para os estudos no âmbito teatral. Em contrapartida, constrói-se uma

nova relação de forças em que o texto passa a ser compreendido como um dos elementos

cênicos, reconfigurando o papel do dramaturgo e possibilitando, entre outras coisas, o

surgimento da encenação (enquanto arte autônoma) e da figura do encenador/diretor teatral

que passa a ser o responsável pela coordenação das várias funções e elementos do espetáculo.

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Atualmente quando pensamos no papel do encenador/diretor teatral paira a ideia de

que não basta transpor para o palco todas as rubricas e palavras dispostas no texto pelo

dramaturgo (atribuição destinada ao seu antecessor: o ensaiador). Espera-se desse

profissional uma leitura dos elementos e signos presentes no texto dramático/literário. Nesse

sentido, o diretor de teatro deixa de ser um ferrenho guardião do pensamento do dramaturgo

ou um mero marcador de entradas e saídas dos atores, capaz de conduzir a concepção de

cenários e dos demais recursos tecnológicos, para assumir a condição de “pensador ou autor

da cena”, propondo um modo particular de mergulhar no universo poético proposto pelo

autor, muitas vezes criando um novo texto a partir daquele outro, a que se chamará de texto

cênico.

Desse modo, o estudo a que nos propomos perpassa a recente historiografia da

encenação paraibana, que será recuperada (especialmente) a partir da memória de

dramaturgos, encenadores e atores responsáveis pela sua formação/consolidação como

forma de identificar as possíveis concepções de teatro que marcam a relação entre texto e

cena. Para tanto, é necessário tomar a inscrição histórica contraditória do teatro que, por um

lado, considera esse passado em que o estatuto do texto se sobrepunha aos demais elementos

cênicos, e por outro, não negligencia essa transformação cênica moderna/contemporânea

centrada na defesa da criação autônoma a partir de uma leitura particular do texto dramático,

ou mesmo, mais adiante, uma eliminação total do texto (enquanto elemento verbal exclusivo

e previamente escrito por um dramaturgo para, só depois, ser encenado) ou o seu uso como

mero pretexto, capaz de suscitar o conjunto de signos de natureza verbal e não-verbal

acionados pela encenação.

Soma-se a essa problemática inicial, a urgente necessidade de sistematizar aspectos

da história do teatro na Paraíba, haja vista a exiguidade de estudos e publicações específicas

nesse campo, principalmente quando a literatura disponível em que se supõe tratar de uma

história do teatro brasileiro é, quase sempre, por tradição ou por hábito, um estudo centrado

sobre os meios de produção cênica no eixo Rio-São Paulo. Essa produção será importante

como esfera de diálogo/reflexão entre o que aqui se produzia e os espetáculos que aportavam

advindos de outras localidades através de temporadas, projetos de circulação nacional e,

principalmente, da realização de encontros com espaços de formação, intercâmbio e difusão

teatral, tais como o Festival de Inverno de Campina Grande, o Festival Nacional de Artes

(FENART) em João Pessoa, entre outros.

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É preciso ressaltar que mesmo a pesquisa ficando delimitada nos últimos vinte e

cinco anos do século XX, não ambicionamos analisar todas as obras cênico-dramatúrgicas

produzidas nesse período, mas enxergar uma dinâmica geral presente no pensamento desses

artistas/obras capaz de localizar possíveis identidades que caracterizam essa heterogênea

produção teatral paraibana. Não se trata também de construir uma história saudosista,

encerrada no seu próprio tempo: pelo contrário, propomos uma mediação presente/passado

reconhecendo que o objeto teatro não cabe de uma história única e acabada ou, mesmo,

dentro de uma trajetória temporal linear progressiva. Não pretendemos construir uma

“única” história do teatro ou da encenação paraibana porque corroboramos com o

pensamento que ela não exista como fato singular (BRANDÃO, 2006).

2. Anotações para uma história do texto e da cena

As relações de tensão entre dramaturgia e teatro ultrapassam os limites do nosso

tempo e remontam o recente surgimento da noção de encenação dentro da história do teatro,

em meados do século XIX. Roubine (1998) nos ensina que seu aparecimento, enquanto arte

autônoma, está relacionado a uma contextualização histórica propícia, que unia uma recusa

a teorias e fórmulas superadas a condições técnicas que concretizassem esse desejo de

mudança, como por exemplo, a descoberta dos recursos da iluminação elétrica. Nesse

contexto, a função de encenador substitui ou redimensiona a figura do ensaiador, para

assumir o papel de aglutinador dos diversos elementos que compõem a cena teatral,

ultrapassando a idéia de mero articulador que vai, gradativamente, se desenvolvendo até

atingir o status de autor da cena. Ao assumir o posto antes exercido unicamente pelo

dramaturgo, ele passa a ser gerador da unidade, da coesão interna e da dinâmica da realização

cênica. É ele quem determina e mostra os laços que interligam cenários e personagens,

objetos e discursos, luzes e gestos.

Essa modificação de paradigmas dá um sentido global não apenas ao novo formato

de espetáculo, mas a prática do teatro de um modo geral. O desenvolvimento da arte da

encenação vem de encontro a um modelo de teatro que se concentrava sobre o dramaturgo,

mediante o texto, atribuindo-o a função de unificador da cena. Em meados do século XIX,

o mundo ocidental está envolvido com o intitulado textocentrismo, momento em que o texto

dramatúrgico assume um domínio exclusivo sobre os outros elementos componentes do

espetáculo. Neste período, o encenador passa a requerer para si a condição de criador e a

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sugerir que um texto poderia dar margem a diferentes leituras e sentidos. Assim, ao longo

do século passado, percebemos um verdadeiro conflito de poder: de um lado o dramaturgo,

que reclama das alterações em sua obra durante a transposição para o palco e, do outro lado,

o encenador que exige liberdade de criação nessa materialização cênica do texto. Tal fato

não impossibilitou o aparecimento de experiências que pudessem ressaltar um sentido de

cooperação entre estes dois pilares da criação no teatro, dando um novo tratamento e

significado ao texto dramatúrgico. Estas questões não cessaram, permanecendo em

discussão e mutação pelos atuais fazedores teatrais.

Gradativamente, toda essa contextualização histórica terminou favorecendo, por

parte dos artistas e da crítica, uma diferenciação entre escrita dramatúrgica e escrita cênica.

Essa noção de escrita cênica (mesmo quando não havia clareza dessa definição) não

representa necessariamente uma novidade, pois, como nos lembra Williams (2010) e Ramos

(2009), o texto dramático sempre abriga/abrigou em si mesmo uma espécie de encenação

imaginária, uma série de convenções que serão confrontadas com o horizonte de expectativas

do leitor/espectador ou, como prefere Williams, uma estrutura de sentimentos. De modo

presumido, essa escrita do palco sempre esteve presente na criação dos textos dramáticos e

acabava interferindo na realização dos espetáculos. Tais questões definem parte da cena

teatral desenvolvida ao longo do século XX seja para requerer uma independência da

linguagem cênica em relação ao texto dramático, seja para continuar reivindicando uma

centralidade do texto na criação do espetáculo ou para dar margem a novos modelos de

criação compartilhada, principalmente, entre dramaturgos, encenadores e atores.

O século passado reconheceu não apenas a assinatura do encenador, mas também as

criações compartilhadas (seja o modelo de criação coletiva presente no Brasil dos anos

setenta ou a perspectiva de processo colaborativo vigente desde os anos noventa em nossa

cena) e, de modo mais particular, a assinatura do ator. Este agente termina requerendo para

si a possibilidade de escrita dentro da estrutura do espetáculo, o modelo de ator que

reproduz/declama as palavras do autor sob o exclusivo norteamento do encenador vai

passando a conviver com um novo modelo de atuação em que o ator escreve na cena com

sua presença diferida através de ações corporais e vocais que revelam outras camadas de

memória, vivências e escritas dentro da cena. Desenvolvem-se experiências que refletem o

diálogo entre os vários níveis de escrita do espetáculo, tais como a Dramaturgia do ator, a

noção de ator compositor, o rompimento dos limites da categoria de interpretação (o ator

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não precisa ser mais mero intermediário entre o dramaturgo e a plateia) o que desemboca na

experimentação e na defesa por um modelo de ator que não interpreta mas representa. Em

alguns casos, podendo representar até a si mesmo ou sequer representar, rompendo com os

limites da estrutura teatral para estabelecer uma relação livre de jogo/interação entre o seu

corpo e aqueles que compartilham suas experiências na ordem de uma cena performática.

Em terras brasileiras essas tensões/inquietações seguem um curso muito próximo

daquilo que teria ocorrido na Europa, guardando apenas um deslocamento no tempo, pois

essas transformações só aportariam aqui a partir dos anos quarenta do século XX com o

surgimento tardio (COSTA, 1998) das modernas companhias de teatro, a exemplo do Teatro

Brasileiro de Comédia em São Paulo. Essa aproximação com a dinâmica europeia não se dá

casualmente, pois o processo de profissionalização da nossa cena teatral tem seu ponto de

virada com a chegada de diversos diretores de teatro europeus que deixam seus países em

função da Segunda Guerra Mundial. Nesse ponto inicia-se um marco na história do teatro

brasileiro, pois a experiência/vivência que esses profissionais trazem de seus países de

origem na mediação com a realidade cênica local (somado ao desejo dos produtores de

produzir um espetáculo com o padrão de qualidade dos palcos estrangeiros) será

determinante para dar um novo direcionamento não apenas aos espetáculos, mas a uma

dinâmica geral do movimento teatral (aperfeiçoamento de atores, formação de diretores e

demais funções técnicas, aquisição de novas tecnologias cênicas).

Outro movimento importante, nesse mesmo contexto histórico, é a saída de artistas

brasileiros que vão estudar fora do país para experimentar/aprender com outras realidades

cênicas. O retorno desses artistas, somado a nova vivência de teatro moderno que aqui se

desenvolve, será responsável pela renovação da cena brasileira com a formação de novas

companhias, a criação de espaços de formação artística, o surgimento de novos dramaturgos

e diretores preocupados com a representação cênica da realidade nacional, um projeto já

ambicionado desde os áureos tempos do romantismo brasileiro na primeira metade do século

XIX. Mesmo guardando a distância de nossos dias, é desse movimento que veremos surgir

os principais nomes (a exemplo de José Celso Martinez, Antunes Filho, Augusto Boal, Jorge

Andrade, Vianinha, Flávio Aguiar, entre outros) e as principais perspectivas de pensamento

e traços de identidade que caracterizam e influenciam, ainda hoje, grande parte das artes

cênicas brasileira.

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No que tange o desenvolvimento de um moderno teatro paraibano e/ou o

aparecimento de tensões na relação entre dramaturgia e teatro, não saberíamos precisar com

exatidão em que momento se deu essa transformação no âmbito local, devido a quase

inexistência de estudos que apontem esse rumo. O debruçar sobre os poucos livros e estudos

publicados até o presente momento, aponta para algumas semelhanças com a realidade do

eixo Rio-São Paulo (mesmo que não haja aqui registros da criação de companhias

profissionais naqueles moldes) e para um novo deslocamento no tempo, deixando ainda mais

tardia essa vivência de teatro moderno entre nós. E, semelhante ao que aconteceu na

realidade do sudeste do país, o retorno/aprendizado de nossos artistas ao conviver com outras

realidades cênicas também será determinante para lançar novos paradigmas sobre a nossa

produção (VIEIRA, 2011).

Diante desse quadro que reforça a importância do estudo do texto dramático na

relação com os outros meios da criação teatral e, principalmente, reconhecendo a exiguidade

de estudos e pesquisas sobre o teatro paraibano é que defendemos a realização dessa

pesquisa. Sua motivação principal tem o intuito de identificar o processo de formação da

encenação paraibana na mediação com o tempo presente, procurando trazer a tona o

pensamento dos principais artistas envolvidos na construção não apenas de espetáculos, mas

de pensamentos e identidades capazes de revelar as possíveis concepções de teatro que serão

determinantes para estudar os processos de colaboração entre artistas e as tensões entre texto

dramático e texto cênico, no período proposto pela pesquisa.

Tal justificativa se fortalece, ainda mais, na medida em que nos veículos de

comunicação (jornais, revistas, portais de notícias da internet, entre outros atuantes em nosso

Estado) não tínhamos/temos a presença de uma crítica especializada colaborando com o

registro e a reflexão da cena que aqui se produz. Quando muito, resta-nos a

publicação/leitura, nos cadernos de cultura, de releases fornecidos pelos próprios artistas e

grupos teatrais ou, ainda, a divulgação de textos “impressionistas”, revelando muito mais

um critério de gosto e um horizonte de expectativas pessoais de jornalistas que não possuem

uma formação adequada para tal exercício. Em contrapartida, nos últimos anos, é no âmbito

das universidades brasileiras e, particularmente, nos programas de pós-graduação que

enxergamos um aumento quantitativo e qualitativo de estudos e publicações no campo da

dramaturgia e das artes cênicas de um modo geral, contribuindo para reflexão mais crítica

em torno da memória e da produção cultural em nosso país.

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Mesmo assim, como já frisamos anteriormente, grande parte dessas publicações

sobre um suposto teatro brasileiro reduz, muitas vezes, essa cena nacional ao eixo Rio-São

Paulo, como se a produção teatral/artística de um país de dimensões continentais se

resumisse a essas duas cidades, ou mesmo, como se não tivéssemos particularidades em

nossa realização cênica que não justificasse um estudo específico em interação com outras

realidades nacionais. E aqui não se trata de um desmerecimento dessa produção do sudeste,

uma espécie julgamento de valor diante da diversidade cultural brasileira ou a defesa de um

isolamento artístico, mas a urgente necessidade de sistematização e reflexão de realidades

teatrais regionais como a desenvolvida na Paraíba, reconhecendo e dialogando, inclusive,

com os diversos deslocamentos e trânsitos culturais internos e externos entre artistas e suas

obras. Uma característica presente ao longo de nossa história, ainda mais, em nossa realidade

contemporânea sempre lembrada pela presença de uma crescente globalização mundial.

3. Anotações e questões para uma escrita da história

O primeiro desafio que envolve esse trabalho está na busca por procedimentos

metodológicos adequados que respondam ao desafio de desenvolver uma pesquisa em artes

cênicas envolvendo a relação entre dois campos de atuação: o texto dramático e a encenação.

Essa discussão está contemplada numa publicação com textos dos principais pesquisadores

nacionais nessa área (CARREIRA, 2006) que reconhecem se tratar de uma abordagem

relativamente recente, visto que a gradativa redefinição dessas duas dimensões do fazer

teatral corta todo século XX. Mesmo assim, baseados na sua experiência em curso, apontam

alguns rumos que norteiam o nosso encaminhamento.

Nossa proposta se caracteriza como uma pesquisa documental, nunca monumental,

na medida em que nosso objeto central de investigação trata-se de um conjunto de

espetáculos pertencentes a outro período histórico. Mesmo sendo recente e considerando que

alguns espetáculos ainda estão sendo apresentados, eles podem sair de cartaz a qualquer

momento e precisaríamos trabalhar com a sua ausência. Brandão (2006) nos lembra que nas

pesquisas em teatro o objeto não pode ser restaurado em sua integridade monumental, sendo

apenas recuperado através de referências e documentos.

Outro ponto relevante consiste em romper com uma tradição dominante nesses

estudos que insiste em tratar a história do teatro apenas como uma história da literatura

dramática. Rabetti (2006) defende que tal posicionamento não se trata de retirar da peça de

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teatro, de qualquer tempo e espécie, seu caráter documental. Mas, por outro lado, ao longo

do século XX, na medida em que esse texto sofre uma série de interferências e interpretações

impossíveis de se registrar no papel, não cabe mais ao pesquisador tratar o texto literário

dramático como fonte primária exclusiva. E, sendo a arte teatral de natureza efêmera

resistindo apenas ao tempo de duração do espetáculo, é imprescindível recorrer também a

outro tipo de documentação como fotografias, registros videográficos, divulgação em

jornais, estudos críticos.

Nesse sentido, juntamente com o levantamento bibliográfico e a permanente revisão

de literatura em torno dos conceitos que norteiam esse estudo (dramaturgia, encenação,

processos de criação, historiografia do teatro), um dos primeiros passos consiste na pesquisa

de campo junto a arquivos públicos e particulares como forma de levantar uma série de

documentos (textos, fotografias, vídeos, matérias de jornal, entre outros). A organização

desse material resultará num mapeamento dos principais espetáculos produzidos, no período

determinado pela pesquisa, nas cidades de João Pessoa e Campina Grande. Uma análise

primária revelará a recorrência de dados temas sociais, defesa por determinadas estéticas da

cena e os nomes dos artistas mais representativos da produção teatral dessa época, a partir

de critérios como número de espetáculos montados, quantidade de apresentações,

repercussão junto ao público e a crítica, premiação, circulação por outras localidades.

A próxima etapa da pesquisa de campo consiste na entrevista individual e/ou coletiva

com alguns desses dramaturgos, diretores e atores já apontados pelo mapeamento. Essas

entrevistas tem por finalidade a recuperação de referências e memórias desses agentes em

torno do processo de formação e consolidação da encenação paraibana, revelando narrativas

sobre a criação e apresentação das obras teatrais. Também será o momento para confirmar,

cruzar, complementar as informações e dados apontados pela da documentação levantada

anteriormente. A análise de todo material, na relação com os estudos já desenvolvidos nesse

campo da dramaturgia-teatro, é que possibilitará a identificação de possíveis concepções de

teatro presentes na cena local, principalmente no que tange as relações/tensões entre escritura

dramática e escritura cênica.

Segundo Rabetti (2006), seguindo uma orientação dos programas de História Oral, a

entrevista de um agente criador de uma obra cênica (seja ele encenador, dramaturgo ou ator)

não pode ser tratada como única alternativa documental, sendo necessário o cruzamento das

informações recebidas com outras fontes de pesquisa. Além disso, orienta que na

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interlocução entre pesquisador e a fonte (nesse caso, o artista) não deve se sustentar por uma

relação de submissão ou neutralidade, ao acreditar que não pode ferir uma suposta

impermeabilidade da obra de arte ou interferir na inquestionável autoria do criador.

De todo modo é preciso sempre lembrar que a possibilidade de uma sistematização

histórica de um dado tempo ou produção será sempre permeada pelo filtro e interpretação

desse pesquisador. Nesse campo não existe neutralidade

“Quando falamos a respeito da história, quando a estudamos ou pesquisamos, nela estamos

interferindo, na medida em que nosso ato já comporta, de alguma maneira, implicitamente,

atualização e interpretação” (RABETTI, 2006).

4. Primeiras hipóteses para não falar em considerações finais

No âmbito da produção teatral paraibana, a relação entre o texto dramático e o texto

cênico aponta, muito mais, para uma atmosfera de conciliação e complementaridade, na

medida em que grande parte dos diretores também acumula a função de dramaturgo ou

adaptador, sem que isso represente uma fixação ao modelo textocêntrico ou, mesmo, o não

desenvolvimento da linguagem cênica.

A defesa por um teatro, assim chamado, regional, é marcada por uma recorrência de

temáticas ligadas à terra e ao universo rural ou, ainda, por uma apropriação de elementos

ligados às formas da cultura popular nordestina. Tal defesa representa menos uma

permanência de formas “arcaicas” da relação cultura/sociedade e da linguagem cênica, do

que um traço de identidade de nossa produção ou a construção de uma tradição teatral muito

peculiar, dando margem a diversificadas abordagens e a uma riqueza de

representações/ressignificações desses elementos presentes em nosso imaginário e tradições

culturais e artísticas.

Na relação entre o texto dramático e os outros meios de produção percebe-se uma

diversidade de experiências que demonstram uma permanente busca por uma pesquisa de

linguagem cênica entre dramaturgos, diretores/encenadores e atores. Esse sistema de

colaboração entre artistas resulta tanto na formatação de espetáculos quanto na constituição

de procedimentos pedagógicos da criação teatral, fundamentais no processo de formação e

aperfeiçoamento desses profissionais da cena.

5. Referências

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SUMÁRIO

MODULAÇÕES E VARIAÇÕES DO TEMA E DA PERSONAGEM DO

AVARENTO NO CÔMICO

Maricélia Nunes dos Santos (UNIOESTE)1

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)2

Resumo: Nosso trabalho consiste no estudo acerca da constituição das personagens avarentas que figuram nas

peças teatrais Aulularia (séc. II a. C.), de Plauto, O avarento (1668), de Molière, e O santo e a porca (1957),

de Ariano Suassuna. Propomos o estudo das representações estéticas de tais personagens a partir do pressuposto

de que o avarento se caracteriza como um dos muitos elementos oriundos do cômico. Nesse sentido, ao

atentarmos para as variações daquele, pretendemos também proceder à compreensão das modulações deste,

entendendo-o sob a perspectiva da ambivalência, tomada de Mikhail Bakhtin (1999). Valemo-nos dos

pressupostos da Literatura Comparada para analisar o diálogo estabelecido entre as três peças que compõem o

corpus da pesquisa.

Palavras-chave: Personagem avarento; Ambivalência cômica; Literatura Comparada.

Introdução

Este texto tem como foco o estudo da constituição das personagens avarentas que

figuram nas peças teatrais Aulularia (séc. II a. C.), de Plauto, O avarento (1668), de Molière,

e O santo e a porca (1957), de Ariano Suassuna. Propomos o estudo das representações

estéticas de tais personagens a partir do pressuposto de que o avarento se caracteriza como

um dos muitos elementos oriundos do cômico. Nesse sentido, ao atentarmos para as

variações daquele, pretendemos também proceder à compreensão das modulações deste,

entendendo-o sob a perspectiva da ambivalência, tomada de Mikhail Bakhtin (1999).

Em todos os textos em questão figura a avareza, vício cômico que já era criticado

desde a comédia clássica, e que, por sua grande representatividade como traço inerente à

comédia, parece-nos merecer estudo pormenorizado. Além disso, a opção por Aulularia, de

1 Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado, da Universidade Estadual

do Oeste do Paraná (UNIOESTE) – Cascavel/PR. Bolsista Demanda Social/CAPES. Membro do Grupo de

Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens. E-mail: [email protected]. 2 Orientadora. Doutora em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista “Júlio

de Mesquita Filho” (UNESP) e professora Associada na Universidade Estadual do Oeste do Paraná

(UNIOESTE) – Cascavel/PR. Bolsista produtividade em pesquisa - Fundação Araucária (PR). Líder do Grupo

de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens. E-mail:

[email protected].

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Plauto, se deve ao fato de que é uma das mais antigas obras a que se tem acesso de forma

quase integral que traz ao palco a personagem avarenta, atribuindo-lhe destaque. É, também,

a partir do avarento dessa peça plautina que nascem muitos outros, a exemplo daqueles que

se encontram em Molière e Suassuna.

A comédia O avarento, de Molière, além de consistir em peça que dialoga

explicitamente com a anteriormente comentada, é também representativa em decorrência de

seu contexto de produção, que pode inclusive desvendar a que diversas situações esteve

sujeito o cômico ao longo dos tempos. Já a terceira obra do corpus, O santo e a porca,

consiste em produção de Ariano Suassuna que possibilita uma retomada do avarento

plautino, sem abdicar de um retorno à criação de Molière.

O cômico ambivalente

Com vistas às festas carnavalescas da Idade Média, Bakhtin propõe a seguinte

afirmação acerca da natureza do riso:

É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma relação individual

diante de um ou outro fato “cômico” isolado. O riso carnavalesco é em primeiro

lugar patrimônio do povo (esse caráter popular, como dissemos, é inerente à

própria natureza do carnaval); todos riem, o riso é “geral”; em segundo lugar, é

universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no

carnaval), o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu

aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente:

alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e

afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 1999, p. 10 – grifos

nossos).

Nesse aspecto, ele atenta para três questões que julga essenciais na compreensão do

cômico: a coletividade, a universalidade e a ambivalência. O riso é coletivo porque se

caracteriza como um ato social, isto é, não se ri sozinho, mas em grupo. Ele é também

universal porque não está limitado a determinados grupos de pessoas nem a determinados

temas, todo homem é capaz de rir, porque o riso é natural à condição humana, da mesma

forma que qualquer tema, inclusive aqueles que se presumem mais sérios, é suscetível ao

riso, desde as questões do baixo corporal até as mais filosóficas, como a morte.

Em terceiro lugar, Bakhtin reconhece no riso, além de sua capacidade de

ridicularizar, também o seu caráter regenerador. Assim, ao considerá-lo como elemento

responsável por propiciar concomitantemente a ridicularização e a festividade, o estudioso

reconhece sua ambivalência. A ambivalência cômica consiste, paradoxalmente, na

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capacidade de construir e desconstruir a um só tempo, rebaixar e soerguer, em apontar para

o início que sucede ao fim, o nascimento que decorre da morte, em negar e afirmar por meio

de um riso em que os opostos não se excluem; ao revés, se complementam. A ambivalência

é, pois, a multiplicidade e a negação do dogmatismo, da verdade absoluta e do estático.

Na visão bakhtiniana, essa ambivalência do cômico tende a ser desconsiderada na

contemporaneidade porque “os estudos que lhe foram consagrados incorrem no erro de

modernizá-lo grosseiramente, interpretando-o dentro do espírito da literatura cômica

moderna” (BAKHTIN, 1999, p. 11), o que acaba por limitá-lo como um “humor satírico

negativo” ou “riso alegre destinado unicamente a divertir”, sem profundidade e força.

“Pobre de mim!”

O avarento de Plauto não inaugura o tipo, mas deve ter sido resgatado nos modelos

gregos. Por isso, consoante o entendimento de Aída Costa (1967, p. 29), “Aulularia é, sem

dúvida, fruto de um compromisso entre várias peças da comédia nova, e Euclião uma

personagem com traços de vários avarentos gregos, ou, diríamos melhor, com os traços

universais do avarento”. Possivelmente, sua composição está relacionada ao método que

teria sido empregado por Plauto na construção de suas peças, a contaminatio, e, por esta

razão, ele não pode ser associado exclusivamente a determinado avarento da comédia nova,

da mesma forma que não se pode desvencilhá-lo daqueles tipos presentes na produção grega.

Em Aululária, tudo gira em torno da avareza de Euclião, o que faz com que a obra

seja classificada não apenas como uma comédia de intriga, mas também como uma comédia

de caracteres (COSTA, 1967, p. 27). Seja nos aspectos que lhe consolidam como comédia

de intriga, seja naqueles que a põem no grupo das comédias de caracteres, o fato é que a

avareza de Euclião, o velho, é o elemento que funciona como vício cômico e, como tal,

garante o surgimento do riso na peça.

Se cotejarmos Aulularia com aquilo que Décio de Almeida Prado afirma quanto à

personagem de teatro – que ela se caracteriza a partir de três aspectos: “o que a personagem

revela sobre si mesma, o que faz, e o que os outros dizem a seu respeito” (PRADO, 1985, p.

88) –, veremos que a avareza de Euclião é revelada antes pelas palavras dos outros, entre os

quais merecem destaque os escravos, do que pelos próprios atos e palavras, visto que estes,

embora evidenciem certa avareza, são em determinados aspectos justificáveis.

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A avareza é mais significativa quando o poupar está relacionado àquilo que é de

pouco ou nenhum valor material. Nesse sentido, é cômico que um indivíduo seja avaro a

ponto de recolher as próprias unhas, quando lhe são cortadas, para não desperdiçá-las, como

relata o escravo Estrobilo ao zombar do velho: “Por Hércules, mesmo que lhe pedisses a

Fome êle ta negaria. Outro dia o barbeiro cortou-lhe as unhas; êle recolheu todos os

pedacinhos e os levou consigo” (PLAUTO, 1967, p. 92). Nessa perspectiva dizemos que as

palavras das demais personagens são imprescindíveis para a consolidação de Euclião como

um avarento. Megadoro, o velho pretendente da filha acusa o vício cômico do outro ao

afirmar que “não há ninguém no mundo que a pobreza tenha feito mais avarento que ele”

(PLAUTO, 1967, p. 85). Porém, são os escravos – com destaque para Estrobilo – que

procedem de forma mais incisiva no sentido de marcar a avareza do velho e de ridicularizá-

la, promovendo, assim, um riso alegre e, concomitantemente, regenerador (BAKHTIN,

1999).

Mesmo não se reconhecendo avarento e estando seguro de que age corretamente ao

proteger um tesouro, o que justifica algumas de suas hostilidades, há momentos em que estas

assumem proporções tais que lhe caracterizam, além de homem avarento, também como

rude e insensível, conforme prenunciado nos argumentos da peça. Um exemplo dessa

conduta é a resposta que dá à escrava Estáfila quando esta lhe pergunta por que apanha:

“Para que sejas mesmo infeliz, e para que, má, como és, leves uma vida infeliz, digna de tua

maldade” (PLAUTO, 1967, p. 77).

A hostilidade quanto a tudo e todos que lhe pareçam uma ameaça ao tesouro recém-

encontrado dá origem a comportamentos que assumem dupla função: por um lado, acabam

por intensificar o caráter reprovável e digno de correção do seu vício, a avareza, e, por outro,

garantem a constituição de cenas risíveis, como é o caso dos espancamentos que permeiam

a peça.

O fato de que repita basicamente as mesmas palavras em vários momentos, sob o

temor de haver sido roubado, lhe faz assumir um matiz cômico, o qual é intensificado por

aquilo que os outros comentam. Poder-se-ia afirmar que termo o “pobre”, ao qual Euclião

recorre em vários momentos ao longo da obra, assume conotações distintas. Primeiro, ele se

diz pobre para que os outros não suspeitem de que tem dinheiro e não lhe peçam nada: “[...]

tu és um homem rico, poderoso, enquanto eu sou um homem pobre, paupérrimo” (PLAUTO,

1967, p. 87). Em segundo lugar, se diz pobre porque, ainda que tenha saído dessa condição

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após encontrar o tesouro deixado pelo avô, segue vivendo como antes e se vê na sua condição

anterior, de pobre. Por último, o termo é empregado também nos momentos em que acredita

haver sido descoberto o seu tesouro; então, o uso assume uma conotação ainda mais

importante: acredita-se pobre porque pensa que seu ouro já não lhe pertence e se julga pobre

porque sofre com o temor de ser roubado (pobre como sinônimo de sofredor). Assim, de

uma forma ou de outra, pela repetição, o emprego do termo leva ao riso; e, porque revela o

ridículo daquele que o emprega, assume função cômica.

Além disso, devemos destacar que o texto da peça não chegou de forma integral aos

nossos dias. A versão a que temos acesso hodiernamente conta com um suplemento escrito

por Codrus Vrcevs, no século XV, com base no argumento, em versos citados por um

gramático e nas informações fornecidas pelo prólogo (COSTA, 1967, p. 125). Dessa forma,

não nos deteremos a esse suplemento em nossa análise, mas lembramos as palavras do

argumento II para referir-nos ao final reservado a Euclião: “Licônides devolve-o [o tesouro]

a Euclião, o qual lhe faz presente da mulher, do ouro e do filho” (PLAUTO, 1967, p. 74). A

partir de tal anúncio, podemos perceber que o final planejado por Plauto para seu avarento

consiste na superação do vício cômico.

Entendemos que dar o tesouro ao genro e, assim, livrar-se da avareza é uma ação que

se justifica em grande parte pelo entendimento por parte de Euclião relativamente ao

sofrimento que o vício lhe causava. Em decorrência de sua avareza, ele desconfiava de todos

e não estava tranquilo em momento algum; era tão pobre com o ouro como o seria sem ele.

Em um dos fragmentos da parte final a que se tem acesso, encontramos a seguinte fala: “E

nem de noite nem de dia tinha sossego; agora vou dormir” (PLAUTO, 1967, p. 124).

“Meu rico dinheirinho!”

O avarento, de Molière, consiste em uma das grandes obras que se voltou ao texto

plautino, estabelecendo uma relação de intertextualidade que, se por um lado resgata a obra

primeira, também a transforma, atribuindo-lhe novas cores. Entre essas novas cores,

comecemos por tratar do espaço que assumem os relacionamentos amorosos na peça.

Em Aulularia, havia a relação entre a filha de Euclião e o jovem que abusara dela nas

festas de Ceres, assim como a possibilidade de casamento entre essa filha e Eudoro;

justamente essas relações faziam com que a peça se caracterizasse não apenas como comédia

de caracteres, mas também como comédia de intriga. Ocorre que na peça plautina, a despeito

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da existência dessas relações, o destaque maior estava reservado para a caracterização de

Euclião como um avarento.

Na peça de Molière, há a manutenção do caráter avarento de Harpagão, mas a sua

avareza está associada a uma espécie de antagonismo que não havia em Aulularia.

Explicamo-nos: Harpagão é retratado como aquele cujas atitudes impedem a felicidade dos

próprios filhos, porque acaba por impedir as suas relações amorosas, as quais por seu lado

assumem certo protagonismo, compartilhando o espaço da cena com a avareza.

O fato de que Harpagão seja considerado um homem fora de juízo é a justificativa

para que os filhos não lhe prestem obediência e, mais do que isso, é o que permite a Molière

dispor personagens que mantêm a tradição da comédia grega e da romana, qual seja, a

oposição entre jovens e velhos, sem por outro lado desautorizar a tradição, fortalecida pela

concepção religiosa, da obediência aos pais. Se o avarento não terá a obediência de seus

filhos, não será pela ruptura da tradição da obediência aos pais, mas pelo simples fato de que

ele não se porta como um pai que quer o bem aos seus filhos, como expressa mais uma fala

de Cleanto: “[...] Poder-se-á ver algo de mais cruel do que esta tão rigorosa economia, do

que está estranha mesquinhice em que nos fazem padecer? (MOLIÈRE, 1971, p. 15 – grifos

nossos).

Harpagão não é de uma avareza ridícula como a de Euclião, não é temeroso, mas

mostra-se de uma avareza ferina, cruel, é capaz de fazer padecer a própria prole e dela quer

livrar-se como saberemos mais tarde, na cena 6 do ato 3: “HARPAGÃO – Vejo que vos

admirais por ter filhos tão crescidos; mas conto desfazer-me, em breve, quer de um, quer do

outro” (MOLIÈRE, 1971, P. 67). Tal é a gravidade de seus defeitos que o próprio filho

afirma: “CLEANTO – Que queres que eu faça? Eis a que chegam os jovens, por culpa da

maldita avareza dos pais; e há ainda quem se admire que lhes desejem a morte!” (MOLIÈRE,

1971, p. 38).

Se, como dissemos, Euclião era ao fim e ao cabo um pobre homem, Harpagão não

compartilha desses mesmos traços, pelo contrário, ele caracteriza-se como um homem rico

que explora homens pobres cobrando-lhes juros altíssimos. Isso acentua não o ridículo da

sua avareza, mas a insensibilidade e o caráter reprovável de suas ações.

Podemos dizer que nesse aspecto a caracterização da avareza que encontramos em

Molière já parece em alguma medida influenciada pela concepção cristã, de acordo com a

qual “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no

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reino de Deus”. Harpagão não é um pobre tal qual seu correspondente romano porque os

pobres são retratados na concepção cristã como homens bons, que serão recompensados. Ele

é um rico, e rico contaminado por um pecado capital, que acaba por levar ao sofrimento

aqueles com os quais convive.

Há que destacar, no entanto, que, embora não seja pobre, mas pelo contrário tenha

uma movimentação grande de dinheiro devido aos empréstimos que faz, o avarento de

Molière se aproxima do de Plauto por dizer-se pobre. Do mesmo modo que aquele, este não

admite ter dinheiro:

CLEANTO – Por Deus, meu pai, não tendes razão para vos queixar, pois todos

sabem que tendes bastante com que viver.

HARPAGÃO – O quê? Quem diz isso, mente! Não há nada de mais falso. Foi

algum patife que fez correr esse boato (MOLIÈRE, 1971, p. 22).

Não só ele tem com o que se preocupar, como é justamente com a possibilidade de

que saibam de sua fortuna que mais se preocupa. Este avarento, assim como o outro, entende

que admitir a existência de dinheiro é criar a possibilidade de que queiram roubar-lhe ou

pedir emprestado, enfim, que o conhecimento de que há dinheiro seja um risco à sua

existência.

Quando se vê roubado, ao final da peça, esse avarento não se conforma com a perda

e o único que quer é recuperar o dinheiro. Diante disso, quando seu filho lhe apresenta os

seguintes termos: “Trago novas do vosso dinheiro e venho dizer-vos que, se estais resolvido

a deixar-me casar com Mariana, ser-vos-á devolvido tudo” (MOLIÈRE, 1971, p. 109), o que

o velho faz é ceder à chantagem. Assim como Euricão, em O santo e a porca, se verá

obrigado a escolher entre o material e o espiritual, Harpagão tem de escolher entre o

casamento com Mariana e o seu dinheiro.

Harpagão não lamenta por haver poupado para economizar um dinheiro que foi

roubado, talvez porque ele não tenha se privado de nada para acumular, já que atuava como

usurário e por meio de juros abusivos conseguia multiplicar seus bens. Tampouco ele tem

dúvidas entre Mariana e o dinheiro, porque Mariana era um capricho seu, mas não a amava,

afinal, como disse Flecha “o amor não foi criado para gente como ele” (MOLIÈRE, 1971, p.

33). Por último, no desfecho da peça o avarento de Molière não se arrepende de sua avareza,

não faz doações, tal como Euclião, que entrega ao genro o tesouro recuperado, nem é punido

tão rigidamente como Euricão, que descobre a perda de validade das cédulas acumuladas.

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O que ocorre com Harpagão ao final é que recupera o dinheiro, ainda que para isto

tenha de abrir mão de Mariana, e consegue casar seus filhos com pessoas que lhe oferecem

dote. Isso ocorre porque se descobre que Anselmo, o velho rico com quem Elisa deveria se

casar por imposição do pai, é na verdade o pai de Valério, o amado de Elisa, e de Mariana,

a amada de Cleanto. Assim, satisfazem-se todos, já que os filhos se casam com aqueles que

amam, Anselmo irá reencontrar a esposa, de quem fora separado há muitos anos, e Harpagão,

de posse de seus bens, ainda encontrou um sogro rico para seus filhos, de forma que não

deverá gastar com as festas de casamento.

“Ai a crise, ai a carestia!”

Quando tratamos de Aulularia, dissemos que Euclião tinha uma preocupação muito

grande de dizer-se pobre e induzir os demais a pensarem que não possuía dinheiro algum. O

mesmo ocorre com Harpagão, em O avarento. Não será Euricão o avarento a fugir dessa

“regra”: logo no início da peça, quando, diante da possibilidade de que a carta de Eudoro

traga um pedido de dinheiro emprestado, ele afirma:

EURICÃO – E que ideia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou

espalhando isso! Foi você, Caroba miserável, você que não tem compaixão de um

pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você! CAROBA – Eu? Eu não!

EURICÃO – Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo que

se compra é pela hora da morte!

CAROBA – E o que é que o senhor compra? Me diga mesmo, pelo amor de Deus!

Só falta matar a gente de fome!

EURICÃO – Ai a crise, ai a carestia! E é tudo querendo me roubar! Mas Santo

Antonio me protege! (SUASSUNA, 1979, p. 9-10).

Baseando nossa análise nas considerações bergsonianas, queremos alertar ainda, com

base no trecho supracitado, para a repetição da seguinte frase: “Ai a crise, ai a carestia!”.

Adotando as palavras de Bergson relativamente à repetição de expressões, teremos que “a

repetição de uma expressão não é risível por si mesma. Ela só nos causa riso porque

simboliza certo jogo especial de elementos morais” (BERGSON, 1980, p. 43). Assim, na

repetição de Euricão, podemos encontrar a queixa, a qual, por seu lado, atua como indício

do caráter avarento do velho.

Apenas no título da obra – O santo e a porca –, em que a porca e o santo são ligados

por uma conjunção aditiva, é que há uma união entre tais elementos. Nos restantes episódios,

ainda que estejam postos lado a lado, Euricão sente que deve escolher entre um e outro, por

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isso a recorrência da conjunção alternativa “ou”, que indica a exclusão de um dos elementos.

Essa desarmonia entre o dinheiro, bem material, e o santo, o espiritual, acaba por evidenciar

traços da cultura cristã, em que se prega que os pobres e humilhados serão recompensados e

que os últimos é que serão os primeiros.

O fato de que se veja dividido entre o santo e a porca parece fazer com que Euricão

sofra. Além de sofrer com a avareza, que não lhe permite estar sossegado lhe faz pensar

constantemente que lhe podem roubar a porca, este avarento de Suassuna aparenta maior

sofrimento do que o de Plauto e o de Molière também porque foi motivado pelo sofrimento

a tornar-se avarento, foi a perda da mulher que o fez como é. Somado a isso, destaque-se

que Euricão não encontrou um tesouro por graça de deus algum, tampouco conseguiu

acumular riqueza por meio de juros abusivos. Ele guardou certo dinheiro porque se sujeitou

a viver em condições de pobreza, sem nem sequer alimentar-se bem. Em suma, Euricão é

um pobre avarento que sofre.

Outro aspecto inerente à capacidade criativa de Suassuna diz respeito ao tom

moralizante com que se encerra a peça, conforme podemos vislumbrar a seguir:

EURICÃO – Estão ouvindo? É a voz da sabedoria, da justiça popular. Tomem

seus destinos, eu quero ficar só. Aqui hei de ficar até tomar uma decisão. Mas

agora sei novamente que posso morrer, estou novamente colocado diante da morte

e de todos os absurdos, nesta terra a que cheguei como estrangeiro e como

estrangeiro vou deixar. Mas minha condição não é pior nem melhor do que a de

vocês. Se isso aconteceu comigo, pode acontecer com todos, e se aconteceu uma

vez pode acontecer a qualquer instante. Um golpe do acaso abriu meus olhos,

vocês continuam cegos! (SUASSUNA, 1979, p. 81-82).

Percebamos que Euricão se dirige aos expectadores com o intuito de, pondo-se em

um mesmo nível que aqueles e exaltando aquilo que chama “justiça popular”, alertar para a

possibilidade de incorrerem no mesmo erro. Esse tom moralizante é, de acordo com Gomes

(2010), comum no teatro de Suassuna, “por conta das preocupações religiosas que interferem

nos temas e na concretização das ações cênicas” (GOMES, 2010, p. 33).

Por seu término, que se apresenta praticamente isento de comicidade, O santo e a

porca diferencia-se tanto da obra de Plauto como da de Molière. Se em Plauto tudo terminava

bem, com o avarento optando por doar seu tesouro ao genro, da mesma forma que em

Molière, em que o avarento permanecia com seu dinheiro e inclusive com possibilidades de

somar ao seu patrimônio, em Suassuna, o avarento é punido mais severamente por seu vício,

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porque além de ficar sem seu dinheiro, também opta por ficar só. O único que lhe conforma

é a companhia de Santo Antonio.

Considerações finais

A título de considerações finais, devemos destacar que as peças brevemente

comentadas acima apresentam uma relação intertextual evidente e a leitura comparada delas

permite a ressignificação de cada uma, possibilitando também a percepção das modulações

que a personagem avarenta, como elemento oriundo do cômico, assumiu a partir da

perspectiva de Plauto, Molière e Suassuna.

Ao cotejarmos as características dos três avarentos, percebemos que eles se

constroem por processos semelhantes, entre os quais se destaca a sua oposição aos demais

personagens. Esses personagens, principalmente os filhos e escravos/servos/empregados, na

posição de certa submissão, utilizam-se basicamente do poder da linguagem para consolidar

a caracterização do avaro como tal. Nesse processo de embate, há a produção do cômico de

forma ambivalente, em decorrência do baixo corporal e da carnavalização.

Euclião, Harpagão e Euricão, embora se assemelhem pela avareza, são diversos

devido ao tipo de relações que possuem, às razões de seu vício cômico e ao final a que

chegam. O primeiro e o último aparentam sofrer, em diferentes escalas, em decorrência do

seu vício cômico. Já o segundo é um homem insensível. Assim, seguindo o caminho natural

da comédia, que conduz ao apaziguamento, é natural também que os personagens de Plauto

e de Suassuna sejam “libertados” do seu vício enquanto o de Molière permaneça em

segurança com os seus bens.

Ainda no que se refere à ambivalência cômica, verificamos que – embora Bakhtin

(1999) nos alerte para a tendência de prevalecer na literatura hodierna seu aspecto unilateral

– em nas três produções em análise se mantém a importância do riso promotor da correção,

bem como do riso alegre e festivo. Entendemos que isso ocorre, entre outras razões, porque

as peças são representativas de períodos artísticos em que se evidencia a força cômica, sendo

que foram escritas por comediógrafos intimamente ligados à tradição da cultura popular.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Tradução de

Yara Frateschi. 4 ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

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BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Tradução de Nathanael

C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

COSTA, Aída. Introdução. In: PLAUTO. Aulularia. São Paulo: Difusão Européia do Livro,

1967.

GOMES, Aline Aparecida de Souza. O Santo e a porca, de Ariano Suassuna: o imaginário

do sertão em nova cena. São Paulo: 2010. Disponível em:

<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=10780>. Acesso: 18

jul. 2011.

MOLIÈRE, J. B. P. O avarento. O senhor de Pourceaugnac. Tradução de António Manuel

Couto Viana. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

PLAUTO. Aulularia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca e O casamento suspeitoso. 3 ed. Rio de Janeiro:

José Olympio, 1979.

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SUMÁRIO

MONTAGEM CÊNICA CONCEBIDA A PARTIR DA POESIA RETRATO DE

CECÍLIA MEIRELES

Ana Carolina Conceição (UnB)1

Clarice da Silva Costa (UnB)2

Wanuza Marques (UnB)3

Resumo: O presente resumo descreve o processo da montagem cênica concebida pelos alunos do 7º ano, de

uma escola de ensino fundamental II, localizada no Cruzeiro/DF. A montagem dialoga com poesia, teatro

físico e gravação de áudio à partir do aparelho celular. Desde o início deste ano os estudantes vem aprendendo

técnicas de habilidades corporais expressivas baseadas no método pedagógico desenvolvido por Jacques Lecoq tendo como referência o livro O corpo poético – Uma Pedagogia da Criação Teatral. Encarregada de falar sobre

Cecília Meireles na feira cultural da escola, a turma resolveu montar uma cena à partir da poesia Retrato da

autora, utilizando as técnicas desenvolvidas em sala de aula. Sendo que os alunos utilizam máscaras completas

em cena, a fala é impossibilitada, para sanar esta dificuldade durante a apresentação, as palavras faladas são

narradas em off. Como resultado cênico, enquanto o expectador visualiza os estudantes em cena muda ouve

concomitantemente a poesia Retrato sobreposta com entrevistas cedidas por pessoas quanto ao pensamento

sobre o que é envelhecer que foram gravadas pelos estudantes em seus próprios celulares.

Palavras-chave: teatro-físico; poesia; máscaras; áudio montagem

Introdução

O presente trabalho descreve o processo de montagem cênica desenvolvido em uma

escola de ensino fundamental II, localizada no Cruzeiro/DF, numa turma de 7º ano. Pretende

refletir, à partir da descrição do processo, sobre as metodologias utilizadas na escola,

destacando primeiro, o trabalho corporal em sala de aula, segundo, o texto lírico como

motivador de criação de cenas e por último a utilização de recursos audiovisuais na

construção de uma dramaturgia.

A montagem de cena para apresentação a um público externo, não é principal

objetivo da disciplina teatro, porém devido à natureza desta é resultado comum ao final de

um processo. Dentre os variados campos do saber teatral, optamos por desenvolver, numa

turma específica, técnicas de habilidades expressivas corporais partindo do método

1 Graduanda em Artes Cênicas com habilitação em licenciatura na UnB Universidade de Brasília. aluna bolsista

do PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Incentivo à Docência [email protected] 2 Doutora em Literatura Brasileira com a Tese de Doutorado Teatro e Teleteatro: Aproximações Híbridas

(2011) pelo Instituto de Letras UnB Universidade de Brasília [email protected]

3 Professora da Fundação Educacional de Brasília, professora supervisora do PIBID, Programa Institucional

de Bolsas de Incentivo à Docência [email protected]

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pedagógico de Jacques Lecoq4, tendo como base seu livro O corpo poético – Uma pedagogia

da criação teatral.

Sendo assim, nossas aulas abordaram necessariamente histórias e gestos cotidianos,

que eram trazidos pelos alunos de forma que, com o ocultamento de suas faces, era preciso

exagerar ou tornar os movimentos corporais mais precisos para que se fizessem

compreender.

“o treinamento da expressão corporal com uso de máscaras expressivas e fundo

poético comum” (LECOQ,2010)

“A expressão corporal visa ativar a expressividade do ator, desenvolvendo

principalmente seus recursos vocais e gestuais, sua faculdade de improviso. Ela sensibiliza

os indivíduos para suas possibilidades motoras e emotivas, para seu esquema corporal ...”

(PAVIS, 1947)

Para aumentar o campo de referências para os estudantes, foram apresentados vídeos

de Charles Chaplin, Mr.Bean dentre outros para que compreendessem a cena muda, depois

no intuito de aproximar um referencial mais atual os alunos assistiram o filme, O mentiroso

com a atuação de Jim Carrey, tendo que observar sua ação corporal.

As máscaras foram confeccionadas em sala de aula, com papel pardo em formato de

sacolas, cada aluno desenhou a face da forma que desejava, olhos imensos lacrimejantes,

dentes coloridos, bigodes, rostos sem boca, surgiram rapidamente, mas na hora de

experimentar as máscaras os inconvenientes como o calor, a pouca visibilidade e o fato de

não se ouvir o que falavam surgiram como dificuldades que muitos relutaram à continuar.

A utilização da máscara se justificava anteriormente pelo fato de exigir dos alunos a

criatividade em cena sem se apelar para caretas faciais ao tentar expressar sentimentos, “

com a finalidade de demonstrar como a máscara e seu caráter podem ser transformados

graças à conduta geral imposta ao nosso corpo e à diferente gestualidade produzida” (FO,

2004) porém durante rodas de conversas aos finais da aula percebemos que os estudantes

além de desenvolverem a percepção de como uma simples mudança na postura ou no andar

interferia completamente na intenção de seu personagem, se sentiam mais confortáveis para

Jacques Lecoq, foi ator, mímico e professor de teatro. Partindo da experiência corporal que adquiriu como

esportista, interessou-se pelo corpo como instrumento da interpretação e expressão do ator, em 1956 fundou a Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq em Paris, França, onde testou várias metodologias, as quais

compartilhou grande parte no livro citado.

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a ação em cena porque estavam mascarados, apesar da reclamação constante quanto ao seu

uso.

O constante treino e a repetição das mesmas cenas alternadas, ora com uso da

máscara ora sem o uso desta e os colegas se assistindo, possibilitou a adesão total da turma,

e cada um, foi adaptando-se à máscara, alguns gostavam tanto que cada aula levavam uma

com a expressão diferentes, já outros sempre esqueciam ou perdiam suas máscaras, para

estes eu levava várias reservas a fim de não prejudicar o treinamento, por fim quando

incentivados a apresentar algo com o uso das máscaras todos foram bem receptivos e

colaboraram bastante.

Em julho de 2013, iniciaram os preparativos para a realização da EXPOCEF5, à

turma em questão, coube pesquisar a vida e obra de Cecília Meireles6. Na orientação deste

estudo os alunos foram solicitados a procurar em livros ou na própria internet tanto sua

biografia quanto suas poesias.

O teatro físico prioriza a ação à palavra, a imagem ao texto oral, objetivando maior

apropriação dos alunos quanto as poesias solicitamos a produção de desenhos para traduzir

em imagens o que eles entendiam ou sentiam quanto a leitura das poesias da autora, sendo

este o primeiro passo para posterior construção de cenas mudas.

Divididos em grupos os alunos foram solicitados a representar uma poesia à livre

escolha. Dos quatro grupos, dois apresentaram a poesia Retrato, um a poesia Leilão de

Jardim e outro Leveza7.

As apresentações foram feitas com as máscaras e muitos recorreram a mimos para

representar animais ou plantas, os grupos que representaram a poesia Retrato chamaram a

atenção por utilizar exercícios teatrais para exemplificar versos. Cito como exemplo o trecho

em que a autora diz, “em que espelho ficou perdida minha face?”, um dos grupos se apoiou

no espelhamento, jogo teatral onde em pares, um colega imita a ação do outro como se fosse

um espelho.

Em conjunto com a turma decidimos utilizar para montagem a poesia Retrato, pois

ela trazia elementos que conversavam literalmente com tudo que estávamos trabalhando ao

5 Evento realizado anualmente no colégio, o qual incentiva os alunos pesquisarem sobre um assunto ou pessoa

pela perspectiva da disciplina do professor representante da turma. 6 Poetisa e educadora carioca (1901-1964), autora de inúmeras obras, tem grande reconhecimento dentro da

literatura brasileira. Sua vida foi marcada por perdas e falecimento de pessoas próximas desde a infância o que

marca bastante o seu lirismo. 7 As poesias foram levadas pelos alunos, que utilizaram a internet pesquisando pelo site de busca

www.google.com.br

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longo de dois bimestres, um corpo que se altera, características bem definidas ( triste, calmo,

amargo, mortas), a palavra face, a oposição (eu não tinha...) os próprios alunos iam

apontando as semelhanças e se empolgando ao imaginar a cena em que eles buscavam as

faces deles perdidas e as achavam embaixo das máscaras, que eram seus rostos construídos.

Com base nas apresentações propostas em aulas anteriores, e também na

interpretação da própria poesia a composição da cena foi se delineando de uma forma

coreográfica, no sentindo em que como diz Silva:

“...coreografar é definir uma sequência de movimentos que transmite uma

configuração de expressão em movimento em determinado espaço cênico.” (SILVA, 2001)

O espaço cênico em questão foi o pátio da escola, e devido a configuração da cena

nos preparamos para apresentar na forma de arena8, tal como no teatro de rua.

As palavras acionadoras da composição foram envelhecimento, tristeza, face e

procura, a apresentação foi dividida em três partes, sendo:

“Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro/ Nem estes

olhos tão vazios, nem o lábio amargo...” início com a entrada de um grupo feliz e enérgico,

depois um grupo de temperamento comum e mecânico, e por final um grupo triste e

cabisbaixo quase se arrastando no chão.

Interessante notar, que como os alunos estão na faixa etária de 11 a 13 anos, a ideia

que eles tem da velhice é como se fosse realmente o fim da vida, eles remetiam ao clichê da

bengala e das mãos na coluna, os pés se arrastando, notando esta configuração corporal eu

solicitava que eles fossem envelhecendo aos poucos, lembrava que para uma criança de 2

anos eles já eram mais velhos, que lembrassem de seus pais ou avós, se estes agiam daquela

forma, alguns tentavam buscar outro corpo mas a maioria insistia nos clichês.

“Eu não tinha essas mãos sem forças tão paradas e frias e mortas. Eu não tinha este

coração que nem se mostra.” cada grupo ia parando de acordo com a ordem de entrada até

ficarem totalmente imóveis.

“Eu não dei por esta mudança tão simples, tão certa tão fácil em que espelho ficou

perdida minha face?”, neste momento os alunos em cena voltavam a se movimentar

procurando na plateia a sua “face” perdida, alguns integrantes faziam parte da plateia e

quando chamados colocavam suas máscaras e entravam na arena para servirem de “espelho”.

8 Formato de palco que a apresentação se dá no meio de um círculo e a plateia fica ao redor da cena.

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Após o espelhamento os alunos formavam um círculo, retiravam suas máscaras e as

queimavam.

Uma das preocupações dos alunos era que, como eles conheciam a poesia, eles

entendiam o que estavam fazendo, mas os outros, a plateia não entenderia nada, visando

sanar esta “dificuldade” uma aluna gravou a poesia no celular e propôs uma cena com a

narração in-off, vislumbrando demais possibilidades da utilização do aparelho celular as

professoras sugeriram que os alunos pesquisassem junto aos seus familiares o que eles

pensavam sobre o envelhecer, e que gravassem seus depoimentos., poucos alunos

colaboraram nesta etapa, mas o material recolhido bastou para fazermos uma áudio

montagem.

A áudio montagem, foi composta da seguinte forma: 1) música eletrônica9de ritmo

moderado, para não interferir na movimentação dos grupos que deviam se apresentar de

formas distintas; 2) depoimentos de várias pessoas com diferentes faixas etárias sobre como

viam o envelhecimento; 3) a poesia Retrato declamada; 4) mais depoimentos e 5) a mesma

música do início.

Com a áudio montagem os estudantes se sentiram mais seguros quanto ao que

estavam fazendo, foi notável o crescimento da cena quando fizeram o ensaio com a audição,

alguns ensaios eram realizados sem as máscaras para podermos avaliar o desenvolvimento

da ação corpórea, muitos alunos se perdiam quando não as utilizavam, o que me fez

questionar até quando é interessante seu uso e quando ela passa a virar “muleta”, tanto que

para o bimestre posterior, continuaremos com a proposta de teatro físico de Lecoq mas

utilizando a maquiagem como alternativa à mascara a fim de compararmos os progressos

dos alunos quanto a sua expressividade corporal.

No dia da apresentação, todos os alunos estavam presentes, ficaram bastante

ansiosos, alguns fizeram novas mascaras, a apresentação ocorreu da forma planejada com

exceção de uma aluna que não colocou a máscara conforme o combinado, ao ser questionada

quanto à esta atitude, declarou que sentiu vergonha de colocar a máscara na frente dos

colegas de outras turmas, porém muitos nem perceberam e ao final todos comemoraram.

Na aula seguinte, conversamos sobre todo o percurso para a realização da cena,

muitos reclamaram que tiveram tanto trabalho para dez minutos de apresentação e pronto

terminou, esta observação serviu para debatermos sobre a efemeridade das coisas, e questões

9 Intro do grupo The XX

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filosóficas quanto a velhice e os movimentos da vida foram abordados de forma interessada.

Ainda sobre a apresentação, comentaram que colegas de outras turmas não entenderam

muito bem o que eles fizeram mas que acharam legal, dois alunos que sempre demonstraram

interesse no processo falaram que se emocionaram ao colocar suas máscaras no fogo.

Os relatos dos alunos são de extrema importância para avaliarmos se o

desenvolvimento de competências e habilidades que propomos estão se dando de forma que

faça sentido para eles, acreditando que:

“É possível evidenciar a importância da narrativa, não só como veículo de uma

pesquisa acadêmica, mas também como instrumento formativo de sujeitos do conhecimento,

que se tornam autores de sua história, ao fazerem a narrativa de seus processos...”

E ainda:

“Uma das características da narrativa é propiciar espaço para a singularidade...

Podemos vivenciar os mesmos acontecimentos, mas os vemos (e sentimos) de maneiras

diferentes. Nossas narrativas do vivido são nossas experiências sobre os acontecimentos e

não os acontecimentos em si. Trata-se do significado que atribuímos ao vivido. Dessa

maneira, ao ouvir a história de alguém, podemos extrair significados diferentes dos que ela

mesma atribui.” (WARSCHAUER, 1993)

Considerações finais

A adaptação do método de Jacques Lecoq, para sala de aula mostrou-se eficiente

quanto à melhoria da expressão corporal dos alunos, a utilização das máscaras os obrigavam

a manter-se presentes e focados, além de incentivar a imaginação para solução de problemas

da cena que apresentavam-se e não tinham resolução através do recurso oral.

Conceber uma montagem teatral trazendo à cena os exercícios foi um resultado

tangível para os próprios estudantes, muitos admitiram que antes desta proposta não

entendiam bem o que estavam fazendo.

A poesia de Cecília Meireles, intercalada com os depoimentos gravados à partir do

celular, possibilitou uma composição criativa que sugeriu vários desdobramentos tanto para

os que participaram da montagem como para os que assistiram.

Mesmo sabendo não ser novidade a utilização de recursos literários para composição

de cenas, não posso deixar de ressaltar como foi notável a melhor apreensão e facilidade dos

alunos conceberem uma montagem à partir do texto poético escolhido. Desde as

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interpretações mais literais até as coreografias mais elaboradas, foi possível perceber o

desenvolvimento de cada um, em sua maioria, que a cada ensaio, cada vez mais se

apropriavam do sentido da poesia e da apresentação cênica.

Por fim, mesclar linguagens e tecnologias nada mais é do que se adaptar ao nosso

tempo, e para conseguir tal feito não é preciso recursos de alta tecnologia ou dispendiosos,

no caso da montagem descrita, bastou a gravação em celulares, a edição num computador

com um software gratuito e a reprodução do áudio numa caixa de som.

Referências

FO, Dario. Manual Mínimo do Ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.

LECOQ, Jacques. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Editora

Senac/Edições SESC SP, 2010.

MEIRELES, Cecília. Obras reunidas. Teresópolis: Editora Vozes, 1956.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora HUCITEC, 1947.

SILVA, Soraia Maria. Profetas em movimento. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo / Imprensa Oficial, 2001.

WARSCHAUER, Cecília. Roda e o Registro: uma parceria entre professor, alunos e

conhecimento. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

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SUMÁRIO

NORA: ROMPIMENTO OU TRANSGRESSÃO?

Vicentônio Regis do Nascimento Silva (UEL)1

Sonia Pascolati (UEL)2

Resumo: Uma das leituras de Casa de bonecas possibilita vislumbrar o percurso de construção do sujeito,

representado por Nora, protagonista da trama de Henrik Ibsen. O sujeito – constituído pela consciência e pela

faculdade de fazer – atinge a autonomia individual quando, enfrentando e quebrando as regras do campo, ousa

desautorizá-las ou invalidá-las, instituindo nova percepção – particular e coletiva – da realidade. A autonomia

e a individualidade pressupõem a identidade. Conceituando rompimento (ação consciente, pactuada, ajustada,

coordenada, multilateral ou unilateral, voltada ao coletivo ou ao público) e transgressão (ação consciente ou

inconsciente de desrespeito ou de ultraje, unilateral, vertical, prejudicial ao público ou ao coletivo), indaga-se:

Nora rompe ou transgride as regras sociais na construção do sujeito feminino?

Palavras-chave: Ibsen; sujeito; autonomia; submissão feminina.

Introdução Que pode uma criatura senão,

Entre criaturas, amar?

Amar e esquecer,

Amar e malamar,

Amar, desamar, amar?

Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

(Carlos Drummond de Andrade – Amar)

O século XX já passara pelas profundas transformações sociais, culturais, políticas

e econômicas iniciadas ou consolidadas no anterior quando o poeta mineiro, cuja primeira

estrofe do poema transformamos em epígrafe, questionava a inexorabilidade do amor. Carlos

Drummond de Andrade não estava inteiramente incorreto ao se indagar que outras

finalidades o homem – ou a mulher – teria na vida, enquanto travestido no corpo e no espírito

de uma “criatura”, a não ser amar. Fragmentado por Platão em dezenas de espécies, o amor

se transforma tanto em destino de felicidade quanto de infelicidade, considerando o ponto

de vista de quem o emprega, de quem o aceita e de quem o modifica.

1 Doutorando em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) – [email protected] 2 Professora Doutora do departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) –

[email protected]

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O amor paterno, geralmente envolto em boas intenções e destinado à proteção dos

filhos em todas as idades, nem sempre é bem recebido pelos destinatários que, a exemplo de

Kafka, de maneira mediata ou imediata, assimilam-no na condição de grades – não as que

protegem, porém as que os privam da liberdade. Protagonista de Casa de bonecas, peça de

Ibsen escrita em 1879, Nora vive em um confortável lar cujo chefe, depois de anos de

complicações financeiras, está na iminência de ocupar cargo de diretor bancário. A euforia

pela nova ocupação profissional e a possibilidade de oportunidades nos círculos sociais

encontra obstáculos quando o advogado Krogstad a procura: em retribuição ao auxílio em

empréstimo irregular que ela tomou no banco – o mesmo em que o marido trabalhará, ele

exige a manutenção de seu cargo para se manter em silêncio. Entre idas e vindas, a peça se

encerra com a leitura da denúncia da carta jogada na caixa do correio. O marido a amaldiçoa

reiteradamente, comparando o comportamento vil – falsificara uma assinatura – ao do pai.

Entre as ameaças, a possibilidade de afastá-la dos filhos e a reclusão – praticamente

isolamento – social. Em posse dos documentos incriminadores, entregues por mensageiro, o

marido retrata-se, ensaiando a volta à normalidade, prontamente rechaçada por Nora que,

sem grandes tergiversações, apronta as malas, abre mão da chantagem em torno dos filhos,

descarta a ameaça de repressão social, a respeitabilidade da família e o conforto da casa para,

criando nova realidade, em que se livra da casa de bonecas em que vivera com o pai,

posteriormente transmitida ao marido, avançar as portas rumo ao desconhecido –

desconhecida também a união que não se transformou em casamento.

Diferentemente do comportamento restrito às normas paternas anteriormente

instauradas e permanentemente exercidas ao longo de As três irmãs – peça de Tchekhov

concluída em 1900 e lançada em 1901 –, Nora redimensiona as regras de permissão e de

privação, estabelecendo novo contexto grupal: a dominação masculina sofre retrações, mas

não necessariamente retrocessos.

A formação da consciência

Se considerada gradativa a formação da consciência, Nora construiu-a aos poucos,

coletando, ao correr dos anos, elementos que pudessem formar sua convicção individual,

aprendendo a distinguir cidadão (aquele que tem função social ou grupal) de indivíduo

(quem busca verdades pessoais independentemente de questões alheias). A preocupação de

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Ibsen reside na construção da consciência individual (aproximando-se menos do cidadão do

que do indivíduo).

Descontente com tudo, salvo um novo começo, IBSEN considera impossível

identificar-se com qualquer dos partidos, sistemas ou programas existentes, ou

aliar-se sequer com qualquer dos princípios revolucionários vigentes. Em resumo,

a sua revolta é tão individualista que transcende inteiramente o domínio político.

(...) O cidadão é o homem domesticado, o agente das instituições vigentes, que identifica suas necessidades com as da comunidade (...). O indivíduo é o homem

revolucionário, superior a todos os imperativos sociais, políticos ou morais

condicionantes, que encontra sua finalidade na busca de uma verdade pessoal (...).

No espírito de IBSEN, esses dois tipos são como o escravo e o amo, tão

fundamentalmente opostos que a vitória para um acarreta inevitavelmente a

derrota do outro, pelo que os direitos do cidadão são sempre obtidos à custa da

liberdade do indivíduo. Em seu drama, talvez IBSEN possua uma atitude

sumamente ambígua em relação aos seus heróis rebeldes, mas, nesta questão, é

impossível por em dúvida de que lado ele pessoalmente se encontra: a auto-

realização é o valor supremo, e se isso conflitar com o bem-estar público, então o

bem-estar público pode ir para o inferno. (BRUSTEIN, 1967, p. 52-53)

Construída a consciência individual, à constituição do sujeito falta a faculdade de

fazer. Nora reúne as duas características essenciais do sujeito, consolidando-as no momento

em que, consciente de sua vida de fantasias afastada da realidade, toma a iniciativa das

mudanças, rompendo limites instituídos unilateralmente e aceitos imperceptivelmente. O

jogo de instituições unilaterais e aceitações imperceptíveis são os mecanismos por meio dos

quais se instala a dominação masculina manuseada, nas últimas décadas, através de artifícios

simbólicos.

A dominação masculina

Pierre Bourdieu já se notabilizara tanto no campo sociológico quanto no

historiográfico ao se debruçar sobre as relações simbólicas de poder quando, interessando-

se pelas relações específicas da mulher, constatou, em poucas palavras, a dominação

masculina não mais exclusivamente pela coação física, mas pelo exercício simbólico da

força, manifestado por símbolos, gestos, palavras, olhares, silêncios, costumes, crenças,

sistemas de valores propositalmente diferenciados e prejudiciais à mulher.

A dominação masculina encontra, assim, reunidas todas as condições de seu pleno

exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na

objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas,

baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução

biológica e social, que confere aos homens a melhor parte, bem como nos

esquemas imanentes a todos os habitus: moldados por tais condições, portanto objetivamente concordes, eles funcionam como matrizes das percepções, dos

pensamentos e das ações de todos os membros da sociedade, como transcendentais

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históricos que, sendo universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como

transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da reprodução

biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade do senso comum,

visto como senso prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias

mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em

que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação

dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem

simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso,

atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se

pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que

ela sofre. (BOURDIEU, 2010, p. 45)

A dominação masculina tem por finalidade obstar a ascensão da mulher nos diversos

campos – sociais, políticos, educacionais, econômicos, culturais, religiosos etc – por meio

de convenções esdruxulamente estabelecidas. Duas maneiras de fugir dessas convenções: ou

a transgressão, ou a ruptura. A transgressão configura-se necessariamente pelo desrespeito

às regras simbólicas previamente estabelecidas, retornando o indivíduo, na condição de

transgressor, ao status quo. Já a ruptura conceitua-se pelo respeito às regras simbólicas

previamente estabelecidas, invalidando-as e, sucessivamente, escolhendo-se novas

diretrizes, livrando o indivíduo do status quo.

Se compararmos o comportamento de Nora ao das três irmãs de Tchekhov,

observaremos movimentos de ruptura e de continuidade das convenções estabelecidas:

As três irmãs Casa de bonecas

Dominação masculina: exercida

inicialmente pelo pai e, posteriormente,

pelo filho

Dominação masculina: exercida

inicialmente pelo pai e, posteriormente,

pelo marido

Transmissão da dominação: herança

simbólica expressa (o pai designa o filho o

responsável pela família e, portanto, líder a

ser respeitado e seguido)

Transmissão da dominação: herança

simbólica implícita (o pai transfere, por

gestos e ações, ao genro a liderança sobre a

filha)

Pai e irmão: frustram-se as expectativas

sociais, financeiras e profissionais do

irmão, previstas e propagadas pelo pai.

Mesmo na iminência da perda da casa, as

irmãs aceitam as jogatinas e o

comportamento perdulário do irmão.

Pai e marido: o marido realiza-se

profissional e financeiramente

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Continuidade: embora aparentemente

insatisfeitas com o comportamento do

irmão e da cunhada, as irmãs submetem-se,

dando continuidade à dominação

masculina simbolicamente instituída pelo

pai. Não se constituem sujeitos.

Ruptura: apesar de financeiramente

estável, Nora revolta-se com a ausência de

compreensão do marido por atos

praticados em benefício de sua saúde e,

sem delongas, abandona a casa. Rompe

com a estrutura, constituindo-se sujeito

(indivíduo que une consciência à faculdade

de fazer).

A diferença entre Nora e as três irmãs consagra-se no último quadro – continuidade

e ruptura – quando se estabelece o sujeito: enquanto as três irmãs tomam consciência dos

problemas causados ao longo dos anos e, no último ato, quando adentram os campos da

velhice, sem tomarem atitudes que impeçam os dissabores – especialmente os financeiros,

Nora toma consciência do mundo de fantasia em que se fechou e ousa sair de casa

enfrentando o marido aturdido.

A conscientização de Nora (consciência somada à faculdade de fazer) cria nova

realidade em que se erige a autonomia do sujeito calcada no rompimento das normas

simbólicas. Rompidas as normas simbólicas, estabelece-se nova convenção por meio da qual

o comportamento desviante provoca distúrbios na alteridade (ato em si e reação do outro),

concedendo ao sujeito nova realidade – nova em que, mesmo em lugares e contextos

amplamente conhecidos, desconhecidos tornam-se os trajetos e os destinos. Constituída em

sujeito, Nora rompe o conjunto de regras simbólicas na nova realidade percebida não apenas

por ela (ato em si), mas conhecida e reconhecida pelo marido (reação do outro) e, embora a

peça não comente, pela sociedade.

Já as três irmãs distanciam-se da autonomia: elas não rompem, apenas transgridem

as regras, desrespeitando a convenção sem efeitos pessoais ou grupais, posteriores ou

imediatos, retornando, sem grandes sobressaltos, à velha e permanente realidade, simulacro

de que não conseguem se libertar nem parecem dispostas a modificar.

Considerações finais

Parafraseando a epígrafe de Carlos Drummond de Andrade, o que desejaria uma

criatura senão amar? O que desejaria um pai senão a obediência da filha? O que desejaria a

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filha além do reconhecimento e do respaldo paternos? Obediência, reconhecimento e

respaldo são extensões do amor, ora causando felicidade em quem o distribui, ora resultando

em infelicidade de quem o recebe. A constituição do sujeito – recriação de regras simbólicas

– não acontece pacificamente assim como nenhuma transformação (e, abram-se parênteses,

transformação não é sinônimo de mudança) ocorre sem enfrentamentos, confrontos, revoltas.

Se, por um lado, o amor pode libertar, por outro, três de suas espécies – o paterno, o

erótico e o fraterno – possibilitam o aprisionamento abrindo caminhos à dominação

simbólica. O que pode desejar uma criatura senão amar? Pode, depois de se conscientizar,

utilizar sua faculdade de ação e, sem abandonar o amor, mudar de espécie, saindo das

sombras da prisão e andando rumo à luz da liberdade – nem sempre pacífica – do sujeito

inserido em nova realidade, em novo contexto, em novas regras simbólicas.

Referências

BALL, David. Para trás e para frente. São Paulo: Perspectiva, 2011.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

BRUSTEIN, Robert. Anton Checov. In: _____. O teatro de protesto. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1967, p. 156-201.

_____. Henrik Ibsen. In: _____. O teatro de protesto. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967,

p. 51-102.

IBSEN, Henrik. Casa de bonecas. Mairiporã: Veredas, 2012.

SZONDI, Peter. Ibsen. In: _____. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac&Naify,

2001, p. 37-46.

_____. Tchékhov. In: _____. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac&Naify, 2001,

p. 46-53.

TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. In: _____. As três irmãs/Contos. São Paulo: Abril

Cultural, 1979, p. 7-150.

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SUMÁRIO

O “AUTO DA CATINGUEIRA”: TRANSVERSALIDADES DE UM LUGAR

TEATRAL NO SERTÃO

Eduardo Cavalcanti Bastos (UFBA)1

Resumo: A obra “Auto da Catingueira” marca-se, inicialmente, pelo modo catártico e experimental de criação

e registro fonográfico. Esta obra rastreia certas memórias incutidas na cultura de homens bravios do Sertão e

seus grandes feitos. Em seu tema principal está a performance do desafio da Cantoria Nordestina, e é nesta

modalidade poético-musical que reside sua principal inspiração. Porém, nota-se que a obra adaptada para o

espaço cênico se depara com a problemática desta transposição: do registro inicial cancioneiro e fonográfico

para finalmente as montagens como peça musical – ópera -, conjuga-se um inesperado e furtivo caminho de

teatralidade. Do lugar teatral ao espaço cênico, Elomar e o “Auto da Catingueira”, autor e obra, fusionados na

mesma ambiência, ocupam vias transversais de releituras de uma obra-paisagem que perpassa o artista e a

afirma num complexo caminho de recriação.

Palavras-chave: Elomar Figueira Mello; cantadores; Auto da Catingueira; sertão.

Introdução

A partir do acervo discográfico de Elomar se revelam criações e produções na

Cantoria cujas análises são imprescindíveis para o estudo da constituição espetacular deste

acontecimento artístico. Essas produções inauguram conjunto performático composto pelos

três novos trovadores: Dércio Marques, Xangai e Elomar. Essa formação conjugada por obras

e espetáculos, cujo centro é formado por partituras e subpartituras2 – texto e subtexto –

(PAVIS, 2005, p. 90), de cada um dos três, possui características adequadas para imprimir e

nortear produções espetaculares dentro da Cantoria. A trajetória de cada um – o transir –

monta a sinergia necessária para convergência de vários signos visíveis e audíveis (ibid.,

2005, p. 88) entre si, sobre os quais diversas tipologias culturais e experiências pessoais com

outras culturas justificam a coexistência da tríade performática e musical.

Os fatores que tangíveis e intangíveis de união entre Elomar, Dércio e Xangai, ao que

parece, se marcam pela confluência de interesses e projetos criativos para a produção

espetacular de algumas de obras (Figura 01). Sendo assim, a partir de meados da década de

1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC). E-mail:

[email protected] 2 Conceitos pertencentes às noções anteriormente discutidas por Stanislávski baseado no teatro psicológico do

texto (PAVIS, 2005).

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70 até meados da década de 80, a tríade formada por eles assinou apresentações e produções

musicais, elaborando o desenho performático da Cantoria, para, em 1983, atingir o ápice do

conjunto com a gravação do “Auto da Catingueira”, cuja autoria é de Elomar Figueira Mello.

Figura 01 - Elomar, Dércio Marques, Helena Rodrigues e Xangai ao fundo – 1979.

Apresentação em Vitória da Conquista/Ba. Foto do Acervo pessoal de Dércio Marques.

A obra “Auto da Catingueira” marca-se, inicialmente, pelo modo catártico e

experimental de criação e registro fonográfico. Em um esforço por aguçar a experiência

criativa e interpretativa do “Auto da Catingueira”, deslocaram-se para um ambiente atípico,

em relação a um studio de gravação, ou de um espaço cênico, os três cantadores e mais uma

equipe de músicos, técnicos e produtores. Reuniram-se, então, artistas e produtores, na

Fazenda Casa dos Carneiros, de propriedade de Elomar, situada na região de Gameleira, a 19

km de Vitória da Conquista.

A Casa dos Carneiros é celebrada como um dos portais para a representação de toda

cultura sertaneza tematizada no “Auto da Catingueira”, é, portanto, um local mítico que

respira a confecção de toda esta obra. O “Auto da Catingueira” é uma peça musical cuja

concepção teve circunstância complexa: foram 21 anos entre a composição e a gravação. No

entanto, segundo Elomar, do momento da gênese até a conclusão foram cerca de 10 anos.

A obra conta a história de Dassanta, mulher cabocla de considerável beleza casada

com o tropeiro Chico das Chagas. No enredo, o casal vive harmoniosamente e em

cumplicidade, apesar dos desafios do sertão. Certo dia, em uma festa de interior – quermesse

– um Cantador Nordestino corteja Dassanta. Chico das Chagas, marido da cabocla, indignado

propõe ao outro cantador um desafio. O embate se desdobra sob variadas modalidades

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poéticas do desafio até culminar na forma de Parcelas em que a peleja torna-se ainda mais

perigosa e violenta, ocorrendo, no final, mortes trágicas.

O “Auto da Catingueira” é uma tragédia. Na idealização do cenário e esforço por

impor veracidade à composição cênica, Elomar, em toda obra, utiliza o dialeto sertanez. Essa

afirmação leva em conta que este dialeto é constituído através de uma versão arcaica a partir

das referências lingüísticas e culturais do autor (SIMÕES, 2006, p. 48), cuja predominância

do dialeto catingueiro (GUERREIRO, 2005, p. 28) potencializa a originalidade temática

ambientada no sertão baiano.

A obra é composta de seis partes: o prólogo ou “Bespa” 3 e mais cinco atos, definidos

por Elomar como “Cantos”, assim denominados: “Da catingueira, Dos labutos, Das visage e

das latumia, Do pidido e Das violas da morte”.

No primeiro ato – “Da Catingueira” –, o narrador apresenta a genealogia de Dassanta,

o nascimento em meio às dificuldades da pobreza, o amadurecimento, a construção mítica de

mulher poderosa e fatal e culmina a morte insurrecta. Essa caracterização evoca uma

representatividade cujo propósito seja, talvez, de levar as audiências à catarse (SIMÕES,

2006, p. 48), como ocorre geralmente na forma das tragédias. No segundo ato – “Dos labutos”

– apresenta o cotidiano de Dassanta em meio aos dramas do sertão, trabalho e miséria,

revelando o encontro entre ela e Chico das Chagas. O terceiro ato – “Das Visage e das

Latumia” – é concebido através da “Tirana da Pastora”, cujo teor serve para evidenciar

aspectos existenciais de Dassanta: a afetividade; as frustrações; as superstições e a projeção

arquetípica de mulher-fada, envolta numa teia de lirismo e mitologias. No quarto ato – “Do

Pidido” – Dassanta abandona a aura de elevação e revela sua inteireza feminina, susceptível

e ornamentada por adereços materiais do universo cultural em que está inserida. O ato quinto

– “Das violas da morte” – é o desfecho da tragédia: o rompante do desafio entre Chico das

Chagas e o Cantador Nordestino, ambos buscam suplantar o adversário com os motes do

embuste e terminam por se tornarem dueladores que finalizam o litígio lírico, substituindo-o

pelo litígio físico, representado na troca dos instrumentos musicais pelas facas.

1. O Libretto4 de uma vida catingueira

3 Vésperas: preparativos que antecedem um evento (SIMÕES, 2006).

4 O Libretto do “Auto” é um produto gráfico produzido em 1984. Constitui um acervo raro que não está

disponível para venda em estabelecimentos comerciais. Deste Libretto, apenas foi produzido uma única edição.

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A história contada pelo “Auto da Catingueira” narra o universo de um povo dividido

em povoados, com suas culturas entrecruzadas. A busca pela hegemonia, contada na disputa

entre os cantadores do “Auto”, retrata um ideal colonialista do mundo, imbuído em

desagregar do outro suas posses ou o que existir de maior valor. O “Auto” rastreia, portanto,

certas memórias incutidas na cultura de homens bravios do sertão e seus grandes feitos. Lida

com posições constituídas no jogo do desafio da Cantoria Nordestina. É justamente nesta

modalidade poética que reside sua principal inspiração. Porém, nota-se que funde alguns dos

estilos musicais mencionados com outras formas da canção, como por exemplo, a canção

pastoral e o canto lírico, produzindo um conjunto poético-musical singular5.

A obra, espontaneamente, apresenta o autor e seu lugar teatral, com todas as

vicissitudes sertanejas; faz um apanhado sobre seu idealismo cotidiano inserido na cultura da

região nordestina do sudoeste baiano, permeado pela caatinga. Nesse sentido, Elomar monta

uma composição que reflete a própria vida, através de cenários compostos nas feiras típicas

do interior, onde tanto artefatos materiais de uso comum – pentes, águas de cheiro, trancelins

– e especiarias são facilmente encontrados, quanto elementos simbólicos como visagens,

aparições figuradas nas lendas da Caipora, das Almas Penadas, além de outros textos

arraigados na tradição oral brasileira a exemplo de versões do romanceiro ibérico, como o

ciclo do Cego Errante, personagem presente em algumas de suas canções.

No momento da gravação, quando foi “recuperado”, há oito anos, o “Auto”

encontrava-se esquecido (MELLO, 1984b, p. 07) em anotações espalhadas pelos recônditos

da Casa dos Carneiros. A partir daí, Elomar e os produtores6, músicos7 e cronistas8

Alguns poucos exemplares podem ser, até esta data, encontrados com o autor ou em algumas bibliotecas públicas, tais como o Centro de Estudos em Literatura Popular na Escola de Letras da Universidade Federal da

Bahia. O exemplar utilizado para esta pesquisa foi gentilmente cedido pela pesquisadora Simone Guerreiro. 5 Essa variação pode ser encontrada nas canções “Desafio” – trecho interpretador pelo Cantador do Nordeste

-: “Acho qui já tá na hora de fazê a lôvação/ dos sinhô e das senhora/ qui se encontra no salão” (MELLO,

1983); e na “Tirana da Pastora”, respectivamente. 6 Carlos Pita, Antônio Carlos Limongi e Luiz Carlos Henrique (Salvador); Albino Henriques (Rio de Janeiro);

Waldemar Gertner e Geraldo Vieira (São Paulo). 7 Marcelo Bernardes – flauta transversal, flauta de taquara, Báia, Borêta, Sax Tenor e Clarineta; Jacques

Morelenbaum – violoncelo; Andréa Daltro – canto; Xangai – voz e violão; Gutemberg Vieira, Júlio Oliveira,

Amélia, Cláudia, Rita, Marinalva, Duvije – coro; Dércio Marques – violas. 8 Ernani Maurílio e Adelina Renault.

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empenharam-se em refazer o trajeto da história e organizá-la para a primeira produção

fonográfica9.

O “Auto da Catingueira”, embora seja uma obra cujo conteúdo temático pertença a

uma referência mais antiga da cultura sertaneza – decorrente entre o século XVIII10 até

meados do século XX –, tem componentes atuais que residem no cancioneiro da Cantoria,

inclusive na prática cotidiana de seus artistas. Os atores desse acontecimento revestem-se de

ideais telúricos e orientam as buscas poéticas do ambiente sertanez elomariano. Não apenas

Elomar é sinal vívido da cultura sertaneza imbricada nesta ópera, mas Xangai e Dércio

também o são. Coparticipantes pertencem ao mesmo cenário ideológico e cultural de Elomar,

no qual sensações criativas rendem força e expressividade à interpretação do difícil texto11

do “Auto”:

Há nele [no “Auto”] um referencial telúrico imenso; ele é um compromisso com

a vida, embora, fale permanentemente na morte; é um compromisso com a cultura

catingueira (...) As fronteiras do Auto são as fronteiras culturais do Sertão da

Ressaca, Sudoeste da Bahia, a partir do Mato-Cipó. Contudo, essas fronteiras aí

não terminam, elas se alargam no grande mosaico cultural e humano que é o

Nordeste, para se projetar como um Canto Latino Americano, parte integrante de

um Canto Geral do Homem, da Terra e das Coisas do Eterno. (MELLO, 1984b,

p. 07).

O personagem interpretado por Elomar, na gravação original do “Auto” é, segundo

ele, o seu preferido. Tal personagem é o narrador, um cego cantador de feira, cronista que

libera a narrativa pelas memórias esparsas (ibid., 1984b, p. 07) colecionadas por meio dos

cantadores guardados na memória da infância12 de Elomar.

O apanhado histórico e temático do “Auto da Catingueira” está inscrito num campo

fenomenológico, isto é, no campo das essências e suas definições, onde se busca a

compreensão humana a partir de sua facticidade (PONTY, 2006, 01). Ou seja, o desenrolar

criativo e a construção da obra compõem, num apanhado de essências, experiências

constituídas do relato do espaço, tempo e mundo vivido por Elomar. É uma tentativa direta

9 Gravado em Nágara de 2 canais, mixagem direta, sem play-back, usando pilhas no gravador e baterias de 12

volts na mesa, nos estúdios da sala-de-visitas da Casa dos Carneiros, Gameleira – município de Vitória da

Conquista-Ba (MELLO, 1984b). 10 O período marcado pelo manejo do gado e do ouro em substituição à economia dos engenhos. Um tempo

que se afirma a cultura vaqueira e dos tropeiros no eixo que vai do Nordeste até o Brasil Central e conforma

um modo de vida centrado no pastoreio, no desbravamento, mecenato, na organização familiar, estruturas de

poder, culinária, religiosidade, sistemas de castas, etc (RIBEIRO, 2006). 11 Em sua grande parte, o texto do “Auto” é dialetal, sendo sua execução de difícil articulação e compreensão. 12 Zé Guelê, Zé Crau, João de Carrim, João Serradô e outros tantos cantadores viventes no Sudoeste da Bahia

(MELLO, 1984b)

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da experiência do artista tal como ela é sem apelos ou referências à sua gênese psicológica e

explicações causais que outros conhecimentos possam oferecer. No próprio autor se encontra

a unidade da fenomenologia13 e o seu melhor sentido. Nesse contexto, Elomar é uma fonte

originária, sua experiência não provém de seus antecedentes, do seu ambiente físico e social,

ela caminha em direção a eles e os sustenta.

Elomar e a obra “Auto da Catingueira” fundem-se na mesma ambiência. A paisagem

perpassa o artista. Ele, sendo como é, produz de acordo com o que vive e descreve, não está

nas mãos da cultura sertaneza, mas com ela articula e trabalha pela sua manutenção. Exemplo

disso é o áudio da gravação, registrado com interseções dos elementos sonoros de cabras,

galos e chocalhos do gado, misturados aos cânticos impostados dos cantadores e o canto

lamurioso da personagem Dassanta. Os sons do terreiro da roça estão evidentes,

propositadamente, nas gravações, no esforço sincero por deixar o registro mais autêntico do

universo em que está inserida a temática proposta. Nesse grande conjunto se evidencia o

esforço por construir numa obra performática a marca teatral de seu cotidiano.

No “Auto”, o autor deixa extravasar suas angústias frente a um mundo pautado,

segundo visão própria, por dores e sofrimentos causados pelo desconforto dos processos

civilizatórios urbanos, e pelas disputas travadas na desigualdade. É um texto em tempo real,

afinado com um artista que vive no ideal sertânico do que escreve, numa dimensão

itempestiva. Os escritos do “Auto” são relatos da consciência do autor, do seu tempo, arte e

ofícios.

2. Paisagens, cenas e sujeitos do “Auto da Catingueira”

O auto é um estilo dramatúrgico bem conhecido no Brasil. Ariano Suassuna, como

autor contemporâneo, reaviva esta modalidade dramática com o “Auto da Compadecida”,

Luís de Sttau Monteiro faz o “Auto da Barca do Motor Fora da Borda” e João Cabral de

Mello Neto o “Auto do Frade” (GUERREIRO, 2005, p. 130). Na definição de Elomar o

“Auto da Catingueira” “é uma ópera sertânica com estrutura de um auto da Idade Média.

Não tanto pelo formato, bem mais pelo assunto: os autos medievais tratavam dos santos,

suas vidas e seus martírios” (ibid., 2005, p. 130). Para Elomar, a tipologia de auto, em

13 O problema é compreender estas relações singulares que se tecem entre as partes da paisagem ou entre a

paisagem e mim enquanto sujeito encarnado, e pelas quais um objeto percebido pode concentrar em si toda

uma cena, ou tornar-se a imago de todo um segmento de vida (PONTY, 2006).

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detrimento de ópera, é decorrente da necessidade de distanciar-se do modelo europeu

generalizado e aproximar-se de maneira mais estreita apenas das culturas e herança ibérica,

estando esta última permeada pela presença dos mouros e árabes.

O “Auto da Catingueira” é um projeto cênico-musical. Trata-se de uma ópera

representada por vozes que trazem em seus timbres características específicas e possuem

compromisso com a cultura que identificam.

A peça começa com o Cego Cantador que entoa o cântico da “Bespa”. Na gravação

de 1983, Elomar é o intérprete deste personagem. A “Bespa” é uma composição introdutória,

espécie de canto de chegada, que invoca os temas (MELLO, 1984b, p.14) e a atenção dos

circunstantes. Há neste momento uma oferenda da cantoria ao plano místico das crenças,

geralmente a Deus e aos Santos, em que se busca benção para instalação da mesma.

Sinhores, dono da casa

O Cantadô pede licença

Pra puxá a viola rasa

Aqui na vossa presença

Pras coisa qui eu fô cantano

Assunta imploro atenção

Iantes porém eu peço

A Nosso Sinhô a benção (...) Pois sem Ele a idea é pensa pru cantá

E pru tocá é mensa à mão

Pra todos qui istão me ovino

Istendo a invocação

Sinhô me seja valido

Inquanto eu tive cantano

(MELLO, 1984b, p. 14).

A “Bespa” trata-se ainda de uma memória despertada do próprio autor através de

contações de histórias oriundas da infância vivida no São Joaquim, localidade da região

conquistense. Elomar traz ainda algo inventivo distribuído na geografia e personagens

imaginários. Faz, na “Bespa”, a cronologia da história, em que relatos de contações sobre a

trajetória de Dassanta se emendam a memórias transmitidas pela oralidade dos viventes

locais. É um aspecto elegante, uma deferência14 da contação de histórias do cantador, na qual

se propõe despertar a atenção da audiência para o que será narrado:

Foi lá nas banda do Brejo

Muito bem longe daqui

14 O poeta-cantador sabe que suas audiências não têm um compromisso com o entendimento das variantes

lingüísticas que preenchem o conteúdo dialetal dos textos. Neste caso, a narrativa da “Bespa”. O narrador se

compromete em “forrar” o terreno para que o público entenda/perceba o que será contado, muitas vezes

explicando todo conteúdo da canção. Embora tal característica ressoe como uma formalidade para o gênero

poético-musical, na verdade constitui uma tipologia do estilo, semelhante a um exórdio.

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Qui essas coisa se deu Num tempo qui num vivi

Nas terra qui meu avô

Herdô de meu bisavô e pai seu

Dindinha contô cuan meu avô morreu (...)

E hoje eu canto para os filhos meus

E eles amanhã para os filhinhos seus (...)

Dindinha contô pra mim

Viveu Dassanta a Fulô

Filha de um cantadô

Anjos Alvos Sinhorim

(MELLO, 1984b, p. 15).

Ao que parece, a apropriação desse temário de transmutação do humano para uma

criatura híbrida homem-pássaro, acompanha o mito universal de renovação. As Àjés são

entidades do Candomblé temidas entre os Iorubas, dotada de variadas denominações para

ser invocada ou saudada é conhecida popularmente como Osorongá, terrível bruxa que se

transforma num pássaro homônimo para romper a escuridão da noite com grito assustador.

As Íyámi Òsòróngà – Senhora dos Pássaros da Noite – compõem na religiosidade Iorubá

uma entidade feminina que deve ser considerada com exímio respeito face aos perigos de

suas represálias15, algo do rastro das tragédias de Dassanta, que também por onde passava

desandava o destino dos homens.

Para a Jaçanã Pomba-fulô, este Ente, recuperado por Elomar e nominada Passo

Japiassoca Assú (Figura 02) - está centrado na presença de antigas lendas indígenas, como

na obra musical “A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo” composta pelo cantador baiano

Carlos Pita e pela poetisa Myrian Fraga, em 1983. Nesta história poético-musical

encontramos mais uma vez a presença dessa metamorfose humano-animal. Os poemas da

história trazem uma das muitas variantes do mito indígena da descoberta do fogo em que

“um jovem guerreiro foi transformado em pássaro para ir ao céu roubar as chamas do palácio

do sol” (FRAGA; PITA, 1983, n.p.). Ao retornar do sol, o jovem tinha o seu rosto calcinado16

pelas chamas e usava uma máscara “disforme” que espantava a todos. O pajé então

15 Disponível em http://religioesafroentrevistas.wordpress.com/iyami-osoronga-a-senhora-dos-passaros-da-

noite/ (Acessado em 08/07/2013). 16 Cicatrizes (Myrian Fraga e Carlos Pita)/ A face calcinada,/ Ó desespero/ Do amargo desengano./ A alegria

se foi./ Restou-me o canto,/ Derradeiro refúgio/ Último quarto/ Da obscura morada./ Restou o canto/ Ao

pássaro,/ Restou o canto,/ O abecedário,/ A palavra;/ Inventário do homem./ Sobrou o que sobrou/ O estilete

na carne,/ Sobrou o que sobrou,/ O louco intérprete/ Da alma de ninguém/ Do coração de tudo./ Hoje o homem

é a sombra/ Do pássaro, Hoje o homem é o canto vivo/ Da ramagem/ A lembrança de fundas cicatrizes

(FRAGA; PITA, 1983).

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intercedeu por um encantamento transformando-o em pássaro, chamado Japu ou Japuaçu.

Também é frequente no acontecimento de cantadores essa evocação poética do lendário

pássaro num sentido libertário para o homem, um veículo de passagem para atingir desejos

e ideais, como pode ser observado na canção “Pavão Misterioso” de Ednardo, canção

homônima de um dos mais afamados contos da literatura de cordel.

Figura 02 – Jaçanã Pomba-fulô (Passo Japiassoca Assú) – Ilustração de Juarez Paraíso – 1983

Elomar, na tradição de histórias e referências temáticas do “Auto da Catingueira”,

acredita – assim como os catingueiros – que a Caatinga é uma terra que Deus batizou. A

Catingueira é, portanto, um lugar intransponível, situada numa esfera geográfica onde as

fronteiras foram perdidas, local distante, profundo, “terra de ninguém onde o mundo é

sempre pra lá, bem pra lá” (MELLO, 1984b, p.18). Um espaço atemporal aberto a refúgios

dos perseguidos, lugar de descanso. Dessa maneira, o autor procura não aludir a cangaceiros

e jagunços. Pois estes trazem a perturbação à terra, são proxenetas da desgraça. Embora no

desenrolar da trama surja um personagem que desafia essa circunstância: o Cantador do

Nordeste. Elomar não simpatiza com os arquétipos do cangaceiro, nem com as apologias

feitas em tornos destes, talvez por isso esta seja a única esfera temalógica sertaneza que não

faça parte da narrativa do “Auto”. Ela nega veemente a participação do cangaço, um dos

símbolos mais vistosos do cavaleiresco histórico catingueiro, em sua poética.

Considerações Finais

O “Auto da Catingueira” é uma produção norteadora para o momento da Cantoria,

além de ter congregado vários atores em sua produção. Outros grupos de artistas foram

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inspirados e, o são ainda hoje, pelas características imagéticas, de texto e música do projeto,

mas também pelo apelo ideológico e estético revelado em sua teatralidade.

Figura 03 – Cena do Auto da Catingueira, da Companhi Giramundo, com Xangai e o boneco do Cantador do

Nordeste. Foto: Kika Antunes, 2011.

O “Auto da Catingueira” era uma obra incompleta do ponto de vista midiático e

espetacular até o ano de 2011, período em que foi montado e encenado no Palácio das Artes

em Belo Horizonte, Minas Gerais, o espetáculo com a presença dos cantadores e de formas

animadas. Nesta montagem (Figura 03), do Grupo Giramundo, apresentam-se, novamente,

alguns artistas da gravação original, entre eles a cantora lírica Andréa Daltro e os cantadores

Elomar, Dércio Marques e Xangai. Não foi produzida para cumprir exigências da indústria

fonográfica, mas, pela experiência e gravação em 1983, funciona como marco para análise

da obra em detrimento do seu conjunto artístico – libretto e música - e conjuntural dos três

cantadores em relação à obra, dentro, principalmente, de um momento significativo para o

momento do cancionismo nordestino. É uma iniciativa que, contemporaneamente, destaca-se

como elemento norteador das criações e produções artísticas para afirmar a reunião de poetas-

cantadores dentro do acontecimento da Cantoria.

A Obra possui uma inclinação ideológica que tenta passar à dimensão cênica toda

espetacularidade de um cotidiano típico do sertão nordestino e onipresente na vida de seu

autor. Esse esforço de representação revela tipos de espetáculos e releituras que congregam,

na atualidade, um cotejamento da obra original – registro fonográfico - do “Auto da

Catingueira”. Essa exaltação do sertão, e de uma obra, sertaneja mostra, a da vida cotidiana

de seu autor, cuja espetacularidade é imbuída de um saber-se inserido numa teatralidade.

Muitas vezes, esta teatralidade segue complexa demais, buscando ainda atingir seu ápice

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numa encenação que esteja à altura do que foi gravado originalmente, lá na Casa dos

Carneiros.

Referência Bibliográficas

FRAGA, Myriam; PITA, Carlos. A Lenda do Pássaro Que Roubou o Fogo. [S.l.]: Edições

Macunaíma, 1983. 1 LP.

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SUMÁRIO

O GÊNERO DRAMÁTICO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA

PORTUGUESA PARA O ENSINO MÉDIO

Anna Catharina Izoton Alves Mariano (UFES)1

Resumo: Este é o trabalho que contém os resultados finais do subprojeto de pesquisa “O gênero dramático em

livros didáticos de língua portuguesa para o ensino médio”, vinculado ao projeto “Leitura, literatura e materiais

didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múltiplos objetos culturais escritos”, orientado pela profª

Drª Maria Amélia Dalvi (UFES). A pesquisa teve caráter bibliográfico-documental e o referencial teórico-metodológico foi a História Cultural de Roger Chartier. Foram lidas e analisadas teses e dissertações relativas

à pesquisa, livros especificamente sobre teatro, o Guia Nacional do Livro Didático e dois livros didáticos

indicados por esse Guia, sendo eles Português- Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Chochar

Magalhães, e Português – contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M.

Abaurre e Marcela Pontara. Neles foi procurado o gênero dramático – que foi encontrado de modo muito

esparso.

Palavras-chave: gênero dramático; teatro; livro didático; literatura.

Introdução

O subprojeto de pesquisa finalizado, que deu origem a este artigo, intitulado “O

gênero dramático em livros didáticos de ensino médio”, foi vinculado ao projeto

“Leitura, literatura e materiais didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múltiplos

objetos culturais escritos”. Ambos tiveram como referencial teórico a História Cultural

vincada em estudos do historiador Roger Chartier (2012, 2009, 2007, 2004, 2003, 2002a,

2002b, 2002c, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990). Tal subprojeto teve como objetivos: mapear

protocolos de leitura e apropriações culturais do gênero dramático nos livros didáticos

analisados; formar um corpo bibliográfico sobre leitura, literatura e materiais didáticos e

outro sobre esses assuntos especificamente no Espírito Santo; e socialização e debate dos

resultados em vistas de aprimoramento para pesquisas futuras. Além disso, a metodologia

empreendida compreendeu uma revisão bibliográfica de pesquisas atinentes ao subprojeto,

leitura de obras do autor do referencial teórico, escolha dos livros didáticos e, então, análise

do gênero dramático presente neles.

1 Graduanda em Letras Português pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail:

[email protected]

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Então, nosso primeiro passo foi observar algumas teses e dissertações (PIROLA, 2008;

EGITO, 2010; FALCÃO, 2010; DALVI, 2011; SCHWARTZ, 2011) defendidas no PPGE

(Programa de Pós-Graduação em Educação) da UFES ou apresentadas por docentes

vinculados a este PPG (caso da profª Cleonara Schwartz) que escolheram o mesmo

referencial teórico que o subprojeto, e não só, que têm temáticas semelhantes à pesquisa,

pois se tratam de ensino de leitura e/ou literatura. Fomos, então, a elas para observar a

utilização do referencial histórico-cultural, para que contribuísse para este subprojeto, afinal

elas destacam as noções de práticas, representações e apropriações de Chartier, que são não

só relevantes como essenciais. Além disso, essas dissertações, teses e plano de trabalho de

Pós Doutorado evidenciam a relevância e pertinência de se pesquisar sobre literatura em

livros didáticos, no contexto específico do Espírito Santo, por meio da História Cultural de

Roger Chartier. Esses trabalhos foram bem sucedidos e serviram de exemplo para a pesquisa

que se deu e que aqui relatamos.

Metodologia

Caracterizando-se como uma pesquisa bibliográfico-documental, cuja abordagem

teórico-metodológica é histórico-cultural (a partir dos trabalhos de Roger Chartier: 2009,

2007, 2004, 2003, 2002a, 2002b, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990), a produção, a leitura e a

discussão de dados supôs a consideração privilegiada dos livros didáticos contemporâneos

de língua portuguesa, indicados pelo PNLD do ensino médio (especialmente no que diz

respeito ao gênero dramático), em diálogo com o referencial teórico eleito. As fontes

priorizadas foram os livros História Concisa do Teatro Brasileiro, de Décio de Almeida

Prado, Iniciação Ao Teatro, de Sábado Magaldi – ambos os autores foram apontados por

Antonio Candido como os críticos brasileiros de maior destaque em sua obra Iniciação à

Literatura Brasileira -, Do Palco À Página, de Roger Chartier e o Guia Nacional do Livro

Didático de 2012. Entramos em contato com as escolas estaduais do Espírito Santo com as

melhores pontuações no ENEM 2012 e perguntamos qual foi o livro didático utilizado com

o 3º ano do Ensino Médio2. Das seis escolas contactadas (sendo cinco do interior e uma da

capital) quatro utilizaram o livro Português- Linguagens, de William Roberto Cereja e

2 Após a apresentação deste trabalho no evento destes anais, um pesquisador que estava presente durante a

apresentação nos sugeriu a leitura da tese de Rodrigo Travitzki (TRAVITZKI, R. (2013). ENEM: limites e

possibilidades do Exame Nacional do Ensino Médio enquanto indicador de qualidade escolar. Tese

(doutorado em Educação). Universidade de São Paulo: São Paulo), que relativiza a hegemonia da escola e/ou

do livro didático quanto ao aprendizado do aluno, consequentemente quanto ao seu desempenho no exame.

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Thereza Chochar Magalhães e duas utilizaram Português – contexto, interlocução e sentido,

de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara. Então esses

livros foram adquiridos, lidos integralmente em busca de referências ao gênero dramático e

fotografados.

Essas fontes bibliográficas e documentais foram consideradas teórico-

metodologicamente a partir de uma pesquisa histórico-cultural, embasada nos trabalhos de

Roger Chartier (2009, 2007, 2004, 2003, 2002a, 2002b, 2001, 1998a, 1998b, 1994, 1990).

Essa perspectiva visou a atender, com as sempre necessárias revisões, às mesmas

preferências dos autores de Les usages de l’imprimé, volume organizado por Roger Chartier

ainda na década de 1980: a) privilegiar, como documentos a serem analisados, impressos

que têm ampla divulgação; b) fazer uma escolha do particular, em lugar da generalidade; e

c) compreender as utilizações dos materiais escritos privilegiados inseridos no contexto

preciso, localizado, específico que lhes confere sentido.

Devemos dar uma explicação sobre a escolha de se utilizar o termo “gênero

dramático” no subprojeto, não “teatro”, como se poderia esperar. Magaldi (1991) afirma que

“o texto, alinhado na biblioteca, sem alguém que o encene, (...) não é teatro”, portanto, não

poderíamos utilizar “teatro”, já que nossa análise é delimitada aos textos escritos para serem

encenados que estão presentes em livros didáticos, no entanto não estão ali para serem

encenados. Isso nos remete às noções fundamentais que constituem a “instituição literária”

apontadas por Chartier (2002c, p. 19):

Primeiramente, a identificação da obra como um texto escrito fixo, estabilizado e

que, graças a esta permanência, presta-se à manipulação. Em seguida, a ideia de

que a obra é produzida para um leitor – e um leitor que lê silenciosamente, para si

e sozinho, ainda que esteja num espaço público. Em terceiro lugar, a

caracterização da leitura como uma procura de sentido, um trabalho interpretativo,

uma busca de significados.

4 – Resultados

4.1 História Concisa do Teatro Brasileiro

Tal obra de Décio de Almeida Prado é uma das historiografias do teatro brasileiro de

mais destaque, senão a de maior destaque. Por esse motivo, adquirimos o livro e utilizamos

a divisão de capítulos dele para sublinhar quais foram os dramaturgos citados pelo autor em

cada capítulo – visto que, se estão numa historiografia, não é em vão, têm reconhecimento

para isso. Então consultamos os dois livros didáticos escolhidos e procuramos tais autores.

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Nos capítulos identificamos 19 dramaturgos sendo citados (nos atentamos para seus

nomes apenas, não suas obras). Nenhum deles consta nos livros didáticos, mesmo Martins

Pena, que de todos os 19 é o mais conhecido (ao menos no área da dramaturgia). Isso

demonstra que, para o conselho editorial desses livros didáticos, não é relevante que alunos

concluintes do ensino médio conheçam tais autores e obras. Dessa forma, então, os alunos

de fato não conheceriam esses autores e obras a não ser que o professor, com um material

didático extra, apresentasse-os a eles – e essa é apenas uma suposição.

Não pretendemos defender que tais ou tais autores, canônicos, não poderiam deixar

de constar em um livro didático de ensino médio. Em vez disso defendemos que o gênero

dramático seja representado, esteja presente no livro. Décio de Almeida Prado não

simplesmente elege os dramaturgos de cada período de tempo da produção dramática

brasileira, ele lista aqueles que se destacaram até o início do século XX, somente (o que não

desclassifica a obra).

4.2 Guia Nacional do Livro Didático 2012

A seguir reproduzimos o primeiro texto presente no Guia Nacional do Livro Didático

de 2012:

Que livro didático de português (LDP) devo adotar para o ensino médio (EM), em

minha escola?

Nos próximos dias nossos professores e professoras das redes públicas estarão

empenhados em contribuir, o mais criteriosamente possível, para elaborar uma boa

resposta para essa pergunta. Afinal, considerando-se o que é e como funciona o

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) — que agora atende

universalmente o EM — a decisão será válida para alunos e para professores de

Língua Portuguesa (LP) de toda a escola; e em sala de aula, será, ao longo dos

próximos três anos, uma ferramenta didático-pedagógica fundamental. Na seção central deste Guia, as resenhas apresentam aos educadores todas as

coleções didáticas de LP aprovadas pelo processo avaliatório oficial. Cada uma

delas pretende fornecer parte significativa daqueles recursos de que o docente

deverá lançar mão, nas séries em que atua, para:

• ampliar e aprofundar a convivência do aluno com a diversidade e a complexidade

da LP em diferentes esferas de uso, propiciando-lhe um acesso qualificado à

cultura escrita disponível para jovens e adultos;

• desenvolver sua proficiência, seja em usos públicos da oralidade, em leitura, em

literatura, em produção de gêneros textuais relevantes para a formação escolar,

para o ingresso no mundo do trabalho e para o pleno exercício da cidadania;

• propiciar-lhe tanto uma reflexão sistemática quanto a construção progressiva de

conhecimentos, não só sobre a LP, mas também sobre linguagens; • aumentar sua autonomia relativa nos estudos, favorecendo, assim, o desempenho

escolar e o acesso aos estudos de nível superior.

Muitas das possibilidades e dos limites do ensino-aprendizagem em LP, assim

como das práticas de sala de aula, estão em jogo nesse momento. Portanto, todo

cuidado é pouco.

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Partindo desse pressuposto, o objetivo deste Guia é o de colaborar para que nossas

escolas promovam uma escolha qualificada do LDP, ou seja, uma escolha

motivada por um processo de discussão o mais amplo e criterioso possível. E uma

boa forma de dar início a esse processo é resgatar, em suas linhas gerais, as

características do EM e o papel específico de uma disciplina como LP nesse nível

de ensino.

Alguns trechos desse texto introdutório do Guia devem ser destacados. Por exemplo,

os recursos didáticos os quais os docentes irão utilizar devem “ampliar e aprofundar a

convivência do aluno com a diversidade e a complexidade da LP em diferentes esferas de

uso (...)” e “desenvolver sua proficiência (...) em produção de gêneros textuais (...)

(Secretaria..., 2012). Esses trechos, indiretamente, logo remetem à utilização de gêneros

textuais, mas não escolhe esse ou aquele gênero como os mais importantes para a formação

do aluno como sujeito e futuro participante do mercado de trabalho. No entanto, por uma

questão histórica, estão implícitas muitas regras e costumes e a permanência de uma

legitimação de alguns conteúdos em detrimento de outros. Essa é, portanto, uma falha

presente no Guia.

Nesse Guia há uma descrição dos livros escolhidos – na descrição do livro Português:

contexto, interlocução e sentido, na parte de literatura, não há trecho que prometa que os

gêneros literários serão bem trabalhados; já na parte de literatura do Português – Linguagens

lê-se “pode limitar o trabalho a ser realizado o fato de alguns conteúdos, como a definição

dos gêneros da esfera literária, por exemplo, serem abordados de forma simplificada”. Esse

trecho não nega o que podemos ver no livro.

4.3 Livros didáticos

Como já descrito, fizemos uma busca pelo gênero dramático nos dois livros didáticos

e descrevemos o que encontramos na tabela comparativa a seguir:

Tabela 3 – ocorrência do gênero dramático nos livros didáticos

Obra (dados

bibliográficos):

autor, obra,

edição, cidade

da editora,

editora, ano de

publicação.

ABAURRE, Maria Luiza M.;

ABAURRE, Maria Bernadete M.

e PONTARA, Marcela.

Português: contexto, interlocução

e sentido. São Paulo: Moderna,

2010. Vol. 3

CEREJA, William Roberto;

MAGALHÃES, Thereza Cochar.

Português- Linguagens. São Paulo:

Atual, 2012. Vol. 3.

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Ocorrências de

GD

P. 153; p. 154; p. 214 a 218, p.

221, p. 228.

P. 122, p. 366 a 370. p. 380, p. 383,

p. 391 e p. 480.

Obras/

dramaturgos

mencionados

fora do

capítulo

específico de

teatro

- Leur âme, Mon couer balance, O

homem e o cavalo, O rei da vela e

A morta, de Oswald de Andrade.

Obras/

dramaturgos

mencionados

no capítulo

sobre o teatro

brasileiro

contemporâneo

(XX-XXI)

Vestido de Noiva, A Mulher Sem

Pecado, Valsa nº6, Álbum de

Família, Anjo Negro, Doroteia, A

Falecida, Perdoa-me por me

traíres, Os Sete Gatinhos, Boca de

Ouro - Nelson Rodrigues; O rei da

vela, Oswald de Andrade; A

moratória – Jorge Andrade; O

auto da compadecida – Ariano

Suassuna; Eles não usam black-tie

– Gianfrancesco Guarnieri; Rasga

coração - Oduvaldo Viana Filho;

O pagador de promessas – Dias

Gomes; Dois perdidos numa noite

suja e Navalha na carne – Plínio

Marcos; Trate-me leão – Asdrúbal

Trouxe o Trombone; Batalha de

arroz num ringue para dois –

Mauro Rasi; Como encher um

biquíni selvagem – Miguel

Falabella.

Assim é, se lhe parece, de

Pirandello; Uma mulher e três

palhaços, de Marcel Archad;

Vestido de noiva, Nelson

Rodrigues; Eles não usam black-

tie, de Gianfrancesco Guarnieri;

Revolução na América do Sul,

Arena conta Zumbi, Arena conta

Tiradentes, Castro Alves pede

passagem, do grupo Teatro de

Arena; O rei da vela, de Oswald de

Andrade; Liberdade, liberdade,

escrita pelo grupo Opinião com

textos de diversos autores e

canções; Ham-let, do grupo Teatro

Oficina.

Fragmentos

diretamente

abordados

Vestido de noiva – Nelson

Rodrigues.

Vestido de noiva – Nelson

Rodrigues.

Dramaturgos

citados sem

obras

- Jorge Andrade, Augusto Boal, Ruy

Guerra, Ferreira Gullar, Chico

Buarque de Hollanda, Oduvaldo

Viana Filho, Paulo Pontes, Plínio

Marcos, Millôr Fernandes, Pedro

Bloch, Lauro César Muniz, Leila

Assunção, Juca de Oliveira, Edla

van Steen, Alcides Nogueira,

Bráulio Pedroso, David George,

José Eduardo Vendrami, Antônio

Fagundes, Walcyr Carrasco,

Fernando Bonassi.

Peças referidas

por meio de

imagens

O auto da compadecida – Ariano

Suassuna (no entanto foi utilizada

uma imagem do filme

Macunaíma, dirigida por Antunes

Filho em 1978; Depois da queda,

de Arthur Miller, encenada em

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homônimo); Vestido de noiva –

Nelson Rodrigues - cena de uma

apresentação em São Paulo, 1974.

1964; Vestido de noiva, dirigida

por Gabriel Villela em 2009.

Características

dos exercícios

Há uma sessão “texto para

análise”, com um trecho de 22

falas do primeiro ato de Vestido de

Noiva. Dez questões discursivas

estão dispostas a seguir.

Há um exercício da Fuvest, no

qual há um trecho de Vestido de

Noiva em que os personagens

recitam partes do filme E O Vento

Levou e o enunciado pede pra que

seja marcada a alternativa que

explica esse uso na peça.

No primeiro exercício era

necessário apenas assinalar qual

era o gênero do texto ali colocado.

No segundo era preciso conhecer o

enredo da peça.

Outras

observações

O dramaturgo Antonin Artaud foi

mencionado sem referência a

alguma obra dele, assim como

Juca de Oliveira, Leilah

Assunção, Maria Adelaide

Amaral, Millôr Fernandes,

Walcyr Carrasco, Fernando

Bonassi, Naum Alves de Souza,

Mário Bortolotto e Rubens

Rewald. Alguns importantes

diretores de teatro foram

mencionados (p. 216). Na p. 221,

nas indicações de leitura, há O

Melhor Teatro de Gianfrancesco

Guarnieri, de Décio de Almeida

Prado.

Na página 380, no exercício 2, há o

fragmento de uma obra dramática

de José de Alencar, no entanto não

há o nome dela.

As primeiras ocorrências do gênero nos dois livros didáticos foram em citações de

obras de uma forma bastante rápida. Por outro lado, a primeira ocorrência atenta no

Português- Linguagens é em um capítulo intitulado “O teatro brasileiro nos séculos XX-

XXI”, mencionando importantes nomes da dramaturgia da época, como Gianfrancesco

Guarnieri, Augusto Boal, Nelson Rodrigues, Oduvaldo Viana Filho, Teatro de Arena e

Grupo Opinião, etc. No entanto, sabe-se, ao estudar a historiografia do teatro brasileiro, ou

mesmo consultando a História Concisa do Teatro Brasileiro, que há produção artística

teatral no Brasil antes do século XX, existiram autores de destaque que ainda hoje têm peças

sendo montadas e adaptadas, como Martins Pena (1815-1848); muitos autores e peças

estrangeiras tiveram participação primordial na construção da história do gênero dramático

no Brasil.

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Assim, essa parte da produção dramática brasileira não foi devidamente citada ou

introduzida no livro didático. É por isso que é preciso pensar em algumas noções definidas

por Chartier, sendo elas materialidade, prática e representação.

Segundo Chartier (2012), “o processo de publicação, seja qual for sua modalidade, é

sempre um processo coletivo, que implica numerosos atores e que não separa a materialidade

do texto da textualidade do livro ou da “performance”. Além disso, na mesma publicação,

Chartier afirma que “os autores não escrevem os livros, nem mesmo os seus. Os livros,

manuscritos ou impressos, são sempre resultado de múltiplas operações que pressupõem

decisões, técnicas e competências bem diversas (...)”. Por isso, não devemos ser ingênuos e

atribuir apenas aos autores dos livros didáticos a presença (ou ausência) desse ou daquele

autor, desse ou daquele movimento, etc. Há um percurso editorial que molda a produção

inicial, que supostamente pertencia apenas aos autores.

Considerações Finais

Avançando nas noções defendidas por Chartier, sendo elas prática e representação,

devemos pensar que o posicionamento perante os assuntos, sejam eles quais forem, de todos

os envolvidos com o percurso editorial do livro didático apenas denota o que seria a postura

da sociedade atual em relação à literatura dramática - que a considera menor, menos

importante. Então, aplicando as noções ao caso, a representação que temos de teatro ou

gênero dramático é uma modalidade de texto pouco importante, e a prática gerada por isso

é o esquecimento desse gênero, que por sua vez legitima a representação citada.

O que não pode passar despercebido, também, é que escolhemos livros usados em

escolas que obtiveram boa pontuação no ENEM – exame que a cada ano torna-se mais

importante para o ingresso de alunos em universidades brasileiras. Se o lugar do teatro em

livros didáticos considerados bons pelo conselho avaliatório oficial é esse que vimos, logo

podemos supor que também não há lugar de prestígio para ele nos exames e vestibulares

para as universidades – afinal o prestígio por estudar em uma universidade nunca diminui,

então os livros didáticos têm suas esquematizações de conteúdo voltadas para seus processos

seletivos.

Referências

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SUMÁRIO

O GÊNERO ÉPICO-LÍRICO-DRAMÁTICO DE CAIO FERNANDO ABREU

Ricardo Augusto de Lima (UEL)1

Sonia Pascolati (UEL)2

Resumo: Caio Fernando Abreu (1948-1996) possui em sua obra literária exemplos do gênero épico, lírico e

dramático. Pensamos que, uma vez comprovada sua tendência ao hibridismo, sua obra vai não apenas dar

exemplos desses gêneros, como quebrar a fronteira entre os três. Da mesma forma que ele contamina o leitor

com a dúvida do empirismo em sua narrativa, Caio Fernando vai contaminar o leitor com a dúvida em relação

ao gênero que ele está lendo. Desta forma, esta comunicação tem como objetivo principal analisar o cruzamento

entre os gêneros épico, lírico e dramático na prosa e no drama do autor gaúcho, identificando tal hibridismo

como uma das marcas principais de uma possível poética caiofernandiana.

Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; hibridismo; gêneros literários.

Introdução

Este artigo é parte de uma pesquisa que visa definir pela primeira vez uma possível

poética da literatura escrita por Caio Fernando Abreu. Suponho, primeiramente, três eixos

principais: a intertextualidade, a metalinguagem e a autoficção. Tais eixos resultariam em

vários efeitos de leitura, dentre os quais destaco, aqui, o hibridismo de gêneros.

A intertextualidade, muito analisada na obra em prosa de Caio Fernando, teve sua

exploração no teatro em um estudo anterior3. O teatro do autor, assim como toda sua prosa

e poesia, vai ser abundantemente intertextual, não apenas com referências clássicas, mas,

principalmente, com relações contemporâneas e até mesmo autocitações. No estudo citado

acima, também orientado pela Profª. Dr.ª Sonia Vido Pascolati, analisei a peça O homem e

a mancha, ponto de partida também para a discussão da poética de Caio Fernando. Nessa

peça, ocorre não apenas uma livre leitura do Dom Quixote de Cervantes, como uma alusão

1 Doutorando em Letras na Universidade Estadual de Londrina (UEL) – [email protected] 2 Professora Doutora do departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) –

[email protected] 3Verificar LIMA, Ricardo Augusto de. “Estas três paredes do meu apartamento”: intertexto, ruptura da ilusão

e autoficção como recursos metateatrais em O homem e a mancha, de Caio Fernando Abreu. Dissertação

(Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013.

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à novela de cavalaria, como o uso de resumos de capítulos, aventuras errantes e paixões

platônicas.

Da mesma forma, citações de autores diversos, além do próprio Cervantes, criam

uma atmosfera familiar ao leitor. Dentre as citações, destaco Mario Quintana, Fernando

Pessoa, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade, Garcia Lorca, Manuel

Bandeira e Machado de Assis. Alusões e citações contemporâneas permeiam entre os

canônicos, como Vicente Pereira, Pedro Almodóvar, Antônio Bandeiras e o próprio Caio

Fernando Abreu.

A autoficção na literatura de Caio Fernando Abreu foi explorada em dois estudos

também recentes: na prosa, por Nelson Luís Barbosa, em tese na Universidade de São Paulo,

no ano de 2008; e no teatro pela dissertação acima indicada. Percebe-se na literatura

caiofernandiana um tom confessional que não se aproxima do autobiográfico por manter

certo distanciamento entre as personas do autor empírico e a da personagem ficcional.

Quebrando algumas “regras” que Serge Doubrovsky coloca para o gênero, a literatura de

Caio Fernando se aproxima da autoficção por criar, a partir da experiência do autor, um

mundo ficcional que não expõe explicitamente a identidade de seu protagonista. Por marcas

no próprio texto e em leitura paratextuais podemos perceber ser o próprio Caio F.

Tanto a intertextualidade como a autoficção deixam transparecer a metalinguagem

do discurso, que deixa de ser apenas um (o literário) para ser vários (literário, crítico,

histórico etc). Na prosa, tal metalinguagem aparece muitas vezes como reflexão sobre a

escrita propriamente dita, quando não como libertação. No teatro, o metateatro surge de uma

forma explícito e irônica, mostrando não apenas conhecimento de técnicas teatrais e cênicas

como a capacidade de ironizar tais técnicas e transformá-las em recursos de humor, por

exemplo.

Em todos os estudos, fica explícito uma característica da obra de Caio Fernando

Abreu que é bem pouco explorada: o hibridismo de gêneros que sua prosa, seu drama e sua

poesia possuem.É sobre isso que vou, neste artigo, me prender: verificar em que pontos a

Épica, a Lírica e o Drama se encontram na obra caiofernandiana.

O teatro épico de Caio Fernando Abreu

Por algum tempo se pensou o teatro do século XX enquanto seu tom épico na

modernidade. Imagino ser daí a busca pela teatralidade na obra de Caio Fernando Abreu,

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mesmo em prosa. Dado importante é o fato de hoje entrarem em cartaz mais peças adaptadas

de contos, crônicas e até mesmo cartas de Caio Fernando do que suas peças propriamente

ditas. Nos últimos anos assistimos a adaptações de contos como “Aqueles dois”, “Dama da

noite”, “Lixo e purpurina”, “Anotações Sobre um Amor Urbano”, “A visita”, entre outras.

Efeito contrário, as peças de Caio apresentam certa narratividade. Ora, Caio conhecia

o teatro europeu e norte-americano do século XX, e não era um desconhecedor quando

escreveu suas próprias peças. Assim, nelas se percebe influências que ajudam a enquadrar

esse teatro em um panorama geral.

Lídia Fachin (1998, p. 103) define narratividade no teatro a partir de Greimas:

princípio organizador de todo o discurso. O texto dramático, enquanto discurso, é marcado,

pois, pela narratividade, em menor ou maior grau. A questão não é a narração, visto que esta

pode existir nas ações dos personagens no palco ou pelo uso do presente do indicativo, mas

sim pelo fato de ocorrer uma “‘contaminação’ do gênero dramático pelo gênero épico”

(FARIA, 1998, p. 47) nas peças de Caio Fernando Abreu. E não só do épico no teatro, mas

uma contaminação completa entre os gêneros. Desta forma, percebemos os gêneros

contaminando e se deixando contaminar uns pelos outros.

Desde Aristóteles, a teoria dos gêneros se alterou, mantendo, entretanto, uma espécie

de cerne de cada um deles inabalável. Mesmo com todos os experimentalismos formais,

[...] a Lírica continua a exprimir uma voz subjetiva, a traduzir um estado de alma

em uma linguagem dotada de poeticidade; a Épica não deixou de ser o modo imitativo pelo qual uma história é contada por um narrador; e a Dramática,

finalmente, é o gênero que, desde sempre, necessita do ator para realizar-se em sua

plenitude, pois o seu modo de imitação, para lembrar as palavras de Aristóteles,

exige “pessoas que agem e obram diretamente” [...] (FARIA, 1998, p. 47).

Por algum tempo, se respeitou ao máximo essas definições, limitando com precisão

as fronteiras entre os gêneros. Principalmente na Dramática, Aristóteles deu bases para que

se fixassem as regras das unidades (de ação, tempo, espaço e tom). Hoje, porém, a teoria da

literatura propõe novas interpretações e leituras, não se prendendo aos limites desse ou

daquele gênero. “A moderna poética, desenganada de quaisquer tentações dogmáticas e

absolutistas, procurando na história a sua fundamentação, reabilitou o conceito de gênero

literário.” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 225). Temos, então, poemas com fortes traços

épicos e dramáticos, peças inteiras líricas e romances com passagens mais subjetivas e/ou

dramáticas. E os exemplos serão muitos.

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Vitor Manuel de Aguiar e Silva cita dois teóricos distintos que repensaram o conceito

e os limites dos gêneros literários: Emil Staiger e György Lukács. O primeiro é o que mais

nos interessa. Staiger publicou em 1952 sua obra Grundbegriffe der Poetik (Conceitos

fundamentais de poética), na qual mostra a distinção entre a forma substantiva e a forma

adjetiva dos gêneros literários. Em outras palavras, existe a possibilidade de que marcas

estilísticas de cada gênero existam em qualquer texto literário, sem restringi-lo a um único

gênero. Assim, os estilos épico, dramático e lírico podem ser considerados adjetivos,

enquanto a Épica, a Dramática e a Lírica são substantivos, pois um texto, mesmo sendo

contaminado pelos três gêneros, apresenta características principais de um deles.

“Condenando uma poética apriorística e anti-histórica, Staiger acentua a necessidade de a

poética se apoiar firmemente na história, na tradição formal concreta e histórica da literatura,

já que a essência do homem é a temporalidade” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 225).

Staiger compreendeu que o que define uma obra não é o gênero no qual estáinserida

(substantivo), mas o traço estilístico predominante (adjetivo). Sua constatação surge a partir

do momento em que escritores não se limitam ao gênero literário, quebrando barreiras e

deixando o texto ser contaminado por traços estilísticos alheios àquele gênero. Para ele, não

existe, então, uma obra puramente lírica, épica ou dramática, pois “qualquer obra autêntica

participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e [...] essa diferença de

participação vai explicar a grande multiplicidade de tipos já realizados historicamente”

(STAIGER, 1975, p. 15). Sonia Pascolati (2009, p. 97) afirma que, no que diz respeito ao

texto dramático, importa menos o gênero e mais sua funcionalidade dramática, isto é, sua

teatralidade.

José Roberto Faria (1998, p. 49), por exemplo, aponta Bertolt Brecht comoo

dramaturgo no qual é mais evidente esse hibridismo; o autor é responsável

pelasistematização de um teatro épico, isto é, “um teatro no qual o traço estilístico

fundamental não é o dramático, mas o narrativo”.

Caio Fernando Abreu, desde sempre ligado principalmente ao gênero épico(contos e

romances), deixou-se contaminar pela prosa sua e de outros em seus textosdramáticos.

Exemplo claro desse hibridismo, a peça O homem e a mancha, de 1994. Nela, elementos

marcam (a) influência de Brecht e (b) indícios do que Peter Szondi (2003) chama de

epicização do texto dramático.

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Trata-se de um monólogo com cinco personagens que, em uma dimensão onírica, são

evocados primeiramente pelo personagem Ator. Após esse escolher (ou ser escolhido pelo)

seu personagem, Quixote, Homem da Mancha e Cavaleiro da Triste Figura vão se revezar

em forma de delírios e sonhos. Todos eles buscam algo: o Ator busca um personagem,

Miguel busca a fuga do mundo, Quixote busca aventuras e Dulcineia, Homem da Mancha

busca uma mancha imaginária (ou não) e Triste busca uma saída. Tal fragmentação de

personagens revela a fragmentação do próprio Ator, personagem inicial, e de Miguel,

personagem-eixo da peça.

Desde o início de O homem e a mancha, que começa com o “era uma vez”, marca

mais evidente e popular da narração, até seu final, recursos épicos estão presentes. Para

melhoridentificá-los, vamos nos prender ao texto dramático, marcado pelo uso de títulos e

resumos, além do Prólogo e do Epílogo. Entretanto, o Prólogo e o Epílogo em O homem e a

mancha não possuem as mesmas características desses elementos na tragédia grega, por

exemplo.

Enquanto lá a figura de um narrador é inserida a fim de marcar a narratividade, seja

ele constituído de um Coro ou mesmo pelo diálogo entre dois personagens, aqui temos o

personagem do Ator, metateatral por excelência.

ATOR — Era uma vez... era uma vez... era uma vez... era uma vez... era uma vez...

era uma vez... era uma vez. Era uma vez o quê, meu Deus? Era uma vez quem? E

quando, e onde era uma vez? É tão difícil escolher, é tão difícil começar. [...]

(ABREU, 2009, p. 220).

Nesse começo percebemos não apenas a presença do “era uma vez” como marca da

narratividade, mas a indagação dos principais elementos do texto narrativo: o quê,quem,

quando e onde. Ação, personagem, tempo e espaço são procurados pelo Ator, que, a partir

de uma crise imaginativa, inicia sua crise existencial.

Além dele, todos os outros personagens, motivados pelo próprio monólogo em que

estão inseridos, possuem discursos narrativos, diegéticos, que remontam um passado ou uma

função descritiva, como podemos verificar nos trechos a seguir.

ATOR — Era uma vez... eu. Claro, tem que ser alguma coisa que eu conheça bem. Eu, então. Faz quarenta anos que convivo comigo mesmo. Alguma coisa devo

conhecer. Sim, é isso mesmo. Eu. Por que não? Afinal, eu me acho bem

interessantezinho (ABREU, 2009, p. 221).

MIGUEL — Finalmente chegou o grande dia. Miguel Quesada – o desventurado

trabalhador anônimo, o solitário depressivo, o neurastêmico insuportável, o mal-

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amado, o zé-ninguém que nunca teve nada nesta vida além de seus loucos sonhos

impossíveis –, Miguel Quesada está livre (ABREU, 2009, p. 223).

HOMEM — Senhores, por mais que minhas idéias andem perturbadas, como

dizem – e talvez tenham razão –, certamente as idéias deste autor não o estavam

quando, para iniciar sua obra imortal, escolheu justamente a expressão “num lugar

da Mancha”. [...] (ABREU, 2009, p. 230).

QUIXOTE — Embora temporariamente fora de combate, por conta de um mal

nos rins (Apalpa as cadeiras, geme.) que quase me arrancou a vida, jamais deixarei

de pertencer à nobre ordem dos cavaleiros andantes (Altivo.) Defensor das

donzelas, amparador das viúvas e socorredor dos órfãos e desvalidos da sorte! [...]

(ABREU, 2009, p. 231). TRISTE (Para a Lua.) — Cavaleiro da Branca Lua, vencido estou. Branca, branca

Lua: a teus pés de prata deponho meus arroubos. Oh, Lua, desalmada e feiticeira...

Tamanha surra me deste, Cavaleiro Branca Lua, que já não valho um furo sequer

da sola das tuas negras botas. Adeus, dias de vinho e rosas (ABREU, 2009, p.

255).

Percebe-se que o uso do pretérito perfeito e do estilo narrativo (principalmente de

Miguel) comunga com a epicização da qual Peter Szondi (2003) trata. Além de evidente

presença de características do gênero lírico, mais visível na última citação, na qual o lírico

sobrepõe o épico, mantendo-se no dramático. Tal contaminação participado processo

intertextual no qual a peça é produzida, visto ser uma releitura do romance de Cervantes.

Desta forma, romance e texto dramático dialogam entre si não apenas com seus personagens

e certos trechos citados entre aspas, mas também nas próprias características do gênero épico

que servem como elo entre as duas escrituras.

O espaço diegético, isto é, aquele que não é visto, extra-cênico, comunicado

verbalmente nas falas e nos resumos/títulos de cenas, constitui o que restou do romance na

sua releitura dramática. A narração é transposta para o espaço mimético, ou seja, aquele que

é visto, transmitido sem mediação por meio do monólogo de cada personagem.

Outra diferenciação está no modo como se desenrola o enredo. Enquanto a narrativa

permite uma multiplicidade de núcleos narrativos desdobráveis em muitos episódios, o

drama se concentra em uma ação nuclear, circunscrita a poucos episódios (PASCOLATI,

2009, p. 96). Assim, temos em O homem e a mancha uma peça cujo caráter é misto, híbrido

de dramática com épica. Enquanto a primeira possui, essencialmente, cenas escritas uma em

função da outra, na segunda temos cada cena independente, sem encadeamento. Na peça de

Caio, ao mesmo tempo em que temos cenas em forma de monólogos aparentemente

independentes, temos uma linearidade composta por fragmentos. A obra de Caio Fernando

Abreu tem como traço formal a construção de um texto baseado em encaixes de outros, cujos

sentidos são modificados ou intensificados.Dito de outra forma, os fragmentos fazem parte

da mesma história, que se desdobra em personagens, espaços e épocas.

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Em um movimento similar, a lírica adentra na peça em vários momentos, fazendo

emergir um estado da alma que, se não fosse o personagem, soaria como uma espécie de eu

lírico no texto.

[...] Perdoai-me todos, se a alguns fiz mal. É que fugiu-se-me a razão, dizem, por

longo tempo, e só me torna agora. Tarde demais, pois a morte já anunciou sua

chegada. Que louco sonho ou pesadelo foi a minha vida, a tua vida, as nossas

vidas. Ah, somos todos inocentes nesta barca da Medusa a navegar insânias. E eu

de nada me arrependo (ABREU, 2009, p. 256).

Em vários outros momentos os personagens deixam-se guiar pelo subjetivo, seja para

falar sobre o amor ou sobre a morte: “MIGUEL — Tu foste a única pessoa que poderia ter

emprestado alguma cor à minha vida em sépia” (ABREU, 2009, p. 233).

Da mesma forma, a intertextualidade com poetas deixa emergir um tom lírico ao

drama, como nos exemplos a seguir.

QUIXOTE - Dulcinéia, minha estrela da manhã (Recita Manuel Bandeira.) “Pura

ou degradada até a última baixeza eu quero a estrela da manhã!” [...]

MIGUEL (Citando Machado de Assis.) — Carolina! “Querida, ao pé do leito

derradeiro!”

[...]

ATOR (Citando Clarice Lispector.) — “Ter nascido me estragou a saúde.”

[...]

ATOR (Citando Oswald de Andrade.) — “Ah o amor, o amor, o amor: eu quero

porque quero da vida!” (ABREU, 2009, p. 254-5).

QUIXOTE – Ah aleives, urdiduras, tramas vis! Novamente a negra falange

dos devotos de Lúcifer intenta confundir-me com sua astúcia maligna! Pois

saibam que não os temo, demônios! (Caminha hierático para a boca de cena e declama Mario Quintana.):

“Vinde, corvos, chacais, ladrões de estrada!

Ah! Desta mão avaramente adunca!

Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!” (ABREU, 2009, p. 229).

MIGUEL (Para o manequim.) — [...] Que horror, que lindo encontrar contigo

todas as manhãs de todos estes dias de todos estes anos, Carolina(Trágico.) Ai de

mim, platônico e patético! (Sofrendo muito, geme uns versos de Fernando

Pessoa/Álvaro de Campos, com leve sotaque lusitano.): “Serei sempre o que

esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma paredes em porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado.” (ABREU, 2009, p. 234).

E ainda:

[...] (Recita García Lorca, num último alento:) “Si muero,

deja del balcón abierto.

El niño come naranjas.

(Desde mi balcón lo veo.)

El segador siega el trigo.

(Desde mi balcón lo siento.)

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Si muero,

deja del balcón abierto!”

Com um esforço derradeiro, TRISTE joga a rosa para a platéia. Leva a mão

ao peito, geme (ABREU, 2009, p. 256-7).

Por fim, o Drama também contamina o Épico, o que explica, em partes, a frequente

adaptação para o teatro de contos e crônicas de Caio Fernando Abreu. Em alguns textos,

podemos dizer que já existe uma peça pronta, escrita na ironia desse hibridismo de gênero,

e não me refiro a situações dramáticas e de tensão apenas, mas mesmo em questões óbvias,

como a construção textual, como o conto “Diálogo”, inserido na coletânea Morangos

mofados, de 1983, mas também presente na edição do Teatro completa de Caio Fernando

Abreu, organizado por Luiz Arthur Nunes (para quem é dedicado esse conto/peça) e Marcos

Breda.

A: Você é meu companheiro.

B: Hein?

A: Você é meu companheiro, eu disse.

B: O quê?

A: Eu disse que você é meu companheiro.

B: O que é que você quer dizer com isso?

A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.

B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto. (ABREU, 2009, p. 33)

Além desse, outros textos são construídos como peças de teatro, contendo, inclusive,

rubricas:

“— Você tem um cigarro?

— Estou tentando parar de fumar.

— Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora. — Você tem uma coisa nas mãos agora.

— Eu?

— Eu.

(Silêncio)

[...]

— Você é de Virgem?

— Sou. E você, de Capricórnio?

— Sou. Eu sabia.

— Eu sabia também.

— Combinamos: terra. — Sim. Combinamos.

(Silêncio)”

(ABREU, 2005, p. 126; 128).

— Hein?

— Nada. Não disse nada.

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— Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com

eles.

— Quem?

— Você sabe. Como é que você os chama?

— Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.

— Eles têm voltado?

— Todas as noites.

(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que,

se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais

precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura,

um brilho estranho nos olhos. [...] Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no

momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o

outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar

algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores

rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. [...])

— Hein?

— As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele

cheiro adocicado?

— Não reparei.

— Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.

(ABREU, 2005b, p. 106-7).

Conclusão

Nesses breves exemplos fica clara minha proposta: mostrar tendo como ponto de

partida a peça O homem e a mancha como a escrita de Caio Fernando Abreu apresenta como

poética o hibridismo de gêneros em menor ou maior escala. Resta verificar se esse

hibridismo nasce como ponto principal da poética caiofernandiana ou se ele é resultado

daqueles outros três eixos frequentes: intertextualidade, autoficção e metalinguagem.

Independente da resposta, basta-nos por enquanto a seguinte afirmação: o teatro, mesmo

quase esquecido em grande parte dos estudos acadêmicos, permanece presente na literatura

contemporânea. E às vezes é o próprio impulso para a escrita literária.

Referências bibliográficas

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Janeiro: Agir, 2005. p. 124-131.

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SUMÁRIO

O REI DA VELA E A TRANSGRESSÃO DO

ESTATUTO COLONIAL ARTÍSTICO BRASILEIRO

Wallisson Rodrigo Leites (UNIOESTE)1

Lourdes Kaminski Alves (UNIOESTE)2

Resumo: No contexto brasileiro, o Modernismo serviu como marco inicial para um processo de ressignificação

da história, a exemplo, vale citar aqui o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade que, sob

influência das Vanguardas Europeias, propunha a deglutição dos padrões artísticos burgueses/coloniais da

época, para se repensar a cultura no país, tornando-se, deste modo, importante referência para a produção

artística nacional contemporânea no que se refere ao processo de desconlonização cultural. Considerando sua

importância artístico-social, parte desta produção ainda requer estudos mais aprofundados, a exemplo do teatro

de Oswald de Andrade. Desse modo, pretende-se, a partir do presente trabalho, aprimorar o entendimento dos

elementos constituintes da dramaturgia oswaldiana inserida na proposta artístico-social apresentada pelo

modernismo brasileiro. Para tanto, tomar-se-á como corpus de análise, o teatro de Oswald Andrade, aqui especificamente a obra O rei da vela, escrita em 1933, para uma leitura reflexiva que aponte para confluências

deste teatro com a proposta antropofágica de deglutição, assimilação e reformulação da arte e da cultura

nacional.

Palavras-chave: Transgressão estética e cultural; O Rei da Vela; o teatro oswaldiano e o processo de

descolonização cultural.

Introdução

Dentro do contexto nacional, o movimento modernista, iniciado com a Semana da

Arte Moderno, em 1922, revolucionou o perfil da arte no Brasil, buscando romper com os

padrões artísticos até então apresentados no país, estabelecendo novos modos de conceber a

arte. Influenciados pelos movimentos vanguardistas europeus, os artistas e pensadores da

cultura da época propunham um profundo rompimento com os modelos estéticos e

ideológicos que a arte vinha apresentando.

Nesta perspectiva, o teatro de Oswald merece destaque dentre os modernistas, dado

que a, partir de sua proposta teatral, buscava descrever o homem contemporâneo sem ater-

se a dubiedade ou a fragmentação do ser, mas escancarando aos olhos da sociedade o quão

ridículo ela é em suas relações interpessoais, ao se prender a padrões de comportamento e

pensamento de forma automatizada, superficial e não reflexiva. Nesse sentido, as caricaturas

1 Mestrando na UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. [email protected] 2 Professora na UNIOESTE – Universidade Estadual do Oeste do Paraná. [email protected]

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apresentadas pelo autor em sua produção teatral não se restringem às personagens, abarcando

também as próprias instituições sociais, como a família, a igreja e outras instituições,

mostrando que estas perderam seu valor e que, no entanto, continuam sendo “fundamentais”

para a vida em sociedade apenas por pura convenção e manutenção da ordem do sistema

social (automatismo). Segundo Cury, Oswald de Andrade representa, no panorama da

literatura brasileira, [...] o grande gerador de novas atitudes formais. Em qual- quer que seja

o recorte de sua obra – poesia, prosa, teatro -, a transgressão dos valores instituídos é a

característica preponderante. (CURY, 2003, p. 15).

Antes de ser conhecido por sua produção dramatúrgica, Oswald já havia marcado seu

nome entre os grandes autores de seu tempo com o Manifesto Antropófago (1924) e com o

Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1928), textos reveladores dos ideais propostos pelos

artistas da época. Nesses textos, o autor discute de forma crítica os modos de se fazer a

poesia, a literatura e a arte, atacando as chamadas escolas literárias. Para Oswald de Andrade

(1971) a arte está no mundo e se concretiza a partir da livre expressão do pensamento, e não

por meio de um pensamento orientado burocraticamente por padrões estéticos que servem

ao deleite do burguês, indo de encontro à noção de cânone literário e corroborando a

permanência da mentalidade colonial da práxis.

Para alcançar tal objetivo, o manifesto propõe a desacralização e a deglutição

consciente e crítica de todos os padrões artísticos de uma sociedade coisificada, na qual o

próprio pensamento se constitui por meio de uma sistematização lógica e funcional, para, a

partir de então, buscar novas perspectivas acerca da compreensão artística e,

consequentemente, do mundo, e, sobretudo, de uma identidade nacional. “[...] Era preciso

inverter o superior e o inferior, precipitar tudo que era elevado e antigo, tudo que estava

perfeito e acabado, nos infernos do ‘baixo’ material e corporal, a fim que nascesse

novamente depois da morte” (BAKHTIN, 1999, p. 70). Esta é a perspectiva carnavalizada e

antropofágica praticada pelos modernistas. Não obstante, “a antropofagia é antes de tudo o

desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e

absorção da alteridade” (PERRONE-MOISÉS, 1995, p.95).

A partir destas considerações, no próximo tópico a ser trabalhado no presente

trabalho, buscar-se-á realizar uma breve análise interpretativa da obra O rei da vela, de

Oswald de Andrade, procurando observar os aspectos constituintes do teatro oswaldiano

inserido na proposta Antropofágica, como perspectiva estética original para a produção

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crítica e literária no contexto latino americano, contribuindo para o processo de reelaboração

do conceito mimeses no ocidente.

O Rei da Vela e a proposta dramatúrgica oswaldiana

O Rei da Vela é uma das peças que marca o início do Modernismo no teatro

brasileiro. Escrita em 1933, editada somente quatro anos após, em 1937, por José Olympio

Editora e encenada pela primeira vez pela companhia Teatro Oficina de São Paulo em

setembro de 1967, compõe, juntamente com as obras O homem e o cavalo (1934) e A morta

(1937), a Trilogia da Devoração do teatro antropofágico de Oswald de Andrade, segundo

Magaldi (2005).

O Brasil passava por um período de grandes inovações nos campos da indústria e

da tecnologia. A chegada das primeiras grandes indústrias e, consequentemente, do capital

estrangeiro, abriu as portas do país para o comércio exterior. O que se criou, a partir de então,

foi uma grande via de mão dupla, em que ambos os lados saiam ganhando. Com a chegada

de capital, o país poderia investir em infraestrutura e na consolidação do comércio interno,

mas, que ao mesmo tempo, era fonte de exploração do capital vindo de fora, que encontrou

nos baixos custos de produção brasileira uma fonte de multiplicar dinheiro. Nas palavras de

Abelardo I, protagonista de O rei da vela, está contemplada tal perspectiva:

ABELARDO I – [...] compromisso é compromisso! Os países inferiores têm que

trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para os ricos. Você

acredita que New York teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil

pernas mais bonitas da terra se não se trabalhasse para Wall Street de Ribeirão

Preto a Cingapura, de Manaus à Libéria? (ANDRADE, 2003, p.63).

Tal citação da obra de Oswald pode ser relida nas palavras de teóricos que abordam

a temática da des/colonização, abarcando o modo como o modus operandi do colonizador

reflete na constituição cultural do povo em diversos âmbitos. Segundo Mingnolo, seguindo

a mesma linha de pensamento de Oswald a cerca da visão do colonizador europeu:

La “idea” de América Latina es la de una región que comprende una enorme

superficie de tierra rica en recursos naturales donde abunda la mano de obra

barata. [...] También podría rastrearse [...] el traslado de plantas productivas de

empresas estadounidenses a países em vías de desarrollo con el propósito de

abaratar costos. Em cuanto al control de las finanzas, basta comparar la cantitad

y el tamaño de los bancos de Nueva York, Londres o Fráncfort con los de Bolivia,

Marruecos o la India. (MIGNOLO, 2007, p. 38).

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A ideia apresentada pela personagem Abelardo I é reforçada pelo pensamento de

Mignolo na obra La idea de America Latina. Para Mignolo, essa “idea” surge a partir do

pensamento do colonizador em relação às colônias, mantendo um estatuto colonial

econômico.

Tal fator, não representa, porém, nenhuma novidade. Sabe-se bem que os países que

têm maior domínio do capital aproveitam-se daquele que não o tem e, a partir de tal sistema,

o Brasil continuou cultivando um estatuto colonial. Há que se considerar que, além da

dependência comercial, esse colonialismo refere-se também à formação do pensamento

nacional, que calcado na matriz geradora judaico-cristã-ocidental, mantinha aspectos

comportamentais não condizentes com a realidade do país. A essa colonização do

pensamento, Mignolo vai se referir como “la colonización del ser” que:

consiste nada menos que en generar la idea de que ciertos pueblos no forman

parte de la historia, de que no son seres. Así, enterrados bajo la historia europea

del descubrimiento están las historias, las experciencias y los relatos conceptuales

silenciados de los que quedaron fuera de la categoria de seres humanos, de

actores históricos y de entes racionales (MIGNOLO, 2007, P. 30).

Tal prerrogativa poderia ser uma plausível explicação para a criação, no inconsciente

coletivo, da noção de inferioridade em relação aos países de “primeiro mundo”. Tal noção

estende-se desde a questão econômica até aos aspectos culturais, facilitando assim, a

recepção de produtos culturais advindos de fora em detrimento das culturas populares de cor

local. Em síntese, reside nesse contexto o pano de fundo da sátira oswaldiana, práticas e

mentalidades arcaicas em um país que se queria modernizar e apropriar-se da tecnologia,

conforme Alves (2011).

Tal aspecto, no entanto, só é de interesse ao passo que tais mudanças no âmbito

econômico interferem na constituição sociocultural, pois é esse o fator que será representado

de forma evidente nas manifestações artísticas e principalmente na obra de Oswald aqui

analisada, O rei da vela. Sua temática revela aspectos importantes da cultura nacional,

principalmente por abordar temas “delicados” para o período histórico de produção. Talvez

por isso a obra tenha sido engavetada por quatro anos após sua escritura, para ser editada e

encenada muitos anos mais após a publicação.

A peça retrata a história de um agiota, Abelardo I, também conhecido como “o rei

da vela”, que ganha a vida extorquindo dinheiro das pessoas, e a arruma um casamento com

Heloísa de Lesbos, de uma família de latifundiários de renome nacional. Todas as relações

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sociais que aparecem na obra tratam-se síntese, de negócios e relações humanas precárias

em sua hipocrisia. Todas as personagens que aparecem na peça estão interessadas única e

exclusivamente em seu próprio benefício.

Um dos exemplos que se pode depreender da peça é o casamento de Abelardo I e

Heloisa, já que, ele, apesar de ter muito dinheiro, não tem o peso do nome de uma família

de tradição e ela, apesar de pertencer a uma família “nobre”, com a falência dos negócios de

seu pai, devido à crise das oligarquias agrárias, não tem capital para manter o padrão de vida

no qual foi criada, padrão esse que tinha por objetivo manter determinada cultura do

comportamento implantada pela colônia e não condizente com a realidade de um país pobre.

Segundo Sartre (1979), em seu prefácio à obra Os condenados da terra, de Frantz Fanon, a

metrópole “fabricou em bloco uma burguesia de colonizados” que pudesse ao mesmo tempo

em que era explorada dar continuidade à exploração do povo. Assim, a união das

personagens supracitadas representa uma tentativa de sobrevivência dessa aristocracia e

consequentemente de uma cultura de estratificação. A partir do diálogo entre as personagens

Abelardo I e Abelardo II, logo no início da narrativa teatral, pode-se perceber a importância

dada pelo novo burguês aos valores tradicionais, pois esse novo homem de negócios que

surge conhece a necessidade de se diferenciar e de se destacar do povo.

ABELARDO I – Que importa? Para nós, homens adiantados que só conhecemos

uma coisa fria, o valor do dinheiro, comparar esses restos de brasão ainda é

negócio, faz vista num país medieval como o nosso! O senhor sabe que São Paulo

só tem dez famílias?

ABELARDO II – E o resto da população?

ABELARDO I – O resto é prole. O que estou fazendo, o que o senhor quer fazer

é deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece

teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é novo. (ANDRADE, 2003, p.43).

Percebe-se então, que o conceito de família trazida pelo autor, constitui-se a partir da

paródia dos valores sociais, esfacelando assim com a noção de que a referida instituição é

que mantêm a ordem da sociedade, pois, como observado no diálogo entre os Abelardos, no

mundo contemporâneo, onde o importante é o dinheiro, o casamento não passa de um

negócio com o qual se pode conseguir algum lucro, e no caso de Abelardo I e Heloísa, seria

lucrativo para ambos, pois enquanto Heloísa voltaria a ter um bom padrão de vida, Abelardo

I, teria um nome tradicionalmente respeitado devido sua origem nobre. Assim, “Os velhos

senhores da terra que tinham que dar valor aos novos senhores da terra!” (ANDRADE, 2003,

p. 62) e assim a “burguesia de colonizados” a que Sartre se refere poderia ter continuidade.

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Além de enriquecer emprestando dinheiro a juros altíssimos, Abelardo I era

fabricante e vendedor de velas, daí o título do livro e pseudônimo da personagem

protagonista. No entanto, não se trata de um produto qualquer, pois com os altos preços

cobrados pela energia elétrica, a vela se convertia na única saída para a maioria da população

brasileira. Não obstante, a vela pode ser associada à morte, já que, quando uma pessoa morre,

é velada. Logo, “o rei da vela”, além de explorar seus “clientes” até a morte, ainda lucrava

com a venda das velas que eram utiliza- das nos velórios das pessoas. Como se pode observar

a partir da fala da personagem Abelardo I:

ABELARDO I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O

Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança pensando

nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das

escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais

pôde pagar o preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente.

Veja como eu produzo de todos os tamanhos e cores. (Indica o mostruário.) Para

o Mês de Maria das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende

e se joga à noite, para a hora de estudo das crianças, para os contrabandistas no

mar, mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a

passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada

morto nacional. (ANDRADE, 2003, p. 61-62).

Trata-se de uma forma de não perder a oportunidade de ganhar dinheiro, pois o fazia,

com os vivos e com os mortos. A todo o momento na peça a personagem Abelardo I busca

ridicularizar o povo com o objetivo de manter o cada um em seu lugar, como se de modo

pré-determinado existisse um lugar para o explorador e outro para o explorado. Esse aspecto

traduz o processo de colonização desde a chegada das primeiras caravelas, em que o

autóctone era visto, não como um homem, mas como um animal sendo, portanto, subjugado

ao europeu. Segundo Sartre [...] a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao

nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A

violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens

subjugados; procura desumanizá-los. (SARTRE, 1979, p.9). Oswald busca representar isso

por meio de sua peça ao apresentar os clientes (os explorados) de Abelardo (o explorador)

aproximando-os de animais selvagens, como se pode observar no trecho:

ABELARDO I – [...] Abra a jaula!

Abelardo II obedece de chicote em punho. A porta de ferro corre pesadamente

Mais clientes

Os clientes aparecem atropeladamente nas grades. É uma coleção de crise,

variada, expectante. Homens e mulheres mantêm-se quietos ante o enorme chicote

de Abelardo II. (ANDRADE, 2003, p. 22).

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Então, como observado, “instaura-se, pela linguagem, não um conflito que levaria à

catarse aristotélica, mas ao resgate da condição social brasileira, analiticamente observada

pelo conflito de classes.” (CURY, 2003, p. 50). De acordo com Candido (1976), a estrutura

econômica da sociedade, defendida pelas relações materiais de produção, constitui a base

sobre a qual a literatura e a arte se constroem, o que as torna, portanto inseparáveis do

processo histórico - e incompreensíveis fora dele, não em termos puramente mecânicos, mas

numa perspectiva dialética, em que arte e realidade, num jogo de ação e reação contínuas e

recíprocas, acompanham e ao mesmo tempo promovem seu desenvolvimento.

Diferentemente do teatro aristotélico, o que se apresenta na proposta de teatro

oswaldiano é uma problematização de uma dada realidade, apontando para formação de

princípios estéticos e ideológicos que se referem a escolhas do escritor e dramaturgo na

sociedade, conforme explica Alves (2011). Nesse sentido, o teatro oswaldiano tem papel

fundamental na contemporaneidade, pois se pretende por meio dele problematizar o poder

que o homem tem enquanto ser social formador de realidades, questionando o que está posto

ao invés de simplesmente o aceitar. Seu teatro, então, dialoga com o teatro épico, e passa a

influenciar os demais postulados teóricos acerca do estado da arte na contemporaneidade.

Em O teatro épico, Anatol Rosenfeld traça algumas características desse gênero idealizado

por Bertolt Brecht que valem aqui ser citadas:

Segundo a concepção marxista, o ser humano deve ser concebido como o conjunto

de todas as relações sociais e diante disso a forma épica é, segundo Brecht, a única

capaz de apreender aqueles processos que constituem para o dramaturgo a matéria para uma ampla concepção do mundo. (ROSENFELD, 2002, p. 147).

Rosenfeld, a partir do teatro brechtiano, aponta a arte teatral ressaltando seu valor

didático, engajado. No entanto, para que haja a reflexão e o questionamento, a catarse deve

ser desconsiderada, pois tal efeito faz com o que o público torne-se passível perante o mundo;

assim como ocorre no “teatro burguês”3, que primava pela estética em detrimento da política

social. Nesta perspectiva, Rosenfeld observa que:

3 Toma-se aqui o termo trazido pelo Dicionário de Teatro de Patrice Pavis: “Expressão frequente, hoje, utilizada para designar, de maneira pejorativa, um teatro e um repertório de boulevard produzido dentro de uma estrutura econômica de rentabilidade máxima e destinado, por seus temas e valores, a um público ‘(pequeno-) burguês’, que veio consumir com grande despesa uma ideologia e uma estética que lhes são, de cara, familiares. [...] se torna, no jovem Brecht, por exemplo, sinônimo de dramaturgia ‘de consumo’, baseado no fascínio e na reprodução da ideologia dominante.” (PAVIS, 1999, p. 376).

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O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o impacto mágico do teatro

burguês. Esse êxtase, essa intensa identificação emocional que leva o público a

esquecer-se de tudo, afigura-se a Brecht como uma das consequências principais

da teoria da catarse, da purgação e descarga das emoções através das próprias

emoções suscitadas. O público assim purificado sai do teatro satisfeito,

convenientemente conformado, passivo, encampado no sentido da ideologia

burguesa e incapaz de uma Idea rebelde. Todavia, ‘o teatro épico não combate as

emoções’ [...]. O que pretende é elevar a emoção ao raciocínio. (ROSENFELD,

2002, p. 148).

Tais conceitos podem ser vistos de forma bastante clara em trechos da obra, em que

o autor modernista busca desvendar a realidade dos fatos mundanos a partir de uma

representação escancarada. Trata-se de uma tentativa de um despertar-se para realidade a

partir de um choque moral, como se pode observar nos dois trechos que seguem:

ABELARDO I – Mas esta cena basta para nos identificar perante o público. Não

preciso mais falar dos meus clientes. São todos iguais. Sobretudo não me traga

mais pais que não podem comprar sapatos para os filhos. (ANDRADE, 2003, p.

43)

ABELARDO I – [...] isso até parece teatro do século XIX. Mas no Brasil ainda é

novo.

ABELARDO II – Se é! A burguesia só produziu um teatro de classe. A

apresentação da classe. Hoje evoluímos. Chegamos à espinafração. (ANDRADE,

2003, p. 44)

Com o objetivo de converter seu público em uma sociedade pensante, com condições

de reconhecer o estatuto social e o papel ocupado por cada cidadão nesse estatuto, Oswald,

antecipando o teatro brechtiano, vale-se do distanciamento crítico entre representação/texto

e plateia/leitor, mostrando que o que está diante destes é apenas uma representação, mas que,

no entanto, há uma realidade para a qual o homem deve despertar, para assim, passar a ser

um sujeito ativo na sociedade. Nota-se ainda que, além de fazer o homem refletir sobre a

condição social que se estabelece de modo exploratório, nos trechos observados, o

dramaturgo procura mostrar, valendo-se de um texto meta-teatral, como a arte que se

produzia no Brasil antes do Modernismo servia ao deleite do público burguês. Outro fato

relevante é a utilização do termo “espinafração”, que seria o próprio retrato da produção

artística de Oswald e do Modernismo, ao passo que buscavam produzir uma arte do

escândalo, que viesse a romper com os padrões morais da sociedade. No que se refere aos

valores familiares, no contexto teatral brasileiro, tal espinafração chega ao seu auge somente

na obra de Nelson Rodrigues. Nesse sentido, Oswald de Andrade antecipa em seu teatro a

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ideia de tornar a cena teatral nacional espaço para sair do puro entretenimento da comédia

de costume para o teatro que faz pensar. Conforme Alves:

A realização dos procedimentos antropofágicos na produção teatral de Oswald de

Andrade aparece no movimento de releitura crítica das manifestações da

vanguarda francesa, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e também no

reaproveitamento de técnicas oriundas do Teatro de Revista, do Circo e da Opereta e de outros dramaturgos lidos por Oswald. O modus vanguardista na linguagem

das peças de Oswald está assegurado pelo caráter de crítica à cultura dominante,

numa perspectiva de incorporação do novo o que implica reconhecer a inserção da

história e da sociedade no texto e do texto na história de forma ambivalente.

(ALVES, 2011, p. 09).

No que se refere à elaboração das personagens, percebe-se que se trata de

representações estereotipadas, caricatas de figuras da sociedade, característica recorrente do

no gênero cômico, pois a caricatura tem o poder de revelar aspectos que, pelas convenções

sociais não são reparadas, ou se são, não são comentadas.

Destarte, percebe-se o desenvolvimento de um sujeito imaginário baseado na figura

do colonizador, do opressor, do qual ninguém pretende ser vítima, mas em que, todos

desejam transformar-se. Somente após converter-se em colonizador, esse sujeito será

lembrado, será considerado sujeito. Assim como ocorrem com as nações e povos que

buscaram a independência para depois se converterem em exploradores, ocorre na peça

supracitada na relação entre os Abelardos I e II, em que o segundo passa a ocupar o lugar do

primeiro para continuar as negociatas com o investidor estrangeiro.

Oswald descreve um país invadido pela cultura exterior e refém do capital

estrangeiro. O produto produzido aqui para gerar o lucro para os países desenvolvidos é

vendido para as próprias pessoas que o fabricam, para que, com esses produtos, possam

demonstrar a “ascensão social”. Assim, o poder aquisitivo passa a ser a principal forma de

domínio que se pode conseguir em detrimento dos valores morais da família e da religião a

exemplo do casamento (sacramento religioso que passa a ser visto como um negócio) e da

produção do conhecimento, que na contemporaneidade, também passa a ser visto com um

produto, pois, ao passo que o conhecimento converte-se em fonte de libertação, se torna

desinteressante às elites dominantes a democratização deste. Segundo Fanon:

O regime colonial cristalizou circuitos, e a nação é obrigada, sob pena de sofrer

uma catástrofe, a mantê-los. [...] Se não se modificarem as condições de trabalho,

serão necessário séculos para humanizar este mundo tornado animal pelas forças

imperialistas. A verdade é que não devemos aceitar essas condições. Temos de recusar categoricamente a condição a que nos querem condenar os países

ocidentais. (FANON, 1979, p. 79; 80).

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Deste modo, o tratamento do tema e a elaboração das personagens oswaldianas

mostram-se significativos, não somente no contexto artístico, mas como leitura de um

cenário nacional que, apesar de moderno, apresenta, ainda, um pensamento arcaico,

subjugado ao pensamento eurocêntrico, o qual o autor procura desvelar.

Considerações finais

Os temas, as personagens, a sátira, a caricatura, as instituições, a família, são aspectos

constitutivos do pensamento crítico oswaldiano, que tem por objetivo construir um sujeito

que, consciente de sua realidade, possa pensar e discutir a identidade nacional brasileira e a

cultura do homem contemporâneo, dentro do contexto capitalista. A literatura dramatúrgica

de Oswald marca um período histórico, sua proposta artística, além de romper com os

padrões estatizados, sugere a modificação de uma estrutura ideológica da sociedade e de

uma cultura de absorção e incorporação que, mesmo incorporada ao mundo tecnológico, de

fácil acesso aos bens culturais e ao conhecimento, segue sendo colonizada.

Por isso, pode-se afirmar que a contribuição de Oswald não se restringe à inovação

estética, pois também as “revoluções sociais, políticas e filosóficas” (CURY, 2003, p. 26),

contempladas em sua obra, possibilitando o homem a repensar a sua cultura e a sua

identidade.

Referências

ALVES, L. K. Releituras da tradição e força criadora no teatro de Oswald de Andrade. In:

Línguas&Letras, Número Especial, 1 semestre, 2011. Cascavel: Edunioeste, 2011.

ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003.

_____. Obras completas -7. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

_____. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1990.

BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo:

Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional,

1976.

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– TEATRO E INTERMIDIALIDADE –

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PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

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ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2002.

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SUMÁRIO

OBSERVAÇÕES SOBRE O ÉPICO NA DRAMATURGIA/TEATRO DO

COLETIVO DE TEATRO ALFENIM: BALIZAS TEÓRICAS, ENGAJAMENTO E

ATUAÇÃO CRÍTICA (DÉCADAS DE 1990-2000)

Rodrigo Rodrigues Malheiros (UEPB)1

Diógenes André Vieira Maciel2

Resumo: Em terras paraibanas, o Coletivo de Teatro Alfenim tem como proposta construir um teatro que

discuta assuntos nacionais, incluindo um ponto de vista regional, a partir da colaboração dos atores e outros

profissionais envolvidos nas suas montagens. Surgida em 2007, a companhia já produziu quatro peças: Quebra-

Quilos (2008); Histórias de Sem Réis (2010); Milagre Brasileiro (2010) e O Deus da Fortuna (2011). Também

fortemente embasada pelos estudos em torno do pensamento estético de Brecht, a companhia visa, em sua

atuação estética, como a paulista, a uma reflexão crítica sobre as dinâmicas sociais e suas contradições no

contexto brasileiro, mediante uma intersecção com uma perspectiva política e histórica. O presente estudo tem

por proposta analisar a maneira como a dramaturgia/teatro do Coletivo de Teatro Alfenim filia-se a uma

tradição do teatro épico brasileiro, ao mesmo tempo em que aponta para re-significações no que diz respeito à

utilização das formas épicas no teatro. Para tanto é preciso examinar como são desenvolvidos alguns aspectos do teatro épico de Brecht na construção das peças em análise e discutir a relação texto/encenação e os processos

históricos, culturais e sociais no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: teatro épico-dialético; teatro brasileiro contemporâneo; dramaturgia não-aristotélica.

Introdução

Raymond Williams, ao estudar a relação entre as formas dramáticas e os processos

sociais, numa perspectiva dialética, afirma que determinadas formas de relação social estão

“profundamente incorporadas a outras formas de arte”. (WILLIAMS, 1992, p. 147) Para o

teórico, não se pode deixar de investigar também as condições sociais de produção, ou

melhor, as questões que não diz respeito diretamente às técnicas de produção, mas que

interferem na fatura final da obra. Portanto, na visão de Williams, a forma captura tanto as

questões técnicas provenientes de uma época em específico, que estão interligadas às

condições socioeconômicas, política e culturais de uma comunidade, como também a

maneira de sentir e perceber o mundo, numa perspectiva crítica e analítica.

Peter Szondi, em Teoria do drama moderno (1880-1950), aponta para uma crise do

drama, visto que as características que definiam o drama, desde o Renascimento, começam

a ser substituídas por elementos épicos. Segundo o teórico, o drama se constrói a partir da

relação intersubjetiva, desconhece tudo externo a ele, é absoluto. Existe uma quarta parede

1 Doutorando. Linha de Pesquisa: Literatura Comparada e Intermidialidade/ PPGLI-UEPB. 2 Orientador.

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na relação espectador-drama e a separação e a identidade entre eles são perfeitas. Sendo

primário, o drama é sempre presente, no entanto, não é estático: o presente passa e se torna

passado quando já não está em cena, por isso pode-se dizer que a cena presente carrega em

si o gérmen da cena futura, que se torna possível pela via do diálogo. Em suma, a unidade

de tempo, de lugar e a exigência de motivação para a sucessão das cenas, bem como o

diálogo, tornam-se fundamentais para existência do drama.

Na virada do século XIX, autores como Ibsen (1828-1906); Tchékhov (1860-1904);

Strindberg (1849-1912); Maeterlinck (1862-1949) e Hauptmann (1862-1946) rompem com

as características que definiam o drama clássico, apresentando novos elementos formais na

construção de suas peças. Seguindo em sua análise, o teórico observa que a dramaturgia do

século vinte encontra no teatro naturalista de Zola, nas peças de um ato de O’Neill, entre

outros dramaturgos, uma tentativa de salvamento do drama. Porém, Szondi deixa claro que

o período de transição não é só marcado pela contradição entre a forma e o conteúdo

apresentado no drama, mas é importante observar que a superação da contradição é

preparada por elementos formais presentes já na antiga forma que se tornou problemática:

“E a mudança para o estilo em si não-contraditório se efetua à medida que os conteúdos,

desempenhando uma função formal, precipitam-se completamente em forma e, com isso,

explodem a forma antiga.” (SZONDI, 2001, p. 95). Em suma, de maneira bastante sucinta,

as formas são históricas.

Anatol Rosenfeld (2008), em sua obra O teatro épico, elabora um estudo sobre os

gêneros literários e seus traços estilísticos fundamentais. Num segundo momento, o teórico

examina as tendências épicas no teatro europeu do passado, elaborando um estudo sobre o

Teatro Grego, o Teatro Medieval, Pós-Medieval, Shakespeare e o Romantismo. Em terceiro

lugar, este autor estuda a assimilação da temática narrativa e a cena e dramaturgia épicas

(como se vê no teatro asiático e na intervenção do diretor teatral), para estabelecer a relação

entre as formas épicas presentes no teatro ocidental e, principalmente, na fundamentação de

um teatro épico, como o formula Brecht.

Iná Camargo Costa (1996), em A hora do teatro épico no Brasil, estuda o teatro épico

e sua recepção/difusão, produção/consumo no teatro moderno brasileiro, num exame que

começa em 1958, com a obra de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam Black-tie,

chegando até 1968, com a estreia de Roda Viva, encenada por Zé Celso a partir do texto de

Chico Buarque, numa visada que toma as propostas de teatro épico numa oscilação entre

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força produtiva, enquanto elemento estético-político, até que suas técnicas são incorporadas

a uma noção de consumo e convenção. Este foi um primeiro trabalho, de cunho acadêmico,

que se propôs a sistematizar a produção de um teatro e dramaturgia épicos no Brasil, em suas

relações com a recepção do pensamento estético e da própria dramaturgia de Bertolt Brecht,

discutindo, inclusive, a relação da crítica com tal produção, num primeiro momento,

incompreendida, mediante uma posição ainda bastante tradicional dos críticos em relação às

formas dramáticas.

Em terras paraibanas, O Coletivo de Teatro Alfenim pautam-se pela construção de

um teatro que discuta assuntos brasileiros, a partir da colaboração dos atores e envolvidos

nos ensaios. O grupo é formado por Adriano Cabral, Cecilia Retamoza, Daniel Araújo,

Gabriela Arruda, Lara Torrezan, Márcio Marciano, Paula Coelho, Verônica Sousa, Vilmara

Georgina, Vítor Blam, Zezita Matos e Wilame AC. Surgido em 2007, a companhia já

produziu quatro peças: Quebra-Quilos (2007); Histórias de Sem Réis(2010); Milagre

Brasileiro(2010) e O Deus da Fortuna (2011). Fortemente embasado pelos estudos de

Bertold Brecht, a companhia visa em sua atuação estética, a uma reflexão crítica sobre as

dinâmicas sociais e suas contradições no contexto brasileiro, mediante uma intersecção com

uma perspectiva política e histórica.

O caráter crítico de suas produções estabelece um diálogo aberto com as dinâmicas

sociais, presentes na contemporaneidade brasileira, e problematiza questões fundamentais

no interior desta sociedade, como a condição do homem explorado e reprimido pelo sistema

capitalista em suas relações de trabalho, uma cultura hegemônica que se constrói a partir da

exclusão e do perene conflito de classes. reprimido pelo sistema capitalista em suas relações

de trabalho, uma cultura hegemônica que se constrói a partir da exclusão e do perene conflito

de classes.

Em O Deus da Fortuna (2011), escrita em processo colaborativo entre os

componentes do Coletivo de teatro Alfenim, o recurso da parábola é utilizado como meio

textual para formalizar um tema épico, que necessariamente extrapola o universo das

relações inter-humanas, visto não mais haver unidade entre o sujeito e o acontecer objetivo.

A parábola, elemento essencialmente narrativo, é utilizada para tratar de um tema histórico

como o capital, o abandono de suas velhas formas de acumulação para o terreno da

especulação financeira. Para tanto, o Coletivo de Teatro Alfenim utiliza elementos formais

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da comédia clássica, como afirma Marciano e Coelho em Cinco tópicos para uma leitura

crítica:

De seus elementos constitutivos aproveita os mais adequados à construção da

narrativa épica, sem a preocupação de uma correspondência estrita às convenções

que determinam o gênero. Essa escolha metodológica nasce da observação de

procedimentos semelhantes adotados por Bertolt Brecht (MARCIANO;

COELHO, 2013, p. 61).

Antonio Candido, em Literatura e Sociedade (2000), adverte ao fato de que a análise

literária não admite um estudo em que texto e contexto são tratados como instâncias distintas,

mas que é preciso entender que essas duas instâncias que por muito tempo foram tidas como

duas maneiras distintas de chave interpretativa do texto literário correspondem-se

dialeticamente, pois o contexto (enunciado do conteúdo) formaliza-se na estrutura da obra a

partir de uma redução estrutural no processo de construção artística.

Essa observação não só implica em uma maneira diferente no tratamento

interpretativo de uma obra literária, como também compreende a forma como fenômeno

histórico. Os procedimentos estético-formais de uma obra literária estão dialeticamente

relacionados às temáticas por ela tratadas. Desse modo, é possível concluir que “o conteúdo

não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a forma não é nada mais que a

conversão do conteúdo em forma” (SZONDI, 2001, p.24 apud. HEGEL, p.303). Esse

entendimento torna-se de grande importância quando se pensa na construção da peça a ser

discutida, Quebra-Quilos (2007), principalmente quando a chave interpretativa para ela é a

análise de uma personagem aparentemente deslocada do contexto em que vive, a saber,

Floriana.

Na esteira dos estudos iniciados por Anatol Rosenfeld, Iná Camargo Costa (1996),

em A hora do teatro épico no Brasil, estuda o teatro épico e sua recepção/difusão,

produção/consumo no teatro moderno brasileiro, num exame que começa em 1958, com a

obra de Gianfrancesco Guarnieri, Eles não usam Black-tie, chegando até 1968, com a estreia

de Roda Viva, encenada por Zé Celso a partir do texto de Chico Buarque, numa visada que

toma as propostas de teatro épico numa oscilação entre força produtiva, enquanto elemento

estético-político, até que suas técnicas são incorporadas a uma noção de consumo e

convenção. Partindo do mesmo princípio,de produção observado por Iná Camargo Costa

sobre as peças das décadas de 50 e 60 a peça Quebra-Quilos, de Márcio Marciano, foi escrita

mediante a colaboração dos atores que integram o Coletivo Teatral Alfenim, de João Pessoa

e estreada em dezembro de 2007. Trata-se, em linhas gerais, de uma mãe (Joaquina) que

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caminha com a filha Floriana rumo à Campina Grande, província da Parahyba em meados

de 1874, cuja época e lugar tornam-se cenário da revolta popular Quebra-Quilos.

Milagre Brasileiro (2010) tematiza, de maneira não convencional, um tempo

marcado pela opressão da Ditadura Militar aos jovens que militaram no movimento

estudantil e intelectuais de diversas áreas do conhecimento, bem como do universo artístico.

Os tempos de chumbo consegue silenciar da memória brasileira todo um leque de injustiças

contra aqueles que não entendiam o regime militar como legítimo, uma vez que o momento

histórico não era para ser marcado pelo terror, mas pelo progresso e pelo fortalecimento de

organizações populares.

Já no início da peça é preciso encarar as fotos dos desaparecidos, que caíram no

obscurantismo da história. O conflito é instaurado a partir de intercalações de quadros que

retratam a família ajustada aos padrões da Ditadura Militar e cenas de alta repressão, como

o interrogatório, ou a que se declama o AI-5 de 1968. Buscando técnicas oriundas do

universo épico para propor reconstruir uma lacuna de silêncio posta pelo poder hegemônico

opressor do regime militar, Antígona, a personagem de Eurípedes, conhecida na tradição

literária ocidental por não se curvar aos mandos do rei Creonte, uma vez que o rei proíbe a

realização do enterro do seu irmão- um direito natural, é evocada para simbolicamente

sepultar aqueles que tiveram seus direitos cerceados no período da Ditadura.

Nesse sentido, temos a arte re-costurando o tecido da história há muito silenciado. A

arte, por sua natureza questionadora, por conter em si o ímpeto de romper com a norma e os

valores fixos, contrários a liberdade de expressão, é utilizada para resolver um fato histórico

que se tornou traumático para aqueles que vivenciaram. A forma ajusta-se a um conteúdo

que não poderia ser dito por meios convencionais, o drama burguês e suas técnicas

dramáticas não suportam um assunto tão pautado na história. A não linearidade dos fatos; as

cenas aparentemente complacentes e que explode o discurso tradicional para fazer a crítica

por um viés irônico (sem preocupar-se com uma sequência cênica, mas com uma

reconstrução histórica); o uso da música como recurso crítico; a presença de Antígona, como

via possível de uma reparação histórica a partir da arte, leva-nos a constatar um teatro

compromissado com a tomada de consciência que precisa posicionar-se diante das

contradições que tentam escamotear uma realidade de injustiças. O ato de Antígona é

emblemático, quando arrebenta com as barreiras da arte e realidade histórica e reescreve na

história, via dramaturgia/teatro um capítulo silenciado da nossa memória.

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Considerações Finais

Antonio Candido (2000), em Formação da literatura brasileira, demonstra a

necessidade de entender a formação desta literatura como um processo histórico, no qual a

relação dialética deste com as formas literárias constroem paradigmas para o que

compreendemos hoje como literatura nacional. Assim, este artigo não se é apenas um relato

histórico, mas uma aproximação de entendimento do processo histórico, conforme propõe

Candido, necessário para demonstrar como as formas literárias se relacionam ao processo

histórico-social. Portanto, estamos lidando com questões de teoria e crítica literárias e não

apenas de história da literatura. Para tanto é preciso examinar como são desenvolvidos

alguns aspectos do teatro épico na construção das peças em análise e discutir a relação

texto/encenação e os processos históricos, culturais e sociais no Brasil contemporâneo.

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SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São

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SUMÁRIO

POÉTICAS DO CORPO FRAGMENTADO

Gabriela Fregoneis (UNICAMP)1

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de investigar as poéticas cênicas em torno do conceito do pós-

humano e pós-antropocênico, tendo como ponto de partida reflexivo a influência das artes visuais eletrônicas

no fazer artístico teatral, ressaltando os cruzamentos existentes entre o uso de mídias e a cena. Quanto ao tema

abordado, uma primeira questão se faz necessária: qual a relação do corpo/mídia no teatro contemporâneo?

Para dar conta desse questionamento, busco refletir e analisar as idéias de Corpo na arte contemporânea, por

meio dos conceitos de Foucault da “morte do homem” e de “Homem-máquina” de Descartes e La Mettrie. O

homem moderno busca, por meio da arte, superar o limite e a potência de si mesmo. O homem pós-moderno

não é mais puramente real, ele ganhou um caráter virtual. É sobre esses temas híbridos e fronteiriços que se dedica o presente trabalho.

Palavras-chave: Teatro, mídias, corpo, poéticas cênicas.

Introdução

Muitos diretores contemporâneos têm utilizado novas tecnologias na cena para a

construção de uma poética própria, desenvolvendo processos criativos e trabalho com atores

de maneiras diversas e singulares. O fio condutor será o estudo das poéticas e aspectos

relacionais que envolvem a cena midiática contemporânea. Uma dúvida surge nesse

momento da pesquisa: Quais as possíveis diferenças entre o teatro pós-humano e o de

marionetes (que já pregava a superioridade da marionete frente ao humano)? Com o

desenvolvimento da pesquisa, notou-se que um número significativo de diretores estão

dedicando seus espetáculos à temática do pós-humano, como o canadense Denis Marleau e

sua peça Os Cegos, o japonês Oriza Hirata que criou uma actróide (atriz andróide) para atuar

na peça Sayonara, Zaven Paré, Edward Kienholz que trabalha com bonecos animados por

motores elétricos, Jean Tinguely e sua arte cinética, Stelarc que substitui partes do corpo por

implantes animados por computador e o grupo performático Survival Research Laboratories.

Logo, como se pode notar, esse tema é recente e conflituoso no que diz respeito ao

seu uso nas artes da cena e quando se fala sobre o uso de tecnologias no teatro surgem alguns

conceitos como: ciberteatro, teatro cinematográfico, cine-teatro, ciberespaço, teatro pós-

1 Doutoranda no curso de Pós-Graduação em Artes da Cena na Universidade de Campinas – UNICAMP; e-

mail: [email protected].

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antropocênico, dentre outros. As correntes de pensamento em torno do tema “pós-humano”

não é algo recente. O físico e filósofo René Descarte (1596-1650) e o médico e filósofo

Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), nos séculos XVII e XVIII já se questionavam sobre

a relação do homem com seu corpo, através do conceito de Homem-Máquina, utilizado por

ambos. Esse tema não é só antigo, quanto também de ampla discussão. Filosofia, medicina,

engenharias e as artes em geral, se debruçaram sobre a investigação desse assunto.

No que diz respeito à convergência do tema com a prática nas artes cênicas e

performativas, a fase de maior ebulição (e deixo bem claro que o início foi anterior a data

citada) iniciou nas décadas de 50 e 60 com vídeoarte, instalações multimídias,

ciberinstalações, videoperformance, etc. Wolf Vostell, Nam June Paik, o movimento Fluxus,

Otto Piene, Nicholas Schooffer, Wen-Ying Tsai, Joan Jonas, Allan Kaprow, são alguns dos

artistas que buscaram e alguns continuam buscando, por meio da arte, problematizar a

relação do homem com o mundo, (principalmente o tecnológico). Alguns artistas defendiam

a máquina como uma possibilidade de extensão da noção de Humano, e outros já remavam

contra o fluxo (fluxus) do desenvolvimento da tecnologia e da revolução industrial. Um

exemplo sobre a crítica à maquinação foi o trabalho desenvolvido pelo movimento Fluxus

na década de 60, como cita Lúcia Santaella (SANTAELLA, 2003):

O movimento Fluxus desenvolveu uma reação crítica e cética contra a máquina,

através da apropriação de seus produtos que eram deslocados de seus contextos e

maltratados. As máquinas Fluxus eram antimáquinas, híbridos deliberadamente

empobrecidos destinados a chocar e satirizar o estado de coisas da sociedade

industrial high tech, refletindo, desse modo, um mal-estar cultural geral para com

a tecnologia.2

Como se pode notar, o Fluxus era um movimento a favor da antiarte tradicional,

pensava o corpo como cerne do processo criativo, o corpo como a matéria principal de

questionamento, bem como suas relações com o mundo social. O coreano Nam June Paik

também criticava a cultura televisiva em suas obras, mas ao invés de simplesmente criticar

a cultura tecnológica ele colocava os próprios vilões como protagonistas, ou seja, monitores

como performers. Em sua videoinstalação Eletronics Superhighway 3, Paik empilhou do

chão ao teto inúmeras TVs que continham conteúdos variados: política,filmes, propagandas,

cenas da natureza, de guerras, etc. A sensação que tenho quando assisto essa obra do Paik, é

2 SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo:

Paulus, 2003, p.157. 3 Acesso em: http://www.youtube.com/watch?v=3rPZYGuCFdw

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que frente a tantas notícias e informações “vomitadas” pela mídia televisiva, o olhar se perde,

a reflexão do espectador frente a toda esse “poluição” visual e sonora cessa, e o que resta é

o caos! A arte de Paik leva a refletir a condição do homem frente à cultura tecnológica

moderna.

Inúmeros são os exemplos de performances e happenings que problematizam a

relação homem-máquina. Saindo das artes plásticas e performativas e unindo a essa

linguagem a cena teatral, o ator e diretor Gordon Craig problematizou a figura do ator em

cena, e criou uma versão inumana do mesmo através da ideia de Supermarionete. Como diz

o próprio Craig (CRAIG, 2012) “fica claro que para se produzir qualquer obra de arte

podemos trabalhar apenas sobre aqueles materiais que somos capazes de controlar. O homem

não é um desses materiais”4.

Craig traz a noção do ator enquanto ser instável, não controlável, motivado por

emoções e psicologismos, por isso precisa ser substituído por algo manipulável, porém

controlável, o que ele chamou de Supermarionete. Craig trouxe à tona questionamentos

cênicos em torno da fisicalidade, da possibilidade corpórea de um Corpo-máquina por meio

das Supermarionetes, desumanizando o ator, retirando sua alma e seu psicologismo e

transformando-o em simples matéria. O trabalho desenvolvido pelo grupo catalão La Fura

Del Baus é um exemplo do desdobramento da ideia da Supermarionete no teatro

contemporâneo. Espetáculos como Vulcano e Tempo de Encontros utilizam a figura da

supermarionete e problematizam a questão da fisicalidade e corporeidade pela (con)-

vivência entre o ator real carnalizado e a máquina-marionete descarnalizada.

Teatro de objetos, teatro de animação, teatro de marionetes, etc, são algumas das

linguagens cênicas que retratam a arte para além do humano. Hans-Thies Lehmann

(LEHMANN, 2007), explica que:

Teatro pós-antropocênico seria uma denominação pertinente para uma forma

importante – evidentemente não a única – que o teatro pós-dramático pode

assumir. Incluem-se aí o teatro de objetos, inteiramente sem atores, o teatro com

tecnologia e máquinas (como aquele do grupo Survival Research Laboratories) e

de modo geral o teatro que integra a figura humana como elemento em estruturas

espaciais semelhantes às paisagens5.

Uma inquietação permanece quanto a essa citação do Lehmann: O que faz do teatro

ser teatro se não mais a presença física de carbono do ator? (É importante lembrar que as

4 CRAIG, Edward Gordon. Ator e a supermarionete. Sala Preta, v.12, n.1, jun.2012, p.102. 5 LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-Dramático.São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.134-135.

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máquinas de silício que “substituem” os atores, também são consideradas atores, mas nesse

caso atores pós-humanos). Qual a essência do teatro na era da Idade Midiática e Pós-

Humana? Com o presente e cada vez mais florescente hibridismo de linguagens artísticas e

tecnológicas surge algo novo que, sem perder o vínculo com o passado, nasce com uma

identidade própria. A ideia e imagem deleuziana de rizoma se enquadram efetivamente aqui.

As novas identidades vão surgindo e se hibridando com as antigas, e assim vão formando

teias e raízes que não possuem nem começo nem fim. Não há hierarquia. Assim como a

pintura não cessou de se desenvolver com o surgimento da fotografia, o teatro não deixará

de existir dentro da era do pós-humano. Hegel se questionou inúmeras vezes sobre o Fim da

Arte clássica e até hoje essa arte não deixou de existir. Novos filhos, novos olhares,

linguagens e singularidades vão surgindo a partir desses “pais”.

Em síntese, pode-se notar que o tema do Pós-humano e suas poéticas fragmentadas

tangenciam uma teia de questionamentos e inquietações no que diz respeito não só as artes,

mas também na Medicina e o desenvolvimento das nanotecnologias, a física e as viagens

nucleares, as engenharias e o amadurecimento cada vez maior da Robótica. O objetivo da

pesquisa de Doutorado é analisar e refletir sobre essas questões apresentadas acima, bem

como a figura do humano em cena, a encenação transhumana e pós-humana, buscando

problematizar seu material, por meio do corpo/mente e de seus processos de subjetivação.

Considerações finais

Como se pode ver é um campo amplo de investigação e com relevância inerente ao

desenvolvimento cênico na contemporaneidade. Em síntese, o artigo busca repensar a figura

do humano dentro do “vir-a-ser” tecnológico do mundo, tendo como alicerce o olhar

fenomenológico dentro das novas criações de imagens do ser humano e suas atuais

transformações.

Referências bibliográficas

CRAIG, Edward Gordon. Ator e a supermarionete. Sala Preta, v.12, n.1, jun.2012.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: Da cultura das mídias à

cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

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SUMÁRIO

REI LEAR, DE MICHAEL ELLIOT: UMA ABORDAGEM À LUZ DE TEORIAS

DE ADAPTAÇÃO E TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Vinícius Zorzal Rosi1 (UFV)

Sirlei Santos Dudalski2 (UFV)

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a adaptação da tragédia Rei Lear, de William

Shakespeare, feita pelo diretor Michael Elliot e estrelada pelo conceituado ator Laurence Olivier, à luz de

teorias de adaptação e tradução, com ênfase na tradução intersemiótica, ou seja, um tipo de tradução que

consiste na transformação de uma determinada obra de um gênero a outro. Levando-se em conta, também, o

fato segundo o qual adaptações e traduções encontram-se inseridas em um determinado contexto, pretende-se

analisar também a performance dos atores e o que pode ter motivado a maneira de interpretação do personagem

Rei Lear conduzida por Laurence Olivier.

Palavras-chave: adaptação; tradução; tradução intersemiótica; interpretação.

Segundo Julie Sanders (2006, p. 18), adaptação é uma prática estilística que consiste

em converter um gênero em outro. Adaptação consiste também em uma tentativa mais

simples de escrever textos que sejam “relevantes” ou mais compreensíveis para novas

audiências e leitores através de processos de aproximação e atualização, assim como um

processo específico de transição de um gênero para outro: de romance para filme; de drama

para musical; dramatização de narrativa em prosa e ficção em prosa. Adaptações podem ser

encontradas em vários gêneros ou mídias: na televisão, nas telas de cinema, em musicais, no

teatro, na internet, em romances, em gibis e no parque temático mais próximo

(HUTCHEON, 2006, p. 2).

Estudos sobre a transição de literatura para cinema são lugares comuns nos dias de

hoje, e qualquer pesquisador interessado neste tipo de estudo estuda adaptação pensando

criticamente sobre o que significa adaptar ou apropriar. A finalidade destes estudos não é

identificar “boas” ou “más” adaptações. Segundo Linda Hutcheon (2006, p. 6-7),

proximidade ou fidelidade ao texto adaptado não é critério de julgamento ou foco de análise,

pois adaptação é repetição, mas repetição sem eco. Por trás do hábito de adaptar, há

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários da Universidade Federal de

Viçosa – UFV. E-mail: [email protected] 2 Professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Viçosa – UFV. E-

mail: [email protected]

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diferentes intenções por parte do adaptador. Adaptação pode ser descrita como: uma

transposição reconhecida de um ou mais trabalhos reconhecíveis, um ato criativo e

interpretativo de apropriação/resgate, um compromisso intertextual com o texto adaptado.

Outro motivo pelo qual não há preocupação com adaptações fiéis às versões originais

se deve ao fato de que é justamente graças à infidelidade ao texto fonte que os trabalhos de

adaptação e apropriação se destacam, devido à criatividade dos autores. Com isso, os estudos

sobre adaptações não pretendem fazer julgamentos de valores, mas sim, analisar processo,

ideologia e metodologia (SANDERS, 2006, p. 19-20).

De acordo com Hutcheon (2006, p. 142), uma adaptação, assim como o texto

adaptado, está sempre inserida em um contexto – um tempo e um lugar, uma sociedade e

uma cultura; ela não existe em um vácuo. Modas e valores também dependem de um

contexto. Muitos adaptadores lidam com essa realidade de recepção ao atualizar o tempo da

história em uma tentativa de encontrar ressonância contemporânea em seu público.

Por tradução, normalmente entende-se como o processo de converter uma linguagem

em outra, assim como a transmissão do que é expresso em uma língua ou conjunto de

símbolos em outra língua ou outro conjunto de símbolos. Entre estas duas definições, há algo

em comum entre ambas: pressupõe-se a existência de algo inerente ao texto, o sentido, que

vai ser transportado para outro texto. Por outro lado, quando levamos em consideração as

teorias segundo as quais o leitor é um construtor do texto e este existe somente na medida

em que é lido, vemos que é impossível a existência de um texto pronto em uma língua, cheio

de significados que o tradutor vai descobrir e, depois, transportar o texto para outra língua.

Desse modo, o trabalho do tradutor passa a ser visto também como uma atividade de leitor

(construção de sentido), indo além de ser apenas um escritor. O texto, como produto da

tradução, também é resultado de uma história de leitura (DINIZ, 1999, p. 27-28).

Thaïs Flores Nogueira Diniz (1999, p. 29) afirma que, no geral, há duas noções acerca

da tradução: fidelidade da tradução e originalidade do texto a ser produzido. A fidelidade

tem sido levada em conta principalmente no que diz respeito a textos centrais ou autoritários,

como a Bíblia Sagrada, o Manifesto Comunista ou as peças de Shakespeare. Em outros casos

em que não são feitas traduções de textos centrais ou autoritários, a tradução não é muito

fiel, mas bem elaborada. Neste contexto, entra em questão o aperfeiçoamento da linguagem

pela cultura receptora, uma vez que não é a relação direta com o texto original que está sendo

julgada, mas sim o fato de que as traduções são resultantes de diversas leituras.

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Do ponto de vista da tradução intersemiótica, o texto traduzido faz alusão a seu

respectivo texto-fonte e, com ele, mantém uma determinada relação ou o representa de algum

modo. Assim como a literatura, o teatro e o cinema também representam atividades

semióticas, pois existem para transmitir significado. Entre dois textos, um teatral e outro

fílmico, cada um pode ser considerado uma tradução ou adaptação do outro. Traduzir do

teatro para o cinema, por exemplo, é o mesmo que passar um texto de um sistema semiótico

para outro. A tradução intersemiótica já se manifesta quando um texto dramático é

transformado em texto teatral, isto é, encenado no palco (DINIZ, 1999, p. 31).

Rei Lear, do diretor Michael Elliot, é uma adaptação para a televisão (posteriormente

lançada em DVD) da tragédia homônima de William Shakespeare. Esta adaptação foi feita

no ano de 1983 e estrelada por Laurence Olivier, no papel do personagem Rei Lear. Laurence

foi um conceituado ator britânico que já havia interpretado outros personagens

shakespearianos no cinema em décadas anteriores, como Henrique V, Hamlet, Ricardo III,

Otelo e Shylock. Em Rei Lear, de Michael Elliot, Laurence realizou sua última atuação em

uma adaptação shakespeariana antes de sua morte, ocorrida seis anos depois.

Embora Michael Elliot tenha preservado os principais conflitos familiares ocorridos

na peça de Shakespeare, o que evidencia seu grau de proximidade ao texto-fonte, sua

adaptação também apresenta suas peculiaridades. A primeira delas encontra-se no cenário.

A primeira cena da peça, a da divisão do reino feita por Lear para suas filhas, é encenada em

um templo com pedras semelhantes às de Stonehenge, e a constituição da paisagem é

baseada nas charnecas estéreis localizadas no norte e oeste da Inglaterra. Além disso, as

mesmas paisagens são, durante boa parte do tempo, sombrias e nevoentas (MINTON, 2012,

p. 2).

Levando-se em conta o pressuposto segundo o qual as adaptações são julgadas não

pela fidelidade ou escassez desta ao texto-fonte, mas pela criatividade do autor, e também o

fato de que existe uma intenção por parte do adaptador no ato de adaptar, percebe-se que,

em Rei Lear, Michael Elliot direcionou seu foco para as performances dos atores. Assim

como uma das características do teatro elisabetano era o foco nas palavras, devido ao fato

do palco elisabetano quase não ter cenário e depender exclusivamente das palavras, Elliot

fez uma tradução intersemiótica de Rei Lear para a tela na qual foi preservada a característica

do teatro elisabetano que remete ao foco no discurso dramático. Daí a principal razão para a

presença de um cenário simples no filme, como descrito acima.

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Para Eric Minton (2012, p. 2), as performances dos atores são baseadas no conflito

entre juventude e velhice presente também na peça de Shakespeare. Este conflito manifesta-

se, principalmente, nas relações entre Lear e suas filhas, e nas intrigas criadas pelo bastardo

Edmundo contra seu pai, conde de Gloucester, e seu meio-irmão Edgar (filho legítimo e

natural herdeiro do conde). No filme de Elliot, a atriz Dorothy Tutin interpreta Goneril como

uma pessoa rígida em suas decisões e incapaz de demonstrar amor verdadeiro. Dessa forma,

o que ela sente por Edmundo provavelmente é cobiça, ao invés de paixão.

Diana Rigg interpreta Regan, a filha do meio. Regan, no filme de Elliot, revela-se

uma personagem intrigante. Ela diz, para usar uma expressão da peça, que é feita do mesmo

metal de sua irmã Goneril, mas diferentemente de sua irmã mais velha, é capaz de sorrir.

Porém, seus sorrisos podem ser tanto de adulação pelo seu pai quanto irônicos. Em suma,

Regan mostra afeto por seu pai em um momento na peça, até unir-se a Goneril e também

maltratar o pai.

Cordélia, a filha mais jovem de Lear, é interpretada por Anna Calder-Marshall. Na

própria peça de Shakespeare, é explicitado que Cordélia é a filha favorita de Lear, e Michael

Elliot demonstra esse grau de afeto na cena da divisão do reino, na qual Lear e Cordélia

entram em cena de braços dados. Vemos no filme uma Cordélia aparentemente ingênua em

relação às atitudes impensadas de Lear, devido ao fato de ser a filha mais jovem e Lear estar

mais velho (MINTON, 2012, p. 3).

Outro momento que merece destaque é o diálogo entre Gloucester (Leo McKern) e

Kent (Colin Blakely), no qual o primeiro apresenta seu filho Edmundo (Robert Lindsay).

Neste diálogo, Gloucester fala a Kent sobre a forma na qual Edmundo foi gerado: fora de

seu casamento. Gloucester demonstra atrevimento ao falar sobre esse assunto, enquanto

Edmundo apenas escuta pacientemente, mas visivelmente constrangido com a situação. Esta

cena põe a vilania de Edmundo em movimento, e este, no filme de Elliot, mostra-se um vilão

frio, e assim como Goneril, incapaz de dar um sorriso.

Por fim, temos o personagem Rei Lear, interpretado por Laurence Olivier. Este foi o

último personagem shakespeariano interpretado por Laurence nas telas antes de sua morte,

que aconteceu em 1989. Em 1983, ano em que foi feita a adaptação de Rei Lear abordada

neste trabalho, Laurence Olivier tinha 76 anos de idade e sua saúde estava bastante

debilitada. Laurence já havia atuado em uma encenação de Rei Lear no ano de 1938. Porém,

em 1983, a situação já era outra: um ator idoso interpretando um personagem idoso.

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Neste contexto, podemos compreender por que Michael Elliot fez sua tradução

intersemiótica de Rei Lear do teatro para a televisão ao escalar um ator já idoso para

interpretar o herói trágico. Percebe-se que sua intenção provavelmente foi instigar o público

a compreender o que é a velhice. O Rei Lear interpretado por Laurence demonstra, por vários

momentos, mudança de humor, impaciência, é egocêntrico e irascível, “tendências naturais

em homens que sabem que seus dias de vida estão diminuindo exponencialmente”

(MINTON, p. 2). Uma exceção é feita na cena em que Lear fica louco no descampado, uma

vez que, nesta parte, Lear interpretado por Laurence não apresenta acesso de raiva, apenas

faz um discurso.

De acordo com Minton (2012, p. 4), na cena em que Lear entra carregando o corpo

de Cordélia nos braços, Olivier interpreta não um Lear enlutado, mas um Lear frustrado.

Frustrado porque Cordélia não respira mais; frustrado porque algumas das pessoas por quem

Lear não tem muita proximidade ainda estão vivos e Cordélia, não mais; frustrado porque,

embora tenha matado o soldado que a enforcou, não conseguiu salvar a vida de sua filha, e

frustrado porque ele poderia fazê-lo se estivesse nos seus dias de jovem. Levando-se em

conta estas observações, concluímos que Michael Elliot aparentemente teve como intuito

demonstrar os efeitos da velhice nas pessoas, se considerarmos como contexto da época a

velhice e saúde debilitada de Laurence Olivier, que provavelmente influenciaram a

interpretação deste do personagem Rei Lear acima descrita.

Considerações finais

Tendo em vista os pressupostos teóricos sobre as versões de Rei Lear citados acima,

vemos que tanto adaptações quanto traduções são resultados de leituras diversas, levando-se

em conta que o adaptador/tradutor, seja ele dramaturgo ou diretor de teatro/cinema, é

também um leitor e constrói seu próprio sentido para a obra que deseja adaptar. Nunca é

demais lembrar que o próprio William Shakespeare foi também um adaptador, uma vez que

suas grandes tragédias foram escritas com base em histórias previamente existentes.

É importante observar também que teatro e cinema são manifestações artísticas

diferentes, cada uma delas possui suas especificidades, tais como: cenário físico, contexto

cultural, texto dramático, interpretação artística dos atores, no caso do teatro; montagem,

recursos de iluminação, filmagem etc, no caso do cinema. Devido a esta diferença entre

teatro e cinema, uma adaptação ou tradução intersemiótica não precisa ser composta com

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base em fidelidade ou proximidade ao texto-fonte, o que permite ao adaptador explorar

intensamente sua criatividade e sua própria leitura do texto a ser adaptado.

Referências bibliográficas

DINIZ, Thaïs Flores Nogueira. Literatura e Cinema: da Semiótica à Tradução Cultural.

Ouro Preto: Editora UFOP, 1999.

HUTCHEON, Linda. A Theory of Adaptation. New York: Routledge; London: Routledge,

2006.

MINTON, Eric. Olivier vs. Lear; Young vs. Old. Disponível em:

<http://www.shakespeareances.com/willpower/onscreen/King_Lear-GRAN84.html>.

Acesso em: 26 ago. 2013.

REI LEAR. Michael Elliot. Inglaterra: Granada Television: ClassicLine, 1983. DVD.

SANDERS, Julie. What is Adaptation? In: __Adaptation and Appropriation. New York:

The New Critical Idiom, 2006, p. 17-25.

VINEBERG, Steve. Olivier´s Lear. Disponível em:

<http://www.jstor.org/stable/4383358>. Acesso em: 26 ago. 2013.

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SUMÁRIO

UMA PEÇA RADIFÔNICA: AMOR POR ANEXINS

Clarice da Silva Costa (UnB)1

Resumo: Esta pesquisa aborda a montagem de uma peça teatral na modalidade radiofônica. O projeto de

extensão Coletivo Transitório de Teatro da Universidade de Brasília produziu uma peça radiofônica a partir do

texto dramático Amor por Anexins, de Artur Azevedo. Foram exploradas as texturas das falas das

personagens, a ambientação das cenas, além da inserção de músicas de época. Artur de Azevedo na montagem

de suas peças utilizava-se da paródia de operetas famosas, nesse sentido, também foram adaptadas modinhas

do século XIX, para as letras de Artur Azevedo, pelas musicistas, Claudia Costa e Ilke Takada, professoras da

Escola de Música de Brasília, na busca de uma aproximação do que poderia ser uma encenação de uma obra de Artur Azevedo. Ao mesmo tempo, em que se buscou uma fidelidade à obra teatral, também se procurou a

uma renovação por meio do uso de uma tecnologia, a gravação radiofônica.

Palavras-chave: peça radiofônica; Artur Azevedo; teatro; tecnologia.

Introdução

O interesse em encenar Amor por Anexins2 adveio do convite para participar do

projeto de extensão Quartas Dramáticas3 no primeiro semestre de 2013, que versou sobre

peças nacionais do século XIX. O trabalho aqui apresentado foi elaborado pelo grupo de

extensão Coletivo Transitório de Teatro4. A escolha desse texto deveu-se ao tipo de

experimentação cênica que se buscava. O projeto tinha por finalidade a gravação em áudio

das peças selecionadas. A partir dessa premissa, o Coletivo Transitório de Teatro procurou

um texto dramático, o qual pudesse ser adaptado para o áudio, tendo a palavra falada como

componente fundamental. Nesse sentido, foi-se pensado a ambientação cênica em um

auditório de rádio da época áurea das peças radifônicas e das radionovelas, entre as décadas

de 1930 e 1960. Visto que nesse período havia uma ênfase no falar o texto dramático, como

também uma preocupação com elaboração dos efeitos de sonorização. Desse modo, a

concepção da encenação deu ênfase às entonações e inflexões das falas das personagens dada

a importância que os anexins e os provérbios têm no texto.

1 Professora doutora do Departamento de artes Cênicas-CEN, coordenadora do subprojeto PIBIDcen/UnB,

[email protected] 2 PINTO (2000, p.11) do árabe an naxid, dito sentencioso. 3 Projeto liderado pelo professor André Gomes do Instituto de Letras da Universidade de Brasília. 4 Grupo de pesquisa cênica vinculado ao departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília, formado

por professores e alunos, liderado pela professora Clarice Costa.

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Para Ubersfeld (2006), há uma diferença entre o aspecto textual da peça e a sua

encenação por se tratar de duas formas diferentes de comunicação, uma vez que são

estruturados com códigos de linguagem díspares, os signos, os significantes e significados

se organizam de modos próprios. No caso da peça escrita, a organização textual determina a

mesma disposição dos componentes da escritura, embora possa haverá diversas

interpretações sobre o significado. A encenação, entretanto, permite que os códigos

adquiram distintos sentidos e disposições, pois não existe uma codificação única ou fechada,

inúmeras encenações teatrais podem se utilizar de um mesmo tipo de iluminação

avermelhada, por exemplo, todavia, na montagem teatral A, ela representar dor, na B: paixão

sexual, e na C: felicidade (numa referencia à cultura chinesa).

Anne Ubersfeld sugere os cadernos de encenação como um lócus de transição entre

o texto dramático e a sua elaboração cênica. Nessa perspectiva, o estudo desenvolvido pelo

Coletivo Transitório de Teatro iniciou-se pelo entendimento da peça, a escolha de concepção

cênica orientou-se pela observação de elementos considerados emblemáticos na obra de

Artur Azevedo como o cômico, a paródia, o entretenimento e o convite à plateia ao deleite.

A opção pelo formato radiofônico deu-se em parte em função da peça ser registrada em

áudio, mas também pelo fato de o rádio ser o primeiro suporte tecnológico do século XX, a

absorver o teatro e o apresentar a um contingente fabuloso de ouvintes.

Foi por volta de 1930, no Brasil, que o rádio tornou-se o primeiro veículo de

comunicação de massa, em sua primeira década de existência o rádio não teve objetivos

lucrativos, mas com a sua transformação em atividade comercial, muitas estações

radiofônicas foram fundadas e a programação diversificou-se. Os rádios teatros foram

programas de prestígio, pois eram tidos como um produto literário. De certa forma, as ideias

machadianas do teatro como elemento educador da sociedade ainda ecoavam, entretanto

eram as radionovelas que tinham grande audiência entre o público ouvinte.

De fato, eram dois formatos diferentes na construção das suas narrativas, as

radionovelas eram apresentadas três vezes por semanas em dias alternados, por meses, com

uma trama maleável ao sabor da oscilação da audiência. Por sua vez, a peça radiofônica

apresentava-se como um produto unitário (PALLOTTINI, 1998) numa extensão de tempo

determinada (entre uma a duas horas) e completa, ou seja, com começo, meio e fim. Além

de ser organizada a partir de um texto literário canônico.

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Embora, tratando-se de um produto artístico direcionado ao grande público e visando

retorno financeiro, a elaboração de um radioteatro demandava a cooperação de uma equipe

de indivíduos capacitados em distintas áreas artísticas como escritores (para adaptação

dramatúrgica), técnicos de áudio, atores, músicos (instrumentistas, arranjadores, cantores),

entre outros. Observa-se, assim, que a interação entre o teatro e o rádio demandava um

esforço conjunto de vários técnicos e especialistas, talvez até maior, do que aquele efetivado

pelos atores de teatro (numa encenação convencional) que estavam inseridos numa tradição

e seguros nas práticas dos fazeres cênicos, que não necessitavam se ajustar a outras formas

do fazer artístico com teor tecnológico. A dimensão da novidade e o interesse em interagir

entre uma forma tradicional de arte – o teatro – com um suporte tecnológico demandou sem

dúvida muito esforço, criatividade, deixando um referencial no imaginário como uma

atividade renovadora de grande qualidade.

Nesse sentido, a prática cênica desenvolvida pelo Coletivo Transitório de Teatro na

construção ou reconstrução da feitura de uma peça radiofônica justificou-se, pois todo legado

deve ser revisitado, estudado, incorporado e superado como referencial para novas

produções artísticas.

Na construção da encenação5 radiofônica de Amor por Anexins foram utilizados os

cadernos de encenação como o lócus de passagem do texto dramático para a cena. Elegidos

os aspectos norteadores como: a comicidade, a paródia e o divertimento da plateia, iniciou-

se a elaboração da encenação. Partindo do próprio texto que traz em si elementos de

comicidade, uma opção pela leveza e brevidade da dramaturgia, enfatizando a finalidade de

divertir, de entreter.

Trata-se de um texto dramático de ato único, que tem no desencontro amoroso das

duas personagens principais o eixo condutor. Ambos desejam contrair matrimônio, mas com

pretendentes idealizados. O desenho dramatúrgico apresenta desde o início as características

das personagens Inês e Isaías. Ela, a jovem viúva, sem filhos e costureira, revelando sua

condição financeira limitada; ele, um velho também sem filhos numa situação econômica

levemente melhor. O fio condutor não é o suspense, a trama envolvente, mas um jogo bufo

de sedução quase amorosa que constitui um enredo cômico entre o casal.

5 Encenação: designa a atividade que consiste no arranjo, num certo tempo e num espaço de atuação, dos

diferentes elementos de interpretação cênica de uma obra dramática. (PAVIS, 2011, p. 122).

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Azevedo constrói Isaías como um velho pedante que se utiliza de ditos populares

para se comunicar o que produz o efeito cômico, pois seu discurso caracteriza-se como

estereotipado e mecânico. Segundo Bergson (1983), o gesto mecânico provoca o riso porque

se afasta do orgânico, ou seja, o indivíduo não interage com a realidade imediata, pois possui

um repertório fixo, repetitivo, que sempre se reproduz, distanciando-se de uma resposta ou

atuação apropriadas para o momento. Dessa forma, o mecânico manifesto pelo gesto

estereotipado provocaria uma destituição da condição humana, nessa situação, para Bergson

o riso seria uma dinâmica social para a limitação do comportamento mecânico.

Em Amor por Anexins (1872) pode ser observado como a personagem Isaías é a

exemplificação desse tipo de cômico, o texto do seu discurso é construído por meio de ditos

populares. Esses dois elementos dão a peça eficácia, pois o uso contínuo dos ditos populares

resulta no comportamento repetitivo de Isaías, gerando o efeito cômico, ao mesmo tempo

em que os ditos são de domínio do senso comum, permitindo à plateia acompanhar e

entender perfeitamente a proposta do autor. Para Pinto (2000), os anexins trazem em si

valores, conhecimentos e até mesmo preconceitos de forma resumida e de amplo

conhecimento social. Além dos anexins, a peça é composta por copla6, canto7, recitativo8,

didascálias9 e diálogo10, sendo um ato composto por sete cenas11. Artur Azevedo dispõe

esses componentes de modo a constituir o ritmo cômico: há cenas em que o ritmo é veloz

como no que se segue:

Isaías – o diabo não é tão feio como se pinta...

Inês – é feio, é!...

Isaías – quem ama o feio bonito lhe parece.

Inês – amá-lo, eu?! ... Nunca!... Isaías – ninguém diga: desta água não beberei...

Inês – é abominável! Irra!

Isaías – água amole em pedra dura, tanto dá...

Inês – repugnante!

Isaías – quem espera sempre alcança.

Inês – desengane-se.

Isaías – o futuro a Deus pertence.

6 Copla: música popular espanhola (HOUAISS, 2001, p.831). 7 Canto: parte musicada. 8 Recitativo: na ópera ou na cantada, parte declamada – e não cantada. (PAVIS, 2011, p.332). 9 Didascálias: indicação cênica ou rubrica. (PAVIS, 2011, p. 96). 10 Diálogo: conversa entre duas ou mais personagens. O diálogo dramático é geralmente uma troca verbal entre

as personagens. (PAVIS, 2011, p. 92). 11 Cena: na tradição ocidental organiza-se pela entra e saída de personagens.

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Ou lento como num non sense, quando as personagens encontram-se confusas, e a

pausa impõe-se como fator cômico:

Isaías (chegando mais a cadeira) – o que não tem remédio, remediado está.

Inês (afastando a sua) – o que mais deseja?

Isaías – diga-me cá: seu noivo?.... (Faz-lhe uma cara) Inês – não entendo.

Isaías – para bom entendedor meia palavra basta...

Inês – mas o senhor nem meia palavra disse!

Isaías – pergunto se... Fala francês?

Inês – como?

Isaías – ora bolas! Quem é surdo não conversa!

Inês – mas a que vem essa pergunta?

Isaías (naturalmente) – quem pergunta quer saber.

Inês – ora!

O dramaturgo vai alterando o ritmo – mais rápido, mais lendo – dos diálogos no

objetivo de manter a cadência da manutenção da comicidade. Também introduz as partes

cantadas em solos ou duetos, de modo paródico, pois era comum, no século XIX, a utilização

de uma melodia qualquer12, e letras ou versos próprio ou de vários autores. Artur Azevedo

também fez uso dessa prática, em Amor por Anexins, as letras das partes musicais são de

sua autoria. Por isso, o Coletivo Transitório de Teatro optou por manter as letras musicais

contidas na peça, e seguir a orientação da professora Claudia Costa13, parodiando as

melodias marcantes desse período histórico. Para tanto foram empregadas melodias das

modinhas imperiais copiladas por Mário de Andrade. Para a adaptação a pesquisadora usou

a prosódia musical, na qual o acento da fala do texto flexiona-se de acordo com o acento

musical, criando harmonia entre a melodia e a letra, o que acalenta o ritmo cômico, como no

momento em que a professora lança mão da melodia do hino nacional para a letra de

decepção de Inês, impondo um ritmo épico, ao mesmo tempo em que patético.

Desse modo, a encenação proposta pelo Coletivo Transitório de Teatro buscou

interagir aspectos teatrais com a tecnologia do áudio, tentando ao mesmo tempo, preservar

características relevantes do texto dramático e dialogar com o suporte radiofônico, elevando

a encenação além do efêmero característico do teatro.

Considerações finais

12 A ideia de patente ou autoria é um bem recente. 13 Claudia Costa é professora doutora da Escola de Música de Brasília e pesquisadora do Coletivo Transitório

de Teatro.

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O trabalho cênico apresentado foi elaborado por meio da interseção entre o texto

dramático e a encenação radiofônica. Em meados do século XX, a utilização de suportes

tecnológicos em montagens teatrais tornou-se usual, desde o uso de sonoplastias gravadas,

de iluminação, a utilização de microfones, a projeção de filmes, como a interação entre o

radio e o teatro. Atualmente, com a sofisticação tecnológica a utilização de tais recursos nas

cenas tornam-se mais atraentes a experimentações cênicas, entretanto, já estão presentes

desde Piscator, na década de 1920, na Alemanha.

Referências

AZEVEDO, Artur. Amor por Anexins. Disponível em: <www.bibvirt.futuro.usp.br>.

Acesso em 18 de março de 2013.

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SUMÁRIO

UTILIZAÇÃO DE SONS EM TEXTOS POÉTICOS

Káshi Mello (UnB)1

Clarice Costa (UnB)2

Resumo: Esta pesquisa aborda o desenvolvimento de um trabalho sonoro poético a partir de poemas de Cecília

Meireles, extraídos do livro “Ou isto ou aquilo”, publicado pela primeira vez em 1964. Utilizam-se recursos

tecnológicos como handycam, computador e celular para formatação da produção estética sonora, buscando o

intercâmbio sonoro lírico poético da obra da autora. O trabalho é desenvolvido com alunos do 5° ano de uma

Escola Parque, localizada em Brasília-DF. Esse processo viabiliza uma relação mais próxima dos alunos com

a poesia, com o lirismo e com os sons que se podem agregar à linguagem textual. As onomatopéias, por

exemplo, contidas na poesia, serão utilizadas como condutor sonoro para a construção de produção de sentidos,

desenvolvendo uma percepção auditiva diferenciada nos alunos. O processo em sala de aula é feito a partir dos jogos teatrais de Viola Spolin agregado a técnicas musicais, possibilitando trabalhar a integração e inclusão do

som ao texto poético, onde o lúdico é despertado pelos diversos sentidos estimulados.

Palavras-chave: Sonorização; poesia; jogos teatrais; tecnologia.

Introdução

O objetivo principal da pesquisa de Sonorização de textos poéticos é promover um

diálogo entre a música e o texto por meio da utilização de técnicas musicais para a construção

e sonorização de poesias com alunos do ensino fundamental.

O trabalho é organizado no fazer teatral unindo-o ao fazer musical, utilizando uma

pesquisa poético/textual que intensifica a relação entre narrador, ator, produtor sonoro e o

público. Exercer uma atividade conjunta entre a arte/educação e a importância da música no

processo de formação e entendimento do teatro está diretamente ligado entre teoria e prática

da educação artística, onde a prática deve ser introduzida inicialmente e logo após, os

conceitos teóricos necessários que colaborem no entendimento do processo.

Para a elaboração de uma sonorização poética a metodologia baseou-se na utilização

de instrumentos musicais simples, como o triângulo (que explora o som metálico, a

intensidade e o ritmo); o caxixi3, (que marca o tempo e o ritmo, além de produzir outros sons

de efeitos como a chuva); o apito (que utiliza a coluna de ar, produzindo diferentes alturas e

1 Bolsista PIBID, graduanda em Artes Cênicas Licenciatura. 2 Professora Drª do Dep. de Artes Cênicas, orientadora do PIBID. 3 Caxixi: Instrumento de percussão com o formato de um pequeno cesto de palha trançado, o fundo tampado

por cabaça com seu interior preenchido por sementes, utilizado comumente como chocalho. Nos jogos de

capoeira o caxixi é acompanhado principalmente pelo berimbau.

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timbres sonoros); o metallophone4, o qual introduz a noção de escalas e a diferenciação de

altura, entre o grave e o agudo, além do som metálico que insere um tom lúdico para a cena.

Também se promoveu a construção de instrumentos improvisados, elaborados

artesanalmente pelos educandos como, por exemplo, um chocalho feito com material

reciclável de copos de iogurte e sementes; um conjunto de chaves penduradas por um

barbante presas em um pequeno pedaço retangular de madeira, gerando um som semelhante

ao do carrilhão5, com o som metálico que também sugere um ambiente imagético para a

cena. Estes e outros objetos que possam servir de recurso sonoro para agregar o som ao texto

e à cena serão trabalhados e manuseados em sala de aula pelos alunos.

Esta pesquisa foi desenvolvida com alunos do 5° ano do ensino fundamental da

Escola Parque com duração de dois meses, iniciada em agosto de 2013, ainda em andamento,

sob supervisão do professor Márcio Vasconcelos e sob orientação da professora Clarice

Costa pelo PIBID6.

A Escola Parque é um projeto pedagógico idealizado pelo professor Anísio Spíndola

Teixeira em 1947, aplicada primeiramente na cidade de Salvador – Bahia em 1950. Sua linha

de pensamento segue os princípios de John Dewy, que defende a relação Educação/Ação,

onde só há educação quando existe prática de experiências da vida. O currículo deve centrar-

se também nas atividades cotidianas e não somente em matérias convencionais.

O projeto da Escola Parque (E.P.) chegou a Brasília no dia 20 de novembro de 1960

no mesmo ano de inauguração da capital. A primeira Escola Parque da cidade está localizada

na 308/309 sul. Anísio Teixeira era a favor do ajuste da educação à diversidade das condições

concretas, fazendo dela um instrumento de mudanças e desenvolvimento progressivo no

processo de aprendizagem. As aulas na E. P. são realizadas no turno contrário ao do ensino

básico da Escola Classe.

O ensino é composto por aulas de artes cênicas, artes visuais e música, onde os

próprios alunos podem optar entre duas das três atividades artísticas supracitadas, mais

educação física.

4 Metallophone: Instrumento musical percussivo semelhante ao vibrafone, porém, com o corpo no formato de

uma pequena caixa de madeira retangular e teclas de metal, utilizando-se baquetas para emissão do som. 5 Carrilhão: Instrumento de percussão, feito por vários e pequenos tubos de metal dispostos em fila crescente

que vai do tubo maior para o menor, sendo que o maior tubo irá emitir um som mais grave, e o menor o mais

agudo. A diferença do tamanho dos tubos é gradativa, simulando uma escala cromática. É muito utilizado por

percussionistas em shows e orquestra, dando um efeito mais lúdico em determinado momento da peça, seja

musical ou teatral. 6 Programa Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência.

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A instituição atende por módulos:

Módulo I Módulo II Módulo III

EDUCAÇÃO

FÍSICA

ARTES VISUAIS ARTES

CÊNICAS

MUSICA

No Módulo III existe a opção entre artes cênicas ou música. Os alunos freqüentam a

Escola Parque uma vez por semana e suas atividades diárias são compostas por três aulas

com duração de 1 hora e meia cada e um intervalo de 30 minutos, contabilizando 5h por dia

na escola.

Os professores trabalham em trios e se revezam entre três turmas, que possuem em

média 15 a 20 alunos, além de realizarem projetos interdisciplinares, onde o tema varia de

acordo com a proposta pedagógica da escola estipulada para o ano corrente, tendo como

fundamento principal o desenvolvimento de competências e habilidades nos alunos,

auxiliando na formação de um novo cidadão capaz de ter uma consciência social

crítica/transformadora na sociedade em que vivem.

A pesquisa de sonorização de poesias surgiu pela necessidade de desenvolver

habilidades práticas que expressem sensações e estimulem os sentidos, utilizando a fala e

som para se trabalhar as palavras e a sonoridade natural presente em cada uma delas. O texto

poético de Cecília Meireles foi utilizado com base e referencia nas figuras de harmonia,

como exemplo a aliteração, presente no livro “Ou isto ou aquilo” de Cecília Meireles7. As

poesias foram pensadas exclusivamente por fazerem parte do universo infantil, onde as

palavras são usadas para comunicar e transmitir mensagens, contar histórias e sonhos da

infância, situações que muitas crianças já passaram ao brincar, correr, viver e sonhar.

As ideias transmitidas pelas poesias são sonoras e agradáveis de ouvir, o texto

comunica à criança que também pertence ao mundo dela, isso permite que a ela compreenda

a situação representada pelo poema, uma aproximação que faz com que a criança se entregue

à leitura e viaje no tempo e no espaço, com sons e imagens abstraídas das mentes dos jovens

sonhadores.

Nesse exercício de leitura e sonorização, com o auxílio de instrumentos musicais

simples de percussão para a difusão e ambientação sonora das poesias, o processo foi

7 Poesias do livro “Ou isto ou aquilo” utilizadas em sala de aula: Enchente, Pescaria, Ou isto ou aquilo, Chácara

do Chico bolacha, A língua do nhem, As meninas, O Eco.

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sistematizado a partir de um cronograma e um roteiro de atuação articulado para obtenção

de melhores resultados e possíveis alterações no processo metodológico.

Para realizar a proposta foi necessário elaborar um roteiro de atividades, onde a

abordagem adotada em sala de aula baseia-se nas:

Rodas de Conversa, utilizada para se obter melhores relações de convivência e troca de

experiências onde as conversas são relacionadas com o tema proposto para a execução

do trabalho; é uma abordagem necessária para compreensão e diagnose da turma

direcionando um foco para a atividade;

Exercícios de aquecimento vocal e corporal, necessários para a concentração e preparo

para a atividade, proposta onde se utilizarão o corpo e a voz como princípios básicos de

aplicação e concretização da proposta supracitada;

Leitura de poesias para familiarização e conhecimento prévio por parte da turma.

Divisão de grupos: de 5 a 6 alunos.

Produção de Desenhos, para cada grupo é solicitado o mínimo de dois desenhos, com

interesses coletivos, sobre a poesia escolhida;

Escolha do narrador, o grupo escolhe o narrador e a partir da leitura feita por ele, os

outros integrantes improvisam e experimentam os possíveis sons externos, produzidos

com instrumentos de percussão, agregando-os ao texto poético.

Para viabilizar o projeto também foi necessário contextualizar a proposta com os

jogos teatrais de Viola Spolin. Ao contextualizar os jogos teatrais com o cotidiano do aluno

é possível promover uma relação amistosa entre os envolvidos, instigando a criatividade e a

autonomia das crianças, tornando a aula mais produtiva quando esta se faz no rumo da

aprendizagem prática com ação concreta. Dessa forma, o professor traça um método

específico para lidar de forma diferenciada, seja com os jogos teatrais ou com qualquer outro

tipo de relação de convivência, particulares de cada indivíduo e cada turma.

No decorrer do trabalho, enquanto se introduziam as poesias, foi possível inserir

métodos interdisciplinares com objetivos direcionados para a concentração, foco e entrega à

proposta. Esses métodos funcionam como chave na inserção da aprendizagem artística como

fator de formação de crítica social do indivíduo.

A produção de desenhos feita pelos alunos foi pensada como pesquisa imagética

utilizada como metodologia para aplicação em sala com o objetivo de inserir o aluno no

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universo poético, necessário para captar a mensagem de cada poesia, facilitando o

entendimento para a reprodução falada e sonorizada.

O aluno lê a poesia e tenta captar a mensagem pela prática imagética, reproduzindo

a idéia e expressando-a com o desenho.

Jogo de Bola

A bela bola

rola:

a bela boda do Raul.

Bola amarela,

a da Arabela.

A do Raul,

azul.

Rola a amarela

e pula a azul.

A bola é mole,

é mole e rola.

A bola é bela,

é bela e pula.

É bela, rola e pula,

é mole, amarela, azul.

A de Raul é de Arabela,

e a de Arabela é de Raul.

O trabalho interdisciplinar entre música e teatro modifica as relações interpessoais

dos alunos, possibilitando maior foco, unificação, produção e resultado (pois este vê que é

capaz de realizar a atividade) qualificando o trabalho em grupo.

A música e a pesquisa da própria sonoridade corporal ajudam na reestruturação da

energia do grupo, possibilitando desenvoltura e conhecimento de sua capacidade de produzir

e criar.

Desenhos das alunas do 5° ano do Ensino

Fundamental da Escola Parque

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O processo de sonorização foi realizado de maneira interdisciplinar trabalhando de

forma conjunta com as artes visuais, cênicas, musicais mais a literatura. Seu resultado foi

satisfatório, pois possibilitou aos alunos o desenvolvimento de habilidades motoras além da

leitura e da fala. É um processo que não tem seu fim escrito, ainda está em construção e

adaptações, mas sua aplicação possui conteúdo prático e teórico, possibilitando um bom

retorno educacional, metodológico, prático e transformador para a educação artística de

alunos.

Considerações finais

O processo que relaciona o ensino da música com o teatro possibilita aos alunos uma

nova maneira de entendimento do texto e da cena a partir da busca pela sonorização. Sua

aplicação proporciona uma nova maneira dos alunos entenderem o teatro e sua forma sonora

sensibilizadora.

A música se torna determinante no processo de absorção e entrega. O aluno entende

seu benefício no processo de criação e improvisação de uma dramaturgia, fazendo-o produzir

de maneira convicta, segura e imagética buscando e aguçando uma sensibilidade sonoro-

artística, muitas vezes adormecida ou intocada.

Como resultado da proposta de sonorização de poesia um vídeo foi produzido com o

intuito de registrar os passos dos alunos, onde demonstram parte de sua pesquisa

sonoro/poética. O processo, ainda em andamento, foi apresentado no I Seminário de

Dramaturgia e Teatro – Teatro e Intermidialidade, um Evento de Extensão promovido pela

Universidade Estadual de Londrina – PR em outubro de 2013.

O processo de educação musical dentro do teatro tem como objetivo resgatar sua

conexão interdisciplinar, visto que ambas as áreas, quando trabalhadas em conjunto,

potencializam o ensino artístico além de auxiliar no processo de foco, criação, busca e

participação ativa do aluno.

Bibliografia

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_____________ e VIEIRA, Sulian, A produção Vocal em Altas Intensidades: uma

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