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Anabela Mota Ribeiro

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Anabela Mota Ribeiro

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A Flor Amarela

Ímpeto e Melancolia em Machado de Assis

QUETZAL língua comum

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Prefácio

O ENSAIO DE ANABELA MOTA RIBEIRO começa descrevendo

as Memórias póstumas de Brás Cubas como «lugar de perplexi-

dades» e de estranhezas. Uma vez que de entre elas logo desta-

ca a célebre conjugação da «pena da galhofa» com a «tinta da

melancolia», com este começo o ensaio repete o do próprio ro-

mance. Não é, como se verá, a única repetição deste tipo com

efeito no ensaio; mas aqui, a abrir, convida a inferir que, não

obstante certa disposição filosófica, o ensaio não pretende sa-

ber mais do que o livro de Machado de Assis sabe sobre si

próprio. É uma outra estranheza, curiosamente familiar ao

machadiano assíduo.

Com efeito, sabe-se que as Memórias póstumas de Brás

Cubas deixaram meio estupefactos os seus leitores mais qualifi-

cados de 1880. Talvez por isso se apressassem a atribuir-lhes

alguma «filosofia». Um deles, Capristano de Abreu, que o pró-

prio Machado mencionaria no prefácio da última edição do

romance que fez em vida, em 1899, confessava-se incapaz de

entender o que era aquele livro, mas arriscava que era «alguma

coisa», definindo-a assim: «O romance aqui é simples aciden-

te. O que é fundamental e orgânico é a descrição dos costumes,

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a filosofia social que está implícita.» Redundaria esse funda-

mental numa moralidade, junção de cepticismo e complacência,

amálgama de La Rochefoucauld com Sancho Pança, nomes

oferecidos pelo mesmo crítico. Outra resenha falava de «filoso-

fia mundana, sob a forma de romance», e havia nada de gene-

roso na formulação. Mal de origem ou nem tanto, como quer

que seja o superavit de filosofia não parecia compensar o deficit

de romance.

Em 1961, o pesquisador francês Jean-Michel Massa, que

foi quem primeiro estudou a biblioteca de Machado de Assis

(La Bibliothèque de Machado de Assis, 1961), realçava a presença

nela de vários volumes de Schopenhauer e sugeria: «Talvez te-

nha sido para ler Schopenhauer no original que Machado, por

volta dos cinquenta anos, tenha começado a estudar alemão.»

Estava-se já numa outra etapa, mais sofisticada, ou mais pro-

fissional filosoficamente falando: a metafísica de Schopenhauer

era a melhor candidata a ocupar o cerne da originalidade ma-

chadiana.

Não é uma ideia difícil de incutir a quem tenha lido o fa-

moso delírio de Brás Cubas, em especial se depois disso não

leu mais nada: a vida é dor, Pandora é natureza, mãe e inimi-

ga, a felicidade é uma quimera, o homem, um frangalho agita-

do por paixões, etc. Mas o quadro é mais complexo, ou mais

equívoco. José Guilherme Merquior, por exemplo, um crítico

arguto como poucos, escreveu duas ou três páginas indispensá-

veis sobre este assunto. Refere-se a Machado como «bom

schopenhaueriano», pessimista que se «impregnou profunda-

mente do pensamento de Schopenhauer», e exemplifica com

Quincas Borba, cujo ridículo optimismo seria «homenagem

implícita» do «humorismo machadiano» à metafísica de Scho-

penhauer. O ponto crítico aqui é o humorismo: não porque

seja incompatível com o pessimismo, mas porque não se ajusta

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à ideia de impregnação filosófica como princípio de descrição

da originalidade literária. O mesmo Merquior o diz, aliás, e no

mesmo texto, quando sustenta que o humorismo de Machado

de Assis é «uma atitude eminentemente filosófica», não sendo

porém uma filosofia: e daí a sua liberdade. Merquior vai ao

ponto de afirmar que é nessa inexistência metafísica que se en-

gendra o experimentalismo característico dos livros de Machado,

o que vem animado do «espírito de zombaria». Ora, iremos

nós acreditar que, nesse quadro de estranho engendramento,

alguma coisa — metafísica ou moralidade — fica abrigada

dessa zombaria? Seria o mesmo que negar o humorismo ou re-

metê-lo ao desempenho de ornamento ou disfarce de mensa-

gem mais funda, mais decisiva, mais... filosófica. E o que fazer

do sentido do divertimento, sem o qual ninguém pode falar de

humorismo?

Portanto, humorismo e filosofia tanto se juntam como se

incomodam em regime de reciprocidade. Neste ponto devo es-

clarecer que o ensaio de Anabela Mota Ribeiro não se ocupa

destes problemas, ou melhor, não se ocupa deles explicitamen-

te. Também não parece muito interessado no humorismo. Se

refiro uns e outro, é menos para o situar do que para sublinhar

um dos seus méritos: trata-se com efeito de um ensaio cujo

ponto de partida é a figuração ficcional, a começar pelo título,

A Flor Amarela, que retoma de Memórias póstumas de Brás Cu-

bas, do decisivo momento em que Brás Cubas situa o apareci-

mento da melancolia. Por outro lado, o subtítulo, juntando

ímpeto e melancolia, sugere alguma versão do pêndulo scho-

penhaueriano: ainda que explicando muito cedo que o ímpeto se

refere a outra passagem e a outra figura (o «ímpeto verdadeira-

mente cesariano» com que Lobo Neves rouba a Brás Cubas a

noiva, Virgília), é inegável a consideração da impregnação

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schopenhaueriana, para manter os termos de Merquior, e o lei-

tor irá deparar-se com ela adiante.

Pode ser, de facto, que no próprio ensaio que o leitor tem

em mãos literatura e filosofia tanto se juntem como se inco-

modem reciprocamente. Se assim for, gostaria de sublinhar

dois traços — ou duas virtudes! — desse incómodo.

O primeiro é o da forma. Já disse que o ensaio parte de

um desejo de elaboração em torno de uma figura, a flor amare-

la, mas agora quero sublinhar sobretudo o andamento: a divi-

são em capítulos breves, que não são fragmentos, na medida

em que remetem para um todo, nem propriamente capítulos,

na medida em que suspendem o completamento do todo, evoca

a própria forma das Memórias póstumas sem no entanto preten-

der imitá-la. Trata-se sobretudo de um princípio de liberdade,

que permite ao texto evoluir sem a tirania de um propósito de-

monstrativo, esquivando-se à inevitável vigilância de quem se

abeira da obra de Machado com algum desígnio de escrita e

pensamento. A impregnação pela «forma livre» de Brás Cubas

é aqui indispensável para perceber como o ensaio decorre nesse

típico andamento sem resvalar para o caderno de apontamen-

tos ou leituras avulsas.

O segundo incómodo é ainda uma particularidade da for-

ma: refiro-me ao modo como quase sempre os pequenos capí-

tulos se organizam a partir de perguntas explicitamente formu-

ladas, numa atitude inquisitiva permanente que incomoda a

fixação de conclusões, ainda que provisórias. «Um emplastro

para curar o quê?», «O que está em causa no fim da vida?»

«Quando é que Brás Cubas se torna o homem que olha a vida

com “rabugens de pessimismo”?», «Esta é uma vida que mere-

ce ser contada?», «O que é que acontece quando uma flor mor-

re?, e quando é que uma flor morre?». Os exemplos vão aqui

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mais ou menos a esmo, as perguntas deste tipo são muitas, mas

não teria dificuldade de mencionar uma só se a isso fosse obri-

gado: «Quando é que Brás Cubas começou a morrer?»

Arrisco que o ensaio de Anabela Mota Ribeiro, desdo-

brando-se em perguntas mais pequenas ao longo de capítulos

mais pequenos, procura activamente uma resposta para esta

particular pergunta, que o leitor encontra muito cedo, sendo

no entanto muito improvável que deixe de lhe dar a devida

atenção: num livro escrito por um autor que está morto quando

começa a escrever, que além disso começa por atestar a verda-

deira causa da própria morte — o famoso emplastro anti-hipo-

condríaco, o «emplastro Brás Cubas» —, que propósito pode

haver em perguntar quando começou ele a morrer?

Se se der atenção ao significado do emplastro como causa

da morte, talvez se aceite ou comece a aceitar que Brás Cubas,

abrindo o livro com a morte e a fixação da verdadeira causa da

morte, já está ele mesmo a perguntar quando começou a mor-

rer ou pelo menos se não começou a morrer no momento em

que o pai lhe deu o nome que ele por sua vez quer dar ao em-

plastro. E se se seguir com atenção o movimento da figura da

flor amarela, tanto nas Memórias póstumas como no ensaio de

Anabela Mota Ribeiro, talvez se aceite ou comece a aceitar que

afinal o próprio livro de Brás Cubas procura responder a essa

mesma pergunta: quando começou Brás Cubas a morrer?

E assim se chegaria ao paradoxo fascinante da autobiografia,

afinal narrando a vida com o propósito sublime de delimitar

o começo da morte.

A flor amarela pode muito bem ser a figura decisiva desse

paradoxo. Não tanto pelo que designa, a melancolia, como so-

bretudo pelo poder de a designar assim, como flor e como

amarela. Afinal, o escândalo de Brás Cubas consiste em contar

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muito alegremente uma vida de repetido fracasso e de acabada

mediania, apesar de continuadamente afectada pelo desejo de

glória: afinal o escândalo de Brás Cubas consiste em triunfar

completamente expedindo uns magros capítulos, umas poucas

de facécias, uns aforismos, um ou outro caso moral, um filóso-

fo louco, e a forma livre, a sublime forma livre, que torna tudo

isso estranho e inteligível, digno de admiração e motivo de

perplexidade.

Abel Barros Baptista.

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Prólogo da primeira edição,ou uma espécie de introdução

O SENTIMENTO DE ESTRANHEZA É TALVEZ O QUE NOS DOMINA

após a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. É possível

dizer que o livro é um lugar de perplexidades, ou mesmo

absurdos, que nos interpelam com a suavidade de uma pena,

«a pena da galhofa», e logo se entranham com a força subtil da

«tinta da melancolia» (expressões usadas por Brás Cubas em

«Ao Leitor»).

Esta combinação inusitada é uma das estranhezas do li-

vro. Não é a única. De um ponto de vista formal, a estranheza

maior reside no ponto a partir do qual a narração é feita (e

aquele em que nos coloca, enquanto espectadores que assistem

à narração) — no facto de as Memórias serem Póstumas. Mas

não se pense que a originalidade se esgota nos seus dispositivos

romanescos. Fica dele um sabor acre para o qual somos adver-

tidos por Machado de Assis no «Prólogo da Quarta Edição»:

«Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sen-

timento amargo e áspero...». Áspero é também uma boa pala-

vra para descrever o franzir do sobrolho que o livro representa.

Assim como assombro. Em qualquer caso, é um assombro

e uma aspereza de temperatura tépida, que se infiltram insi-

diosamente, e que, por um estranho mecanismo, não têm

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uma tonalidade dominante. Ou esmagadoramente dominan-

te. Salvo em determinados momentos, como no célebre final

«Das Negativas».

Parece que acabámos de dizer o contrário do que come-

çámos a enunciar... Mas um dos pontos que defendemos neste

ensaio tem que ver, justamente, com o facto de estas Memórias

exalarem uma vitalidade cuja proveniência não tem coordena-

das rigorosas, mas que sobrevém à descrença, às negativas. Di-

to numa linha, há nelas uma afirmação da vida que incorpora

o pessimismo.

O romance leva-nos sem força, enreda-nos na sua estru-

tura «ébria» e tom «galhofeiro». (Expressões usadas pelo narra-

dor, como que mostrando as costuras, o interior da peça.) De

certa maneira, somos levados como Brás Cubas é levado.

O protagonista voga pela vida, sem aquilo que designa por

«ímpeto cesariano», o que o faria delinear um projeto e cum-

pri-lo. Voga destituído de vontade, alma penada em vida.

Nós, o leitor, entregamo-nos sem resistência e somos

conduzidos pela sua existência banal, falha. Quando nos aper-

cebemos do processo, estamos nele embarcados. Sai-se por on-

de? Começa-se por onde? De uma vida, uma morte, um livro,

um ensaio (dito assim sem ordem aparente, sem correspon-

dência obrigatória). Onde começa e onde acaba o mundo de

Brás Cubas, o «defunto autor» que nos fala a partir do mundo

dos mortos como se fosse possível falar a partir do mundo dos

mortos? A delimitação imprecisa e constantemente sabotada

do fio do horizonte, da ideia de princípio e de fim, é um dos

aspetos mais desafiadores do livro. Ao falar de um lugar im-

possível, Brás Cubas desarruma uma ideia de mundo que nos é

inculcada, abre espaço para a interrogação sem limites.

Ao hesitar começar pelo nascimento ou pela morte, ao

trazer o livro das Escrituras e pôr-se ao pé de Moisés, que,

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ao invés de Brás Cubas, pôs a sua morte no cabo e não no in-

troito do Pentateuco, está a deslocar-nos de um espaço físico

para um território fabuloso, zombando do leitor e das regras

do mundo. É uma maneira de abolir as noções de espaço e

tempo. Mais do que isso, é uma maneira de nos instalar no pa-

radoxo e de dizer que certas mortes obrigam a gerar vida. Co-

mo se a sua morte, ou a vida vazia que com ela se fecha, o

obrigasse a gerar uma vida — substantiva — que o impede de

morrer, pelo menos para já.

Brás Cubas, e com ele Machado de Assis, vai-se da lei

da morte libertando a partir do seu lugar de defunto autor, da

narração introspetiva e retrospetiva do seu percurso. Como é

que um homem se vai da lei da morte libertando? Quais são

os mecanismos dessa libertação? Como polir o nome, prolon-

gar com um ramo, uma folha, um rebento, alguma espécie de

vida a árvore da genealogia? Como afirmar a vida negando a

morte? Ou, pelo menos, recusando-a momentaneamente, lu-

dibriando o destino inexorável do humano.

O leitor assiste da plateia a um espetáculo representado

no palco. Brás Cubas, ele mesmo, está sentado com o leitor na

plateia, observando-se do lugar dos mortos; e está representan-

do a peça, sendo nesse exercício autor e protagonista. Tem um

carácter ubíquo, e nisto consiste uma das suas singularidades.

Está na eternidade e no instante, está nos dois planos da tra-

ma, o da narrativa e o da ação. O dispositivo permite um feito

extraordinário: o de ver a vida de fora, do avesso, do lado da

morte que contém vida. Permite a desorbitação. E a liberdade:

«na morte, que diferença!, que desabafo!, que liberdade! Como

a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas,

[...] confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser».

O plano inverso também é verdadeiro. A vida de Brás

Cubas foi uma vida impregnada de morte — de mortes, para

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sermos exatos. As mortes de personagens secundárias e centrais

na sua narrativa que lhe dão uma inescapável ideia de finitude

e, mais importante, que o começam a corroer, fragilizando o fio

de ligação à vida.

Este pode ser o bom momento para perguntar quando é

que Brás Cubas começou a morrer. O nascimento (aconteci-

mento biológico) é fácil situar, «dia 20 de outubro de 1805».

A morte, também: «... expirei às duas da tarde de uma sexta-

-feira do mês de agosto de 1869». Mas perguntamos pela morte

em vida. E o momento que identificamos como crucial é

aquele que sucede ao desaparecimento da mãe. «Creio que por

então é que começou a desabotoar em mim a hipocondria, essa

flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e

subtil.»

A melancolia é uma água pantanosa onde mergulha e de

onde sai com dificuldade, quando sai. Um ambiente uterino

onde germina a morte. E depois, quando se olha da morte pa-

ra a vida, poderia dizer com Ruy Belo: «É triste no outono

concluir que era o verão a única estação.» Como lhe escapou o

verão? Como ficou encapsulado o «ímpeto cesariano» que lhe

permitiria afirmar a vida, fazer vida, ser feliz? Como mirrou,

ou não floresceu, o botão da flor viçosa que tudo promete ser?

Começámos pelo tema, com mais dúvidas que certezas,

com mais interrogações que afirmações. Hesitando, indo «a pé

filosofando as cousas». Na esperança de que a rede que o susten-

ta, feitas as digressões e expostas as contradições, surja coerente

e cosida. E então aí vamos, com os contributos e iluminações

de Schopenhauer, Nietzsche e Freud, mais do que tudo, para

pensar naquilo que nas Memórias Póstumas de Brás Cubas

é afirmação e negação da vida.

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Ao leitor

PENSARÁ O LEITOR DESTE ENSAIO, por esta altura, que já era

hora de deixar os arremedos de Machado, o estilo livre e de-

sengonçado. «Compelle intrare!», como se diz no Capítulo

CXX, repetindo a expressão de Cristo, convidando-o a entrar.

Ademais, poucas linhas atrás, foi dada por concluída a intro-

dução, que uma introdução tem conclusão como uma morte

tem vida e uma vida, morte, para insistir no jogo antitético da

prosa do escritor brasileiro. Mas impõe-se uma advertência:

este edifício tem estrutura movediça.

Sem grande rigor arquitetónico, vamos firmando uma

coluna e logo apontando para uma janela. Vamos deixando in-

dícios, objetos e personagens que serão retomados na esquina

de um novo capítulo, concluídos mais à frente. Parecendo gui-

nadas, dispersões, estes movimentos compõem um mosaico

que, tanto quanto possível, se aproxima do texto de Machado.

Pode ser, então, que o leitor (grave) de textos académicos

não encontre aqui a estrutura habitual de uma dissertação em

Filosofia (ainda que a heterodoxia comece pelo seu objeto de

estudo, um romance de um autor brasileiro). Pode ser que cer-

ta prosa descosida, borboletas e flores deixem uma impressão

de frivolidade... No livro de Machado de Assis, há vinte e oito

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flores, ou, para dizer com exatidão, a palavra flor é vinte e oito

vezes pronunciada... No livro de Machado fala-se da estima

dos graves e do amor dos frívolos, que se espera angariar...

Caro leitor, permito-me tratá-lo com familiaridade, per-

mito-me emular o objeto de estudo e recorrer ao tom de Brás

Cubas no capítulo homólogo: «A obra em si mesma é tudo: se

te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,

pago-te com um piparote, e adeus.» Mas não irei tão longe.

E antes do adeus, aceno e olá.