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ANAIS DO 5º S&D ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7 ARTE E LITERATURA EM CENÁRIOS SOCIOJURÍDICOS 14-16 de outubro de 2015 NITERÓI: Ed. PPGSD 2015

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ANAIS DO 5º S&D

ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7

ARTE E LITERATURA EM CENÁRIOS

SOCIOJURÍDICOS

14-16 de outubro de 2015

NITERÓI: Ed. PPGSD

2015

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5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7.

II

COMISSÃO CIENTÍFICA

Adriana Ribeiro Rice Geisler (PPGPC-FIOCRUZ)

Alba Simon (PPGSD-UFF)

Alexandre Fabiano Mendes (PPGDIR-UERJ)

Ana Alice de Carli (PGTA-UFF)

Ana Cláudia Diogo Tavares (PPDH-UFRJ)

Ana Maria Motta Ribeiro (PPGSD-UFF)

Andreza Aparecida Franco Câmara (UFRRJ)

Annelise Fernandez (PPGCS– UFRRJ)

Bárbara Gomes Lupetti Baptista (PGD-UVA)

Cândido Duarte (PPGSD-UFF)

Carla Appollinario de Castro (PPGSD-UFF)

Carlos Magno Spricigo Venerio (PGDC-UFF)

Cecilia Caballero Lois (PGD-UFRJ)

Célia Barbosa Abreu (PGDC-UFF)

Clodomiro José Bannwart Júnior (PPGDN-UEL)

Delton Meirelles (PPGSD-UFF)

Eder Fernandes Monica (PPGSD-UFF)

Edson Alvisi Neves (PPGSD-UFF)

Elizabete Rosa de Mello (PGDHI-UFJF)

Elve Miguel Cenci (PGDC-UEL)

Fabiana de Cássia Rodrigues (PPGE-UNIVAS)

Fernanda Duarte (PGD-UNESA)

Gabriel Rached (PPGSD-UFF)

Gilvan Luiz Hansen (PPGSD-UFF)

Gizlene Neder (PPGSD-UFF)

Gustavo Siqueira (PGD-UERJ)

Ivan Alemão (PPGSD-UFF)

Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima (PPGHCA-UNIGRANRIO)

Jacqueline Muniz (PPGSOC/IUPERJ)

Joaquim Leonel de Rezende Alvim (PPGSD-UFF)

Marcio Renan Hamel (PPD-UPF)

Marcus Fabiano Gonçalves (PPGSD-UFF)

Maria Celeste Simões Marques (PPDH/UFRJ)

Mônica Paraguassu Correia da Silva (PGDC-UFF)

Napoleão Miranda (PPGSD-UFF)

Ricardo Lodi Ribeiro (PGD-UERJ)

Thiago Rodrigues Pereira (PGDH-UCP)

Vivian Paes (PPGSD-UFF)

Vladimir de Carvalho Luz (PPGSD-UFF)

Wilson Madeira Filho (PPGSD-UFF)

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5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7.

III

COMISSÃO ORGANIZADORA

Wilson Madeira Filho

Carolina Weiler Thibes

Emmanuel Oguri

Mara Cátia Faria

Marcelino Conti de Souza

Rodolfo B. de M. Lobato da Costa

Rogério Rocco

Tauã Lima Verdan Rangel

Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo

Wagner de Oliveira Rodrigues

DIAGRAMAÇÃO

Erick Brum

Marcelo Tammela Madeira

EDIÇÃO DOS ANAIS

Eder Fernandes Monica

Tauã Lima Verdan Rangel

Wagner de Oliveira Rodrigues

Wilson Madeira Filho

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Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7.

IV

APRESENTAÇÃO

Com a temática “3º Mundo Terceirizado”, a quinta edição do

Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito, organizado e promovido pelo

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal

Fluminense (PPGSD-UFF), com a participação de importantes colaborações de

Docentes e Discentes dos diversos programas de pós-graduação, vem se

consolidando como um espaço crítico-reflexivo fecundo para a promoção de um

debate plural, complexo e interdisciplinar.

Trata-se, portanto, de um espaço destinado a consolidação das

perspectivas de análises empíricas, permitindo a superação dos paradigmas

essencialmente dogmáticos, ao tempo em que se pauta no imprescindível diálogo

propiciado pela interdisciplinaridade, com foco especial para a condição do

agente catalizador da dinâmica contemporânea, capaz de impulsionar a

construção e difusão do conhecimento.

O 5ºS&D apresenta como objetivos principais: (i) fortalecer o espaço

interinstitucional para fomentar debates, pesquisas e reflexões interdisciplinares

entre o Direito e a Sociologia; (ii) promover a interlocução entre Discentes e

Docentes dos diversos Programas de Pós-Graduação e instituições de pesquisa;

(iii) incentivar e contribuir para o aperfeiçoamento do trabalho de pós-graduação

por da construção de um espaço que dialogue, de maneira plena, a pesquisa, o

ensino e a extensão.

Wilson Madeira Filho

Coordenador do 5º S&D

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V

SUMÁRIO

“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS -

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson. .................................................................... p. 01-24

PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE SANTO

AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O DIREITO MODERNO -

LUTFY, Fátima Lopes do Amaral. ..................................................................................... p. 25-40

EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO

COMO FRAGMENTO DO ABSURDO - BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique;

MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius; NUNES PEREIRA, Daniel. ................................ p. 41-52

AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE

CHIQUINHA GONZAGA COMO PARADIGMA DE GÊNERO - COSTA, Lara Denise

Góes da. ................................................................................................................................ p.53-72

RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR

HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO

INFORMAL - LEMOS, Fábia de Castro; MEIHY, José Carlos Sebe Bom. ..................... p.73-83

UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE “JULGAR” -

TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva.............................................. p.84-103

NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO - BRAIDA, Ricardo......104-122

PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO - DUARTE,

Silvia Valeria Borges; SOUZA, Marcelino Conti de. ...................................................... p.123-140

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

1

“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS

AMERICANOS

DIAS, Fabricio

Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da

Universidade Federal Fluminense

MADEIRA FILHO, Wilson.

Doutor pela PUC-Rio. Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e

Direito da Universidade Federal Fluminense

RESUMO

Texto

Palavras-chave

ABSTRACT

Text

Key-words

Introdução

Criada e produzida por Vince Gilligan, exibida pela emissora de televisão norte-

americana AMC no período compreendido entre janeiro de 2008 e setembro de 2013, a

série Breaking Bad estabelece logo nas suas primeiras sequências o lugar de onde o

discurso narrativo será proferido: a classe média da sociedade norte-americana. Após as

cenas da introdução do episódio piloto é apresentada ao telespectador uma típica casa de

uma família classe média, localizada na cidade de Albuquerque, Texas, no oeste

americano, no árido deserto, fronteira silenciosa do capitalismo, o lugar em que Walter

White, o protagonista da série, iniciará sua transformação.

Do quarto pequeno, vemos White, o protagonista do seriado, e sua esposa,

Skyler. O primeiro acordado, insone, a segunda em sono profundo, despreocupada. A

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

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câmera passeia pela casa deixando o telespectador descobrir a decoração sem qualquer

luxo, móveis sem requinte, os brinquedos de criança semiembrulhados escondidos

dentro de um armário aberto, um aparelho de exercício aeróbico no meio da sala, uma

placa na parede de onde se lê “contribuinte para a pesquisa que recebeu o prêmio

Nobel, 1985”, endereçada a Walter White.

A descrição da regular vida da classe média americana prossegue na sequência

seguinte, no café da manhã com a típica família nuclear reunida em torno da mesa;

Skyler, a mãe, dona de casa, responsável pela organização e pela administração da casa,

Walter White, o pai, provedor financeiro e Walter White Junior, o filho dependente que

possui necessidades especiais devido a uma paralisia cerebral, que se locomove com o

auxílio de muletas. Os ovos e o bacon vegetariano, o beijo protocolar da esposa em

White parecem querer denunciar uma vida confortável, mas que se mantém dentro de

severos limites financeiros; uma vida que parece estar sempre à beira do suportável,

morna feito o beijo de aniversário recebido pelo protagonista naquela manhã.

A rotina apresentada pelo diretor/autor estende seus braços, se prolongando para

a sala de aula onde White leciona química para turmas de alunos desinteressados e

entediados, incapazes de enxergar aquilo que o protagonista tem para si como a coisa

mais fascinante do mundo, algo quase sagrado. É através do exercício da docência para

turmas de alunos de uma high school que o protagonista provém sua família, que se

mantém como o patriarca, se responsabilizando diretamente pela alimentação,

segurança, proteção e felicidade dos entes familiares.

Contudo, a identidade social ocidental americana que se conecta,

tradicionalmente, ao ethos do sucesso1 se encontra apartado da realidade do

protagonista, e os valores que vão ao encontro e dão sustentabilidade ao que

historicamente se denominou de ―boa vida‖, perderam o rumo neste caso particular,

restando para White um exercício constante e inútil do seu ofício, um esforço exaurido

1 Conjunto de hábitos, síntese dos costumes da sociedade ocidental que implicam na valorização do

indivíduo, considerada a sua situação financeira e sua capacidade de consumo, conforme STEPHERSON,

Jeffrey E. O vício americano de Walter White. In: KOEPSELL, David R; ARP, Robert. Breaking Bad e a

filosofia: viver melhor com a química. São Paulo: Ed. Figurat, 2014, p. 261.

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já na sua fonte e que se mostra incapaz de alterar o quadro de frustração apresentado

pela narrativa, se constituindo, em verdade, a rotina de White, num verdadeiro trabalho

de Sísifo.

O trabalho atrelado a uma rotina cega e desgastante era, tradicionalmente, no

contexto do ideal do sonho americano, o passaporte para o sucesso financeiro e

consequentemente, o ticket para a felicidade dos indivíduos, permitindo àqueles o

ingresso no sistema de valores da sociedade de consumo que começava a estabelecer

suas bases fortes no período do pós-guerra. Mais importante, o trabalho permitia o

acesso dos integrantes da sociedade colonial do oeste bravio à cidadania, pois tal

condição passou a ser parte essencial do processo democrático de reconhecimento

daquela.

A narrativa da série Breaking Bad evidencia, de maneira subjacente; que apesar

de ser um profissional altamente qualificado, que dedicou grande parte da sua vida à sua

carreira, a seu trabalho, White falhou em alcançar o sucesso, e assim,

consequentemente, a felicidade. Daí a frustração do protagonista. Nitidamente, o sonho

americano para o personagem não deu certo e a própria consciência desta constatação

não parece assustar o protagonista, mas sim, pelo contrário, o coloca num primeiro

momento em um estado de torpor e aceitação.

E nisto, diante de todos os problemas que enfrenta, White procura a todo custo

manter a sobrevivência e unidade da família que é de sua total responsabilidade, dado o

papel social destacado historicamente para ele, o de mantedor financeiro, de patriarca.

Tal arranjo institucional e as suas respectivas motivações, assim como outras

características, explicam em grande parte a configuração quase imutável da família

nuclear, revelada através da análise de diversos seriados norte-americanos que aqui

iremos empreender.

1. A família nuclear nos seriados de televisão

Através de um pequeno apanhado histórico das produções cinematográficas e

televisivas norte-americanas, percebemos de imediato que grande parte destes produtos

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

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culturais constrói suas narrativas no seio da vida das famílias de classe média,

gravitando as tramas e os discursos ao redor da família nuclear, modelo padrão da

sociedade ocidental, conforme observa Hobsbawn

(...) cruzando todas as variações, a vasta maioria da humanidade partilhava

certo número de características, como a existência de casamento formal com

relações sexuais privilegiadas para os cônjuges (o ―adultério‖ é

universalmente tratado como crime); a superioridade dos maridos em relação

às esposas (―patriarcado‖) e dos pais em relação aos filhos, assim como às

gerações mais jovens; famílias consistindo em várias pessoas; e coisas assim.

Quaisquer que sejam a extensão e a complexidade da rede de parentesco e

dos direitos e obrigações mútuos dentro dela, uma família nuclear, um casal

com filhos - estava geralmente presente em alguma parte, mesmo quando o

grupo ou família co-residente ou cooperante era muito maior. 2

Séries televisivas norte-americanas como os Flintstones (1960-1966), os Jetsons

(1962-1963), os Robinsons: Perdidos no Espaço (1965-1968), os Simpsons (1989- ...) e

Família Dinossauro (1991-1994 ) têm suas tramas desenvolvidas no interior de famílias

que baseiam seus enunciados discursivos dentro do denominado American way of life, e

ali, no enredo de tais séries. São representações de famílias que apresentam uma rígida

estrutura organizacional patriarcal hierarquizada, com os papéis dos entes familiares

bem definidos e com tarefas pré-determinadas distribuídas entre pai, mãe e filhos, muito

embora, possuam singularidades que as diferenciam umas das outras, para além de

traços culturais e sociais que as inserem no modelo classe média.

Nos Flintstones, assim como na família Dinossauros3, o centro da trama das

séries é deslocado para um passado remoto; o primeiro para a Idade das Pedras e o

segundo para a Pré-história. O passado longínquo é reapresentado ao telespectador

através das lentes da percepção do tempo presente. O tempo histórico em que se

desenvolvem as narrativas das séries Flintstones e Família Dinossauros, ao serem

2 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 – 1991). Tradução: Marcos Santarrita.

2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 315. 3 Na série Família Dinossauros ao invés de humanos temos como personagens dinossauros

antropomorfizados que se conduzem, no geral, conforme as regras humanas, com as devidas paródias e

adaptações, excetuando alguns rituais selvagens próprios do mundo animal que são trazidos para o enredo

com a função de satirizar a figura do ser humano e sua relação com a natureza

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

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manuseadas com o uso do filtro e da maquiagem dos valores, concepções e padrões da

época em que foram idealizadas e realizadas tais produções culturais, acabam por

revelar a similitude das representações das características dessas famílias do passado.

O passado visto com os olhos do presente é reinventado segundo os parâmetros e

valores da atualidade, e assim, o tempo pretérito se mostra como o próprio reflexo,

ainda que maquiado, do presente. E isto, no caso dos Flinststones, é indicado logo na

abertura da série, na música-tema, que informa ao telespectadores que eles são ―a

moderna família da era da pedra, da cidade de Bedrock, são uma página tirada direto da

história‖.4

Nas séries Perdidos no Espaço e Jetsons, cujas tramas se desenrolam num futuro

nunca alcançado, observamos que os valores, as questões de gênero, as relações de

trabalho e de interação entre os personagens ainda são as mesmas dos Flintstones e

Família Dinossauros, assim como a estrutura organizacional da família classe média

representada por estas séries.

A família Simpsons há quase três décadas atualiza os clássicos Flintstones e

confirma que a estrutura familiar urbana se repete nas produções culturais norte-

americanas em todos os sentidos. Com o uso da sátira como principal instrumento

enunciativo, o seriado, que prolonga sua existência até os dias atuais, reflete em sua

narrativa os padrões culturais, sociais e estéticos da sociedade que retrata nas telas e

possibilita ao telespectador o vislumbre de uma análise crítica da sociedade em que se

encontram inseridos os personagens da série, que em verdade, é a própria representação

da sociedade vivida pelos telespectadores.

A narrativa das séries coloca os personagens nos seus devidos lugares histórico e

socialmente impostos: aos homens, cabe o sustento e as preocupações correspondentes à

manutenção financeira do lar; às mulheres, a administração do lar, observando uma

hierarquia pré-estabelecida que traz a tira-colo exigências sociais já introjetadas e que

não são facilmente percebidas. Tais exigências se deixam descobrir apenas em razão da

4 Tradução livre

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

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reflexividade que o sarcasmo da narrativa destas séries possibilita ao telespectador. A

ironia revela o que não se deixa facilmente enxergar.

Os padrões de consumo das famílias destas séries são, em geral, similares uns

aos outros, já que os anseios consumeristas dos personagens passeiam sempre pelos

mesmos objetos, lugares e porque não dizer, marcas. Não só a questão do consumo em

si, mas o que é consumido e o esforço empreendido pelos personagens para que os

desejos possam se concretizar, reduzem o produto do trabalho do patriarca ao

atendimento destas necessidades que se renovam constantemente.

A família de Walter White da série Breaking Bad é o eco estrutural

organizacional e comportamental das famílias de Fred Flintstone, George Jetson, Jonh

Robinson, Homer Simpson e Dino da Silva Sauro. Os lugares bem definidos de cada

ente familiar e os tipos de relações que irradiam daí se repetem na série que é o objeto

de estudo do presente trabalho. E são exatamente esses traços similares entre as famílias

destas séries que as colocam numa mesma categoria, a saber, a classe média norte-

americana: Walter White, o frustrado professor de química/caixa de lava-jato,

responsável pelos desejos de consumo permanentemente renováveis de sua família,

claramente insatisfeito com seu trabalho, com sua vida; Skyler, sua esposa, que

abandonou o emprego para cuidar do filho, que possui paralisia cerebral, e aguarda o

nascimento de sua filha, e o filho, Walter Jr., que é objeto da atenção e cuidado dos pais,

ainda com mais intensidade, em razão da condição de saúde que possui.

Conforme observa Sennet, a relevância desta distinção – de ser ou não da classe

média - é uma necessidade dos indivíduos - manifestamente uma característica da

sociedade norte americana - de abarcar os valores que os diferenciam das massas

humanas, vez que tais aglomerados de pessoas “não parecem ser dignos de nota”5,

sendo por vezes tratados com singular indiferença por aqueles que se veem inseridos

dentro da classe média. Observa, ainda, o autor, que ―a obsessão americana como o

individualismo expressa a necessidade de status nesses termos; a pessoa quer ser

5 Richard Sennet, op. cit., p. 75

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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS

DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

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respeitada por si mesma. Classe nos Estados Unidos tende a ser interpretada como uma

questão de caráter pessoal.‖6

E por assim ser, por se apresentar como um status a ser alcançado e/ou mantido,

em razão da diferenciação que tal classificação proporciona, ser da classe média,

pertencer a este grupo, é uma confirmação de capacidade, é uma afirmação de que se é

“bom o bastante”. Esta constatação implica obrigatoriamente no modo como o próprio

indivíduo se vê e indica o lugar em que se encontra inserido no tecido social. Pertencer

à classe média aponta para as possibilidades de vida que o indivíduo irá encontrar

disponíveis ao seu alcance, na sua corrida pela felicidade norteada pelo consumo.

É exatamente nestes termos que as produções culturais materializam seus

enunciados discursivos ao redor da classe média, principalmente, no que toca à

organização estrutural da família nuclear. A necessidade de diferenciação, ligada às

questões de caráter pessoal, cria uma identidade que é compartilhada por este grupo

seleto, com características, valores e um ethos próprio e, nada mais normal, que as

produções culturais busquem suas fontes de representação nestes moldes institucionais.

O status de classe média passa a ser ele próprio um objeto de consumo, em razão da

diferenciação que proporciona ao indivíduo.

Das séries produzidas ainda na década de 1960 para a série objeto de estudo do

presente trabalho - assim como em outras mais recentes - poucas diferenças chamam a

atenção - no que toca às estruturas organizacionais familiares. Nesse sentido, tomemos,

por exemplo, os Flintstones, os Simpsons e Breaking Bad.

1.1. O presente futurista enquanto passado arcaico

A série os Flintstones teve seu debut na televisão norte-americana em 30 de

setembro de 19607, e nos três primeiros anos, a trama envolvia, principalmente, os

casais Fred e Wilma Flintstone/ Barney e Beth Rubble. Os filhos dos casais – Pedrita

Flintstone e Bambam Ruble – só seriam adicionados ao elenco em seguida. A narrativa

6 Ibidem, p. 76

7 Disponível em < http://www.warnerbros.com/tv/flintstones-season-1>. Acesso em 13 de agosto de

2015.

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DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.

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se desenrola na Idade da Pedra e através desta escolha temporal combinada com o uso

da ironia como principal recurso enunciativo, salta aos olhos a satirização do padrão de

vida da família de classe média norte-americana. O inegável sucesso do seriado foi

consolidado pela aposta dos produtores na capacidade irônica da narrativa, na

comicidade desta ter sido eficaz a tal ponto de modo a permitir que os telespectadores

pudessem se enxergar de forma crítica, já que, para além do público infantil que

assistiam à série (e ainda assistem atualmente em razão das eternas reprises) por conta

do mundo de aventuras em que se encontrava inserida a família Flintstone, grande parte

da audiência era compreendida pelo público adulto, que assistia nas telas suas vidas

expostas nos seus detalhes mais constrangedores. Assim, através da provocação causada

pelo uso da ironia na narrativa da série, as pretensões de modernidade perpetuadas pelos

hábitos dos personagens quando postos sob este olhar produzem reflexividade nos

telespectadores e, consequentemente, incômodo.

A típica casa de subúrbio tem sua decoração kitsch/rústica complementada por

eletrodomésticos zoomorfizados, ilustrados por animais pré-históricos exercendo a

função de trituradores de lixo, geladeiras, abajures, chuveiros, aspiradores de pó, para

além dos carros de tronco de árvores, casca de tartaruga, rodas de pedra. Tais artefatos

se conectam com o consumismo que acena para a necessidade da conquista do conforto,

do mesmo modo que insere os personagens no estrato social onde se encontra

consolidado o lugar da classe média.

A boa vida, a felicidade destas famílias depende da capacidade de consumir

estes bens que simbolizam, por sua vez, a própria essência do padrão de vida. O

conforto traduzido por este consumo define por completo o objetivo do patriarca, do

provedor: ter dinheiro o bastante para que a família possa estar inserida no estrato social

da classe média e, assim, possa ser diferenciada das massas excluídas. As questões que

envolvem o consumo passam necessariamente pelo pertencimento a um determinado

modelo comportamental, externalizado no casal convencional a constituir um nódulo

familiar. Essa estrutura se conecta a solidariedade orgânica do mundo do trabalho, onde

os personagens masculinos exercem sua profissão.

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A própria etimologia do nome Flintstones implica em relações de consumo.

Composta por duas palavras em inglês (flint, que significa sílex, pederneira e stone, que

significa pedra, rocha) a tradução mais exata do nome para o português seria ―pedra de

isqueiro‖.

A típica família tradicional dos anos 1950 tem suas histórias conduzidas por uma

narrativa nem um pouco conservadora, que se mostra em verdade, em razão da ironia,

crítica: Fred Flintstone é o provedor, e assume satisfatoriamente o papel de ―rei da casa‖

mantendo sua família com o salário conseguido através do rotineiro trabalho na

pedreira, o grande negócio da Era da Pedra, que é representado pelas cenas iniciais de

todo episódio, onde um pterodáctilo anuncia com seu grito estridente o fim do

expediente, libertando os funcionários. A felicidade da volta para casa após um

exaustivo dia de trabalho, expressada pela abertura de cada episódio, é traduzida ma

possibilidade de poder encontrar o conforto que o dinheiro do trabalho suado pode

comprar.

O dinheiro do patriarca compra não apenas seu conforto, mas o de sua família, e

que por assim ser, os outros entes, mulher e filhos lhe são agradecidos, e se esforçam

para agradá-lo. Quando Fred Flintstone chega do trabalho e senta na sua poltrona para

ver a televisão, com o controle remoto na sua mão, a sala deve estar limpa, os filhos já

amansados e o jantar pronto para ser servido e degustado. E tudo isto se desenrola na

tela sob o manto da comicidade e da ironia, que revela ao público seus próprios reflexos

e identidades.

Vilma, assim como Betty Rubble, a vizinha, representa o papel da esfera

doméstica mesclada a uma emergente dimensão social feminina. Nesse sentido, o

seriado plasma uma cor-local dos anos 1960, com as mulheres oscilando entre a

administração da casa e o gerenciamento real da vida do casal para além da visão algo

infantilizada dos maridos.

A série antecipou, sob um olhar cômico/crítico, diversas questões que foram

trazidas à tona pelas revoluções culturais ocorridas nos anos de 1960, que combatiam

principalmente a concretude e a solidez das instituições coletivas representadas

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principalmente pelo Estado, igreja, escola, família etc., e que se mostravam anacrônicas,

já que caminhavam em descompasso aos anseios da sociedade representada pelos

produtos culturais aqui mencionados.

Decerto, a revolução cultural se mostra como o produto de um processo histórico

iniciado anteriormente, através de pequenas e insistentes revoluções continuadas que

ganhavam corpo nas rotinas dos indivíduos no mundo real. Neste sentido, temos que os

Flintstones, série realizada em momento anterior à eclosão da Revolução Cultural,

contém nos seus enunciados narrativos muitas destas demandas emancipatórias, eis que

a ironia da narrativa já implica na crítica do modelo e dos tradicionais valores classe-

média retratado nas telas. As reivindicações trazidas pela narrativa da série,

principalmente no que diz respeito às personagens femininas, são parte da pauta de

contestações da agenda das revoluções culturais da década de 1960, e se encontram nos

discursos concretizados nas ações de Vilma, Bettie, Fred e Barney e, assim, representam

a sociedade classe-média norte americana. Tais exigências acenavam para o

desabamento das rotinas que constituíam o social, a pacata vida em comunidade, o

silêncio castrador das instituições, a família, a igreja, a universidade, as ruas

impregnadas de impedimentos ao exercício da liberdade pessoal.

Nestes ―tempos interessantes‖, ganhou força um processo de reavaliação das

rotinas que nada mais eram do que senão ―o pesado legado do puritanismo do século

XVI‖. Toda essa movimentação social - que possui principalmente uma importância

simbólica, eis que as demandas, mudanças e bandeiras que compuseram o quadro

dessas revoluções culturais já faziam parte do repertório de insatisfações sociais da

modernidade - representava, segundo Hobsbawn, ―uma revolução da vida cotidiana

mediante a transformação das relações pessoais‖8, que encontraria uma grande

repercussão social.

Os anos 1960 trouxeram para o espaço da vida pública, como resultado de suas

demandas sociais e da política emancipatória, a ―promoção da democracia do domínio

8 HOBSBAWM, Eric J.. Tempos interessantes: Uma vida no século XX. Trad. Angela Noronha. 6ª Ed.

São Paulo: Companhia das Letras Editora, 2002, p. 277.

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público‖9, de modo que, se o caráter político passou a ser parte essencial e inerente do

caráter pessoal, percebemos nitidamente uma democratização da vida privada,

asseguradas deste modo ―as relações livres e iguais entre os indivíduos‖.10

Desta necessidade de relações igualitárias entre indivíduos passou a ser parte

inexorável do processo democrático a ideia de autonomia. Tratava-se de determinar

razoavelmente a capacidade de autodeterminação e autorreflexão dos indivíduos postos

em uma sociedade, que lhes conferisse oportunidades de escolhas e de vida antes não

vislumbradas, dada a rigidez das relações. A ideia de autonomia surgida do processo

trouxe um novo olhar que buscava a reconfiguração dos modos e maneiras através dos

quais os ―indivíduos podem melhor determinar e regulamentar as condições de sua

associação‖ com os outros.11

Nos Flinstones, tais demandas por autonomia são reveladas pela crítica irônica

ao papel da mulher na casa, enquanto mera administradora do lar. A sua posição

preestabelecida que não passa por qualquer questionamento direto, indica que as

personagens femininas não demonstram interesse pelas suas individualidades, sendo

movidas pelos interesses dos maridos e dos filhos, mesmo que sejam representadas

como indivíduos mais capazes. A reivindicação por autonomia esbarrava no

estabelecimento do local reservado para estas personagens, e assim, ante a natureza do

discurso narrativa de determinadas produções culturais, tais locais sofriam grande parte

das críticas que ironizavam o padrão da sociedade, expondo ao público o ridículo desta

condição.

Sobre a autonomia, esclarece Giddens que esta

não poderia ser desenvolvida enquanto os direitos e as obrigações

estivessem intimamente vinculados à tradição e a prerrogativas

estabelecidas da propriedade. Entretanto, uma vez que essas fossem

dissolvidas, um movimento em direção à autonomia tornava-se ao

mesmo tempo possível e visto como necessário.12

9 GIDDENS, Antony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades

modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: FUNESP Editora, 1993, p. 202. 10

Ibidem, p. 202. 11

Ibidem,p. 203 12

Ibidem, p. 203

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Nesse desejo de criação de novo espaço democrático, direitos e deveres

passariam a ser negociados constantemente, em que pese não haver desequilíbrios que

possam causar supressões indesejáveis. O princípio da autonomia assim entendido,

encontraria seus limites na autonomia do outro, vez que se apresentam como limitações

recíprocas que procuram estabelecer a igualdade entre os indivíduos, a isonomia social,

sexual e cultural.

Neste contexto, nada mais é a autonomia e a autodeterminação do que a

realização de uma condição de relacionamentos baseados na igualdade, onde as

vontades nestes relacionamentos tenham peso idêntico (em tese), sem quaisquer

distinções relacionadas a sexo, raça, condição social, e que principalmente haja respeito

no que tange às capacidades do ―outro‖, tendo como base principal o respeito mútuo à

igualdade.

Fica claro que as mudanças ocasionadas pelos movimentos sociais dos anos

1960 trouxeram novos limites para a intimidade. Aqui, se faz necessário ressaltar que

nem todas as tradições foram superadas pelas Revoluções Culturais, e ainda, que a

mitologia que envolve os anos 1960 por vezes não permite que se perceba que aquele

determinado período de tempo na história foi, para além de tudo, uma consequência, e

ainda, um marco simbólico das exigências e mudanças que já vinham ocorrendo muito

anteriormente. De qualquer modo, temos que a partir deste marco histórico notou-se

uma crescente preocupação social que confirma que a autonomia conquistada restou por

configurar os ―limites pessoais necessários à administração bem-sucedida dos

relacionamentos‖.13

O princípio da autonomia representa, portanto, a mola propulsora para que os

ideais de justiça, igualdade e participação possam ser alcançados e concretizados na

prática social e cotidiana, através da anterior implementação de ―políticas

emancipatórias‖ que são orientadas no sentido de ―libertar os grupos não-privilegiados

de sua condição negativa ou eliminar as diferenças relativas entre os grupos na

13

Ibidem, p. 206

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sociedade‖.14

É importante esclarecer que essas políticas emancipatórias são disputas

em torno das desigualdades de distribuição de poder e, assim, visam libertar os

indivíduos e os grupos de indivíduos de interferências que possam atingir a autonomia

que lhes é indispensável para o exercício de suas liberdades. No cenário dos

relacionamentos modernos a mutualidade é indispensável, assim como o

reconhecimento das alteridades.

No que diz respeito aos novos traços institucionais da modernidade, observa

Hobsbawn que

o velho vocabulário moral de direitos e deveres, pecado e virtude,

sacrifício, consciência, prêmios e castigos não mais podia ser

traduzido na nova linguagem de satisfação dos desejos. Uma vez que

tais práticas e instituições não eram mais aceitas como parte de um

modo de ordenar a sociedade que ligava as pessoas umas às outras, e

que assegurava a cooperação social e a reprodução, desapareceu a

maior parte de sua capacidade de estruturar a vida social humana.

Foram reduzidas simplesmente a manifestações de preferência

individuais, e reivindicações de que a lei reconhecesse a supremacia

dessa preferência.15

Enquanto Hobsbawn destaca que a Revolução Cultural ocorrida no final do

século XX trouxe o ―triunfo do indivíduo sobre a sociedade‖ assim como o

―rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais‖,

processo que vitimizou principalmente a instituição da família tradicional ante o

processo de individualização extrema - notamos, contudo, a persistência da organização

estrutural tradicional como representação das famílias nucleares de classe média nas

produções culturais do período pós Revolução Cultural, mas que se apresenta com uma

nova dinâmica relacional.

As narrativas do seriado os Flintstones ao satirizarem a vida do cidadão norte-

americana classe-média dos anos 1950, coloca em relevo os valores daqueles

indivíduos, e assim, conforme já analisado, deste processo de reinterpretação de

14

Ibidem, p. 193 15

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 – 1991). Tradução: Marcos Santarrita.

2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 331-332.

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sentidos, surge a crítica bem sustentada das relações que sustentam os enunciados

discursivos que dão o tom do seriado. Assim, a família, é antes de tudo, nos Flintstones,

um projeto de críticas que atacam com força sua mesma base estrutural. A autonomia

dos indivíduos, assim como a intimidade, são pontos de reflexão crítica que surgem da

provocação causada pela narrativa irônica da série.

1.2. O espaço doméstico enquanto território possível na sociedade pós-moderna

Há nestas séries americanas do pós-Revolução Cultural uma percepção de

continuidade da tradicional organização familiar. Numa primeira análise, poderíamos

até afirmar que há nessas séries – cuja trama gira em torno de fortes núcleos familiares -

um desejo de resistência ao desmantelamento das ―velhas texturas e convenções

sociais‖ levadas a cabo no mundo contemporâneo.

Contudo, da análise da família representada na série ―Os Simpsons‖ (1989),

sentimos que a estrutura familiar se manteve intacta – já que conservados os papéis

fixos dos entes familiares - e as questões ligadas à autonomia dos membros sofreram

poucas modificações, assim como os valores que orientam a narrativa da série.

O enredo do seriado ganha corpo na cidade (fictícia?) de Springfield e a trama

dos episódios gira, quase que absolutamente, ao redor dos personagens de Homer,

Marge, Bart, Lisa e Maggie Simpson e se dirige aos jovens e adultos. O nome Simpson

é o indicador do fio condutor da narrativa do seriado, pois se liga naturalmente ao

vocábulo inglês simple (simples), dando a entender que os Simpsons seriam mais uma

simples família classe média norte-americana assim como qualquer outra, com todos os

méritos e deméritos. Os Simpsons são, com algumas poucas diferenças, a família

Flintstone reapresentada à sociedade americana, com uma outra roupagem, que em

verdade, não se mostra tão diversa assim, conforme verificaremos.

O texto ágil, inteligente e irônico do seriado, que já está no ar há quase 30 anos,

relata as aventuras e confusões da família Simpsons, composta por Homer, um

personagem inocente, ignorante, com limitada inteligência (em razão de na sua infância

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ter introduzido, voluntariamente, no seu nariz 15 gizes de cera, que causaram lesões

cerebrais permanentes), sedentário, obeso, alcoólatra, preguiçoso, explosivo, ao mesmo

que se mostra amável com os filhos e a mulher; Marge, uma dona de casa amável,

dedicada à família, perspicaz, sensata, paciente, uma mulher que cultiva uma aparência

saudável, vaidosa e que exibe uma silhueta esbelta, típica de uma dona de casa do

subúrbio norte-americano dos anos 1950; Bart, o primogênito, rebelde, desordeiro,

inconsequente, aluno medíocre, geralmente castigado na escola por causa de seu mau-

comportamento e desinteresse pelas aulas, desafiando constantemente a autoridade do

pai, que por muitas vezes acaba perdendo a cabeça e o agride, sendo recorrentes as

cenas de Homer estrangulando-o; Lisa, a filha do meio, contestadora, intelectualizada,

precoce e desafiadora, e, enfim, Maggie, a filha mais nova, silenciosa, espectadora

crítica de todos os acontecimentos de sua família.

Os enredos dos episódios passeiam por questões atuais da sociedade

contemporânea e através do uso na narrativa da ironia, da paródia, do humor nonsense e

da autocrítica, a série atinge com profundidade temas que apresentam como eixo central

a classe média padrão e ridícula que se transforma também no lugar do sonho possível

para o qual concorre a dialética dos acontecimentos. A série atualiza questões que já se

encontravam contidas nos Flintstones, assim como repete a estrutura organizacional

familiar da classe média, os sonhos, os anseios de consumo, as relações de trabalho,

entre outros temas pertinentes ao extrato social em estudo.

Assim, na família Simpsons, observamos que as tomadas de decisões são por

vezes repartidas igualmente entre os cônjuges – Homer e Marge – e as narrativas das

personagens estão influenciadas pelo individualismo decorrente da autonomia

estimulada pelos movimentos sociais dos anos 1960. As exceções a esta regra decorrem

das próprias características de Homer Simpson que, impulsionado por seus instintos,

muitas vezes incompreensíveis até para ele mesmo, age em nome da família, decidindo

sozinho questões relevantes, guiado por irracionalidades e insanidades, que garantem o

humor da série e que caracterizam seu modo de agir.

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Marge Simpson, muito embora ainda se mantenha no tradicional papel de

administradora do lar, é representada como um indivíduo autônomo, com vontades

próprias, e não mais como uma personagem retratada como um mero prolongamento da

vida do marido, Homer Simpson, o provedor da família. São inúmeros os episódios em

que a trama gira principalmente ao redor de Marge Simpson, que protagoniza um sem

número de situações que independem do marido, o que não acontece nos Flintstones.

Vilma, como personagem, se apresentava como um complemento das histórias de Fred

Flintstone, o principal protagonista do seriado. Assim como Homer, Marge é a

protagonista em diversos episódios, e daí, a personagem ganha uma vida independente

da de seu marido.

A rígida hierarquia da estrutura familiar na série os Simpsons encontra suas

forças enfraquecidas, todavia, não se pode afirmar que a estrutura não permanece a

mesma. Homer não desocupa por completo a posição autoritária, que antes lhe era

reservada pela tradição que se apresenta nos Flintstones, posição esta, que por

consequência, inferiorizava estruturalmente os outros entes, vez que submetidos aos

desejos do patriarca. A autoridade paternal de Homer Simpson se mantém, em

determinadas ocasiões, sendo constantes os entraves acerca de diversos temas que

integram as tramas da série entre os familiares, vez que nos Simpsons, todos parecem

possuir voz ativa no que diz respeito aos seus destinos.

As personagens de Marge e Lisa Simpson são a representação do resultado das

Revoluções Culturais: enquanto a primeira mantém seu papel de administradora do lar,

em nome da tradição, e isto por decorrente de escolha legítima, vez que a personagem

se apresenta como um indivíduo autônomo, responsável pela construção da sua própria

narrativa de vida (tanto que suas escolhas são todas acatadas pelos entes familiares), a

segunda, Lisa, a filha, contestadora dos valores ocidentais, feroz opositora da ordem

hierárquica consolidada pela tradição histórica, é a encarnação da mulher moderna, é a

encarnação dos ideais das Revoluções Culturais dos anos 60.

Na série, o papel de provedor destacado para o pai também é posto em prova já

que o próprio significado do trabalho sofre mudanças representativas drásticas. Aqui

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não há mais a esperança do sonho americano, do sucesso através do trabalho. O que há é

o labor como uma forma de sobrevivência social, essencial, mas não eficaz, um esforço

domesticado de inserção na sociedade do consumo. Não existe ambição ou esperança, e

Homer Simpson é a tradução da imagem do fracasso profissional, beirando, quase à

margem da sociedade.

Assim como Fred Flintstone, o desejo de Homer Simpson enriquecer

rapidamente, de modo que não precise mais trabalhar, é componente principal de vários

episódios na série. Através de planos e ideias que beiram a insanidade, Homer envolve a

sua família em situações absurdas no intuito de se livrar da responsabilidade de ter que

trabalhar diariamente para prover sua família e realizar seus próprios desejos de

consumo, que não são poucos.

A enfadonha rotina de trabalho de Homer Simpson – agora na pedreira futurista

que é a usina nuclear - encontra refúgio na crítica velada que a narrativa da série faz aos

valores ocidentais da modernidade, tratando com sarcasmo o funcionamento das

instituições ocidentais. Há na série uma continuidade do desejo de ser classe média,

como um sonho a ser consumido, como um produto exposto no balcão, um lugar a ser

conquistado e mantido. Na série os Simpsons, a ironia do discurso narrativo deixa

revelar uma sociedade que baseia sua existência na permissividade consentida

tacitamente, na ilegalidade oculta dos recorrentes desvios comportamentais e na

hipocrisia da construção dos discursos prontos e politicamente corretos que por vezes

são o tempero do jantar da família nuclear classe média norte-americana, mas quando

revelados pela ironia, possuem um aspecto que desagrada a todos, inclusive aqueles que

se enxergam nos lugares ocupados pelos personagens na série.

2. Uma vida em branco sob o céu

Como já observado na série os Simpsons, temos que a família de Walter White

possui as mesmas características tradicionais da família Flintstones. White é o patriarca,

e Skyler, assim como Vilma Flintstone e Marge Simpson, uma dona de casa exemplar,

preocupada com bem estar de seu marido e seu filho, que sofre de paralisia cerebral.

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O episódio piloto da série Breaking Bad retrata a família de White, a estrutura

organizacional e os valores compartilhados pelo familiares, assim como deixa perceber

os conflitos e problemas que cercam o núcleo familiar, a saber, as horas extras de

trabalho de White, o aquecedor de água que se encontra quebrado há tempos, a tosse

persistente de White, a contenção de despesas, o nascimento da filha que está por

acontecer, etc.

Apesar de viver em certa harmonia com sua família, temos que White se mostra

descontente com sua vida. O tédio em que se encontra imerso, uma vida em branco sob

o céu, o protagonista é apresentado a espectador logo no café da manhã em que

descobrirmos ser seu aniversário. Após a dupla jornada na escola e no lava-jato, de onde

White provém sua renda para sustentar sua família, na volta para sua casa, o

protagonista é surpreendido por seus familiares e amigos em razão da realização de uma

festa surpresa de aniversário de 50 anos, organizada, obviamente, por Skyler, sua

esposa.

Na festa, somos apresentados ao casal Marie e Hank Schader, irmã da Skyler,

cunhado de White. Marie é uma espécie de Betty Rubble cleptomaníaca (fato que só

conheceremos com o desenrolar da série) que trabalha como técnica numa clínica de

radiografia, ressentida por não ser médica. Hank, um agente da narcóticos (DEA) se

mostra, por outro lado, como um Barney viril, rude, preconceituoso, um macho alfa às

antigas.

Hank Schrader se torna o centro da festa graças às suas histórias corriqueiras de

policial e por causa de sua pistola Glock 22, que conforme afirma ao exibi-la a todos os

convidados, sempre carrega consigo. Walter Jr, o filho de White e Skyler, encantado

com o tio, pede ao pai, Walter White, que segure a arma. Muito embora contrariado,

White pega a arma das mãos do filho e observa que a arma é pesada. Instantaneamente,

White se torna vítima do bullying de seu cunhado, que afirma que esta é a razão pela

qual a polícia só contrata homens de verdade. Finaliza debochando, dizendo que White

―parece Keith Richards com um copo de lei quente‖, como se a masculinidade pela

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posse da arma estivesse ausente em White. Seria White incapaz de prover segurança à

sua família, enfim?

Depois da brincadeira, Hank resolve fazer um discurso em homenagem à White.

Entre elogios e brincadeiras, vemos o protagonista deslocado portando com toda falta de

jeito possível a pistola de Hank. O discurso é interrompido por causa de uma matéria na

televisão em que o policial concede uma entrevista àa imprensa local sobre o ―estouro‖

de um laboratório de drogas, e a apreensão de metanfetamina, que atrai a atenção de

todos na festa, inclusive a de White, que se mostra intimamente interessado na quantia

de dinheiro apreendido nessas operações. Devido ao interesse de White, desconhecendo

suas reais motivações, Hank o convida para participar de uma operação futura.

No dia seguinte de sua festa surpresa de aniversário, White desmaia no lava-jato

onde trabalha e é levado por uma ambulância ao hospital. Após a realização de exames,

temos White sentado numa cadeira, e ouvimos um ruído agudo irritante que toma toda a

tela e a atenção do telespectador. White, hipnotizado pela mancha de mostarda no jaleco

do médico, recebe deste a notícia que possui um câncer de pulmão inoperável, e que

teria, no máximo, dois anos de vida.

Depois de se demitir do emprego no lava-jato - em razão de um descontrole

emocional inesperado, muito embora justificável, eis que ali era constante vítima de

maus tratos pelo seu empregador de sobrancelhas exageradas - vemos White solitário no

seu quintal, pensativo, encarando e jogando na piscina suja fósforos acesos. O

protagonista busca ali, no isolamento, uma idéia, uma saída que o permita manter sua

família mesmo com sua iminente morte. E assim, resolve ligar para seu cunhado e aceita

o convite para participar da próxima operação de apreensão de metanfetamina.

O interesse de White é enfim revelado aos telespectadores quando este, após a

operação policial com seu cunhado, procura o fugitivo da incursão, seu ex aluno, Jesse

Pinkman - que empreendeu fuga sob o olhar estupefato de White - para propor àquele

um negócio. White, unindo seu extenso conhecimento em química à necessidade de

arrecadar uma grande soma de dinheiro para sua família, somado ao conhecimento de

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Pinkman acerca do mundo das drogas, decide propor que formem uma sociedade para a

fabricação e venda de metanfetamina.

Para Walter White, ninguém além do patriarca poderia/deveria ser o responsável

pela sobrevivência financeira do núcleo familiar. A esposa – e isto descobrimos

conforme a série avança – já havia trabalhado em momento anterior, mas com o

nascimento de Walter Jr, através de um acordo com o marido, largou o emprego e

decidiu se dedicar exclusivamente à casa e à família. Assim, o papel que White

desempenha na sua família é a própria motivação para iniciar um negócio criminoso

(cabe ressaltar aqui, nos valendo de um curto e inofensivo spoiler, que tal motivação, a

manutenção financeira da família ante as circunstâncias apresentadas pela trama, não é a

única motivação de White). White reconhece seu papel no núcleo familiar, e assim,

mesmo com a notícia de sua iminente morte, decide buscar um modo de prover o

dinheiro necessário para o sustento confortável de sua família após sua morte, que é

dada como certa no episódio piloto.

Não custa lembrar que Skyler, a esposa de White, já havia trabalhado antes do

nascimento do filho, e não seria inusitado, tampouco surpreendente, que voltasse a

trabalhar para ajudar na renda de sua família (como efetivamente volta, mais a frente).

Todavia, ainda sim, segundo a tradição institucional que envolve a classe média norte-

americana representada na série, o produto do trabalho de Skyler serviria apenas como

complemento para a renda familiar, abastecida, necessariamente e tradicionalmente, em

sua grande parte pelo marido, vez que responsabilidade exclusiva daquele.

Não somente o sustento de sua família, que será proporcionado através do

dinheiro da produção e venda de metanfetamina, do suor do trabalho ilícito do patriarca

que envolve riscos incomensuráveis, White busca também reconquistar o controle e o

respeito de sua família, que fora perdido. Busca, enfim, ser o patriarca, em sua íntegra,

provendo saúde, conforto e segurança, mantendo as coisas nos seus devidos lugares. O

marido provém, a mulher administra, e os filhos, são o objeto da atenção e cuidados

maternos e paternos. Ou seja, a série se desenrola sob o crivo da típica tradição de uma

família classe média sulista dos Estados Unidos.

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No decorrer dos episódios, nos deparamos com a questão envolvendo o filho do

protagonista, Walter White Jr, e sua própria imagem como patriarca. O adolescente é

recorrentemente objeto de disputa entre os personagens de Walter White e o cunhado da

sua mulher, Hank Schrader. Os modelos de condutas a serem seguidas, as inibições,

restrições e proibições são constantemente postas e sobrepostas ao jovem, ora pelo tio,

ora por seu pai.

A disputa pela figura paterna da família White atinge seu clímax no episódio 10

da segunda temporada, na sequência da festa de comemoração em razão do sucesso do

tratamento de White contra o câncer, pago, aos olhos de todos ali presentes, pelos

antigos sócios, Gretchen e Elliot. Tal condição fictícia - de estar sendo ajudado

financeiramente no tratamento – causa um incômodo intenso no protagonista, já que não

pode revelar para ninguém a fonte de renda oriunda do tráfico de drogas, que paga

efetivamente seu tratamento, dinheiro proveniente do seu esforço e risco individual,

apesar dos pesares.

Em dado momento, estão os três personagens à beira da piscina ouvindo as

histórias de Hank - que constrói sua fala com um discreto enaltecimento pessoal –

quando percebemos White incomodado com a fala de Hank, perturbado com seu papel

neste cenário, eis que se resume simplesmente à tarefa de encher o copo de Hank com

tequila, enquanto o cunhado, com suas histórias e exemplos de vida, toma seu lugar no

núcleo familiar.

Inesperadamente, White resolve encher o copo do filho, e ordena que este o

beba. O filho obedece, com a concordância de Hank. Enquanto o cunhado de White

reinicia suas histórias, o copo de Junior é instantaneamente enchido de novo por White,

quando então Hank o interpela, censurando-o. Mal o segundo shot acaba de ser ingerido

pelo filho, White tenta encher novamente o copo do filho, mas é impedido pelo cunhado

sob a justificativa de que o menino seria novo demais e aquilo seria prejudicial. Apesar

da mão de Hank estar obstaculizando a pretensão do protagonista, vez que posta sobre o

copo de Junior, White dá vazão à sua vontade inicial, e enche o copo, em conflito direto

com o cunhado, que ainda aconselha o rapaz a não beber. Ato contínuo, Hank se

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levanta, carregando junto de si a garrafa, objeto da discórdia e disputa, quando White

ordena que Hank traga a garrafa de volta, recebendo um resposta negativa deste. White

se levanta e declara em tom raivoso: ―É meu filho. Minha garrafa. Minha casa.‖ A

tensão que se forma entre os personagens é dissolvida por Walter Junior que, em

decorrência da ingestão exagerada da bebida, passa mal e acaba vomitando na piscina.

A sequência em destaque aponta claramente para a principal motivação - ainda

que inicial – de Walter White para começar a produzir e traficar metanfetamina: a

necessidade do protagonista de assumir o controle de sua família, ser a efetiva figura

paterna. Assim, da criação na família de um lugar imprescindível para o

desenvolvimento da autonomia individual, observamos que tais estruturas, ainda que

modificadas, não deixaram de prescindir da referência paterna.

Freud , ao narrar a história da primeira comunidade de homens - a comunidade

―primeva‖ - estabelece como marco inicial da civilização o mito do pai da horda16

,

determinando, por fim, a importância da figura paterna na estrutura familiar.

De acordo com o autor, teria havido no início de tudo uma tribo governada por

um tirano que submetia todos os integrantes às suas vontades e desejos. Impedia o

tirano, principalmente, que os homens da tribo mantivessem relações sexuais com as

mulheres, o que, logicamente, aponta para a constatação de ser este tirano o pai de toda

a tribo. Irresignados, os filhos tentaram depor o pai, não logrando êxito na primeira

tentativa, sendo expulsos da tribo. Unidos pelo ódio ao pai, os irmãos se organizaram e

tentaram pela segunda vez, quando então, obtiveram sucesso, matando o pai, pondo fim

à horda patriarcal. Após o assassinato, os filhos devoraram o pai, realizando, conforme

observa Freud, um processo simbólico de identificação com aquele e,

consequentemente, adquirindo parte da força paterna.

Após tal sequência de acontecimentos, surge nos filhos o sentimento de culpa

pela morte do pai em razão da descoberta da existência de sentimentos antagônicos de

amor e ódio ao pai.

Destaca Freud que os filhos

16

FREUD, Sigmunt. Totem e tabu e outros trabalhos e obras completas, Imago, 1968.

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Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu

anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-

no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em

prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse

tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o

fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual,

nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai

morto tornou-se mais forte do que o fora vivo — pois os

acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos

tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito

por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de

acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas

psicanálises, sob o nome de ‗obediência adiada‘. Anularam o próprio

ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos

seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora

tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial,

os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão,

corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do

complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esse tabus tornava-se

culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se

interessava17

Assim, temos que a ordem moral humana encontra seu alicerce fundamental no

assassinato do pai da horda, sendo criada tal ordem, inicialmente a partir de duas

proibições: parricídio e incesto. A partir do momento que estas duas regras - dois tabus

iniciais - são estabelecidas pela comunidade recém-formada, nasce o sistema de

repressões e desse modo, nota-se, conforme ressalta Freud, a passagem da natureza para

a civilização, do mundo animal para o humano. O ser humano, através da necessidade

de se agrupar, atento às proibições do parricídio e do incesto ensaia o projeto familiar.

Deste apanhado de conjecturas míticas nasce a família com sua estrutura baseada na

figura paterna como principal referencial moral. O totem e os tabus. O pai e as regras

morais que norteiam a sociedade fraternal.

O pai morto se torna o pai simbólico, restaurado, gerado pela culpa dos filhos e

ainda, ressuscitado em decorrência da grave possibilidade de todos se tornarem também

tiranos. A necessidade de organização comunitária faz com que surja o pai simbólico,

17

Ibidem, p. 92.

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representado pelo totem, que dita as regras sociais, atuando como o freio moral da

comunidade. É exatamente nestes termos que a organização familiar torna

imprescindível para o seu regular funcionamento a figura paterna.

Assim, na sua constante luta pela posse da figura paterna, pelo lugar reservado

historicamente para o protagonista, este não aceita qualquer ajuda, não concorda com a

existência de qualquer outra fonte que não a sua, qualquer meio que não venha do seu

próprio esforço, assim como não aceita a intervenção de qualquer outro no destino de

sua família. A motivação inicial de White para a produção e venda de metanfetamina é

o reforço da estrutura familiar tradicional, principalmente no que diz respeito ao

provimento patriarcal e a posse da figura paterna.

REFERÊNCIAS

Listar referências

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PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE SANTO AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES

ROUSSEAU E O DIREITO MODERNO,LUTFY, Fátima Lopes do Amaral

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PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE

SANTO AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O

DIREITO MODERNO

LUTFY, Fátima Lopes do Amaral

Mestre em Letras pela UFF e advogada inscrita nos Quadros da OAB/ RJ

[email protected]

RESUMO Ao lado da própria noção de cidadania que se configura, mediante uma diferenciação social, o

individualismo contemporâneo encontra seu lar e convive com a crescente complexidade da

vida social, multiplicando as possibilidades de engajamentos e identidades, sendo os seres

humanos tomados como absolutamente homogêneos e indiferenciados, e essa individualidade,

traçada a partir de origens históricas mais longínquas como o fazemos em ―Confissões‖ de

Santo Agostinho, surge a partir de mecanismos especificamente ―modernos‖, veiculados pelo

Romantismo de Rousseau e que possibilitam aos sujeitos uma autonomia aparentemente sem

precedentes na história humana, se levarmos em consideração a revolução tecnológica na qual

vivemos com a linguagem.

Palavras-chave: cidadania, individualismo, identidade

ABSTRACT

Next to the very notion of citizenship that is shaped by a social differentiation, the

contemporary individualism finds its home and lives with the growing complexity of social life,

multiplying the possibilities for engagement and identities, and human beings taken as

absolutely homogeneous and undifferentiated and this individuality, drawn from more distant

historical origins as we do in " Confessions " of St. Augustine, arises from mechanisms

specifically "moderns", conveyed by Rousseau Romanticism and that enable individuals

unprecedented apparently autonomy in human history , if we take into account the technological

revolution in which we live with the language .

Keywords: citizenship , individualism , identity

INTRODUÇÃO

O presente estudo comparado de ―Confissões‖ de Santo Agostinho e de Jean-

Jacques Rousseau tenta relacionar Literatura e Direito e demonstrar uma trajetória entre

o que levou a sociedade da época do Estado Absolutista e às primeiras concepções da

modernidade com a ideia de subjetividade, tendo como precursor Rousseau no

Romantismo e o subjetivismo atual da pós-modernidade. Além disso, a escolha de duas

autobiografias confessionais a serem analisadas nos leva à dimensão da Internet e da

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mídia no universo cotidiano, uma realidade em que todos estão presentes/ ausentes,

travando pactos, formando ―comunidades‖ e ―grupos‖, em uma escrita/ leitura que se dá

ao mesmo tempo. Assim, nada mais atual do que se estudar essas duas autobiografias

que, ao considerar como um discurso que coloca o eu frente a condições com os quais o

autobiógrafo deve se justificar, a autobiografia depende da existência de um outro: eu e

tu são instâncias apartadas e parceiras que se desdobram no passado e no futuro, além

de ser democrático como inclusão do outro. Nesse sentido, a ―pós-modernidade líquida‖

se torna um espaço fragmentado, definido pela ausência de qualquer laço duradouro,

onde o ―nós‖ não é mais do que um agregado de ―eus‖ (BAUMAN, 2003, p. 78). E

justo porque o tempo é relativizado, o ―advento da modernidade arranca crescentemente o

espaço fomentando relações entre outros ―ausentes‖, localmente distantes de qualquer situação

dada ou interação face a face‖ (GIDDENS, 1991, p. 22).

Com essa necessidade de buscar uma identidade, surgem as comunidades, as

quais Bauman dizem que são grupos que se reúnem ―por encontrar um gancho onde

pendurar simultaneamente os medos de muitos indivíduos. De tempos em tempos surgem outros

ganchos...‖ (BAUMAN, 2000, p.54). A diversidade de opções e escolhas que cada

indivíduo possui na modernidade líquida é capitaneada pela utilização da imagem de

personalidades renomadas para passar credibilidade ou mesmo certa autoridade nos

produtos e serviços que estão à disposição para consumo. É o que Anthony Giddens

chama de ―reflexividade institucional", que concerne, em particular, na importância da

vida cotidiana dos sistemas de peritos – sejam eles a psicanálise, a sociologia ou aqueles

embutidos nas rotinas mais imediatas, como os supostos pelo funcionamento do trânsito

automobilístico, pela aviação, pela engenharia ou pela medicina – e na "dupla

hermenêutica" que esses sistemas mantêm com os agentes "leigos". O problema reside

no fato de que o conhecimento gerado por aqueles sistemas, em lugar de garantir

certezas, engendra cada vez mais incertezas, instabilidade e efeitos inesperados, o que

acaba por afetar os próprios sujeitos (GIDDENS, 1990, p.21-29). Essa forma de

representação de interesses é, ao mesmo tempo, legítima e perversa. É legítima porque

faz parte da lógica política do capitalismo contemporâneo que os grupos sociais se

façam representar politicamente e defendam seus interesses. É perversa porque esses

grupos, ao invés de admitir que estão defendendo interesses particulares, tendem a

identificar seus interesses particulares com o interesse público. Quando alguém ou

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algum grupo defende explicitamente seus interesses junto ao Estado, fala-se em

corporativismo.

Retornando, então, ao que se deseja com este trabalho, fundamentado pelo

próprio conceito do Romantismo que construiu a ideia de nação através da identidade, é

que se escolheu trabalhar dentro da Literatura Comparada juntamente com o Direito, a

partir da literatura confessional na medida em que Santo Agostinho e Rousseau se

propuseram a um pacto, sendo definidos como autor-narrador-personagem

comprometidos com o engajamento que nos ―confia‖ um julgamento acerca do que

confessam.

IMPORTÃNCIA DOS AUTORES

E porque tanto Santo Agostinho, doutor da Igreja, e Rousseau, um dos

fundadores do Iluminismo, se inserem no ―sistema de peritos‖ delineado por Giddens é

que se justifica este trabalho alicerçado sobre o seu conceito de confiança e fé:

Neste ponto chegamos a uma definição de confiança. A confiança

pode ser definida como crença na credibilidade de uma pessoa ou

sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos,

em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um

outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)

(GIDDENS, 1991, p. 36)

Em busca de identificar a verdade, mas não mais a colocando em Deus e, sim,

dentro de si, o homem é lançado no mundo da inquietude. E, então, os homens se

encontram imersos em meio a um caos de possibilidades interpretativas, como

Rousseau mesmo o demonstra, ao avaliar e reavaliar, com sentidos diferentes, os

mesmos acontecimentos relembrados, na releitura que processa em ―Confissões‖

quando, por exemplo, discorre sobre o roubo.

Em relação aos fatos que precedem o ―crime‖, dois são tidos como

determinantes para a relação que Rousseau viria a estabelecer com o roubo em ―As

Confissões‖: (1) a mudança de sua personalidade decorrente do mau convívio com seu

mestre, o Sr. Ducommun ―a tirania do mestre acabou por me tornar insuportável um

trabalho de que eu gostaria, e por me ensinar vícios que eu odiaria, como a mentira, a

vagabundagem e o roubo‖ (ROUSSEAU, 2008, p.51), como narrado no Livro Primeiro

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das Confissões e (2) o seu primeiro furto, consumado ―por uma questão de

condescendência‖, mas que ―abriu a porta a outros que não tinham fim tão louvável‖

(ROUSSEAU, 2008, p. 52). Mesmo com as privações que sofria na casa do Sr.

Ducommun, Rousseau nunca havia pensado em roubar, até o dia em que fez um acordo

com um companheiro de trabalho chamado Verrat, com quem aprendeu que ―roubar não

era tão terrível‖. Enquanto Rousseau apresenta o seu mestre e o seu companheiro Verrat

como influências indiretas, em nenhum momento ele transfere sua culpa, apenas faz uso

desses episódios para traçar uma ―linha coesa‖ que forneça os dados necessários para

que as ―testemunhas-leitores de As Confissões o inocentem‖.

Santo Agostinho relata no Livro II (―Os pecados da adolescência‖) que,

mesmo assumindo sua culpa, aponta as ―más amizades‖ como influências diretas e

indispensáveis para o ato que cometeu: ―Sozinho não o faria (...), portanto, amei também no

furto o consórcio daqueles com quem o cometi‖ (AGOSTINHO, 1999, p. 73). O ―grupo‖

torna-se uma peça fundamental no roubo das peras, pois se Agostinho tivesse sido

motivado pela fome, e não pelo prazer de fazer o ilícito, o teria feito mesmo que

sozinho; para ele, comete-se esse tipo de delito por diversão apenas na companhia de

terceiros ―completamente só, não sentiria prazer em praticar o furto‖ (AGOSTINHO,

1999, p 74). Diferente de Santo Agostinho, o roubo não é tratado por Rousseau como

um episódio isolado, mas como um exemplo dentro de um processo. Antes e depois

da narração do ato em si, fornecem-se diversos detalhes a fim de situar/esclarecer ao

leitor como se constituiu e qual é a sua visão sobre esse tipo de delito. Portanto,

também divergindo de Agostinho, Rousseau não rememora a fim de se condenar, mas

para expor, didática e minuciosamente, seus motivos e justificativas para tal feito. O

filósofo tenta de toda a forma provar a coerência de como se tornou o que é, colocando-

se nas mãos das ―testemunhas‖ para o juízo.

Agostinho, por sua introspecção psicológica e antevisão existencialista,

partilhava a crença que o pensamento filosófico começa com o sujeito humano

predestinado por Deus. A doutrina da predestinação está particularmente associada

ao Calvinismo1. Ensina que a predestinação de Deus é fruto de sua onisciência, como

1O Calvinismo, também chamado de Tradição Reformada, Fé Reformada ou Teologia

Reformada é tanto um movimento religioso protestante quanto uma ideologia sociocultural com

raízes na iniciada por João Calvino em Genebra no século XVI. Este movimento se relaciona

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presciência, e é regida de acordo com a Sua vontade e absoluta soberania, em relação às

pessoas e acontecimentos. Por outras palavras, o Calvinismo baseia a sua doutrina

dapredestinação na perspectiva de que Deus predestina prévia e absolutamente a

humanidade, escolhendo entre os homens aqueles que irão salvar-se e aqueles que vão

ser condenados. Esta doutrina fortaleceu o Absolutismo, pois tanto para o Calvinismo

quanto para o catolicismo-romano agostiniano, não há livre-arbítrio. Para ambos, a

soberania de Deus prevalece. O cristão escolhido não pode rejeitar sua eleição, pois

Deus há de curvá-lo até que ele aceite a Sua graça.

Em ―A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo‖ de Max Weber

baseando-se em Santo Agostinho, Calvino diz que não viemos ao mundo predestinados

por Deus a sermos salvos ou condenados. A doutrina de Santo Agostinho afirma que a

vontade de Deus determina que alguns sucumbam à tentação do mal, enquanto outros

não. Então, isso significa que podemos ser condenados ao castigo eterno por Deus, se

não formos virtuosos, mas que, ao mesmo tempo, o controle sobre nossa própria

vontade foi determinado por Ele anteriormente. Essa teoria da Graça deu embasamento

ao Estado Absolutista e ela ―é unicamente o produto de um poder objetivo e que de

modo algum poderia ser atribuída ao valor pessoal‖ (WEBER, 1996, p. 44).

A análise agostiniana sobre o tempo, que não é realizada apenas em termos

cosmológicos, como medida de movimento, mas também como inseparável da

interioridade psíquica, é um elemento importante para a constituição do eu ou do

sujeito, pois o eu agostiniano que começa a narrativa das confissões não é o mesmo que

conclui. O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo, pode ser

ainda a dimensão de um sujeito que está se constituindo, pois ele exerce um papel

fundamental na consciência humana, uma vez que tempo e consciência são

indissociáveis. Agostinho entende que existe outra maneira de pensar o tempo sem ser

em termos espaciais, mas a partir de outro elemento, que é a linguagem, a fala. E por

este motivo ainda continuamos pensando o tempo, mas sem a tentativa de explicar a sua

essência. Podemos tentar apreendê-lo a partir de nossas práticas linguísticas, porque a

linguagem adquire sentido a partir do tempo. Em outras palavras, não se pode pensar

estreitamente ao capitalismo, pois Calvino de fato interessou-se vivamente por questões

econômicas e existem elementos na sua teologia que certamente contribuíram para uma nova

atitude em relação ao trabalho e aos bens materiais.

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um sem o outro, pois a linguagem articula o tempo, assim como o tempo articula a

própria linguagem.

Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na

linguagem que o diz e que nele se diz‖. ―É impróprio afirmar que os

tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio

dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente

das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na

minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das

coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança

presente das coisas futuras. (AGOSTINHO, 1996, p. 327-328)

Na descrição autobiográfica nas ―Confissões‖, Agostinho cria a noção de espaço

interior como campo da verdade essencial do homem (verdade e Deus devem ser

buscados na alma, e não no mundo exterior). Esse método "interior" será preservado na

literatura mística cristã medieval e moderna e na observação moral severa de si mesmo

levada a cabo pelos protestantes a partir do século XVI. E porque Weber constatou que

em certos países da Europa um número desproporcional de protestantes estava

envolvido com ocupações ligadas ao capital, à indústria e ao comércio, algumas regiões

de fé calvinista ou reformada estavam entre aquelas onde mais floresceu o capitalismo.

Na sua pesquisa, ele baseou-se principalmente nos puritanos e em grupos influenciados

por eles. Ao analisar os dados, Weber ( 1996, p. 31) concluiu que entre os puritanos

surgiu um ―espírito capitalista‖ que fez do lucro e do ganho um dever. Ele argumenta

que esse espírito resultou do sentido cristão de vocação dado pelos protestantes ao

trabalho e do conceito de predestinação, tido como central na teologia calvinista. Isso

gerou o individualismo e um novo tipo de ascetismo no mundo caracterizado por uma

vida disciplinada, apego ao trabalho e valorização da poupança. É nesse sentido que

citamos Richard Sennet (2006, p. 29):

O tempo está no cerne desse capitalismo social militarizado: um

tempo de longo prazo, cumulativo e sobretudo previsível. Esta

imposição burocrática afetava tanto as regulações institucionais

quanto os indivíduos. O tempo racionalizado permitia que os

indivíduos encarassem suas vidas como narrativas. Tornou-se

possível, por exemplo, definir como deveriam ser as etapas de uma

carreira, relacionar um longo percurso de prestação de serviços numa

empresa a passos específicos de acumulação de riquezas.

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E quando se fala em acumulação de riquezas, vem à mente a ideia de

igualdade de Rousseau, ou melhor aqui dizendo, desigualdade, que sendo quase nula no

estado natural, tira a própria força e o próprio incremento do desenvolvimento das

nossas faculdades e do progresso do espírito humano, tornando-se por fim, estável e

legítima para a instituição da propriedade e das leis. O princípio do Promotor Natural

aqui, por exemplo, é aquele que pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um

lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente

o cargo correspondente ao seu órgão de atuação seja aquele que irá oficiar no processo

correspondente. Todos nós temos o direito subjetivo público, também quanto ao Juiz

Natural, de índole constitucional, de sermos processados pela autoridade competente.

No direito natural, cada pessoa tem o direito de reagir quando sua liberdade

juridicamente protegida for atingida, havendo, assim a prevalência do valor justiça.

No extremo oposto, no período positivista, a unilateralidade do direito positivo

era a marca presente e unilateral da segurança jurídica2. Contudo, a unilateralidade

dessas épocas jurídicas, desligadas uma das outras, estaria então em condições de tornar

visível a multilateralidade atual da ideia de direito. Desta forma, a desigualdade moral,

autorizada apenas pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não se

mostrar em proporção com a desigualdade física. Frente à igualdade e à liberdade,

produzem-se as desigualdades sociais e econômicas entre os homens. O fato, por

exemplo, de o contribuinte ser forçado a contribuir para o bem-estar de outrem lhe viola

os seus direitos se ninguém mais lhe fornece coisas de que necessita.

Mas como o homem que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e

esmagado pela violência, surge a necessidade de se abdicar a própria vontade em prol

de um Estado. É com o pensamento de Rousseau que a sociedade confere a um ente (o

Estado) o poder de organizar as relações sociais. Segundo Luigi Ferrajoli,

―o Estado de Direito moderno nasce, na forma do ‗Estado legislativo

de Direito‘, no momento em que esta instância se realiza

historicamente com a exata afirmação do princípio da legalidade como

fonte exclusiva do direito válido e existente anteriormente. Graças a

esse princípio e às codificações que constituem a sua atuação, todas as

2Kelsen (1979, p. 9) foi enfático ao excluir os questionamentos sobre a justiça, afirmando que

uma norma jurídica positiva não pode ser injusta, uma vez que o autor pregava a independência

da validade da norma jurídica positiva em relação à norma de justiça.

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normas jurídicas existem e simultaneamente são válidas desde que

sejam ‗postas‘ por autoridades de competência legislativa‖... ―uma

norma existe e é válida não porque é intrinsecamente justa e ainda

menos ‗verdadeira‘, mas somente porque é proclamada em forma de

lei por sujeitos habilitados por ela‖. (FERRAJOLI, 2006, p. 423).

Enquanto Santo Agostinho escreve para se assumir culpado por seus pecados

e assim reafirmar/expor a onipotência divina com base em suas experiências, Rousseau

escreve para se defender e para culpar os outros. Para Santo Agostinho a conversação é

o ponto de partida e de chegada para falar de si; para Rousseau apresenta o ―anseio por

se justificar‖.

Sem recorrer a Deus, para Rousseau a fonte da recuperação dos homens em

sociedade, palco dos pecados, seria o encontro com o natural -- o estado de devaneio, o

mergulho numa interioridade sempre em transformação. Com Rousseau, a natureza é a

metáfora de Deus e do infinito, que se fragmenta no decurso da construção moderna dos

sentidos do mundo, e se "encarna" na ideia complexa do homem natural cindido entre o

eu solitário e o ente civil que almejava o contato com o semelhante em busca dos

valores autênticos. Se no mundo do passado, com a contribuição do cristianismo e o

processo de conversão medieval, o estado de coisas se baseava na permanência de uma

explicação divina para a vida, e o ―estar no mundo‖ era visto como mera passagem para

a verdadeira arte, com Rousseau se inaugura uma atitude diferente.

Rousseau como o primeiro dos Românticos que, com o mito do bom selvagem,

acreditava que o homem devia se desdobrar em seu estado natural para buscar as suas

origens e ter a liberdade suprema sem recorrer à representação da soberania de forma

paternalista como criticaIngeborg Maus (MAUS, 2000, p.184), é o cerne desta pesquisa

que como bem atenta Habermas ―direitos subjetivos são direitos negativos que garantem

um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se veem livres de

coações externas.‖ (HABERMAS, 2007, p. 271). Todavia,

―de acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos não é

determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles

podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de

cidadania, direitos de participação e concepção política são direitos

positivos. ― (idem, p. 272)

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Esta prática, entretanto, pode se realizar através da defesa de direitos civis,

particularmente da afirmação do direito do consumidor. Através da sua defesa o

consumidor assume o caráter de cidadão.Essa distinção entre direitos individuais e

coletivos é naturalmente relativa, já que os interesses individuais só podem ser

garantidos dentro de uma sociedade em que a ação coletiva de fato ocorre, cria o Estado

e as instituições liberais e democráticas, e assim garante esses direitos, enquanto os

direitos coletivos, cuja defesa exige diretamente a ação coletiva e em última análise

solidária dos prejudicados, são também direitos de cada cidadão individualmente.Os

juristas, prudentemente, falam em interesses e não em direitos, e os qualificam como

―difusos‖. Falam também em interesses ou ―direitos coletivos‖. São direitos coletivos

quando sua titularidade se expressa coletivamente, como direito de uma classe ou

categoria de sujeitos. Mas os direitos republicanos são um direito subjetivo individual

na medida em que os cidadãos são deles detentores. Os juristas também falam em

―direitos republicanos subjetivos‖ para designar de forma ampla todos os direitos dos

indivíduos em face ao Estado: direitos que obrigam o Estado a não fazer (não atentar

contra a liberdade, principalmente) ou fazer (particularmente os direitos sociais a serem

garantidos pelo Estado). Os direitos republicanos poderiam ser incluídos nessa

categoria, mas ao definir assim direitos republicanos estaríamos ampliando

excessivamente o conceito e, afinal, invertendo o seu significado. Quando nos referimos

a direitos republicanos não nos interessam os direitos dos cidadãos contra o Estado —

estes são os direitos civis —, mas os direitos dos cidadãos reunidos no Estado contra os

indivíduos e grupos que querem capturar o patrimônio público. Philippe Nonet e Philip

Selznick em ―Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo‖ defende a

ideia de tornar a lei ―mais responsiva às necessidades sociais‖ (NONET & SELZNICK,

p. 121). Ainda segundo os autores

―responsabilidade gera formalismo e retraimento, torna as instituições

mais rígidas e menos aptas a lidar com novas contingências. Por outro

lado, abertura pressupõe grandes doses de discricionariedade, de modo

que a ação dos órgãos institucionais possa manter-se flexível,

adaptável e autocorretiva. Mas as responsabilidades ficam mais vagas

quando perdem precisão e surge o perigo de que os

comprometimentos se diluam à medida que aumenta a flexibilidade.

Em conseqüência, a abertura degenera em oportunismo, quer dizer, na

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adaptação incontrolada a acontecimentos e pressões‖. (NONET &

SELZINICK, 2010, p. 125)

No século vinte, surgiu, então, uma nova forma institucionalizada de apropriação

privada da coisa pública: o corporativismo. Enquanto no patrimonialismo se confunde o

patrimônio público com o da família, no corporativismo o patrimônio público é

confundido com o patrimônio do grupo de interesses ou corporação. É o que os autores

acima mencionados dizem: ―um agregado impreciso de Corporações Públicas, cada uma com

sua própria missão de seu próprio público‖ (idem, p. 157). Daí a importância crescente dos

movimentos sociais para a construção da cidadania através da afirmação de direitos

sociais a fim de combater essa apropriação. A proposta é uma nova institucionalização

do Estado que será chamado Estado Plurinacional, baseado em novas autonomias, no

pluralismo jurídico em um novo regime político calcado na Democracia Intercultural

em novas individualidades particulares e coletivas.

Assim, o presente artigo traz à lume uma perspectiva comparada, realizada mediante

análise textual e indutiva, em que se consulta obras pertinentes não só à Ciência

Jurídica, mas a outros ramos das ciências humanas e sociais. Desta forma, buscou-se

pontos de interseção entre Literatura, Ciência Jurídica, Sociologia e Ciência Política.

Metodologia:

Trata-se de estudo comparado, realizado mediante análise textual e indutiva,

em que se consultam obras pertinentes não só à Ciência Jurídica, mas em outros ramos

das ciências humanas e sociais. O material bibliográfico é constituído de livros, artigos

científicos, teses e revistas especializadas. Para a escolha do referencial teórico

adequado, buscou-se pontos de interseção entre a Literatura, a Ciência Jurídica, a

Sociologia e a Ciência Política, trabalhando-se com pressupostos básicos do pluralismo

jurídico.

Assume-se a necessidade de o Direito abrir-se ao diálogo com as

demais ciências. Assim, a multidisciplinaridade é pressuposto essencial para o

desenvolvimento desta pesquisa. Nesta linha, o presente estudo leva em conta algumas

categorias conceituais caras à Filosofia e à Sociologia, como identidade, diferenças e

multiculturalismo. O estudo jurídico puramente tecnicista, sem diálogo com as

múltiplas realidades sociais, tende a contribuir para a manutenção do status quo.

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A própria concepção de Direito, em um viés liberal, tende a centrar em

excesso suas atenções na atividade judiciária, que atua na ponta final da cadeia como

uma espécie de ―bombeiro‖, de forma corretiva. A construção do Direito é reservada a

uma elite intelectual, havendo pouco espaço para a participação popular e para projetos

que enfatizem uma formação para cidadania. Acaba sendo privilegiada a análise

do Direito apenas como remediador de conflitos, deixando de lado seu papel preventivo

e de formação de cidadania. Em sentido inverso, o presente estudo procura

apresentar perspectivas alternativas a esta visão.

Ressalte-se, ainda, que ter o fenômeno da globalização como pano de

fundo para análises teóricas e para as correlações entre a teoria e a práxis permite a

ampliação do horizonte de discussões envolvendo o Direito, dentro do ambiente

interdisciplinar acima mencionado.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para relacionar Santo Agostinho e Jean Jacques Rousseau, apresentamos uma breve

biografia seguida do corpus teórico:

Santo Agostinho (354-430), ou Aurelio Agostinho, nasceu em Tagaste, mas

morou, estudou, lecionou e tornou-se Bispo em Hipona, onde hoje fica a Argélia. Da

Idade Média, ele entra na História da Filosofia. É um cânone da Filosofia como o

sujeito que descobre o fundamento subjetivo da certeza, não só como fundamento

cognitivo, mas também como fundamento moral. E nesse sentido seu pensamento tem

peso filosófico até aos dias de hoje.

O genebrino Rousseau (1712-1778) foi um verdadeiro cidadão do mundo,

uma vez que se aventurou por diversos pontos da Europa, exercendo funções de

relojoeiro, lacaio, copista, professor, preceptor, secretário, musicista, compositor,

intérprete. Voltaire, Diderot, d´Alembert e Hume são nomes associados a sua biografia.

Em virtude de perseguições que sofre e da censura que paira sobre os seus escritos,

surge a oportunidade de escrever sobre sua própria vida, até para defender os seus

trabalhos intelectuais.

Deste modo, para traçar uma correspondência entre esses dois autores, os

aproximamos dos autores mencionados e elencamos os teóricos a seguir:

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Para Anthony Giddens em ―As Consequências da Modernidade‖, uma

situação de "desencaixes" acentuados – conceito fundamental para sua explicação da

especificidade da individualidade moderna e de seu aprofundamento contemporâneo –

em que "sistemas" abstratos, fichas simbólicas – como o dinheiro e "sistemas de

peritos" – tornam-se centrais na organização da vida social, as certezas dos modos de

vida pré-modernos são solapadas e o indivíduo, arrancado dos contextos tradicionais,

locais e relativamente estáveis de existência, deu lugar à radicalização da modernidade.

Segundo Jürgen Habermas, em A inclusão do Outro: estudos de teoria

política‖ há três modelos de democracia. A concepção republicana, a concepção liberal,

a concepção de democracia deliberativa. Para a primeira, ao lado do poder

administrativo e dos interesses próprios, surge a solidariedade como terceira fonte de

integração social. Já a segunda é determinada pelo status dos cidadãos conforme a

medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais

cidadãos. E por fim, aquela que o autor sugere baseia-se nas condições de comunicação

sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais

justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.

Dando continuidade ao pensamento do autor anteriormente citado,

Philippe Nonet e Philip Selzinick, ao falarem sobre estados básicos do direito na

sociedade, distinguem três (3) modalidades: o direito como servidor do poder

repressivo; o direito como instituição diferenciada capaz de controlar a repressão e

proteger sua própria integridade (direito autônomo); e o direito como facilitador do

atendimento às necessidades e aspirações sociais, que é o direito responsivo.

Ingeborg Maus discute em que medida a atividade de controle normativo judicial teria

contribuído para a perda da racionalidade jurídica ou mesmo para racionalizações

autoritárias.

De acordo com Luigi Ferrajoli, há um condicionamento do princípio da

legalidade formal à validade da norma e faz uma crítica às constituições rígidas. Mas

esses dois modelos de Estado estão em crise devido ao fim do Estado Nacional como

monopólio da produção jurídica.

Max Weber apresenta sua definição de "Espírito do capitalismo" a partir das máximas

de Benjamin Franklin. Nestas regras ele vê a manifestação de um certo espírito moral

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ou ethos: a ideia da profissão como dever e da necessidade de se dedicar ao trabalho

produtivo como fim em si mesmo.

Richard Sennet faz uma distinção entre as relações de trabalho nos anos 60

ao caracterizar a ideia de reengenharia nas empresas com as relações atuais. Com a era

da globalização, esses postos perdem essa organização, são flexíveis e cada vez mais o

trabalhador deve produzir ao máximo sob pena de não ter mais espaço no mercado de

trabalho. Assim, esses são alguns dos teóricos estudados, sendo possível a abertura a

outros que forem sugeridos ao longo do curso.

Dando continuidade ao pensamento do autor anteriormente citado, Philippe Nonet e

Philip Selzinick, ao falarem sobre estados básicos do direito na sociedade, distinguem

três (3) modalidades: o direito como servidor do poder repressivo; o direito como

instituição diferenciada capaz de controlar a repressão e proteger sua própria integridade

(direito autônomo); e o direito como facilitador do atendimento às necessidades e

aspirações sociais, que é o direito responsivo.

RESULTADOS ALCANÇADOS

A pesquisa ainda incipiente pode ser bastante profícua como uma eventual tese de

Doutorado e para tanto apresentamos alguns trabalhos já desenvolvidos a respeito de

Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau.

O artigo científico A história da infância: de Santo Agostinho à Rousseau,

de Bárbara Carvalho Marques Toledo Lima Mestranda do Programa de Pós- Graduação

em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Heloisa Helena de

Oliveira Azevedo, Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba,

aborda uma discussão teórica que problematiza o conceito de infância no bojo da

história e do pensamento filosófico, a partir de uma revisão crítica da literatura, em que

a criança que projetamos hoje é fruto das transformações da nossa sociedade e a cada

mudança na forma de pensar, agir, na cultura, a criança ganha uma nova imagem, e

como essas transformações não acontecem de maneira isolada, são as representações da

infância, que nos interessam como fato social.

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Pierre Lejeune, professor e crítico, em O pacto autobiográfico: de

Rousseau à Internet parte de estudos autobiográficos no domínio literário e caminha

para uma abertura de perspectivas. Para ele, a autobiografia passa a ser considerada

como partes de variadas manifestações do ―eu‖. A noção de ―pacto‖ para o autor tem

estreita ligação com o gênero e, então, segundo ele, trata-se de uma declaração aberta de

fidelidade irrestrita aos fatos narrados e de identificação entre autor e narrador, sendo

construído numa justaposição constante de desejo de identificação e movimento de

ruptura.

Entre outras teses em que o trabalho de pesquisa não cessa, citamos Ana

Amélia Barros Coelho Pace em Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiográfico de

Philippe Lejeune, na qual a examinanda disserta não só sobre Rousseau a partir de

Pierre Lejeune, mas também a partir de outros textos literários com os quais trabalha e

que dão suporte para a compreensão de Lejeune e de Rousseau, e Sergio Ricardo

Strefing em A atualidade das Confissões de Santo Agostinho, trabalho sobre Teologia,

que abarca também outros domínios com uma análise sobre Literatura e, sem dúvida,

Sociologia. Para ele, ainda que muitas obras pretendam merecer o título de ser a

primeira obra literária ―moderna‖, as ―Confissões‖ embasam seu direito a esse título

pelo fato de ser a primeira obra que explora extensamente os estados interiores da mente

humana e a relação mútua existente entre a graça e a liberdade, que são temas

dominantes na história da filosofia e da teologia ocidentais.

CONCLUSÕES

Com a análise weberiana sobre a teoria da Graça, a qual determinava que a vontade de

Deus que alguns sucumbissem à tentação do mal, enquanto outros não, essa teoria é

unicamente o produto de um poder objetivo e que modo algum poderia ser atribuída ao

valor pessoal, tendo como contraponto a questão da igualdade, o Estado de Natureza de

Rousseau que tomará outras formas com o Contrato Social, originando a desigualdade,

e por conseguinte, o anseio por direitos subjetivos, cuja prática se realiza através da

defesa de direitos civis.

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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO,

BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique, MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius, NUNES PEREIRA, Daniel

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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA

CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO

BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique

Graduando em Direito da Universidade Veiga de Almeida. Graduando em Filosofia da Universidade

Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

[email protected]

MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius

Graduando em Direito da Universidade Estácio de Sá

[email protected]

NUNES PEREIRA, Daniel

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF), Mestre em

Ciências Sociais e Jurídicas (PPGSD/UFF), Mestre em Ciência Política (PPGCP/UFF), Especialista em

História Européia (Universiteit Utrecht), Bacharel em Direito (UFF-Niterói-RJ). Professor do Curso de

Direito da Universidade Veiga de Almeida. Professor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença. [email protected]

RESUMO

A fundamentação do Direito a partir de um viés Existencialista desobstruiu uma nova rota acerca da

enorme problemática jurídica concernente à dualidade ontológica do jus; a disfunção interpretativa que

advém de uma falsa síntese entre o Sein e o Sollen apenas corrobora uma visão do Direito aliado ao

campo da utopia. Deste modo, faz-se mister observar melhor essa relação ontológica, pois é algo

completamente inconcebível que a partir do nosso plano existencial se deduza algo totalmente distinto

da sua natureza, como o fazem por meio de conceituações do campo do Ser. Mediante tal pesquisa, foi

possível relacionar o Direito, inusitadamente, à corrente Existencialista, tendo como principal pilar o

Absurdismo de Albert Camus; mapear uma nova faceta do jus, ou seja, voltado ao plano existencial,

como um fragmento do Absurdo, demonstrando, outrossim, um viés jurídico mais próximo da realidade,

o que facilita a interpretação das maiores contradições acopladas a essa Ciência social Aplicada.

Palavras-chave: Existencialismo. Ontologia jurídica. Absurdismo

ABSTRACT The basis for the law from an Existentialist bias has cleared a new route on the significant legal issues

concerning the ontological duality of justice; interpretive dysfunction that comes from a false synthesis

between Sein and Sollen only supports a vision of law allied to the field of utopia. Thus, it is mister better

observe this ontological relationship, it is something completely inconceivable that from our existential

plan to deduct something totally distinct from nature, as they do through concepts of Being of the field.

Through this research, was possible to relate the law, unusually, the current Existentialist, the main pillar

of the Absurdism of Albert Camus; map a new facet of justice, that is, facing the existential plane, as a

fragment of the Absurd, demonstrating, instead, a legal bias closer to reality, which facilitates the

interpretation of the biggest contradictions attached to this social Applied Science.

Key-words: Existentialism. Legal ontology. Absurdism

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INTRODUÇÃO

A problemática jurídica face ao dualismo ontológico suscita diversificados transtornos

in concreto; o Direito como máxima expressão da emancipação humana sobrecarrega-se de

influências finalistas, cuja origem, de certa forma, pode-se atribuir à René Descartes1. Id est, há

a tendência incessante de tornar absolutamente proeminente às soluções- ou possíveis- em

detrimento do próprio problema, objeto de estudo, ocorrendo, por si só, a ausência de

consciência do mesmo2. Fazendo uma leitura Existencialista da categoria do plano da

consciência humana, é possível perceber, tanto em Kierkegaard quanto em Camus, que o

homem se encontra no limite do entendimento de sua existência enquanto categoria

Finito-Infinito. É natural ao homem a percepção- o que fora definido por desespero- de uma

carência de infinito como pathos para uma síntese do eu, o qual deve ser analisado sob uma

categoria do espírito enquanto consciência. Quando perquirido a noção do Absurdismo,

torna-se permitido a dedução, em vista de uma carência do infinito, da contínua necessidade

humana de todo um aformoseamento fantasioso a respeito de nossa existência, o que torna

compreensível a ideia da vida sem um fim em si mesma, a partir de uma peculiar e incompleta

síntese, que somente irá se preencher, ao se juntar com o infinito no plano da consciência

humana. Tal junção é impossível, frise-se. O salto do homem para além do Absurdo existencial,

cuja compreensão alcança a noção da imperfeição humana, é intangível. O homem não deve

dar o salto, não pode compreender a ausência de algo infinito, conquanto haja essa necessidade

natural. O homem é imperfeito, e é a sua imperfeição que o torna perfeito, não por haver uma

necessidade de completar sua imperfeição, com uma perfeição superior, mas sim, porque sua

imperfeição é o que o define como homem e o insere na categoria da consciência do eu.

1Quando analisamos o apogeu filosófico atribuído ao autor em sua obra intitulada O Discurso do Método,

interpretamos o sentido da frase: “O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas

parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2013:54), como um

distanciamento, mesmo que involuntário, de quaisquer complexidades relativas ao objeto(s) de estudo. Essa

questão também será analisada, a qual se desdobrará no exame da fragmentação do Direito.

2“(...) Cuando se habla de nuestra actividad cognoscitiva o teorética se define muy justamente como la operacíon

mental que va desde la conciencia de un problema al logro de su solución. Lo malo es que se tende a no considerar

como importante en esa operación sino su última parte: el tratamiento y solución del problema” (GASSET,

1983:321).

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1. FRAGMENTAÇÃO E FUGA

O atual século é marcado por uma decadente tendência jurídico-política em situar o

Direito como fruto de uma mera racionalização, sob alicerces finalísticos, valendo-se, portanto,

de “necessárias” técnicas a posteriori, o que corrobora um verdadeiro abandono filosófico

hermenêutico em prol da solutio mais “adequada” ao caso concreto. Eis a fragmentação, ou

seja, um Direito representativo de apenas medidas tomadas a posteriori do problema, aliás, a

partir dos resultados pejorativos já verificados. Outro problema que assola a ordem jurídica é o

depósito esperançoso em um sistema axiológico utópico, no qual se consubstancia todo um

compêndio de valores criado a partir do telos do Jus. Esta problemática em si consiste não

somente em toda abstratividade deste campo ontológico, mas no ornamento deste em prol dos

mais diversificados interesses.

“Num mundo em que tudo é dado e nada é explicado, a fecundidade de um valor ou de

uma metafísica é uma noção vazia do sentido” (CAMUS, 2013:155). Naturalmente o homem

recorre ao eterno, imutável, haja vista a tentativa de libertar-se do seu próprio eu, para se tornar

um eu da sua própria invenção (KIERKEGAARD, 1979). A fuga consiste nessa capacidade que

cada indivíduo dispõe para evitar as mazelas inerentes à natureza humana, o que fundamenta a

criação de um sistema que suprima o desespero de viver em uma vida, cuja impossibilidade é

latente de interligar o Finito (Dever-ser) ao Infinito (Ser). Frise-se, não é proposto, neste

diapasão, o esquecimento de todos os valores que moldam a sociedade como um todo, mas sim,

a retomada de consciência, caracterizada pela permanência da razão em um plano existencial,

ou se quiserem, como propôs Albert Camus, um Suicídio filosófico, marcado por uma atitude

existencial. “O que importa não é a vida eterna”, já dizia Nietzsche, “é a eterna vivacidade”

(CAMUS, 2013:96). Destarte, face aos problemas que cercam a humanidade, o Homem

Absurdo se sobressai, cujo fator justificante está exposto no Mito de Sísifo:

"'Meu campo'' diz Goethe ''é o tempo''. Eis propriamente o enunciado absurdo.

O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo

eterno. Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e

seu raciocínio. A primeira lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o

que tem, o segundo lhe ensina seus limites. Seguro de sua liberdade com prazo

determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível,

prossegue sua aventura no tempo de sua vida. Este é seu campo, lá está sua

ação, que ele subtrai todo juízo exceto próprio. Uma vida maior não pode

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significar para ele uma outra vida. Seria desonesto. Nem mesmo falo aqui

desta eternidade ridícula que chamam de posterioridade. Madame Roland é

indiferente à posteridade” (CAMUS, 2013:79).

Sintetizando de forma cabal à questão da fugacidade, demonstramos que toda criação

axiológica em sua forma pura- totalmente adstrito ao campo do Ser- é impossível. Isto posto, a

ideia de um Direito construído sobre um complexo de valores universais é apenas uma falácia,

considerando-se a impossibilidade de transportar qualquer axiologia, plenamente, ao campo

concreto. Isso quer simplesmente dizer que o homem acaba, mesmo que involuntariamente,

enumerando as aparências e sentindo, na medida do possível, o clima proporcionado por esses

valores (CAMUS, 2013), sobressaindo assim à maior contradição desta "égide" do Direito, isto

é, a intersubjetividade do entendimento de cara valor puro acaba se tornando um instrumento

em prol do interesse das mais variadas classes e indivíduos.

Não se deve entender exatamente sob uma perspectiva Kantiana, a questão da

fragmentação, i.e, extrai-se do termo latino referência à experiência, não estritamente científica

ou lógica- como o trabalhado por Ernst Tugendhat e Ursula Wolf, em sua “Propedêutica

Lógico-semântica”- mas aquela aglutinada à experiência dos fatos, termo fundamental exposto

por Friedrich Carl Von Savigny, corifeu da Escola Histórica do Direito. A experiência dos

fatos, não em um sentido positivo do termo- anterior ao acontecimento-, mas negativamente

falando, somente corrobora o nosso pensamento de que o Direito foi deixado de lado como o

principal incremento da emancipação humana. Ou seja, como fruto de toda problemática

jurídica, esta ciência acaba sendo extirpada do campo da prevenção, sendo voltada, outrossim, à

seara da imediatidade, a partir de medidas tomadas, muitas vezes, sem o menor estudo prévio,

através de aprovações ligeiras de leis e mais leis. Quando não violadoras dos princípios mais

básicos do jus, acabam que, em vista ainda de todos os defeitos- seja orgânico, formal ou

substancial- são, quando não acatados ingenuamente no seio social, coercitivamente aplicados,

havendo resistência ou não.

2. DESFRAGMENTAÇÃO DA FUGA

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No que concerne à axiologia do Direito, é importante frisar que devemos sempre olhar

pela ótica do direito positivo, pois em categoria epistemológica, um conceito de verdade

universal seria problemática, suas averbações e conceituações sobre uma lei da moralidade,

uma justiça superior que regeria todo o ordenamento valorativo do homem, ou então a liberdade

como máxima do Direito, como propôs Kant em seu imperativo categórico3

, é pura

ingenuidade. Tomemos um tempo para analizar o que Nietzsche, nos fala acerca de qualquer

universalidade de valores:

Agora mais uma palavra contra Kant enquanto moralista. Uma virtude deve

ser uma invenção nossa: deve brotar de nossa defesa e necessidade pessoal.

Em qualquer outro sentido, ela é uma fonte de perigo. O que quer que não

pertença à vida é uma ameaça para ela: uma virtude que se origina meramente

no respeito ao conceito de “‟virtude”, como Kant a desejava, é perniciosa. A

virtude, o dever, o bem em si mesmo, o bem baseado na impessoalidade ou na

noção de validade universal – são todas quimeras, e nelas encontra-se apenas a

expressão da decadência, a exaustão final da vida, o espirito chinês de

Königsberg (NIETZSCHE, 2012: 32).

Toda virtude que tem em sua base conceitual uma emancipação superior infinita que

remete à um caminho gnosiológico que o ser humano acaba percorrendo em sua caminhada a

compreensão de sua categoria no plano axiológico do conhecimento, é viciosa, pois o homem

precisa compreender que ele é o seu próprio fim. Quando o homem não é capaz de enxergar no

Direito a sua finalidade e acaba apenas o visualizando como mero instrumento do meio,

alheia-se ao abismo existencial, aonde todo sistema moral que rege sua subjetividade é apenas

fruto de algo "virtual". Qualquer axiologia só deve existir quando estiver relacionada aos

limites do plano existencial; toda conceituação do juízo valorativo quando analisado pelos anais

da Ciência Social Jurídica deve ser atrelado ao conceito do idealismo emancipador, pois o

3 Imperativo categórico é a máxima na qual o autor apresentou sua lei moral da razão emancipando a subjetividade

do indivíduo em uma universalidade de valores, na qual encontramos em sua conceituação, a seguinte fórmula:

“Aja apenas segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT,

1993, p. 30).

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julgamento axiológico que não estiver sobre a tutela do ordenamento jurídico acabará se

tornando pura condição falaciosa de uma aparência4, e não sua real face.

O Direito face ao abismo existencial nos revela uma característica da natureza humana

muito verossímil ao objeto teórico tratado anteriormente. O homem desde sua emancipação

racional se encontra numa posição de desperatio exsistentialis, que o impede de dar um salto

gnosiológico a noção do absurdo5. Os interpretes jurídicos ao fragmentar o direito, colocam

uma ínfima diferenciação entre o sein e o sollen, o que corrobora a visão de um Direito reduzido

apenas à pura normatividade jurídica. Essa problemática, mesmo que estudada e formulada por

diversos autores, também deve ser jogada no fosso do abismo existencial; a série de

diferenciações subjetivas e objetivas no que concerne à dialética ontológica jurídica, fica bem

esclarecida na famosa passagem do Tratado da Natureza Humana:

“Em todos sistemas morais com os quais até hoje me deparei pude notar

que o respectivo autor procede durante algum tempo com o uso do

raciocínio ordinário e, assim, estabelece a existência de um Deus, ou faz

observações acerca das relações humanas; De repente sou surpreendido

em encontrar, ao invés da usual copulação de proposições do tipo “é” e

“não é”, não outra coisa que não uma proposição conectada a um

“dever-ser” ou um “não-dever-ser”. Esta mudança é imperceptível, mas,

entretanto, de grandes consequências. Pois este “dever-ser” ou

“não-dever-ser” expressa uma nova relação ou afirmação que necessita

ser melhor observada e explicada; ao mesmo tempo uma razão deve ser

dada para aquilo que nos parece completamente inconcebível: será

necessário que nos expliquem como esta nova relação pode ser uma

dedução a partir de outras que são inteiramente diferentes dela.

Entretanto, como os autores comumente não tomam tal precaução,

presumo ter de recomendá-la aos leitores; assim estou persuadido de que

esta pequena atenção poderá subverter todos os vulgares sistemas de

moralidade, e deixar-nos ver, que a distinção entre virtude e vício não é

fundamentada em relações entre objetos, nem é percebida pela razão‟‟

(HUME, 1738:469).

O argumento Humeano da impossibilidade da derivação do Ser pelo Dever-Ser - cuja

recíproca é verdadeira - citada anteriormente, toma forças quando Hans Kelsen elabora sua

4 “[...] fica claro assim que defino um método. Mas também fica claro que esse método é de análise e não de

conhecimento. [...]. Assim, as últimas páginas de um livro já estão na primeira. Este nó é inevitável. O método aqui

definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as

aparências e apresentar o ambiente‟‟ (CAMUS, 2013, p. 26).

5O sentimento do absurdo não é, portanto, a noção do absurdo. Ele a funda, simplesmente. Não se resume a ela,

exceto no breve instante em que aponta seu juízo em direção ao universo. (CAMUS,2013: 43).

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premissa do que se tornaria posteriormente em sua Teoria Pura Do Direito. O autor, fortemente

inspirado por Hobbes e David Hume, nos traz uma nova concepção positivista acerca do

idealismo jurídico como emancipador da conduta humana. Quando Kelsen afirma que o direito

é um ordenamento coercitivo (KELSEN, 1990: 27,190), quer dizer que é composto por normas

que regulam a coação. Este assim reduziria, segundo crítica de Bobbio, o direito às normas

secundárias, que podem ser definidas como aquelas que regulam o modo e a medida em que

devem ser aplicadas as sanções. Porém, a limitação em sua crítica é puramente uma falaciosa

interpretação da concepção Kelseniana do ordenamento jurídico, cujo em hipótese nenhuma,

pode ser reduzido a qualquer tipo de instrumento que o tenha como meio. Deste modo, como o

homem é o seu próprio fim e, sobretudo uma incompleta síntese do eu Finito-Infinito que

Kierkegaard tratava em O Desespero Humano6, o Direito também o é. No que concerne à

axiologia jurídica, “ele é como ele deve ser”, não podendo se limitar a qualquer redução

epistemológica de sua existência ou a mera fragmentação de objetos distintos da

intersubjetividade ontológica. O Direito Positivo - pautado nos seus limites - é o idealismo que

emancipa a natureza humana, pois o homem precisa ser o início e o telos do ordenamento

jurídico, sem que isso implique sair do nosso abismo existencial, por mais que acabe

caracterizando esta Ciência Social Aplicada como Fragmento do Absurdo.

3. O DIREITO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO

O errôneo uso da hermenêutica sobre a conceituação gnosiológica da axiologia no

Direito e suas complexidades tende a criar um ciclo vicioso, na qual se nos atentarmos ao

conceito de sua subjetividade, percebemos que nossa sociedade é regida através do que

popularmente chamamos de: "verdade pela unanimidade". Essa interpretação apriorística que

comumente tomamos como cunho o conceito da Ética, caminha para uma tendência de

aplicações subjetivas-objetivas que trazem discussões sobre qual moral deve sobrepor a outra,

6 Quando fazemos uma análise crítica da obra de Kierkegaard acerca do desespero humano e colocamos seu

conceito de existência incompleta da natureza humana sobreposta à emancipação divina, percebemos, que o

homem, no qual o autor se refere em seu objeto de estudo é aquele cujo tentamos desvincular em nossa Teoria do

Direito Ideal. O homem que nega sua racionalidade a espera de uma completude divina, é um homem no qual não

enxerga o Direito como sua emancipação, apenas o vê como mero “instrumento necessário”.

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percorrendo um caminho até o viés das mazelas do nosso ordenamento jurídico. Essa fuga da

razão para a criação de um juízo valorativo, é uma característica de nossas barreiras

epistemológicas que afastam o Direito do absurdo existencial. O juízo analítico de nossa base

conceitual é aquele que tenta unir tanto a razão, quanto a moral, que juntas devem moldar a

estrutura normativa de nossa sociedade. Ao adentrarmos ao grande problema sobe qual seria a

forma ideal da estrutura normativa que estamos construindo em nossos estudos

teórico-metodológicos, avistamos então a barreira epistemológica que nos impõe a dualidade

intersubjetiva entre a justiça e a norma. Utilizamos então como base a conceituação normativa

elaborada por Kelsen em sua obra intitulada o problema da justiça:

“A justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes

objetos. Em primeiro lugar, de um indivíduo. Diz-se que um indivíduo,

especialmente um legislador ou um juiz, é justo ou injusto. Neste sentido, a

justiça é representada como uma virtude dos indivíduos. Como todas as

virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida,

a justiça pertence ao domínio da moral. Mas a qualidade ou a virtude da

justiça atribuída a um indivíduo exterioriza-se na sua conduta: na sua conduta

em face dos outros indivíduos, isto é, na sua conduta social. A conduta social

de um indivíduo é justa quando corresponde a uma norma que prescreve essa

conduta, isto é, que a põe como devida e, assim, constitui o valor justiça. A

conduta social de um indivíduo é injusta quando contraria uma norma que

prescreve uma determinada conduta. A justiça de um indivíduo é a justiça da

sua conduta social; e a justiça da sua conduta social consiste em ela

corresponder a uma norma que constitui o valor justiça e, neste sentido, ser

justa. Podemos designar esta norma como norma da justiça. Como as normas

da moral são normas sociais, isto é, normas que regulam a conduta de

indivíduos em face de outros indivíduos, a norma da justiça é uma norma

moral; e, assim, também sob este aspecto o conceito da justiça se enquadra no

conceito da moral” (KELSEN, 2011:3-5).

Quando tratamos da axiologia jurídica em face do sentimento do absurdo, é possível

verificar uma tendência natural do ser humano em moldar uma aparência do eterno, haja vista a

dificuldade da compreensão da noção do absurdo. Sua inevitabilidade, enquanto aparência de

um valor que corrobora a diretriz da conduta humana produz um entendimento falacioso, i.e,

originam-se exorbitantemente variadas interpretações subjetivas concernentes ao campo

valorativo do Direito, cujo alicerce é fundado em uma mera ilusão, na qual cada indivíduo

propaga a sua como sendo verdadeira, pois, acertadamente, as convicções são inimigas mais

perigosas da verdade que as próprias mentiras (NIETZSCHE, 2013). Dificilmente é transmitido

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ou adquirido pelo ser humano o reconhecimento da existência de nosso abismo existencial, fato

que justifica a rejeição convicta- fundamental à consubstanciação de uma angustia

Kierkegaardiana- da própria realidade por certa parte dos indivíduos, ou seja, acata-se algo

completamente alheio ao campo do Dever-Ser, circunstância que evidencia a preponderância

de escolhas aliadas à "estabilidade", cujo verdadeiro propósito, apesar de legítimo e até,

passível de apreciação - firmado como um poderoso meio de persuasão- ser, lamentavelmente,

tão utópico quanto falacioso aos olhos do Homem Absurdo. A mudança de perspectiva

proporcionada pelo Absurdismo Camusiano, só ratifica que:

“Sim, o homem é o seu próprio e o seu único fim. Se quer ser qualquer coisa,

tem que ser nesta vida. Agora sei, aliás, que embora conquistadores falem

algumas vezes de vencer e de exceder, o que eles querem dizer é

„excederem-se‟. Suponho que sabem o que isto quer dizer. Em certos

momentos, todos os homens se sentem iguais a um deus. É assim, pelo menos,

que se diz. Mas isto vem do fato de eles terem sentido, num instante, a

espantosa grandeza do espírito humano” (CAMUS, 2013:85-86).

Para fim de um total entendimento e compreensão a respeito do verdadeiro caminho

natural da norma e seu real objetivo para com a conduta do ser humano, temos que enxergar

Direito como fragmento do absurdo, e entender que seu principal objetivo desde a sua criação é

simplesmente garantir a tutela individual do homem enquanto sociedade, cumprindo assim os

fatores que corroboram os interesses e deveres dos indivíduos e a soberania do poder Estatal

que rege a conduta humana juntamente com o ordenamento jurídico.

Partindo de um pressuposto de que a instabilidade não é exatamente instável7 e, a

contrario sensu, a estabilidade não trás nenhuma garantia de estabilidade correspondente à

qualquer sistema valorativo, o Homem Absurdo, não mais ofuscado por toda tentativa falha de

síntese Finito-Infinito, marca o advento de uma nova era, ou seja, um autentico suicídio

filosófico, abstraindo qualquer epistemologia transcendental do campo jurídico normativo,

pois, infelizmente, “todos esos grandes idealistas y portentosos se comportan como lãs mujeres:

toman los sentimientos sublimes por argumentos” (NIETZSCHE, 2013:33), cujo afastamento

7 Nesse jogo de palavras, quando se menciona a palavra instabilidade, quer-se dizer que, o usualmente considerado

instável é simplesmente a medida possível- existencial-, o que demonstra o fito do presente trabalho, i.e, a busca

por um melhor aparelhamento jurídico conforme as possibilidades humanas, presentes no campo da imanência.

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deve materializar a supervalorização da imanência, realocar o Direito à esfera do Absurdo.

Destarte, ao contrário dos que acreditam em uma ideia de Imperativo Categórico tão propagada

por Kant a partir do século XVIII ou por uma Norma Fundamental propugnada por Hans

Kelsen , a visão jurídica e social respaldada em absoluto na corrente Existencialista fulmina

toda sistemática de deveres absolutos ou relativas ao campo transcendental ainda disseminadas

no mundo jurídico, cuja adequação fundamenta algo terminantemente favorecedor à harmonia

social. Outrossim, conquanto esses homens, em virtude de uma lei suprema ou universal,

possam personalizar a si mesmos e sobretudo sua própria crença, tornando-os também

absolutos a priori, são sepultados por uma pequena "dose" da teoria Existencialista/ Absurdista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia de fragmentação e fuga no Direito, aquela sob a esfera da imediatidade e a esta

adjunta aos fatores valorativos existentes em qualquer relação sócio-jurídica faz perceptível a

necessidade de evoluções teóricas no que tange à ciência do Direito, considerado tamanho

esgotamento causado pela condição humana, cujo fardo mostra-se intangivelmente penoso

diante da pluralidade conflitante de ideologias, o que por fim acaba por recorrer às mais

inacreditáveis e irrazoáveis possíveis "soluções". Diante das exposições, a partir da concepção

Existencialista, torna-se crível o vislumbre de um novo horizonte jus-filosófico diante da

problemática axiológica resultante de abismos gnosiológicos inerentes da não singularização de

valores - de modo a enxergar, acima de tudo, não mais o homem comum, mas principalmente o

Homem Absurdo-, cuja inteligência em tempos de vicissitudes, reconhece a imprescindível

necessidade de renovação da consciência sobre o Real, isto é, vê-se na realidade não mais

aquela pura fantasia, que a tornava demasiadamente utópica, pois, verdadeiramente, o que se

pretende é não mais refugiar-se para além do nosso abismo existencial, repleto de sabores e

dissabores. Este, que renovadamente pensado não contagia toda a humanidade com esperanças

ínfimas de visualizar uma eterna e "iminente" felicidade, pairando, assim, fora dos problemas

reais é capaz quebrar os paradigmas que rodeiam o seio social, pois, neste instante: um valor

absoluto apenas pode ser admitido com base numa crença religiosa na autoridade absoluta e

transcendente de uma divindade (KELSEN, 2012). Outrossim, por uma percepção razoável,

materializa-se no campo teórico a impossibilidade de regular qualquer tipo de relação humana

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somente com base em conceituações provenientes do campo do Ser. Com isto, faz-se mister

depositar as esperanças no que se tem existencialmente, isto é, dentro da impossibilidade de

sintetizar o Finito-Infinito. O Homem Absurdo adotará uma nova postura, a qual

consubstanciar-se-á no entendimento do Direito como meio capaz de tornar cada indivíduo o

seu próprio telos, de modo que a sua imperfeição não será mais vista como algo asqueroso e

indigno de apreciação das dogmáticas morais, pois é justamente a imperfeição humana que o

torna perfeito (CAMUS, 2013). Contudo, não se pretende dizer que os valores são totalmente

falaciosos pelo fato de que, pelo menos parcialmente, é possível entendê-los. Sob a égide da

corrente Existencialista, o Direito Positivo - pautado nos seus limites - é o idealismo que

emancipa a natureza humana, tendo em vista que o homem precisa ser o início e o telos do

ordenamento jurídico, sem que isso implique a sua saída do abismo existencial, devendo o jus,

diante disto, caracterizar-se como o fragmento do Absurdo.

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PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da

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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A

VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO PARADIGMA DE

GÊNERO.

COSTA,Lara Denise Góes da

Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio e doutoranda em Filosofia pela UFRJ, bolsista

CNPq

[email protected]

Três biografias. Um site. Acervo com cerca de 2000 composições. Mais de 70

peças de teatro. Uma minissérie. Milhares de partituras reproduzidas por ano nos

conservatórios de música. Músicas tocadas a cada semana em rodas de chorinho pela

cidade. Não é pouco para uma mulher do segundo reinado. Se Chiquinha Gonzaga

estivesse vivendo nesta época, seria talvez, apenas mais uma compositora, mas não. Ela

foi a primeira compositora brasileira. Produziu incansavelmente até a sua morte aos 87

anos. Mas também não é só isso. Participou do movimento abolicionista, enfrentou a

família conservadora e com isso arcou com as consequências de querer ser “a mulher-

homem”, isto é, de participar ativamente na sociedade e poder ter liberdade de ação,

coisa que só homens podiam.

Aparte as biografias, a escassa documentação a seu respeito, deixou muitas

lacunas interpretativas que tiveram de ser preenchidas a partir de inferências feitas pelas

poucas informações suas, como certidões de nascimentos dos filhos, pais, algumas

entrevistas feitas a ela mesma, comentários a seu respeito em jornais da época e

algumas poucas pessoas que conviveram com ela na época. Foquei inicialmente no

modo como ela mesma se descreveu e comentou sua vida. A partir daí a análise dos

dados biográficos foi somada a alguns comentários sobre sua personalidade. Apesar

desta tese não ter como foco a análise de suas motivações, interpretar suas razões foi

importante para compreender como se deu sua agência. Que Chiquinha era uma pessoa

querida em seu meio não há dúvidas: musicistas e jornalistas da época teciam inúmeros

elogios, em especial após sua volta de Portugal em 1906. Em todos os jornais e

panfletos disponíveis, não faltam elogios e cartas saudosas de amigos, cartões postais de

amigos franceses e documentos de seu reconhecimento e consagração em Portugal,

além de composições traduzidas para o alemão e o francês.

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Chiquinha Gonzaga nasceu em família de classe média no Rio de Janeiro em

outubro de 1847. Filha de um militar que tinha o anseio de garantir sua posição na

corporação, não teve o apoio de sua família para a inclusão de Rosa, pobre, mestiça,1

escrava alforriada pela Lei do Ventre Livre e mãe de Chiquinha, no seio da família.

Impossibilitado de casar oficialmente com Rosa, José Basileu se casa ocultamente

diante de sua gravidez. Consta que esta teria sido a terceira gravidez de Rosa, mas a

única que vingou. Chiquinha foi educada e alfabetizada pelo Cônego Trindade que foi

seu professor de literatura, cálculo e alguns idiomas. Também estudou piano com o

Maestro Elias Álvares Lobo, que produziu diversas operetas e óperas sacras, assim

como modinhas. Também foi aluna de piano de Arthur Napoleão, criança prodígio que

deu seu primeiro recital aos sete anos, posteriormente tocou pela Europa e se

estabeleceu no Rio de Janeiro onde se tornou editor de partituras e músicas. Chiquinha

foi criada, portanto, com acesso aos livros e à música e aos 11 anos compôs sua

primeira música, um ato de natal. Não faltam relatos de seu temperamento em cartas e

depoimentos: “trigueira, danada, o diabo!” Durante sua juventude dedicou-se ao piano

clássico, mas o interesse pelos ritmos africanos e pelas músicas dos escravos foi o

leitmotif para sua dedicação à composição musical. O casamento contudo, era o projeto

de vida planejado para Chiquinha por seus pais e estava de acordo com os parâmetros

da sociedade conservadora da época.

Casar significava mais do que a constituição de uma família aos moldes

tradicionais, expressava o cumprimento do dever filial da mulher e a realização da

função familiar que era atribuída ao papel de mãe e dona de casa. Pelas narrativas da

época, Chiquinha era considerada uma moça muito bonita e charmosa, o que lhe trouxe

muitos pretendentes. Coube ao seu pai, entretanto, a escolha de seu marido e Chiquinha

se casa aos dezesseis anos com Jacinto Ribeiro do Amaral, vinte e quatro anos, de

família carioca, proprietária de terras. Jacinto por sua vez era considerado um bom

partido, bonito, responsável e rico e queria em troca uma esposa como Chiquinha que

para sua felicidade seria uma jovem muito bonita e inteligente, além de ter sido educada

na música e nas prendas femininas o que faria dela também uma excelente esposa.

1Consta em sua certidão de batismo “parda

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O piano, instrumento típico das classes mais abastadas da época, para

Chiquinha, entretanto, era mais que um instrumento de lazer. A música era a forma de

expressar sua autonomia e temperamento e seu marido ao perceber isso se enciumava e

a reprimia no intuito de transformá-la naquele ideal de esposa abnegada, voltada apenas

para a família. Embora tenha inicialmente engravidado e dado à luz a dois filhos,

Chiquinha continuava se dedicando ao piano, o que agravou a crise no seu casamento e

fez o marido lhe transportar para as viagens da Guerra do Paraguai. Segundo narra seu

último companheiro, presenciar a forma como os escravos alforriados eram tratados,

com violência e crueldade, assim como sua própria situação de submissão, presa em um

navio no front de batalha foi para Chiquinha causa de muito sofrimento e com isso

queria a separação do marido. Tentou se socorrer com a família que recusa hospedá-la.

Chiquinha permanece mais quatro anos com o marido e ao descobrir-se

novamente grávida e diante do ultimato do marido para escolher entre ele ou a música,

Chiquinha, obstinada, opta pela segunda. Sua família recusa apoio novamente e logo

depois de ter seu terceiro filho, Hilário, e lhe dar os primeiros cuidados, Chiquinha

resolve de vez largar o marido e vai morar com João Batista de Carvalho.

Provavelmente, Chiquinha já conhecia João Batista para que pudesse ir morar com ele,

mas não há registros de que se conheciam antes de 1875. Também não há registro de

composições suas antes de 1877, mas diante da dedicação de Joaquim Callado ainda no

ano de 1870 é de se esperar que ela convivesse, mesmo casada ainda com Jacinto com

os grupos musicais da época. João Batista era do ambiente boêmio, gostava de música e

dança, como Chiquinha, porém, era considerado mulherengo e provocava muitos

ciúmes em Chiquinha, que se sente humilhada diante do comportamento do amante.

Chiquinha engravida novamente, desta vez de Alice e com isso vai viver por um tempo

na fazenda de João Batista em Minas Gerais. Descobre, enfim, que não havia

realmente nascido para ser a mulher conforme os padrões da época e decide abandonar

João Batista e sua filha Alice com ele.

Sem dinheiro e sem o apoio dos pais, Chiquinha se instala em uma casa de porta

e janela em São Cristóvão e deve ter recorrido aos seus amigos, como Joaquim Callado

para conseguir se manter. Consegue um piano e o transforma em instrumento de

trabalho. Costurava suas próprias roupas e contava com a insegurança que os artistas em

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geral contam: a gangorra da renda. Sem renda fixa, Chiquinha trabalhava doze a quinze

horas por dia e permaneceu assim, mesmo idosa e já com certa estabilidade, trabalhando

sem cessar. Obstinada, Chiquinha se lança a dar aulas de todas as matérias e piano, ao

mesmo tempo em que é lançada com compositora por Callado. Em 7 de fevereiro, na

casa do Maestro e Professor do Conservatório de Música Henrique Alves de Mesquita,

Chiquinha improvisa uma música que é seguida pelos compositores presentes, flautistas

e violinistas. Está lançada “Atraente”, batizada pelos amigos e publicada rapidamente às

vésperas do carnaval, o que lhe rendeu algum dinheiro, mas não o suficiente. Vendo que

Chiquinha conseguia improvisar, Callado achou interessante colocar um piano em seu

Choro Carioca e ela atendeu a isso, com apresentações noturnas semanais.

Chiquinha se torna, então, a primeira “chorona”, tocando em bailes e saraus.

Seu filho aprendeu a clarineta e também a acompanhava. A renda noturna somava às

escassas aulas que lecionava, visto que os pais não apreciavam que seus filhos tivessem

aula com uma mulher solteira. Em contraste, sua “Atraente” em seis meses chega à 15ª

edição e seu nome ainda no fim do ano começava a se tornar conhecido. Segundo o

jornalista Barros Vidal:

Chiquinha era um tipo bem brasileiro: morena, cabelos negros

ligeiramente ondulados, uma mulher irresistível. Em seu redor havia

sempre um grande número de admiradores. Cortejavam-na onde quer

que ela aparecesse.2

Adotada pela boemia popular da cidade, em especial pelo flautista Joaquim

Callado, que dedica uma música em sua homenagem, “Querida por todos” passou a

fazer parte do quarteto musical como “pianeira” de choros, Chiquinha passa a ser

comentada em toda cidade. Algumas cartas ressaltam o que se pensava acerca dela na

época: sedutora, faceira, sensual, insinuante e parece que Chiquinha soube usar estas

características a seu favor. Uma mulher sem família naquela situação de liberdade,

frequentadora de rodas boêmias, compositora de títulos provocadores3, era impensável e

um péssimo exemplo para a sociedade conservadora carioca. Muitas caricaturas e

2Revista da Semana, 16.01.1940

3 “Atraente”, “Sedutor”, “Harmonias do coração”, “Catita”, “Desejos”, “Manhã de amor”, são alguns

títulos de composições de Chiquinha que causavam furor à época.

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comentários faziam comparação entre os títulos das obras e seus próprios atributos e

talvez Chiquinha os tenha feito propositalmente. Ter fama, nesse caso era uma faca de

dois gumes: poderia vender mais músicas, mas poderia não conseguir alunos. Seu

primeiro biógrafo, em 1939 justifica o comportamento de Chiquinha, de que ela embora

de ambiente boêmio, “não resvalou pela estrada do vício4.”

O período de maior hostilidade, como apontamos anteriormente foi durante sua

transição entre a vida no sobrado e compositora de músicas, ao trabalho como

maestrina. Até o fim do século as críticas eram maiores, posteriormente ela se firmou e

conseguiu mais respeito. Em 1877, seu nome era cantarolado com comentários

maldosos e satíricos. Soma-se a isso o fato de que Jacinto coloca Maria, sua filha, em

um internato para evitar que Chiquinha conseguisse vê-la, diante da insistência de

contato com a filha. Com a internação, Chiquinha nunca mais a viu, até um encontro no

bonde quando a filha, aos dezoito anos, acompanhada da avó, seguia para a rua do

ouvidor. Chiquinha ao ver a filha vai até ela e ao perguntar se ela não lhe tomaria a

benção, avó e neta descem do bonde e Chiquinha novamente só veria a filha quando

esta fica viúva.

A mulher que se atrevesse a trabalhar estava condenada à perda de status social,

à desmoralização e à maledicência. O fato de ser uma mulher criativa, inteligente e

talentosa também gerava inveja por parte de músicos homens, afinal Chiquinha não era

apenas a primeira mulher a frequentar o ambiente boêmio era também excelente

musicista. Para frequentar este ambiente na época, tinha se de possuir um talento

admirável ou ao menos “superar” aqueles já consolidados e Chiquinha satisfazia este

quesito, embora fosse mulher. A hostilidade que sofreu, portanto, combinava o fato de

ser mulher, autônoma e musicalmente superior, o que era inconcebível em muitos

aspectos para o androcentrismo e honra masculinas da época.

Para Chiquinha, seu trabalho nada tinha de feminino nem de culto, mesmo por

que se dedicava às camadas mais populares. Seu comportamento não era alvo de

atenção apenas por que era considerado desviante ou perturbador da ordem social, mas

também por que seus ideais eram conforme a camada popular, compreendida como vida

errante. Sua família continuou a lhe hostilizar, rasgando-lhes as partituras quando as

4 BOSCOLI,Sem ano.

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via. Entretanto, Chiquinha teve que se manter firme, certa de que embora não a

reconhecessem como pessoa, não poderiam deixar de lhes reconhecer o talento e

originalidade. Dava aulas de todas as matérias e suas composições faziam agora

enorme sucesso, sua fama aumentava drasticamente.

A marginalização que sofria a excluía da classe dominante, mas abria as portas

para a música popular do país. A música popular desta época, no entanto, deve ser

compreendida como uma música das classes intermediárias e não no sentido de música

de grandes massas, o que não havia no século XIX. Chiquinha se interessou desde cedo

pelo popular, brasileiro e pelo povo. Suas composições tinham um caráter nacional e

tinham tanta qualidade musical que se duvidava que as composições fossem suas.

Mario de Andrade coloca bem a fase de transição em que Chiquinha se situava:

(...)vivendo no segundo Império e nos primeiros decênios da

República, Francisca Gonzaga teve contra si a fase musical muito

ingrata em que compôs; fase de transição, em que características

raciais ainda lutam com os elementos da importação. E, ainda mais

que Ernesto Nazareth, ela representa esta fase. A gente surpreende nas

suas obras os elementos dessa luta como em nenhum compositor

nacional. Parece que sua fragilidade feminina captou com maior

aceitação e maior agudeza o sentido dos muitos caminhos e que se

extraviava a nossa música então5.

Chiquinha não queria ser apenas intérprete do lundu e do maxixe, Chiquinha

compôs tangos brasileiros, modinhas, batuques e pequenas operetas. Um total de duas

mil composições constam em seu acervo.

Suas composições tinham o caráter eminentemente nacional. Escreveu para o

Teatro, o que facilitava a divulgação de suas músicas e devido ao caráter nacional, fazia

frente aos gêneros de importação criticados por nacionalistas mais radicais. Sua

primeira opereta, “A corte na Roça”, foi uma peça de costumes musicada por

Chiquinha. Inicialmente foi negada por ser de uma mulher, depois foi aceita para estrear

no Teatro Príncipe (depois Teatro São José), mas os empresários queriam colocar um

pseudônimo masculino. Chiquinha não aceitou e disse que retiraria sua peça caso não

5 Mario de Andrade dedicou vários comentários à Chiquinha Gonzaga e a analisa pormenorizadamente

em “Música, Doce Música”.

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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO

PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da

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aceitasse com seu nome, diante desta “ridícula imposição”. Estreou como ela quis em

1885 e sem escândalo: o comentarista Luiz de Castro do Jornal do Commercio

ironizava: “e a vitória de Chiquinha Gonzaga ainda seria maior se a compositora tivesse

arranjado um pseudônimo francês...6”

Depois deste sucesso, Chiquinha passou a ser procurada por empresários e

autores. Estreou posteriormente no Teatro Recreio Dramático ainda em 1885, com a

peça “A filha do Guedes”, com sua partitura integral. Em 1886, passou a nova

empreitada: reabilitar os violões que eram menosprezados. Organizou então um

concerto de 100 violões para ressaltar a beleza da música brasileira. Compôs 70 peças

teatrais e colaborou em outras centenas de Arthur Azevedo, Viriato Correa, Carlos

Bittencourt, Raul Pederneiras, entre outros. Com sua popularidade, muitas a imitavam

enquanto outras a criticavam. ,

Na propaganda abolicionista participou de campanhas e criou uma cançoneta

intitulada – “Aperte o botão” que quase causou sua prisão; uma de suas partituras –

Caramuru – composta em 1888 em homenagem à Princesa Isabel, foi vendida por ela

própria pessoalmente para comprar a libertação do músico José Flauta. A música

“Faceira” também foi da campanha do vintém e Chiquinha a dedicou a Lopes Trovão.

De cidade vazia, sem pessoas nas ruas, passa-se à construção de uma cidade

voltada para o lazer do imperador. A partir daí, temos o desenvolvimento de duas

“culturas7” paralelas: uma da sociedade de corte e outra popular. No segundo capítulo

desenvolverei um pouco dos contrastes e identidade entre estas duas camadas sociais,

que conviviam inicialmente em diferentes realidades e posteriormente passam a falar a

“mesma língua” com o avento do nacionalismo brasileiro e com os debates sobre a

escravidão e o republicanismo. Estes dois primeiros capítulos, portanto, tem como

objetivo traçar o momento cultural no qual Chiquinha nasce e se torna adulta, esposa e

mãe. As duas últimas características – esposa e mãe – eram aquelas que se esperava

dela. A primeira – adulta- foi a que prevaleceu em sua cabeça. Com isso, no terceiro

capítulo, discorrerei sobre o simbolismo acerca da mulher, a influência católica

fortemente defendida pela ala conservadora da nação frente a qualquer mulher que se

6Jornais acervo - IMS

7O termo cultura por ora utilizado apenas no sentido de vivências diferentes e com isso gostos musicais

divergentes. O termo será desenvolvido com mais clareza no capítulo 2.

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insurgisse contra o status quo patriarcal e as consequências que eram sofridas pelas

mulheres consideradas “perdidas”, isto é, aquelas que não eram incluídas em nenhum

segmento.

Chiquinha era mulher, o que já lhe criava dificuldades, mas ser artista popular

era ir diretamente contra a sociedade de corte. Chiquinha, portanto, não rejeitou apenas

sua classe social, mas seu conteúdo simbólico. “Profanou” o piano, compôs polcas,

maxixes e modinhas, musicou peças teatrais de “teatrinhos”, enfim, subverteu a ordem

então estabelecida e teve o reconhecimento de seu talento. Ela mesma nunca foi

reconhecida pelo menos não moralmente, mas seu talento ninguém pôde negar.

A falta de reconhecimento ou o reconhecimento apenas tardio de sua obra e de

si mesma lhe causava grande tristeza e amargura. Reclamava que se dedicara ao Brasil,

com amor e nacionalismo e que o Brasil, ao contrário reconhecia o “bom” pelo

estrangeiro. Este caráter melancólico ajudou a compor a personagem e a compreender

suas razões, assim como confirmar algumas hipóteses a seu respeito

Chiquinha era uma nacionalista, fazia parte do movimento romântico de resgate

às fontes primitivistas para a consolidação da identidade nacional e era contra o gosto

europeizado que as elites ajudavam a promover. No que se refere ao Brasil, defende:

“Que mágoa eu tive quando vi João Caetano inaugurado por uma companhia

estrangeira.” Embora fosse nacionalista, Chiquinha sabia que diante do gosto vinculado

ao estrangeiro ter um caráter legitimador do que é considerado bom, poderia usufruir

disso ao provar a eles seu trabalho. Neste sentido, conseguiu que seu nome fosse

publicado na França e em Portugal ao compor músicas em homenagem aos “Geraldos”

portugueses, grupo de teatro popular lusitano e fazer uma homenagem aos soldados

franceses atracados no Rio no Navio Duquesne: O Jornal Du Bresil8parabeniza

Chiquinha, “d’une inspirations a la fois elevee et gracieuse.”

Ao ser descoberta como compositora de sucessos, Chiquinha foi convidada a

integrar o repertório musical do Navio Duquesne. Tocou além de seus sucessos, várias

homenagens aos oficiais. Passou a frequentar os almoços e bailes e recebeu das mãos do

8O estado do recorte de jornal não permitiu ver o nome do jornal e seus dados.

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comandante, em nome do governo francês, uma medalha e o título de “alma cantante do

Brasil9. Foram dois meses de festas e homenagens.

Chiquinha recebeu muitas cartas de amigos e cartões postais dos filhos e

familiares. Entretanto não costumava receber visitas. Chiquinha protegia tanto a sua

privacidade que muitas pessoas achavam que João Batista fosse filho dela, adotado ou

de um de seus maridos, ou que tivesse engravidado em Portugal. Chiquinha passa a se

apresentar com João Batista como mãe e filho de forma a se conformar com a moral da

época. A relação “secreta” com João Gonzaga, talvez a constrangesse. Chiquinha de

qualquer maneira era obstinada em preservar sua privacidade e não dividia sua vida

pessoal com ninguém, além de não dar margem para perguntas indiscretas ou

comentários sobre sua vida.

A partir de 1920 já era conhecida e aceita de modo geral. Amigos franceses e o

reconhecimento em Portugal podem ter ajudado a sua consolidação e respeito nacional.

Aos 42 anos de idade Chiquinha torna-se avó. Seu filho Gualberto se casa e suas duas

netas recebem os nomes de suas valsas mais famosas – Valquíria e Iara.

Com a imprensa libertina da época, muitos poemas eram publicados parodiando

os fatos corriqueiros, como o desembarque de muitos estrangeiros, prostitutas e a

preocupação médica que ocorria neste caso. Uma paródia do Navio Negreiro de Castro

Alves – chamada esculhambações, foi conservada por Chiquinha em seu acervo pessoal,

em que Chiquinha é associada à prostituta Suzana de Castera:

(...) Putaria fatal, que a porra esmaga!

Engalica de vez o cono imundo

Daquelas que Suzana mais afaga

Por lhe meter a língua mais no fundo...

...Mas é infâmia demais! Chica Gonzaga!

Faze dançar as almas do outro mundo...

Deiró! Arranca o teu perdão colosso!

Suzana! Fecha-o dentro do teu poço!

Chiquinha representava a dança e Suzana a prostituição. Chiquinha

9Em uma foto Chiquinha aparece com a medalha.

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(...) faria dançar as próprias árvores se a autora quisesse, um dia,

transformar a floresta num salão de baile. Era Irrequieta, diabinha,

capaz de seduzir uma dúzia de cardeais se for chorada em regra, à

meia-noite por três seresteiros matriculados defronte do Vaticano10

.

Considerada uma mulher bonita e que despertava grandes paixões, não foi difícil

para ela conseguir protetores e amigos que se colocavam à disposição. Nas reuniões do

SBAT, Chiquinha já idosa se vestia sobriamente, de preto, coque arrumado na cabeça,

sempre séria, como se vê em algumas das fotos da época. Mas em sua juventude usava

os vestidos que ela mesma costurava e sempre estava atrás de um novo projeto.

Quem visse aquela morena faceira, cheia de vida e de entusiasmo,

animando as festas do povo, metida nos teatros, discutindo como um

homem e vivendo a vida a seu modo, pensaria, por certo, que tal

criatura tivesse uma origem baixa e vulgar11

.

Embora Joaquim Callado tenha sido retratado como amigo e parceiro musical,

ele pode ter sido mais do que um mentor e protetor. Houve, contudo, uma tentativa de

moralizar a relação entre eles, mas os descendentes de Callado afirmaram que houve

queixas de sua esposa, Feliciana, com acusações à Chiquinha e declarações de ciúmes.

Não há como saber se eles tiveram algum relacionamento além da identidade musical e

amizade. Das casas particulares e sociedades onde se ia assistir a saraus musicais, o

teatro foi na verdade o grande meio de divulgação da música popular. Chiquinha

começou a se tornar famosa quando conseguiu que sua música, da peça A corte na Roça

de Palhares Ribeiro fosse tocada no Teatro Príncipe Imperial. A partir daí, seu nome

seguirá pelos jornais, não sem críticas.

10

Avelino Andrade, p. 93, Boletim SBAT de 1925. Chiquinha, inclusive teria sido parabenizada por D.

Pedro II. 11

Iglezias, “Patronos do conselho deliberativo – Francisca Gonzaga – Boletim Sbat, 216.

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Ante-hontem representou-se no Príncipe Imperial a opereta “A corte

na Roça”, letra de Palhares Ribeiro e música de Sra. D. Francisca

Gonzaga. A concorrência foi regular, o desempenho dos artistas

deixou a desejar, mas a música alegre e inspirada da Sra. Francisca

Gonzaga arrancou dos espectadores aplausos merecidos e que jamais

devem ser regateados a uma senhora de talento.

Em 1899, Chiquinha escreve uma pequena música para o Cordão Rosa de Ouro

que se tornará somente anos mais tardes uma marchinha de carnaval como conhecemos

hoje. Ô- Abre-alas como canção carnavalesca ainda não existia. Ficou restrito ao cordão

até o seu reconhecimento em 1904, como maxixe e posteriormente como canção de

carnaval. Mario de Andrade afirmou certa vez: “Quem quiser conhecer a evolução das

nossas danças urbanas terá sempre que estudar muito atentamente as obras dela”

Chiquinha teve o reconhecimento de seu mérito, mas com a chegada do samba e

do rádio, suas músicas se tornaram obsoletas e embora ainda produzisse, seus últimos

anos foram de ostracismo artístico. Em 16 de janeiro de 1920, Chiquinha escreve uma

carta a seus filhos, no qual narra que sentia que sua morte estava próxima e que havia

pedidos a fazer a eles, dentre alguns, o de não fazerem por luto para ela, por que “tenho

horror ao luto e à hipocrisia”, e ao invés de fazerem missa, eles deveriam dar o dinheiro

“em uma Igreja Pobre, “aospobres”. Solicita ainda que conste um emblema com o dizer

“Sofri e chorei” e pede que Deus perdoe aqueles que a fizeram sofrer tantas injustiças.

Termina a carta com o seguinte dizer: “Amanhã faz 35 anos que luto com a minha triste

vida de trabalho e injustiça. Adeus!”

Meu bom amigo, o meu nome é pequeno, mas quem o fez, fui eu,

cheia de coragem e trabalhando sempre para honrar a minha pátria, fui

eu só a mulher que escreveu para o teatro, e neste mês no dia 17 faz

41 anos que estreei a minha peça “A Corte na Roça” – e eu só, sem ter

ido estudar na Europa, sem amparo de Governos, só e com a minha

força de vontade, me instruindo, até hoje já representei 72 peças e

tenho 5 para serem representadas! E quantas polcas, valsas,

cançonetas...(...) bem sabe que os brasileiros não se incomodam com

os seus!! E...entretanto... no mundo... só há o Brasil!!!(...)

O ressentimento por não ser mais valorizada como musicista ou por não ter mais

como produzir o que era “da moda” musical, fazia Chiquinha se sentir menosprezada.

Sentia que havia contribuído para a música popular e sem dúvida nenhuma contribuiu,

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mas isso não era suficiente. João, seu companheiro fazia-lhe todas as vontades e

Chiquinha teve um padrão de vida que não condizia com o que ela podia ter. Eles

almoçavam diariamente nos restaurantes próximos e vivam em um edifício de

apartamentos luxuoso.

Segundo o depoimento de suas netas, Chiquinha teria sido “uma péssima mãe”,

que “ao avistar pela gelosia da porta a filha, mandava dizer que não estava”. Este retrato

da “mãe Chiquinha” mostra o caráter pouco afeito que ela possuía a exercer o papel de

mãe. Maria, contudo jamais procurou Chiquinha depois de adulta, pelo contrário, como

seu primeiro noivo a rejeitou ao saber que era filha de Chiquinha Gonzaga, Maria quis

manter distância. Só procurou Chiquinha quando achou que a mãe estava em boas

condições de vida. Além disso, Maria esperava que Chiquinha a recebesse para morar

com ela, no apartamento de luxo, pois queria que suas “filhas casassem bem” e para isso

não podiam morar na “Zona Norte”. Esta situação de status que Maria busca para as

filhas é exatamente o que Chiquinha mais repudiava e o oposto do que Chiquinha fez.

“Casar bem” para Chiquinha representava o caráter classista de seus pais, da sociedade

que a condenava e criticava e o conservadorismo monárquico, em posição ao

republicanismo que defendia. Questionada uma vez se havia empregada na sua casa, ela

responde: Ué, mas a escravidão já não acabou? Ainda assim, Chiquinha já idosa se

culpa ao mesmo tempo que se vitimiza. Foi condenada, sim, mas pede perdão. Talvez

ao final de sua vida se sentisse pecadora. Descumprir o papel de mãe era pecado nos

moldes religiosos e culturais da época, além disso, desobedeceu a família e não obteve o

perdão de seu pai.

“Condenada a vida inteira!...

A cruciante tormento,

A minh’alma em desalento

Pede a ti Senhor – Perdão!!!...12

Chiquinha vendia suas músicas de porta em porta e participava de festivais

artísticos no intuito de conseguir a compra de alforrias. Como ativista, Chiquinha serviu

às campanhas libertadoras e condenava o atraso social brasileiro. O reconhecimento de

12

Verso de Chiquinha em seu arquivo pessoal.

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sua obra e não dela mesma começa a crescer. Seu talento era o passe para ingresso num

mundo de homens compositores brasileiros que começavam a surgir. Vendendo suas

músicas e dando aula de piano, consegue comprar a liberdade de um escravo músico e

arrecadar fundos para encaminhá-los à Confederação Libertadora de compras de

alforrias13

.

Com a abolição, Chiquinha foi reconhecida pela sua participação como

abolicionista ao lado de José do patrocínio, que justifica a participação de Chiquinha:

(...)por que os fados, no casamento lhe haviam sido adversos, tivera de

remar contra a maré, fazendo-se professora...isso contudo não lhe

abatera o ânimo forte nem a afastara do grande movimento popular,

formara destemerosamente ao lado dos abolicionistas14

.”

Dedicou-se a partir daí à causa republicana e se tornou companheira de Lopes

Trovão, um inflamado orador republicano, figura popular na cidade. Com o fim do

Segundo Reinado, e o nascimento da República, alguns militares se revoltam e é

decretado estado de sítio. Ao compor uma música para tal evento, Chiquinha tem ordem

de prisão decretada e suas músicas são rasgadas. Embora Chiquinha nada tenha sofrido

por conta do seu parentesco com pessoas ilustres, suas músicas sobre tal evento foram

inutilizadas.

Chiquinha Gonzaga convivia diariamente com jornalistas e fez dois de seus

melhores amigos, Raul Pederneiras e Viriato Correia com quem posteriormente fundaria

a SBAT. A preocupação com os direitos autorais sempre foi decisiva na vida de

Chiquinha, até por quê, como mulher teve dificuldades de se provar como musicista.

Alguns maestros e editores haviam sugerido colocar o nome de um homem ao invés do

seu, mas Chiquinha jamais aceitou esta hipótese. Além disso, muitos duvidavam que

suas músicas fossem suas devido a qualidade, que seria de se esperar, fosse de um

homem, como Nazareth, por exemplo.

13

Sociedade Brasileira contra a escravidão fundada por Joaquim Nabuco e José do Patrocínio em 7 de

setembro de 1880. (PATROCÍNIO, 1996). 14

Idem.

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O convívio com jornalistas se deu sobretudo em consequência do fato de que

muitos era também escritores, teatrólogos e críticos das peças de teatro e dos

espetáculos que ocorriam na cidade. Com a proliferação dos pianos e a recuperação dos

violões, a música será componente necessário dos teatros que também se proliferam no

Rio de Janeiro. Raul Paranhos Pederneiras escrevia para O Tagarela, O Malho e Fon

Fon e Viriato Correia foi membro da Academia Brasileira de Letras, com várias peças

para o teatro de costumes ao lado de Martins Pena. Produziu a comédia “Juriti” com

Chiquinha Gonzaga, assim como crônicas e contos.

O ambiente artístico caminhava em conjunto com o literário e o jornalístico,

formando uma rede de divulgação e legitimação das obras produzidas e influenciando o

gosto popular e mais tarde o conservador. Em 1914, a primeira dama Nair de Tefé

convocou o poeta Catulo da Paixão para acompanhá-la em uma apresentação de “ O

corta-jaca” de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete. A primeira dama considerava

essa a música mais brasileira e causou um alvoroço por tocá-la, primeiro por que foi

usado um violão, instrumento reabilitado por Chiquinha e segundo por ser um maxixe,

gênero considerado indecente. As críticas no Congresso Nacional ecoaram pelo

auditório, como “a mais chula, a mais baixa e grosseira de todas as danças selvagens”.15

O século XIX viu nascer as dezenas de periódicos semanais, os jornais de

notícias e as editoras de livros e partituras. As editoras musicais no Rio de Janeiro,

como a Lyra d’Apolo de Thiago Henrique Canongia e posteriormente Viúva Canongia

ou a Casa Arthur Napoleão e Miguez e posteriormente a Irmãos Vitale foram as editoras

do século XIX nas quais Chiquinha pode publicar suas músicas. Thiago e Emília foram

portugueses que se estabeleceram no Brasil como comerciantes. Thiago era músico e

publicou suas próprias músicas. Thiago fundou a Lyra d’Apolo, famosa por publicar

partituras de músicos populares. A casa de Canongia inicialmente era direcionada por

seu marido, Thiago que falece em 1872, o que leva sua esposa, viúva, Emília Canongia

a leva o negócio adiante. Chiquinha foi a primeira mulher a publicar suas partituras

nesta casa, gerida por uma mulher. Talvez este fato tenha facilitado sua publicação,

ainda mais com os nomes que assinavam embaixo a popularidade de Chiquinha nos

15

O discurso proferido por Ruy Barbosa foi seguido por alguns mas também recebeu críticas de outros

políticos que apoiavam o estilo como eminentemente nacional.

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teatros. O estabelecimento musical criado pelos afinadores de piano Eduardo e

Francisco Buschmann em 1873, e tendo como sócio, a partir de 1881, Manoel Antônio

Gomes Guimarães, também comerciante com loja de música foi um dos grandes

publicadores e editores da obra de Chiquinha Gonzaga.

Posteriormente, Chiquinha passa a publicar na Casa Arthur Napoleão de

impressões musicais. Chiquinha havia sido aluna de Arthur Napoleão e já em 1880,

quando passa a publicar nesta casa, goza de fama e de múltiplas reedições de suas

partituras. Até meados dos anos 20 Chiquinha publicará nesta casa até publicar pela

Irmãos Vitale. As editoras musicais no Rio de Janeiro foram resultado da ascensão do

piano como instrumento que se popularizou para todas as classes. Músicos que se

estabeleciam no país abriam comércio diante da demanda por publicações de músicas

que faziam sucesso no momento.

A ampliação das editoras e tipografias fez surgir frente ao jornalismo oficial16

,

revistas que fizeram face ao jornalismo empresarial, com o objetivo de retratar o

cotidiano com imagens chamativas, coloridas que cativavam os leitores17

. O Tagarela,

A Comédia Social, A carapuça, foram revistas satíricas dos costumes tradicionais,

enquanto Fon Fon, O malho, Selecta e Para Todos foram algumas das revistas que

valorizavam o “moderno”, o “ser brasileiro”, assim como divulgavam o trabalho e o

comércio de artistas, editoras e teatros. O modernismo no Rio começou com os

simbolistas que, como críticos da razão moderna, buscavam o inconsciente, e com isso

contestavam a tradição nacionalista e positivista brasileira. Assim como o ambiente

musical prescindia de reuniões em cafés ou confeitarias, os jornalistas também se

encontravam e essas associações se devem em grande parte por conta da recente

urbanização, principalmente com o surgimento do bonde e da Gazeta. A circulação na

cidade se tornou possível com os bondes e a gazeta “veio no encalço” como afirmou

Machado de Assis18

.Muitos críticos dos pasquins denunciavam seus ataques pelo

objetivo venal, que só queriam vender, causar alvoroço e com isso vender mais.

Ninguém também admitia que lia os pasquins, mas a curiosidade era tanta pata saber se

16

Frente ao jornalismo oficial, a imprensa pasquineira e posteriormente a imprensa carnavalesca será a

concentração de homens pobres pouco escolarizados que através do sensacionalismo procurará mobilizar

o homem comum. 17

LINS, 2010. 18

A semana, crônica na qual Machado afirma que o bonde surge em 1868.

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o próprio nome estava lá estampado com alguma “mentira”, que muitos corriam para

comprar no fim da tarde escondido para ler em casa. Os leitores de oposição ao governo

liam para o povo que assim ficava sabendo o que diziam as gazetas. Os meios de

comunicação dirigidos especificamente a um determinado público, como uma faixa

etária ou sexo podem ser interpretados como estratégia mercadológica ou como objetivo

do jornalista, mas as funções básicas no geral, são informar, persuadir, divertir ou

ensinar.

As músicas de Chiquinha Gonzaga eram reescritas e reinauguradas com novos

ritmos e estilos. A cada polca escrita, um choro podia ser adaptado ou um maxixe. De

um tango para uma peça cômica, uma canção para outro instrumento. Uma mesma

música podia ser choro, polca, tango ou valsa. O estilo variava conforme as mudanças

de gosto. A capacidade de adaptação de Chiquinha aos diversos estilos musicais

populares fez com que produzisse um conjunto de 2000 obras. A genialidade de

Chiquinha não estava na complexidade, mas em seu poder de adaptação, de ler a

sociedade e a cultura e transformar esta leitura em música.

Contudo, a interpretação do objeto como obra de arte tem de coincidir com a

interpretação do próprio artista, por que o objeto da obra de arte só o é em relação a uma

interpretação, isto é, é dependente da identificação artística. Assim, há um limite de

interpretações, na medida em que as interpretações possíveis são limitadas pela posição

do artista no mundo, pelo local e momento em que viveu e pelas experiências que

vivenciou. Assim, há tanto uma verdade no que diz respeito às obras de arte como

também há um leque de interpretações possíveis o que não as torna de forma nenhuma,

relativas.

Assim, se o gosto pela arte for compreendido de acordo com sua produção

social, a estética deverá partir da análise das condições sociais em que se produz o

artístico. Diante disso, teríamos três dificuldades clássicas da sociologia da arte: a

disposição humanista tradicional dos estudos artísticos, o caráter complexo e singular

do fenômeno estético e as limitações da estrutura cientifica da sociologia para encarar o

campo das artes. Sob o segundo aspecto, o caráter complexo do fenômeno estético,

temos a conjugação das formas econômicas às artísticas e a dependência uma da outra

para análise das possibilidades agenciais dos artistas.

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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO

PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da

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A determinação da estrutura sobre a superestrutura se dá de duas maneiras:

primeiro as formas de organização econômica determinam em última instância as

formas de organização das outras áreas. Segundo, as relações sociais de produção

determinam as representações, o sistema de ideias e as imagens geradas na mesma

sociedade. À necessidade de analisar as manifestações artísticas em seu contexto

histórico, soma-se, através das ciências sociais aos modelos para a compreensão da arte

que as estéticas profissionais de especulações metafísicas não podem oferecer.

O artista do século XIX, produtor da arte pública não é mais apenas um

espectador da vida social, ele se torna agente ativo, que expõe contradições torna-se

sujeito produtor, dilacera tensões, conecta fragmentos descontínuos.

A mudança radical que o artista proporcionaria se baseia na própria estrutura

psíquica dos indivíduos. O indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos

valores de troca, no caso, os valores da sociedade burguesa e entra a partir daí numa

dimensão diferente: a da própria subjetividade. A tese que Marcuse defende é a de que

as qualidades radicais da arte e do seu potencial de libertação baseiam-se precisamente

nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir

do universo real do discurso e do comportamento.

Como lembra a antropóloga Santuza Cambraia Naves (2010), os artistas

populares, em especial os compositores tinham um papel importante na formação da

opinião pública, desde que passaram a comentar todos os aspectos da vida, do cultural

ao político: “O artista moderno se tornou crítico da cultura e participador do cenário

político e cultural19

”. O compositor popular passou a operar criticamente no processo de

composição fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade, como a paródia e o

pastiche, e com isso se tornou um pensador da cultura.

Neste sentido, o artista possui um senso de self prioritário como afirmou

Archer,que é anterior a nossa socialidade. Entretanto, este senso contínuo de self é

constantemente praticado e com ele desenvolvemos o self social. A emergência deste

self social ocorre assim na interface entre estrutura e agência, por isso é necessariamente

relacional. O artista teria assim um senso de self que não necessariamente estaria

19

NAVES, 2010.

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PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da

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condizente com uma concepção de self presente como expectativa social para si mesmo.

Embora, como afirmou Archer haja uma tendência nas teorias sociais em diluir o senso

de self na concepção de self, o primeiro surge antes temporalmente para depois

internalizar as obrigações sociais e com isso uma concepção de self.

Embora a sociedade carioca do século XIX possuísse uma concepção de self

atribuída à mulher, o senso de self da compositora-artista Chiquinha Gonzaga

possibilitou sua agência e com isso a transformação da concepção de self originária. Na

mesma medida em que a identidade pessoal depende da emergência do self social, o

senso de self possibilita a aquisição de uma concepção de self disponível na

estrutura.Neste processo, a agência leva à estrutura e à cultura mas também é construída

no processo, através de novas práticas sociais.

Chiquinha inaugurou um modo de vida inexistente para mulheres na medida em

que foi morar sozinha e se sustentar sem ajuda da família. Segundo, ela viveu a boêmia

da cidade, frequentava bailes e saraus noturnos, o que não era permitido à mulher após

às cinco horas da tarde. Compôs, o que nenhuma mulher ainda havia feito e compôs

músicas populares no piano, instrumento até então espelho da música europeia, símbolo

de status. Estes engajamentos foram fruto de algumas características pessoais, que

como vimos provinham de uma personalidade forte, voluntariosa e obstinada.

A arte teve o papel determinante em sua ação. Ser artista no século XIX era ser

considerado um “doidivanas” ou alguém que não era de família, entretanto, artistas que

seguiam a sociedade de corte eram reconhecidos socialmente, desde que seguissem o

modelo europeu renovado e reproduzido aqui, como Villa-Lobos ou Ernesto Nazareth.

Mas creio que isso não tenha sido suficiente para ela. A arte a libertou, foi meio e fim na

sua vida, e sendo artista, Chiquinha pode exercer sua agência, pôde se capacitar para

transformar a estrutura, ou pelo menos colocá-la em xeque. Neste sentido, foi preciso

pensar sobre os conceitos de agência e estrutura que na sociologia vem sendo

repensados por Margaret Archer e seu debate com Anthony Giddens e Sztompka. Estes

três autores se articularam para compreender a dinâmica da capacidade de

transformação social e as estruturas simbólicas que constituem nossas instituições

sociais.

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Chiquinha Gonzaga não é mencionada por sua agência. A ação da Chiquinha é

ignorada por não ser considerada uma feminista no sentido ideológico, embora por seus

atos, tenha transgredido e favorecido fortemente este movimento. A reflexividade, o

senso de self ou a capacidade avaliativa, conceitos que caracterizam a agência social

podem ser aqui uma âncora teórica para análise de Chiquinha, na medida em que o

artista, acima de tudo, é um crítico do status quo e para isso possui um papel reflexivo

perante a sociedade em que vive. Chiquinha considerava-se indivíduo antes que

estivesse disponível a ela esta possibilidade. A visão de mundo individualista de que

fala Weber e Dumont transitava a passos lentos por aqui, mas Chiquinha absorveu os

ideais românticos estéticos e morais que “passeavam” por aqui nos entre os

republicanos. Se pensarmos em uma concepção de agencia segundo os modelos

apresentados acima, a primazia do tempo e do espaço se consolidaram como

paradigmas interpretativos, mas creio que uma análise a partir das concepções morais

que estruturam as ações pode oferecer uma possibilidade de interpretação.

É neste cenário que Chiquinha Gonzaga viveu. Filha do segundo reinado e mãe

da República, Chiquinha viu as transformações na sua cidade e participou de algumas.

Era mulher, talvez adúltera, talvez vítima de violência doméstica. Possuía meios para

trabalhar, afinal havia sido educada e com isso pôde lecionar. Recebeu críticas e

elogios, mas Chiquinha possuía amigos jornalistas e artistas que saíam em sua defesa.

Em pouco tempo, Chiquinha se consagrou uma maestrina, compondo partituras

populares que se identificavam com o gosto popular. A partir de 1885, Chiquinha

gozará de estabilidade, sucesso e respeito pelo seu talento e trabalho.

Chiquinha gozou da fama e notoriedade assim como o respeito como maestrina

a partir de 1925. Mantinha contato com seu filho e parentes mandavam cartões postais.

Consta que nunca os recebia. Participava nos meios artísticos, boêmios e políticos e

opinava com firmeza, exibia personalidade forte e voluntariosa. Ela pode ser

considerada uma inconformista com sua condição original, visto que não se sujeitou às

normas tradicionais e uma agente artística na medida em que soube utilizar dos poucos

meios disponíveis para uma mulher do século XIX para transformar seu ambiente

social.

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Paulo, Companhia de Letras. 1966.

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DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte, Ed. Autêntica, 2005.

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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA

NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .

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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O

VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA NECESSÁRIA À

EDUCAÇÃO INFORMAL LEMOS, Fábia de Castro

Doutoranda Programa de Pós-Graduação em

Humanidades, Cultura e artes Unigranrio [email protected]

MEIHY, José Carlos Sebe Bom

Professor Programa de Pós-Graduação em

Humanidades, Cultura e artes Unigranrio

[email protected]

RESUMO O presente trabalho se relaciona diretamente com projetos sociais ofertados em algumas Comunidades de

Rocha Miranda (RJ), tendo como objeto o reconhecimento dos saberes e práticas culturais locais do

conhecimento produzidos na favela, cotejando a hipótese de reconhecimento do arcabouço cultural do

indivíduo que é composto de experiências e práticas particularizadas e ao mesmo tempo coletivizadas

com o condão de incentivar os sujeitos a uma ordem de potencialização humana e criativa, onde pudemos

considerar que, o reconhecimento do conjunto de elementos que consolida a educação informal pode por

princípio não só apoiar as redes de educação formal, o trabalho, como notadamente sustentar um

empoderamento de ordem ontológica, em todas as dimensões humanas, o valor humano identificado

consolidado através das experiências e motivações do grupo de jovens pode constituir uma premissa

pragmática às transformações pessoais e sociais, a educação informal vem se desvelando como mediadora

do processo de emancipação dos sujeitos.

Palavras-chave: Valor Humano. Saberes. Educação Informal.

ABSTRACT This work is directly related to social projects offered in some Miranda Rocha Communities (RJ), having

as object the recognition of local knowledge and cultural practices of knowledge produced in the slum,

comparing the recognition hypothesis of the individual's cultural framework that consists experiences and

individualized practices while collectivized with the power to encourage the subject to an order of human

and creative empowerment, where we consider that the recognition of the set of elements that

consolidates the informal education can in principle not only support networks formal education, work,

and especially sustain an ontological order empowerment in all human dimensions, the human value

identified consolidated through experience and youth group of motivations may be a pragmatic premise

of personal and social transformation, the education informal is unfolding as a mediator of the process of

emancipation of the subjects.

Key-words: Human Value. Knowledge. Informal education.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se relaciona diretamente com projetos sociais em implementação na

comunidade na zona norte do Rio de Janeiro, tendo como objeto de pesquisa o reconhecimento

dos saberes e práticas culturais locais do conhecimento produzido na favela, mantendo a hipótese

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de que o reconhecimento do arcabouço cultural do indivíduo que é composto de experiências e

práticas particularizadas e ao mesmo tempo coletivizadas, as quais nem sempre encontra espaço

de reconhecimento social, tem o condão de incentivar os sujeitos a uma ordem de

potencialização humana e criativa.

O reconhecimento do conjunto de elementos que consolida a educação informal pode por

princípio não só apoiar as redes de educação formal, intermediar o interesse na produção do

trabalho e sua formação, como notadamente sustentar um empoderamento de ordem ontológica,

em todas as dimensões humanas, o valor humano identificado consolidado através das

experiências e motivações do grupo de jovens pode constituir uma premissa pragmática à

educação informal.

A Pesquisa, de natureza qualitativa, estruturada sob a ótica do estudo de campo,

utilizando o método de observação participativa com estudo em grupo focal com moradores

jovens entre 18 a 29 anos, articulando e sensibilizando o grupo com oficinas, a partir de suas

contribuições, com vistas à promoção para o empoderamento mediante a emancipação humana e

social dos sujeitos e sua integração social, em todos os seus aspectos.

O procedimento para coleta das narrativas leva em conta a concepção da história oral

como suporte principiológico e ao mesmo tempo procedimental para o reconhecimento de

saberes e práticas do grupo, onde buscamos identificar o valor humano agregado as experiências

individuais que compõe o conjunto educativo informal dos sujeitos, desenvolvendo as

potencialidades e os demais elementos criativos a ela elencados.

A partir da observação da produção do conhecimento em espaços informais, como na

favela, analisamos suas contribuições para as múltiplas formas de concepção da educação, o que

representa não só uma ruptura com as formas de produção do conhecimento estritamente

institucionalizada, mas também agregando meios significativos de compreensão do indivíduo e

sua interação com o meio social.

É nesta vertente que o presente artigo busca analisar os meios de produção do

conhecimento e criação em espaço urbano a partir dos trabalhos já realizados em uma

comunidade na zona norte do Rio de Janeiro, a partir da narrativa de jovens moradores

identificando como essas experiências narradas mobilizam o grupo e seu diálogo com o espaço,

onde proporemos uma reflexões que possam contribuir para a compreensão do processo de

identidade e empoderamento dos sujeitos a partir da educação informal, para além da concepção

marginalizada que marca o espaço, e essas formas de expressão, a qual desqualifica, desmotiva,

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NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .

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desvaloriza e desumaniza os jovens, desta forma, tomamos por base as digressões as quais

compreendem a educação informal utilizando a favela como meio de formação desses sujeitos.

Considerando todo o arcabouço das narrativas, e as possibilidades de construção que

emerge delas propomos a reflexão da necessidade de compreensão das formas de manifestação

dos jovens para valorização humana e de saberes e práticas no processo de conhecimento

aquilatando a cultura urbana de periferia nas favelas abarcando assim o reconhecimento de

identidade dos jovens em condição vulnerável, o que possivelmente possibilitará humanização

desses espaços e a inclusão cultural desses jovens e da própria favela como espaço urbano

criativamente emancipado.

Assim, estruturamos o artigo em quatro momentos, inaugurando com a favela como

espaço de produção humanístico, em seguida, com narrativas dos jovens, onde pudemos

analisar, através das experiências compartilhadas nas falas questões de diversidade cultural e

identidade social, no segundo momento, buscamos compreender as formas de construção do

conhecimento produzido no espaço da favela e suas motivações e inferências, e finalmente,

buscaremos refletir como as experiências cotidianas, podem promover a educação informal, se

consolidam uma empiria social, que considere todo o arcabouço de formação do sujeito, capaz

de suportar a (re) produção de novas práticas e conhecimento mobilizados, que possam mediar o

processo de identificação do valor humano sob o fundamento da auto construção-produção

contínua dos sujeitos.

RECONHECENDO A FAVELA COMO ESPAÇO DE (RE) PRODUÇÃO

HISTORICAMENTE HUMANÍSTICO

“A favela surge no fim do século XX, devido à desterritorialização dos negros

alforriados por terem combatido na Guerra do Paraguai (1865-1870), que não

tinham para onde ir nem para onde voltar e passaram a residir nos morros; à

autorização dada aos praças que combaterem no conflito de Canudos em 1897

para que ocupassem provisoriamente os morros da Providência e de Santo

Antônio; ou à destruição do cortiço Cabeça de Porco, em 1894, quando o

prefeito Barata Ribeiro permitiu que os aproximadamente 4 mil moradores

retirassem as madeiras do cortiço para que fossem aproveitadas em outras

construções.” (ROCHA 2010, p.10).

Analisar a favela, para além da representação de sua categoria, demanda uma

retrospectiva de todo o processo de colonização, das tensões e embates produzidos na República,

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de assentamento de ex-escravos e ex-combatentes de guerra, notadamente no Rio de Janeiro,

Capital Federal do Brasil (1891-1960), fomentado por um paradoxo que encontrou por um lado,

na Política de extinção e destruição dos cortiços visando modelar a cidade com características

européias, e por outro acionando um gatilho irreversível para a proliferação e crescimento

desordenado dos morros e áreas de várzeas da então capital colimado na pobreza desenfreada.

O incentivo governamental, na segunda metade do século XIX, para trazer trabalhadores

aptos a substituir os escravos em prol do desenvolvimento industrial e econômico consolidou o

Rio de Janeiro como a “Meca” das oportunidades, onde o movimento de migração e imigração

protagonizado em boa parte pelos europeus (que germinaram as primeiras idéias de socialismo e

anarquia) contribuiu para o aumento populacional do território formado, constituindo favelas,

que ganha sua representação na irregularidade (área de habitações irregulares) e, portanto, sem

condições sanitárias condizentes com a necessidade da população, daí a idéia de ser marcada

como “lugar sujo” e depois no estranhamento do senso comum (asfalto x morro), consolidando a

compreensão de que a favela é ruim, estranha, perigosa gerando a idéia de um inimigo oculto

que necessita ser combatido e erradicado.

A noção de que a favela era habitada por “vagabundos e perigosos” ganha contornos com

as atenções que o morro da Providência, primeira favela no Rio de Janeiro, atraía das autoridades

que sempre faziam incursões e prendiam inúmeros moradores sob o fundamento de vadiagem e

crimes1, o que fica claro em uma narrativa através de carta enviada ao Chefe de Polícia de uma

dessas diligências:

“(...) ontem me dirigiu relativamente a um local do Jornal do Brasil, que diz

estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o

sobressalto das famílias no local designado (...) é ali impossível ser feito

policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões, praças de

Exército, não há ruas, os casebres são constituídos de madeira e cobertos de

zinco e não existe no morro um só bico de gás, de modo que para a completa

extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco, que

para produzir resultado, precisa de pelo menos um auxílio de 80 praças

completamente armados.” (ZALUAR, 1998, p. 10).

Ao longo dos anos, as estratégias públicas sejam voltadas para a educação, ou para

urbanização, encontrou na cultura meio ideal de “intervenção” como ocorre atualmente em

algumas favelas, que consiste em levar para a favela um “script” de atividades do que deve ser

replicado, de tudo o que se espera desses moradores, promovendo uma inclusão social que

1 Fonte: Arquivo Nacional, RJ, documento Oficio nº. 7071 de 04 de novembro de 1900. Carta do delegado da 10ª Circunscrição ao Chefe de

Polícia do Rio de Janeiro, Dr. Enéas Galvão.

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reproduz valores pré-concebidos, na dinâmica de movimento de fora pra dentro, sem se cotejar

as produções historicamente delineadas, a matriz étnica e cultural afetas e construídas no espaço

(BENCHIMOL, 1990).

“(...) a composição dos habitantes em termos étnicos culturais, econômicos, as

formas de moradia e condições de vida das favelas variaram muito em um

século de existência, completado em 1997, mantendo seu potencial de

alteridade sempre alto. Por isso a utilização da favela como espelho invertido na

construção de uma identidade urbana civilizada tomou várias formas...”

(ZALUAR, 1998, p. 15).

O movimento de descentralização dos olhares das cidades, para a favela, na busca de

expressões significativas encontrou a princípio na capoeira e no samba uma “escola” que

emergiu valores que desceram para o “asfalto”, possibilitando a compreensão de uma realidade

desconhecida narrada nas músicas e cantada nas rodas de capoeira, convergindo para outras

manifestações culturais atuais como o funk, o pagode, e o rap (rhythm and poetry / ritmo e

poesia), onde cada uma das manifestações se compõe de outras espécies diferenciadas umas das

outras.

A compreensão dessas manifestações artísticas possibilita a projeção da comunidade e

com isso transforma o estigma do espaço marginalizado, demonstrando as produções as quais

tem o condão de reconhecer identidades e desconstruir a imagética da marginalização dessas

produções, promovendo redes sociais e dimensionamento das produções da comunidade, ante ao

reconhecimento de uma cultura peculiar, que dialoga com seu materialismo histórico.

NARRATIVAS E SEU ESPAÇO DE PRODUÇÃO: TENSÕES DE PERTENCIMENTO E

EXCLUSÃO

A possibilidade que carreia a valorização das experiências através das narrativas no

contexto do espaço informal, na promoção do processo de conhecimento, a partir de experiências

individuais, permite o reconhecimento do arcabouço de saberes e práticas angariados pelo

indivíduo, as quais não são cotejadas no espaço formal da escola, porém tão relevantes ou

precedentes ao conhecimento produzido nos espaços formais (SANTOS, 2000).

Neste aspecto o esquecimento do “eu” imposto pelas condições precárias encontrada em

algumas favelas do Rio de Janeiro, dá espaço a uma riqueza que permeia a produção de um

espaço culturalmente heterogêneo que reconhecido, pode emergir conhecimentos diferenciados e

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valorização do sujeito. As narrativas assumem papel fundamental no reconhecimento local,

melhores narrativas escritas são as contadas pelos inúmeros narradores anônimos”

(BENJAMIN, 1996, p. 198).

o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para

alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois

pode recorrer ao acervo de toda uma vida. (...) seu dom é poder contar sua vida;

sua dignidade é contá-la interia. O narrador é o homem que poderia deixar luz

tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.

(BENJAMIN, 1996, p. 209).

As relações entre as experiências pessoais, sociais e no trabalho, emergem um mote

enriquecido de possibilidades que surgem na compreensão das narrativas, à medida que são

levadas em conta para entender melhor o meio social constituído da favela, os modos de vida e

produção, consolidam importante função na rede do processo de conhecimento, é assim que a

apreensão da narrativa como marca de todo arcabouço intelectual e cognitivo dos sujeitos,

possibilita a construção de formas de práticas e saberes as quais convoquem os indivíduos

estabelecendo novos diálogos com a comunidade, potencializando o processo de conhecimento

do local e da comunidade ampliada, abrindo espaço para programas e políticas públicas ou ainda

para atividades que convoquem a organização social civil, integrando as diversidades (MEIHY,

2011).

CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NAS DETERMINANTES DA FAVELA

As análises que buscam compreensão das formas de conhecimento nas favelas não pode

ser considerada tarefa fácil, depende do entendimento de variáveis sejam elas urbanísticas,

humanas, políticas, sociais, econômicas e até culturais, as quais permeiam a historicidade, bem

como da diversidade de espaço que a priori se consolida nas bases da marginalização na tentativa

de seguir ao lado do processo de desenvolvimento urbano, consolidando espaços como

quilombos, favela e periferia, no sentido de uma ocupação as margens das regras ordinárias

determinadas pelos embates das lutas de classe.

Um espaço concebido socialmente como marginal, historicamente acolheu pessoas que se

identificando ou não com o meio, refletiram a imagética do lugar, restando um legado marginal

imposto ao espaço, a pessoas e de tudo então atinente a esses grupos que por sua vez encontrou

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nessas restrições sociais meios de produção próprios, seja na música, seja nos grafites ou

pichações (emotivas ou não), sejam na dança, desenhos, em expressões que cada vez mais

traduzem o pensamento, as posições, transmitem mensagens de pertencimento as quais integram

o processo de sensibilização do cognitivo seja do indivíduo seja do grupo.

A consolidação deste “ethos” social, que atravessa o processo de conhecimento está

relacionada à própria evolução do indivíduo em seu aspecto bio- cultural, tendo na emoção o

núcleo que determina a “deriva cultural”. A partir da compreensão do outro, no acolhimento

notadamente de narrativas é que se viabiliza recorrências de encontros, e aceitação do outro

como legítimo outro, delineando contornos à convivência social, emergindo o arcabouço de

práticas, costumes, culturas e saberes, o que nos torna humanos” (MATURANA, 1997)

As experiências vivenciadas pelo grupo na comunidade geram predisposição e motivação

para aprendizado diferenciado, consolidado no espaço informal comunitário, possibilita a

apreensão de valores culturais emergentes, o que contribui para o estabelecimento de vias que

adéquam o conteúdo e a capacidade de aquisição do grupo otimizando essa capacidade, onde o

conhecimento se consolida fundamentado nos experimentos produzidos no e pelo espaço,

permeado pelos sujeitos da comunidade, e mobilizado em conjunto com as relações do meio

social escoando e se (re) produzindo no grupo.

“imagino que todo conhecimento seja fundado no sentido e derive, em última

instância, dele ou de algo análogo, que pode ser chamado sensação, produzido

pelos sentidos em contato com objetos particulares que nos fornecem idéias

simples ou imagens de coisas” (LOCKE, 2013, p. 7).

É desta forma que o meio, o espaço da favela se demonstra como agente sensibilizador,

formador do processo cognitivo que encadeará experiências e vivências, produzindo diversidades

historicamente constituídas e socialmente refutadas, colimando verdadeiros embates de

reconhecimento das produções, as quais precedem de compreensão pela sociedade ampliada, na

identidade dos sujeitos produzidos, garantindo assim a diversidade que emerge na democracia

das expressões culturais comunitárias, onde o processo de construção do conhecimento encontra

nas narrativas um subproduto das experiências que integram e ao mesmo tempo interage com os

sujeitos.

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EXPERIENCIAS COTIDIANDA E EDUCAÇÃO INFORMAL: CAMINHOS DE UMA

EMPIRIA SOCIAL?

A crise no paradigma da educação e de outros tantos paradigmas epistemológicos os

quais norteiam o processo de conhecimento, reclama novos espaços de reflexão para apreensão

de práticas e saberes os quais possam re-dimensionar o conhecimento, mediado através da

educação, seja em ambientes formais da escola, ou informais das comunidades, sendo este

último, o nosso campo de análise.

O saber narrativo apresenta-se como caminho possível na concepção da produção de

conhecimento a partir das experiências humanas e do encadeamento delas, é criação subjetiva

onde as experiências são rememoradas, transmitidas e compartilhadas, impactando a rigidez

epistemológica do conhecimento cientifico, que permeado pela busca da verdade absoluta

desqualifica o papel das narrativas, direcionando a validade do processo de produção do

conhecimento ao campo da objetividade, impingindo a crise e mudança no paradigma do

processo cognitivo, que tenciona toda a subjetividade humana com a objetividade do resultado

pretendido (KUHN, 2001).

“(...) paradigmas são princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e

do mundo sem que tenhamos consciência disso (...)” (MORIN, 2012, p. 10).

A coexistência entre a necessidade da produção do conhecimento objetivo e a

subjetividade inerente ao humano, emerge novas formas de compreensão epistemológica,

carreado na objetividade relativa ou na objetividade subjetiva, onde as narrativas se mostram

instrumento hígido na produção do conhecimento subjetivo, que bem compreendidas e

encadeadas, possibilitam a produção de instrumentos objetivos de conhecimento.

Assim, se a partir das narrativas houver a compreensão dos meios de produção do

conhecimento e do indivíduo na comunidade, certamente possível será delinear programas e

políticas voltadas a potencialização dessas produções, o que viabilizará a proposta de indicadores

de qualidade e desempenho das políticas ou programas implantados, ou seja, a partir da

compreensão do subjetivo humano, é possível cotejar aspectos de ordem objetiva na consecução

de ações que partem da fala dos sujeitos. Esse processo cíclico demanda valorização das

narrativas, do narrador, das experiências pessoais de saberes e práticas não consignadas

formalmente, do espaço, compartilhamento das narrativas, encadeamento das mesmas, o que

conseqüentemente enseja a necessidade de reconhecimento da identidade dos sujeitos e seu valor

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na produção social, daí a hipótese de que as narrativas podem emancipar os sujeitos e aprimorar

o potencial humano e social.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para a sistematização do presente trabalho, utilizamos a conjugação de alguns

referenciais teóricos, alinhando a produção da História Oral, como critérios de acolhimento e

observação das narrativas MEIHY (2011), com a perspectiva de abordagem etnográfica

analisando o cenário da favela e suas produções humanas GEERTZ (1998) onde buscaremos

compreender a construção do conhecimento produzido na comunidade através das relações na

favela enquanto espaço historicamente constituído em ZALUAR (1998) e as experiências

cotidianas que consolidam a Educação Informal como elas podem promover a produção de

novas práticas e conhecimentos, compreendendo esse arcabouço de vivências como prática

social empiricamente mediadora no processo de identificação do valor humano, em GOHN

(2010) e MORIN (2012), na capacidade humana da auto construção-produção contínua em sua

autopoiese MATURANA (1997) entre outros autores referenciados.

3. RESULTADOS ESPERADOS

O resgate do sentimento de valorização, mas isso só pode ser alcançado gradativamente

sendo portanto um resultado a longo prazo, podendo ser identificado preliminarmente uma

mudança no comportamento do grupo, que, a partir de suas narrativas de experiências

vivenciadas na comunidade e na sociedade, incentiva a adesão à convocação desses sujeitos na

construção de projetos que retornem para a comunidade o potencial criativo desses jovens, seja

na arte, na cultura, na música, em poesias, no grafite.

No entanto, percebemos uma maior integração e interesse pela preservação do espaço

ambiental e social, o que gera certa evidencia de engajamento do grupo nas questões locais da

comunidade, jovens demonstrando motivação para a re-criação do próprio espaço,

transformando-o, o que possibilita ao indivíduo a auto-valorização, de rejeição dos preconceitos

que lhe são dirigidos em decorrência do espaço e da condição social dos sujeitos.

Em outra perspectiva, pudemos observar que o reconhecimento das práticas pessoais,

incentiva a adesão em oficinas e projetos sociais, o que conflui na preparação do indivíduo para a

vida, para o trabalho (como foi o resultado de algumas oficinas) e para as adversidades, gerando

reações positivas em situações de negatividade, sendo certo que o resultado mais evidente se

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consolida na materialização documental da História Oral de vida de alguns jovens da

comunidade (RJ), e o retorno dessas em prol da comunidade em forma de ações que tem

revitalizado a cidadania dos jovens pelo engajamento social, possibilitando desvelar relações

com o espaço e a apreensão do conhecimento, viabilizando para esses jovens o contato com a

cultura e produção social de si mesmo, numa perspectiva de inclusão e aprendizado, franqueando

na educação informal uma mediadora e elemento permanente à disposição dos sujeitos com

vistas ao trabalho criativo, instrumentalizando o processo de empoderamento pessoal-urbano-

social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa emerge como uma proposta a novas reflexões acerca da ampliação e

o compromisso social ao (re) conhecimento de identidades de grupos sociais emergentes e seu

empoderamento, o que não é tarefa preponderantemente teorizada, mas demanda antes de mais

nada o reconhecimento de práticas, experiências e valorização de saberes singularizados, na

construção do conhecimento cotejado sob perspectiva de validade de um instrumento

empiricamente social.

A análise nos leva a considerações de que a educação informal vem se demonstrando

como fonte principiológica ao reconhecimento desse arcabouço cultural presente no cotidiano do

grupo social, emergindo daí a necessidade do (re)conhecimento dessas identidades para o

devenir, ao estímulo do potencial de criação humano.

O (re) conhecimento dessas identidades, por outro lado, pode contribuir de forma

significativa à emancipação, ao empoderamento numa perspectiva de apropriação e

aperfeiçoamento pessoal, ou coletivo, seja voltado a produções e criações reconhecidamente

econômica e/ou fundamentalmente pessoais, proporcionando ao grupo um aperfeiçoamento na

leitura, na concepção e integração com o mundo, humanizando as relações.

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UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE JULGAR

TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva

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UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE

“JULGAR”

TRAJANO, Raphael de Morais

Doutorando em Estudos de Linguagem -UFF/CAPES

Mestre em Letras-UERJ

[email protected]

GOMES, Ulisses da Silva

Mestre em Estudos da Linguagem-UFF

[email protected]

RESUMO Este artigo propõe uma análisedos possíveis sentidos de "julgar" a partir de uma leitura discursiva do

romance Um crime delicado, de Sérgio Sant'Anna, tomando como fundamentação o aparato teórico

metodológico da escola francesa de Análise do Discurso (PÊCHEUX, 1969). Observando as

significações possíveis para "julgar" enquanto prática, investimos na compreensão dos direcionamentos

de sentido que se materializam em uma obra literária constituída sob o efeito de coesão/coerência entre

exterior (capa/contracapa) e interior (narrativa). Desse modo, propomos um gesto de interpretação com

base no qual pudemos concluir (provisoriamente) que a obra se constrói através do estabelecimento de

categorias que fazem que o sujeito se reconheça no lugar de julgador, esquecendo-se da interpelação

ideológica e de sua afetação pelo inconsciente. Apostamos, outrossim, em que esta análise ofereça pistas

sobre os sentidos de julgar na sociedade atual.

Palavras-chave:Um crime delicado. Análise do Discurso. Julgar.

ABSTRACT This article proposes an analysis of the possible meanings of "to judge" from a discursive reading of

Sérgio Sant'Anna‟s novel Um crime delicado. The French School of Discourse Analysis grounds this

article theoretically and methodologically. Regarding the possible meanings of "to judge" as a practice,

we invest in understanding the directions of meaning materialized into a literary work made under the

influence of cohesion/coherence between external (cover/back) and inside (narrative). Thus, the gesture

of interpretation that we purpose makes it possible to conclude (provisionally) that the novel is

constructed by establishing categories that lead the subject to recognize himself in the place of the judge,

forgetting the ideological interpellation and their allocation by unconscious. We bet, moreover, that this

analysis offers clues about the meanings of “to judge” in the present society.

Key-words: Um crime delicado. Discourse Analysis. To judge.

INTRODUÇÃO

Com este trabalho, buscamos trazer uma discussão acerca dos possíveis sentidos de

"julgar", apresentando uma leitura discursiva do romance Um crime delicado (SANT'ANNA,

1997). Que significações estão previstas em julgar, enquanto prática que se desenvolve nas

relações sociais? O que pode vir a significar julgar uma produção artística, um trabalho, as

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particularidades e atitudes dos sujeitos, decidindo-se e direcionando-se sentidos para o “belo”,

o “feio”, o “bem”, o “mal”, o “certo”, o “errado”?

Tomar o julgamento como uma prática - especificamente, uma prática discursiva - é um

gesto que empreendemos a partir de nossa filiação à perspectiva teórico-metodológica da

Análise do Discurso francesa (PÊCHEUX, 2009[1969]). Tal inscrição teórica permite um olhar

sobre textos jurídicos e literários que põe em questão a relação entre objetos empíricos (como

um romance, um panfleto, um manual), a fim de abordá-los enquanto objetos discursivos, em

cujas materialidades, nos termos de Pêcheux (2009[1975]), estão presentes as marcas das

contradições ideológicas.

E é isto o que pretendemos em nossa análise, uma análise entre outras possíveis.

Assumindo uma intepretação com margens, tomamos posição a partir de um movimento que

questiona interpretações em que “o intérprete se coloca como um ponto absoluto”, encarando

este posicionamento como “uma questão de ética e política: uma questão de responsabilidade”

(PÊCHEUX, 2012[1983], p. 57).

1. O DISCURSO. UMA ANÁLISE

A Análise do Discurso a qual nos filiamos é uma disciplina fundada na França por um

grupo de pesquisadores em torno de Pêcheux (2009[1969]), e reterritorializada no Brasil por

Orlandi (1984). Filósofo de formação, Pêcheux dedicou-se a refletir sobre a materialidade do

discurso e, propondo uma teorização sobre a relação sujeito-linguagem-historicidade, seguiu na

contramão de um Estruturalismo que atingiu seu ápice em meados do século XX.

1.1. A noção de sujeito para a Análise do Discurso

Dentre os pressupostos fundamentais desta teoria está o reconhecimento de que o sujeito

é efeito de linguagem, não havendo como escapar de ser significado e da injunção a dar sentido.

Em outros termos, o sujeito se constitui quando de sua entrada no simbólico e está, pois,

“condenado a significar" (ORLANDI, 1996, p. 38). Assim sendo, "diante de qualquer objeto

simbólico 'x' somos instados a interpretar o que 'x' quer dizer" (ORLANDI, 1994, p. 57).

A noção de sujeito é formulada por meio de uma ruptura em relação à proeminência de

um sujeito intencional do idealismo filosófico. Na Análise do Discurso, ele é descentrado, isto

é, não está na origem do dizer, tendo em vista que é duplamente constituído, tanto pelo

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inconsciente quanto pela ideologia. Portanto, diferentemente de a existência do sujeito estar

para uma essência, nesta teoria materialista dos processos semânticos, é a ideologia que

promove a ilusão de essencialidade e intencionalidade (PÊCHEUX, 2009[1975]).

Citando Althusser (1980), Pêcheux (2009[1975]) dirá que a interpelação do indivíduo

como sujeito tem a função de fazê-lo submeter-se livremente à ideologia, para, também

livremente, aceitar tal submissão. Por conseguinte, este sujeito "não pode ser pensado como

uma evidência ou como unidade, reflexo de uma interioridade" (MARIANI, 2002, p. 108).

O discurso é definido por Pêcheux como efeito de sentido entre locutores (PÊCHEUX,

2009[1969]), o que faz urgente conceber a linguagem como não transparente, questionando-se

a literalidade de um objeto simbólico, seja ele um texto, uma pintura, uma música etc.

(ORLANDI, 1996). Esta noção de efeito supõe uma relação de interlocução na construção de

sentidos, os quais não são considerados enquanto propriedades privadas do autor nem do leitor,

mas "efeitos de troca de linguagem que não nascem nem se extinguem no momento em que se

fala" (ORLANDI, 2008, p. 103). A língua/linguagem é base de sustentação ou, nos termos de

Pêcheux (2009[1975]), de materialização de processos discursivos ideológicos. Assim,

Diante de um objeto simbólico, o homem tem necessidade de interpretar. Ele

não pode não interpretar. Esta é uma injunção. E o homem interpreta por

filiação, ou seja, filiando-se a este ou aquele sentido, em um processo que é

um processo de identificação: ao fazer sentido, o sujeito se reconhece em seu

gesto de interpretação (ORLANDI, 1998, p.19).

Trabalhando a articulação entre o Materialismo Histórico, a Linguística e a Teoria do

Discurso, atravessados por uma teoria do sujeito de base psicanalítica, a Análise do Discurso

consolida-se como crítica ideológica que não perde de vista a eminência de uma a intervenção

política, relacionando o campo da língua e o campo da sociedade apreendida pela história

(PÊCHEUX, 2009[1975]). Pensar o sujeito, segundo esta perspectiva teórica, significa incluí-lo

e, do mesmo modo, descentrá-lo, ou seja, admitir que ele não é responsável absoluto dos

sentidos que produz.

Nossos corpos são atravessados pela linguagem antes de tudo, e o sujeito é,

simultaneamente, sujeito da ideologia e do desejo inconsciente (HENRY, 1992). Logo, todo

dizer inscreve marcas de subjetividade que assinalam traços de um duplo atravessamento (pelos

registros do inconsciente e do assujeitamento ideológico) (MARIANI; MAGALHÃES, 2011).

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O sujeito significa e se significa filiando-se a redes de sentido: um processo histórico que não

lhe é transparente (MARIANI, 2002). Por isso, todo enunciado é “suscetível de tornar-se outro,

diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”

(PÊCHEUX, 2012[1983], p. 53).

1.2. Um sujeito do inconsciente, interpelado ideologicamente

Pêcheux elabora esta teorização explicando acerca de dois tipos de esquecimentos que

constroem a unidade subjetiva. O primeiro deles é definido enquanto processo inconsciente e

ideológico, que produz a ilusão para o sujeito de que ele estaria na origem do discurso. Dessa

maneira, mantém-se recalcada a determinação ideológica. Já o segundo esquecimento é o que

torna evidente para o sujeito, no momento em que privilegia dadas palavras ou enunciados -

deixando de dizer outras - que o que ele diz só o pode ser de uma maneira. Vale ressaltar que

o termo esquecimento não está designando aqui a perda de alguma coisa que

se tenha um dia sabido, como quando se fala de “perda de memória”, mas o

acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito

(PÊCHEUX, 2009 [1975], p.183).

Justamente pelo fato de tal articulação entre inconsciente e ideologia ser inacessível é

que ela se configura como lugar de constituição da subjetividade (PÊCHEUX, 1990[1969]). A

obviedade que há em se pensar que somos sempre-já sujeitos e a evidência de transparência e de

literalidade dos sentidos apagam o funcionamento do processo significante na constituição da

subjetividade. Trata-se de dois movimentos que se imbricam materialmente: i) a entrada na

linguagem é condição para tornar-se sujeito; ii) é na linguagem que o indivíduo é interpelado

em sujeito, constituindo-se como assujeitado ideologicamente e como desejante.

Isto pode ser resumido da seguinte maneira: inscrevem-se, no dizer, marcas da

constituição do sujeito que assinalam aspectos do registro inconsciente e do assujeitamento

ideológico. No entanto, a alienação do sujeito no seu dizer faz com que não se perceba

constituído por uma rede de significantes, mas como origem de suas palavras. Quando da

interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, apaga-se que os sentidos não estão no

sujeito nem na língua, que a língua se inscreve na história para poder significar. Assim se

constitui o efeito de evidência do sentido e do sujeito como senhor de si e fonte do seu dizer.

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1.3. Uma língua(gem) equívoca

Do ponto de vista da Análise do Discurso, a linguagem é opaca, não transparente, e os

sentidos não possuem uma existência em si, mas são determinados pelas posições em relação

no processo sócio-histórico em que toda palavra é produzida (PÊCHEUX, 2009[1975]). A

língua é estruturalmente passível de produzir equívoco (PÊCHEUX, 1983). Se os sentidos são

históricos, um mesmo enunciado pode significar diferentemente para diferentes sujeitos, o que

torna sentidos e sujeitos passíveis de deslizamento, de deslocamento, uma vez que, "na

multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto [...], há uma determinação histórica

que faz com que só alguns sentidos sejam „lidos‟ e outros não" (ORLANDI, 2008, p. 12).

Conforme Mariani (1998), não se deve conceber a linguagem como se ela fosse um

instrumento que serve meramente para comunicar. Ela não é uma ferramenta, simplesmente

funcional e eficiente, que o sujeito maneja como bem entende. A própria existência e o que se

costuma tomar como "realidade" constituem-se na relação linguagem/história: “[...] os sentidos

só se produzem porque são históricos, e a história, por sua vez, só existe como tal porque faz

sentido. Língua e história são processos inseparáveis" (MARIANI, 1998, p. 28).

Todavia, o sujeito segue imerso no efeito ilusório de que a linguagem é transparente e de

que língua é dotada de total clareza e exatidão. Certos sentidos tornam-se, não raro,

inquestionáveis. Ao ler um texto, um analista do discurso sabe que uma palavra ou enunciado

não significam previamente. Analisar um texto, seja uma canção, uma lei ou um romance

(como é o caso da análise que ora propomos) exige compreender que não há sentido de

antemão, que o analista não procura revirar o texto para encontrar um sentido "atrás" dele

(ORLANDI, 2012).

Se um texto não é fechado, ou seja, se cada sujeito pode construir diferentes sentidos,

isto se deve a algo da linguagem que a constitui, a saber, sua incompletude (Ibid.). Da mesma

forma, o sujeito também é incompleto, havendo para ele a possibilidade de se deslocar de uma

posição e assumir outra(s) no processo de significação. A incompletude é, afinal, a condição

para o movimento e a transformação tanto dos sentidos quanto dos sujeitos. Para Orlandi,

Pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do

simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode

ser um deslocamento nessa rede. Entretanto, há também injunções à

estabilização, bloqueando o movimento significante. Nesse caso, o sentido

não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer

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sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário

em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete. (ORLANDI, 2012,

p. 54).

É importante não confundir determinação histórica com determinismo. O sujeito não

está fadado a significar sempre da mesma maneira, mas nada impede que o sentido seja

administrado, que haja tentativas de controle dos sentidos por meio de rituais repetidos

insistentemente nas instituições que compõe dada formação social.

2. A PROPOSTA DE UMA LEITURA DISCURSIVA DE UM TEXTO LITERÁRIO

Fundamentar-se em uma abordagem discursiva significa tomar posição como analista

do lugar de um campo teórico que reflete sobre as relações sociais enquanto conjuntos de

práticas constituídas a partir de afetações que têm profundidade subjetiva, política e histórica.

Destarte, há um questionamento e um deslocamento do pesquisador do lugar que neutraliza as

interpretações, do espaço lógico estabilizado que universaliza os sentidos. Dentre as premissas

que decorrem desta postulação, destaca-se a de que não é possível assumir posições de

neutralidade em face de quaisquer questões, sejam as inerentes à vida cotidiana, aos

(pre)conceitos, ou até mesmo as intrínsecas ao trabalho científico, às decisões judiciais etc.

Sob este ponto de vista, a narrativa de um procedimento judicial, presente em um

romance ficcional, pode ser tratada como tomada de posição de um sujeito, em determinadas

condições de produção, frente às instituições e seus ritos (ideologicamente atravessados). Em

resumo, a não ser sob a ilusão de evidência dos sentidos e de transparência da linguagem,

nenhuma prática pode ser imparcial, estando apartada de uma afetação histórica que determina

o que pode e deve ser dito, priorizando-se certos sentidos em detrimento de outros.

A evidência ideológica apaga a política e a historicidade, o que dá a entender que as

palavras têm um sentido imanente, não havendo o que deva ser

questionado/polemizado/relativizado. Todavia, não há uma verdade atrás do texto, mas gestos

de interpretação que o constituem e que o analista deve buscar compreender, tendo sempre

como base uma crítica à afirmação do óbvio (PÊCHEUX, 2009[1975]).

Na interface dos estudos do discurso com a Psicanálise, refletimos com Žižek (2010

[2006]) sobre a dimensão performativa da ordem simbólica, já que, “[a] comunicação humana é

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caracterizada por uma reflexividade irredutível: cada ato de comunicação simboliza

simultaneamente o fato da comunicação” (Ibid., p. 20-21). Cada declaração não transmite

somente um conteúdo, mas o modo como o sujeito se relaciona com ele.

2.1. Um método (necessário) de análise

Em termos metodológicos, a análise do romance se dará através do recorte de

sequências discursivas e da submissão destas sequências ao batimento descrição/interpretação

que compreende um trabalho discursivo. Expliquemos a seguir como se definem as noções de

recorte e sequência discursiva em uma teoria materialista dos processos semânticos.

Sequências discursivas (SD) são "sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase"

(COURTINE, 1981).

Consideramos também as sequências imagéticas, tomando-se a imagem como algo que

se constitui como texto e remete a outros textos que a constituem, em sua relação com a história.

Não tratamos o romance Um crime delicado, assim sendo, como um amontoado de enunciados,

mas como “conjunto sem fronteira”, atravessado de sentidos históricos (MAZIÈRE, 2007, p.

59-60), uma vez que há outros discursos que falam no mesmo (ORLANDI, 1981).

Diante da incumbência de analisar um objeto simbólico, o analista do discurso recorta

sequências discursivas que se articulam às questões e objetivos de uma análise. Tal análise não

se concentra na decifração do que um texto quer dizer, como se houvesse um sentido a

descortinar, mas na conversão do texto em discurso. Dessa maneira, torna-se possível

compreender como funcionam os processos ideológicos envolvidos na atualização de

determinados sentidos e, consequentemente, no apagamento de outros.

Esta leitura nos permite analisar o processo de produção de sentidos relacionado a

determinadas práticas e procedimentos; uma análise que não se prende a textos e que nos

possibilita, portanto, a leitura sintomática do discurso em qualquer materialidade. No caso deste

trabalho, uma leitura sintomática do romance Um crime delicado, enquanto objeto discursivo

com espessura histórica.

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3. UMA ANÁLISE POSSÍVEL

O romance Um crime delicado, escrito por Sérgio Sant‟anna, recebeu muitos elogios da

crítica e dos leitores, motivo suficiente para levar à premiação com o Jabuti de melhor romance

em 1998. A obra tem uma trama peculiar composta pelo envolvimento de personagens e

objetos de tal maneira inusitada que nos instigou a apresentar uma proposta de leitura do sentido

de julgar fundamentada nos procedimentos da Análise do Discurso. Nossa leitura, estabelecida

nos limites da Literatura e do Direito, procura compreender o processo de significação de julgar

nas atuais condições de produção, e analisar as marcas de tais processos no texto.

Discursivamente, tais marcas de significação estão presentes já no exterior do romance, em sua

capa, e, no seu texto, apresenta-se na trama que envolve o protagonista, no movimento de

passagem da sua condição de crítico à de réu em um processo judicial.

O livro traz em sua capa uma imagem do quadro Pigmalião e Galateia, de Jean-Leon

Gêrome. Na cena retratada, ao beijo do escultor, a escultura ganha vida, transmutando-se do

branco frio do marfim ao rubor e viço da pele de uma jovem mulher. Tal cena carrega-se de uma

memória discursiva, dotada de historicidade, uma vez que já inspirou vários artistas que a

representaram em diversas materialidades e trata do mito de Pigmalião, narrado por Ovídio em

Metamorfoses. De acordo com o mito, Pigmalião, por não encontrar a sua volta uma mulher

perfeita, decide por esculpi-la. Esculpe em marfim uma mulher de beleza ímpar e enamora-se

dela, pedindo que os deuses lhe concedam esposa com imagem semelhante. Diante do seu

pedido, a escultura ganha vida ao toque do artista, que a batiza Galateia.

A capa do livro é ainda ilustrada com uma imagem do quadro As meninas, do pintor

espanhol Diego Velázquez. A pintura, por si só, desperta curiosidade, e os debates acerca de

seus mistérios não se restringem aos profissionais da arte, instigando também filósofos,

psicanalistas e pensadores que se prestam a interpretar a obra, produzindo leituras distintas.

No quadro, é retratada uma cena que se passa em um aposento real. Leituras já

produzidas sobre a obra destacam a figura da infanta, primogênita dos reis de Espanha. A

menina é cercada por um séquito de servos da Coroa. À esquerda, de costas para o espectador,

encontra-se uma tela na qual trabalha o próprio Velázquez, autorretratado (autor retratado) no

quadro. Ao fundo, pendurado na parede do aposento, há um espelho que reflete a figura de um

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casal. Ao lado do espelho, o vão de uma porta aberta que leva a uma escada e no qual figura um

homem.

Foucault (1999) propõe uma leitura deste quadro no primeiro capítulo de As palavras e

as coisas. O filósofo francês, ao descrever a cena, trata de algumas das questões que o quadro

suscita e que decorrem principalmente da presença do autor na obra que, ao lançar para fora do

quadro seu olhar, marca o lugar do espectador - constrangido a entrar na cena -, o lugar do

modelo e o lugar do quadro sobre o qual trabalha e do qual o espectador só tem a visão do verso.

Foucault (1999) trata da invisibilidade do quadro que, na cena, é pintado por Velázquez e tem

as costas voltadas para o espectador. Trata também da “visibilidade sem olhar”, imposta pelo

espelho no fundo do aposento, já que não reflete nada do que está representado na cena e

também não é objeto do olhar de nenhum dos seus personagens.

Os elementos do quadro marcam a relação de presença e de ausência, de representação e

imagem, dicotomias que se estabelecem tanto por uma realidade criada pelo pintor na obra,

quanto por uma realidade material criada pelo imaginário de quem vê (e julga) a obra. O

filósofo trata da representação artística, mas também da representação por palavras, que é da

ordem da irredutibilidade. Segundo o autor:

por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz,

e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,

comparações, o lugar de onde estas resplandecem não é aquele que os olhos

descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem (ib., p. 11).

Ao narrar a cena, descrever seus personagens e objetos, ao falar sobre o quadro,

Foucault o faz por palavras. Fala do espelho, da janela, da luz, do interior e do exterior e

também sobre olhares, imagens, representação, visibilidade e invisibilidade, presença e

ausência. Falar sobre é discursivizar (MARIANI, 1996) e, discursivamente, importam-nos os

efeitos da pintura sobre o espectador e as leituras desses efeitos em distintas condições de

produção.

Não obstante todas as questões e discussões sobre os quadros e que já enlevam

pensadores e público, na capa do romance Um crime delicado, as imagens das obras são

violadas: na parede de fundo do ateliê de Pigamalião, é posta a imagem de As meninas. À cena

de Velázquez, por sua vez, é incorporada uma imagem do quadro de Gêrome, no lugar do

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espelho original. Além disso, uma etiqueta é colada sobre a imagem do quadro com a finalidade

de classificá-lo. Mácula. Violação. Nela, consta não só o nome do livro, mas também sua

classificação: “romance”. A obra é nomeada e categorizada.

A capa do romance já fala sobre a narrativa, já dá pistas da obra: a linha imaginária

entre ficção e realidade, entre a imagem e representação, entre autor e obra. E, na leitura

discursiva que propomos, a violação e o julgamento.

Figura 1 – Um crime delicado. Capa (SD1)

Há, pois, em entrelaçamento exterior/interior que se relacionam a partir de um fio,

compondo uma malha discursiva que confere ao romance um efeito de coesão (como uma

totalidade de partes interligadas) e de coerência, ao passo que os sentidos materializados na

capa do romance tendem a estabelecer uma relação de composição com a narrativa. Se falamos

em “efeito de” e não em suposta transparência da relação exterior-interior, é porque

consideramos a abertura do processo de significação (PÊCHEUX, 2009[1975]) e, assim sendo,

a impossibilidade fechamento/engessamento da interpretação (a não ser por ilusão).

3.1. Da narrativa

A narrativa ambienta-se no Rio de Janeiro. Antônio Martins, personagem principal, é

um crítico de teatro de meia-idade que, solitário, vive romances casuais. O roteiro de sua vida

começa a mudar quando, em um bar no bairro de Botafogo, conhece a jovem Inês, com quem

vive um romance. A primeira imagem que Antônio tem de Inês é o seu reflexo em um espelho

pendurado no bar. Trata-se de uma imagem emoldurada na parede, o que aproxima a figura da

moça da de uma obra de arte, uma representação.

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SD2 [...] na primeira vez que a vi, ela estava sentada à mesa do Café e eu não

podia observá-la de corpo inteiro [...] (SANT‟ANNA, 1997, p. 9); [...] as

paredes e colunas do Café são espelhadas. E foi através desses espelhos, que

refletem uns aos outros, que minha observação se deu, bastante discreta e

oblíqua (Ibid., p. 10).

A partir da nossa leitura, que considera que o romance analisado esfumaça os limites

entre realidade e representação, e considerando o fato de o seu personagem principal ser um

crítico de teatro, a nossa proposta percorre o seguinte percurso: a definição de categorias a

partir da identificação com uma posição assumida pelo sujeito, a relação do julgar com as

categorias e com a falta: “eu não podia observá-la de corpo inteiro”. Antônio Martins

identifica-se com o lugar de crítico, posição marcada no texto pelo próprio personagem, quando

lhe dá voz o autor do romance.

SD3 - Sou crítico. (Ibid., p. 17, grifo nosso).

SD4 – [...] Terá todo mundo de escrever?, concluía eu. [...] Bem, em alguns

casos, como o meu, receio que sim (Ibid., p. 22, grifo nosso); Escrever.

Fragmentos dispersos, frases soltas, olhares, visões reais ou subjetivas, eis,

possivelmente, como se deveria escrever sobre um encontro em que se ficou

bêbado, apesar de ter havido, a princípio, uma certa ordem, reproduzível em

diálogos quase banais. (Ibid., p. 23, grifos nossos); [...] O eventual leitor desta

narrativa já estará percebendo, a esta altura, que o que escrevo – e escrevi

para o jornal – está e estava inteiramente vinculado às perturbações que eu

próprio vivia [...] (Ibid, p. 67, grifos nossos).

Ao dizer de si e de sua prática (criticar, escrever), o personagem se identifica com os

lugares de crítico e de escritor, reconhecendo e tomando para si a as atribuições desta posição

discursiva. Uma das questões que se coloca é sua tentativa frustrada de ver puramente técnicos

os textos de suas críticas, isentos de interferência ou motivação de caráter pessoal, já que a

"vinculação da crítica às perturbações pessoais do crítico" é uma violação de sua atribuição:

SD5 – [...] ser crítico é um exercício da razão diante de uma emotividade

aliciadora, ou de uma tentativa de envolvimento estético que devemos

decompor, para não dizer denunciar, na medida do possível com elegância. O

que não significa que estejamos imunizados contra a sedução das

emoções (Ibid., p. 18, grifos nossos).

SD6 – [...] o crítico é um tipo muito especial de artista, que não produz

obras mas vai apertando o cerco em torno daqueles que o fazem,

espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na

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perseguição daquela obra imaginária, mítica, impossível, da qual o

crítico seria co-autor (Ibid., p. 28, grifos nossos).

No início do romance, então, o leitor conhece o crítico, aquele que julga. A ancoragem

na perspectiva teórica da Análise do Discurso impõe problematizar a impessoalidade de

qualquer prática, em que se inclui a crítica, o julgamento, enquanto práticas empreendidas por

sujeitos históricos. Sujeitos que, como tal, tomam a palavra sempre a partir de posições

ideologicamente determinadas. No texto, o narrador, imerso na ilusão de controle do seu dizer

(materializado como crítica, julgamento, narração), supõe a possibilidade de negociação entre

razão e emoção, em relação de tensão nas práticas que se incumbe de exercer. No entanto, o que

se destaca como impossibilidade de imunização diante das emoções faz escapar, isto é,

denuncia o caráter heterogêneo e contraditório de qualquer prática entendida como discursiva.

Julgar é, pois, produzir sentidos identificados a uma rede de filiação (e não outra), mas que, por

meio de esquecimentos constitutivos de sua entrada no simbólico, na linguagem, lhes vêm

como transparentes, evidentes, de modo que o sujeito se reconhece como dono de seu dizer (e

de sua suposta imparcialidade).

Na perspectiva da Análise do Discurso, que reconhece a determinação histórica dos

sentidos e a interpelação ideológica do sujeito do inconsciente, a relação deste sujeito com os

nomes e com o mundo é posta em questão. De acordo com Pêcheux,

O sujeito pragmático – isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face

às diversas urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa

necessidade de homogeneidade lógica: isto se marca pela existência dessa

multiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão

cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o porta-notas, as

chaves, a agenda, os papeis, etc) até as “grandes decisões” da vida social e

afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder X e não a Y, etc…)

passando por todo o contexto sócio-técnico dos „aparelhos domésticos‟ (isto é,

a série dos objetos que adquirimos e que aprendemos a fazer funcionar, que

jogamos e que perdemos, que quebramos, que consertamos e que

substituímos)… (PÊCHEUX, 2002[1988], p. 33).

Mais adiante, Pêcheux também põe em questão a evidência de que esta necessidade de

homogeneidade lógica, ou de um “mundo semanticamente normal” seja decorrente

exclusivamente das relações sociais do sujeito ou de sua relação com o Estado. Tal necessidade

marca o processo de constituição do sujeito, que se inicia com o modo como o infans reage ao

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que Freud (1905, 1915, 1930) denominou “Trieb” (pulsões, estímulos pulsionais). Em linhas

gerais, portanto, a constituição do aparelho psíquico do sujeito se inicia com a repulsa e/ou

prazer do infans na sua relação com o alimento e com o excremento. Discursivamente, essa

questão é posta por Pêcheux como a primeira marca da constituição de um sujeito pragmático,

dominado pela urgência à significação.

Entendemos que a noção de categorização introduzida por Pêcheux pode, em

determinadas condições, ser lida como categoria discursiva (GOMES, 2015). Processo pelo

qual o desejo de significação que marca o sujeito imiscui-se nas atribuições daquilo que se

denominou Estado e, assim, há uma tentativa (imaginária) de estabilização de sentidos por meio

de normas gramaticais e dicionários. Esse processo de categorização passa por outras

instituições do Estado que, por meio das leis, das decisões judiciais, buscam tal estabilização de

sentidos que, uma vez institucionalizados, podem ser impostos coercitivamente e, diante do

desvio do padrão, justificam a retificação. Trata-se da categorização jurídica. As categorias,

portanto, são um processo de denominação (MARIANI, 1996) qualificado, já que determinado

pelo Estado e, no caso da categorização jurídica, podem ser impostas coercitivamente pelos

aparelhos de Estado e legitimar a punição dos que desviem da norma.

Como crítico de teatro, Antônio é posto no lugar de “detentor do saber” (PÊCHEUX,

2002[1988]) e legitimado a julgar peças de teatro categorizando-as como “boas” ou “ruins”, o

que dialoga com a narrativa inteira em sua mobilização de formas verbais como “julgo”,

“penso”, “acho”. O crítico avalia de acordo com padrões previamente estabelecidos e que,

muitas vezes sob aspecto de objetividade, de ciência, determinam os atributos de “correção”,

“técnica”, “beleza”, “subversão”, “inovação”, como se pode conferir na sequência que segue.

SD7 - [...] enfim, uma brecha de liberdade através da qual a atriz penetrava,

num trabalho digno de nota por sua contenção ativa, dando vida a uma

personagem que escapava da vigilância do dramaturgo, talvez numa feliz

conspiração da intérprete e do cenógrafo contra a tirania autoral.

(SANT‟ANNA, 1997, p. 21, grifos nossos).

Como escritor, Antônio se vê legitimado a narrar fatos, descrever objetos e, quando se

envolve em uma situação ambígua com Inês, na qual se encontrava bêbado, ainda que a única

coisa que lhe restasse fossem algumas poucas memórias, deve narrar. E o faz lançando mão de

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seu estado de embriaguez, da posição de um crítico que coloca os sentidos em suspenso, em

meio a uma avaliação, desta vez, vacilante em termos de objetividade:

SD8 [...] era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus tremores

eram mais justificados do que a euforia. Quanto a esta última, devia-se não

somente aos resíduos de álcool em meu sangue, como à quase-certeza de que

eu penetrara de alguma forma a intimidade de Inês. [...] havia, dentro de mim,

além da apreensão, culpa, o que não significava, necessariamente, que eu

tivesse praticado alguma ação condenável, querendo dizer com isso algum

ato contra a vontade de Inês. [...] Mas o álcool costuma romper minha

timidez, levando-me a certos ímpetos de audácia [...] (Ibid., p. 24, grifos

nossos).

SD9 Estaria eu fantasiando tudo isso de conformidade a um desejo agora

tão intenso que fazia uma determinada parte do meu corpo reagir virilmente à

água fria do chuveiro, sob o qual eu me refugiava procurando recompor-me?;

[...] faltava-me uma memória viva, sem a qual os acontecimentos não

existem, o que reforçava a hipótese de que eu falhara. (Ibid., p. 25, grifos

nossos)

SD10 Não tenho a pretensão de rastrear, reproduzir, aqui, a consciência,

a memória, em seu fluxo veloz e descontínuo. [...] Então é preciso organizar

esse fluxo, como o tenho feito, para que eu próprio possa segui-lo, dominá-lo

ao menos nestas páginas, estas frases que se encadeiam, como se elas, sim,

criassem a verdadeira realidade (Ibid., p.30, grifos nossos).

Nas sequências 8, 9 e 10 percebemos que o estado de torpor afasta as ditas “certezas” e

põe o narrador novamente no lugar da falta de sentidos. Ansioso por significar, o sujeito

pragmático busca então construir uma narrativa costurando traços de sua memória dos fatos

com discursos outros, já-ditos que retornam e que permitem a construção de uma narrativa com

os atributos de coesão e coerência. A construção desta narrativa, no entanto, é feita com de

modo que a suposta prática de “julgar”/“avaliar” aparece como sinônimo de “achar”, “pensar”,

“crer”, “imaginar”, marcando a incerteza, a imprecisão, a ausência de sentido, a qual leva o

sujeito a buscar significar, como sendo da ordem uma injunção.

Retomando Foucault (1999, p. 11), ratificamos que “por mais que se diga o que se vê, o

que se vê não se aloja jamais no que se diz”. Premissa que comparece na fala de Antônio

Martins e que se marca na sequência abaixo, recortada de afirmação do personagem sobre um

processo de escrita, ratificando-se o caráter aberto e heterogêneo da linguagem:

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SD11 Ao escrevê-lo, percebo como é difícil quando não se tem os

“pré-textos”, ou espetáculos, que servem de apoio, bengala, a esses seres

cautelosos que são os críticos. Percebo como a escrita nos distancia, quase

sempre, das coisas reais,se é que existe uma realidade humana que não

seja a sua representação, ainda quando apenas pelo pensamento, como numa

peça teatral a que não se deu a devida ordem, aliás inexistente na realidade

(SANT‟ANNA, 1997, p. 50, grifos nossos).

Comparece também nesta sequência a imagem da bengala (muleta, apoio), a categoria

que serve como paradigma àquele que julga. O que serve para buscar uma suposta completude

àquilo que falta.

Antônio começa a se envolver com Inês seduzido pelos mistérios que envolvem a moça,

pela sua beleza. Na verdade, ele é atraído pelo tanto que desloca Inês de um padrão de beleza,

ele é atraído pelo fato de Inês ser manca, uma marca, uma falta que se coloca para o

narrador-personagem como ponto de atração, uma atração por penetrar o mistério, tanto quanto

aquilo que falta, que manca, o que verificamos em:

SD12 Uma cena quase subliminar em minhas recordações, mas

suficientemente materializada para incluir uma perna atrofiada,

contrastando com a outra sadia, forte e, por que não dizer?, bela (Ibid., p.

25, grifo nosso).

SD13 [...] beleza peculiar de Inês, seus olhos negros, seus dentes de criança,

a pele claríssima [...] Uma beleza que aquela imperfeição só realçava (Ibid.,

p. 31-32, grifos nossos).

SD14 [...] sendo a ereção um comando irracional do cérebro a um feixe de

vasos sanguíneos e nervos, Maria Luísa era para mim inexpugnável: não

havia nela, em sua perfeição – despida dos véus do pecado ou qualquer

outro figurino ou adereço –, nenhuma brecha por onde eu pudesse

penetrar (Ibid., p. 67, grifo nosso).

Para o Antônio homem, o defeito físico de Inês significa como uma peça teatral ruim

para o Antônio crítico. São as faltas, as brechas, que permitem a penetração. Categorizar Inês

como manca é reconhecer que lhe faltam atributos que a afastam de uma mulher categorizada

como “normal” de acordo com um sentido de normalidade que se constitui historicamente.

Da mesma forma, categorizar uma peça teatral como “ruim” é possível porque um

crítico de teatro, posto no lugar de um detentor de saber e, portanto, conhecedor dos atributos de

um padrão de “correção”, julga aquilo que falta na obra para que ela se identifique ao

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paradigma da categoria, naquela já dita busca imaginária de estabilização de sentidos, busca de

completude, “inteireza”:

SD15 Daquele que a quer, inteira, [...] (Ibid., p. 111, grifos nossos).

A falta, questão muito cara à Psicanálise, tomada como constitutiva do sujeito, pode ser

analisada discursivamente como o silêncio (ORLANDI, 1997), interpretado como

materialidade discursiva. Silêncio fundador, falta que permite a movimentação de sujeitos e de

sentidos, já que, para se dizer x é necessário não dizer y, e política de silenciamento,

impedimento à circulação de certos sentidos ou imposição, obrigar que se diga o que se quer

ouvir. É a falta, o silêncio, o que permite significar.

Dessa forma, Antônio julga Inês a partir de um padrão estético que a define como

“manca”, no limite do que a afasta do paradigma do “belo”, do perfeito. Na posição de crítico,

julga uma peça de teatro descrevendo aquilo que falta à peça para que se aproxime de um dito

paradigma de perfeição ideologicamente determinado. Na posição de escritor, narra aquilo

quejulga ser a realidade e que produz efeito de mais uma realidade.

No romance, em decorrência da tempestuosa relação com Inês, Antônio passa à posição

de objeto de julgamento, quando se vê envolvido em um processo judicial, acusado da prática

de um ato de violência sexual. No Tribunal, são postas em oposição pelo menos duas narrativas,

a de Antônio, juridicamente categorizado como acusado e a de Inês, categorizada como vítima.

Institucionalmente, as narrativas não são postas pelos personagens do fato, mas por seus

representantes, que as submetem ao julgamento de uma autoridade que ocupa o lugar de

detentor do saber jurídico. As narrativas, buscando acercar-se de uma “objetividade”, que as

aproximariam mais ou menos “da verdade”, trazem elementos científicos, exames, análises.

Assim, ao final, uma das narrativas é julgada vencedora, de acordo com critérios que a

aproximam de um paradigma de verdade: disputa de sentidos em que um é sagrado vencedor,

dominante. E, de acordo com este julgamento e com as normas de valor em circulação em

determinadas condições de produção, o julgador é autorizado a categorizar os indivíduos e a

lhes impor sanções.

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UM MERO EFEITO DE CONCLUSÃO

“Julgar” não se limita, portanto, àquele que ocupa o lugar de crítico, de julgador,

legitimado institucionalmente a emitir julgamento de valor. Em Um crime delicado, o narrador

concorre com o crítico, aquele que julga. O romance põe em questão a prática discursiva de

julgar, o trabalho do crítico e a sua relação com a arte, inscrito na condição humana de

significar, de dar nomes aos objetos e organizá-los em categorias de acordo com atributos

historicamente definidos.

Inês, a mulher por quem Antônio se apaixona – que se posiciona no texto como uma

peça em uma grande instalação, uma parte de uma obra de arte – é manca. E isso não é sem

sentido. Mancar é estar fora do prumo, em falta de simetria, em desarmonia, e quem se coloca na

posição de julgador aponta as dissimetrias, as desarmonias, estabelece uma categoria de "belo",

de "correto", ao comparar aquilo que julga a um “padrão” ou “regra” (imaginários). Antônio

Martins é atraído pela imperfeição. É o que falta, o que destoa que permite as brechas que serão

por ele penetradas (SANT'ANNA, 1997, p.74). A perfeição, a beleza escancarada, ao contrário,

por não permitirem ser penetradas, afastam o olhar do crítico, intimidam-no (Ibid., p. 76).

A pele branca de Inês, assim como uma tela (Ibid., p. 32) ou uma folha de papel em

branco, configura-se como silêncio que pode ser preenchido por tintas ou palavras, dispostas

pelo artista, imaginariamente da maneira que bem lhe aprouver, mas discursivamente a partir de

uma posição assumida enquanto sujeito histórico. Com a “matéria-prima” nas mãos,

confundem-se o artista, o leitor/espectador e o crítico/julgador, assim como no estado de torpor,

de embriaguez, sob o lusco-fusco, as fronteiras não estão bem definidas, sonho e realidade se

confundem (Ibid., p. 23).

A imperfeição, a falta de limites e precisão não impedem a construção ou fabricação de

uma narrativa (Ibid, p. 30), na verdade, as palavras dão ordem ao caos, constituindo uma

realidade. Por isso, dispor das coisas como queremos não é mentir (Ibid., p. 106). A história

narrada por Antônio Martins é uma reconstrução ou fabricação de fragmentos de sua memória

que, concatenados, constituem uma narrativa que escreve e descreve pessoas e objetos, narra

fatos definindo-lhe limites que a razão insiste em determinar e que a arte, por outro lado,

bagunça outra vez.

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Se sabemos com Mariani (1996) que falar sobre é discursivizar, a narrativa é somente

mais uma representação, e julgar é uma prática discursiva, a construção de uma narrativa que

busca dar sentidos onde eles faltam, onde eles se afastam de padrões determinados

socio-historicamente e que justificam não só o julgamento, mas, em certas condições, também o

controle, a punição, a censura. Sentidos são barrados em nome de uma ordem, de um padrão.

Antônio Martins vê-se em um círculo, é narrador, escreve (Ibid., p. 23) ao buscar

desenvolver uma narrativa com frações de memória; como leitor da própria narração,

modifica-se como espectador e transforma personagens em outros (Ibid., p.104). Abre caminho

para o crítico e, penetrando nas falhas, julga a obra onde ela é “manca” (Ibid., p. 17).

E, para pôr fim a tudo isso, o narrador se vê envolvido em um processo judicial

decorrente de uma acusação de estupro feita por Inês. Cercado de procedimentos ritualísticos e

científicos que procuram aproximar ao máximo a narrativa de uma realidade apontada como a

verdade, o processo não é nada mais do que uma outra narrativa ou, no máximo, a disputa de

várias na qual uma, ao final, sai vencedora, tudo isso sob a aparência de certeza, objetividade.

Julgar é emitir opinião sobre algo ou alguém. Aquele que julga se reconhece na posição

de julgador, faça ou não parte de uma instituição que garanta e legitime seu lugar de suposto

“detentor do saber” (PÊCHEUX, 2009 [1995]). Seja qual for a posição de quem julga, a prática

de julgar se dá no esquecimento da interpelação ideológica de um sujeito pragmático dominado

pela ilusão de completude que o leva a considerar um imaginário de “correção”, “beleza”,

“verdade”, “bem”, “justiça”. Em face daquele ideal, constituem-se categorias - jurídicas,

discursivas - (GOMES, 2015) ao se julgar o outro como “errado”, “feio”, “falso”, “Mal”, na

medida em que ele se afasta do paradigma imaginário. A leitura discursiva do romance nos

permite perceber, no texto, marcas da significação de “julgar” que são objeto de nossa análise.

Em nossa leitura discursiva do texto, concluímos que o sentido de julgar é construído a

partir do esquecimento da interpelação ideológica que constitui o sujeito. Nós, sujeitos

pragmáticos, impelidos por uma injunção à completude e à significação, estabelecemos

categorias que, em algum momento, passam a constituir um paradigma imaginário a partir do

qual aquele que se reconhece no lugar de julgador julga o outro.

O gesto de leitura que produzimos de Um crime delicado nos permite encontrar pistas

dos sentidos de "julgar" na sociedade atual, constituído, portanto, nos meandros do imaginário,

da ideologia, da falta e da ilusão de completude. Cabe também pôr em questão os sentidos de

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"belo" e "feio", "certo" e "errado", dentre tantas outras dicotomias estabelecidas a partir da

prática do julgar, o que procuramos apresentar como resultados (reflexões) possíveis, a partir

desta proposta de discussão, assumindo o que nela venha a faltar, falhar, mancar, abrindo

brechas para outros sentidos e interpretações possíveis.

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NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO

BRAIDA, Ricardo

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NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO

BRAIDA, Ricardo

Professor do Programa de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e da Faculdade

Presidente Antônio Carlos (FUPAC) de Ubá, MG. Mestre em Estudos Literários pela Universidade

Federal de Juiz de Fora (UFJF).

[email protected]

RESUMO O artigo propõe investigar o silêncio e o discurso da produção literária no vigente sistema penal

democrático brasileiro. Porém, ao invés de partir de dados estatísticos, de concretudes matemáticas, este

trabalho adotou como método de pesquisa o empirismo, se debruçando sobre a produção e a repercussão

da Literatura de Cárcere no contemporâneo, para então se aprofundar e traçar algumas reflexões sociais

e políticas, como o massivo aumento da população carcerária na última década e a flagrante seletividade

penal. A Literatura de Cárcere é um conjunto de narrativas que partem de perspectivas individuais sobre

o sistema prisional. Seu enunciado está indissoluvelmente ligado a um indivíduo e suas condições de

comunicação que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais. É a partir do exercício da linguagem

individual e social que o objeto-cárcere produz uma representação ideológica de uma imagem

artístico-simbólica na Literatura capaz de refletir em uma análise social.

Palavras-chave: Literatura. Cárcere. Contemporâneo

ABSTRACT The paper proposes to investigate the silence and the discourse of literary production in the current

Brazilian democratic penal system. However, instead of using statistical data, mathematical

concreteness, this study adopted as a research method the empiricism, looking for the production and the

impact of Prison Literature in the contemporary, to then deepen and draw some social and political

reflections, like the massive increase in the prison population in the last decade and the criminal

selectivity. The Prison Literature is a collection of narratives that depart from individual perspectives on

the prison system. His enunciation is inextricably linked to an individual and their communication

conditions of communication, in turn, are linked to social structures. Through the exercise of individual

and social language, that prison-object produces an ideological representation of an artistic-symbolic

image in Literature able to reflect on a social analysis.

Key-words: Literature. Prison. Contemporary

INTRODUÇÃO

Em uma perspectiva cronológica e de âmbito nacional, o presente estudo propõe

analisar um corpus literário composto pelas narrativas do cárcere no Brasil com um corpus

analítico de múltiplos pensadores como Michel Foucault, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin,

Giorgio Agamben, Hannah Arendt, Alfredo Bosi, Márcio Seligmann-Silva, Antonio Candido,

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BRAIDA, Ricardo

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dentre muitos outros que surgirão ao longo do trabalho. O possível conflito entre verdade e

ficção, que eventualmente poderá ser suscitado, deve ser minimizado pela análise conjunta de

diversas obras sobre o cárcere que narram vários aspectos em comum, apesar das

idiossincrasias que cada texto carrega em si. Como preleciona o professor Marcio

Seligmann-Silva sobre este conflito, “as fronteiras entre gêneros ditos „sérios‟/„factuais‟ e os

fictícios há tempos não podem ser mais traçadas. Nessa literatura carcerária o simbólico

aparece esmagado sob o peso do real e determina um redimensionamento dessas fronteiras”

(2004, p. 6). Ainda nesse sentido, de acordo com o filósofo do Direito Ronald Dworkin, a

literatura e a arte devem ser usufruídas em suas amplitudes de interpretações, expandindo as

possibilidades de discussão do campo jurídico.

Seria bom que os juristas estudassem a interpretação literária e outras formas

de interpretação artística. Isso pode parecer um mau conselho (escolher entre

o fogo e a frigideira), pois os próprios críticos estão completamente divididos

sobre o que é a interpretação literária, e a situação não é melhor nas outras

artes. Mas é exatamente por isso que os juristas deveriam estudar esses

debates. Nem todas as discussões na crítica literária são edificantes ou mesmo

compreensíveis, mas na literatura foram defendidas muito mais teorias que

contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a

teoria jurídica (DWORKIN, 2000, p. 221).

Para tanto, ao invés de partir de dados estatísticos, de concretudes matemáticas, este

trabalho adotou como método de pesquisa o empirismo em uma abordagem qualitativa, se

debruçando sobre a produção e a repercussão da Literatura de Cárcere no Brasil, para então

destacar reflexões sociais sob uma nova ótica, como o massivo aumento da população

carcerária da última década e a flagrante seletividade penal.

A Literatura de Cárcere (seja biográfica ou ficcional; seja em cartas, em romances,

contos, poesias ou histórias em quadrinhos) é um conjunto de narrativas que partem de

perspectivas individuais sobre o sistema prisional. Sua apresentação se dará no primeiro

capítulo. No capítulo seguinte será apresentado alguns exemplos de Literaturas de Cárcere em

tempos de autoritarismo. E por terceiro, o estudo se direciona para a produção da Literatura de

Cárcere no contemporâneo.

Portanto, instaurado o objeto de estudo, nada mais resta a expor nestas considerações

inicias. Que a Literatura de Cárcere venha à tona.

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1. A LITERATURA DE CÁRCERE

Para iniciar uma análise crítica sobre a Literatura de Cárcere, faz-se imprescindível o

óbvio, ou seja, delimitar o que é a Literatura de Cárcere para os fins desta pesquisa: seja em

verso ou prosa; ficção ou autobiografia, a Literatura de Cárcere é a manifestação de uma

narrativa isolada sobre um sistema prisional, compondo em um conjunto de narrativas um

discurso literário. O enunciado está indissoluvelmente ligado a um indivíduo e suas condições

de comunicação que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais. É a partir do exercício da

linguagem individual e social que o objeto-cárcere produz uma representação ideológica de

uma imagem artístico-simbólica na Literatura.

Deve-se ressaltar que o presente estudo não tem a pretensão de construir um dogma

sobre a Literatura de Cárcere, pelo contrário, afirma a existência de uma repetida manifestação

literária, que se identifica pelo vínculo das ciências humanas e sociais, erigindo-se sobre

alicerces que se complementam, mas que não são taxativos.

[...] é também entrar em contato com as consequências que vai provocando em

termos dos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciação, em

termos de estudos do discurso que, centralizados na Linguística e também na

Teoria Literária, alçam voo e ganham espaço nas diferentes Ciências

Humanas e Sociais (BRAIT, 2012, p. 21).

Assim, aprofundando o estudo da filosofia da linguagem pode-se conceber a

consciência individual da Literatura de Cárcere como um fato socioideológico. De acordo com

Bakhtin: “Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico e, portanto,

também signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo

social determinados” (2009, p. 45). A valoração interindividual do objeto (prisão) pelas

narrativas constitui o sentido vivencial que cada obra estabelece a partir do contexto em que foi

criada. Em todas as representações, o signo se torna uma arena onde se desenvolve a luta de

classes contra os limites de uma ideologia dominante (2009, p. 48). Mariana Yaguello explica

este confronto proposto por Bakhtin a partir do seguinte raciocínio: “A comunicação verbal,

inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de

resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante

para reforçar seu poder, etc.” (in BAKHTIN, 2009, p. 14). Inserida nessa relação de poder e

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comunicação, a Literatura de Cárcere em seu conjunto pode revelar aspectos sociais por um

outro prisma. Ainda com Bakhtin: “Os enunciados e seus tipos, isto é, gêneros discursivos, são

correias de transmissão entre história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN,

2011, p. 268).

A cadeia não é um “brinquedo literário”, como certa feita escreveu o escritor Graciliano

Ramos ao amigo José Lins do Rego. E é a partir desta sentença que este estudo pretende ir além.

2. LITERATURA DE CÁRCERE EM PERÍODOS NÃO DEMOCRÁTICOS:

Nessa etapa, o estudo se direciona para pontuais Literaturas de Cárcere produzidas em

períodos de poder autoritário, mais precisamente o Brasil Colônia (1500 – 1822); a era Vargas

(1930 – 1945); e a Ditadura Militar (1964 – 1985).

2.1. Marília de Dirceu e o Brasil Colônia:

No século XVIII, durante o Brasil colônia, o escritor luso-brasileiro Tomás Antônio

Gonzaga (1744 – 1810?), “homem de letras jurídicas e de alta burocracia que escreveu, ainda

jovem, um cauteloso Tratado de Direito Natural” (BOSI, 2012, p. 75), foi preso junto com

Alvarenga Peixoto (1744 – 1792) e Silva Alvarenga (1749 – 1814)1, após serem delatados de

participação na Inconfidência Mineira. O lema Libertas quæ sera tamem, hoje presente na

bandeira mineira, foi abafado e Gonzaga passou três anos preso aguardando o julgamento da

sua pena de degredo para o Moçambique (BOSI, 2012, p. 75). Enquanto esteve encerrado na

masmorra, o escritor compôs sua obra de maior destaque: Marília de Dirceu (1800), um canto

árcade em saudação a sua amada impossível, Marília.

Que diversas que são, Marília, as horas,

Que passo na masmorra imunda, e feia,

Dessas horas felizes, já passadas

Na tua pátria aldeia!

(GONZAGA, 1998, p. 82).

1Alvarenga Peixoto sofreu a mesma pena que Gonzaga, já Silva Alvarenga, pouco mais jovem, sofreu apenas três

anos de cárcere, sem a pena de desterro (BOSI, 2012, p. 74-75).

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Depois de degredado, Tomás Antônio Gonzaga viveu em Moçambique até a morte,

onde recebeu cargos e riquezas (PROENÇA in GONZAGA, 1998, p. 6).

2.2. Romance social e a Era Vargas:

Adiantando alguns séculos na investigação, mais precisamente em 1930, houve a

explosão do romance social nordestino. A produção de uma literatura social encaminhou a

prosa para o que Alfredo Bosi denominou de “realismo bruto” (2012, p. 411), estilo onde a

Literatura de Cárcere encontrou caminhos amplos para a sua representação. O primeiro

exemplo é João Miguel (1932) da escritora Rachel de Queiroz (1910 – 2003), uma ficção

psicológica sobre a vida em uma cadeia no interior do Nordeste e suas condições de

sobrevivência. Narra Rachel de Queiroz: “Empurraram João Miguel até a célula, donde vinha

um cheiro mau de morcego, de dejetos podres; o deixaram lá dentro, como um bicho

encurralado” (QUEIROZ, 2000, p. 8).

A obra da intelectual cearense mistura um pouco de fatalismo, de acaso (VILLAÇA in

QUEIROZ, 2000) para criar a atmosfera de um sistema injusto, mas depois encontrar certo

alento para a tensão de sua condição. Obra espacialmente carcerária, Rachel realizou em sua

literatura a representação do homem preso e sua peculiar sobrevivência.

Outro escritor foi José Lins do Rego (1901 – 1957), que surge representando a região

canavieira da Paraíba e de Pernambuco em um período de transição do engenho para a usina,

construindo o que denominou de “ciclo da cana-de-açúcar” (BOSI, 2012, p. 424). A

representação da prisão nesta temática regional construiu-se em Usina (1936), último livro

deste ciclo que retoma o protagonismo do personagem Ricardo após a experiência de O

Moleque Ricardo (1935).

A construção de um Ricardo migrante, estrangeiro, é também fruto da identificação do

personagem com o espaço carcerário da ilha-presídio que, por fatores alheios à sua vontade, se

tornou o lugar de identidade da nova fase do antigo moleque. Contudo, Usina é o fim de um

ciclo muito maior e que também se utilizou da prisão como ferramenta para a construção da

tensão crítica recorrente à sua geração (BOSI, 2012, p. 419).

Mas é com o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892 – 1953) que o cárcere encontra

o laço marcante entre experiência e literatura dessa época. Primeiro vamos aos fatos: Graciliano

Ramos foi preso em Maceió, no dia 3 de março de 1936, e foi liberado de Ilha Grande, no estado

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BRAIDA, Ricardo

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da Guanabara, somente no dia 13 de janeiro de 1937. De maneira kafkiana embarcaram-no

primeiro para Recife e depois seguiu no porão do navio Manaus, para o Rio de Janeiro.

Permaneceu na Casa de Detenção junto a presos políticos e na Ilha Grande junto a presos

comuns, até ser libertado (MIRANDA in RAMOS, 2008, p. 681). Era uma das mais

importantes figuras presas pelo Regime Vargas, e fora encarcerado sem nunca receber uma

denúncia formal, supondo-se que seria por sua forte identificação com o pensamento

comunista, o que na época representava motivo suficiente para vigiar e punir um cidadão sem

grande consideração aos princípios jurídicos vigentes (FAUSTO, 2010, p. 362). Durante o

período em que esteve preso, Graciliano chegou a fazer apontamentos obtidos em largos dias e

meses de observação, mas num momento de aperto foi obrigado a atirá-los na água (RAMOS,

2008, p. 14).

“Isto nos leva a pensar numa das suas qualidades fundamentais: respeito pela

observação e amor à verdade. Como escritor, era compelido por força

invencível a registrar os frutos da observação segundo os princípios da

verdade. Apesar de toda a severidade para com a própria obra e pavor vaidoso

de lança-la à publicidade, não pôde deixar de escrever, estilizar ou, mais tarde,

registrar o que via. No tremendo porão do navio, na cela, na colônia

correcional, quando o horror ou o tédio da situação o levavam ao jejum, à

repulsa do mundo, vai anotando a sua experiência febrilmente, sem parar. Era

uma vocação imperiosa, vencendo peia, timidez, pudor, desconfiança,

tornando-o um „servidor da vida‟, no sentido de que esta o estimulava e

perturbava, nele e fora dele, obrigando-o a lhe dar categoria de arte.”

(CANDIDO, 2006, p. 81-82).

Somente depois de passados dez anos da experiência de ter sido preso é que Graciliano

retomou a questão, com o distanciamento necessário para que a representação da memória

pudesse construir “uma verdade convencional e aparente, uma verdade expressa de relance nas

fisionomias” (RAMOS, 2008, p. 15). O resultado dessa lembrança é a obra póstuma e

incompleta Memórias do cárcere (1953), de extensão peculiar para o sintético escritor. O livro,

narrado a desgosto em primeira pessoa (RAMOS, 2008, p. 15), utiliza de malabarismos para

que o autor se identifique em "uma fala emudecida que se vê postulada como linguagem do

outro” (MIRANDA, 2000, p. 50), permitindo que a representação seja construída sem que

precise corresponder com a percepção real do vivenciado (BAKHTIN, 2011, p. 35). A escrita

de testemunho de Graciliano Ramos, desenvolvida a partir do seu mergulho nos subterrâneos

sociais, relativiza a realidade objetiva, situando-se na interseção de memória e engajamento;

ficção e historiografia (BOSI, 2008, p. 221). Ademais, antes mesmo da publicação de suas

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memórias sobre a experiência na prisão, o escritor alagoano já havia revivido de algum modo a

experiência de ser jogado para as trevas do cárcere (RAMOS, 2000, p. 30) em Vidas Secas

(1938), quando narra a prisão do personagem Fabiano no capítulo Cadeia. O cárcere, para

Graciliano, era um dos pontos chave da tensão que a escrita criava entre sociedade e indivíduo.

2.3. Censura e Regime Militar

Durante o período do regime militar brasileiro (1964 – 1985), órgãos de censura foram

instalados e uma repressão contra ideias revolucionárias virou ordem no país. Até mesmo

universidades, como a UNE, “criada com propósitos renovadores” (FAUSTO, 2010, p. 647),

foram consideradas subversivas pelos militares.

Nessa época houve o exílio de grande parte da intelectualidade política e artística do

Brasil. Fora do país, Chico, Caetano, Ferreira Gullar, dentre outros, escreveram suas canções e

poesias sobre os desalentos da vida de estrangeiro. Não podendo ser diferente, a Literatura de

Cárcere também encontrou seus vozes em meio a esta repressão generalizada. Livres do

silêncio da censura militar, os intelectuais da época produziram textos que ajudaram a delatar as

estratégias de tortura empregadas nos anos de chumbo. Livros como Cartas da prisão (1971) de

Frei Betto (1944), Igreja no cárcere: diário e reflexões de um sacerdote nos porões do DOPS

do padre José Eduardo Augusti e O que é isso companheiro? (1984) de Fernando Gabeira

(1941) são alguns dos diversos exemplos de obras que discorrem, no todo ou em capítulos, as

experiências nos porões dos presídios controlados pelo governo da época. Nesse sentido,

Gabeira intitula o capítulo que narra os tempos de cadeia como o lugar “onde filho chora e a

mãe não ouve”.

3. A LITERATURA DE CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO

Partindo das etapas anteriores, este estudo se prende agora a alguns questionamentos:

Por onde caminha a Literatura de Cárcere no cenário nacional? Por que este discurso

marginalizou-se justo no atual período democrático? Seria o cárcere um tema contemporâneo?

Sabendo da importância e da fugacidade de um momento histórico, o contemporâneo

precisa ser encontrado entre o passado que o precede e o passado que se tornará. O seu presente

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BRAIDA, Ricardo

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é a chave para a busca. Nesse sentido, iniciemos o conceito pela busca vernacular: o dicionário

Aurélio define o contemporâneo como: “Que é do mesmo tempo, que vive na mesma época

(particularmente da época em que vivemos); [...] “indivíduo do mesmo tempo ou do nosso

tempo” (1993, p. 142). A partir deste sentido pode-se destacar o contemporâneo como um

momento que existe em relação a um marco referencial de um determinado espaço e tempo.

Partindo de uma delimitação histórico-política, o contemporâneo deste ensaio é definido a

partir da atualidade democrática brasileira, entendida entre a promulgação da Constituição

Federal de 1988 e o corrente ano de 2015.

A democracia é uma forma de governo representativo que tem um “efeito tonificante da

liberdade”, de acordo com o filósofo John Stuart Mill (apud MACKENZIE, 2011, p. 118), ou

seja, uma forma que estimula a liberdade de opinião e a representação política perante a

sociedade. A origem da palavra democracia é grega: “Demos”, que significa povo, e “Kratos”,

que significa poder. Portanto, o governo “pelo povo”, e não somente “do povo”, para que não

haja uma versão distorcida do que é “melhor para o povo” (MACKENZIE, 2011, p. 111). Com

o advento da atual era democrática criou-se a ilusão da liberdade de expressão, Direito este

normatizado na Constituição Federal de 19882

, como se o princípio fosse pleno. O

constitucionalista Pinto Ferreira faz uma análise jurídica desta garantia:

“O Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da

liberdade, que é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da

exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição

da censura” (apud MORAES, 2008, p. 45).

Entretanto, conceder a liberdade de exteriorizar opiniões não significa que estas

opiniões terão uma projeção democrática3. A Literatura de Cárcere brasileira encontra-se

emudecida nesta forma de governo que, em teoria, possibilitaria a liberdade e a participação

popular. Há uma produção literária de pouca repercussão que traduz o atual sistema prisional

por quem viveu a experiência, como as obras de Luiz Alberto Mendes, Hosmany Ramos e

André du Rap, autores à margem das publicações destacadas. Érica Peçanha do Nascimento,

em sua obra intitulada Vozes marginais na literatura, define marginal:

2 A chamada Liberdade de pensamento está prevista no art. 5º, inciso IV, e art. 220, § 2º, da Constituição da

República Federativa do Brasil. 3 Dados investigados pelo grupo Wikileaks demonstram que 70% dos meios de comunicação no Brasil estão

concentrados nas mãos de apenas seis famílias. Para maiores informações ver: http://blogs.estadao.com.br/jamil-chade/2013/02/02/entrevista-com-assange-e-bom-que-os-governos-tenham-me

do-das-pessoas/?doing_wp_cron=1360170683.4785699844360351562500. Acessado em 1º de agosto de 2014.

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[...] marginal adjetiva aqueles que estão em condição de marginalidade em

relação à lei ou à sociedade e possui, portanto, sentido ambivalente: assim

como se refere, juridicamente, ao indivíduo delinquente, indolente ou

perigoso, ligado ao mundo do crime e da violência; aplica-se

sociologicamente, aos sujeitos vitimados por processos de marginalização

social, como pobres, desempregados, migrantes ou membros de minorias

étnicas e raciais, e tem como sinônimo o adjetivo marginalizado (2009, p. 36).

O cárcere já é um objeto marginal por si próprio. A estranheza desta condição na

democracia contemporânea se deve à sua nova forma de isolamento. Calado em um mundo

subterrâneo, a pena de prisão tornou-se uma arte de punir incontestável na atual política. Para

Foucault, em Vigiar e punir, “a generalidade carcerária, funcionando em toda a amplitude do

corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir, baixa o

nível a partir do qual se torna natural e aceitável ser punido” (2009, p. 287).

É sintomático constatar que a Literatura de Cárcere de maior relevância no cenário

nacional dos últimos anos é Estação Carandiru do médico Drauzio Varella, narrativa

construída a partir da visão de um profissional da saúde sobre o sistema penitenciário de São

Paulo, mas que nunca sofreu no corpo o castigo de um condenado. Para que o discurso do

cárcere se tornasse um produto de consumo era preciso sofrer um deslocamento: sair das mãos

dos condenados e passar ao domínio de um escritor que atende aos requisitos exigidos pela

indústria cultural da atualidade.

Max Horkheimer e Theodor Adorno na obra A indústria cultural (1947), propuseram

que a indústria cultural é um instrumento dopante e conformista utilizado pelos meios de

comunicação. O controle exercido por esta indústria é promovido por programas de

entretenimento (ou amusements, como denominavam os filósofos) que, de maneira

sub-reptícia, validam suas opiniões através da alienação das massas. Um discurso que prega aos

espectadores uma condição de vida ascética e de rápido consumo, propagadora da ideia de que

uma existência desumana pode ser tolerada (ADORNO, 2000, p. 200). Adaptar-se a esta nova

relação não se torna uma questão de escolha, mas de imposição para a inclusão social. “Quem

não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência

espiritual do isolado. Excluído da indústria é fácil convencê-lo de sua insuficiência”

(ADORNO, 2000, p. 181).

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BRAIDA, Ricardo

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Esta perspectiva deixa evidente o deslocamento do objeto-cárcere para a marginalidade

neste processo de alienação violenta ou de violência alienante proposto pelo amusement.

Horkheimer e Adorno vão além:

O prazer congela-se no enfado, pois que, para permanecer prazer, não deve

exigir esforço algum, daí que deva caminhar estritamente no âmbito das

associações habituais. O espectador não deve trabalhar com a própria cabeça

[...]. Toda conexão lógica que exija alento intelectual é escrupulosamente

evitada (2000, p. 185).

A explosão de banalidades democráticas no entretenimento operante reflete a

impossibilidade do surgimento de vaga-lumes, imagem proposta por Didi-Huberman em sua

leitura sobre a obra Pasolini, no estudo Sobrevivência dos vaga-lumes. Em consonância a esta

imagem, o excesso de claridade dos meios de comunicação ofuscam tanto a escuridão quanto os

vaga-lumes, tornando-os incapazes de iluminar e revelar as trevas esquecidas pelo superficial

divertimento. Esta é a condição imposta pela “ofuscante claridade dos „ferozes‟ projetores:

projetores dos mirantes, dos shows dos políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de

televisão” (2011, p. 30).

O protesto de Pasolini, em seu texto sobre os vaga-lumes, mistura

inextricavelmente os aspectos estéticos, políticos e até mesmo econômicos

desse „vazio do poder‟ que ele observa na sociedade contemporânea, esse

poder superexposto do vazio e da indiferença transformados em mercadoria

(2011, p. 31).

No entanto, diferentemente da presente realidade de indiferença da população sobre o

sistema penal, houve épocas de explosões da Literatura de Cárcere, como nos períodos citados

no capítulo anterior 4 . A curiosidade ao apontar estas produções literárias de períodos

autoritários distintos – seja no Brasil Colônia, na Era Vargas, ou na Ditadura Militar – reside no

fato de que os escritores que produziram este gênero do discurso literário eram sempre advindos

de uma elite cultural, uma elite capaz de expressar e reverberar suas experiências através dos

meios de comunicação de suas respectivas épocas. Mais do que isso, estes artistas contavam

com uma identificação econômico-social da crítica especializada e das classes sociais elevadas.

Mas, com o declínio da Ditadura Militar (1979), os últimos presos considerados “políticos”

4 Em tempo, cabe aqui elucidar que o presente trabalho não pretende comparar a qualidade ou a estética das

Literaturas do passado com as escritas do presente. Trata-se de perceber que, em tempos democráticos, não

interessa mais a experiência do preso, não é pertinente o discurso do encarcerado.

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receberam a justa anistia, porém condenando a Literatura de Cárcere a um silêncio de anos.

Com o fim dos delitos políticos, toda uma classe intelectual deixou as celas, restando apenas a

população carcerária constituída pelos popularmente apelidados de “criminosos comuns”.

Destituído o governo das Forças Armadas e conquistada a tão esperada liberdade de expressão,

a política brasileira, enfim, realizou-se como uma República democrática, apesar da crônica

desigualdade social estimulada pela consagração do capitalismo com a queda do muro de

Berlim (1989). O novo governo brasileiro, que se apoiou na globalização e no liberalismo

econômico da década de noventa, se viu diante de um crônico cenário de miséria e de uma

dívida internacional impagável, como em toda a América Latina dominada pelas ditaduras que

se mantinham no poder através de apoios financeiros internacionais. Meio a esta transformação

social e econômica, foi preciso adotar uma estratégia de controle para a gestão da miséria

interna: “punir os pobres” para regular-se economicamente. O sociólogo francês Loïc

Wacquant elucida esta política:

[...] desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela

desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado

e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado

urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do

aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira

“ditadura sobre os pobres” (2001, p. 10).

A penalização da pobreza não é fato novo na era moderna. De acordo com os penalistas

alemães Rusche e Kirchheimer, na obra Punição e estrutura social, publicada na Alemanha de

1939, os métodos de punição sofreram uma mudança gradual e profunda em fins do século

XVI, que “não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento

econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à

disposição das autoridades” (2004, p. 43). O surgimento de grandes centros urbanos criou uma

demanda crescente por bens de consumo. A necessidade de mão-de-obra para a produtividade

do trabalho obrigou as classes proprietárias a apelarem ao Estado para garantir o capital e a

ordem social. Apoiada na “Ética protestante e o „espírito‟ do capitalismo”, como escreveu Max

Weber, a burguesia empresarial se viu amparada por deus para seguir com seus interesses

pecuniários e transformar a mendicância em delito, fazendo com que as prisões se tornassem

uma reserva de material humano para o crescente mercado. Neste jogo de poder, as autoridades

financiavam a construção de novas prisões com impostos e doações, instaurando sua “punição e

estrutura social” no sistema capitalista moderno (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 43 –

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82). De acordo com Michel Foucault, “nessa linha, Rusche e Kirchheimer estabeleceram a

relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam” (2009,

p. 28).

Reconduzindo deste ponto de vista histórico ao presente momento, a penalização da

pobreza na democracia contemporânea surge como solução política para que esta forma de

governo pudesse ser plenamente realizada, desta vez sem a incômoda presença de presos

advindos das elites culturais que já haviam conquistado sua liberdade. Apoiada pelo discurso

democrático, a vigente República Federativa do Brasil conseguiu, finalmente, transformar a

prisão em uma ferramenta inquestionável de punição. Com a aprovação popular e um consenso

sobre a periculosidade dos crimes, os presos foram isolados em um vazio de vozes

ensurdecedor. Esta posição fundamental é demonstrada por Foucault: “Levado pela

onipresença dos dispositivos de disciplina, apoiando-se em todas as aparelhagens carcerárias,

este poder se tornou uma das funções mais importantes de nossa sociedade” (2009, p. 288). Em

suma, a democracia contemporânea conseguiu o paradoxo de pregar liberdades e igualdades e

alcançar, com este disfarce, um estratégico consenso da opinião popular. Essa grande

organização carcerária reúne todos os dispositivos disciplinares que funcionam disseminados

na sociedade (FOUCAULT, 2009, p. 283). Mesmo sem viver em uma democracia, o iluminista

Cesare Beccaria já havia denunciando no ano de 1764, em sua obra Dos delitos e das penas,

esta estratégia de convencimento:

[...] em alguns governos que têm toda a aparência de liberdade, a tirania se

esconde ou se introduz, despercebida, em algum canto descuidado pelo

legislador, ali tomando força e engrandecendo. Os homens erguem, na

maioria das vezes, os diques mais sólidos à tirania aberta, mas não enxergam o

inseto imperceptível que os corrói, abrindo ao rio avassalador um caminho

tanto mais seguro quanto mais oculto (2005, p. 81 – 82).

O corrosivo progresso desta incontestável política criminal se multiplicou com o passar

dos anos, gerando superpopulações carcerárias em verdadeiras “cidades penitenciárias”, como

descreve o livro Estação Carandiru do médico Drauzio Varella:

A detenção tem mais gente do que muita cidade. São mais de 7 mil homens, o

dobro ou o triplo do número previsto nos anos 50, quando foram construídos

os pavilhões. Nas piores fases, o presídio chegou a conter 9 mil homens

(VARELLA, 1999, p. 16).

Ou como diz a poesia de Jocenir:

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Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros, Mogi, Jardim

Brasil, Bela Vista, Jardim Ângela,

Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis.

Ladrão sangue bom tem moral na quebrada.

Mas pro Estado é só um número, mais nada.

Nove pavilhões, sete mil homens (JOCENIR, 2001)

Para que a argumentação torne-se palpável, alguns números se tornam imperiosos: de

acordo com dados do corrente ano de 2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população

carcerária no Brasil alcançou a marca de 715.655 presos para 210 mil vagas no sistema. Se for

levado em consideração os mandados de prisão que estão em aberto, a cifra chega a 1.089.646

de pessoas. Estes números demonstram que hoje o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de

países com maior população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos (1º) e China (2º)5.

Aprofundando esta análise, de acordo com dados do DEPEN (Departamento Penitenciário

Nacional) e do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) recolhidos no ano de

2012, cerca de 63% dos presos possuem, no máximo, Ensino Fundamental incompleto. Além

disso, 57,47% dos encarcerados são negros ou pardos, enquanto brancos representam um total

de 33,76%6.

No cenário contemporâneo restaram os excluídos de sempre, como precisamente define

o título da série americana, Orange is the new black7 (2013), ou como escreveu Marcelo Yuka

em uma de suas várias letras políticas, “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”

(1994). A atual política criminal nacional, aprendendo inevitavelmente com os erros do

passado, opera em mundo capitalista-globalizado que se legitima através de um perigoso e

incontestável discurso democrático que pune somente os descendentes sociais do passado

histórico de exploração no país. Ao refinar sua seletividade, o sistema penal coage, com seu

aparato policial e jurídico, uma classe sem voz, em uma reprodução particular da política

estadunidense de punição liberal-democrática. Loïc Wacquant reflete:

A penalização da pobreza relembra assim, a todos e enfaticamente, que, pelo

simples fato de existir, a pobreza já constitui um atentado intolerável contra

este “estado forte e definido de consciência coletiva” nacional, que concebe a

5 Ver a página

http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28746%3Acnj-divulga-dados-sobre-no

va-populacao-carceraria-brasileira&catid=223%3Acnj&Itemid=4640. Acessado em 1º de agosto de 2014. 6 Para maiores informações consultar o site http://ghlb.files.wordpress.com/2013/04/c2a0estastc3adsticas.pdf.

Acessado em 1º de agosto de 2014. 7 A cor laranja é uma referência aos uniformes usados pelos detentos nos Estados Unidos.

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América como uma sociedade afluente e que oferece “oportunidade para

todos” (2007, p. 42).

O Brasil democrático inverte valores, satisfazendo-se com a tentação positivista

representada pelo aumento nas estatísticas de presos e “autos de resistência” em operações

policiais. Esta postura de indiferença aos princípios da dignidade da pessoa humana é

estimulada pelo autoritarismo dos meios de comunicação e o seu devido espaço publicitário,

que transmitem uma possibilidade de consumo rápido e alienação confortável. Em consonância

demonstra Zaffaroni, revelando a alienação estimulada pelas publicidades superficiais:

Este novo autoritarismo [...] se propaga a partir de um aparato publicitário que

se move por si mesmo, que ganhou autonomia e se tornou autista, impondo

uma propaganda puramente emocional que proíbe denunciar e que, ademais –

e fundamentalmente -, só pode ser caracterizado pela expressão que esses

mesmos meios difundem e que indica, entre os mais jovens, o superficial, o

que está na moda e se usa displicentemente: é cool. É cool porque não é

assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é

preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e

para não perder espaço publicitário (2007, p. 69).

A alienação política e intelectual somada aos discursos de poder das últimas décadas

disfarçaram a propagação fascista em propagandas democráticas, reinventando seu exercício

punitivo. Em Sobrevivência dos vaga-lumes, Georges Didi-Huberman, sobre a obra de

Pasolini, destaca a insurgência de um “fascismo radicalmente, totalmente e imprevisivelmente

novo” (2011, p. 26), em um processo de “violência” e “genocídio cultural”, como descritos

abaixo:

I – A violência:

“A primeira fase do processo foi marcada pela „violência policial (e) o desprezo pela

constituição‟, tudo isso mergulhado num „atroz, estúpido e repressivo conformismo de

Estado‟” (HUBERMAN, 2011, p. 26). A violência se torna uma prática natural, amparada por

discursos de exclusão que elegem inimigos públicos sem contestações. O preso tem o seu

devido lugar na sociedade de liberdades. É como se a condição de condenado fosse uma escolha

entre tantas outras oportunidades. O jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni coaduna com a

ideia de que o amálgama de conformismo e ilusão anestesiou a sensibilidade do homem à

alteridade.

[...] vende-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito

comum sancionando leis que reprimam acima de qualquer medida os raros

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vulneráveis e marginalizados tomados individualmente (amiúde são débeis

mentais) e aumentando a arbitrariedade policial, legitimando direta ou

indiretamente todo gênero de violência, inclusive contra quem contesta o

discurso publicitário (ZAFFARONI, 2007, p. 75).

II – O genocídio cultural:

Para que o processo se torne completo faz-se necessário o “genocídio cultural”. Nas

próprias palavras de Pasolini:

O verdadeiro fascismo [...] é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as

linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que „conduz, sem carrascos

nem execuções em massa, à supressões de grandes porções da própria

sociedade, e é por isso que é preciso chamar de genocídio „essa assimilação

(total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia (apud HUBERMAN, 2011,

p. 29).

O atual fascismo, potencializado pelos meios de comunicação, suprimiu a vontade

política dos cidadãos com a virtual possibilidade de uma plena vida burguesa. Para o filósofo

alemão Walter Benjamin, no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”

(1935/1936), “sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição

como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o

fascismo” (2012, p. 212). E segue em sua reflexão:

O fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar

as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele vê

sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua natureza, mas

certamente não a dos seus direitos (2012, p. 209).

Na obra Punição e estrutura social, os criminalistas Georg Rusche e Otto Kirchheimer

revelam uma política penal fascista de sua época (1939) que se reproduz nos discursos da

atualidade:

Um dado significativo da atual política econômica alemã é a necessidade de

manter baixo o nível de vida das camadas subalternas, para facilitar a

aceitação desse programa para as massas, faz-se um esforço considerável para

cultivar a distinção moral entre aqueles que são pobres, mas honestos, e o

extrato que se torna criminoso. Às massas são oferecidos os infortúnios de

alguns em contrapartida a uma melhora geral em suas condições materiais e

felicidades para todos (2004, p. 247).

A violência e o genocídio cultural impossibilitaram o aparecimento de novos

criminosos políticos como nos períodos ditatoriais. A democracia criminalizou o preso de outro

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NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO

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modo, como um comum que não revela o instinto político de sua ação. O criminoso como um

revolucionário em potencial foi soterrado por uma maioria democrática. É como se os

condenados do contemporâneo não questionassem a propriedade privada, não reclamassem por

igualdade, não resistissem pela escrita. Assim, pode-se perceber que se há diferença entre os

presos de hoje e os dos tempos ditatoriais talvez esta diferença esteja enraizada em uma

estratégia política de exclusão. A atual produção literária mergulha no espaço, no tempo e na

memória para resistir e sobreviver à sua época, como fez Graciliano Ramos ou Tomás Antônio

Gonzaga em seus tempos.

Esgarçando a proposta inaugural do conceito de contemporâneo pode-se ler a Literatura

de Cárcere da atualidade como contemporânea às Literaturas de Cárcere do passado, como

propõe Giorgio Agamben no ensaio O que é contemporâneo? “Pertence verdadeiramente ao

seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,

nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual” (AGAMBEN, 2009,

p. 58). O filósofo italiano propõe uma redefiniçao do contemporâneo a partir de

questionamentos inicias: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que

significa ser contemporâneo? ” (2009, p. 57). Para ele, ser contemporâneo não se define apenas

no agora, mas também em um “rechamamento”, uma revitalização daquilo que tinha até mesmo

declarado morto. Utilizando da estratégia de dissociação com seu tempo, sem com isso negá-lo,

o escritor pode tornar seu texto contemporâneo para além do presente:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,

que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente,

essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um

anacronismo (AGAMBEN, 2010, p. 59).

Para Agamben, como significa a palavra russa vek, a relação temporal é reflexo de uma

época ou século (AGAMBEN, 2009, p. 59). E é na fratura da vértebra do tempo ou dos séculos,

de modo a não coincidir plenamente com eles, em uma identificação anacrônica, que se pode

olhar nos olhos do contemporâneo, como diz o poema O século de Osip Mandel‟stӑm, citado

por Agamben. Ainda com Agamben: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é

aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a

quebra” (AGAMBEN, 2010, p. 61). Escrever sobre o cárcere da atualidade é ser um vaga-lume

entre seus contemporâneos deste gênero do discurso que sutura a história das prisões ao longo

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dos séculos. O homem encarcerado é desafiado a enxergar luzes furtivas em um facho de trevas

que provém do seu tempo:

[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele

perceber não as luzes, mas o escuro. [...] Contemporâneo é, justamente, aquele

que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena

nas trevas do presente (AGAMBEN, 2010, p. 62-63).

Neste emaranhado de um tempo vivo, irrecuperável, o contemporâneo pode representar

uma perspectiva autônoma em relação ao discurso histórico oficial. A perspectiva literária é

fundamental para a transformação. Para Agamben:

[...] é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de

transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de

modo inédito a história, de citá-la segundo uma necessidade que não provém

de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ela não

pode responder (2010, p. 72).

Assim, deslocar as narrativas das prisões na atualidade para outros tempos históricos

significa enlaçar os emaranhados deste ensaio: toda escrita sobre as prisões é contemporânea.

Pois não importa o lugar, não importa o tempo ou o crime, narrar o cárcere através da palavra

escrita é construir uma Literatura política.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estrutura do trabalho em uma cronologia de âmbito nacional serviu para demonstrar

os diversos registros da Literatura de Cárcere pelo passar dos séculos e dos sistemas políticos,

fornecendo uma coleção de obras que compõem um discurso literário de características

profundamente marcantes. As obras emprestadas a este estudo revelaram que a potência ou

ausência de obras em um determinado período pode revelar estratégias de poder para o controle

social.

De tudo, nada mais resta a concluir. Resta apenas encerrar estas linhas e deixar o

caminho aberto para novas leituras. A ideia do estudo foi somente a exposição de um ponto de

vista sobre um periscópio de possiblidades de entradas nesta Literatura tão profunda. A

conclusão deste trabalho não é o encerramento de um objeto que se pretende livre. O estudo se

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fecha, mas o discurso não se tranca, é amplo e deve ser objeto de variadas interpretações para

que seu passado histórico não silencie, sua arte não se apague, seu protesto não seja vão.

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PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO.DUARTE, Silvia Valeria Borges,SOUZA,

Marcelino Conti de

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PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E

TRADIÇÃO.

DUARTE, Silvia Valeria Borges

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade

Federal Fluminense

[email protected]

SOUZA, Marcelino Conti de

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da

Universidade Federal Fluminense

[email protected]

RESUMO Este artigo aborda algumas mudanças verificadas na atuação dos passistas de escola de samba a

partir do fenômeno midiático da espetacularização do carnaval. Em meio a uma grave

econômica enfrentada pelo país, tal fenômeno oportunizou o desenvolvimento de uma carreira

artístico- profissional. Num instável mercado de trabalho, atuam, ora como bailarinos,ora como

coreógrafos, coordenadores de alas e até promotores de eventos. Entretanto, persiste um dilema

entre a tradição e a profissionalização, tanto no atuar como naforma de transmitir o

conhecimento dessa dança. Pretendo tratar neste artigo sobre quem são os passistas na

organização dos grêmios recreativos carnavalescos, como se transmite o conhecimento da dança

do samba, como se dá a formação de um passista e quais as possíveis formas de atuação

profissional desse sambista.

Palavras-chave: Escola de samba – Arte – Profissionalização

INTRODUÇÃO

Duranteséculos a acepção do trabalho foi de sofrimento,sua etimologia remete ao termo

em latim tripaliare, que quer dizer “martirizar com o tripalium”, um instrumento

detortura. Anossa percepção atual do mundo do trabalhose apresenta distintodesua

origem, apesar de encontramos váriassituaçõesem que o étimo ainda prevalece.

No último século assistimos mudanças significativas nas relações laborais,na

intervençãoestatal nestas relações,quesaiu da omissão total passando poruma

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PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO.DUARTE, Silvia Valeria Borges,SOUZA,

Marcelino Conti de

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regulamentação forte deproteção ao trabalhador, paraagorarelativizar o seu papelnessa

relação, permitindo mudanças da legislação trabalhista.

A intersecção entre o“mundo do samba” e o “mundo do trabalho”sempre

apresentou uma conjectura de menor intervenção do Estado no que se refere às relações

laborais,contribuindo para isso as profissõesnão regulamentadas eos regimes

decontratação de mão de obra precarizados, o que antecipou desta forma a “arte de

fazer”1 de uma recente flexibilização do Direito do Trabalho.

Ter trabalho no mundo do samba significa ter dedesempenhar inúmeras funções

em diversos postos nos bastidores do espetáculo carnaval. Se o ápice desteshow se dá

no momento do desfile, para o sambista de verdade o carnaval dura o ano inteiro.

Nos barracões das escolas de samba, profissões como ferreiro, carpinteiro e costureira,

aderecistas e decoradores, são conhecidas e seus postos de trabalhos “permanentes”; em

contrapartida, outras atividades não são,ainda, plenamente reconhecidas como

profissões, como no caso dosritmistas,passista e até recentemente mestre sala e porta

bandeira.

Neste artigotrataremos sobre quem são, como se transmite o conhecimento da

dança do samba, como se dá a formação de um passista e quais as possíveis formas de

atuação profissional desse sambista, como foram alcançados pela flexibilização dos

direitos do trabalho,aplicada neste trabalho como as mudanças da legislação trabalhista

que tem como base a discricionariedade dos atores sociais sob a aplicação dos

dispositivos legais, relativizando o seu significado e a consequente redução de sua

aplicação.

Considerando o passista como agente de uma pratica cultural com grande diversidade de

conhecimentos, proponho pensar as questões que aqui abordarei a partir de uma

perspectiva epistemológica plural e dinâmica, como é o próprio samba, trazendo à roda2

1 Michel Certeau chama de “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os

objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Ele

acredita nas possibilidades de a multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos impostos

pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um procura viver, do melhor modo possível, a

ordem social e a violência das coisas. 2 Roda se samba, roda de passista, ritual de encontro de sambistas para fazer o samba em suas diferentes

formas de expressão artística, cultural e religiosa. Forma comum presente nas culturas da diáspora

africana, lugar de criatividade e improviso.

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Marcelino Conti de

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o conhecimento dos passistas, de pesquisadores e de autores dos campos das ciências

sociais e jurídicas.

Escolhemos passistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, Grêmio

Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e Grêmio Recreativo

Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio por já terem sido essas escolas locais de

observação para pesquisas anteriores e por serem os entrevistados sambistas

importantes nessas escolas e no mundo samba.

Nilce Fran e Valci Pelé são professores de dança do samba e fundadores do Instituto de

Cultura e Cidadania Primeiro Passo (ICCPP), coordenam a ala de passistas do GRES

Portela, promovem eventos eatuam como passistas-show;Almir Romeroé professor de

dança do samba e passista-show, vive há dezoito anos em Londres; Fábio Batista é

dançarino e coreógrafo; Celyho Show é passista-show, promotor de eventos e

recepcionista do Clube de Oficiais da Aeronáutica; Serginho Sambista é passista-show.

Pensar a arte como ação coletiva é um caminho teórico por nós escolhido para a

compreensão das tensões entre a genialidade criativa e individual de cada passista,sua

inserção e existência no grupo maior que é ala e sua circulação no mundo

profissional/artístico de múltiplas rotas das escolas de samba (BACKER,1997).

Na década de 1980, autores como Lopes (1981) e Rodrigues (1984) viram na

informalidade dessas carreiras, o resultado da apropriação cultural por elementos

estranhos a cultura do samba que vieram a ocupar posição de dirigentes e diretores das

agremiações. Atualmente, pensar a profissionalização do passista requer a compreensão

de uma singular rede de cooperação que visa constituir o mundo carnavalesco da arte,

especifico das escolas de samba, mas não restrito a elas; e para essa melhor

compreensão, lancei mão das pesquisas de Santos (2009) e Gonçalves (2010),

respectivamente, sobre carnavalescos e casais de mestres-salas e porta-bandeiras. Esses

autores destacam a mediação e as redes de sociabilidade como fatores favoráveis a

profissionalização do sambista.

“O abre alas (no mundo do trabalho) que eu quero passar”.

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5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO

Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n.5, v.7

PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO.DUARTE, Silvia Valeria Borges,SOUZA,

Marcelino Conti de

126

Magano (1991) atribui ao Direito do Trabalhouma definição mista: “conjunto de

princípios, normas e instituições, aplicáveis à relação de trabalho e situações

equiparáveis, tendo em vista a melhoria da condição social do trabalhador, através de

medidas protetoras e da modificação das estruturas sociais” .

Em particular odireito do trabalhobrasileironasceu em uma época de

prosperidade econômica ede estabilidade das relações jurídicas,permitindoa elaboração

de umalegislação exaustiva edetalhada dascondições de trabalhoa fim de contemplar

asolução dos conflitosregulamentando asrelações de trabalho com forte intervenção do

Estado.

O período pós abolição até a década de 30, considerado o primeiro período do

Direito do Trabalho no Brasil, caracterizou-se por relações trabalhistas incipientes com

relevante uso de mão de obra de imigrantes assalariados no setor agrícola ena emergente

industrilização do eixoRio-São Paulo. Após essa época, dá-se início ao período

principal de institucionalização do Direito do Trabalho, o estadopassa a intervir nas

relações trabalhistascom o intuito de darum equilíbrio nas relações laborais,a

política“populista”de Getulio Vargas justificavaasações paternalistas do Estado por se

considerar o empregado a parte frágil e menos favorecida e hipossuficiente na relação

de trabalho.

Nos dias atuais, estemodelo de Direito do Trabalho que garantia atutela dos

trabalhadores, tem sido apontado pelos economistas como umdos motivos para que o

mercado de trabalho venha diminuindo a cada ano, por causa de sua rigidez e seus

altos custos nas relações de trabalho. A legislação protetiva tem nos diasde hoje um

efeito colateral depromovero desemprego.

Váriossão os fatores que promovem o desemprego, o uso denovas tecnologias, a

globalização e os mercados livres promovem aextinção depostos de empregos,

promovendo o desemprego estrutural. As crises econômicasem suaface mais cruel é o

desemprego,e nestesmomentos, surgem com força a ideologia dominante do

liberalismo, propondo a desregulamentação do Direito Trabalhistacom suas

flexibilizações, terceirizações, racionalização de custos, competitividade, que numa

visão mais profunda potencializa a criseno mundo do trabalho.

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Marcelino Conti de

127

Os elementos caracterizadores da relação de trabalho - pessoalidade,

habitualidade, subordinação e onerosidade - estão presentes na atuação do passista de

escola de samba, sendo este último o mais inconsistente de todos. A palavra

flexibilização, definida como ato ou efeito de flexibilizar, tornar flexível, no campo do

Direito, além deste sentido etimológico,"flecto, flectis, flectere, flexi, flectum" (curvar,

dobrar, fletir), ganha um sentido, figurado: mudar de curso, mudar de posição, mudar

a situação(SILVA, 2002). “È o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir,

diante de situações que o exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir

os seus comandos” (NASCIMENTO, 2003).

No Direito do Trabalhoessaflexibilizaçãotem buscado aampliação da jornada

de trabalho, bem como a mobilidade interna dos empregados na distribuição dos

serviços; no âmbito salarial, visa a redução dos salários, determinados livremente pelo

nível de mercado; e, ainda, no âmbito da formalização do emprego, a estratégia de

viabilizar a demissão sem custos e a implementação da contratação por prazo fixo e da

subcontratação.

Tema Legislação Observações

Flexibilização

da alocação

do trabalho

Trabalho por tempo

determinado

Lei 9601/1998 Desvincula o contrato por prazo

determinado da natureza dos

serviços prestados

Denuncia da

convenção 158 da

OIT

Decreto

2100/1996

Elimina mecanismo de inibição de

demissão imotivada e reafirma a

possibilidade de demissão por justa

cauda

Cooperativas

profissionais ou de

prestação de serviços

Lei

8949/1994

Possibilita que trabalhadores se

organizem em cooperativa de

prestação de serviços, executem o

trabalho dentro de uma empresa,

sem caracterização de vinculo em

pregatício

Trabalho em tempo

parcial

MP 1709/1998 Jornada de até 25h semanais,

salários e outros direitos em

conformidade com a duração da

jornada, não prevê a participação do

sindicato na negociação

Suspensão do

contrato de trabalho

MP 1726/ 1998 Jornada de até 25h semanais,

salários e outros direitos em

conformidade com a duração da

jornada, não prevê a participação do

sindicato na negociação

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128

Trabalho temporário Portaria 2/1996 Amplia a possibilidade de

utulização da lei 6019/1974 de

contrato temporário

Setor público

demissão

Lei 9801/1999

e lei

complementar

96/1999

Disciplina limites das despesas com

pessoal e estabele o prazo de dois

anos pás as demissões por excesso

de pessoa. Regulamenta a demissão

de servidores públicos estáveis por

excesso de pessoal

Contrato

aprendizagem

Lei10097/2000 Permite a intermediação da Mao de

obra aprendiz

Trabalho estagio MP2164/1999

LEI 6494/1977

Amplia hipótesesdfe utilização do

estágio desvinculada da formação

acadêmica e profissionalizante

Flexibilização

da

remuneração

Participação nos

lucros e resultados

MP1029/1994

., Lei 10101 a

partir de

09/12/200, que

reproduza

MP198277/200

Viabiliza direito de trabalhadores

participarem de lucros e resultados,

através de nedociação,determinaque o

valor da remuneração em PLRnão

incide sobre encargos trabalhistas e não

e incorporado ao salário, introduz a

possibilidade de mediação e

arbitragem publica ou privada, define

periodicidade minima de 6 meses na

distribuição dos benefícios da PLR,

focaliza a negociação na empresa, retira

o foco da mobilização por salário

real/produtividade, introduz terras da

agenda empresa na negociação

Politicasalarial(plano

real)

MP 1053/94 Elimina a política de reajuste

salarial através do estado, proíbe as

clausulas de reajuste automático de

salario e procura induzzir a livre

negociação, com controle para não

haver reajustes real nem nas

negociações nem no judiciario

Salário Minimo MP1906/97 Acaba com o índice de reajuste

oficial de correção do salário

mínimo, sendo seu valor definido

pelo poder executivo, sob

apreciação do congresso

Flexibilização

do tempo de

trabalho

Banco de horas Lei 9061/98 e

MP 1709/98

Possibilita que a jornada seja

organizada anualmente conforme as

flutuações da produção ou serviço e

amplia para um ano o prazo de

compensação das jornadas semanais

estraordinarias de trabalho através

de acordo ou convenção coletiva

Liberação dos

trabalhos aos

Domingos

MP 1878-

64/99

Autoriza apartir de 9 de novenbro

de 1997, o trabalho aos domingos

no comercio varejista de geral sem a

previsão de passar por negociação

coletiva.

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129

“O abre alas (no mundo do samba) que eu quero passar”.

Há diferentes ciências e saberes envolvidosno “fazer” carnaval. Uma expressiva

diversidade de profissionais das áreas técnica e artística se movimentam neste dinâmico

mundo das escolas de samba. Não é de hoje que se discutempossíveis caminhos de

profissionalização para o sambista. A presença de profissionais tecnicamente

especializados em certas atividades nos carnavais da cidade do Rio de Janeiro “já

acontecia antes do início do século XX”, como nos informa Santos (2009) em pesquisa

sobre carnavalescos no Rio de Janeiro, uma das categorias que primeiro

profissionalizou-seno carnaval carioca.

Se para alguns segmentos da escola de sambaa profissionalização é algo recente, o

mesmo não podemos dizer sobre os passistas, cujas atuações profissionais começaram

nos palcos do Teatro de Revista, no final dos anos 50. Sambistas como Dona Chininha3,

expresidente do GRESEP Mangueira, filha de Dona Neuma e neta de Saturnino

Gonçalves, personalidades importantes da fundação da escola, confirma essa

informação dizendoque não se ouvia falar em passista antes dos anos 50.

Ganharam visibilidade empalcos fora da escola da escola de samba, com Carlos

Machado – o Rei da Noite, que em 1958 recrutou sambistas oriundos de Mangueira,

Império Serrano, Salgueiro e Portela para participarem do musical “MillionDolar,

Baby” que seria apresentado na Night end Day,a mais luxuosa casa de espetáculos da

capital Federal. Diante da falta de aparatos técnicos e da dificuldade em adequar a

performance dos sambistas ao reduzido espaço, se comparado aos terreiros das escolas

de samba com os quais estavam habituados a se apresentarem, decidiu convocar Tijolo,

considerado um dos mais expressivos solistas da dança do samba da época

(REGO/1996). Acredita-se que os passistas se estabelecem nas escolas de samba a partir

desta época.

Mas nesta época a qual nos referimos (anos 50/60),as escolas maiores desfilavam

com, no máximo, trezentos componentes, e destes, apenas uns dez eram passistas que

desfilavam em quase todas as escolas. Era um pequeno grupo que confeccionava sua

3Dona Chininha, cujo nome de batismo é Eli Gonçalves, é filha de Tia Neuma, a primeira pastora do

GRESEP Mangueira e neta de Saturnino Gonçalves, fundador do bloco dos Arengueiros (1923) que mais

tarde originou a escola.

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130

própria roupa, desconectada do enredo, em cores admissíveis em qualquer escola, como

branco, prata e dourado, e vinham sambando e brincando nos desfiles.

O surgimento das escolas de samba acontece num momento em que o Brasil busca

construir sua identidade nacional, valendo-se do modelo europeu de industrialização e

comercio de diversão:

O desenvolvimento do entretenimento e do turismo no país fora

pautado pelo esforço das elites em instalar uma "Europa possível" nos

trópicos, caracterizando os empreendimentos na área como parte de

uma modernização redentora. Ao longo desse processo, sob impacto

de cruzamentos políticos que centralizam a cultura como base da

aliança entre Estado e povo, o folclore e a paisagem tropical passam a

ser ressaltados como símbolos nacionais, sendo, então, deslocados

para compor o círculo desse novo mercado cultural. A combinação do

tema da nacionalidade com as ideias de território exuberante e povo

culturalmente singular forjara a conjunção da imagem de Brasil com a

sistemática cultural e de diversão, contribuindo para a

institucionalização do entretenimento-turismo, com posição central na

formação da nação. Ao longo do desenvolvimento desse mercado da

diversão centralizado no Rio, o carnaval desponta como peça-chave na

atração de turistas. Logo o Estado incorpora a folia ao patrimônio

simbólico da nação e ao seu "cardápio" turístico, investindo no

gerenciamento e publicidade da festa. Sua consagração como período

de satisfação também favorece as práticas mercantis de consumo, o

que instaura uma forte aliança com os empreendimentos comerciais. A

festa ganha grande dimensão, adquirindo status de marca registrada da

cidade e do país, o que demonstra o significado da cultura da diversão

para a sociedade nacional (FARIAS,2001).

Atualmente as escolas desfilam com até cinco mil componentes e destes, pelo

menos cem são passistas, tornando a oferta muito maior que a procura destes

sambistas/artistas. Entretanto, o engate entre economia, cultura e turismo faz parte dessa

nova trama social que existe num mercado expandido. A grandiosidade dos desfiles de

carnaval está diretamente conectada às transformações estruturais da sociedade pautada

do consumo de bens culturais como opção de lazer.

Poucos são os sambistas profissionais remunerados emescolas de samba. Passistas

profissionais podem atuar como dançarinos, em shows dentro e fora da escola; podem

ser coordenadores de alas, coreógrafos, promotores de eventos e professores de dança

do samba.

Considerando o passista como agente de uma pratica cultural com grande diversidade de

conhecimentos, proponho pensar as questões que aqui abordarei a partir de uma

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perspectiva epistemológica plural e dinâmica, como é o próprio samba, trazendo à roda4

o conhecimento dos passistas, de pesquisadores e de autores dos campos das ciências

sociais e jurídicas.

Escolhemos passistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, Grêmio

Recreativo Escola de SambaEstação Primeira de Mangueira e Grêmio Recreativo

Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio por já terem sido essas escolas locais de

observação para pesquisas anteriores e por serem os entrevistados sambistas

importantes nessas escolas e no mundo samba.

Nilce Fran e Valci Pelé são professores de dança do samba e fundadores do Instituto de

Cultura e Cidadania Primeiro Passo (ICCPP), coordenam a ala de passistas do GRES

Portela, promovem eventos eatuam como passistas-show;Almir Romeroé professor de

dança do samba e passista-show, vive há dezoito anos em Londres; Fábio Batista é

dançarino e coreógrafo; Celyho Show é passista-show, promotor de eventos e

recepcionista do Clube de Oficiais da Aeronáutica; Serginho Sambista é passista-show.

Pensar a arte como ação coletiva é um caminho teórico por nós escolhido para a

compreensão das tensões entre a genialidade criativa e individual de cada passista, sua

inserção e existência no grupo maior que é ala e sua circulação no mundo

profissional/artístico de múltiplas rotas das escolas de samba (BACKER,1997).

Na década de 1980, autores como Lopes (1981) e Rodrigues (1984) viram na

informalidade dessas carreiras, o resultado da apropriação cultural por elementos

estranhos a cultura do samba que vieram a ocupar posição de dirigentes e diretores das

agremiações. Atualmente, pensar a profissionalização do passista requer a compreensão

de uma singular rede de cooperação que visa constituir o mundo carnavalesco da arte,

especifico das escolas de samba, mas não restrito a elas; e para essa melhor

compreensão, lancei mão das pesquisas de Santos (2009) e Gonçalves (2010),

respectivamente, sobre carnavalescos e casais de mestres-salas e porta-bandeiras. Esses

autores destacam a mediação e as redes de sociabilidade como fatores favoráveis a

profissionalização do sambista.

4 Roda se samba, roda de passista, ritual de encontro de sambistas para fazer o samba em suas diferentes

formas de expressão artística, cultural e religiosa. Forma comum presente nas culturas da diáspora

africana, lugar de criatividade e improviso.

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132

A carreira do passista

Havia uma idéia com grande aceitação entre os sambistas de que o bom passista “já

nasce feito”, “tá no sangue”, ou “vem de berço”, uma evocação ao talento e a

genialidade inata. Em escolas de samba consideradas mais “tradicionais” os projetos de

formação de passistas ainda é visto por alguns com certa desconfiança. Nas culturas

afro-diaspórica, privilegia-se a transmissão oral. Ensinos sistematizados ainda

encontram certa resistência por parte dos mais antigos, defensores da “autenticidade” e

do “improviso”.

Atualmente, no Rio de Janeiro, pelo menos quatro escolas de samba do grupo

especial possui uma escola de formação de passista em seus bairros.5No bairro de

Madureira há o Instituto de Cultura e Cidadania Primeiro Passo, que privilegia o ensino

da dança do samba. Essas escolas preparam o passista para apresentações em quadra,

avenida de desfiles e palcos.

Com exceção da Portela, não há nas escolas de samba aulas commétodo

pedagógico estruturado para o ensino da dança do samba. Embora o instrutor ou

professor acabe impondo sua marca, cabe ao aluno, enquanto adquire o conhecimento

da dança, buscar seu próprio estilo, e assim diferenciar-se o que aumentará suas chances

no mercado de trabalho.

Para que um passista consiga ter algum reconhecimento e possibilidades de

atuação profissional, além de atingir o patamar técnico exigido, deverá criar e se manter

no “mundo do samba”. Ser passista não significa apenas saber dançar o samba, mas

introjetar, vivenciar outros conhecimentos carregados de símbolos e tradições

importantes para a comunidade daquela determinada escola. Ensaiar, conviver, ser

capaz de interagir, se articular, se apropriar desse universo e seus valores é o que os

qualificará para a função.

Todas formas de arte que conhecemos depende de uma rede de colaboração. Angariar a

simpatia de colaboradores é de suma importância para que as portas de trabalho se

abram. O passista depende da escola de samba para projetá-lo no mundo artístico -

porque o passista só existe atrelado à escola de samba -, e dos “elementos de apoio”

5 Portela, Salgueiro, Beija Flor de Nilópolis e Imperatriz Leopoldinense.

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133

como costureiras, sapateiros, manicures e cabeleireiros. O passista trabalha no centro de

uma ampla rede de profissionais colaboradores, cujo trabalho é essencial para o

resultado final (BACKER, 1997).

Em regra, é curta a carreira do passista, especialmente das mulheres. Sua atuação

depende totalmente de sua performance, e esta, por sua vez depende do vigor físico

individual. O auge da carreira do passista é na juventude, declinando conforme o

avançar da idade e o conseqüente envelhecimento. Não há uma consagração absoluta e

definitiva na carreira do passista, por isso até os mais premiados em suas escolas, são

submetidos a testes a cada ano. Como bem disse Toji “é „no pé‟ que quem samba deve

provar o que é capaz”, o que explica o fato do passista passar toda sua trajetória

buscando o reconhecimento do público e de seus pares.

Passistas de carteirinha

Nilce Fran e Valci Pelé são o que podemos chamar de passistas de carteirinha, assinada.

São empregados do GRES Portela. O trabalho deles consiste em coordenar os passistas

da escola, preparando-os para as apresentações, dentro e fora da escola, ao longo da

temporada de ensaios, que vão desde o mês de agosto até o carnaval e, principalmente,

para o grande dia do desfile oficial.

Ela está na Portela desde criança, seu pai foi um dos fundadores da Portela. Ele

chegou à escola no final da adolescência trazido por Nega Pelé, uma conhecida passista

da época. Ambos dedicam-se exclusivamente ao samba e ao carnaval, fazendo disso um

diferencial profissional em relação a outros coordenadores. Vivem do samba e para o

samba. Durante o ano fazem shows, organizam workshops, dão aulas em academias,

organizam eventos como, por exemplo, as famosas feijoadas comemorativas. A

dedicação é tão grande que segunda ela “não sobra tempo nem prá beijar na boca”.

Numa reunião marcada para após o termino do ensaio técnico, Nilce Fran advertiu que

excluiria da ala os faltosos e completou: “Passista não vai a casamento, batizado,

aniversário de mãe, de pai, de tio, primo, se cair em dia de ensaio [...] Eu não consigo

nem ter homem por causa disso, passista é compromisso, é comprometimento”.

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134

Até o final da década de 90 os responsáveis pelas alas de passistas (ainda não chamados

de coordenadores) tinham poucas atribuições. Selecionavam os passistas, cuidavam de

medidas de fantasia, controlavam a frequência e mais nada. Não havia coordenação

direta e constante como atualmente, no sentido de instruir, ensinar ou aprimorar a forma

de sambar de cada passista. O poder do coordenador limitava-se a selecionar, dentre os

candidatos, aqueles considerados bons passistas.

Hoje todas as escolas possuem, no mínimo, um coordenador, com diversas

atribuições: convoca, inscreve, identifica, ensina, coreografa, cuida da produção e

execução de pelo menos dois figurinos anuais para apresentações dentro e fora da

quadra, elaboraram escala de presença aos ensaios e demais eventos, aconselham

pessoal e profissionalmente, além de intermediarem trabalhos para a escola e para os

passistas.

Em regraos coordenadores nada recebem pelo trabalho que realizam, considerado

ainda, “mero exercício de atividade espiritual ou liberal” (NASCIMENTO, 2003),e os

que excetuam essa regra contam com uma “ajuda de custo”, cujo valor nenhum deles

revelou.

Se a remuneração para coordenadores é rara, para os passistas é simbólica. A

contraprestação que o passista recebe da escola é a fantasia e o direito de desfilar no

carnaval. Embora a estrutura organizacional das escolas de samba muito se assemelhe

ao mundo empresarial e do trabalho – cobra-se freqüência, horários, uniformes, e

controla-se condutas, como por exemplo, proibindo ingestão de bebida alcoólica durante

os ensaios – no que tange a remuneração de alguns grupos há praticamente um interdito

fundamentado na lógica do “amor a bandeira”, o amor devoto a escola de samba.

Em 2014,a poucas semanas do carnaval, Nilce Fran afastadado cargo de

coordenadora por ter faltado a um ensaio na Portela (sua escola empregadora) e ter sido

vista no ensaio de uma escola coirmã, pela qual tem grande simpatia, evidenciando que

a relação empregatícia numa escola de samba exige ainda exclusividade efidelidade,

valores oriundodas tradições de pertencimento e territorialidade.6

6 Nilce Fran foi vista, filmada e fotografada no ensaio técnico do GRESEP de Mangueira, onde desfilou

como “destaque de chão” (desfilante que ocupa um lugar privilegiado entre uma ala e outra) naquele ano.

Os Tribunais do Trabalho não consideram a exclusividade como elemento caracterizador da relação de

trabalho, entretanto, tal fator tem grande apelo e relevância no ambiente sócio-afetivo das escolas de

samba.

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PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO.DUARTE, Silvia Valeria Borges,SOUZA,

Marcelino Conti de

135

Após a saída de Nilce Fran, Valci Pelé seguiu sozinho com o trabalho naquele ano.

Poucos meses após o carnaval,ela foi readmitida pelo Presidente da Escola, sensível ao

clamorde muitos pelo seu retorno, e reconhecendo também seu trabalho e dedicação.

Durante a feitura deste artigo,a dupla de coordenadores foi convocada para uma

viagem à França, por dez dias, a trabalho, com outros representantes da Portela para um

encontro de artes em Lille e Nice, evento chamado “Trem do Samba”.7

Outra trajetóriaprofissional interessante é a de Fábio Batista, trinta e cinco

anos,participa dos desfiles de escolas de samba desde os seis,iniciou no Clube

Carnavalesco Escola de Samba Flor da Mina do Andaraí, passando depois pelo GRES

Unidos da Tijuca, Grêmio Recreativo Cultural Alegria da Passarela e Grêmio

Recreativo Cultural Aprendizes do Salgueiro. Desfilou em ala, depois como ritmista até

ganhar o concurso de Rei do Carnaval Mirim da Cidade do Rio de Janeiro e tornar-se

um passista. Saiu do chão dos terreiros e das quadras para os palcos.

Fábio acredita que percebeu o carnaval e a escola de samba como uma atividade

profissional ainda criança,quando ganhou o concurso para Rei Momo, organizadopela

Prefeitura do Rio de Janeiro, aos treze anos. Cumpria uma agenda rígida com reuniões,

ensaios, apresentações, entrevistas, e idas ao figurinista. Terminado seu tempo na corte

mirim do carnaval carioca, desfilou nas alas de passistas do GRES Portela, GRES

Unidos do Viradouro,GRES Caprichosos de Pilares, GRES Beija Flor de Nilópolis e

aos dezessete anos retorna ao GRES Acadêmicos do Salgueiro onde permaneceu até os

trinta e um anos.

A oportunidade de viajar para outros países é um aspecto muito positivo na carreira do

passista, através da escola de samba Fábio Batista conheceu algumas cidades do

México, Argentina, Chile Rússia e Ilhas Maurício. Buscando mais credibilidade no

mercado, vinculou-se ao Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio Janeiro8 e

contribui autonomamente para o sistema previdenciário. Diz que sempre viveu da dança

e seus shows fora do país sempre foram através de contratos escritos. Atualmente

7http://blogs.oglobo.globo.com/saideira/post/trem-do-samba-desembarca-na-franca.html

8O Sindicato dos Profissionais da Dança do Estado do Rio de Janeiro (SPDRJ), fundado no dia 17 de

maio de 1985.

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trabalha no SESI9 gerenciando uma biblioteca comunitária. Criou o Projeto Social no

Andaraí chamado "PoDe-C!" Andaraí (Polo de Desenvolvimento Cultural do Andaraí),

a Escola Carioca de Danças Negras e a Cia de Dança Clanm.

Percebe-se que é uma carreira com diferentes desmembramentos. Sobre isso ele

nos diz:

Acho que o mercado abriu possibilidades, nas academias, projetos

sociais, as próprias escolas de samba, shows nacionais e

internacionais, mas somos muitos e somos bons, quase todos os

passistas são muito bons, então temos escassez de demanda e por isso

acho o passista deve procurar outros recursos artísticos.

A Escola de Samba é um empreendimento cultural sem fins lucrativos, mas tem um

arrecadamento financeiro como resultado de sua atuação na área do lazer, cultura e

turismo, entretanto esses recursos não são compartilhados entre os sambistas/artistas.

A busca do passista por um lugar ao sol no mercado de trabalho das artes através

do samba não é de hoje. Nas décadas de 70/80 alguns acreditavam que o samba havia

definitivamente se tornado um bem de consumo e que isso traria a ascensão social do

sambista através da remuneração dos que efetivamente fazem o espetáculo. Outros

consideravam utópica essa possibilidade. A opinião de Lopes (1981) parece-nos bem

atual. O que parece ter ocorrido foi um crescimento de representatividade, uma maior

visibilidade das escolas de samba dentro dos espaços sociais antes inacessíveis, porém

incapaz ainda de dividir seus lucros com os componentes que dominam saberes

especializados, comoritmistas epassistas.

Opinião recorrente entre os passistas é que no exterior é possível viver de samba.

Muitos acreditam que a Europa é um mercado promissor para o passista. Almir Romero,

conhecido como Romero da Mangueira, deixou o Brasil há dezoito anos após aderir ao

plano de demissão de voluntária da Embraer, privatizada em 1994, no governo do então

presidente Fernando Henrique Cardoso. Desempregado, desejoso de incrementar os

estudos da língua inglesa, aceitou um convite inusitado: organizar uma escola de samba

em Londres, sem garantia de emprego ou salário fixo.

Há um fluxo constante de informações entre passistas que estão ou estiveram no

exterior e os que estão no Brasil, desejosos de novas e melhores oportunidades de

9 SESI: Serviço Social da Indústria.

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trabalho através da dança do samba. Sem emprego e com o dinheiro da verba

indenizatória, decidiu tentar a sorte em Londres.

Quando recebi o convite para preparar a Comunidade da London Schoolof

Samba para o carnaval de Notting Hill, meu primeiro pensamento foi

realizar um sonho de criança: falar inglês britânico. Londres é, no meu ponto

de vista, uma das cidades mais caras de toda a Europa e não se tem shows

todos os dias. Fui dançar em NightsClubs, dar aulas de samba para pequenos

grupos, fazer Workshops em outros países vizinhos, em Escolas Primárias,

mostrando um pouco da cultura brasileira, dançar em festivais que

aconteciam no Verão Londrino, participei de vídeos clip de Bandas que

estavam em evidência na época como o S Club Seven, Marc Almond e

outros mais... Hoje dou aula em academias de ginástica, Pubs e Centros

Culturais. [...] Ah! Esqueci de dizer que além de dar aulas também faço

faxinas em residências e escritórios, trabalho como secretário particular de

uma francesa, as vezes viro babá de cachorro (risos), trabalho como garçom,

cozinheiro, pintor de paredes. Ah! minha lindinha, aqui vou me virando e

usando toda a versatilidade que Deus me deu, pois viver só de Arte é

complicado em qualquer lugar do mundo, sendo assim me viro nos trinta.

AlomaWorrelt, quarenta e sete anos,vive há vinte e um em Essen, na Alemanha. Era

uma dançarina de samba com uma agenda de shows movimentada no Brasil e no

exterior. Acostumada às temporadas internacionais que inicialmente duravam de quatro

a oito meses, decidiu estabelecer sua vida por lá.

Durante muito tempo eu ganhei muito dinheiro. Mas também gastava

muito. Sempre fui muito gastona. Muita roupa de marca, bolsas,

sapatos. Usava um pouco uma roupa e quando ia pro Brasil já levava

pra dar. Mandava dinheiro pra minha família também. Mas depois me

casei aqui, tive um filho, me separei, fiquei com problemas de saúde e

engordei. Engordei muito. Mas hj vejo que foi o agir de Deus na

minha vida [...]Peguei o final da época das Mulatas. Viviam de shows

de samba turísticos, trabalhavamtambém nas casas de shows como

plataforma, Scala e Oba Oba. Acho que não me acostumo mais no

Brasil. Agora eu trabalho em casas de família daqui e sou missionária

também.

A experiência de Romero e Aloma mostra que a carreira internacional de um passista

pode ser bem mais difícil e efêmera do que muitos dos que estão aqui imaginam.

A carreira do passista existe na fresta entre o mundo formal do trabalho e o

mundo informal do samba. Muitos passistas colecionam histórias de demissões por

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perderem noites de sono em ensaios ou seguirem em viagens para apresentações com a

escola de samba. Para alguns é possível conciliar carreiras, como vem fazendo Celynho

Show, passista da Mangueira, depois de ter perdido várias empregos por sua dedicação

a carreira de passista:

Tava num emprego uma época aí, meus filhos ainda eram pequenos,

quando surgiu minha primeira oportunidade de sair do Brasil com a

Imperatriz Leopoldinense pra uma temporada na Europa. Ah! Não

pensei duas vezes e fui! O dinheiro não foi muito não, e eu ainda

gastei quase um terço só com fotos, que naquela época era caro, tinha

que comprar filme e revelar depois (risos). Perdi o emprego, mas foi

uma experiência maravilhosa, faria tudo novamente!

Atualmente com quarenta e cinco anos, Celynho Show trabalha como

recepcionista no Clube dos Oficiais da Aeronáutica há dez anos, numa escala de

12hx36h. Nas folgas atua como passista show e promotor de eventos. O samba é uma

renda complementar. Em 2010 idealizou e produziu o “Cabaré do Malandro” um evento

bimestral, pensado para os passistas, mas que reúne sambistas de um modo geral. A

partir desta experiência bem sucedida do Cabaré, com edições em diferentes bares da

Lapa, região boêmia do Rio de Janeiro, Celynho Show tem se consagrado como um

promissor promoter sambista.

Serginho Sambista é passista da Grande Rio e trabalha apenas como passista

fazendo em média quinze shows por mês. Durante a Copa, chegou a fazer até dois

shows por dia. Deixou o trabalho formal quando percebeu que estava fazendo dupla

jornada, saindo do emprego e indo direto para shows. Escolheu o que lhe dá mais

prazer: o samba. Os cachês variam de oitenta a trezentos e cinqüentareais. Reclama do

excesso de informalidade nas relações de trabalhistas: demora no pagamento dos cachês

(as vezes demoram até quinze dias após o show para serem pagos), mudanças contratais

sem anuência das partes, falta de assistência mínima necessária, como local adequado

para a troca de roupas, um lanche ou uma água após o show, etc.).

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CONCLUSÃO

A carreira do passista existe e se desenvolve na tensão entre o mundo do trabalho e o

mundo do samba com toda sua inconstância e efemeridade.A desregulamentação e a

flexibilização surgem como novas formas de pensar sobre os comportamentos dos

tomadores e prestadores de serviços. Alegislação flexibilizada, permiteencaixar arelação

detrabalhoentre os passistasesuas agremiações,como empregadosou prestadores de

serviços.

Nenhum passista consegue ainda, viver exclusivamente desta atividade artística ante a

insegurança financeira que a caracteriza. Embora presentes as condições básicas

caracterizadoras da relação de trabalho – pessoalidade, habitualidade, subordinação e

onerosidade – esta última é a que apresenta maior inconsistência e precariedade. Não há

para o passista uma remuneração regular, periódica, advinda da escola, salvo raríssima

exceção, para alguns coordenadores. O que o passista recebe da escola de samba é a

fantasia para o dia do desfile e a possibilidade de eventualmente, ser escolhido para

participar de algunsshows remunerados.

Na organização do desfile oficial, alguns segmentos tornaram-se quesitos obrigatórios

como Mestres-Sala, Porta-Bandeiras e Bateria, conferindo-lhes maior valor diante da

agremiação, entretanto os passistas não foram assim contemplados.

Enquanto o mundo do trabalho se caracteriza por uma prévia educação formal e

provisão econômica; o mundo do samba se pauta num saber informal e na capacidade

de se expressar e se manter nele através de redes de relacionamentos. Podemos afirmar

que embora sejam formas de carreiras distintas, elas se entrecruzam propiciando ao

passista ocupar posições como as de professor de dança, coreógrafo, coordenador,

promotor de eventos, modelos, figurantes, etc.

A carreira de passista não é apenas de cunho econômico ou político, mas antes é

uma carreira moral e até espiritual no sentido místico para alguns. É uma carreira que

estabelece diálogos com diferentes agentes da sociedade envolvidos na área das artes,

do turismo e da cultura.

Se por um lado a autonomia verificada nas tratativas de trabalho deste grupo

profissional é vista como positiva, por outro, os deixa vulneráveis a empregadores de

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má-fé e até criminosos. A prostituição é um tema velado no meio dos passistas. Há

notícias de mulatas/passistas vítimas de trafico internacional de pessoas, cujos processos

tramitaram na Espanha. Mas sobre isso, trataremos numa outra oportunidade.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Zahar, 1997.

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escola de samba estação primeira de Mangueira. Dissertação de mestrado apresentada

aoPrograma de Pós-Graduação em Sociologia eAntropologia, Instituto de Filosofia e

CiênciasSociais da Universidade Federal do Rio deJaneiro. Orientadora: Maria Laura

Cavalcanti, 2006.