ana paula bezerra neves - … · fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer...

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1 ANA PAULA BEZERRA NEVES JORNALISMO LITERÁRIO-SUBVERSIVO: XICO SÁ E A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS AO ESTILO GONZO Universidade de Fortaleza Fortaleza 2006

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ANA PAULA BEZERRA NEVES

JORNALISMO LITERÁRIO-SUBVERSIVO: XICO SÁ E A

CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS AO ESTILO GONZO

Universidade de Fortaleza

Fortaleza

2006

2

ANA PAULA BEZERRA NEVES

JORNALISMO LITERÁRIO-SUBVERSIVO: XICO SÁ E A

CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS AO ESTILO GONZO

Monografia apresentada ao Curso de

Jornalismo da Universidade de Fortaleza,

como requisito parcial para conclusão do

curso de graduação, sob a orientação da

professora doutora Gabriela Reinaldo.

Fortaleza

2006

3

Banca examinadora composta por:

________________________________________

Prof.ª Dr.ª Gabriela Reinaldo (orientadora)

_________________________________________

Prof.ª Dr.ª Geísa Matos

_________________________________________

Prof. Ms. Ronaldo Salgado

4

Iluminuras, marfins profundamente

entalhados; pedras duras, perfeitamente

polidas e claramente gravadas; lacas e

pinturas obtidas pela superposição de uma

quantidade de camadas finas e translúcidas...

– todas essas produções de uma indústria

tenaz e virtuosíssima cessaram, e já passou o

tempo em que o tempo não contava. O

homem de hoje não cultiva o que não pode

ser abreviado. –

Paul Valéry

5

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, sobretudo a minha mãe, por sempre ter investido e

acreditado em mim e no meu potencial, incansavelmente.

Ao Ismael, por ter me falado do Gonzo ainda em 2003, quando eu

nem supunha a sua existência; por ter me apresentado ao trabalho do Wesdley

– essencial para o meu encanto e planejamento de novas discussões acerca

da temática –; e por ser minha companhia mais freqüente nesta árdua, porém

encantadora e prazerosa jornada.

A Gabi, que abraçou a minha idéia com empolgação desde o início,

confiando em mim e me deixando à vontade para construir este trabalho. A ela

agradeço igualmente o fato de ter me dado dicas incríveis de leituras, e de ter

aberto minha mente para novas percepções – ao longo não apenas deste

semestre, mas de boa parte da minha graduação.

Ao Xico Sá, pela divertida entrevista que me concedeu, tendo em

vista a confecção desta monografia, e por me fazer acreditar em um jornalismo

senão melhor, mais divertido.

Ao Ronaldo Bressane, redator-chefe da Revista Trip, e a Mariana

Pinheiro, da Trip Editora, que me disponibilizaram com agilidade e simpatia as

reportagens de Xico Sá na íntegra, assim com exemplares antigos da revista.

Ao Carlus, pelas fantásticas ilustrações, que ajudaram a dar cor aos

meus escritos.

6

RESUMO

Neves, Ana Paula Bezerra. Jornalismo literário-subversivo: Xico Sá e a

construção de narrativas ao estilo gonzo. Monografia. Curso de Comunicação

Social. Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2006.

Tendo em vista a construção de narrativas jornalísticas mais substanciosas e

vinculadas diretamente à literatura, assim como o rompimento com as amarras

da objetividade, impessoalidade e isenção, alguns jornalistas norte-americanos

como Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese, dentre outros, deram vida, na

década de 1960, a um movimento intitulado Novo Jornalismo. Hunter S.

Thompson, um jornalista controverso da cidade americana de Louisville, após

observar essas estripulias, foi ainda mais longe, desconstruindo por completo

as normas narrativas vigentes e lançando um estilo inédito e ousado, que

mesclava deliberadamente jornalismo, literatura, drogas e o que mais fosse

possível colocar em palavras. A este novo gênero foi dado o nome de Gonzo

Jornalismo. No Brasil, apesar de pouco repercutir, as narrativas Gonzo

atingiram algumas poucas publicações inovadoras, como é o caso da Revista

Trip. Foi lá que o jornalista e escritor cearense, Xico Sá, pôde enfim dar vazão

a uma maneira mais livre e, quiçá, sui generis de narrar. Este trabalho volta a

atenção para essas produções. Sobretudo para a análise de algumas

reportagens que Xico Sá fez ao estilo gonzo. Nossa intenção é lançar olhares

que nos permitam uma maior compreensão acerca deste gênero tão pouco

estudado e esmiuçado para, quem sabe assim, propormos aprimoramentos ao

jornalismo burocrático e entediante que vem sendo feito nos principais meios

de comunicação brasileiros.

Palavras-chave: gonzo jornalismo, jornalismo literário, novo jornalismo,

polifonia, crônica, objetividade e subjetividade, revista Trip.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................08

1. Jornalismo Gonzo........................................................................................11

1.1 – Pré-concepção: o New Journalism...........................................................11

1.1.2 – Criatura e Criadores: Wolfe, Breslin, Capote, Talese... ........................13

1.2 – É chegada a hora do Gonzo.....................................................................19

1.2.1 – O iconoclasta: Hunter S. Thompson..................................................... 24

1.3 – E o Brasil com isso?.................................................................................27

1.3.1 – Arthur Veríssimo e o caso Trip..............................................................30

1.3.2 – A Irmandade Raoul Duke.......................................................................31

2. Jornalismo e Literatura...............................................................................34

2.1 – Subjetividade versus Objetividade............................................................43

2.2 – Apuração Participativa..............................................................................47

2.3 – Amplitude de vozes: alas para o discurso polifônico................................50

2.4 – Crônica: o híbrido perfeito?.......................................................................53

2.5 – Revistas, magazines, semanários e suplementos: suportes possíveis?..57

3. O Gonzo segundo Xico Sá..........................................................................63

3.1 – Xico Sá, o subversivo...............................................................................63

3.2 – Idiossincrasias, desvarios, sarcasmos e orgasmos: maldição ou prazer do

texto?.................................................................................................................66

CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................88

ANEXOS............................................................................................................91

8

INTRODUÇÃO

Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismo-verdade –

Xico Sá

Trazer à tona a realidade por meio de palavras ou, ainda, descrever

indivíduos de forma a anular o mínimo possível as suas idiossincrasias e

peculiaridades é tarefa árdua, quiçá penosa – que o diga o jornalista mais

cauteloso. A este, além de ter a cotidiana missão de informar, ainda é exigido

sair-se de si para transpor o real do alto de pedestais tão controversos e

questionáveis quanto o próprio conceito de certo. Ou de errado. Objetividade,

impessoalidade, isenção são algumas dessas exigências que, se não podam

deliberadamente a liberdade criativa dos repórteres, limitam consideravelmente

a sua narrativa.

Em meados da década de 60, alguns jornalistas norte-americanos

entediados com esta realidade, sem querer, causaram um rebuliço não apenas

nas redações de jornais. O ruído emitido por eles ressoou, inclusive, nas salas

empoeiradas dos literatos – que tiveram de aceitar, irados, o fato dos seus

espaços estarem sendo invadidos por uns tais Novos Jornalistas. O grito mais

alto foi dado por um indivíduo avesso a qualquer tipo de amarra, chamado

Hunter S. Thompson. A sua maneira de narrar era tão inusitada e autêntica que

um amigo lhe atribuiu a pecha de gonzo. Que tipo de jornalismo era aquele? Só

Thompson poderia explicar. O fato é que mesmo permanecendo num lugar

periférico da história do jornalismo, a sua criação abriu frestas para novas e

frutíferas reflexões acerca do metiê.

No Brasil, apesar de não sofrer influências diretas desta turma de

estrangeiros, a escrita de Xico Sá desponta, há um par de décadas, como um

caso a parte. Apesar de continuar nas redações de grandes e tradicionais

jornais, Xico ganhou notoriedade, sobretudo, por levar ao extremo suas

narrativas. Estas, além de lançar mão, abundantemente e deliberadamente, de

recursos literários, vão ainda mais além, ao romper por completo com as idéias

polidas e, intencionalmente discretas, dos manuais de redação.

Se a turma do Novo Jornalismo e, posteriormente Thompson, com o

Gonzo, criaram, inconscientemente, novas maneiras de narrar os fatos, Xico,

9

por sua vez, aderiu ao estilo de maneira própria, assimilando algumas

características e inserindo nele outras tantas.

Nossa intenção neste trabalho é conhecer um pouco da produção

desses sujeitos que, inconformados com os limites que lhes eram impostos, e

por acreditarem na construção de narrativas mais ricas e prazerosas

textualmente, se permitiram pular a cerca.

Ao identificarmos nas reportagens de Xico Sá semelhanças ao estilo

gonzo de narrar histórias não pretendemos tachá-las de corretas, ou melhores.

Mais do que isso, nossa função aqui é a de analisar o que essas ousadas

variações narrativas têm a dizer de relevante e, ainda, lançar sugestões no

sentido de, quem sabe, aprimorar esse jornalismo entediante e burocrático que

vem sendo feito hoje, na maior parte dos meios de comunicação.

Para isso, no primeiro capítulo, faremos um panorama do Gonzo

Jornalismo, no intuito de compreendermos gênese, propósitos e características

do gênero inaugurado por Hunter Thompson. A essas discussões serão

somadas as repercussões do Gonzo no Brasil. Citaremos o caso da Revista

Trip e também da extinta Irmandade Raoul Duke.

A polêmica que gira em torno dos conceitos e das fronteiras

existentes entre o jornalismo e a literatura nortearão o segundo capítulo.

Convidamos ao debate autores como Alceu Amoroso Lima, Walter Benjamin,

Cremilda Medina, José Marques de Melo, Fagundes de Menezes, Massaud

Moisés, dentre tantos outros, para lançarem olhares sobre questões, em nossa

opinião, essenciais, como os conceitos de objetividade e subjetividade;

apuração participativa; polifonia, etc.

No derradeiro capítulo, por sua vez, além de apresentar e de traçar

um sucinto currículo do criador do nosso objeto de estudos, Xico Sá, faremos

uma análise de algumas de suas reportagens, feitas para a Revista Trip. Aqui,

tentaremos, senão destrinçá-las de maneira hermética – posto que se tratam

de construções assaz subjetivas –, fazer um balanço das mesmas com base no

que foi discutido nos dois capítulos precedentes. Tudo isso tendo em vista

também a construção de questionamentos e críticas à atividade jornalística

vigente.

Antes de adentrarmos propriamente no trabalho, vale ressaltar que o

Gonzo, passado quase meio século de seu surgimento, ainda permanece no

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submundo do jornalismo, restrito apenas a alguns poucos indivíduos que se

permitem ir além do que dita a grande imprensa ou mesmo a grade da maioria

das universidades de Comunicação Social.

Somente há cerca de três anos, por exemplo, os livros de Thompson

começaram a ser traduzidos e lançados em língua portuguesa. A academia,

enquanto isso, se não o ignora por completo, continua a fazer vista grossa a

ele.

Posto isto, não é demais lembrarmos que por se tratar de um gênero

pouco estudado e examinado, este trabalho, mais do que encontrar respostas

ou definições, se pretende, unicamente, a analisar, de maneira mais atenta e

cuidadosa, o Gonzo e essas novas narrativas que ele trouxe, a reboque.

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1. Jornalismo Gonzo

Primeiro consiga seus fatos e depois pode distorcê-los à vontade –

Mark Twain

1.1 – Pré-concepção: O New Journalism

No início da década de 1960, as redações dos principais jornais

norte-americanos eram dominadas por um clima de apatia por parte dos

profissionais da notícia. Àquela época, os jornalistas dividiam-se, sobretudo,

entre aqueles que dedicavam todo seu empenho na busca (e competição entre

si) por “furos” jornalísticos; enquanto a outra metade empregava seus talentos

nas ditas reportagens especiais – cujo foco, geralmente, ia além de meras

informações factuais. Todos, no entanto, partilhavam de uma única ambição:

escrever um grande Romance, que mudaria por definitivo suas desprestigiadas

vidas.

Tom Wolfe, em O Novo Jornalismo, ressalta esse clima de

insatisfação afirmando que

A idéia [dos jornalistas] era conseguir emprego em um jornal, conservar inteiros o corpo e a alma, pagar o aluguel, conhecer “o mundo”, acumular “experiência”, talvez eliminar um pouco da gordura do seu estilo – depois, em algum momento, demitir-se [....], trabalhar dia e noite durante seis meses, e

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iluminar o céu com o triunfo final. O triunfo final era conhecido como o Romance (Wolfe, 1976:13).

Segundo ele, a idéia de escrever um romance nas décadas de 40, 50

e começo dos anos 60 exercia um fascínio, era uma obsessão; “um dos últimos

desses golpes de sorte” (Idem, Ibidem: 17). Talvez a única oportunidade para

indivíduos das classes mais humildes deslancharem, adquirirem

reconhecimento e status. Tratava-se de um autêntico “Sonho Americano”,

realizado por uma minoria.

O cenário começou a ganhar novos contornos enquanto os

repórteres especiais Jimmy Breslin, Dick Schaap, Gay Talese, Robert Lipsyte,

o próprio Wolfe, dentre outros, criavam suas reportagens nas máquinas de

escrever de periódicos nova-iorquinos, como o Herald Tribune, New York

Times e Daily News.

O que acontecia era que, aos poucos, o jornalismo diário começava

surpreendentemente a ganhar adereços estilísticos intrínsecos ao romance.

Um atrevimento de luxo, diga-se, para os padrões disseminados na imprensa

norte-americana até então. Wolfe descreve o fato desta maneira:

Tudo o que pediam [os repórteres] era o privilégio de se vestir como ele [o escritor de romances]... até o dia em que eles próprios chegassem à ousadia de ir para a cabana e tentar para valer...” (Idem, Ibidem: 19).

Faz-se necessário salientar, entretanto, que essa ousadia criativa na

construção de novas narrativas jornalísticas não aconteceu de maneira

aleatória e completamente indisciplinada. Posto que, como observa André

Felipe Pontes Czarnobai, em sua monografia de conclusão do curso de

jornalismo 1,

Os temas das reportagens [especiais] sempre proporcionavam uma maior liberdade na hora de escrevê-las. Estas características aproximavam a reportagem das narrativas realistas de ficção, com a exclusiva diferença de não haver [....] nada fictício nos relatos publicados (Czarnobai, 2003).

1 Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/monogonzo01.html>. Acesso em: 27 de novembro de 2006.

13

Outro aspecto essencial do período que só veio a fortalecer na

disseminação do Novo Jornalismo foi a ruptura nos costumes e na moral da

sociedade durante os conturbados anos 60. Wolfe faz questão de recordar que

temas como a “permissividade sexual”, a “consciência negra”, a “morte de

Deus”, a proliferação do conceito “hippie” e dos “movimentos radicais” e a

própria idéia de “contracultura”, que fervilhavam e tomavam conta do

inconsciente coletivo, simplesmente foram relegados pelos romancistas. Estes

deixaram o fértil terreno do realismo social aberto para os jornalistas, enquanto

se dedicavam exclusivamente a um gênero que, na cabeça deles, parecia

infinitamente superior: a ficção.

Os romancistas [....] haviam abandonado o terreno mais rico do romance: especificamente a sociedade, o tableau social, os costumes e a moral, a coisa toda do “como vivemos agora” [....]. Isso foi maravilhoso para os jornalistas – posso garantir. Os anos 60 foram uma das décadas mais excepcionais da história americana (Wolfe, 1976: 50).

Ou seja, tratava-se de um cenário já propício ao talento, criatividade

e inovação de uma competente turma de jornalistas que – mesmo sem

nenhuma pretensão de entrar na história como os descobridores de uma nova

modalidade jornalística (ou mesmo literária) –, deu nome a um estilo que até os

dias de hoje é tido como referência no que tange à qualidade de apuração e,

sobretudo, ao prazer da leitura.

Enquanto os escritores fugiam incautos, arrogantes e com um ar de

superioridade da realidade fervilhante que se lhes apresentava; os editores,

ansiosos por verem retratado o cotidiano em reportagens especiais e

romances, não vacilaram: passaram a jogar todo incenso na nova turma de

jornalistas que produzia a todo vapor. Uma revolução que nem os mais

otimistas poderiam esperar, porém que grande parte deles teve a chance de

usufruir.

1.1.2 – Criatura e Criadores: Wolfe, Breslin, Capote,

Talese...

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Jubas franjadas ninhos bufantes bonés de Beatle carinhas de criança cílios

postiços olhos de decalque suéter estufado sutiãs de ponta franceses blue

jeans de couro batido calças de stretch bumbuns de néctar botas de

duende até as canelas sapatilhas de bailarina Knight, centenas deles,

desses brotinhos chamejantes, pulando e gritando, revoando pelo Auditório

da Academia de Música debaixo daquele vasto e velho teto abobadado de

querubins embolorados lá em cima – eles não são supermaravilhosos? –

Tom Wolfe

O que à primeira lida pode parecer uma construção meramente

verborrágica e sem propósito, nada mais é que o lide de uma reportagem de

Tom Wolfe, intitulada A Garota do Ano.

Analisando superficialmente, notamos que Wolfe largou mão das

seis perguntas iniciantes do jornalismo (o quê, como, quando, onde, por que,

quem); e se retirou do trabalho burocrático das matérias de jornal feitas por

telefone e/ou alicerçadas em relises pré-prontos, para sair às ruas e

acompanhar um dia na vida da socialite norte-americana Baby Jane Holzer. O

cenário escolhido foi igualmente (e intencionalmente) impactante: o show dos

Rolling Stones – então a grande sensação da época.

É importante observar que as descrições minuciosas, a

desconstrução do padrão jornalístico, a mescla do banal com o erudito, e a

imersão de características literárias, cada vez mais, ganhavam força nos textos

da década de 60. Como lembra Czarnobai, para Wolfe,

o mais interessante não era a sensação de ter feito algo novo [....] mas sim a descoberta de que era possível fazer descrições muito mais fiéis [....] usando técnicas habitualmente utilizadas no conto e no romance (Czarnobai, 2003: 6).

Tudo isso só era possível porque, diferentemente da realidade que

se apresenta hoje e que se apresentava então, a apuração se dava de forma

mais intensa, exigente, profunda, detalhada e ambiciosa. Dias, semanas,

meses, até anos. Cada qual ao seu tempo (e trabalhando como free-lancers ou

contratados por jornais, suplementos dominicais ou revistas), os novos

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jornalistas criaram o hábito de se inserir naquele universo que, logo mais, eles

iriam retratar em suas reportagens.

Parecia absolutamente importante estar ali quando ocorressem cenas dramáticas, para captar o diálogo, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente. A idéia era dar a descrição objetiva completa, mais alguma coisa que os leitores sempre tiveram de procurar em romances e contos: especificamente, a vida subjetiva ou emocional dos personagens (Wolfe, 1976: 37).

Jimmy Breslin foi um dos pioneiros nesta atividade de sair à caça da

notícia, checar cada minúcia, cobrir in loco cada acontecimento. Não se

trabalhava com uma idéia limitadora de tempo. Mas de relatos bem apurados e

divinamente bem descritos e narrados. Coisa que Breslin – ao se sentar diante

de sua máquina de escrever na redação do Herald Tribune, ao final do dia –

fazia com primazia, e como poucos.

Voltando às peculiaridades do texto wolfiano, Fernando Resende, na

sua dissertação de mestrado que se transformou no livro Textuacões: Ficção e

Fato no Novo Jornalismo de Tom Wolfe, pontua que a produção de Tom “prima

não pela unidade, mas, antes, por uma pluralidade de focos, linguagens,

personagens, enfim, um texto permeado por verdades factuais e ficcionais”

(Resende, 2002: 21).

Para ele, trata-se de uma leitura que ora define-se como informativa,

ora como interpretativa e ambígua; onde a expansão toma o lugar da rigidez.

Realidade e ficção, assim, diluem-se num texto que visa ao deleite, não a

definição. Características essas que podem se estender por grande parte da

produção do Novo Jornalismo.

Wolfe, por sua vez, já apontava como um dos principais problemas

da escrita jornalística convencional de não-ficção, a maneira discreta, polida e

contida com que a voz do narrador era construída intencionalmente no texto.

Isso porque, de acordo com ele, para parecer verossímil não era

necessário se abster por completo. “Isso nada tinha a ver com objetividade e

subjetividade, ou de assumir uma posição ou ‘compromisso’ – era uma

questão de personalidade [....], numa palavra, de estilo” (Wolfe, 1976: 32).

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Segundo ele, essa escrita “bege” e “pálida”, construída por

jornalistas de “cabeça prosaica” e “espírito fleumático”, entediava o leitor

profundamente, a ponto de ele desistir da leitura.

Chegamos assim a um ponto no qual talvez seja possível destrinchar

o objetivo do autor no lide supracitado de A Garota do Ano, ao escolher um

emaranhado de palavras, a priori incompreensíveis, para comentar os gestos,

os costumes, as indumentárias deslumbrantes que via nas moças. Ele mesmo

afirma que se sentia como “a voz da ribalta”, mudando o ponto de vista no

meio de parágrafos ou frases. Tudo para tornar a leitura mais aprazível e

instigante.

Gostava da idéia de começar uma história deixando o leitor, via narrador, falar com os personagens, intimidá-los, insultá-los, provocá-los com ironia ou condescendência [....]. Por que o leitor teria de se limitar a ficar ali quieto e deixar essa gente passar num tropel como se sua cabeça fosse a catraca do metrô? (Idem, Ibidem: 31).

No entanto, ao contrário do que possa parecer, toda essa revolução

estilística advinda a partir do Novo Jornalismo não passou incólume diante das

línguas ferinas e reacionárias de críticos conservadores. Wolfe lembra que

Breslin, por exemplo, foi incompreendido. Isso porque como os críticos não lhe

atribuíam a pecha de literato, eles igualmente não se permitiam um maior

envolvimento na sua escrita romanesca, porém ainda jornalística. Para eles,

aquilo era inaceitável.

O que acontecia em meados de 1966 era que, enquanto os

repórteres especiais ficavam extasiados com a repercussão positiva de seus

trabalhos, parte da crítica literária tentava a todo custo minimizar seus feitos.

O Columbia Journalism Review e o The New York Review of Books,

em pânico, chegaram inclusive a publicar listas questionáveis de “erros”. Era o

pavor de uma ameaça eminente, um clima de competição que até então existia

somente entre os “superiores” romancistas, jamais entre os “inferiores”

jornalistas. Como lembra Wolfe, eles chegaram à conclusão de que “ali estava

o danado do gênero novo, aquela ‘forma bastarda’, aquele ‘parajornalismo’,

rótulo que atribuíam não apenas a mim [....] mas também a Breslin, Talese...”

(Idem, Ibidem: 42).

17

Esse coro por parte dos críticos, no entanto, não se sustentou por

muito tempo. Já naquele ano de 1966, um jornalista free-lancer controverso do

Kentucky, chamado Hunter S. Thompson, despontava com Hell’s Angels:

medo e delírio sobre duas rodas, livro sobre o dia-a-dia de motoqueiros

arruaceiros da Califórnia; e Truman Capote lançava o livro A Sangue Frio, uma

compilação de reportagens sobre o assassinato de uma rica família do Kansas,

que originalmente foram publicadas na revista The New Yorker.

O sucesso de ambos os livros, escritos por autores desprestigiados

na época e nos moldes do Novo Jornalismo – Truman conviveu cinco anos

com os dois assassinos e fez um extenso trabalho de pesquisa, enquanto

Thompson viajou dezoito meses com sua trupe –, foi a deixa para que todos,

enfim, se rendessem aquilo que Capote passou a chamar de “romance de não-

ficção”, e que um colega de Thompson, mais adiante, cunhou de Gonzo

Jornalismo – movimento que iremos abordar na seqüência.

Truman Capote, na verdade, é considerado um dos grandes

expoentes do Novo Jornalismo. Talvez por sua personalidade egocêntrica e

instigante, e por sua extrema habilidade descritiva ele seja, até os dias atuais,

um dos jornalistas mais lembrados do período. Sua versatilidade e seu trânsito

por diversos estilos de reportagem são fáceis de serem observados.

Em 1956, por exemplo, ele descortinou a imagem de Marlon Brando

em uma das mais ousadas e emblemáticas entrevistas da história, feita com o

astro em seu quarto de hotel em Kyoto, enquanto Brando filmava Sayonara.

- Ora, Sayonara. Eu a adoro! Essa bela tolice água-com-açúcar que tinha pretensões a ser um filme sério sobre o Japão. Mas que diferença faz? Afinal, eu só estou fazendo pelo dinheiro. Dinheiro para a arrancada inicial da minha própria companhia. – Puxou o lábio com ar meditativo e bufou de novo. (Capote, 1977: 269).

Gay Talese é outro nome digno de ser destacado neste rol. Wolfe

confessa seu estado de choque ao se deparar, em 1962, com uma das

reportagens que ele fez para a revista Esquire, sobre um boxeador em fim de

carreira, cujo título é Joe Louis: o Rei na meia-idade.

18

A surpresa deveu-se, sobretudo, pela transposição na íntegra de

diálogos extremamente íntimos que o atleta travou com a mulher, enquanto

Gay Talese o entrevistava no aeroporto.

Avalia-se que a sua intenção ao transpor estas conversas de

cunho pessoal era de alguma maneira a de retratar fragmentos do cotidiano

daquele atleta que, enquanto às vistas da maioria das pessoas era tido como

valente e durão, diante da mulher mostrava toda a sua fragilidade.

“Oi, meu bem!”, Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la esperando por ele no aeroporto de Los Angeles. Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos pés para beijá-lo quando, de repente, parou. “Joe”, disse ela, “cadê sua gravata?” “Ah, benzinho”, ele disse, dando de ombros. “Fiquei acordado a noite inteira em Nova York e não tive tempo de...” “A noite inteira!”, ela cortou. “Quando está aqui, você só quer saber de dormir, dormir e dormir.” “Benzinho”, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, “eu estou velho.” “É”, concordou ela, “mas quando vai para Nova York, você tenta ficar moço de novo.” (Wolfe, 1976: 20-21).

Resta mencionar que o Novo Jornalismo, apesar de quebrar

diversos paradigmas vigentes na imprensa norte-americana da década de 60,

não pode ser tido como um movimento absolutamente inédito.

Muito maior e mais abrangente que ele é o termo Jornalismo

Literário, que abarca todo e qualquer tipo de produção que transite livremente

por ambas as vertentes: jornalismo e literatura; e surgido por volta dos anos

20.

Juliana Bomtempo Rangel recorda – em artigo sobre a influência do

Novo Jornalismo no jornalismo convencional brasileiro – que isso se deu

justamente em um momento no qual “os jornalistas perceberam que aquele

padrão [narrativo] não dava conta de reproduzir a dramaticidade de uma

guerra” (Rangel, 2006: 2). Ou seja, que por meio da fria objetividade e do ideal

de isenção, não era possível narrar de maneira verossímil os fatos da

realidade.

19

É justamente a uma dessas outras possibilidades textuais, que tão

bem dialogam com o Jornalismo Literário, que iremos nos ater neste trabalho:

o Jornalismo Gonzo.

1.2. É chegada a hora do Gonzo

’Olha.’ Ele me cutucou no braço para ter certeza de que eu estava

escutando. ‘Eu conheço esse público do Derby, venho aqui todo ano, e

deixa eu te contar uma coisa que eu aprendi: aqui não é uma cidade onde

você pode dar brecha pras pessoas acharem que você é veado ou coisa

assim. Pelo menos não em público. Porra, eles caem em cima de você na

mesma hora, te dão uma porrada na cabeça e levam cada centavo seu.’ –

Hunter S. Thompson

Em meados de 1970, Hunter S. Thompson – jornalista do Kentucky

que costumava trabalhar como free-lancer e que, alguns anos antes, tinha

adquirido notoriedade com a publicação de Hell’s Angels: medo e delírio sobre

duas rodas – decidiu cobrir a mais tradicional corrida de cavalos da América, o

Kentucky Derby, que acontece anualmente há mais de um século na sua

cidade natal, Louisville. Para isso, ele se dirigiu ao evento juntamente com um

ilustrador inglês, Ralph Steadman, que deveria retratar de forma grotesca e

cômica todo tipo de personagem pitoresca e alegórica que lhes aparecesse

pela frente.

O fragmento acima faz parte deste material, publicado originalmente

na revista de esportes Scanlan’s Monthly, em junho daquele ano, e que

ganhou o controverso título de O Kentucky Derby É Decadente e Degenerado.

Dito isto, é imprescindível salientar que em nenhum momento, no

decorrer de todo o longo texto, o autor fez questão de mencionar qualquer

referência aos competidores, aos cavalos, à corrida, às apostas ou mesmo aos

grandes campeões daquele ano. Ou seja, desprezando e desmerecendo a

fórmula “o quê, como, quem, quando, onde, por que”...

Mais relevante do que isso, para Thompson, foi colher um apanhado

de observações ácidas sobre os bastidores deste acontecimento de

características dionisíacas, enquanto Steadman tratava de ilustrar os

20

“verdadeiros” animais, segundo ele, presentes ali: políticos maus-caracteres,

baderneiros, entusiastas e personalidades dúbias. Detalhe: ambos fizeram

questão de cobrir todo o evento sob forte efeito de álcool e drogas. Estava ali o

primeiro sinal contundente de que a muralha que sempre separou o jornalismo

da ficção estava, cada vez mais, prestes a ruir – pelo menos no que dizia

respeito ao submundo do jornalismo.

As reações aquilo que Hunter acabara de criar foram variadas.

Porém, a única que verdadeiramente ficou para a história foi a de Bill Cardoso,

um jornalista amigo seu que, ao ler a reportagem, esbravejou – como traz a

tona Christine Othitis, no artigo intitulado The Beginnings and Concept of

Gonzo Journalism [As origem e a concepção do Gonzo Jornalismo]2:

I don't know what the fuck you're doing, but you've changed

everything. It's totally gonzo [Eu não sei que porra você está

fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo] (Carol

apud Othitis, 1994).

Foi o próprio Cardoso que destrinchou o significado da inusitada

expressão logo após o ocorrido, afirmando que se tratava de “uma corruptela

da palavra “gonzeaux”, evocada nas regiões de língua francesa [....] com o

sentido de ‘via iluminada’” (Vasconcelos, 2003: 7).

Em português, por sua vez, tanto no Mini Dicionário Houaiss da

Língua Portuguesa quanto no Mini Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,

gonzo consta como “dobradiça de porta ou janela”. Entretanto, mais importante

do que as definições, foi o fato de Hunter Thompson ter adotado termo e

forma, definitivamente, nas suas próximas estripulias jornalísticas, inaugurando

assim uma estilo diferente de tudo que já se tivera notícia na história da

imprensa.

Uma dessas próximas aventuras foi justamente a cobertura do Mint

400, uma famosa corrida de motos que acontece no deserto de Nevada. Desta

vez, acompanhado de um colega advogado, Hunter Thompson segue rumo às

imediações de Las Vegas para desvendar não o mundo da velocidade sobre

2 Disponível em: < http://www.gonzo.org/articles/lit/esstwo.html >. Acesso em: 28 de novembro de 2006.

21

duas rodas. Mas para, igualmente sob o efeito de entorpecentes, se ater à vida

dos demais drogados e viciados em jogo que se aglomeravam nas

proximidades da competição, nos cassinos, bares, boates e ruas do Estado

americano.

A reportagem, originalmente feita para a revista Sports Illustraded, é

recusada. No entanto, em 1971, a Rolling Stones a publica na íntegra, em

duas edições. Sob o pseudônimo de Raoul Duke, Medo e Delírio em Las

Vegas: Uma Jornada Selvagem ao Coração do Sonho Americano, logo viraria

livro e Hunter passaria a utilizar com mais freqüência a tal alcunha, que ficou

famosa.

Fato ou ficção? Realidade ou despretensiosos devaneios? O que era

e qual foi a verdadeira intenção do tal Gonzo ao desconstruir audaciosamente

regras pré-estabelecidas há séculos pelo jornalismo – desde a escolha das

pautas a confecção de reportagens, artigos, livros?

Para começar, é importante deixar claro que “em essência, o gonzo-

jornalismo caracteriza-se pela ausência de regras rígidas” (Idem, Ibidem: 8).

Partindo deste pressuposto, o próprio autor da afirmação acima continua o

processo de conceituação ao lembrar que um dos grandes e principais

entraves que Thompson sempre encontrou na maneira convencional de fazer

jornalismo foi o outrora intocável “ideal de objetividade”.

Vasconcelos faz questão de registrar que, para Thompson, muito

mais interessante do que supostamente incitar um clima de confiança entre o

meio de comunicação e o leitor por meio de uma questionável isenção, era se

fazer presente em toda a narrativa. Ou melhor, deixar isso bem claro para o

leitor que, ao final, teria a chance, ele mesmo, de fazer seu juízo de valor.

A escolha de escrever em primeira pessoa pressupõe, no gonzo-jornalismo, um desejo de subversão, ironia e contraposição, tanto frente ao jornalismo dito tradicional, quanto perante a ordem das coisas. [....] O gonzo situa numa esfera autodelatadora, denuncia a si mesmo para mostrar a fragilidade do conteúdo discursivo jornalístico, seja ele em primeira ou terceira pessoa. (Idem, Ibidem: 10).

Vasconcelos nos recorda de outro aspecto que podemos facilmente

observar nas construções gonzo (seja nas de autoria do próprio Thompson ou

22

nas diversas reportagens do jornalista Xico Sá, que analisaremos mais

adiante): a livre e vasta utilização da ironia. Para ele, o autor, ao lançar mão

deste recurso, pretende se nivelar ao receptor, “compartilhando com ele suas

ambigüidades e deixando clara a sua incapacidade de absorver e transmitir a

‘verdade’”. (Idem, Ibidem: 12).

A grande polêmica em torno de até que ponto o Jornalismo Gonzo

pode ser considerado verídico é também discutida por Czarnobai. Segundo

ele, “é possível ser verossímil sem ter um compromisso com a verdade, desde

que o autor esteja devidamente inserido naquilo sobre o que está escrevendo”.

(Czarnobai, 2003). Condição esta indiscutível em se tratando de Thompson

que, assim como a turma do Novo Jornalismo, sempre teve como um de seus

pontos positivos o minucioso trabalho de apuração, e mais: uma intencional

imersão no ambiente a ser retratado.

Czarnobai, aliás, ao diferenciar o Novo Jornalismo do Gonzo

Jornalismo no âmbito da investigação, prefere denominar o processo do

segundo de “osmose”, já que “o repórter gonzo altera o objeto de sua

reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter.” (Idem,

2003). O autor é enfático ao afirmar que este fato pode ser tido como uma

vantagem do Gonzo, cujo ponto de vista do repórter tenderá sempre a ser mais

fiel à realidade.

Juliana Bomtempo Rangel enaltece igualmente a nova modalidade

narrativa ao declarar que

Um dos principais problemas do Novo jornalismo resolvido em parte pelo Jornalismo Gonzo é justamente esta velocidade na apuração e redação das matérias, dispensando, inclusive, a etapa da edição. O Jornalismo Gonzo abre mão da entrevista como instrumento de pesquisa principalmente por focar sua atenção em um personagem-narrador que é o próprio repórter, o protagonista da ação. (Rangel, 2006: 7).

Feito este breve panorama da gênese do Gonzo Jornalismo, é

possível partir para a enumeração de algumas das mais relevantes e

presentes características do gênero. Estas servirão como base comparativa e

analítica ao longo de todo o restante deste trabalho.

23

Christine Othitis, em seu artigo sobre os primórdios do Gonzo, por

exemplo, irá citar alguns pontos como marcantes na escrita de Hunter

Thompson. Autor que, de acordo com ela, deveria ser considerado o único

gonzo jornalista existente no mundo – ponto este, a nosso ver, merecedor de

ressalvas, já que é de nossa pretensão analisar ainda as produções de outros

jornalistas, nas quais identificamos, senão recursos narrativos idênticos,

recursos similares aos do Gonzo Jornalismo.

Ademais, antes de entrarmos de vez nessas peculiaridades também

vale reiterar que não pretendermos entrar na polêmica que questiona se o

gonzo pode ser considerado uma modalidade jornalística ou não. Mais

importante do que isso, para nós, é a análise das especificidades narrativas

desta linguagem.

Seguem as principais características presentes no trabalho de

Hunter Thompson apontadas por Othitis (1994):

- Preferência por temas como sexo, violência, drogas, esportes e

política;

- Uso de citações de gente famosa e de outros escritores ou às

vezes dele mesmo como epígrafe;

- Referências a figuras públicas como jornalistas, atores, músicos e

políticos;

- Tendência de se distanciar do assunto principal ou do assunto por

onde o texto começou;

- Uso de sarcasmo e/ou vulgaridade como forma de humor;

- Tendência das palavras fluírem e um uso extremamente criativo do

inglês;

- Descrição extrema das situações.

Não é demais lembrar que a escrita Gonzo: 1) é intencionalmente

feita em primeira pessoa – o que, naturalmente, confunde o leitor, que nunca

ficando sabendo o que é e o que não é ficção –; 2) pode vir acompanhada de

reflexões com toques de devaneio em decorrência do uso de drogas; 3)

depende de uma captação participativa; e 4) pode lançar mão de recursos

ficcionais durante a narrativa.

24

Para finalizar, lembramos que na atualidade é possível observarmos

alguns exemplos de adaptações ao estilo Gonzo de apurar, narrar, ousar e,

claro, quebrar padrões.

Alguns desses exemplos, como ressalta Martin Hirst, em seu artigo

What is Gonzo? The etymology of na urban legeng [O que é Gonzo? A

etimologia de uma lenda urbana]3, “infelizmente” estão atingindo inclusive

aspectos da cultura popular que fogem por completo à idéia inicial de

Thompson.

Ele cita o caso do programa JackAss, transmitido pela MTV

americana e que apesar de não se assemelhar na íntegra ao trabalho de

Thompson, imita a maneira bizarra e extrema do Gonzo lidar com a realidade.

Já em relação ao trabalho do cineasta Michael Moore, Hirst analisa

como uma forma positiva e original de Jornalismo Gonzo.

He doesn’t project the same bizarre image as Thompson did with drugs and sex, but he does approach his political material with a similar personal and involved account. Moore is also physically ‘gonzo’ in appearance, deliberately dressing down to affect [Ele não projeta a imagem bizarra que Thompson projetou ao usar drogas e sexo, mas ele aborda seu material político de maneira similar. Moore é também fisicamente ‘gonzo’ na aparência, deliberadamente vestido para afetar]. (Hirst, 2004: 12).

Entretanto, não iremos nos deter nessas inovações, muitas vezes

recheadas de marketing, que encontramos na contemporaneidade. Este

trabalho, como já citado, é voltado estritamente para o caráter narrativo

advindo do estilo Gonzo. Por isso, antes de entrarmos propriamente em

exemplos desta modalidade no Brasil e na análise do nosso objeto de estudo,

faremos um sucinto resumo da trajetória do grande pioneiro desta marca.

1.2.1. O iconoclasta: Hunter S. Thompson

3 Disponível em: < http://eprint.uq.edu.au/archive/00000776/01/mhirst_gonzo.pdf>. Acesso em: 27 de novembro de 2006.

25

WOODY CREEK, Colorado – Um epitáfio estranho para um ano estranho

[....]. Nunca mais tive um leiteiro depois dos dez anos de idade. Eu

costumava acompanha-lo em seu itinerário, lá em Louisville. Era um

daqueles furgões sem porta, onde se ficava de pé e se podia saltar para

dentro ou fora durante o trajeto. Aquele furgão fedendo a azedo se

arrastava pela rua, de casa em casa, enquanto eu ia e vinha com a

mercadoria. –

Hunter S. Thompson

Hunter Stockton Thompson nasceu em Louisville, no Kentucky,

Estados Unidos, em 18 de junho de 1937. Criança agitada e carismática,

Hunter costumava encantar a todos com seu jeito de líder. Ele conseguia

liderar desde times de baseball a badernas com os colegas da escola. Seu

poder de encanto, inteligência e perspicácia eram tantos que ele, facilmente,

manipulava as pessoas ao seu redor – com exceção da sua vizinhança, que

começava a perceber prematuramente seu comportamento violento.

O fato de ser filho de pais alcoólatras e de ter perdido o pai, Jack

Robert Thompson, aos 15 anos, fez com que o garoto entrasse cedo no mundo

das drogas. Aos 17 anos, foi preso por assalto e, “como forma de redução da

pena, o juiz que o condenara propôs a Thompson que ele se alistasse no

serviço militar” (Vasconcelos, 2003: 5).

Apesar do comportamento rebelde, Hunter Thompson conseguiu se

livrar da Força Aérea “com honras” – talvez até em decorrência dos serviços

prestados ao jornal Command Courrier, no qual caiu nas graças da maioria dos

soldados, que gostavam de suas matérias.

Foi nessa mesma época que Thompson, de acordo com Othitis

(1994), começou a fazer amizades com diferentes personalidades, como

escritores, agentes esportivos, músicos e políticos. Dali em diante foi um salto

para que ele começasse a escrever para pequenos jornais – experiência essa

sem muito sucesso, posto que seu estilo, opinião e sua personalidade forte

não combinavam em nada com esses meios de comunicação.

Tabaco, gin, boubon, Kentucky Derby e Hunter Thompson. Todos são produtos bastante alegóricos de Louisville, e têm em sua configuração um viés entorpecente, alterador do estado de consciência. [....] Essa rebeldia de Thompson não

26

figurava apenas em sua atitude diante do mundo, mas sedimentava-se em sua maneira de escrever. (Vasconcelos, 2003: 5).

Para Vasconcelos, essa maneira de escrever do autor, desde o

início, já despontava como autobiográfica. Em toda sua produção, por sinal, é

nítida a predominância por temas de sua predileção, como esportes, violência,

política, sexo e drogas.

Após essas tentativas frustradas, Thompson aceitou a proposta de ir

cobrir a América Latina para o National Observer e, mais adiante, como

recorda Czarnobai (2003), para Porto Rico, onde deveria escrever sobre

boliche para a revista El Sportivo. Ambas as tentativas, no entanto, tornaram-

se igualmente desestimulantes para ele, que vislumbrava muito mais.

Sendo assim, Hunter voltou para casa em 1962 e continuou seu

trabalho na National Observer, de onde se demitiu um tempo depois, após se

recusar a escrever um artigo sobre o livro de Tom Wolfe, The Kandy-Colored

Tangerine Flake Streamline Baby.

Assim como muitos de seus contemporâneos, Thompson enfrentava o dilema do especialista em reportagem: queria escrever ficção mas via-se obrigado a buscar refúgio na sobriedade do jornalismo enquanto não alcançasse algum êxito literário (Czarnobai, 2003).

A forma de driblar esses percalços foi justamente se integrando

àquela turma de Novos Jornalistas que despontava. Isso aconteceu com a

publicação de Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas na revista Nation

em 1965, e no ano seguinte como livro. Dentre os méritos do autor estava o

fato dele ter desconstruído o então famoso Lynch Report, feito pelo Secretário

de Segurança da Califórnia, Thomas C. Lynch, e que continha denúncias

duvidosas de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos Hell’s Angels.

A idéia de Thompson nunca foi a de redimir os Hell’s Angels perante a sociedade [....]. Thompson tinha a preocupação em mostrar os dois lados desta mesma questão e deixar para o leitor a formação de seus próprios conceitos, fugindo assim do sensacionalismo que imperava nas matérias sobre os motoqueiros. (Idem, 2003).

27

E, apesar deste longo trabalho – construído durante a sua

convivência de 18 meses com os motoqueiros – não possa ainda ser

considerado um exemplo do Gonzo Jornalismo, foi neste período que o autor

passou a usar com mais freqüência drogas como o LSD. Fato este que

permaneceria por toda a sua obra – inclusive durante o artigo que inaugurou o

Gonzo, O Kentucky Derby É Decadente e Degenerado.

Antes de se suicidar, em 20 de fevereiro de 2005, Hunter S.

Thompson continuava produzindo suas reportagens avessas a qualquer tipo

de regra, e repletas de humor, ironia, palavrões e gírias. Publicou dez livros.

Na ESPN americana, mantinha uma coluna sobre futebol americano, intitulada

Hey, Rube!

Seu modo sui generis de agir e produzir atingiu, inclusive, a sétima

arte. No cinema, Bill Murray o interpretou em Where the Buffalo Roam (1980) e

Johnny Deep em Fear and Loathing in Las Vegas (1998), filmes dirigidos,

respectivamente, por Art Linson e Terry Gilliam.

Thompson vivia sozinho em sua pequena fazenda, localizada em

Woody Creek, Colorado, e conhecida como Owl Farm, que ele havia adquirido

na década de 60. Foi de lá que ele escreveu a epígrafe supracitada no início

neste tópico, retirada do artigo Medo e Delírio no Bunker, publicado em 1º de

janeiro de 1974, no The New York Times.

Thompson costumava dizer que um bom escritor gonzo deveria ter

“o talento de um jornalista, o olho de um fotógrafo, e os culhões de um ator”.

1.3. E o Brasil com isso?

Década de 60. Enquanto a América fervilhava ao ver os velhos

costumes e a moral ruírem ao som do rock and roll, da disseminação da

cultura hippie, dos movimentos sociais e radicais, da liberação do sexo e das

drogas, e da edificação de um ideal de cultura subversivo e anarquista – a

contracultura –; o Brasil deixava o “Amor, o Sorriso e a Flor” da Bossa Nova

trilhar caminhos estrangeiros para abraçar a vanguarda artística paulista, o

Pré-Tropicalismo, a Jovem Guarda, e a canção de protesto – preocupada em

retratar o sufoco de um país às turras com os primórdios do governo militar.

28

Foi em meio a este cenário revolucionário que alguns órgãos

ousados da imprensa brasileira permitiram-se plantar sementes. Os frutos, em

sua maioria, foram assaz satisfatórios. No entanto, poucos desses meios

conseguiram fincar fortes raízes diante de uma realidade tão incerta e tão

caótica quanto o próprio conceito de ruptura.

Um desses exemplos foi a Revista Realidade que, em 1966,

inaugurou um dinâmico estilo de retratar um país em mudanças – seja pela

linguagem ousada, seja pela escolha de temas que permeavam uma

existência repleta de censura e hipocrisia a derredor.

De acordo com Rodrigo Oliveira de Alvares, em sua monografia de

conclusão do curso de Jornalismo4, “Com suas grandes reportagens, [a

Revista Realidade] foi a precursora de um jornalismo investigativo, inventivo e

exaustivo que lhe rendeu muitos seguidores” (Alvares, 2004).

Alvares recorda, por exemplo, de alguns temas tabus retratados pela

publicação, como o forte embate que acontecia entre policiais e estudantes, o

casamento entre padres e a situação da mulher brasileira. Uma dessas

edições, de 1967, que discutia sexo, aborto e casamento, sob a óptica

feminina, chegou a ser apreendida.

Outra reportagem de grande repercussão foi a escrita por José

Hamilton Ribeiro, enviado especial à Guerra do Vietnã. Além de reportar os

horrores que observou durante os dias que passou no país, ele descreveu com

riqueza de detalhes o momento no qual ele próprio pisou em uma mina

terrestre e perdeu parte de sua perna esquerda – tratava-se do seu derradeiro

dia no Vietnã.

Ribeiro narrou todo o seu sofrimento no decorrer das semanas

seguintes, durante seu período de recuperação. A reportagem foi a grande

vencedora do Prêmio Esso naquele ano, 1967.

O resultado deste trabalho logo se fez sentir: em seis meses, a revista alcançou a maior tiragem do país até então. Com 475 mil exemplares e mais de um milhão de leitores por edição. Em seus dez anos de existência, ganhou prêmios, provocou debates, contribuiu para revelar e discutir grandes polêmicas (Idem, Ibidem).

4 Disponível em: < http://flashself.blogspot.com/>. Acesso em: 27 de novembro de 2006.

29

No entanto, apenas dez anos depois, em 1976, Realidade perde seu

lugar de destaque para um novo conceito de revistas semanais, mais

antenadas com a rapidez da cobertura dos fatos. Saem de cena as longas

reportagens comportamentais e polêmicas para assumir um novo, veloz e

limitador estilo de cobertura, no qual o factual, a superficialidade e a

padronização imperam. Um forte exemplo disso é a revista Veja, que dá “a

impressão de que é escrita pela mesma pessoa da primeira à última linha

(Idem, Ibidem).

A título de curiosidade, é interessante abrir um parêntese para

recordar que quem pisou, coincidentemente, em terras tupiniquins neste

período foi o próprio Hunter Thompson. Em 1963, quando o Gonzo existia

apenas na mente inquieta do autor, ele esteve no Rio de Janeiro, de onde

escreveu para a National Observer a reportagem Tiroteio no Brasil, uma

contundente crítica ao exército e à polícia brasileira.

Aí está a raiz do problema, e uma das maiores diferenças entre os Estados Unidos e não apenas o Brasil, mas todos os países latino-americanos. Onde a autoridade civil é fraca e corrupta, o Exército acaba se tornando rei. Até mesmo as palavras “justiça” e “autoridade” assumem significados diferentes. (Thompson, 1979: 140).

Antes de entrarmos mais especificamente na análise de dois casos

que sugerem uma adaptação real ao estilo Gonzo no Brasil – o da Revista Trip

e da Irmandade Raoul Duke – não é demais mencionar o trabalho

desenvolvido pelo vespertino Jornal da Tarde, que conseguiu romper com

muitas dessas amarras; o do jornal O Pasquim que, sem pedir licença a

nenhuma autoridade driblou a censura com bom humor, ironia e uma turma de

competentes profissionais; além de muitos outros jornalistas que, por já

desfrutarem de certo prestígio na imprensa, atreveram-se a mexer na ferida

alheia e tripudiar da realidade do País, como José Simão e, mais adiante, o

próprio Xico Sá, objeto de nossa pesquisa.

30

1.3.1. Arthur Veríssimo e o caso Trip

Humberto Gessinger estava coberto de razão. O tal do papa é pop mesmo.

Todos os dias, pela manhã, uma verdadeira horda de peregrinos de todas

as partes do mundo comprova a tese do engenheiro havaiano com

romarias na impressionante praça de São Pedro, no Vaticano. A fé é

embalada de tudo que é jeito. Os devotos compram medalhinhas, fotos de

santos e de papas e uma miríade de miudezas ao redor da basílica.

Parece concerto de música clássica com show de dupla sertaneja. E tudo

muito pop. Bento 16 pode não ser tão carismático quanto João Paulo 2º,

mas a praça está sempre tomada – e quando Sua Santidade aparece

numa das janelas do complexo papal é o legítimo deus-nos-acuda. A

muvuca é tanta que nem eu, repórter ph.D. em roubadas, consegui me

aproximar e beijar a mão do Sumo Pontífice. –

Arthur Veríssimo

Em 8 de setembro de 1986 é lançada a primeira edição da Revista

Trip. Num curto período de tempo, a publicação mostra ao que veio ao inovar

no aspecto gráfico, na escolha de pautas (geralmente polêmicas e/ou

comportamentais), e ao inaugurar um novo conceito de ensaios fotográficos

femininos.

Matérias com o ousado efeito 3D, publicação de fotos inéditas, Cds

encartados, campanhas publicitárias contra o tabagismo e o veto aos anúncios

de cigarro foram algumas das descobertas e bandeiras levantadas.

Diversos prêmios ao longo dos anos foram a conseqüência direta do

pioneirismo e da qualidade editorial: foi finalista do Esso de Jornalismo duas

vezes e vencedora uma vez na categoria Criação Gráfica em Revista com a

reportagem Descrimine Já – trabalho sobre a importância da descriminação do

aborto no Brasil, dentre outros.

Um desses fortes exemplos de pioneirismo foi justamente a idéia de

tornar constante na revista a publicação de uma reportagem nos moldes

Gonzo. O fragmento do texto, no alto, escrito pelo repórter especial Arthur

Veríssimo para a edição número 136, de setembro de 2005, cujo título era

Papas na Língua, retrata bem o intuito de Trip.

31

Enviado especial a Roma para “supostamente” entrevistar o recém-

empossado papa Bento 16, Veríssimo retornou da capital italiana apenas com

“enrolações diversas”, como ele descreve no abre da matéria.

Sua forma de escrever debochada, sarcástica, direta e, sobretudo,

em primeira pessoa, já despontava desde o início como uma inovação e uma

adaptação intencional ao modos operandi de Thompson.

Se, claro, seu feito e repercussão não mereciam a denominação de

inédito no País, pelo menos Trip e Arthur Veríssimo eram dignos de rótulos

como ousados e destemidos – ainda mais se é feita uma análise comparativa

ao que vinha sendo feito nos demais meios impressos nacionais.

Antes de entrarmos no segundo exemplo escolhido para ilustrar

como o Gonzo Jornalismo foi adaptado no Brasil – a Irmandade Raoul Duke –

é importante registrar que foi exatamente na Revista Trip que Xico Sá

começou a exercitar mais livremente o poderio de sua narrativa, trabalhando

como repórter free-lancer da publicação.

1.3.2. A Irmandade Raoul Duke

Como dito anteriormente, um dos maiores entraves para a prática

freqüente do Gonzo Jornalismo na imprensa tradicional sempre foi o conceito

amarrado de objetividade – ao qual ela esteve e está presa. Um exemplo nítido

deste bloqueio ainda hoje é o ideal de isenção, que ela tanto exige no dia-a-

dia.

Partindo desse pressuposto e, não à toa, foi na Internet que

pretensos alter-egos de Thompson começaram a vislumbrar a possibilidade

deles próprios se tornarem repórteres subversivos. Talvez o maior e mais

emblemático caso ainda seja o da Irmandade Raoul Duke, fundada em

meados de 20025.

Desde o uso no título do famoso pseudônimo de Hunter, até a

reunião de “escritores, jornalistas e outros vagabundos da mesma estirpe

interessados em diversos aspectos do gonzo jornalismo”, como afirma o seu

5 Disponível em: < http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/home3.html >. Acesso em: 27 de novembro de 2006.

32

Manifesto6, a Irmandade tentou exercitar uma prática ainda quase

desconhecida no País.

Vasconcelos, em sua monografia de conclusão do curso de

Comunicação Social sobre o site, o descreve como “uma iniciativa sem

precedentes no jornalismo brasileiro” (Vasconcelos, 2003: 17), cujo principal

objetivo era publicar artigos, reportagens e entrevistas gonzo. Vale ressaltar

que todos eles, no entanto, respeitando a uma Carta de Princípios –

disponibilizada no mesmo endereço eletrônico do Manifesto mencionado

acima.

Ele lembra que IRD surgiu de uma lista de discussão sobre o tema e

que o seu editor, o jornalista André “Cardoso” Czarnobai7, pegou de

empréstimo o “Cardoso” do nome em homenagem a Bill Cardoso, que cunhou

a expressão Gonzo Jornalismo.

A Irmandade Raoul Duke representa o jornalismo do lapso, da catarse, da alucinação (voluntária ou induzida), das conexões oníricas, do raciocínio ilógico, da ironia, do mergulho abissal do repórter na matéria, da contradição, da contravenção, da contraposição. Um jornalismo que anda na contra-mão, contra todos e contra si mesmo. Anti-jornalismo, anti-literatura, anti-tudo. (Idem, Ibidem: p. 19).

Durante seus três meses de vida – março, abril e junho de 2002 – a

IRD contou com a colaboração da jornalista Paula Pó (pseudônimo), dentre

uma turma de escritores espalhados por todo o País. É de Pó o trecho de uma

reportagem escolhida para ilustrar a produção da Irmandade, cujo título é

FGTS: As letras do Demônio ou Burocracia é Ocultismo de Pobre. 8

Eu achava que já sabia tudo sobre ocultismo até conhecer as assustadoras letras: FGTS. São quatro inocentes sinais gráficos que ganham um poder demoníaco quando juntos, comparável ao 666. Só que enquanto o tal número da besta atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e metaleiros, o

6 Disponível em < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/filo.html >. Acesso em: 28 de novembro de 2006. 7 Autor da monografia de conclusão de curso intitulada: Gonzo – O Filho Bastardo do New Journalism, que citamos ao longo deste trabalho. 8 Disponível em: < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/fgts.html >. Acesso em: 28 de novembro de 2006.

33

FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias. (Pó, 2002).

Mesmo, talvez, se assemelhando muito a linguagem autoral e, por

oras, extremamente pessoal e descompromissada dos blogs, estas

reportagens publicadas na IRD – até por não haver um rígido compromisso

editorial ou por estarem situadas em um ambiente virtual – guardam, de fato,

significativa semelhança com o estilo narrativo do Gonzo, como podemos

perceber.

Ademais, feita esta sucinta conceituação dos primórdios do Gonzo

Jornalismo, da produção de Hunter Thompson, e de como estas narrativas

subversivas ecoaram em terras tupiniquins – no intuito tanto de apresentá-lo

como de conhecer suas especificidades – partimos então rumo a outras

discussões, quiçá tão polêmicas e ousadas quanto; aquelas que dizem

respeito aos limites entre o Jornalismo e a Literatura.

34

2. Jornalismo e Literatura

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de

fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de

distante, e que se distancia ainda mais. [....] Uma experiência

quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e

desse ângulo de observação. É a experiência de que narrar

está em vias de extinção. São cada vez mais raras as

pessoas que sabem narrar devidamente –

Walter Benjamin

Resguardadas as devidas peculiaridades do texto O Narrador, de

Walter Benjamin, é possível fazer um paralelo entre a constatação apocalíptica

do pensador alemão em relação ao ato de narrar e o atual jornalismo diário, a

que todos estamos sujeitos. Segundo Benjamin – que escreveu o ensaio ainda

em meados do século passado –, a cada dia estamos nos privando de uma

faculdade que sempre nos pareceu inalienável: a faculdade de intercambiar

experiências. Dito de outra forma: a faculdade de narrar bem os fatos do nosso

dia-a-dia.

As ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo do que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis (Benjamin, 1985: 198).

35

Benjamin considera que esta experiência – que ao longo da história

do homem sempre foi repassada de pessoa a pessoa – deveria permanecer

como a grande fonte inspiradora dos narradores. Ele chega a esta conclusão

afirmando, inclusive, que entre as narrativas escritas, as melhores são aquelas

que se assemelham às histórias orais.

Outro ponto mencionado por Benjamin é a dimensão utilitária da

narrativa, que pode vir tanto num ensinamento moral, numa sugestão prática

ou num conselho. Ele adverte que se hoje dar conselhos parece algo

antiquado, isso decorre do fato das experiências estarem deixando de ser

comunicáveis.

O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. [....] Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas (Idem: Ibidem: 200-201).

Outro indício de que o ato de narrar está se esvaindo surge, nos

primórdios do período moderno, com o nascimento do romance, a partir da

consolidação da burguesia e da imprensa capitalista – um de seus

instrumentos mais importantes. O romance, além de não ter procedência da

tradição oral, não a alimenta, diz Benjamin, que salienta, igualmente, o fato do

romancista ser alguém por natureza com tendência ao isolamento; alguém que,

além de não possuir capacidade para falar exemplarmente de suas

preocupações, não recebe conselhos nem os repassa. Nasceria daí o conceito

de informação que entendemos hoje. Este, no sentido mais superficial possível

do termo.

Essa informação, que exige verificação imediata e tem o dever de ser

plausível, fez com que rareassem os ouvintes dispostos a conhecerem histórias

que vêm de longe – tanto do longe espacial como do longe temporal das

tradições. Ao desaparecer o dom de ouvir, se perdem as histórias e,

automaticamente, desaparecem os futuros narradores. No lugar delas, entra

em cena um bombardeio diário de notícias do mundo inteiro acompanhadas de

explicações, que nem de longe possuem a força germinativa das narrativas.

36

Isso porque enquanto a informação só tem valor em um determinado

período – no qual ela vive e se explica nele –; a narrativa não se entrega, mas

“conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se

desenvolver” (Idem, Ibidem: 204). Sua amplitude, para Benjamin, seria

inúmeras vezes maior do que a da informação.

Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. [....] O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo (Idem, Ibidem: 221).

Ainda que, como mencionado nas primeiras linhas deste capítulo,

meçamos as diferenças entre a narração vista de uma forma mais ampla e a

narração jornalística com suas implicações, amarras e exigências intrínsecas

ao metiê, vale a pena voltarmo-nos para Benjamin, um dos grandes expoentes

da Escola de Frankfurt, para refletirmos acerca do que ele diz e, assim,

entramos de vez numa discussão tão remota quanto o próprio conceito de

jornalismo.

Afinal, o jornalismo, na ânsia por narrar corretamente os fatos reais,

deve ser considerado um gênero literário? Se não, qual o limite que o separa

da literatura, já que ele também parte da palavra para relatar situações? Até

que ponto os jornalistas estão aptos a lançar mão de recursos estilísticos

próprios da literatura para incrementar, dar consistência e mesmo humanizar

sua narrativa?

Se é mesmo verdade que o ato de narrar satisfatoriamente estórias

cotidianas está se esvaindo, seria possível resgatá-lo por meio da literatura e,

por que não, da tradição das histórias orais? E mais: diante do seu caráter

social, o jornalismo merece o status de subgênero, voltado estritamente para o

óbvio, para a fria objetividade e impessoalidade?

37

Apesar de não termos a pretensão de responder a todas estas

delicadas questões, iremos trazer à tona e discorrer sobre algumas delas na

seqüência, já que consideramos este debate essencial para a compreensão do

jornalismo que vem sendo produzido atualmente – seja nos meios tradicionais,

seja em uma minoria que ousa quebrar com esses padrões deterministas.

De acordo com José Marques de Melo, o jornalismo, por se nutrir do

efêmero e do circunstancial, “exige do cientista maior argúcia na observação e

melhor instrumentação metodológica para que não caia nas malhas do

transitório” (Melo, 2003: 13).

Partindo desse pressuposto, não é difícil admitir que, de fato, para

que se obtenha êxito nessa atividade, será fundamental responder a um

número de questões muito mais amplo do que o universo limitado das seis

perguntas que compõem o conceito de notícia jornalística (fundido,

especificamente, na figura do lead): o quê, quem, quando, onde, como e por

quê.

Em outras palavras, faz-se necessário, além de uma profundidade

apurativa, uma afeição ao produto final e, ainda, ao público consumidor da

informação que está sendo construída. Condições estas que, como

averiguaremos mais adiante, só se atingem por meio de dedicação do

profissional e de um maior aperfeiçoamento da narrativa. (Como podemos ver

no capítulo anterior, tanto o Novo Jornalismo norte-americano, como o próprio

Gonzo Jornalismo, na figura de Hunter Thompson, conseguiram levar às

últimas conseqüências a união entre jornalismo e literatura, causando

polêmicas e abrindo caminhos para inúmeras discussões, como esta que se

apresenta aqui).

Cremilda Medina, em seus estudos acerca da temática, admite que a

própria submissão do jornalismo às empresas e grupos capitalistas que o

mantém impõe certas limitações ao jornalista no momento da apuração e da

confecção da notícia – sejam elas de caráter financeiro ou ideológico. Nada,

entretanto, que legitime a falta de interesse e dedicação de alguns profissionais

no momento de re-transmitir (narrar) as informações que lhe são confiadas.

Para Cremilda, ao se assumir verdadeiramente o papel de

comunicador social é imprescindível se deixar levar por um olhar mais atento, e

38

que tenha o poder de dar ao conteúdo narrado características, sobretudo, mais

humanizadoras. Medina atribui a esse olhar o título de “Olhar Amoroso”.

A humanização das circunstâncias é um dever do mediador social: a circunstância brasileira não pode ser tratada exclusivamente por gráficos, balanços numéricos, no esquematismo das tendências do Poder ou das falas fáceis e por demais aleatórias do povo na rua. [....] O mediador social – situado no Jornalismo – tem de exercer as virtualidades de repórter e se contaminar com o desejo dos artistas. Realista pelo que se exige na averiguação dos fatos e mítico no que aspira da compreensão do homem-protagonista desses fatos (Medina, 1989: 401)

Dito isto, podemos enfim dar partida na discussão em torno das

fronteiras que ainda hoje persistem em bloquear o encontro entre o jornalismo

e a literatura.

Afinal, se para alcançar o tal objetivo de que falam Medina e

Marques de Melo (um jornalismo humanizado e longe das “malhas do

transitório”) é requerido caminhar um percurso muito mais longo do que aquele

a priori proposto pelos pregadores de um jornalismo tradicionalista – e, às

vezes, por conseguinte, monótono –, será permitido, portanto, fazer uso de

técnicas e artifícios provenientes da literatura? Ou será que eles já se

encontram presentes e à disposição do jornalismo, à espera apenas de

competentes profissionais que saibam como melhor utilizá-los?

Fagundes de Menezes observa que o intercâmbio entre jornalismo e

literatura começou a ganhar força a partir do aparecimento dos novos meios de

comunicação, como a TV e o cinema, em meados do século XX. Foi a partir do

momento em que se visualizou a possível concorrência entre os meios que a

exigência de uma reformulação na técnica e no estilo jornalísticos aumentou.

Essa preocupação, segundo o autor, foi responsável pela melhoria

dos padrões de escrita dos órgãos de imprensa. Menezes, que vê com bons

olhos essa união, afirma não existir uma fronteira rígida entre os conceitos de

jornalismo e literatura. O que irá existir sempre, e em ambas as atividades, é

uma maneira errônea e limitada de tratá-las.

Se dizemos que a literatura é a transposição do real, enquanto que o jornalismo é a realidade em si mesma; se

39

argumentamos que na literatura há o sentido de permanência ao passo que o jornalismo se prende ao quotidiano, ao efêmero; se afirmamos que o jornal não dura, e o livro sim; se ponderamos que o escritor cria e expressa seus próprios pensamentos, enquanto o jornalista exprime os sentimentos e as reivindicações da comunidade – ao mesmo tempo em que verificamos essas distinções, constatamos numerosos pontos de afinidade entre jornalismo e literatura. E chegamos até à evidência de que algumas características atribuídas ao jornalismo com o propósito de diminuí-lo perante a literatura, também são encontradas nesta. A verdade é que muitas das deficiências, defeitos de que se acusa o jornalismo, são próprios do subjornalismo. Como os que se atribuem à literatura são inerentes à subliteratura. (Menezes, 1997: 20).

Complementando este raciocínio, Fagundes de Menezes chega a

citar inúmeros nomes de jornalistas que exerceram a função de escritor, e vice-

versa – como Euclides da Cunha, Manuel Antônio de Almeida, Machado de

Assis, entre outros – com o objetivo de constatar que as afinidades e os

vínculos são inúmeros, apesar das peculiaridades e obrigações de cada área.

A questão da liberdade é outro ponto que ele faz menção ao tratar

das semelhanças entre os dois gêneros. Isso porque, na opinião dele, assim

como na literatura, “o jornalismo, sendo um gênero literário, é uma atividade

intelectual inseparável de um clima de liberdade” (Idem, Ibidem: 27).

Alceu Amoroso Lima, um dos primeiros que, antes mesmo de

Fagundes, teorizou acerca da problemática no clássico O Jornalismo Como

Gênero Literário, é outro autor que não atribui ao jornalismo um caráter menor.

Para ele, tudo é literatura, “desde que no seu meio de expressão, a palavra,

haja uma acentuação, uma ênfase no próprio meio de expressão, que é o seu

valor de beleza” (Lima, 1990: 36). Ao jornalismo, apesar das marcas

informação, atualidade, objetividade e estilo, Amoroso Lima reservou o título de

“literatura em prosa de acontecimentos”.

Amoroso Lima chegou a essa classificação, sobretudo, por que em

relação às questões de gênero, o autor opta por uma concepção metodológica

e racional, que não pretende limitar nem prescrever normas fechadas aos

autores, admitindo, assim, fusões na construção de melhores possibilidades

narrativas – ao contrário de muitos antecessores seus que, ao atribuir ao

jornalismo apenas o conceito de efêmero, não o consideravam (e ainda não o

consideram) um legítimo gênero literário. Segundo Lima, “à medida que vamos

40

passando de um gênero a outro, não ocorre um abandono do anterior, mas

uma incorporação ao novo” (Idem, Ibidem: 49).

Nada, no entanto, que encerre o longo e minucioso debate. Após

enumerar os pontos em comum, Amoroso Lima faz questão de mencionar

outro controverso aspecto levantado por um grande número de teóricos que

insistem em refutar o título de gênero literário ao jornalismo. Isso acontece por

que, segundo eles, enquanto na literatura a palavra possui um fim meramente

estético, no jornalismo a recíproca não é verdadeira, já que o essencial sempre

será o relato o mais fiel possível dos fatos. Ou seja, a palavra, no jornalismo,

funcionaria apenas como meio de se atingir um objetivo.

Desta vez, o argumento utilizado por Alceu Amoroso Lima para

manter ativo o debate é a refuta por essa concepção “purista e extremada” dos

gêneros. Para ele, jornalismo pode, sim, ser considerado literatura. Porém,

somente enquanto consiga se expressar verbalmente e dando ênfase aos

meios de expressão.

O jornalismo não é literatura pura, sem dúvida, como é um poema, no qual a palavra vale apenas como palavra (embora nele se contenha o mundo) e não como transmissão de um pensamento ou de uma mensagem. O jornalismo tem sempre [....] um fim que transcende ao meio. E, por isso, sempre que esse reduzir o meio (a palavra) a um simples instrumento de transmissão, deixará de ser jornalismo para ser publicidade ou propaganda, ou noticiário, ou anúncio. (Idem, Ibidem: 38).

Indo mais além – e aqui o autor dá um suporte importante na

construção argumentativa deste trabalho – Amoroso Lima pontua sobre a

necessidade do modo de dizer no jornalismo, isto é, do melhor aproveitamento

e uso dos recursos (palavras) durante o ato de narrar do jornalista.

Ele não abre mão de lembrar que “pela própria condição de sua

atividade, ligada aos acontecimentos do dia, [o jornalismo] corre o risco de

degenerar em journalesse” (Idem, Ibidem: 57) caso ele se restrinja às

facilidades e ao comodismo. Journalesse, para Amoroso Lima, como sendo

sinônimo de “superficialidade”, “enciclopedismo”, “precipitação”, “ignorância

vaidosa” e “pretensão à onisciência”. Objetivos esses distantes do alvo desta

pesquisa, que visa propor ao jornalismo contemporâneo uma prosa narrativa

41

que, apesar de resguardar suas exigências, possa, ao mesmo tempo,

permanecer emotiva, criativa, sensível e inteligente.

Apesar de toda essa argumentação em favor da aliança entre os

gêneros, Bruno de Aragão Santos, reitera que os tradicionalistas, ainda hoje,

costumam considerar o jornalismo literário uma modalidade de discurso

correspondente à “pré-história” da imprensa, ou melhor, “de uma época em que

o jornalismo ainda não havia alcançado as características que, mais tarde, lhe

forneceriam contornos delimitados” (Santos, 2005: 1). Para ele, após, enfim,

estabelecer-se como gênero informativo, nada mais lhe restou do que a pecha

de subgênero.

Mas a questão não se encerra aqui. Manuel Angel Vázquez Medel

(2005: 16), em artigo sobre as convergências e divergências dos discursos

jornalístico e literário, recorda que problemática remonta ao século XVIII, com a

aparição das revistas culturais, estreita-se no século seguinte, e tem seu ponto

alto no século XX, quando a imprensa passa a publicar boa parte da melhor

prosa em reportagens, crônicas e artigos.

O autor pondera que o debate é de difícil solução igualmente porque

os estudos sobre jornalismo encontram-se numa situação de atraso em relação

às outras áreas da investigação comunicativa.

Ademais, Medel afirma que tanto o jornalismo como as novas

tecnologias vêm influenciando de forma significativa em todos os demais

gêneros narrativos. Segundo ele, essa ligação tem feito com que a literatura se

encaminhe para o “essencial humano”, enquanto a atividade informativa tem

apontado, cada vez mais, para o efêmero, para o passageiro e circunstancial.

Tudo isso, enfim, para Manuel Angel, tem embocado em um jornalismo raso,

sem profundidade e desinteressante, baseado apenas na objetividade

declaratória e na superficialidade – constatação essa que Benjamin já

observava há algumas décadas atrás e que nós, a cada dia, verificamos com

mais clareza e discernimento.

Retornando à polêmica que questiona se jornalismo deve se

enquadrar na categoria de gênero literário, Nanami Sato também opina,

explicando que tanto quanto a literatura, o jornalismo irá sempre exigir do

profissional uma melhor utilização dos recursos narrativos, independentemente

de seus fins.

42

Relatar acontecimentos significa construir um texto narrativo, uma atividade que Barthes (1973) já qualificou de simbólica e universal. A narrativa jornalística parece contígua ao fato, mas, ao se transformar em notícia, o acontecimento torna-se um texto submetido às categorias narrativas. As variações de jornal para jornal refletem a angulação de cada veículo, a edição, a relação repórter-realidade e variantes do universo de narração (Sato, 2005: 32).

Outro aspecto que merece destaque nesse embate acerca do

jornalismo contemporâneo é que, normalmente, nas narrativas diárias,

observamos um “ideal de expressão (conteúdo) máxima com expressividade

(forma) mínima” (Idem, Ibidem: 51).

Isso decorre, de acordo com Juremir Machado da Silva (2005: 50),

do fato do jornalismo, costumeiramente, querer dizer muito com pouca

literatura.

Constatação esta que, para Gustavo de Castro, tem levado o mesmo

a uma situação “agonizante”. Castro seleciona como saída “voltar a investir na

narração, ou na velha fórmula da boa história a se contar, sem, contudo, deixar

de mesclar a velha regra do lead [....] a outras técnicas” (Castro, 2005: 77).

Para que isso aconteça, existem diversas implicações, como ele

sugere. Uma delas é a maior profissionalização dos jornalistas, que devem

possuir um vasto conhecimento gramatical. Posteriormente, saber narrar uma

boa história. Além de dispor de recursos que consigam prender a atenção do

leitor desde a primeira linha.

Não é nada simples o desafio que o jornalismo contemporâneo parecer ter de enfrentar, para adaptar-se aos tempos, avançando em complexidade e riqueza. Há, nesse desafio, um apelo contundente por novas narrações que parece advir da própria noção de realidade, que o jornalismo almeja conhecer tão bem. Para a narração, sabemos, exige-se um desprendimento gradual, um despojamento progressivo e uma entrega crescente à andadura que se estabelece, quase autonomamente. [....] Bem que o jornalismo poderia ter certa autonomia estética, a exemplo da literatura, mas as limitações de espaço-tempo fazem com que ele pratique permanentemente o salutar exercício do enxugamento, da síntese e da rapidez, e talvez seja essa precisão o que tem a ensinar à estilística literária. (Idem, Ibidem: 78-79).

43

Como podemos observar, em se tratando da rica e controversa

relação entre jornalismo e literatura, há muito ainda que ser visto e

pormenorizado. O debate está longe do fim e este trabalho, de maneira

alguma, se presta a dogmatismos.

Mais do que encontrar uma resposta para a pergunta “Jornalismo

pode ser considerado um gênero literário?”, buscamos analisar outras e mais

férteis formas narrativas, que só têm a incrementar o jornalismo diário, ao se

apoderarem de recursos originais da literatura. Afinal, como diria Cremilda

Medina, “O real pulsante não pode ser transposto para uma ata de ritmo

previsível da primeira à última informação” (Medina, 1989: 414). E nem deve, já

que visa a ser um importante intermediário social.

Sendo assim, na seqüência, selecionamos alguns pontos

considerados alicerces para esta argumentação. A nosso ver, devemos lutar

por um jornalismo mais atento e vivaz, que fuja ao prosaico discurso

declaratório, frio e objetivo, que constatamos entediados, nos principais meios

de comunicação a nosso dispor.

Como já mencionado anteriormente, uma das bases de nossa

argumentação se encontra no gênero inaugurado por Hunter Thompson e

seguido por diversos jornalistas ao redor do mundo, como é o caso, aqui no

Brasil, de Xico Sá, nosso objeto de pesquisa.

2.1 – Subjetividade versus Objetividade

E agora, José? –

Carlos Drummond de Andrade

É preciso, antes de qualquer coisa, reiterar que, no jornalismo,

objetividade é um dos principais preceitos – ao lado de atualidade, veracidade,

clareza, periodicidade, instantaneidade, entre outras variadas características.

Concordamos, inclusive, que ao fugir displicentemente dela, fugimos

igualmente da meta-mor do jornalismo, que é narrar satisfatoriamente algo

advindo do real, do palpável.

Entretanto, por outro lado, justificamos a escolha de tal problemática

– que a priori pode parecer infértil – devido a um questionamento que para nós

44

é assaz pertinente: até que ponto esse conceito pode ser levado a cabo? Isto

é, a objetividade no jornalismo deve mesmo carregar um pretensioso e

limitador “status de verdade tácita”, como nomeia Medina (1988: 20), ao tratar

das amarras que o título impõe?

Já que partimos do pressuposto de que para construir narrativas

mais aprofundadas e prazerosas é preciso fazer um melhor uso de recursos

literários, acreditamos ser pertinente debater esse conceito, tão duvidoso e

controverso quanto aquele que norteia os dilemas entre os gêneros jornalismo

e literatura.

Medina lembra que “como o repórter está sujeito a uma observação

perceptiva pouco objetiva, a única solução teórica é pregar certos cuidados

técnicos” (Idem, Ibidem, 20). No entanto, é ela mesma, mais à frente, que

adverte:

Ao lidar com a pauta e construí-la até o ponto de a executar na reportagem, sua cosmovisão será fundamental. Se agir frente à pauta com critérios monoléticos (verdade absoluta, causa e efeito, sujeito e objeto, universo sólido, massa indestrutível, substância e acidente etc.), encaminhará todo o trabalho para provar o que antecipadamente já está provado na sua mente. [....] Se agir de modo complexo, não terá teses (em geral uma tese) apriorística, mas abrirá a lente da sua cosmovisão para as múltiplas possibilidades que in-formam a pauta (Idem, 1989: 402).

Em relação especificamente à entrevista, Cremilda alerta que ela

“não pode restringir-se a extrair informações objetivas do real aparente” (Idem:

Ibidem: 405), posto que hoje já existem formas eficientes de se conseguir isto,

como nos bancos de dados informatizados das redações.

Para ela, a tecnificação objetiva da entrevista suga, assim como

anula a criatividade. A subjetividade é vista, destarte, como imprescindível no

âmbito das interações humanas, mesmo (e quiçá ainda mais) em se tratando

do universo jornalístico.

A fusão do narrador com o fato narrado não escapa ao olhar atento

da autora no livro Notícia: Um Produto à Venda. Ela afirma que os jornalistas

ainda hoje estão tentando diluir de maneira satisfatória, numa única e coesa

construção, as explicações – ora redundantes, ora didáticas – que permeiam a

45

ação narrada. Para ela, essas quebras de estilo são violentas e acabam muitas

vezes por aniquilar o produto final (Idem, 1988: 117).

O uso convencionado da terceira pessoa também é posto em xeque

por Cremilda Medina, já que esse tempo verbal – que pretende partir de um

olhar distanciado, onipresente e onisciente – seria insuficiente para reger uma

boa narração. Sem falar que, em determinadas situações, ele se tornaria até

mesmo entediante. “A terceira pessoa ‘objetiva’ lhes é cômoda e corresponde

à expectativa oficial, inclusive da maioria das empresas jornalísticas que

alegam ser este o ponto-de-vista mais legível” (Idem, 1989: 417).

A respeito do importante papel a desempenhar do narrador, Vargas

Llosa, por sua vez, sustenta que a escolha do local onde se colocar (dentro da

história, fora dela ou numa posição incerta) irá determinar igualmente as

condições a que o mesmo terá que se sujeitar na hora de narrar, “o

desrespeito às quais acarretando um efeito lesivo, destruidor, sobre o poder de

persuasão” (Llosa, 2006: 73). Poder de persuasão que, para Llosa, é uma das

molas-mestras da atividade romanesca e, por que não, da atividade jornalística

– já que esta trabalha mais diretamente com uma suposta realidade verificável.

De fato, ao pensarmos sobre a obrigatoriedade de uma construção

que se diz objetiva e impessoal, não podemos fugir de outros e relevantes

pormenores. Nanami Sato percorre todo o caminho da representação (ou

substituição) do real – feita no jornalismo por meio de signos lingüísticos - para

chegar à conclusão de que essa mesma representação, por si só, já se mostra

bastante complexa, ao contrário do que se pode crer.

Diz ela que, mesmo quando se objetiva a mera representação, é

impossível prever, em decorrência da subjetividade inerente a cada indivíduo,

como o resultado irá atingir diferentes outros receptores. O uso da terceira

pessoa, para ela, também não é menos complicado, já que ele desestabilizaria

o ideal de objetividade por “introduzir tempos diferentes, o do mundo narrado e

o presente da narração” (Sato, 2005: 42).

E mais: essas amarras da objetividade, segundo Sato, quando mal

executadas, ainda correriam o grave risco de resvalar em um percurso

indesejado pelo jornalista.

46

A vocação da notícia é representar o referente, o que torna a notícia, em princípio, verificável. Ao exigir-se do jornalista o uso da terceira pessoa que garantiria formalmente a impessoalidade do discurso, tem-se como resultado um discurso esvaziado, que acaba por ocultar o processo social que possibilitou a notícia. [....] Apesar da vocação para o ‘real’, o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso, isto é, uma ficção. (Idem, Ibidem: 31).

Dito de outra maneira por Machado da Silva, escrever é, sobretudo,

dar forma. Sendo assim, às vezes, para atingir melhor o alvo (ou escrever

melhor), fazem-se necessárias formas inesperadas – quiçá abrir mesmo mão

do sentido denotativo para dar vez ao conotativo. Isso porque, já que o

jornalismo precisa ser dito de maneira que se perca o mínimo de conteúdo, é

provável que, em algumas ocasiões, se chegue à melhor solução narrativa por

meio do que ele chama de “deformações eficazes”.

No jornalismo, claro, nem tudo pode ser tão obscuro. Cabe ao profissional descobrir a medida da deformação necessária para dar forma expressiva a um conteúdo bruto. Escrever é expressivo ou inexpressivo? Em se tratando de literatura, o inexpressivo pode ser um estilo. Em jornalismo, ser expressivo é mais do que uma exigência: um imperativo. Por isso, o jornalismo não pode viver sem a consciência da literatura. É no exercício prosaico que se aprende a matemática da expressão. Da ambigüidade compreendida retira-se a objetividade verossímil. [....] O engano maior consiste em pensar que o jornalismo se situa no campo da expressão (em oposição à expressividade), enquanto a literatura (expressividade) pode abrir mão da expressão. Fantasias. Positivismo. Ficções. (Silva, 2005: 50-51).

Para encerrar por ora o tópico, nos resta tecer alguns breves

comentários a respeito desta investigação. Como supracitado, embora

admitamos que o fazer jornalístico pressupõe certa dose de pragmatismo

técnico, mesmo assim fica claro que nem por isso as narrativas devem vir

permeadas de restrições impositivas, que nada mais fazem do que podar a

criatividade do repórter ao pregar retrógradas fórmulas feitas.

Fica claro igualmente, por conseguinte, a inexistência de uma única

e objetiva verdade, que deverá ser dita de uma exclusiva e correta maneira. Ao

47

visar a um incremento narrativo, que supra e represente satisfatoriamente o

real, portanto, o essencial não será o uso obrigatório da terceira pessoa, nem

de recursos que mascarem um ideal de impessoalidade.

A conclusão a que chegamos é que o importante será sempre valer-

se competentemente de recursos expressivos. Esses devem visar, enfim, não

apenas à informação mais fiel possível da realidade, mas igualmente ao prazer

fruitivo. Tudo é complementar e caminha para o mesmo fim. Outro detalhe

fundamental é aceitar que a subjetividade, mais do que uma escolha estilística

e narrativa, é inerente ao ser humano e essencial na confecção de seus pontos

de vistas.

2.2 – Apuração Participativa

O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a

gente é no meio da travessia –

Guimarães Rosa

Como foi possível observar no primeiro capítulo – ao tratarmos das

características tanto do Novo Jornalismo quanto do Gonzo Jornalismo – a

qualidade e intensidade do processo apurativo irá influenciar sempre, e

sobremaneira, a narrativa. No caso específico do Gonzo, essa captação – que

deve contar necessariamente com uma presença ativa do jornalista –, se

destaca por ir às últimas conseqüências. Isto é, ela chega ao ponto de permitir

que o jornalista não apenas teça comentários pessoais acerca do seu objeto,

como também deixa que ele divague e fuja livremente de um único e

delimitado tema a priori sugerido ou proposto por seu editor.

Mas não são os excessos que nos interessam aqui. Longe de propor

ao jornalismo diário que se deixe extrapolar nesse sentido (como o fez Hunter

Thompson e muitos outros), e que siga na contramão dos preceitos

jornalísticos, visamos a trilhar um percurso que possa nos dar, por outro lado,

suporte para que atinjamos, enfim, um melhor nível tanto de conteúdo quanto

de forma em torno das narrativas.

48

Afinal, de que adianta ser bom conhecedor das regras gramaticais e

fazer bom uso dos recursos literários se, no contato direto com os nossos

diversos interlocutores (o primeiro passo de tudo), o repórter não se entrega e

não se deixa levar pelo o desconhecido, pela voz do outro?

O argumento é que partir de pressupostos, de questionários

fechados, ou mesmo de retrógrados manuais de redação, neste momento – a

nosso ver crucial – será sempre uma porta aberta para que a narrativa caia

senão na defasagem informativa, na mesmice (e por que não dizer na chatice).

Meta essa oposta à nossa.

O cuidado e o refino na apuração dos fatos, e a percepção das

sutilezas, como sintetiza Czarnobai (2003), são alguns meios de se obter

sofisticadas técnicas narrativas – como a descrição minuciosa de ambientes

abundantes de juízos de valor e mesmo monólogos interiores. Tudo isso sem,

no entanto, precisar fugir de forma comprometedora das obrigações para com

o relato jornalístico. Afinal, ambas devem andar de mãos dadas.

Czarnobai chega a citar a entrevista, o contato com o outro, como

essencial neste processo: “É somente através dela que o repórter toma

conhecimento dos mais íntimos detalhes físicos e psicológicos que vão ajudar

a construir os seus personagens” (Idem, Ibidem). E isso, claro, demanda

tempo e esforço. Displicência, preguiça, comodismo e pautas resolvidas por

meio da impessoalidade do telefone das redações, devem ser abolidas, caso

se busque verdadeiramente esse alvo.

O autor só abre um parêntese para lembrar que enquanto no Novo

Jornalismo a entrevista é imprescindível, no Gonzo ela se torna quase

acessória, já que o protagonista da ação é, na maioria dos casos, o próprio

repórter, que se deixa levar integralmente pela história para, somente depois,

sentar-se diante de seus computadores.

Cremilda Medina atribui a mesma importância a essa fase de

apuração dos dados, que antecede a construção narrativa. Para ela, o

mediador social precisa se colocar discreta, mas decisivamente na mediação

(1989: 402). Essa “observação participante”, como ela nomeia, proporcionaria

um alargamento de perspectiva da pauta, o que incrementaria

significativamente o produto final.

49

O que se torna imperativo é abrir os poros e se deixar embeber de um tônus participativo, ao contrário do que pregam os arautos da fria objetividade. Com isso não quero dizer que um emocional e desgovernado repórter saia a fazer comício na reportagem política ou pratique a prostituição para desenvolver uma matéria sobre AIDS. [....] Observação participante é, pois, uma abertura para a compreensão destes comportamentos. Para constituir tal aparato, é preciso, para além do acúmulo de experiências práticas, um projeto de aperfeiçoamento. (Idem, Ibidem: 403).

É esse aperfeiçoamento que grande parte dos repórteres que estão

na ativa – acomodados pelas condições muitas vezes precárias das redações

ou mesmo desestimulados devido aos baixos salários – precisa ter em mente,

se pretendem sair do lugar-comum, do discurso entediante e que facilmente

dispersa o leitor. Jornalismo de verdade, feito por quem se pretende um

mediador social, requer um exaustivo e minucioso trabalho, em todas as

etapas. Somente a partir deste esforço, às vezes aprazível, noutras penoso,

será possível desfrutar do reconhecimento próprio e dos leitores.

Experiência essa que viveram intensamente tanto os novos

jornalistas, como Thompson e muitos dos pretensos seguidores do Gonzo.

Estes, vale a pena puxar na memória, tinham como hábito conviver dias,

semanas, meses e anos com suas fontes, antes de ousar escrever uma linha

sequer, num exemplo de que para se produzir competentemente qualquer tipo

de narrativa é preciso sair a campo, fuçar, investigar, destrinchar situações e

personagens.

Ao que nos consta, todavia, esse tipo de construção se encontra

apenas como um ousado e peculiar capítulo da história do jornalismo.

Jornalismo este que, atualmente, como diagnosticamos, tem pressa e vem,

cada vez mais, menosprezando a riqueza contida numa apuração que

optamos por chamar de participativa, já que ela clama por jornalistas ativos e

corajosos, envolvidos ao longo de todo o processo; desde a confecção da

pauta, escrita, até a sua edição.

50

2.3 – Amplitude de vozes: abram alas para o discurso

polifônico

Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou

na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando

constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse

possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo

dos olhos, e principalmente assim: tu, mulher loura eram as

nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus

nossos vossos seus rostos. Que diabo –

Julio Cortázar

Entrando mais incisivamente nos recursos da prosa romanesca para

refletirmos e propormos aprimoramentos à prosa jornalística – que Amoroso

Lima chamou de “prosa de acontecimentos” – nos deparamos com o conceito

de polifonia, do russo Mikhail Bakhtin.

Segundo Bakhtin, existem duas possibilidades de romance: o

monológico e polifônico. Enquanto o primeiro privilegiaria o autoritarismo e o

acabamento; o segundo trabalharia em torno de uma “realidade em formação,

inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo” (Bezerra, 2005: 191).

Essa inconclusibilidade, destarte, como sendo um reflexo do gênero

em constante transformação, cujos próprios personagens partissem

constantemente de um processo evolutivo, jamais estanque. Dialogismo, por

sua vez, como pregando a refuta da existência de uma autoria individual, já que

o diálogo em si já possui um caráter coletivo.

Na ótica da polifonia, as personagens que povoam o universo romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a polifonia estão vinculados à natureza ampla e multifacetada do universo romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada (Idem, Ibidem: 191-192).

Mas a mente limitada e condicionada a concepções deterministas

pode indagar, inconformada: e o que o romance tem a ver com o jornalismo?

51

Ora, mesmo que a priori, numa conceituação assaz simplória, disséssemos

que nada existe em comum entre os dois, ainda assim poderíamos argumentar

que o romance tem, sim, muito a acrescentar ao fazer jornalístico –

especificamente se verificarmos atentamente o que temos a ganhar com a

idéia de um discurso polifônico.

É só pensarmos que, se para construir eficientes e prazerosas

narrativas – como diagnosticamos até o momento –, é primordial fugir das

trincheiras que podam nosso aprofundamento e criatividade, chegamos à

conclusão de que essas trincheiras são aquelas mesmas presentes no

romance monológico, que tende sempre a “coisificar” seus relatos. Ou, em

outras palavras, que prima por um único centro irradiador da consciência; por

uma única voz ativa e um único ponto de vista, chegando a tratar inclusive o

outro como mero objeto da consciência do “eu” – já que acredita estar apto a

comandar tudo sozinho.

As possibilidades de utilização do dialogismo, na forma da polifonia,

além de incrementar o discurso, têm o poder de libertar o indivíduo. Por isso, é

importante sempre termos em mente, ao descrevermos um personagem numa

narrativa jornalística que

O ‘homem no homem’ não é uma coisa, um objeto silencioso; é outro sujeito, outro ‘eu’ investido de iguais direitos no diálogo interativo com os demais falantes [....]. Do autor que vê, interpreta, descobre esse outro ‘eu’, isto é, descobre o homem no homem, exige-se um novo enfoque desse homem – enfoque dialógico. É essa, precisamente, aquela posição radicalmente nova que transforma o objeto, ou melhor, o homem reificado, em outro sujeito, em outro ‘eu’ que se auto-revela livremente (Idem, Ibidem: 193-194).

Ao lançarmos o olhar em torno dos personagens trazidos do real

para a narrativa de Hunter Thompson, Tom Wolfe, Truman Capote, Gay

Talese, entre inúmeros outros habilidosos jornalistas, averiguamos ser possível

pôr em prática tal concepção. Esses autores, a nosso ver, chegam até mesmo

a nos apresentar aos seus personagens. Porém, todo o percurso em torno do

juízo de valor que teremos deles (se simpatizaremos ou não, por exemplo) fica

exclusivamente a nosso cargo. Isso se dá porque eles, ao invés de falar pelo

outro, fazem questão de permitir que cada um “use sua linguagem, seu estilo,

52

sua ênfase” (Idem, Ibidem: 196). E isso se faz especial por que serão

justamente esses personagens advindos da realidade que darão sustentação à

narrativa. De nada adiantará atingir o ápice no uso de elementos estéticos, se

depois a parcela de humano não possuir consistência.

Nos textos polifônicos, cujo processo de comunicação é interativo,

como prega o dialogismo, o autor consegue a façanha de se ver e se

reconhecer no outro e na imagem que o outro faz dele. Tudo isso, segundo

Bezerra, visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro

“eu” único, infinito e inacabável. O diálogo aqui deve acontecer,

impreterivelmente, em pé de igualdade e, mais uma vez, só se atinge tal

nivelamento com muita entrega e dedicação por parte do mediador.

Colocando mais lenha na fogueira, Cristovão Tezza, em ensaio sobre

prosa e poesia em Bakhtin, indaga em que sentido é válido aceitar que um

prosador abdicará de sua autoridade assim tão altruisticamente para dar vez ao

outro. Para ele, isso ocorre porque

No quadro bakhtiniano o ato de escrever é a atualização de uma relação entre sujeitos ou imagens de sujeitos [....]. Esse princípio fundador dialógico não é característica simplesmente da literatura, mas traço indissociável da linguagem. Assim, falar ou escrever é instaurar, antes mesmo de um diálogo externo, um diálogo interno (Tezza, 2003).

Isto é, embora o conceito de “abdicação à autoridade” possa soar, a

priori, absurdo, o que pretendeu dizer Bakhtin foi que, na verdade, em se

tratando da construção do romance, o que se dá é que o autor “coloca o centro

significante de sua linguagem na perspectiva do outro; é a perspectiva do outro

que lhe interessa” (Idem, Ibidem). E é isso que deve sempre ser privilegiado

em jornalismo.

A atenção de Medina acerca da crise por que passa nossa profissão

também resvalou no conceito de Mikhail Bakhtin. Cremilda acredita que é

necessário abrir-se para a polifonia e, ainda, para a polissemia. Segundo ela, a

amplitude polifônica e polissêmica é uma forma de neutralizar o pseudo-

pluralismo de vozes – já que a precisão do relato não se resolve na

esquemática resposta: a quem, o quê, quando, onde, como e por quê.

53

Monta-se, no relato convencional, a contraposição de pontos-de-vista, um a favor e outro contra; vende-se este relato como Jornalismo maduro, aquele que cultiva a controvérsia e o conflito. Este maniqueísmo está longe de sugerir uma cosmovisão complexa. Os conceitos ou interpretações, as situações e as emoções e mitos não cabem em bipolarizações. A palavra-revelação da literatura se tece na complexidade, na ambigüidade. Se a palavra jornalística pretender o mínimo possível de profundidade tem de ir ao encontro da polifonia (Cremilda, 1989: 420).

Ou seja, chegamos a mais um consistente argumento de que para

que haja um aprimoramento das técnicas narrativas em jornalismo, devemos

abrir alas, de fato, para um discurso substancioso, pluralista, e que não se

restrinja jamais a ele próprio, às vozes selecionadas pelo autor.

Como mediador social que é, o jornalista deve, sim, apreender e

perceber corajosamente e despojadamente o outro durante essa relação

dialógica para, somente a partir daí, transformá-lo e recria-lo em palavras. Só

assim teremos a oportunidade de ver representado nas páginas dos jornais

relatos humanizados e substanciosos, capazes de chamar e prender a nossa

atenção, da primeira a última linha.

2.4 – Crônica: o híbrido perfeito?

Posso prometer ser sincero, mas não imparcial –

Goethe

Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a

prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e

situações que, azar dele, criou porque quis. –

Vinicius de Moraes

De acordo com Massaud Moisés (1967: 101), no início da era cristã,

a crônica (do grego chronikós, relativo a tempo) limitava-se a registrar sem

profundidade os eventos sociais. A partir da Renascença, o termo passou a

ceder lugar para a “história” e, somente a partir do século XIX, que a crônica

seria empregada na acepção moderna – com um sentido literário e

beneficiando-se da imprensa como meio difusor.

54

Entrando especificamente no mérito de sua gênese, Moisés lembra

que muito se tem discutido, ao longo da existência da crônica, se ela poderia

ser considerada uma expressão literária tipicamente brasileira. Discussão esta,

segundo o autor, ociosa e sem relevância. Apesar de ele recordar que, no

Brasil, a crônica tenha assumido um caráter sui generis, já que foge ao sentido

histórico para abraçar o humor, a fantasia e a prosa poemática.

Segundo Massaud, para compreendermos bem a crônica também

devemos pensar no seu principal veículo de suporte: o jornal (ou revista).

Moisés separa em duas categorias o texto lingüístico publicado em jornais:

aquele que cumpre meramente a função de informar; e aquele que não se

prende, unicamente, aos fatos cotidianos.

Sendo assim, o autor chega à conclusão de que a crônica é um tipo

de expressão ambígua, já que se moveria entre o ser no e para o jornal. Ela

teria como objetivo transcender o dia-a-dia e ser o poeta do cotidiano, diferindo

do autor de ficção no sentido de que reagiria de imediato ao acontecimento,

sem permitir que o tempo lhe filtrasse impurezas.

A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia. No primeiro caso, a crônica envelhece rapidamente e permanece aquém do território literário: na verdade, a senescência precoce ou tardia de uma crônica decorre de seus débitos para com o jornalismo stricto sensu. (Idem, Ibidem: 105).

Ou seja, embora a crônica se gabe de fazer amplo uso dos recursos

literários, de nada isso lhe adiantará caso ela se restrinja ao fantasioso, posto

que ela se pretende atual e está sendo veiculada em jornais diários.

Continua Massaud: “o tom de reportagem, de história presente, é

dado pela linguagem, predominantemente referencial, destinada antes a

comunicar uma informação que a expressar os produtos da fantasia criadora”

(Idem: Ibidem: 105). Para ele, em suma, estaríamos diante de um “fiapo de

prosa não-literária” ou ainda, diante de uma “obra elaborada sem o atropelo do

jornal, visando a persistir e a ofertar ao leitor um prato sempre renovado e

pleno de sugestões” (Idem, Ibidem: 108).

55

Em relação às características da crônica, Moisés não esquece de

mencionar o seu caráter subjetivo. Isso porque, como é sabido, o seu foco

narrativo se situará sempre na primeira pessoa do singular. A impessoalidade

na crônica, portanto, não é algo apenas distante, mas é algo sumariamente

rejeitado pelos cronistas – já que “é a sua visão das coisas que lhes importa e

ao leitor” (Idem: Ibidem, 116). O leitor aqui como sendo peça-chave nessa

relação dicotômica já que, como explica Massaud, enquanto o cronista, em

monodiálogo, se oferece ao leitor, este é conduzido por uma afinidade eletiva,

proposta pelo autor da crônica.

Feito este breve panorama da crônica, não é difícil encontramos

semelhanças entre ela e o jornalismo que buscamos (mais vívido, aprofundado

e que fuja aos supostos ideais de objetividade e impessoalidade) ou, senão,

apenas, alguns argumentos em favor desse híbrido de funções jornalísticas e

literárias.

E que fique claro, mais uma vez, que o nosso intuito aqui não é o de

abolir os preceitos convencionados de jornalismo. Longe disso, pretendemos

acender a discussão em torno de melhorias e incrementos do metiê jornalístico,

unicamente por acreditarmos na sua função social e mobilizadora. Nesse

sentido, a crônica, a nosso ver, apesar de figurar entre os gêneros da categoria

jornalismo opinativo, tem muito a nos ensinar.

Retomando as características do gênero, Antonio Candido afirma

que a crônica não pode ser, de fato, considerada um “gênero maior”. Porém,

mesmo assim, para ele, ela tem o poder de elaborar uma linguagem próxima

ao nosso modo de ser natural. Em outras palavras, “Na sua despretensão,

humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira,

recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo

acabamento de forma” (Candido, 1992: 13-14).

Candido atribui ao decênio de 1930 a consolidação da crônica

moderna no Brasil, como um gênero de contornos próprios. Cita, entre seus

principais mestres: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de

Andrade e Rubem Braga. Nestes dois últimos, especificamente, Antonio

Candido observa a confluência da tradição clássica com a prosa modernista

(Idem, Ibidem: 17).

56

Outro mérito da crônica seria a busca pela oralidade na escrita, “isto

é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo

de ser do nosso tempo” (Idem, Ibidem: 16). Essa leveza poderia, inclusive, em

muitos casos, comunicar mais do que estudos intencionais e burocráticos.

José Marques de Melo (2002: 139), tratando de classificá-la de

maneira mais delimitada, afirma que devemos compreendê-la como um gênero

do jornalismo contemporâneo, com raízes tanto na história como na literatura.

Segundo ele, ela teria chegado aos jornais diários por meio de escritores que

ocupavam os bancos das redações dos jornais. Para Marques de Melo, assim,

os cronistas teriam sua atividade dividida entre o registro de fatos recheados de

lendas e mitos, e a história narrativa de ocorrências baseadas no real.

Mesmo admitindo a latinidade do gênero, o autor chega à conclusão

de que enquanto no jornalismo hispano-americano a crônica configura-se como

gênero informativo, no jornalismo luso-brasileiro ela adquire função opinativa

(Idem, Ibidem: 142). Isto é, por apreender o significado dos acontecimentos,

ironizá-los e dar-lhes uma dimensão poética ao invés de reconstituí-los, o seu

lugar cativo, no jornalismo nacional, seria o das páginas de opinião, de onde

informa sobre as atualidades e, ainda, as narra de forma poética.

Ademais do lirismo que o cronista empresta ao resgate de nuanças do cotidiano, sua matéria contém ingredientes de crítica social, donde o seu caráter é nitidamente opinativo. É o palpite descompromissado do cronista, fazendo da notícia do jornal o seu ponto de partida, que dá ao leitor a dimensão sutil dos acontecimentos nem sempre revelada claramente pelos repórteres ou pelos articulistas. (Idem, Ibidem: 150).

Gerson Tenório dos Santos9, por sua vez, diz que esse tom de

conversa irá se acentuar na história a partir de João do Rio, que é quando a

crônica se torna igualmente mais literária. Para ele, por fazer referência ao

mundo oral, a crônica deve ser classificada como um gênero primário. Nada,

todavia, que comprometa o seu caráter híbrido.

9 Artigo apresentado durante o X Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), que aconteceu no período de 31 de julho a 4 de agosto de 2006, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Uerj).

57

Sua natureza poética, reflexiva, humorística, solta e afasta claramente dos gêneros secundários que caracterizam o discurso jornalístico – pretensamente objetivo e parcial – e a aproximam do caráter subjetivo, envolvente, polimórfico e dependente do contexto que caracterizam os gêneros primários. Neste sentido, é possível dizermos que a crônica, por ser um texto escrito publicado num grande meio de comunicação de massa como o jornal e a revista, porém tendente a uma feição de gênero primário, é um gênero híbrido. (Santos, 2006).

Santos também discute a presença da polifonia nas crônicas, já que

para ele, trata-se de um texto criado não a partir de uma situação protótipa,

mas dinâmica, no sentido que marca a vida, em suas situações conflitivas.

Crônicas, em sua análise, também seriam construções inconclusas, de diálogo

aberto, com a realidade em constante formação.

A crônica, apesar de ter sido considerada um gênero menor, tem se mostrado como um dos mais polifônicos de nossa literatura. [....] Seus temas e estilos múltiplos não só revelam o lado cômico e distante, como convém a um texto polifônico, de nosso cotidiano marcado pela desigualdade social, rapidez, falta de tempo e outras mazelas da sociedade massificada pouco afeita à crítica social. A crônica, com seu caráter ambíguo e intersemiótico, preenche este espaço e convida o leitor a um olhar mais arguto (Idem: Ibidem).

Isto é, mesmo que, como citado acima, subtraiamos a necessidade

de não largar mão displicentemente dos principais preceitos jornalísticos,

podemos observar na crônica muitas das características que consideramos

essenciais para a construção textual de narrativas mais aprazíveis e que fujam

à mesmice do discurso relatorial que tem se transformado nosso jornalismo

diário. Ou, como diria Sato (2002: 34), a crônica é uma arma na captura do

interesse do leitor, convidando-o para um tipo diferente de mergulho no real,

mais ameno e prazeroso, quiçá mais real.

2.5 – Revistas, magazines, semanários e suplementos:

suportes possíveis?

58

Existem outros mundos, e estão neste –

Paul Éluard

A melhor notícia não é a que se dá primeiro, mas a que se dá melhor –

Gabriel García Márquez

Como é sabido em jornalismo, cada meio possui suas características

e funções. Sendo assim, irá abranger e/ou estará apto a dar suporte

exclusivamente a determinados tipos de construções narrativas – o que,

geralmente, acontece até mesmo de forma convencionada.

No jornalismo diário – com exceção dos segundos cadernos, grandes

reportagens, crônicas, entre outras possibilidades –, será sempre mais raro

observar textos que fujam consideravelmente ao convencional esquema do

lead.

Não à toa, os leitores que se aprazem por um jornalismo

diferenciado já possuírem um prévio conhecimento de causa e, portanto,

conseguirem distinguir bem a leitura quotidiana, meramente informativa, da

leitura do deleite, que ele encontrará mais facilmente em revistas

especializadas e suplementos (em sua grande maioria, dominicais).

Seguindo nesta linha de raciocínio, o leitor mais atento e criterioso,

ao fazer um paralelo entre estas duas formas de jornalismo, poderia questionar

a razão dessa fragmentação tão incisiva. Não seria absurdo inclusive ele

indagar se a culpa não seria daqueles profissionais que se encontram no

batente diariamente. Seria comodismo? Falta de condições estruturais?

Restrições mercadológicas?

Antes de entramos propriamente no debate, é importante mencionar

que admitimos que o fazer jornalístico diário tem pressa e que, portanto, não

teria por onde repetir os passos da turma do Novo Jornalismo, por exemplo. O

quadro escasso de profissionais nas redações, também é notório, é outro

grande entrave nesse sentido – e este não é um problema de simples

resolução. Ademais, aceitamos de bom grado igualmente que enquanto no

jornalismo do dia-a-dia o importante é informar mais do que entreter, no

jornalismo de revistas, magazines, suplementos etc., os pesos na balança

permanecerão sempre mais equilibrados.

59

Todavia, mesmo abrindo parênteses para estas questões, faz-se

necessário inquirir: as ressalvas justificam a displicência com que, em muitos

casos, o nosso jornalismo diário vem sendo tratado? A nosso ver, não.

Por acreditarmos que uma informação completa pode, sim, andar de

mãos dadas com um texto criativo e que fuja às regras limitadoras do

jornalismo apressado e, sobretudo, por entendermos que como mediador social

o jornalista tem o importante papel não apenas de informar, mas de formar

juízos, valores e de mobilizar – já que uma coisa é conseqüência da outra –

concluímos que é possível e necessário ir além.

Apesar das implicações, restrições e peculiaridades do fazer diário

devemos visar, sim, ao aprimoramento de nossas narrativas. Ou, como diria

Walter Benjamin, reaprender a narrar histórias, se for o caso e se preciso for.

Feitos esses comentários, entremos em alguns detalhes desses

meios que tão bem recepcionam esse jornalismo preocupado não somente

com a construção textual, mas também com o leitor – já que é para ele que

tudo deve ser pensado e feito.

Tentaremos compreender por que enquanto para estes um

jornalismo bem narrado e construído é sempre bem-vindo, os jornais

cotidianos, por sua vez, ainda persistem em lhes fechar as portas.

De acordo com Sergio Vilas-Boas, as revistas semanais, por

exemplo, preenchem vazios informativos deixados pelas coberturas dos

jornais, rádio e televisão; são visualmente mais atrativas; e, por possuírem o

fator tempo a seu favor, têm a possibilidade de conciliar técnicas jornalísticas e

literárias construindo textos mais criativos, que costumeiramente se

transformam em “reportagens interpretativas”, por imprimirem (veladamente ou

não) os valores ideológicos do veículo.

As revistas fazem jornalismo daquilo que ainda está em evidência nos noticiários, somando a estes pesquisa, documentação e riqueza textual. Isso possibilita a elaboração/produção de um texto prazeroso de ler, rompendo as amarras da padronização cotidiana. Da abertura à sentença final da matéria, a produção do texto da revista semanal de informação é um "exercício de raciocínio", que detona o talento potencial do jornalista/autor. Quem ganha com isso, direta ou indiretamente, são os leitores (Vilas-Boas, 1996: 9).

60

Na seqüência, Vilas-Boas chama a atenção para aquilo que, ao

longo de todo este trabalho, estamos colocando em destaque: não é simples

escrever um bom texto. Para ele, “Um bom começo é pensar. Pensar, porque

escrever é fazer funcionar de modo organizado a lógica do pensamento” (Idem,

Ibidem:13). E isso, a nosso ver, se enquadra perfeitamente também no

jornalismo diário, não é mérito do jornalismo em revista.

Para Sergio Vilas-Boas, dar clima é outro aspecto fundamental,

assim como construir bem situações humanas e abstratas, indicando causas e

efeitos, que servem para calibrar bem a narrativa. “Atos [....] praticados pelo ser

humano têm razões, motivos ou explicações que à primeira vista podem

parecer redundantes ou suprimíveis. Decida se deve ou não suprimi-los depois

de obtida a unidade do seu texto.” (Idem, Ibidem: 20).

Partindo do que acabou de ser dito pelo autor, abrimos espaço para

a seguinte indagação: mas isso deve mesmo se restringir ao jornalismo de

revista?

Entrando mais profundamente nos pormenores das revistas, o autor

lembra que ela, em si, compreende uma grande variedade de estilos, além de

serem produtos mais duráveis e artísticos do que os jornais. Em relação à

classificação, Vilas-Boas as divide em ilustradas, especializadas e de

informação-geral (Idem, Ibidem: 71).

Marília Scalzo (2004: 11), por sua vez, revela que mais do que um

veículo de comunicação, as revistas são produtos, negócios, uma marca, uma

mistura de jornalismo com entretenimento. Segundo ela, as revistam cobrem

funções mais complexas que a simples transmissão de notícias, já que trazem

análise e reflexão. No entanto, essas construções não podem ser confundidas

com jornalismo opinativo, posto que também o texto de revista deve estar

calcado, prioritariamente, nas informações. (Idem, Ibidem: 58).

Em relação à história, Marília lembra que o termo foi utilizado pela

primeira vez em 1704 na Inglaterra. Nesta época, era normal que as revistas

ainda se parecessem muito com os livros, apesar de já se destinarem a

públicos específicos, que visavam um aprofundamento dos assuntos.

Somente em 1731, em Londres, foi lançada a primeira revista mais

similar às nossas de hoje. A The Gentleman’s Magazine era “inspirada nos

61

grandes magazines – lojas que vendiam um pouco de tudo – reunia vários

assuntos e os apresentava de forma leve e agradável” (Idem, Ibidem: 19).

Ao longo do século XIX, as revistas se aperfeiçoariam, ditando moda

na Europa e Estados Unidos. Um pouco mais adiante, a partir do avanço

técnico das gráficas, se tornariam um meio ideal, que reunia vários assuntos

com boas imagens, num só lugar. “A revista ocupou assim um espaço entre o

livro (objeto sacralizado) e o jornal (que só trazia o noticiário ligeiro).” (Idem,

Ibidem: 20).

Segmentação é outro ponto importante que ela toca. Segundo a

autora, “enquanto o jornal ocupa o espaço público, do cidadão, e o jornalista

[....] fala sempre com uma platéia heterogenia [....], a revista entra no espaço

do privado” (Idem, Ibidem: 14). Para ela, os tipos de segmentação mais

comuns são feitos por: gênero, idade, geografia ou tema.

Ela não deixa escapar igualmente que hoje é feita, cada vez mais,

uma “segmentação da segmentação”, que surge para delimitar mais fortemente

os focos e o público-alvo de cada publicação. Não à toa as revistas terem, ao

longo da história, adquirido o poder de reafirmar identidade de grupos

específicos, ao estabelecer estes focos bem fechados.

Essa segmentação exacerbada é refletida na voz própria de cada

revista. É só observar que elas se expressam por meio das pautas, na

linguagem e no projeto gráfico.

A revista Trip, um dos principais suportes para as narrativas ao estilo

gonzo – que estamos analisando ao longo deste trabalho – é um forte exemplo

disso. Como mencionamos no primeiro capítulo, ela foi uma das pioneiras no

fomento e divulgação não apenas do Gonzo Jornalismo, mas de uma

linguagem gráfica mais livre e criativa; na escolha de pautas polêmicas e

relegadas pela grande imprensa, dentro outros aspectos.

Trip vem, ao longo de seus anos de vida, ousando textualmente e

graficamente por acreditar que a quebra de padrões não deve ser,

necessariamente, um sinônimo de subjornalismo. Mas, ao contrário, ao propor

novas e aprimoradas formas narrativas, ela acaba por contribuir para um fazer

jornalístico preocupado tanto com a informação do leitor, quanto com o seu

prazer fruitivo.

62

É a favor disto que viemos argumentando até aqui e que

continuaremos a fazer no decorrer do próximo e derradeiro capítulo – no qual

cuidaremos de analisar, mais detalhadamente, algumas produções de Xico Sá.

Fazemos questão de ressaltar, ainda, o quão pertinentes são todas

estas questões debatidas acima com os autores convidados ao diálogo –

grande parte deles, inclusive, se debruça exaustivamente na temática por

reconhecer a sua importância e também a necessidade de mudanças.

Mas uma vez mencionamos a necessidade de ir à caça de frestas e

espaços que talvez nos levem a um jornalismo menos enfadonho e “falsamente

sério”, como diria Xico Sá10. Jornalismo este consciente e, por isso mesmo,

comprometido, de fato, com a construção de boas, consistentes e aprazíveis

narrativas, capazes de retratar senão fielmente, de maneira mais honesta e

precisa possível os fatos cotidianos – sua verdadeira fonte.

10 Entrevista com o jornalista. Ver Anexo VIII.

63

3. O Gonzo segundo Xico Sá

Uma pessoa de raros dons intelectuais, obrigada a fazer um trabalho

apenas útil, é como um jarro valioso, com as mais lindas pinturas, usado

como pote de cozinha –

Arthur Schopenhauer

Eu revolto-me, logo existo –

Albert Camus

A realidade é apenas uma opinião –

Thimoty Leari

3.1 – Xico Sá, o subversivo

Francisco Reginaldo de Sá Menezes nasceu no Crato, na região do

Cariri, sertão do Ceará, em meados da década de 60. Mudou-se ainda novo

para o Recife, onde terminou de seus estudos e começou a sua carreira de

jornalista e escritor. São Paulo foi a sua próxima parada. Na cidade da garoa

trabalhou nas principais redações de jornais e revistas, como Folha de São

Paulo (onde permanece até hoje), Estadão e Bravo!, além de colaborar

freqüentemente em diversas publicações, como as revista Trip, Tpm, V, entre

outras.

64

Em 1993, Xico revelou o paradeiro de PC Farias e começou a

colecionar prêmios com as suas reportagens investigativas, como o Esso e o

Abril de Jornalismo. Talvez a mais marcante de suas facetas seja o trânsito

competente entre os diversos gêneros e assuntos que o jornalismo aborda.

Seja falando de política, esportes ou cultura, Xico possui a mesma

desenvoltura e se mostra sempre bem-informado. Suas abordagens, em

quaisquer veículos que ele esteja, primam não apenas pelo conteúdo preciso,

mas essencialmente pela forma, o que lhes vem conferindo, ao longo dos

anos, um caráter sui generis.

O humor refinado, a perspicácia – essencial ao jornalismo –, a

experiência e, ainda, o verniz erudito que Xico costuma imprimir em seus

trabalhos, são de fácil reconhecimento, configuram-se mesmo como uma

marca registrada, é importante ressaltar.

Atualmente, além de escrever uma coluna sobre esportes na Folha

de São Paulo às sextas-feiras, o jornalista mantém o site O Carapuceiro11, no

qual se permite uma escrita mais literária, humorística e, ainda, pornográfica

(lá, segundo ele próprio, são produzidas “gonzolendas”), e a coluna Ponte

Aérea/SP, no NoMínimo12, na qual ele tece comentários acerca de

acontecimentos do noticiário, além de outras amenidades cotidianas.

Entre os livros publicados, estão Modos de Macho & Modinhas de

Fêmea (Record), Nova Geografia da Fome (Tempo d’Imagem), Do Catecismo

de Devoções, Intimidades & Pornografias (Editora do Bispo), dentre outros.

Em relação ao affair entre Xico Sá e a Revista Trip avaliamos que

não poderia ter acontecido de maneira mais harmônica. A Revista, que desde

o início fez questão de se mostrar inovadora – tanto no aspecto gráfico, quanto

no que diz respeito às pautas e abordagens –, abraçou com facilidade o

trabalho autoral de Xico, passando a convidá-lo constantemente para colaborar

em resenhas e reportagens especiais.

11 Segundo o próprio Xico Sá, em entrevista concedida para esta monografia (Ver Anexos), O Carapuceiro era um jornal satírico, de crônica de costumes, que existiu no século XVIII, no Recife. Ele era feito por um padre beneditino e anarquista chamado Lopes Gama e apelidado de O Carapuceiro. Ele dizia: “escrevo e quem quiser que bote a carapuça”. Disponível em: < http://www.carapuceiro.zip.net >. Acesso em: 30 de novembro de 2006. 12 Disponível em: < http://www.nominimo.com.br >. Acesso em: 30 de novembro de 2006.

65

Vale relembrar que esta publicação, desde os seus primórdios, já se

identificava com as narrativas próximas ao estilo gonzo, a ponto de manter até

hoje um repórter que se dedica exclusivamente a essa modalidade narrativa, o

Arthur Veríssimo.

Traçado este sucinto perfil do autor das reportagens publicadas na

Trip e selecionadas como objeto para este trabalho, podemos partir, no tópico

seguinte, para a suas análises.

Se elas não se auto-intitulam deliberadamente gonzo jornalismo

(nem pelo jornalista e nem pelo veículo em questão), a nossa intenção aqui

também não é entrar neste mérito. Isto por que, mais do que verificarmos em

que categoria eles se enquadram, visamos a compreender e analisar as

peculiaridades destas narrativas – que fogem ousada e destemidamente às

amarras da objetividade jornalística.

Serão, ao todo, cinco reportagens, uma resenha e um abre para uma

entrevista feita com o rapper Sabotage. Vale ressaltar que os textos não

partem de uma seqüência cronológica exata, já que no caso de Xico, que

apenas colabora na Trip como free-lancer, não seria possível selecionar um

determinado período que considerássemos emblemático. Sendo assim,

encontraremos textos tanto dos primórdios da revista como outros produzidos

mais recentemente.

As discussões acerca do Novo Jornalismo norte-americano e do

Gonzo Jornalismo; em torno do que pode ou não ser considerado jornalismo

literário, do polêmico e contraditório conceito de objetividade jornalística, além

de outros pontos tocados em ambos os capítulos precedentes, nos darão a

base necessária para tal tarefa.

Resta-nos deixar claro, mais uma vez, que não visamos a uma

análise hermética do que deve ser definido como correto ou incorreto, melhor

ou pior para o jornalismo. O que nos importa, em verdade, são as

possibilidades de uma narrativa fluida, que permita pacificamente a mescla de

gêneros. Isto tudo no intuito de tornar mais aprazíveis (e por que não dizer

mais precisas) as narrativas jornalísticas.

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3.2 – Idiossincrasias, desvarios, sarcasmos e

orgasmos: maldição ou prazer do texto?

O Rei está tão serelepe, sem “nóias”, agora até canta, como no show do

navio, um “Negro Gato”, música banida por conta do TOC — nada escuro

podia. Canta e comenta. Já, já, insinua, vão rolar os versos “e de que tudo

mais vá pro inferno”, outro sucesso ainda proibidão pelas forças estranhas

e internas. O Rei ri à toa. Anuncia que, depois de 25 anos, vai voltar a

comer carne vermelha. “Só comi, nesse tempo todo, o que nada ou o que

balança com o vento”, fala, espero que sobre peixes e folhas –

Xico Sá

Se, apesar de todas as deixas, ainda não foi possível destrinçar de

que Rei fala Xico Sá na epígrafe acima, nós revelamos: é do Rei Roberto

Carlos. Enviado especial para cobrir o mega-show do cantor a bordo do

cruzeiro Costa Victoria, Xico, ao invés de traçar um perfil apenas direto,

contido e impessoal do artista – assim como fazer um balanço relatorial e

crítico do espetáculo musical –, aproveita o extravagante episódio para fazer

vasto e indiscriminado uso de adjetivações. Nada mais propício.

O fato, que naturalmente imprime à reportagem13 um caráter

subjetivo e igualmente opinativo, também abre espaço para uma percepção

mais aguçada do narrador. Chegamos a esta conclusão ao notarmos que, ao

partir de tal liberdade criativa, o repórter, desde o início do processo apurativo

(seja diante dos entrevistados ou mesmo analisando o ambiente que será

retratado), se sentirá mais à vontade para entrar afundo nas minúcias e nos

detalhes que permeiam o seu objeto. Situação essa que tende,

conseqüentemente, a enriquecer e tornar mais precisa a narrativa, a nosso ver.

E, vale ressaltar, isso não ocorre exclusivamente em decorrência do

uso dos adjetivos – que ele seleciona criteriosamente para compor o seu texto.

Muito mais do que isso, é importante notar que a liberdade que mencionamos

permitirá que o jornalista narre não apenas o alvoroço das fãs histéricas que

pagaram uma alta quantia pela viagem, como ele vai lembrar.

13 Reportagem publicada em março de 2006 na Revista Trip com título “Roberto marinho”. Ver Anexo I.

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O que, talvez, no final das contas, chame mais a atenção do leitor,

seja a forma franca e sem rodeios (porém, nem por isso, displicente) que Xico

arranja para falar dos sérios problemas psicológicos do cantor (Transtorno

Obsessivo-Compulsivo, no seu caso), além de suas relações amorosas, sexo,

família, dentre outros assuntos de cunho pessoal. Assuntos estes que,

provavelmente, numa reportagem convencional, ganhariam um contorno

denso, senão uma abordagem dramática, sensacionalista e/ou enfadonha.

“Como me faz bem essa terapia”, sopraria mais tarde RC, elogio merecido do divã, que está curando o seu transtorno obsessivo compulsivo, toc, toc no compensado das nossas almas descompensadas, salve o divã, viva o divã, aliás, o divã é título de uma das suas canções mais obscuras, biográfica no último, mesmo no tempo em que Ele nem sabia que precisava. [....] O Rei está com a mãe, família, auxiliares, mas estaria também com alguma Lolita al mare? Os boatos dão conta de uma fase Nabokov do astro. “Falam coisas demais sobre a minha vida”, diz, como se pedisse desculpa aos 200 fãs histéricos, quase 80 balzacas, sorteadas entre os já ditos 2.300 passageiros do Costa Victoria, transatlântico de bandeira italiana, parole, parole. [....] “Amor só de mãe, Roberto?”, pergunto, aproveitando uma brecha entre repórteres de TV e a marcação, mais realista do que o Rei, da produção do Emoções para Sempre em Alto Mar, projeto que trouxe o ídolo a este cruzeiro. “Como?”, o Rei dá uma de desentendido.“ Amor... só de mãe, Roberto?” O Rei ri à beça. “Bicho...” Ri o Rei como se eu fosse mesmo o mais competente daquela corte de tantos bobos. “Bicho... Amor de mãe, das fãs, de todas as mulheres.” O que querem as mulheres, mestre? Nunca saberemos Roberto, mas tentaremos antecipar os seus desejos. Homem que é homem, o Rei bem sabe, vira o gênio da lâmpada diante de uma mulher que pede o impossível, como bem disse o escritor Joca Reiners Terron, ou teria sido Otto Lara Resende? Encaro o Rei, aperto aquela mão direita para pegar por osmose o que nada sei. “Bicho...” O homem que sabia demais do amor e suas lições mais óbvias. O professor de educação sentimental das massas e os seus amassos no portão de todos os domingos, domingos de missa, domingos de sarros e os primeiros beijos na boca. [....] O importante é que ereções eu vivi.

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Feita esta breve análise, talvez fosse pertinente ponderar se o teor

excessivamente interpretativo da narrativa, a inserção do repórter no contexto,

o uso da primeira pessoa, ou mesmo a dose extra de sarcasmo – que acaba

por conferir um tom humorístico e leve à reportagem – não comprometeriam a

veracidade ou a seriedade dos fatos ali contidos. Em nossa avaliação, isto não

ocorre, já que, apesar de do tom por vezes jocoso, tudo o que é narrado no

texto permanece verificável, constatável. Esses recursos apenas acrescentam,

não suprimem em nada a essência do conteúdo jornalístico.

Mesmo a seleção de perguntas – ora irônicas, ora polêmicas –, pode

e deve ser entendida como uma forma diferente de apresentar o entrevistado

ao leitor. Afinal, as suas reações diante de perguntas capciosas também

devem ser consideradas importantes informações jornalísticas. Quem não

gostaria de saber como o ídolo ou uma personalidade reage a uma pergunta

permeada de malícia?

Outro fator interessante proporcionado pela narrativa de Sá é a

inserção de um grande número de fontes-personagens, que ele seleciona não

apenas em detrimento de sua importância social, mas, principalmente,

baseado naquilo que ele parece considerar mais extravagante, singular. Ao

longo da reportagem as vozes ganham vida quase independentemente. Chega

a parecer, às vezes, que não existe alguém intermediando os discursos, numa

alusão ao conceito de polifonia, discutido no segundo capítulo e segundo o

qual o narrador tenta humanizar a narrativa por meio da multiplicidade de

vozes, tanto da vida social, cultural e ideológica representada.

No caso desse trecho abaixo, Xico narra a agitação de uma fã

eufórica e nervosa, na ânsia de ver de perto o Rei:

“Te joga, rompe o cerco, te entrega, segura na mão de Deus e vai, com presente e tudo”, dou uma de cupido. Ela ameaça, mas, a uns três metros do obscuro objeto de desejo, freia; o gás azul e paralisante da emoção. “Me abraça”, pede. Agarro de novo, mais forte ainda. O importante é que ereções eu vivi. A vida é brega como uma carta de amor.

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A reportagem intitulada Jornal Nacional 14, segue a mesma linha de

Roberto marinho. Ela, na verdade, é outro forte exemplo de que um tema de

contornos polêmicos, relevantes e de interesse público, não tem,

necessariamente, que se acorrentar às regras da objetividade e

impessoalidade para permanecer confiável. Logo no abre da narrativa, o editor

de Trip faz uma advertência:

Cobertura política não precisa ser maçante, como provou Mr. Hunter Thompson em suas imersões pela Casa Branca. Em uma homenagem ao finado mestre do jornalismo gonzo, Trip despachou uma dupla insólita para Brasília no dia mais quente da política brasileira dos últimos anos – o dia da queda de Zé Dirceu. Apesar da linguagem ousada tanto em texto como nas ilustrações exclusivas feitas in loco – milhas distantes do formatão desgastado das revistas semanais e telejornais engravatados -, tudo aqui é verdade, a exemplo do mais fino new journalism norte-americano. Com vocês, direto da capital branca, o poder e suas tentações.

Para construir “Jornal Nacional”, Xico não apenas ouve os

personagens principais desta história e abre contidas aspas para suas falas

pré-concebidas por assessores. Mais do que isso, ele pára para perceber

sofisticadamente o cenário que os cerca – desde o cheiro e o clima da cidade,

até as paisagens de uma Brasília que, para ele, “não passa no noticiário” ou,

ainda, que tem o poder de nos transportar de um “pesadelo dirigido por David

Lynch para o cenário do JN narrado por William Bonner & Fátima Bernardes”.

Outro competente e inusitado recurso utilizado por Xico Sá na

reportagem é um tom levemente ficcional – recurso este semelhante ao

utilizado tanto pela turma do Novo Jornalismo, como pelo próprio Hunter

Thompson. Todos eles tinham o costume de mesclar, deliberadamente, traços

fictícios à sua narrativa jornalística, sem que para isso houvesse

comprometimento no teor informativo do acontecimento. O acréscimo aqui se

dá, sobretudo, no que diz respeito à forma da narrativa, não ao seu conteúdo.

É só observar que, ao atravessar Esplanada dos Ministérios,

Congresso, Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto, o jornalista começa

a fazer jogos de palavras, insinuando, pouco a pouco, que um cheiro estranho

14 Reportagem publicada na edição 135 de Trip, de agosto de 2005. Ver anexo II.

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– vindo de um ralo –, estaria empestando a capital do País. De onde ele viria?

Ele deixa a indagação no ar.

“Política é namoro de homem”, dizia o cronista mineiro Paulo Mendes Campos. A CPI dos Correios estoura no Congresso. O governo leva a melhor e indica o presidente e o relator das investigações. Algo como se num jogo de futebol um dos times indicasse o juiz. O cheiro do ralo. Só se fala em uma coisa: o “mensalão”, a mesada de R$ 30 mil repassada, segundo o deputado Roberto Jefferson [PTB], a parlamentares do PP e PL em troca da fidelidade ao governo.

E Xico vai ainda mais longe. Além de lançar mão de recursos

fictícios, ele se permite brincar com associações, talvez impensáveis pelos

demais repórteres. Para isso, entrevista uma garota de programa que,

segundo ele, segue o mesmo lema dos políticos, já que afirma que “Pra ser fiel

é mais caro. Só de R$ 10 mil por mês para cima”.

Neste bolo, o repórter não perde a oportunidade de ouvir igualmente

o lavador de carro do prédio de um dos Ministérios, que faz menção,

anonimamente, ao comportamento de um dos ministros dali. Uma outra fonte é

o taxista que faz sua corrida do aeroporto para o hotel. O motorista, por sua

vez, adverte: “Aqui [em Brasília] não se rouba mixaria”.

A íntegra de uma curta entrevista que Xico conseguiu fazer com

Severino Cavalcante, na época presidente do Congresso, consta no material

jornalístico da reportagem. Se percebermos e pararmos para uma análise mais

acurada, apesar das piadas, ela pode revelar muito mais do que um pingue-

pongue convencional entre entrevistado-repórter que, em muitos casos, não

trazem nada além de respostas prontas e repetitivas, próprias de alguns

políticos em época de crise. Ei-la:

Quinta-feira, 16, epicentro do escândalo “Você está em que jornal mesmo, conterrâneo?”, me pergunta Severino Cavalcanti [PP-PE], presidente do Congresso. Aqui, agora, a serviço da Trip. O deputado me pega pelo braço – e entro inevitavelmente no namoro de homem – e saímos conversando da saída do plenário até o seu gabinete. Trip De onde vem esse cheiro? Severino Que cheiro? Trip O senhor não está sentindo?

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Severino [Depois de aspirar fundo três vezes] Tá cheirando bem o salão, como sempre. Trip Pois eu estou sentindo um mau cheiro danado... Severino Você tá é com presepada, né, meu filho? Trip É o cheiro do ralo, deputado. Severino Você quer conversar sério ou não, cidadão? Trip O sr. acha que algum colega seu, aqui da casa, vai ser cassado? Severino Se ficar comprovado o que estão falando – mensalão – vamos ter que tomar alguma providência nesse sentido. Mas depois das investigações. E se tiver prova. Trip Com esse corporativismo todo do Congresso, o sr. acha que pode haver mesmo cassação? Severino No que depender de mim, a coisa é séria. E, se for pra mandar embora deputado, a gente manda mesmo. Quando eu era da Corregedoria da casa fui favorável a cassar um bocado, num tá lembrado? [Refere-se ao escândalo da compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, em abril de 1997.] Trip O sr. se acha folclórico como pintam na imprensa ou não vê graça nisso? Severino Folclore é bumba-meu-boi, papangu, essas coisas... Eu sou respeitado, presidente do Congresso do meu país. Trip Deputado, por obséquio, sinta só o cheiro agora! Severino Lá vem você de novo com isso... Trip Cheiro de mensalão, deputado. Severino E quem disse que dinheiro fede? Trip Nem dinheiro sujo, deputado? Severino Conterrâneo, me dê licença, outra hora passe aqui que a gente continua a conversa.

Declarações de Roberto Jefferson, também entrevistado por Xico – e

um dos nomes que ressoavam mais forte no período –, terminam de criar o

ambiente da Brasília percebida pelo jornalista, que aproveita para traçar um

breve perfil de Jefferson:

“Lula não quer que a lama se alastre para o gabinete dele”, disse “Jeff”, como estava sendo chamado pelos amigos, à TRIP, naquela mesma noite. Conheço bem Jefferson desde os tempos do Collorgate. Era da chamada “tropa de choque” do presidente cassado, inimigo mortal do mesmo PT com quem fechou aliança durante o atual governo Lula. Que cheiro é esse, deputado?, repeti a pergunta para o homem que se divertia jogando merda parlamentar no ventilador naquela semana quente. “Ora, Brasília hoje cheira a mensalão e a Delúbio”, respondeu, sorriso de canto a canto por causa da despedida de Zé Dirceu. Horas depois, Jefferson recebeu colegas parlamentares do PTB, para uma reunião. Antes de dormir, contou que veria o

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filme “O homem que sabia demais” (The Man Who Knew Too Much, 1956), de Alfred Hitchcock. “Nao é piada, é sério mesmo”, alertou.

Na hora de mencionar o dia seguinte à cassação de José Dirceu, mais

sarcasmos, e mais uma dose de informações acerca daqueles turbulentos dias

vividos na capital do Brasil:

Sexta-feira, 17, Palácio do Planalto, day after A crise viaja. Zé Dirceu, já na pele de um simples deputado, vai para São Paulo, onde se notabilizou por montar o que era chamado na Assembléia Legislativa de “máquina de denúncias”. Nunca um gabinete parlamentar denunciou tantos casos de corrupção, principalmente contra o governo Quércia (1987-91), como o do petista que agora se vê na condição de caça. O ar de Brasília está menos punk, embora a gente ainda sinta o cheiro do ralo.

De resto, vale registrar ainda que, além de enviar Xico a Brasília,

Trip mandou junto com ele para este trabalho o ilustrador Lourenço Mutarelli,

que cuidou de toda a arte da reportagem. Arte esta que, como podemos

observar em um dos exemplos reproduzido abaixo, visa muito mais do que ao

mero adereço estético.

Isso por que, em cada uma das ilustrações, vai existir um importante

conteúdo informativo e complementar ao texto de Xico – que, se não aparece

de maneira óbvia, é capaz de suscitar pertinentes e individuais interpretações.

A harmonia entre a produção de ambos é percebida igualmente na

voz de Mutarelli, que Xico Sá toma a liberdade de enxertar em um momento do

texto, em que os dois flanavam por Brasília: “Cidade estranha essa, você só vê

fachada e carro, a arquitetura engole as pessoas”.

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Figura 3.1: Reprodução de Roberto Jefferson (Mutarelli: 2005)

Assim como observamos nas duas primeiras reportagens, em

Programas de Governo15, Xico também aproveita para fazer uso de trocadilhos

já no título. Em Brasília novamente a serviço da Trip, o jornalista, desta vez,

tinha uma missão ainda mais delicada (e inusitada): entrevistar uma cafetina,

Jeany Mary Córner, cujo nome tinha ido parar em uma Comissão Parlamentar

de Inquérito (CPI).

Outro ponto em comum entre elas é a refinada descrição do

ambiente (Xico começa descrevendo o entorno da boate de propriedade da

cafetina e ainda tira proveito do fato dela estar localizada ao lado de uma

igreja), feita com destreza e riqueza de detalhes. Para isto, o repórter não se

abstém de lançar mão amplamente de recursos literários e subjetivos.

Mais adiante, ele analisa o trabalho feito pela imprensa acerca do

caso, afirmando que os mesmos “haviam chovido no molhado, da forma mais

moralista possível, sobre o sexo por dinheiro entre lindas garotas e as Vossas

Excelências da República”.

Segundo Xico, essa abordagem “moralista” teria sido o suficiente

para “que o mercado da sacanagem abrisse o seu pregão em baixa”. E, assim,

fazendo graça dos fatos, segue construindo sua narrativa.

15 Publicada na edição 137 de Trip, de outubro de 2005. Ver Anexo III.

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Na boate, ele não encontra Jeany Mary. Por isso, o primeiro diálogo

se dá entre ele e uma das moças, Vanessa, que lá trabalhava.

Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda contra ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz, compassadamente, a gazela. A mulher-esquina está em São Paulo a essa altura, para escapar do assédio da clientela VIP que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa lista. Antes a cassação do mandato e um linchamento público do que as garras de uma mulher em fúria no lar doce lar de outrora. [....] Vamos ligar pra ela, sugiro a Vanessa, com quem conversei sobre o que acabei de pôr aqui na página. A danada pede metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no telefonema caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismo-verdade. Pelo ofício, tudo.

Aqui surge uma outra similaridade entre esta e as demais

reportagens analisadas anteriormente. Isso porque em todas elas Xico vai

transcrever a íntegra de um diálogo. Se não podemos considerar esta imersão

nitidamente como uma característica do discurso polifônico, fica clara a

intenção do autor de deixar que as vozes de seus personagens ressoem sem

sua interferência direta, sem um caráter puramente declaratório. Eles falam

como falariam na vida real, não importando se isso soa inconveniente ou

inadequado ao estilo do meio de comunicação.

Neste último caso, surge a transcrição do diálogo que ele travou ao

telefone com a própria Jeany. Mesmo permeado de perguntas irônicas, de

brincadeiras e palavrões podemos observar, como numa outra entrevista

tradicional, a voz da acusada se defendendo diante dos fatos, que ela afirma

serem infundados.

O grande diferencial deste caso talvez seja o excesso de

espontaneidade da entrevistada, que responde sempre à altura as perguntas

capciosas e audazes de Xico. O título escolhido para este fragmento da

reportagem é “Disk Jeany para comer, beber, viver...”.

-Alô, dona Jeany?! -Quem fala? -É um conterrâneo seu, do Crato...

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-Deixe de brincadeira, fala logo! -É sério... Tô aqui em Brasília, a senhora sabe, sozinho, preciso de uma mãozinha, uma ajuda... -Quem é você? -Sou repórter, mas sou do Crato mesmo! -Agora deu, era o que faltava: jornalista do Crato! -Tô solidário à senhora, nessa luta toda. -Não tem luta nada, só calúnia de quem não tem o que fazer... -Aquele senador, Demóstenes, de Goiás, citou o seu nome da CPI... -Falta do que fazer, não sou nada disso do que estão dizendo. -Cafetina? -Sou produtora de eventos, recruto moças para trabalharem de recepcionistas em festas, como quem contrata para uma feira de gado, de automóveis, feira agrícola... -Mas e os pecados da carne? -Que palhaçada é essa?! -Assim, quero dizer, elas ficam com os caras, as autoridades, não? -Aí é uma questão delas, simplesmente contrato para os eventos, não tenho culpa se a humanidade continua fazendo o que se faz desde Adão e Eva. -Quanto custa essa brincadeira no paraíso, dona Jeany? -Jeany, que porra de chamar de dona, de senhora! -É a praxe. [Respiração forte e silenciosa do outro lado da linha] -E a lista, Jeany, a senhora tem uma lista que aterroriza os clientes? -Não é da sua conta. -Desculpa, mas a senhora acabaria pelo menos uns 300 casamentos deste povo de Brasília, não? -Quer saber de uma coisa?, [irada] eu melhoro o casamento de todos esses felas da puta! -As autoridades, as Vossas Excelências voltam para casa felizes da vida, né? -Você tá fazendo chacota! -Não... peraí... -Você é de rádio do Crato, não vai falar merda para os meus parentes, hein! -Não, tô fazendo uma reportagem para a revista Trip. -Trip? -Estou aqui com a Vanessa, que trabalhou com a senhora... A desalmada conterrânea desliga o telefone na minha cara.

Além de ouvir Vanessa no seu processo de apuração, Xico Sá

encontra a garota de programa e também funcionária de Jeany, Duda, que

defende a sua patroa, assim como tece alguns comentários acerca da maneira

de ser dos políticos que costuma atender: “Prefiro endinheirado sem poder.

Poderoso dá muito trabalho e é muito cheio de ordem, organizado demais...

até pra gozar é cheio de lei e nove-horas”.

76

Nesta entrevista com Duda, feita em um quarto de hotel, Xico

percebe, pelos pedidos que a moça faz (champanhe Veuve Cliquot e cocaína),

que ela está acostumada e possui hábitos sofisticados, em decorrência dos

programas com pessoas ricas que faz. Ao que ele retruca, dizendo não ser

[Marcos] Valério nem Delúbio [Soares]; “não tenho bala”, explica a ela, que,

enquanto isso, mostra ao repórter fotos no celular de surubas com deputados.

Sabe a farra paga pelo Marcos Valério, o Kojak da CPI, para celebrar o aniversário de Silvio Pereira, o Silvinho, ex-assessor do presidente Lula, que, desconfiado, não compareceu, em 05 de novembro de 2003, no hotel Grand Bittar? Meninos, eu vi. Pelo olho mágico do amor. Uma puta com um celular que fotografa é mais perigoso para uma autoridade do que o sigilo bancário quebrado.

Xico também fala um pouco sobre a crise por que passava a prostituição

em Brasília neste momento particular – já que as tais denúncias e o medo de

ser descoberto vinham afastando os clientes dos programas; assim como

menciona algumas peculiaridades da era Viagra, e como ela teria afetado o

funcionamento dos programas na cidade sem esquinas. E mais: não poupa, de

maneira alguma, os nomes dos envolvidos, citados pelas garotas:

Na secura da capital federal, não rola a suruba-jazz, o improviso. Tudo aqui funciona na base do acerto, do combinado, como comprovou Ricardo Penna Machado, sócio de Marcos Valério na empresa Multi Action, que chegou a dar aulas de etiqueta para garotas que participaram de uma bacanal no hotel Grand Bittar, em 2003. “Ele fez tanta pergunta, meu Deus, queria que a gente fosse intelectual”, conta Carol, 22, estudante de Direito em Brasília. “Vocês vão lidar com grandes autoridades da República, não podem ser vulgares”, alertou Machado, que reconheceu a “aula” em depoimento à Polícia Federal obtido por este repórter. “No dia 08 de setembro de 2003 recebi Jeany (a cafetina) e oito acompanhantes no restaurante do hotel Grand Bittar”, confessou o tal. O acerto, conforme o depoente disse à PF, era de que cada menina receberia R$ 500 pela farra. “Me roubaram”, queixa-se K., ao ler comigo as seis páginas do depoimento do sócio do trem-pagador-mineiro chamado Valério. “Só recebi 300”.

77

Em suma, a ousadia que percebemos na reportagem “Programas de

Governo” vai muito além dos recursos utilizados para a construção narrativa.

Mais do que isso, acreditamos que Trip e Xico Sá conseguiram, por meio de

uma pauta não apenas cheia de obstáculos e complexa, como fora dos

padrões jornalísticos, tratar de diversos pontos obscuros e polêmicos

referentes à nossa política – citando nomes e trazendo à tona fatos inéditos,

inclusive.

Mais do que isso é possível afirmar que ambos conseguiram

descortinar, de forma competente, um universo que não costuma ser

estampado, de maneira alguma, nos jornais e revistas convencionais – apesar

de se tratar de um assunto tão real quanto os demais que entram nas pautas e

que costumam ser noticiados.

Assim como nas demais reportagens ao estilo gonzo de Xico Sá,

nesta, o caráter investigativo não se perde em decorrência do humor e das

piadas que são, constantemente no decorrer do texto, impressos ao fato. O

humor, a nosso ver, na verdade, agregaria à reportagem um tom mais leve e

prazeroso, assim como teria o poder de complementá-la em termos de

informação.

Na edição 109 de Trip16 Xico Sá foi convidado não para viajar a

bordo de um navio, ou para ir a Brasília desvendar ocorrências escusas

envolvendo políticos do alto escalão. Sua missão desta vez, senão mais

simples, era um pouco menos controversa: criar um texto de abertura para

uma entrevista com o rapper Sabotage, que havia sido morto alguns meses

antes.

A escrita fluida, com referências, extremamente descritiva e bem

costurada permanece e é de fácil identificação já nas primeiras linhas. Xico

começa reconstruindo ambiente e os pormenores do fatídico dia no qual

Sabotage foi assassinado. Outro detalhe que salta aos olhos são as gírias,

próprias do universo do rapper, que o jornalista seleciona para marcarem

trechos da narrativa – mais uma vez repleta de recursos literários. Um indício

de que o mesmo buscou se ambientar na vida do personagem que ele

começava a retratar.

16 Entrevista publicada em junho de 2006. Ver Anexo IV.

78

O cara catou a mulher pelo braço, como fazia quase todo santo dia, para levá-la ao trampo. Andava sossegado. Do tipo que chuta tampinhas pelas calçadas. E assobiava baixinho “O Meu Guri”, de Chico Buarque, a sua preferida. “Vivia na paz e cumprimentava todos os manos e todos os velhos, no respeito”, conta Maria Dalva, 28, a “patroa”. Rapper cordial, treta zero — havia pelo menos quatro anos que não se metia em broncas. “E mesmo as confusões antigas não deixaram inimigos no seu rastro.” Quem fala agora não é mulher nem mano. Plantão do 16º DP, 18 de fevereiro, 25 dias depois. “Confusõezinhas de rua, bar, besteira”, diz Miguel Pinheiro, investigador-chefe.

A partir daí, ele segue reconstituindo, passo a passo, o momento no

qual Sabotage levou os quatro tiros que lhe tiraram a vida. Desde a hora em

que ele deixa a “patroa” no trabalho, até sua entrada no ônibus e, enfim, a

queda sobre a calçada da Avenida Professor Abraão de Moraes – ainda com

vida – e os seus últimos momentos no Hospital São Paulo, com os amigos

músicos a rezar.

O próximo passo é ouvir a versão oficial da polícia. Aqui, também

entram não apenas as informações colhidas com os delegados, amigos,

viúvas. Mas interpretações de Xico acerca dos trâmites policiais, das versões

contraditórias que geralmente permeiam esse tipo de ocorrência.

Assassinato sem autoria conhecida, como os bê-ós narram a matança nos arrabaldes. A primeira suspeita: um desafeto que havia deixado a cadeia no início deste ano. Os seus amigos da favela do Canão não levam muita fé nessa pista. E só abrem a boca, natural, sob a garantia do anonimato. Volta o investigador-chefe: “É lenda, não existe nenhum desafeto que tenha saído da prisão nos últimos tempos”. A polícia tem nas mãos apenas a máscara preta, daquelas de motociclistas, que o assassino largou ao lado do corpo. Nos depoimentos, tudo na base do ninguém sabe, ninguém viu. A polícia, velha inimiga e alvo do hip hop, não teria nenhuma razão para botar auréola em rapper, mas não enxerga depois de ouvir cerca de 40 pessoas — entre depoimentos oficiais e informais — inimigo com motivação para o assassinato. Suspeita número dois: um grupo de traficantes resolveu afrontar a família de Sabotage com a morte do seu parente mais notório. Falam os amigos: “Tudo pode acontecer”... Fala o investigador-chefe: “Não temos nenhum elemento que sustente essa linha de suspeita”.

79

Na seqüência, investigações, suposições, versões de amigos

próximos e famosos, elucubrações e afins. A partir dos detalhes colhidos da

vida pessoal do rapper, podemos observar o quão acurada, sofisticada e

precisa é a apuração feita por Xico, que sai destrinchado em sua narrativa

fragmentos íntimos, que irão nos permitir uma melhor compreensão dos fatos,

assim como criam uma proximidade com a vida daquele personagem.

O clima denso também é quebrado com perspicácia, quando, por

exemplo, Xico relembra a reação de deboche de Sabotage ao comentar com

os amigos o convite que recebera para posar nu em uma revista masculina:

Tirava onda com um convite que havia recebido: pousar nu para uma destas revistas dedicadas à clientela gay. [....] “E aí, setentinha [R$ 70 mil], você acha que devo mostrar a vassoura?”, sapecou para uma amiga confidente do estúdio YBrazil. Os amigos votaram contra.

Como já havíamos mencionado, a versatilidade é uma forte marca

de Xico Sá e, mais uma vez, ela encontra-se impressa neste texto. Apesar de

não ter sido ele o entrevistador do rapper morto, Xico foi capaz de construir

uma narrativa não apenas introdutória ao que viria na seqüência. Ele também

nos apresentou, a partir de sua narrativa autoral, sofisticada e audaz, o

universo de um indivíduo que permanecia às margens, em um gueto que

talvez poucos dos leitores de Trip tivessem e têm acesso. A apuração, aqui,

transforma-se em um dos principais diferenciais.

Partindo agora para outro caso, na efeméride de quatro anos de

morte do músico pernambucano Chico Science, Xico Sá e Renato L., amigos

pessoais de Science, foram convidados para celebrar a data confeccionando

uma reportagem especial. Nesta, deveriam contar causos, revelando segredos

e fotos inéditas, analisando a importância de sua produção musical, enfim,

fuçando o baú de recordações do artista que, segundo a revista, foi “o maior

brasileiro da última década”. O título dado ao trabalho foi O Brasil de Chico17.

“Num tem mambo? Num tem calipso? Pois agora tem o mangue! Foi

assim que Chico Science deu nome ao movimento que tirou o país da lama e

instaurou o caos na música brasileira”. Logo no abre da reportagem, uma

17 Reportagem publicada na edição 86 de Trip. Ver Anexo V.

80

introdução à descoberta musical do artista para, então, começarmos uma

viagem rumo ao passado dessa personalidade que saiu de cena no ápice de

seu reconhecimento profissional. Enfim, uma abordagem acerca do sujeito

que, como nos deixa cientes os autores, pregava uma “diversão levada a

sério”.

Xico e Renato constróem uma narrativa repleta de minúcias e

peculiaridades do seu personagem, numa mostra do poder perceptivo de

ambos. O texto remonta à juventude de Chico, época na qual tudo teria

começado, de acordo com a análise dos mesmos. Mais uma vez, aqui, a

sofisticação descritiva é percebida nos detalhes que nos são revelados – prova

de um trabalho intenso de apuração e ainda de sensibilidade.

Era uma vez uma croata chamada Sladjena, vinte e poucos anos, daquelas que vão além da larica, do tipo que tem mesmo fome de viver. Estava de bobeira na margem esquerda do Capibaribe, viagem sem diário de bordo, sob o torpor e a lesa felicidade guerreira dos Tristes Trópicos. Deixou uma penca de rapazes com os quatro pneus arriados de paixão na aurora dos 90. Recife ensaiava seus passos de Seattle do Quarto Mundo, mas os mangueboys, chapados de lirismo, groove e psicodelia, faziam um minuto de silêncio para ouvir a saudação gringa: - Up to the trip! - bradava a croata, com Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão. Um dos vidrados na estranja, Francisco de Assis França, futuro Chico Science, pisciano devoto à disciplina amorosa, dono de um parque de diversão na cabeça, parecia seguir, sem muito trabalho, os conselhos de Sladjena. À moda de Salinger (Para Cima com a Viga, Moçada), começou a desentupir as veias da Amsterdã das Américas - como queriam os holandeses chegados ao Recife - com um levante praieiro que marcou a sua vida de malungo: a busca da batida perfeita.

A competência narrativa dos autores talvez tenha no vasto

conhecimento acerca dos movimentos culturais e na sua ampla visão de

mundo, um forte aliado – vale ressaltar e, quiçá retomar Benjamin quando

este, no texto O Narrador, menciona a importância da experiência na

construção de narrativas.

Em todas as reportagens de autoria de Xico Sá, como podemos

perceber, vão existir associações que, se não buscam a exatidão comparativa,

trazem à tona o poder aguçado de percepção do repórter, que ao construir o

81

seu texto, cuida para que ele receba também o suporte de fatos que se

assemelham a ele, em quaisquer sentido que seja, como em “Recife ensaiava

seus passos de Seattle do Quarto Mundo” ou “À moda de Salinger (Para Cima

com a Viga, Moçada), começou a desentupir as veias da Amsterdã das

Américas”. Tudo se transforma em informação; só que apresentada ao leitor de

forma diversa, menos óbvia e objetiva. O jornalismo aqui, pode-se dizer, abre

espaço para a literatura e para a interpretação individual. E o faz com

sabedoria, calculadamente.

Pormenores do acidente também surgem como numa reconstrução

daquele dia em que “o homem-caranguejo deu um pitu na vida - o mesmo que

‘dar um perdido’ no dicionário dos paulistas - e deixou este mundo”. Aqui,

igualmente, notamos o cuidado com o conteúdo informativo. E mais: Xico e

Renato conseguem imprimir à narrativa emotividade, sem que para isso

recorram a depoimentos excessivamente melodramáticos e sensacionalistas.

O choque de um Fiat Uno com um poste, em um viaduto na divisa entre o Recife e Olinda, por volta das 19h do dia 2 de fevereiro de 1997, arrastou precocemente, aos 31 anos incompletos, o homem-caranguejo. O inquérito policial de 174 páginas da Polícia Civil pernambucana calculou que Science corria a 110 km/h - a velocidade média nesse trecho costuma ser alta, pois a avenida que precede o viaduto é uma reta só. Com traumatismo craniano, afundamento no tórax e fraturas múltiplas na face, a maior invenção dos palcos brasileiros pós-suingue de Jorge Benjor foi levada para o Hospital da Restauração, centro de urgência da capital. Entre vítimas da violência carnavalesca, o seu corpo foi largado nos corredores, enquanto aguardava a vez. Conforme a notícia do acidente corria as ruas do Recife e as ladeiras de Olinda, os tambores dos maracatus e as pequenas orquestras de frevo iam silenciando. Amigos e admiradores, inconformados, maldiziam Deus e o mundo.

Em suma, os autores conseguem ir muito além da celebração de

uma data importante para a música brasileira e da reprodução simples e direta

de fatos que marcaram a vida do seu personagem principal. Encontram-se aí

um dos muitos méritos da escrita de Xico Sá. Afinal, é praxe sua, o privilégio

por uma narrativa rica não apenas em termos de conteúdo, mas

essencialmente no que diz respeito à forma.

Mesmo deixando de lado as longas e aprofundadas reportagens,

rapidamente observamos essas qualidades todas supracitadas também nas

82

resenhas feitas pelo jornalista. Em O samba-rave, meu irmão18, Xico avalia um

álbum recém-lançado pelo músico Otto. No intuito de demonstrar aos leitores

as suas qualidades musicais, o jornalista segue fazendo insinuações,

brincadeiras e jogos de palavras em torno do poder de Otto de tirar música de

qualquer coisa que emita som.

Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira uma malandragem distorcida ou um galope trance no pandeiro imaginário que Otto carrega pra tudo que é lugar desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão. O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas moedas no bolso e lá vem um xote eletrônico, o vento mexe nas panelas e tome polca de primeira, um bêbado sem-teto entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.

A psicodelia do mangue beat, os samples de ciranda e o maracatu,

que Xico identifica na música do cantor pernambucano, são a deixa perfeita

para definições sagazes do seu estilo. Aqui, na figura de crítico musical, Xico

Sá atribui ao álbum, intitulado “Samba pra Burro”, as seguintes definições:

“música para viagem feita por um festivo gozador” e “croissant fino para as

massas”.

Batuqueiro nas ruas e metrô de Paris, onde viveu a sua temporada, ele não esqueceu nem mesmo de cantar na língua de Gainsbourg, a quem sempre dedica homenagens noturnas nas mesas de bares. A música "Changez tout", em parceria com Apollo, é a prova de que a França pode até ter esquecido Otto, mas Otto não esqueceu o seu francês.

Finaliza Xico, em referência ao período em que Otto viveu em Paris

e começou a vivenciar as suas experiências sonoras. Aqui também ele abre

espaço para as associações que enriquecem sobremaneira a narrativa.

Em Os Limites do Paraíso19, derradeira reportagem escolhida para

nossa análise, notamos que, apesar da pauta fora dos padrões, da meticulosa

apuração feita in loco e pela, mais uma vez, vasta utilização de recursos

18 Resenha publicada na edição 68 de Trip, versão online, de fevereiro de 1999. Disponível em: < http://revistatrip.uol.com.br//redirect.php?link=http://www.trip.com.br/68/ottomano/home.htm >. Acesso em: 3 de dezembro de 2006. Ver Anexo VI. 19 Reportagem publicada na edição 89 de Trip, de maio de 2001. Ver Anexo VII.

83

literários – que dão o suporte necessário para a descrição do ambiente e dos

personagens –, Xico opta por respeitar as principais normas vigentes no

jornalismo tradicional.

Enviado a Fernando de Noronha para desvendar histórias escusas

do arquipélago formado por sol, céu, mar, surf e, ainda – como ele constata –,

por neuróticos e eufóricos moradores que parecem não saber como extravasar

suas condições de vida naquele paraíso-prisão, Xico volta com histórias senão

estranhas, certamente inesperadas. Sobretudo se temos em conta o fato da

grande imprensa só divulgar as maravilhas da ilha.

Uma pesquisa feita em 1998 pela Administração do Distrito Estadual de Noronha apontou que o alcoolismo atinge 25% da população do arquipélago. A antropóloga pernambucana Janirza da Rocha Lima, em sua tese de doutorado defendida na PUC de São Paulo no ano passado, detectou que na ilha "além do dinheiro fácil, o turismo introduziu na comunidade insular [...] a música reggae, as pranchas de surf, os veleiros e, como acessórios complementares, o turismo sexual e a droga". Ora, o paraíso também enche o saco. Não poderia ser diferente na última colônia ultramarina do planeta (como define o agrônomo e maior liderança popular nativa Domício Alves Cordeiro, na ilha desde 1948). Com administrador enviado pelo governo de Pernambuco, que reanexou o território de Fernando de Noronha em 1988, os nativos nunca mandaram no seu pedaço de terra, desejo que politicamente vive a sua mais intensa articulação neste momento.

Como podemos observar, já de início, Xico mostra ao que veio

alicerçado de dados que, certamente, a maioria dos leitores da reportagem,

desconhecia. Informações estas costuradas no decorrer de seu texto de forma

fluida e contextualizada – como costumavam fazer competentemente os Novos

Jornalistas e também Hunter Thompson, pregadores de uma apuração longa e

participativa.

Sua compreensão do funcionamento da ilha também deixa à mostra

a importância de um trabalho que não seja limitado por um espaço pré-

determinado de tempo. Mesmo não deixando claro, ao longo da reportagem, o

período que passou no arquipélago – juntamente com os moradores e turistas

–, não é difícil concluirmos que isto se deu de forma lenta, perceptiva e

cuidadosa.

84

Enquanto os nativos mais velhos e chegados neonoronhenses se articulam politicamente, reunidos na Assembléia Popular de Noronha - órgão sem direito a voz nem voto, já que os destinos da ilha são decididos pelos deputados estaduais de Pernambuco, a 545 quilômetros da ilha -, os mais jovens tentam curar o banzo do isolamento na ilha, o que a ciência denomina como síndrome insular, com a danada da cachaça. Preferem encher a cara a morrer de tédio, mesmo que nunca tenham lido o famoso verso de Maiakóvski, vermelho que reinou numa terra gelada, longe, muito longe dali.

A inserção de trocadilhos, de ironia e sarcasmos igualmente se

fazem muito presentes ao longo de toda a narrativa. Xico aproveita para trazer

à tona dois neologismos criados, segundo habitantes locais, para descrever

“doença” tanto dos moradores, como dos eufóricos turistas que estão de

passagem pelo paradisíaco lugar. São eles, respectivamente, “neuronia” e

“euforonha”.

Outro grande mérito de Xico Sá nesta reportagem é a seleção de

variados e ricos personagens. Mais uma vez aqui, ele irá permitir que eles se

construam quase de maneira autônoma, dando voz e espaço às suas

elucubrações, questionamentos, aflições, etc., em referência novamente ao

conceito de polifonia.

Com a palavra o pescador Salviano José de Souza, 83 anos, nascido no Recife, 60 anos de Noronha e mar, misto do velho Santiago de Hemingway com o zen-budismo de Dorival Caymmi: "O limite entre paraíso e prisão depende do espírito de cada um que vive por aqui. Para os mais agoniados, pode ser terrível, para os que têm a alma sossegada, vixe!, é um bálsamo da vida", diz, enquanto hipnotiza o repórter com o balanço da rede na varanda. "Aqui se bebe faz séculos. Claro que a vinda de mais turistas, com um dinheirinho, aumentou um pouco a bebedeira dos meninos, que ficam na cola deles. Mas num faz mal não. Eles gostam dessa brincadeira. O que faz mal é cigarro de maço e droga, mas isso é muito pouco aqui", conta o mais velho habitante do arquipélago, pai de 28 filhos - 14 viveram e 14 "Deus levou" ainda meninos.

Ademais, mesmo não identificada especificamente como uma

construção gonzo – como talvez pudessem ser caracterizadas “Programas de

Governo”, “Roberto marinho” e “Jornal Nacional” –, mais interessante para nós

é constatar a presença em “Os Limites do Paraíso” de recursos que

85

usualmente se perdem no jornalismo cotidiano. Foi esse o nosso critério não

apenas na seleção dessas reportagens tratadas aqui, como também na

escolha da obra de Xico Sá.

Xico, além de jornalista um escritor, talvez possua esse olhar mais

atento e cuidadoso (quiçá o “olhar amoroso”, de que fala Cremilda Medina)

justamente pela afeição que tem ao texto, às narrativas. Assim como se mostra

extremamente preocupado com o conteúdo informativo – como podemos

concluir em suas minuciosas apurações –, o jornalista se volta com dedicação

para a forma – seja lançando mão indiscriminadamente de recursos literários,

seja brincando com a própria tradição da linguagem oral. Tudo no intuito de

tornar mais precisas, consistentes e aprazíveis suas reportagens.

É deste zelo, desta cautela que o jornalista demonstra tanto para

com seu texto, como para com o seu leitor, que quisemos tratar não apenas

neste capítulo, mas ao longo de todo este trabalho. Isto porque acreditamos em

um jornalismo feito com mais atenção, mais humanizado, mais participativo e,

por isso, mais mobilizador. Se para isso for preciso fazer uso de recursos

literários, polifônicos, e o que mais puder ser agregado, que os tragam todos.

Tudo em favor da permanência e da fruição de nossas narrativas.

86

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se, por um lado, tratar cientificamente de um assunto pouco

estudado nos proporciona o prazer do ineditismo, por outro tende a nos deixar

assaz inseguros com o seu resultado final. Apesar da escassa bibliografia, dos

olhares tortos sempre que mencionava a palavra Gonzo, e das dificuldades

inerentes a este tipo de trabalho – que demanda não apenas tempo e esforço,

mas dedicação e afeto – posso afirmar, terminada esta pesquisa, que o mais

interessante dela tenha sido a possibilidade de abordar um assunto que veio à

baila porque subverte, rompe; porque optou por seguir na contramão do que

ditam as normas pré-estabelecidas. Ao darmo-nos conta de que esta

subversão acontece de forma consciente e satisfatória, como é o caso do

Gonzo, a satisfação torna-se maior ainda.

Mesmo chegando a esta conclusão, ressaltamos que em nenhum

momento nossa intenção aqui foi a de afirmar, de maneira definitiva, que

rupturas são necessárias ao jornalismo, ou então que as narrativas ao estilo

Gonzo são melhores do que as narrativas tradicionais e vigentes, atualmente,

em grande parte da imprensa.

Mais do que isso, buscamos discutir e trazer à tona discussões

acerca da temática, no intuito, sobretudo de conhecermos novas e

diferenciadas possibilidades narrativas. De mostrar, enfim, o que existe à

nossa disposição no sentido de aprimorarmos nossas narrativas cotidianas.

Novos Jornalistas e Hunter Thompson com o Gonzo de um lado;

Xico Sá de outro. Apesar das distâncias temporais e espaciais entre eles, o

que podemos observar de concreto em todas essas obras é que a ruptura não

se deu apenas com o tradicionalismo, com os manuais de redação

burocráticos, com a inserção de recursos literários . Ela aconteceu e acontece

porque alguns poucos que acreditam neste aprimoramento persistem, ousam ir

além. E o melhor é que na maioria das vezes esse esforço repercute

positivamente. Mesmo que leve algum tempo para que as pessoas se dêem

conta.

Este trabalho, é válido afirmar, foi feito essencialmente em caráter

experimental, quase ensaístico. E não por displicência. Mas porque, como

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mencionamos acima, a falta de um número maior de fontes que servissem de

alicerce acabou fazendo com que nós tomássemos iniciativas independentes,

selecionando autonomamente aqueles aspectos que, ao longo de sua

confecção, fomos avaliando como os mais imprescindíveis e coerentes a

serem analisados.

Fica a sensação de que muitos outros pontos poderiam ter sido ditos

ou mesmo aperfeiçoados no decorrer da pesquisa. Mas, justamente por

acreditarmos nisso e no fato do assunto não pode morrer, de maneira alguma,

neste breve apanhado, nos restam planos para seguir adiante com esses

debates. O humor como recurso comunicativo é um aspecto desta pesquisa

que certamente ficará para trabalhos futuros, assim como um aprimoramento

do conceito de polifonia – essencial para a riqueza narrativa.

Posto isso, resta-nos falar do prazer que foi trabalhar com um tema

que, além de rico e repleto de panos para manga, faz com que a nossa

confiança se renove. Acreditar em um jornalismo melhor, mais cuidadoso e,

certamente, mais aprazível, foi um das grandes lições que tirei deste trabalho.

88

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de Bacharel em Comunicação Social.

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ANEXOS

ÍNDICE: Anexo I Roberto marinho Anexo II Jornal Nacional Anexo III Programas de Governo Anexo IV Texto de Abertura da Entrevista com o rapper Sabotage Anexo V O Brasil de Chico Anexo VI O samba-rave, meu irmão Anexo VII Os limites do Paraíso Anexo VIII Entrevista com Xico Sá

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ANEXO 1 ROBERTO MARINHO (TRIP #142) por Xico Sá Não adianta nem tentar... ou esquecer. O Rei está firme e cada vez mais à vontade no trono. Livre do transtorno obsessivo que o prendia em um assustador mundo azul, Roberto Carlos volta aos palcos bem mais feliz. Para entender a quantas anda o coração de nossa majestade e os de seus súditos, Trip embarca no Costa Victoria, o cruzeiro real que levou ao mar o show de Robertão – lágrimas, Viagra e muito amor. Foram tantas emoções...

Muito prazer, bem-vindos a bordo do Costa Victoria, eu sou o Hemingway da Praia Grande, farofeiro assumido, faroleiro bissexto e escriba fulêro, e começa aqui o meu novo romance: O VELHO, O VIAGRA E O MAR.

São muitas ereções... O importante é que emoções eu vivi. Estamos à beira da piscina de um dos maiores transatlânticos do

mundo, como se fosse grande prédio, um Copan, aquela obra de Niemeyer no centro de São Paulo, como se fosse um Copan menos elegante, isso mesmo, já é, que deslizasse sobre o Atlântico. 11º andar, ou Ponte 11/Rigoletto, como é chamado o basfond das piscinas, um dos jardins suspensos mais disputados desse gigante sobre as águas.

Estamos à altura de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, sol por testemunha que é bom, porra nenhuma, nuvens carregadas viram gorros, bonés, panamás de nossas existências ressacadas e tacanhas, mas tentamos nos animar de qualquer jeito, ora, afinal de contas não é todo dia que estamos num cruzeiro com Ele, o inimitável, o homem de qualidades, o Rei em ritmo de aventura-slow-motion em alto mar...

Com vocês Roberto Carlos Braga, menino de Cachoeiro do Itapemirim, 65 primaveras depois, em carne e osso, vixi, meu Deus, é Ele de verdade.

O FILHO DA LAURA Eu vivo esse momento lindo, mesmo ar leso de bobo da corte, que

importa! Jesus Cristo, eu estou aqui! O importante é que emoções... Me belisca, dona Lady Laura. Sim, a mãe do Rei, que virou nome

dos seus iates, o I, o II e o III, está entre nós, aqui do lado. Ligo para a minha, dona Maria do Socorro, em Juazeiro: “Meu filho...” Ela chora. Choramos o Atlântico que se formou entre nós nesse tempo todo, o desatino da rapaziada e de todos os migrantes de todos os mapas, como conta o velho e bom Werneck que sabe das coisas. Essas recordações me matam, essas recordações me matam...

“Amor só de mãe, Roberto?”, pergunto, aproveitando uma brecha entre repórteres de TV e a marcação mais realista do que o Rei da produção do “Emoções para Sempre em Alto Mar”, projeto que trouxe o ídolo a este cruzeiro.

“Como?”, o Rei dá uma de desentendido. “Amor... só de mãe, Roberto?” O Rei ri à beça. “Bicho...”

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Ri o rei como se eu fosse mesmo o mais competente daquela corte de tantos bobos.

“Bicho... Amor de mãe, das fãs, de todas as mulheres”. O Rei ri de novo, aquela risada de quem não tem mais a cabeça

cheia de problemas, sabe? Toc, toc, toc, toca três vezes na imbuia da existência, na cerejeira das nossas loucuras mais íntimas, na fórmica dos nossos labirintos mais fóbicos.

“Como me faz bem essa terapia”, sopraria mais tarde RC, elogio merecido do divã, que está curando o seu transtorno obsessivo compulsivo, toc, toc no compensado das nossas almas descompensadas, salve o divã, viva o divã, aliás, o divã é título de uma das suas canções mais obscuras, biográfica no último, mesmo no tempo em que Ele nem sabia que precisava.

É Roberto, o paciente c´est moi, o louco somos nós todos, uma canja da letra, pois, canta para nós:

“Eu venho aqui me deito e falo Pra você que só escuta Não entende a minha luta Afinal, de que me queixo São problemas superados Mas o meu passado vive Em tudo que eu faço agora Ele está no meu presente Mas eu apenas desabafo Confusões da minha mente.”

O que queremos de nós mesmos, Roberto? Como vai você, eu

preciso saber da sua vida! O que a vida quer de nós além de consumir o nosso corpinho tábua-de-engomar enrugada de Iggy Pop? Só o vento do alto mar e o divã sabem a resposta.

O que querem as mulheres, mestre? Nunca saberemos, Roberto, mas tentaremos antecipar os seus desejos. Homem que é homem, o Rei bem sabe, vira o gênio da lâmpada diante de uma mulher que pede o impossível, como bem disse o escritor Joca Reiners Terron, ou teria sido Otto Lara Resende?

Encaro o Rei, aperto aquela mão direita para pegar por osmose o que nada sei. “Bicho...” O homem que sabia demais do amor e suas lições mais óbvias. O professor de educação sentimental das massas e os seus amassos no portão de todos os domingos, domingos de missa, domingos de sarros e os primeiros beijos na boca. De língua, nossa língua portuguesa, Pasquale, e que se danem nossas coordenadas assindéticas, língua é pra beijar, nada mais, nos períodos mais longos e férteis, o amor acaba; o mais são grunhidos, o som, a fúria, nossas melhores onomatopéias das antologias mais bêbadas...

O importante é que ereções eu vivi. O Rei está com a mãe, família, auxiliares, mas estaria também com

alguma Lolita al mare? Os boatos dão conta de uma fase Nabokov do astro. “Falam coisas demais sobre a minha vida”, diz, como se pedisse

desculpa aos 200 fãs histéricos, quase 80 balzacas, sorteadas entre os já ditos

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2.300 passageiros do Costa Victoria, transatlântico de bandeira italiana, parole, parole.

HUMILDES SÚDITAS Diante do Rei, não há menopausa. Todas voltam à velha e conhecida

TPM. “Perdi pai, todos os homens que eu tinha, só me resta o Roberto”,

conta Maria da Penha, cinqüentenária – não adianta, não pergunto idade exata de mulheres – que tenta furar o cerco dos seguranças e assessores para entregar uma caixa enorme de presentes. “Artesanato alagoano”, relata o conteúdo e chora ainda mais, desmancha-se, meu Deus, naifs-corações. Feitos à mão.

Maria é empresária, bem de vida, dona de oficinas mecânicas e retíficas em Maceió, é o próprio dilúvio. Conforto a viúva, num abraço comovido. Sinto as suas lágrimas a deslizarem sobre as lentes verdes dos meus óculos grandes que nem a terra há de comer enquanto não decifrarem meu epitáfio.

“Te joga, rompe o cerco, te entrega, segura na mão de Deus e vai, com presente e tudo”, dou uma de cupido. Ela ameaça, mas, a uns três metros do obscuro objeto de desejo, freia; o gás azul e paralisante da emoção. “Me abraça”, pede. Agarro de novo, mais forte ainda. O importante é que ereções eu vivi. A vida é brega como uma carta de amor.

Pego o presente e levo quase aos pés do XXXXXXXXX de Cachoeiro de Itapemirim. Os seguranças terminaram o percurso. O Rei, qual sua capa pendurada, assistia a tudo e num dizia era nada.

E sexo, Roberto, pergunta um amigo. “Sexo é importante!!!”, diz, solene, seco numa frase como um noir

americano. E uma nova e desabrida risada real, como quem acabou de praticar o esporte lá na sua cabine, vizinha a do comandante.

Não tenho dúvida, cutuco outra gostosa afilhada de Balzac que se encontra nas proximidades, o Rei acabou de, digamos, com o perdão às moças de família, fuder. É incontestável o sorriso de quem acabou de cavalgar por toda noite uma estrada colorida, usar beijos como açoite e dar um trato com a mão mais atrevida... Sinto o cheiro de sexo. O rato do amor roeu as roupas do Rei de Angra.

O VELHO, O VIAGRA E O MAR. Chovia lá fora e eu, Hemingway da Praia Grande ou do Janga (a

mais cubana das areias pernambucanas), qual a capa pendurada do Rei, assistia a tudo e não dizia nada. Repórter que pergunta demais e se mete acaba perdendo o fio da meada. Jovens estudantes e futuros jornalistas, agora toco uma de ouvidos, com orgulho de um tio-coruja, para vocês, mancebos e Lolitas, educai-vos: sejam generosos com a notícia, ouçam, ouçam, ouçam na surdina, alteridade na moita, na maciota, na tocaia. Deixe a vida vos levar, Sócrates leva eu: só sei que nada sei. Roberto é socrático radical: “Só agora eu sei, o que aconteceu/quem sabe menos das coisas/sabe muito mais que eu”, diz a sua sabedoria dos 70, 1972, creio.

Velhinho 1: “Fuder nesse balanço do mar tem uma certa diferença, não tem?”

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Velhinho 3 intervém: “Em matéria de sexo eu to sempre boiando mesmo, que diferença faz?!”

Velhinho 2: “Olha aquela gordinha linda na fila da lingüiça!” Velhinho 1 canta Roberto: “Coisa bonita, coisa gostosa/quem foi que

disse que tem que ser magra/para ser formosa...” Como se come por aqui. Haja buffet. “Sabia que tem quase mil coroas sobrando na área?”, mete a colher

no meio o velhinho 4, que acaba de chegar com um perfume que me deixa chapado. “Li no jornal”.

Velhinho 2 para velhinho 1: “Já pensou a gente sozinho aqui, que estrago!”

Velhinho 1: “Se é pra brochar, passar vergonha, melhor com as patroas mesmo”.

Velhinho 4, com acentuado sotaque santista: “Nem fudendo!”. Papo de baralho ou dominó de pracinha de interior. Com a diferença

de que no transatlântico rola um câmbio negro da pílula azul, ali, encostadinho à cabine de quem parece menos precisar, Ele, o Rei Roberto.

Chovia lá fora... Então as coroas vão às compras. O Costa Victoria vira um shopping

flutuante. Mina de ouro esse cruzeiro. Sai de Santos, vai lá pras bandas de Búzios, meia volta, volver. Dificilmente um doente pelo Rei gasta menos de R$ 3 mil no pacote mínimo de três dias, e lá se vão R$ 6 mil pelo casal de pombinhos, noves fora uma noite no cassino, o Campari a mais na viagem noite adentro. Quem dorme às sete luas com RC, mesmo que seja muito econômico nos gastos extras, não vai deixar de morrer, individualmente, com uns R$ 5 mil, para dizer o mínimo.

Vende-se de tudo. Além do Viagra e do Cialis, do mesmo gênero, no câmbio negro. “A cartela só em dólar”, ameaça o velhinho traficante de desejos ambulantes, guerra dos bons mascates.

E haja piadas de Titanic sem graça. Hahahahahaaaa. E haja piadas incorretas com a tripulação de filipinos, nobres rapazes que são chamados brasileiramente de tsunamis, tsunamizinhos etc. Eles só têm um defeito: como são apressados na hora de recolher os nossos copos nas refeições.

GENÉRICOS Sósia – ”você acha que eu sou lóki?” – é o que não falta no cruzeiro

do real. Enquanto não esbarrava com o Rei de fato e de verdade, me diverti foi com o Roberto Carlos de Penápolis, interior de São Paulo, eita peça, “figura”, como se dizia no meu tempo... tempo de criança.

Se um outro cabeludo aparecer na sua rua, todo cuidado é pouco, trata-se de Carlos Antonio Peres Rodrigues, 60, comerciante aposentado, “uma brasa, mora?!” A diferença entre ele e o Rei de verdade é apenas no fim do mês. O homem-carbono recebe bem menos, noves fora os gastos no cruzeiro.

Dona Maria Arlete, mulher do Rei-cover, mesma idade ou quase – não insistam, não conto anos de mulheres — está morta de feliz. “Me sinto como se fosse casada com Roberto Carlos, além de igualzinho é melhor ainda”, ruboriza. Valeu a pena quebrar o porquinho das economias. O importante é que emoções eu vivi.

Laura Mendonza, garçonete peruana entre os tripulantes filipinos, italianos e brasileiros (quase todos professores de dança, animadores, ou seja,

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bobos da corte) vê atenta um desfile de modas no sexto andar do Costa Victoria: “Gostei...” Faz cara de quem gostou quase nada. Eterna inveja das moças gostosasssssssss.

Fernanda Liz, 19, modelo paulistana que acabou de desfilar, coisa linda que poderia ter dormido na minha cabine imaginária, prossegue, sobre a sensação daquela tarde: “Parece que a gente flutua”, diz do balanço do transatlântico da passarela. E se você desse de cara com o Rei num desses labirintos do navio, ali de madrugada?

Deixo a Lola sem graça. Ela cora. Linda, amoreeee. Beijinho, a gente se vê no show à noite.

O papo de baralho ou dominó de pracinha de interior, incluindo câmbio negro da pílula azul, rolava a uns 10 metros da cabine do Roberto. Tudo certo como dois e dois são cinco.

Chovia lá fora... Fujo e canto para uma balzaca, aquela do presente em lágrimas,

uma das antigas do supracitado Roberto dos 70: “Minha senhora/ Eu estou apaixonado/ Minha senhora/ quero ser seu namorado”.

Uma linda menina free-lancer do Metrópolis, da Cultura, me manda um bilhetinho: o Rei está com um ponto, alguém lhe sopra alguma coisa para se safar na entrevista coletiva. Nem precisava.

Pergunto se, à vera, como diz a biografia do Tarso de Castro, escrita pelo Tom Cardoso, o grande Castro, o gaúcho que fundou o Pasquim carioca, seria mesmo o “outro cabeludo” da música “Detalhes”.

“Bicho...” O Rei ri, o rei que acabou de fuder ou quase. Tem na face o sorriso

do gato de Alice. “O Tarso”, me diz o Rei, “era um jornalista amigo, muito brincalhão,

adorava tirar uma onda, e deve ser por isso que falam dessa história até hoje.” Num texto histórico do Pasquim – ”Minha vida íntima com Roberto Carlos” –, de 1970, Tarso, depois de freqüentar a intimidade monarca, tira maior onda com RC mesmo, dizendo para Nice, primeira-dama da realeza da época, que tinha um caso com o cabeludo.

RC diz ainda: “Repare na letra: Se... Se um outro cabeludo aparecer...”. Condicional, entende? O que só amplia o suspense. Pode até não ter sido o velho e bom Tarso, mas que rolou uma guerra capilar, ah, rolou.

E quem seria o diabo desse cabeludo? Existiu, existe? “Ele não está mais com a pessoa”, diz, passando um recibo do bem

de que a vida nos trai na curva. Como se cantasse os maiores versos de amor da língua portuguesa de todos os tempos, incluindo Camões, e viva também Erasmo: “Vou deixar de pensar em você/para prestar atenção na estrada”.

O Rei está tão serelepe, sem nóias, agora até canta, como no show do navio, “Um negro gato”, música banida por conta do TOC – nada escuro podia. Canta e comenta. Já, já, insinua, vão rolar os versos de “e que tudo mais vá pro inferno”, outro sucesso ainda proibidão pelas forças estranhas e internas. O rei ri à toa. Anuncia que, depois de 25 anos, vai voltar a comer carne vermelha. “Só comi, nesse tempo todo, o que nada ou o que balança com o vento”, fala, espero, de peixes e folhas.

BICHO SOLTO

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O Rei faz um show muito intimista no transatlântico. Canta tão bem e no ouvido das fãs quanto um João Gilberto mais romântico. Até tira a bela Jurema, backing vocal da sua banda, ao prazer da contradança. “Contradança, que coisa antiga, né?”, comenta, solto. Mas que nada, ai está a delicadeza, meu Rei, pisa fundo.

O Rei encoxa Jurema como se dançasse com todas as mulheres do mundo. O Rei está feliz na medida do possível, o Rei dirige o seu próprio ônibus cantando – assim foi do Rio para embarcar no Cruzeiro, em Santos. O Rei, respeitoso, homenageia Maria Rita com acrósticos e feitios de oração de um devoto.

Chuva de rosas vermelhas e brancas para as lindas balzacas que se estapeavam. No meio do tumulto, nossa brava fotógrafa Rochelle, que me acompanhava nesta aventura, foi vítima de ventosidades venenosas, gases sarins, flatulências românticas, resultado de um cruzeiro de comilança, sopros involuntários que nublaram suas lentes. Socorro!!!

“Até logo, bicho”, o Rei sobe para a sua cabine. “Só me resta agora dizer adeus/e o meu caminho seguir”.

Lembro que perguntei a RC, olho no olho, sobre os amigos, essas dádivas. Um milhão, como na cantiga? “Agora são mais, um milhão era naquele tempo”, disse. Claro que a vida de ídolo-mor impõe um certo isolamento, reconheceu. “Mas conto contigo”, soprou. Saí assobiando um clássico: “O show já terminou/vamos voltar à realidade/não precisamos mais/usar aquela maquiagem/que escondeu de nós/uma verdade que insistimos em não ver”.

Meninos eu vi. Armação de Búzios, verão de 2.006

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ANEXO 2 JORNAL NACIONAL (TRIP #135) por Xico Sá com ilustrações de Lourenço Mutarelli Cobertura política não precisa ser maçante, como provou Mr. Hunter Thompson em suas imersões pela Casa Branca. Em uma homenagem ao finado mestre do jornalismo gonzo, trip despachou uma dupla insólita para Brasília no dia mais quente da política brasileira dos últimos anos – o dia da queda de Zé Dirceu. Apesar da linguagem ousada tanto em texto como nas ilustrações exclusivas feitas in loco – milhas distantes do formatão desgastado das revistas semanais e telejornais engravatados -, tudo aqui é verdade, a exemplo do mais fino new journalism norte-americano. Com vocês, direto da capital branca, o poder e suas tentações

“Nenhum indício melhor se pode ter a respeito de um homem do que saber o caráter dos seus companheiros de poder” (“O Príncipe”, de Maquiavel).

Se você estiver meio loki, seja lá por qual motivo ou química, o táxi

vai correr na via expressa, saindo do aeroporto, e a sensação é a de que acabou de pisar nos arrabaldes de Los Angeles. Com cheiro de deserto e tudo nas narinas, umidade relativa do ar lá embaixo, você desliza no asfalto macio até cair numa paisagem que lhe transporta, como num pesadelo dirigido por David Lynch, para o cenário do “JN” narrado por William Bonner & Fátima Bernardes.

Benvindo a Brasília, benvindo à Brasília que não passa no noticiário. A bizarrice está apenas começando. “Boa noite”. À nossa direita, a torre. Que já foi “suicidódromo” oficial da planície. Por falta de cumeeiras e janelas de prédios residenciais mais altos, muita gente atirava-se lá dali de cima. Ceu baixo, quase como chapéu de nuvens rasantes sobre a cabeça. “Toda a plataforma, você não vê a torreeee”, é disso que fala a música de Renato Russo, hino místico do filho da cidade.

Atravessamos a Esplanada do Ministério. Esse cheiro que você está sentindo vem do ralo. Mais adiante, o Congresso. Esse cheiro vem do ralo. Ali a Praça dos Três Poderes. O Palácio do Planalto. O ralo. Quarto andar deste mesmo palacete. O todo-poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, está nervoso. Mas ainda no cargo. Em Brasília, 19 horas. 15 de julho de 2005. A semana histórica e decisiva para o governo do “Sapo Barbudo” _como Lula era visto por Leonel Brizola_ que virou Príncipe desse reinado. A semana mais importante dos últimos anos. E “Trip” estava lá para contar tudo.

E haja namoro de homem. Política é namoro de homem, dizia o cronista mineiro Paulo Mendes Campos. A CPI dos Correios estoura no Congresso. O governo leva a melhor e indica o presidente e o relator das investigações. Algo como se num jogo de futebol um dos times indicasse o juiz. O cheiro do ralo. Só se fala em uma coisa: o “mensalão”, a mesada de R$ 30 mil repassada, segundo o deputado Roberto Jefferson (PTB), a parlamentares do PP e PL em troca da fidelidade ao governo.

No setor hoteleiro sul, Sheyla, nome de guerra da linda garota de programa nas imediações do hotel Saint Paul, segue o mesmo lema: “Pra ser

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fiel é mais caro. Só de R$ 10 mil por mês para cima”, politiza. “Ah se eu pego esse Delúbio...”, suspira.

Esse senhor de nome estranho, tesoureiro do PT, seria o responsável pelo repassas das mesadas. “Fora Delúbio”, pede a própria bancada de senadores petistas. O cheiro do ralo. José Dirceu, que seria mentor do mensalão, segundo Jeffersos, deixa o quarto andar do Planalto e vai dormir ainda ministro. No terceiro, Lula decide: o amigo Zé está fora.

No conforto do seu lar, um homem tem motivo de sobra para rir de tudo isso: o ministro da Previdência Romero Jucá. Alvo de denúncias de irregularidades, ele vê-se aliviado. Em Brasília em assim, nada como um escândalo atrás do outro para tirar o foco de tantos suspeitos e culpados. “Passou hoje aqui com um sorriso de canto a canto”, diz um lavador de carro do prédio do Ministério comandado por Jucá. “Meu nome? Tá doido, sô!”. Sabe-se apenas que é mineiro.

Levo Sheyla para o hotel. Preciso apurar mais sobre o mensalão. Informações de alcova. Mas cadê a camisinha? Cadê a mala? Este repórter lesado havia esquecido a bagagem no Aeroporto. Pasme, quase quatro horas depois, retorno e a dita cuja está lá, intacta com suas rodinhas, em pleno hall. Quem disse que tem ladrão em Brasília? Isso em plena semana que se discute pagamento de propina nos Correios e no Congresso... Cidade honestíssima.

“Não levaram a sua mala porque estavam todos entretidos com o mensalão”, explica o taxista Antonio Santos, 45, piauiense há 15 anos em Brasília. “Aqui não se rouba mixaria”.

Deixo Sheyla na boate Gol, setor hoteleiro Sul _tudo é por setor em Brasília, inclusive a prostituição. Boate cara. Um programa de uma garota custa, em média, R$ 300. Elas fazem por semana mais do que os R$ 3 mil pagos de propina no caso dos Correios. “Mas damos duro pra isso”, argumenta Tânia, nome de guerra de uma linda morena goiana. “Conterrânea de Delúbio”, diz. Só se fala do homem-tempestade.

Quinta-feira, 16 “Você está em que jornal mesmo, conterrâneo?”, me pergunta

Severino Cavalcante (PP-PE), presidente do Congresso. Aqui, agora, a serviço da “Trip”. O deputado me pega pelo braço _entro inevitavelmente no namoro de homem_ e saímos conversando da saída do plenário até o seu gabinete.

TRIP – De onde vem esse cheiro? Severino- Que cheiro? TRIP – O senhor não está sentindo? Severino [depois de aspirar fundo três vezes] – Tá cheirando bem

o salão, como sempre. TRIP – Pois eu estou sentindo um mau cheiro danado... Severino – Você tá é com presepada, né, meu filho? TRIP – É o cheiro do ralo, deputado. Severino – Você quer conversar sério ou não, cidadão? TRIP – O sr. acha que algum colega seu, aqui da casa, vai ser

cassado? Severino – Se ficar comprovado o que estão falando _mensalão_

vamos ter que tomar alguma providência nesse sentido. Mas depois das investigações. E se tiver prova.

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TRIP – Com esse corporativismo todo do Congresso, o sr. que pode haver mesmo cassação?

Severino – No que depender de mim, a coisa é séria. E se for pra mandar embora deputado a gente manda mesmo. Quando eu era da Corregedoria da casa fui favorável a cassar um bocado, num tá lembrado? [Refere-se ao escândalo da compra de votos para a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, em......]

TRIP – O sr. se acha folclórico como pintam na imprensa ou não vê graça nisso?

Severino – Folclore é bumba-meu-boi, papagu, essas coisas... Eu sou respeitado, presidente do Congresso do meu país.

TRIP – Deputado, por obséquio, sinta só o cheiro agora! Severino – Lá vem você de novo com isso... TRIP – Cheiro de mensalão, deputado. Severino [rindo] – E quem disse que dinheiro fede? TRIP – Nem dinheiro sujo, deputado? Severino – Conterrâneo, me dê licença, outra hora passe aqui que a

gente continua a conversa. Plenário da Câmara dos Deputados. Pinga-pinga de discursos contra

e a favor do governo. “Cassei sete na Corregedoria, no caso da compra de votos”, Severino agora fala na tribuna. José Carlos Aleluia (PFL-BA) reclama de um dinheiro aprovado pelo governo destinado à Escola de Samba da Mangueira. Fleury (PTB), governador paulista marcado pela chacina dos 111 presos do Carandiru, critica o uso exagerado de algemas em casos de pessoas “de bem” detidas pela Polícia Federal. Refere-se aos empresários e executivos da Schincariol que haviam sido recolhidos pela PF na chamada “Operação Cevada”.

Quarto andar do Palácio do Planalto. Tarde de quinta, 16. A quinta é conhecida no poder como o dia oficial dos boatos. Numa semana quente, então... Zé já acertou a sua saída com o velho companheiro Lula. O comitê de imprensa, onde ficam os setoristas – tudo em Brasília é por setor mesmo – está agitado. A queda anunciada, mas ninguém dá a informação oficialmente. Até que aparece o próprio Zé, no comecinho da noite, para dizer a missa de corpo presente com todos os seus rrrrr de homem do interiorrrrrr.

O cheiro do ralo, mas agora num cenário bem mais leve. “Já vai tarde”, comemorou Roberto Jefferson, que foi avisado da queda por telefone, em conversa com o colega de partido Nilton Capixaba (Rondônia). Depois passou a acompanhar tudo na tevê.

“Lula não quer que a lama se alastre para o gabinete dele”, disse “Jeff”, como estava sendo chamado pelos amigos, à TRIP, naquela mesma noite. Conheço bem Jefferson desde os tempos do Collorgate. Era da chamada “tropa de choque” do presidente cassado, inimigo mortal do mesmo PT com quem fechou aliança durante o atual governo Lula.

Que cheiro é esse, deputado?, repeti a pergunta para o homem que se divertia jogando merda parlamentar no ventilador naquela semana quente.

“Ora, Brasília hoje cheira a mensalão e a Delúbio”, respondeu, sorriso de canto a canto por causa da despedida de Zé Dirceu.

Horas depois, Jefferson recebeu colegas parlamentares do PTB, para uma reunião. Antes de dormir, contou que veria o filme “O homem que

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sabia demais” (The Man Who Knew Too Much, 1956), de Alfred Hitchcock. “Não é piada, é sério mesmo”, alertou.

No meio da tempestade, Jefferson confessou a amigos que temia sofrer algum atentado. “O meu cadáver interessa a muita gente nessa hora”, soprou a um colega de bancada no Congresso.

“Cidade estranha essa, você só vê fachada e carro, a arquitetura engole as pessoas”. Era o ilustrador destas páginas, Lourenço Mutarelli, autor de nada mais nada mesmo do que o livro “O cheiro do ralo”, que chegava ao hotel Eron, onde ficamos hospedados. Primeira visita a Brasília, primeira vez que vestia um terno, primeira gravata. Haja elegância na risca de giz à moda da máfia siciliana.

Uma cerveja antes da noitada para ficar pensando melhor. No restaurante japonês, vários assessores do governo e de deputados petistas. Eles parecem bem aliviados com a saída de Zé Dirceu do quarto andar do Planalto. Ufa!

Flanamos pela Asa Sul do avião que é Brasília. A noite da queda está animada. O Depósito de Bebidas Piauí, um bar improvisado no meio de grades e mais grades de cerveja, é um raro lugar na cidade onde é permitido fumar. Por isso está lotado de gente de todos os escalões da República. Fumar no Plano Piloto, onde fica o centro do poder federal, é proibido por lei. Não há acordo. Os restaurantes não têm áreas para fumantes. Proibido. E pronto.

Uma da manhã e a noite está apenas começando no Conic, o setor de diversões sul, onde igrejas evangélicas e puteiros dividem o mesmo espaço desenhado por Oscar Niemeyer. Cid – ”só Cid mesmo,sem sobrenome por favor – é o nosso guia na putaria. Ele mora atrás da tela do Ritz, o cinema pornô, onde ajuda na administração. Veio do Rio Grande do Norte há cinco anos, depois de esmolar na cidade, dormindo pelas calçadas, encontrou abrigo. “Cadê que os evangélicos me deram um lugar, um emprego, o que encontrei de bom foi aqui entre as putas”, discursa.

O Snooker Sunset Ltda, mas conhecido como “Sinucão”, é o point da madruga numa capital que fecha as portas muito cedo _depois de uma da manhã é difícil encontrar bares e restaurantes abertos em Brasília.

Depois do Beirute, animado boteco que reúne as tribos mais loucas, só resta este imenso salão com seis mesas de sinucas e uma radiola-de-ficha (jukebox) com 310 CDs para embalar a noitada. 310 CDs mas parece que só toca Renato Russo. Uma atrás da outra. “Toda a plataforma, você não vê a torre...” Hino oficial de Brasília.

O “Sinucão” ferve. Dois angolanos tiram uma onda de personal-snooker para as moças. Mutarelli escolhe um ângulo e começa a desenhar as putas, as meninas que fazem sexo explícito no cine pornô. Ninguém ali fala em mensalão ou qualquer outra palavrão oficial. E repare que aquela sacanagem fica colada às sacanagens do poder. Quase na Esplanada dos Ministérios, pertíssimo do Congresso.

“Isso aqui é casa de família em comparação com o que acontece lá nos gabinetes dos ministros e dos deputados”, diz o velho Cid. No balcão, o pedreiro Luciano Santos, de 21 anos, me mostra a foto da noiva. Está enchendo a cara e quase chorando. Pé-na-bunda bem dado. “Dor de corno”, ele mesmo ri dele mesmo. “Essa porra num passa com remédio nenhum, só com cachaça”. Mais uma, garçom.

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Um dos angolanos vai fiscalizar o caderno de desenhos de Mutarelli. Manda apagar um personagem que achava que fosse ele. Nem era, mas encana. Procurado pela polícia, não pode dar as caras por ai. Olha folha por folha do caderno.

Só um braço do negão era mais forte que Mutarelli inteiro. Nosso ilustrador pôs um cabelo diferente no personagem que o angolano achava que era ele. Aí tudo bem, belê. O perigo era o cara querer rasgar o caderno, o que acabou não ocorrendo, para felicidade geral dos leitores desta revista.

Os angolanos, na real, eram michês. “Eu fodo a sua mulher e você fica olhando, vamos fazer uma festinha”, propôs um deles a mim, que nem mulher tinha ali.

Sexta-feira, 17, Palácio do Planalto, day after A crise viaja. Zé Dirceu, já na pele de um simples deputado, vai para São Paulo,

onde se notabilizou por montar o que era chamado na Assembléia Legislativa de “máquina de denúncias”. Nunca um gabinete parlamentar denunciou tantos casos de corrupção, principalmente contra o governo Quércia (1987-91), como o do petista que agora se vê na condição de caça.

O ar de Brasília está menos punk, embora a gente ainda sinta o cheiro do ralo.

O “aerolula” decola da Base Aérea rumo ao sul do país. Não era mesmo, porém, uma semana para o “Sapo Barbudo” que virou Príncipe. O mau tempo chacoalhou o avião presidencial. Só faltava mesmo essa pane.

Num dia em que encontraria uma multidão de pelo menos 5.000 pessoas ligadas à agricultura familiar em Santa Catarina. Uma multidão que o aplaudiria, por causa dos recursos públicos que irrigam as suas terras. O encontro havia sido estrategicamente planejado para aliviar a barra do governo. Um “factóide”, como se define no dicionário político esse tipo de acontecimento forjado.

Com a pane, e impossibilitado de aterrissar, o “aerolula” ,em vez do caminho da roça, tomou o caminho de volta ao cenário da crise. O cheiro do ralo.

Mutarelli e este farejador que vos narra fomos então passar a tarde com o presidente no Palácio do Planalto. “Café, água?”, nos perguntavam a cada minuto o batalhão de garçons e secretárias. Uns garçons são do café, outros são apenas da água. Tudo em Brasília é por setor, como falamos. Setor do café, setor da água. Em poucos minutos já havíamos tomado uns 300 cafés e uma 300 águas. Também não somos de rejeitar aquilo que é pago pelos nossos bolsos.

No terceiro piso, Lula procura encontrar o substituto do companheiro “Zé”, como trata Dirceu. Enquanto passeávamos ali na frente do seu protegido gabinete, repleto de seguranças e homens tanto do café como da água, o presidente fechava com Dilma Rouseff, ex-ministra das Minas e Energia, ex-guerrilheira, para ocupar a vaga deixada na Casa Civil.

No quarto andar, a sala do ex-ministro que voltava a ser deputado, só tinha a presença da turma do café e da turma da água. O supergabinete do homem conhecido ali, entre os assessores e funcionários, como “Maq” – de Nicolau Maquiavel, o autor do clássico “O Príncipe”, uma espécie de manual do poder_ parecia uma saleta de um barnabé de terceiro escalão.

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No Congresso, mesmo com toda a crise, pouquíssimos deputados e senadores trabalham. Lá, uma semana tem praticamente três dias: terça, quarta e quinta.

Tarde vazia de sexta. No plenário, um deputado, Nelson Marquezelli, paulista do PTB de

Jefferson, discursa para o outro, Jackson Barreto, sergipano do mesmo partido. Excelência pr´aqui, excelência para acolá. Nobre deputado isso, nobre deputado aquilo, blablablablá. Testemunhamos apenas dois ilustríssimos parlamentares na tribuna na sexta da crise mais braba que Brasília já viveu nos últimos anos. Cada um falou por 20 minutos. Brasília já às moscas.

Cadê seu Severino que não vê uma coisas dessas? Seu Severino foi a vários arraias juninos naquele dia. Antes da

viagem para a sua cidade, João Alfredo, em Pernambuco, onde também pulou outras tantas fogueiras.

À noite, também fizemos turismo. Ir a Brasília e não testemunhar uma quadrilha é como ir a Roma e não ver o papa. Fomos ao “arraiá” do restaurante mineiro “Comê na Roça”, num sítio ali perto. Pena que o nosso poderoso ilustrador, por causa do escuro, não pode desenhá-la.

E não é que demos de cara com o “seu” Delúbio?! Não na quadrilha, mas na ante-sala do inferno de Dante, como o

escriba Leandro Fortes, do blog “Brasília eu vi”, que faz uma cobertura do lado B da cidade, define o Ottello. Você não faz idéia que diabo é aquilo! Um sucesso.

Numa cidade cuja diversão é dominada pelo poder ultrajovem, como nas belas noites roqueiras do Gate´s Pub, o Ottello, que nada diz respeito a Shakespeare, é um filme ao vivo de Almodóvar. Sentou logo à nossa mesa a “musa da boca torta”, uma senhora encharcada de álcool até a alma. No Ottello, todo mundo te conhece há muitos anos, embora nunca tenha encontrado. Sabe as vidas passadas?

As coroas atacam para valer. Nunca vi na minha vida cinqüentenárias e sexagenárias jogando tão avançadas, tipo time que joga com cinco atacantes, sem volantes. Pegam no pau sem constrangimento. Lindas. Almodóvar perde. E carnes à mostra, sem vergonha dos padrões do SP Fashion Week e da estética da magreza publicitária. Lindas. Para a refeição ficar completa, é lá que tem um cover do rei Roberto que manda ver para atiçar ainda mais as “Marias Ritas” tão românticas.

Os coroas entornam Viagra com Malibu _sabe aquela bebida caribenha da garrafa branca? Depois rola uma pegação louca na pista da música ao vivo. O bom é que, como todo mundo se conhece há 200 anos, a intimidade é questão de segundos.

Bom, depois do basfond do Ottello, numa cidade conhecida pela falta de esquinas, só nos restava, num sábado de ressaca braba _fiquei quase cem horas sem dormir na semana da crise, pergunte se não é verdade ao velho amigo John Fante!_ o “Festival do Chibil”, programação do dia do Cine Ritz (não confundir com Kill Bill!), ali no mesmo já conhecido Conic. Chibil, ou melhor, chibiu, ou ainda xibiu, na língua e lição de anatomia da terra de Severino, é o equivalente ao órgão sexual feminino, entendeu?

Subimos no avião por volta das 20h30, Aeroporto JK, o boêmio bossa nova que inventou a cidade. Enquanto você folheia esta revista, nós

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estaremos bem longe, gastando nosso “mensalão” com champanhe, mulheres e ostras.

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ANEXO 3 PROGRAMAS DE GOVERNO (TRIP #137) por Xico Sá com ilustrações de Lúcia Costa Quando o nome da cafetina Jeane Mary Córner começou a pipocar nas cpis nós da trip não titubeamos. Despachamos para a capital federal nosso repórter, escritor e perdigueiro predileto. Ele penetrou nos inferninhos, interpelou moças pouco vestidas, bebericou maltes baratos e conversou com a própria demoiselle córner antes de escrever o seguinte relato sobre surubas e deputados

Quando a igreja Renascer apaga as suas frígidas fluorescentes, a boate Apple’s acende – num pisca-pisca que repete o pulso, o coração e as intimidades das suas moças – as suas luzes pecaminosas. Os dois estabelecimentos são tão colados, tijolo a tijolo num meia-nove arquitetônico, que a clientela se confunde, se perde, erra de porta. Como este repórter ainda não procurava Jesus naquela noite... foi fácil penetrar no ambiente “da hora” em Brasília, a “Sin City” mais planejada do planeta.

Naquele mesmo dia, os austeros e fiéis homens de imprensa haviam chovido no molhado, da forma mais moralista possível, sobre o sexo por dinheiro entre lindas garotas e as Vossas Excelências da República. Foi o bastante para que o mercado da sacanagem abrisse o seu pregão em baixa. A noite seca de agosto, aquela mesma noite em que o país voltava a gaguejar a palavra impeachment, tinha cheiro de perfume de puta e whisky cowboy. Lá de cima do seu pedestal, a estátua de Juscelino Kubitscheck, o presidente chegado em uma gazela de aluguel, parecia inquieto com a crise política. Por um rápido delirium tremens, vi quando JK chaplinhou no cimento, tentando despregar-se do concreto, tentando ganhar vida para dar um pulo também ali na Apple’s, tentando...

O perfume das putas e o aroma do malte paraguaio eram mesmo irresistíveis.

Mercado em baixa, era a hora e a vez dos forasteiros e anônimos. Chance única de levar, “a preços módicos”, uma legítima afilhada de Jeany Mary Corner, a cafetina oficial do poder desde a Era Collor, para uma saudável apuração de alcova. Encosto num ilíaco ressaltado – sabe aquele ossinho dos quadris? –, como um pedreiro que realiza o sonho de um Niemeyer mais concretista. O barro de todas as costelas e curvas, vamos nessa, simbora. Brasília parece invadida por mulheres gigantas e curvilíneas saídas dos subterrâneos para denunciar, com suas vulvas falantes, as sacanagens históricas.

Com a palavra, então, Mário Catambri, lá no livro de memórias do próprio inventor da cidade, Oscar Niemeyer: “Nada de coquetel, festa de homem é com mulher. Vamos convocar meia dúzia de conhecidas”. Donde o sr. Catambri vem a ser um médico, lutador de jiu-jitsu, amigo do arquiteto das mesas do clube Marimbás, no Rio, e nas farras além fronteiras.

Arquitetura é destino: Brasília, balzaca de 46 anos, já nasceu sob o signo da suruba sinuosa. Para homenagear os arquitetos estrangeiros convocados para o júri do concurso do Plano Piloto da cidade planejada organizou-se uma dessas festinhas democráticas. Adeus secura. Nada melhor

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para deixar mais sensíveis os homens das pranchetas do que percorrer, com mãos taradas, as curvas perigosas e bundas que deram a forma final desta cidade.

Jeany Gomes da Silva, 46 anos, a Jeany Mary Corner, cujo pseudônimo em inglês embute as esquinas que tanto fazem falta na arte de rodar a bolsinha em Brasília, tem olhos de Niemeyer na escolha a dedo das suas moças. Cada um que encontro, com o selo Corner de qualidade, é um alumbramento. Vanessa, meu Deus, goiana, 19 anos, é de fazer do mais santo dos homens um corrupto. Impossível não facilitar favores da República diante dessa mestiça de olhos de gata fugidia. Só de respirar o ar do mesmo ambiente deixa qualquer um de perna bamba.

Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda contra ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz, compassadamente, a gazela. A mulher-esquina está em São Paulo a essa altura, para escapar do assédio da clientela VIP que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa lista. Antes a cassação do mandato e um linchamento público do que as garras de uma mulher em fúria no lar doce lar de outrora. Pior: na adorável lavanderia de Brasília, dinheiro sujo não se lava em casa... então lá vai a patroa, em entrevista aos homens de imprensa, reivindicar metade dos milhões depositados naquela conta dos paraísos fiscais.

Mademoiselle Jeany Corner sabe disso. Vamos ligar pra ela, sugiro a Vanessa, com quem conversei sobre o que acabei de pôr aqui na página. A danada pede metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no telefonema caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismo-verdade.

Pelo ofício, tudo. Disk Jeany para comer, beber, viver -Alô, dona Jeany?! -Quem fala? -É um conterrâneo seu, do Crato... -Deixe de brincadeira, fala logo! -É sério... Tô aqui em Brasília, a senhora sabe, sozinho, preciso de

uma mãozinha, uma ajuda... -Quem é você? -Sou repórter, mas sou do Crato mesmo! -Agora deu, era o que faltava: jornalista do Crato! -Tô solidário à senhora, nessa luta toda. -Não tem luta nada, só calúnia de quem não tem o que fazer... -Aquele senador, Demóstenes, de Goiás, citou o seu nome da CPI... -Falta do que fazer, não sou nada disso do que estão dizendo. -Cafetina? -Sou produtora de eventos, recruto moças para trabalharem de

recepcionistas em festas, como quem contrata para um feira de gado, de automóveis, feira agrícola...

-Mas e os pecados da carne? -Que palhaçada é essa?! -Assim, quero dizer, elas ficam com os caras, as autoridades, não?

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-Aí é uma questão delas, simplesmente contrato para os eventos, não tenho culpa se a humanidade continua fazendo o que se faz desde Adão e Eva.

-Quanto custa essa brincadeira no paraíso, dona Jeany? -Jeany, que porra de chamar de dona, de senhora! -É a praxe. [Respiração forte e silenciosa do outro lado da linha] -E a lista, Jeany, a senhora tem uma lista que aterroriza os clientes? -Não é da sua conta. -Desculpa, mas a senhora acabaria pelo menos uns 300 casamentos

deste povo de Brasília, não? -Quer saber de uma coisa?, [irada] eu melhoro o casamento de todos

esses felas da puta! -As autoridades, as Vossas Excelências voltam para casa felizes da

vida, né? -Você tá fazendo chacota! -Não... peraí... -Você é de rádio do Crato, não vai falar merda para os meus

parentes, hein! -Não, tô fazendo uma reportagem para a revista Trip. -Trip? -Estou aqui com a Vanessa, que trabalhou com a senhora... A desalmada conterrânea desliga o telefone na minha cara. “Bem feito, quem manda tirar onda com ela”, Vanessa gargalha,

gargalhada mais gostosa. Mensalão noir Na Safra Vermelha da corrupção que abateu o PT, como na podreira

generalizada de uma cidade que existe no livro homônimo de Raymond Chandler, não poderia ser de outro jeito. O sexo continua com a mesma função de sempre numa imensa repartição repleta de homens que deixaram suas digníssimas nas metrópoles distantes e nas províncias. O resto é narrativa hipócrita.

O medo de Vossas Excelências diante da crônica da vida privada, no entanto, muda a história. “Prefiro endinheirado sem poder. Poderoso dá muito trabalho e é muito cheio de ordem, organizado demais... até pra gozar é cheio de lei e nove-horas”, diz Duda, garota de 21 anos, num populismo que derrete toda a sua maquiagem e deixa as sobracelhas ainda mais sinuosas, getulismo amoroso da porra.

Também pudera. O efeito Corner, contradição de um pseudônimo em uma cidade sem esquina, afastou as autoridades, até mesmo aquelas de terceiro escalão, das sacanagens da noite. Por enquanto. “Até as surubas do poder são organizadas de dar dó, agora mais do que nunca”, sussurra a garota, nascida em Brasília mesmo, candanga, várias vezes recrutada pela cafetina oficial para farras tantas. “Ah, chamou, vamos, na hora!”.

Duda é de uma beleza matadora, olhos mestiços e safados, boca à Angelina Jolie, parece toda planejada. Só de calcinha, vê a torre de Brasília da janela do quarto do hotel. Vira-se: “E num vai querer nada não, é, só vai ficar

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perguntando, perguntando, perguntando?”, diz a morena, impaciente, profissa. “Dinheiro fácil”, digo, traindo meu próprio desejo.

“Essa dona Jeany, se você quer saber, é uma grande dama, mulher demais da conta”, elogia a patroa.

É da minha terra, lá do Crato, digo. Só no Crato, repito. Geografia é destino.

“Ela fala desse lugar, isso mesmo”, sussurra, nervosa, dentes batendo uns nos outros, enquanto pergunta se não tenho pó. “Pede então champanhe”, diz Duda, ao sugerir uma garrafa de Veuve Cliquot. Digo que não sou Valério nem Delúbio, que “não tenho bala”.

Duda está mal acostumada. Ela esteve nas grandes surubas do poder, exibe fotos no celular, o poder dedurador das câmeras digitais. Sabe aquela do deputado petista com uma puta no colo e um charuto nos beiços, qual um comunista das antigas? Meninos, eu vi.

Sabe a farra paga pelo Marcos Valério, o Kojak da CPI, para celebrar o aniversário de Silvio Pereira, o Silvinho, ex-assessor do presidente Lula, que, desconfiado, não compareceu, em 05 de novembro de 2003, no hotel Grand Bittar?

Meninos, eu vi. Pelo olho mágico do amor. Uma puta com um celular que fotografa é mais perigoso para uma autoridade do que o sigilo bancário quebrado. “Agora virou nossa garantia”, diz a mesma Duda, enquanto ajeita a camisinha no repórter com a boca, com maestria. “Você não viu foi nada, mas precisa gastar mais um troco”, diz a garota, que trabalha com o seu taxímetro ligado. “Aceita um cheque?”, pergunto.

É alto o volume de calotes na praça por lá. Como no caso do Mensalão, na sacanagem propriamente dita também se promete muito e, entregar a mercadoria que é bom, nécaras. Não honrar os compromissos custa muito mais caro. Roberto Jefferson, por exemplo, vendeu o apoio do seu PTB à campanha de Luiz Inácio Lula da Silva. Cobrou, cobrou, bateu portas... e não recebeu toda a fatura, calculada em R$ 16 milhões no câmbio livre de Brasília.

Ouve-se todo tipo de sacanagem praticado contra as putas de verdade. “Um deputado do PMDB da Bahia costuma chamar as meninas para transar”, conta no seu suspense à Hitchcock da putaria a baiana Andréia, 25, garota da boate Apple´s, “...aí fica negociando enquanto bate uma punheta... então goza e quer diminuir o preço, pois não quer mais fuder. Vê se pode uma coisa dessas!”.

A mesma Andréia, uma das melhores do ramo em Brasília, conta: “Bom mesmo era no tempo das privatizações. A cada leilão a gente mudava de casa, de tanta grana, era tudo pago em dólar pelos empresários e pelo povo do PSDB. Esses petistas, ô raça, são miseráveis, pechincham no sexo, quero que se danem agora neste escândalo, não sabem nem roubar direito”.

Mais filosofia da alcova, segundo a mesma linda moça: “Um senador do Maranhão, vixe, velho lobo, viciadíssimo numa safadeza paga...”.

“Aquele senador do Pará, não, é honrado, engravidou uma amiga minha e sustenta, tá na mão dela.”

Agora a manchete: “Fica todo mundo falando dos deputados e senadores que pegam meninas e esquecem de um membro da CPI dos Correios que pega um cara chamado Adriano, de um site erótico aqui de Brasília”.

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Quem será tal membro? Silêncio da moça e do auditório. Ela só conta que o tal membro é passivo.

O poder é azul Que Viagra que nada. Que Cialis que nada. Que catuaba que nada.

O poder ainda é o maior afrodisíaco, como disse certa feita o doutor Ulysses, o velhinho peemedebista, tempos da Nova República, que perdeu-se entre as sereias dos mares depois de acidente de helicóptero no litoral do Rio de Janeiro.

Que o digam as meninas que cercam as autoridades no hall e corredores do Hotel Blue Tree, um dos melhores da capital. O assédio é tanto que o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, teria mudado de endereço de hospedagem por conta desse “approach”.

Mas de uma coisa a Liga das Senhoras de Santana, ponta-de-lança do Golpe de 1964, não pode ter queixumes. Algumas surubas em Brasília são tão organizadas que poderiam, sem problemas, contar até com transmissão ao vivo pela TV Senado, o canal que passa as sacanagens das CPIs dos Correios e do Mensalão.

“Pela ordem, presidente!”, diria o organizador do baixo clero. “Vossa Excelência me permite um aparte”, diria um parlamentar a fim de locupletar-se de uma garota da cafetina Corner. “Epa!, no caixa dois a despesa é maior, Excelência”, alertaria a mensalina $alomé, ciente da conta dos seus caprichos de retaguarda.

De tão burocrática [com a devida exceção do subsolo da putaria do Conic, o setor de diversões underground colado na Esplanada dos Ministérios], Brasília é o único lugar do mundo em que puta é treinada para participar de suruba. Nem mesmo em Sodoma & Gomorra havia tanto zelo por tal arte. Na secura da capital federal, não rola a suruba-jazz, o improviso. Tudo aqui funciona na base do acerto, do combinado, como comprovou Ricardo Penna Machado, sócio de Marcos Valério na empresa Multi Action, que chegou a dar aulas de etiqueta para garotas que participaram de uma bacanal no hotel Grand Bittar, em 2003.

“Ele fez tanta pergunta, meu Deus, queria que a gente fosse intelectual”, conta Carol, 22, estudante de Direito em Brasília. “Vocês vão lidar com grandes autoridades da República, não podem ser vulgares”, alertou Machado, que reconheceu a “aula” em depoimento à Polícia Federal obtido por este repórter. “No dia 08 de setembro de 2003 recebi Jeany (a cafetina) e oito acompanhantes no restaurante do hotel Grand Bittar”, confessou o tal.

“Tanta frescura e na hora agá peguei um cara tão grosseiro que queria meter sem camisinha, um filho da puta”, conta, sem revelar nomes, mais uma pupila de Jeany Corner, aqui doravante denominada apenas senhorita K., por razões de extremo sigilo.

O acerto, conforme o depoente disse à PF, era de que cada menina receberia R$ 500 pela farra. “Me roubaram”, queixa-se K., ao ler comigo as seis páginas do depoimento do sócio do trem-pagador-mineiro chamado Valério. “Só recebi 300”.

O efeito Odair José Mas o mensalão do sexo não é só traição e falta de caráter moral no

cumprimento dos acordos. Tem gente que se apaixona de verdade. Caso do

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companheiro Rogério Buratti, cliente cinco estrelas petistas da madame Jeany. Ao ponto de enlouquecer de amor, como numa peça de Sam Sheppard, por uma das suas $alomés. A ponto de afinar a voz e cantar, à Odair José, a sua devoção à moça, no caso uma mineira de fechar coméeerrrrrrcio, como diria o próprio Buratti, homem de Ribeirão Preto:

“Eu vou tirar você desse lugar Eu vou levar você pra ficar comigo E não interessa o que os outros vão falar...”. E lá se foi um casamento de uma década e meia. Dane-se, é o amor.

Mas o enlace com a mineira Carla Cristina demorou apenas até que a prisão de Buratti os separasse. Está na cadeia, acusado de destruir provas de um suposto crime -a intermediação de verbas, com propina, de prefeituras do PT.

Na “safra vermelha” é assim, as algemas impedem até mesmo o longo adeus.

Preso e sob a garantia de redução de pena do Ministério Público e da Polícia Civil do governador Alckmin, este com interesse direto na sucessão de Lula, Buratti “entregou” o seu ex-chefe na Prefeitura de Ribeirão Preto, o ministro da Fazenda Antonio Palocci.

Acostumado a subir apenas a cotação das putas de Brasília, o depoimento de Buratti derrubou a Bolsa de Valores. Palocci se defendeu: a bolsa ou a vida. Ela subiu. E o mercado de Jeany Corner é que voltou à bancarrota.

A origem ribeirão-pretana de Buratti, praça de excelentes casas de garotas, não o deixa mentir: o cara tem bom gosto. Ele até ressuscitou as festas em mansões de Brasília, costumes ainda da Era Collor, quando cada setor objetivo da grande economia – educacional, farmacêutico, empreiteiro, banqueiro etc. – tinha a sua mansão da putaria, lobby do sexo para tentar vencer concorrências públicas sem precisar abaixar os preços.

Tem moça querendo é aumentar as tarifas. Não é, Wanda, mulher de “W” maiúsculo? A garota de programa de 29 anos, vinda lá do sertão de Feira de Santana [BA] e desde os 18 em convívio com os machos do poder, diz que a “vida fácil” está cada vez mais difícil. “Depois do Viagra e essas pílulas novas tudo ficou uma merda.”

“Antes”, conta, “era uma moleza pegar um velhinho desses, coronel do Nordeste do Senado e da Câmara. Fazia lá um dengo, um cafuné, tava ganha a noite. Agora é uma peste. Um trabalho do cão. Eles querem meter a noite toda, eita moléstia”.

PC Farias não teria se interessado por Wanda. O tesoureiro de Fernando Collor gostava era de putas feias. Foi com uma delas sentada em seu colo e um whisky 17 anos na mão que ele me disse uma frase inesquecível, certa vez, em seu flat, no Itaim Bibi, em São Paulo. Tempos depois, preso, ele me perguntaria nos porões imundos de uma prisão de Bangkok, Tailândia, em 1993, tal como um Proust de perfumes baratos e whisky sem gelo: “Lembra aquela farra, dom Xico?”. Repeti, de bate-pronto o mantra que ele me havia ensinado, e que trazia guardado no cocoruto: “A buceta ainda é a melhor forma de convencimento do mundo”.

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ANEXO 4 TEXTO DE ABERTURA DA ENTREVISTA COM O RAPPER SABOTAGE (TRIP #109) por Xico Sá

Um galo velho da vizinhança e um despertadorzinho de camelô, como o prefixo da alvorada de Mano Brown no disco novo dos Racionais, tiraram Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, da cama naquele 24 de janeiro. Tudo sempre igual na favela do Canão, zona sul.

O cara catou a mulher pelo braço, como fazia quase todo santo dia, para levá-la ao trampo. Andava sossegado. Do tipo que chuta tampinhas pelas calçadas. E assobiava baixinho “O Meu Guri”, de Chico Buarque, a sua preferida. “Vivia na paz e cumprimentava todos os manos e todos os velhos, no respeito”, conta Maria Dalva, 28, a “patroa”. Rapper cordial, treta zero — havia pelo menos quatro anos que não se metia em broncas. “E mesmo as confusões antigas não deixaram inimigos no seu rastro.” Quem fala agora não é mulher nem mano. Plantão do 16º DP, 18 de fevereiro, 25 dias depois. “Confusõezinhas de rua, bar, besteira”, diz Miguel Pinheiro, investigador-chefe. Quatro tiros, algumas suspeitas

O cara deixou a mulher no trabalho, uma concessionária no Jardim Saúde. Maria Dalva pega cedo no batente, auxiliar de cozinha. “A patroa do Sabotage.” É assim que é conhecida na firma. O chapa do “Rap é Compromisso” bate-pernas de volta para casa. Logo ali tem um ponto de ônibus. “Firmeza, gente honesta do caralho”, costumava fazer a louvação, baixinho, só para os amigos, quando esperava as vans. “Parece gado, ninguém se revolta.”

O homem na estrada. Quatro tiros secos, possivelmente de uma pistola de 380 milímetros, estouram ouvido, boca e coluna cervical do rapper. 5h50 da manhã no relógio da rua. Pânico em SP. O parceiro de Maria Dalva caiu atravessado sobre a calçada da avenida Professor Abraão de Moraes. Ainda vivo.

No Hospital São Paulo, alguns amigos músicos enxergam, do outro lado do vidro da sala de cirurgia, o corpo do magrelo sangue bom. Só restava rezar. 11h25. Ponto final. Assassinato sem autoria conhecida, como os bê-ós narram a matança nos arrabaldes. A primeira suspeita: um desafeto que havia deixado a cadeia no início deste ano. Os seus amigos da favela do Canão não levam muita fé nessa pista. E só abrem a boca, natural, sob a garantia do anonimato. Volta o investigador-chefe: “É lenda, não existe nenhum desafeto que tenha saído da prisão nos últimos tempos”. A polícia tem nas mãos apenas a máscara preta, daquelas de motociclistas, que o assassino largou ao lado do corpo. Nos depoimentos, tudo na base do ninguém sabe, ninguém viu. A polícia, velha inimiga e alvo do hip hop, não teria nenhuma razão para botar auréola em rapper, mas não enxerga depois de ouvir cerca de 40 pessoas — entre depoimentos oficiais e informais — inimigo com motivação para o assassinato. Suspeita número dois: um grupo de traficantes resolveu afrontar a

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família de Sabotage com a morte do seu parente mais notório. Falam os amigos: “Tudo pode acontecer”... Fala o investigador-chefe: “Não temos nenhum elemento que sustente essa linha de suspeita”.

Bolinha dos zóio

Há quem diga, tanto entre os que investigam o crime como entre os manos, que não existe inimigo na parada. E sim um invejoso. Alguém da área não suportava o sucesso do rapper de O Invasor (filme de Beto Brant) e futuramente de Carandiru (de Hector Babenco, aquele do Pixote). Demasiadamente humano.

No último show de Sabotage, com os bambas do Instituto, grupo de Rica, Tejo, Ganja Man — brothers do rapper até a última hora —, o parceiro de Maria Dalva também estava sossegado, como quase sempre. Tirava onda com um convite que havia recebido: pousar nu para uma destas revistas dedicadas à clientela gay. Espaço Sérgio Porto, projeto Humaitá pra Peixe, Rio, 7 de janeiro. “E aí, setentinha [R$ 70 mil], você acha que devo mostrar a vassoura?”, sapecou para uma amiga confidente do estúdio YBrazil. Os amigos votaram contra.

“Que corte doido, rapaz: numa noite estou lá com o cara no Humaitá, tirando onda no show e no camarim; dias depois, o cara é morto pela guerra, e eu lá tentando entender essa guerra com os manos, tomando maria-mole com os manos na frente do cemitério, como os amigos fazem em enterros no interior do Nordeste para suportar as doideiras da vida”, pronuncia-se o pernambucano Otto, amigo do rapper.

Furioso com a guerra do seu mundo, Sabotage sabia fazer amigos nos mais diferentes segmentos. Mas sempre com o pisca-alerta das diferenças ligado: “Se vacilar, o cara da periferia que faz sucesso, como eu, tem festa de playboy para ir de segunda a domingo. Aí chega na favela, pá, dá de cara com outra realidade... Não pode perder o pé da sua história, senão dança”. Para consolidar as amizades, o recurso era a busca da sinceridade extremada: “Eu sou um cara que olha na bolinha dos zóio”. A seguir, você lê a última grande entrevista inédita do cara, feita no final do ano passado. São trechos de uma conversa de 2 horas, sob a brisa calma do Canão.

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ANEXO 5 O BRASIL DE CHICO (TRIP #86) por Xico Sá e Renato L.* Num tem mambo? Num tem calipso? Pois agora tem o mangue!* Foi assim que Chico Science deu nome ao movimento que tirou o país da lama e instaurou o caos na música brasileira. No mês em que se completam quatro anos da morte do líder do Manguebeat, Trip revela fotos inéditas e histórias desconhecidas de amores, psicodelia, viagens e descobertas musicais do maior artista brasileiro da última década

Era uma vez uma croata chamada Sladjena, vinte e poucos anos, daquelas que vão além da larica, do tipo que tem mesmo fome de viver. Estava de bobeira na margem esquerda do Capibaribe, viagem sem diário de bordo, sob o torpor e a lesa felicidade guerreira dos Tristes Trópicos. Deixou uma penca de rapazes com os quatro pneus arriados de paixão na aurora dos 90. Recife ensaiava seus passos de Seattle do Quarto Mundo, mas os mangueboys, chapados de lirismo, groove e psicodelia, faziam um minuto de silêncio para ouvir a saudação gringa:

- Up to the trip! - bradava a croata, com Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão.

Um dos vidrados na estranja, Francisco de Assis França, futuro Chico Science, pisciano devoto à disciplina amorosa, dono de um parque de diversão na cabeça, parecia seguir, sem muito trabalho, os conselhos de Sladjena. À moda de Salinger (Para Cima com a Viga, Moçada), começou a desentupir as veias da Amsterdã das Américas - como queriam os holandeses chegados ao Recife - com um levante praieiro que marcou a sua vida de malungo: a busca da batida perfeita. Ou melhor, nas palavras de Afrika Bambaata: "Looking for a perfect beat".

Tudo isso acompanhado de um slogan que marcou a sua curta passagem por estas plagas: "Diversão Levada a Sério" - como ele definia suas estripulias e atitude. Este mês faz quatro anos que o homem-caranguejo deu um pitu na vida - o mesmo que "dar um perdido" no dicionário dos paulistas - e deixou este mundo.

O choque de um Fiat Uno com um poste, em um viaduto na divisa entre o Recife e Olinda, por volta das 19h do dia 2 de fevereiro de 1997, arrastou precocemente, aos 31 anos incompletos, o homem-caranguejo. O inquérito policial de 174 páginas da Polícia Civil pernambucana calculou que Science corria a 110 km/h - a velocidade média nesse trecho costuma ser alta, pois a avenida que precede o viaduto é uma reta só. Com traumatismo craniano, afundamento no tórax e fraturas múltiplas na face, a maior invenção dos palcos brasileiros pós-suingue de Jorge Benjor foi levada para o Hospital da Restauração, centro de urgência da capital. Entre vítimas da violência carnavalesca, o seu corpo foi largado nos corredores, enquanto aguardava a vez.

Conforme a notícia do acidente corria as ruas do Recife e as ladeiras de Olinda, os tambores dos maracatus e as pequenas orquestras de frevo iam silenciando. Amigos e admiradores, inconformados, maldiziam Deus e o mundo. Embora tenha havido um esforço policial para insinuar que Chico

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estava sob efeito de drogas no momento do choque – os exames constataram apenas a presença de “psicotrópico derivado de barbitúricos”, substância que pode ser encontrada até em calmantes -, o músico não tinha, segundo amigos que não teriam como esconder esse tipo de situação, sequer bebido uma cerveja antes do almoço, com diz na letra de “A Praieira” (“uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”). Estava de cara, distraído pra morte, como canta o amigo Otto, ex-integrante das primeiras formações da Nação Zumbi.

Dias antes da morte de Science, Carlinhos Brown deu uma entrevista coletiva na qual cutucou os músicos pernambucanos. Disse que CSNZ misturava maracatu com “periféricos”, numa crítica à colagem sonora da banda. A crítica deixou o líder do Manguebeat arretado. Em represália ao ocorrido, os componentes da Nação Zumbi estraçalharam uma coroa de flores enviada pelo músico baiano para o velório do cantor e compositor.

O laudo do Instituto de Criminalística, anexado ao inquérito do caso, apontou falha na estrutura do Fiat Uno, relacionada à quebra e ao rompimento da parte metálica do cinto de segurança – não foi a correria que rompeu. Segundo a papelada à qual TRIP teve acesso, o equipamento “deveria manter o condutor preso ao banco, inclusive nos choques laterais, suportando o peso do corpo quando nas desacelerações bruscas”. Em tempos de recall a torto a e direito, a família de Science entrou com um processo, há dois anos, para tentar responsabilizar criminalmente a Fiat do Brasil. O episódio deve ser julgado ainda neste primeiro semestre. “Não gosto nem de ouvir falar em indenização, pois vida não tem preço – se fosse somente por esse aspecto, eu seria contra o processo -, mas é preciso, até por uma questão exemplar, pedagógica para outras famílias e histórias semelhantes, apurar a responsabilidade criminal”, afirma Goretti França, irmã com quem Chico morava e de quem emprestou o carro.

A viagem começou no sentido subúrbio-cidade. Quando Francisco França esticou a mão para aquele Rio Doce/Conde da Boa Vista, coletivo que vai do bairro olindense onde Science morava à principal avenida do Recife, a Agamenon Magalhães (cujo nome é homenagem a um político picareta), a música estava prestes a ganhar não apenas um novo rótulo, mas uma zoada de responsa, capaz de provocar no estrangeiro impacto só registrado durante o nascimento do jazz limpinho da bossa nova. Em maltraçadas linhas da Spin, logo após o lançamento do disco Da Lama ao Caos (Sony, 1994), a revista apregoava, sem cerimônias que a música de Chico Science & Nação Zumbi era nada mais nada menos que o jungle que a Inglaterra sonhava em fazer, mas não conseguia.

A rainha estava morta havia tempo e faltava aos londrinos o tempero justo do batuque da cozinha pernambucana. A suburbanidade soul que hoje ecoa no estrondo da NZ de Du Peixe, Lúcio Maia, Dengue, Pupilo, Toca, Marcosm, Axé, Gilmar Bola 8 e Gira (que abandonou por uns tempos e agora retomou o projeto Lamento Negro, uma das bandas que deram origem à CSNZ). O que não faltava no mundo do passageiro Chico era ragga jungle, como veremos mais adiante no passa-disco destas linhas que seguem.

De volta à viagem

Quando Francisco França esticou a mão para aquele Rio Doce/Conde de Boa Vista, estava acompanhado do amigo b-boy da Legião Hip

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Hop e dublê de funcionário da Vasp. Jorge Du Peixe (o cara era louco por tanques e aquários que iam dos rumble-fishes às tilápias, daí o batismo), grande alma também dos subúrbios olindenses.

- Rapaz, tô com uma idéia do caralho! – exclamou Science para um contemplativo Du Peixe, que gastava a vista na paisagem que contemplou pelo menos durante 2 mil viagens naquela mesma linha.

Silêncio no coletivo. - Rapaz, num tem mambo? Nem tem calipso? – mandou Science. - Tem... – disse mole o então funcionário do check-in da Vasp no

Aeroporto de Guararapes. - Pois agora tem o Mangue! Nascia ali, naquele Rio Doce/Conde da Boa Vista que arrastava

trabalhadores cansados e belas morenas caldo-de-feijão, a busca do beat perfeito. Na sua curta temporada por essas bandas, encerrada a caminho de Olinda no domingo de carnaval de 2 de fevereiro (dia de Iemanjá) de 1997. Chico viveu o bom desassossego de não deixar o som à míngua. Tudo tinha que ser revigorado. O beat perfeito era uma tentativa constante.

O “pijama assassino”

“O conformismo mata a musicracia – música de todos e para todos. Temos que correr atrás de novas batidas, novo jeito de fazer coisas velhas, sem a pretensão de fazer a nova onda, mas sempre com uma preocupação: tem que se divertido, pois de outro jeito não vale a pena. Só vale com a diversão levada a sério”, pregava Science, no início de 1994, em conversa movida a rum autenticamente jamaicano (um dos autores deste texto, Sá, acabara de voltar de Kingston e Montego Bay com um grande carregamento da bebida). Nessa mesma noite, num quarto-e-sala do número 812 da Rua Frei Caneca, na Bela Vista, embalados por uma das primeiras audiência do Da Lama ao Caos, fomos surpreendidos – Lúcio Maia e Jorge Du Peixe também faziam parte do bando – com batidas fortes e ameaçadoras na porta. Do outro lado, dedo no gatilho, um austero senhor de pijama de bolinhas, o famoso vizinho de baixo, ameaçava todo mundo com um colt.

- Ou pára o som ou eu atiro, bando de vagabundos! – bradava, cheio de moral e de razão. Para completar, o cara ainda insinuou que estava rolando uma suruba entre aqueles bravos machos nordestinos.

- O que é que quatro marmanjos estão fazendo juntos a essa hora?! – inqueriu.

Mesmo com muito rum no juízo, saltei com capítulos inteiros sobre garantias constitucionais e outros direitos de um cidadão guardado no seu lar. Nada acalmava o “pijama assassino”, como o batizou Chico, depois daquela noite.

Deu polícia e tudo. Não sei quantas viaturas chegaram, tudo por causa de uma merecida audiência do disco que mudaria a cara do pop nacional. Naquele mesmo prédio, dias antes, um louco disparou seu 38, da janela do seu apartamento, e tirou a vida de uma adolescente viciada em crack, conhecida na rua. O motivo do disparo: a menina mexia no carro do elemento, do qual, segundo ele, levaria o toca-fitas. Grande merda.

Como nascem os sons

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Chico tirava som de pedra e era capaz de ouvir a melodia operária das britadeiras – lambreta de baiano, no dizer preconceituoso de São Paulo. Ao sair do edifício Capibaribe, onde morou com os amigos h.d. mabuse e o bissexto habitante Fred Zero Quatro, líder e co-fundador do Mangue, Science tirava som dos vasilhames (conhecidos como cascos, no Nordeste) de cerveja enfiados nos dedos. Nessas descidas para comprar o precioso líquido, surgiu, por exemplo, o mote “cascos caos, cascos caos”, que reapareceria na faixa “Coco Dub (Afrociberdelia)”, do primeiro disco do CSNZ.

Cerveja antes do almoço e caos eram duas preciosidades caras aos rapazes do Mangue (depois, por causa de música homônima do mundo livre s/a, a imprensa mudou, sem consulta prévia, o nome para MagueBit; mais adiante, a mesma mídia passou a tratar de Manguebeat, confusão até inexplicável). O responsável pela tintura teórica desse caos foi h.d. mabuse, amigo de Chico e um dos mentores do movimento, apreciador do Teorema da Colagem do matemático Michael Barnsley, que reinou nos anos 70. Para entender essa zona toda, leia depoimento colhido no gabinete do dr. mabuse, especial para TRIP, na página ao lado.

“A gente catava tudo o que era livro didático das nossas casa para trocar, nos sebos, por vinis. Nessa levada, fomos adquirindo as preciosidades”, relembra Du Peixe, enquanto enxuga algumas cervejas com a musa Valentina, mais os repórteres que subscrevem esta saga, Miss Soledad (bela cigana da ponte Andaluzia-Recife), a viciada em Godard Luciana Araújo, o DJ Dolores e a sua Monica-samba, todos no Copo Sujo, boteco que faz parte da geografia sentimental do Mangue, Maguebit, Manguebeat, ou seja lá que nome se dê a essa revolução praieira.

Sangue de bairro

Um historiador que procurasse reconstruir a trajetória artística de Chico Science, a partir de sua coleção de discos, deveria, na verdade, retroceder ainda mais no tempo e mergulhar na infância do menino Francisco de Assis, nascido no Recife, caçula de uma corda de quatro filhos patenteados por seu Francisco, bravo líder comunitário e ex-vereador do PDT de Olinda nos anos 80 e dona Rita França. (Espirituosa como o artista que levava a diversão a sério, a mãe de Chico mantinha em sua casa, até 1997, o galinheiro da fama. Ela criava galinhas que eram batizadas com os nomes dos componentes da Nação Zumbi, amigos e também namoradas do filho, o que só ampliava o humor da história.).

Chico estudou até o segundo grau, sempre em escolas públicas de Olinda. Trabalhou, até formar a Nação Zumbi, na Emprel, a empresa municipal de processamento de dados do Recife, como arquivista. Um pouco antes, havia trampado na Clínica Radiológica do Recife, como auxiliar de serviços gerais. “Completou 18 anos, tem que trabalhar, se virar” – era essa a ordem do pai.

É a música das ruas de Rio Doce, bairro pobre de casas populares, porém decente da periferia de Olinda, que vai primeiro influenciar o rapaz. Como música aqui, entenda-se desde a melodia dos camelôs e vendedores ambulantes, até a ciranda das festas populares e o maracatu entrevisto nos carnavais. Os discos só chegaram anos depois, durante a adolescência, quando, em meio a tantas descobertas, ele encontrou o seu primeiro amor (e talvez mais profundo, com perdão das musas Sladjena, Risoflora – codinome

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ecológico da gloriosa Maria Eduarda Belém -, Renata Pinheiro – crème de la crème das artes plásticas do Recife – e Charlene): a black music americana.

É a partir daí que os primeiros heróis começam a enfeitar paredes e guarda-roupas. O funk de James Brown tornou-se uma paixão e abre caminho para uma de suas obsessões: ele começa a procura que vai direcionar boa parte de sua coleção de discos e dos seus futuros esforços musicais. Chico parte em busca desse Santo Graal do pop moderno, o beat perfeito, a batida definitiva. “Looking for a perfect beat”, o clássico de Afrika Bambaata, que, ao misturar Brown e Kraftwerk, forjou o hip hop, bem poderia ser sua divisa.

Quando a década de 80 chega perto de sua metade, é justamente o hip hop que vem se associar ao funk na galeria restrita dos seus cultos musicais. Chico mergulha de cabeça nessa cultura jovem, exercitando a arte da grafitagem, do contorcionismo em forma de dança e da poesia cantada em rimas fortes. Como Bambaata, ele participa de sua primeira “nação”, o Coletivo Hip Hop, um dos pioneiros no gênero em Pernambuco. Como um rapper ortodoxo, ele sobe ao palco para os seus primeiros shows: vestindo Adidas e imitando L.L. Cool Jay.

Mas, claro, se a coleção de discos de Science fosse, digamos, tão restrita assim, ele não teria se transformado no genial criador que mais tarde assombraria Pernambuco e o resto do país. É quando passa a freqüentar certo apartamento no bairro das Graças, onde morava a sua irmã Goretti, quase no centro do Recife, que o gosto e as preferências musicais de Chico vão se expandir para limites até então desconhecidos.

Esse apartamento funcionava como uma espécie de quartel-general para vários dos futuros mangueboys que trabalhavam ou vagabundavam pela cidade. Era ali que se dava um tempo antes de ir pra casa ou sair pra uma balada. Por meio de amigos comuns, Chico conheceu Fred Zero Quatro. Do mundo livre s/a, e mais um monte de gente de procedência diversa e com gostos distintos. Formava-se um tipo de ambiente que se imagina aparecer em quase todos os movimentos musicais antes de sua expressão para a mídia. Uma incubadora cultural ou algo assim.

Foi nessa casa que o Mangue começou a ser construído, tanto em termos conceituais como na própria música: ouviam-se ao mesmo tempo Captain Beefheart e Public Enemy, Fellini e 808 State, Jorge Benjor e Specials. Artistas plásticos, cineastas frustrados, desempregados, jornalistas e funcionários públicos conviviam lado a lado. Boa parte do som da Nação Zumbi vem daí, desses discos misturados e escutados com atenção entre um baseado e uma cerveja.

Baião-de-dois

Na era Mangue, a coleção de discos de Science já era outra. À busca do groove havia se somado uma procura de melodias perfeitas, um culto ao Who dos anos 60, aos Byrds e coisas do tipo. Outra de suas qualidades aflorava com força total: a capacidade de misturar ritmo e melodia como poucos! Um cara capaz de formar uma banda paralela, o Loustal, que tocava covers psicodélicas de clássicos dos sixties enquanto desenvolvia o Nação Zumbi!

Uma última visita a seu quarto e a sua coleção mostrava uma paixão crescente por música eletrônica e sons latinos. Drum’n’bass e jungle pareciam ser suas preferências. Pensar o que esse alquimista dos ritmos deixou de fazer

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com essa batida é para nós fonte permanente de tristeza. “Estava dormindo, quando ouvia Chico chegar, com amigos, para ouvir música, de madrugada. Tinham um ar tão grande de felicidade e diversão aqueles encontros que jamais me incomodei”, diz a irmã Goretti, colo e porto seguro do caçula.

Mas segue a vida, enfim... no quarto de Chico, na casa da irmã, os tesouros ainda estão guardados desde aquela fatídica tarde de domingo, 2 de fevereiro. É que o cientista pode chegar a qualquer momento, pegar um vinil ou CD e pensar em mais uma mágica. O beat perfeito pode nascer a qualquer instante...

Graças à simpatia de Goretti França, enfermeira e competente profissional dedicada à área de saúde sanitária da Recife dos mocambos, TRIP teve acesso à última penca de CDs reunidos por Science no seu case [ver box]. Foi com essa coleção que ele animou, artista enquanto DJ e vice-versa, parte da festa do bloco Enquanto Isso, na Sala de Justiça, na véspera da sua morte, no 1º de fevereiro de 1997, um sábado. Nesse dia, reencontrou velhos amigos, depois de uma longa ausência de Pernambuco – havia feito uma temporada na Europa – e mandou ver nas picapes, inspirado, quem sabe, pela parque de diversão na cabeça de que falava o poeta beatnik Lawrence Ferlinghetti. Vingou a passionalidade-jungle, estrondo negro e suburbano no qual comungava e seria, post-mortem, homenageado, via arrabaldes londrinos de Goldie.

O último scratch

Pela aposta dos amigos, no momento em que o Fiat Uno (Chico não saiu de Landau devido à dificuldade de estacioná-lo nas ruas tomadas pela folia carnavalesca) conduzido pelo artista subia o viaduto na divisa entre o Recife e Olinda, o rapaz ouvia Willie Bobo, La Esperanza, seu vício. Mas isso é apenas a intuição dos malungos. Na noite anterior, o dublê de DJ na festa com os amigos, havia incendiado a pista com jungles para acalmar a barbárie carnavalesca. Acabara de voltar de Paris, com o embornal cheio de discos novos, e a paixão renovada por Charlene, morena nouvelle-vague da tradicional família pernambucana que trocara, ainda quando engatinhava, o Capibaribe pelo Sena. Em momento algum na festa mostrou a “tromba” – quando estava chateado, Science não escondia a sua imitação de elefante nos lábios.

Numa roda com os repórteres deste texto, riso escancarado – como se tivesse tomado um docinha com a marca Druida (Asterix), distribuído fartamente no Recife pela croata das primeiras linhas desta saga -, que não tinha sorte no amor. Charlene chegaria dias depois.

Recife, margem esquerda do Capibaribe, aurora do XXI. IMPRESSIONANTES ESCULTURAS DE LAMA No fundo dos manguezais, perdidos no tempo e no espaço. São seres fantásticos, extraordinários, cuja existência até hoje é discutida nos bares do Recife, em meio a copos de cerveja e outros aditivos. Alguns desses personagens obscuros (mas importantes na vida de Chico e nos desdobramentos do Mangue) são mostrados agora com exclusividade

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nas páginas da TRIP. Impressionantes esculturas de lama, reconstruídas nos perfis que o leitor encontrará a seguir. CHICO SCIENCE, o legítimo No início dos tempos, lá pelos idos dos anos 70, o codinome "Chico Science" ainda não era propriedade de Francisco França. Quem usava esse apelido, depois tornado famoso em todo o mundo, era outro personagem, de nome Carlos Antônio Ramos Braga, tio de Renato L., um dos articuladores do movimento Mangue. Careca, pai de quatro filhas, Carlos era fã de ficção científica e das teorias picaretas de Erich Von Däniken, o autor de Eram os Deuses Astronautas?, obra que defendia a tese de que seres espaciais haviam nos visitado em épocas remotas. Por conta dessa obsessão, a família o chamava de Chico Science. Nos anos 90, o apelido migrou para o músico, meio como uma gozação dos amigos. Hoje, o Chico Science original vive com a família no bairro do Espinheiro, no Recife, e continua procurando indícios da visita dos extraterrestres nas esquinas da vida. ROGER, o Rogê Roger de Renor não tem nada de francês. Seu avô tirou o nome de um cabra franco-circense que avistou no meio do mundo. Refrão de "Macô", hino informal do eixo Recife-Olinda - "cadê Rogê, cadê Rogê" -, o rapaz era dono da Soparia, sede lúdica, etílica e sentimental dos mangueboys, que depois mudou de endereço e virou Pina de Copacabana, mesmo nome de canção de Otto. Inquieto fazedor de coisas, Roger cuida de parte da programação da Torre de Malakoff, primeiro observatório astronômico das Américas (hoje centro cultural) e toma conta do Armazém 14, teatro recifense arrumado dentro de um vasto ex-depósito de açúcar, do tempo em que Pernambuco falava para o mundo. RISOFLORA (De Rhizoflora Mangue, folha a mais na diversidade ribeirinha, como reza a ciência.) Homenageada com faixa homônima do disco Da Lama ao Caos, é o codinome eco-amoroso de Maria Eduarda Belém, pernambucana que hoje encanta SP. Science sempre foi um pisciano típico, daqueles que têm uma tendência atávica a se apaixonar - e sofrer, conseqüência natural de quem conjuga o verbo amar. Graciosa, com os cabelos encaracolados como os de um anjinho, seios fartos, jeito dengoso, capaz de incêndios no salão enquanto baila, ela foi a namorada que trouxe a Chico a felicidade por um bom par de anos. JEAN PAUL Não, o Jean Paul aqui não é o famoso filósofo francês, pai do existencialismo e hoje pouco lembrado pelos cadernos culturais da vida. O Jean Paul das crônicas do Mangue é outro, ligado a seu homônimo gringo devido a sua paixão pela filosofia de beira de praia, alimentada por obras como A Naúsea, O Muro e outras incursões literárias do marido de Simone de Beauvoir. Irmão alguns anos mais velho de Fred Zero Quatro, ele delirava, chapado em plena praia, sobre as impossibilidades do ser. Suas lendárias trips encantaram os ouvidos de Chico Science e Jorge Du Peixe, e ele acabou indo parar no refrão de uma música do último disco da Nação Zumbi ("Pela Orla dos Velhos Tempos"). Jean Paul nunca se envolveu com música, virou mesmo foi um

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pacato funcionário público, que vai à igreja e canta os hinos do padre Marcelo. E, ao contrário de sua versão francesa, deixa a mulher bem guardadinha em casa quando sai pra farra. DEL CHIFRE Não se trata de um personagem, mas sim de um lugar meio encantado. Foi aí que, segundo a lenda, Chico e seus amigos da Nação se iniciaram nos mistérios do surf. Nunca entendemos bem como isso aconteceu: situada bem na fronteira entre Olinda e Recife, Del Chifre é uma praia suja e inóspita, o lugar aparentemente menos indicado para esse tipo de aventura. Mas a paixão dos caras pelo lugar parece ser tão grande que Del Chifre acabou virando música do Rádio S.AMB.A: tá lá, uma surf music meio latina fechando o primeiro disco da Nação Zumbi, composta sem a participação do grande mestre do surf, da colagem de batidas e do rap-repente envenenado, mister Francisco de Assis França, Chico Science para os mais chegados. O QUINTO BEATLE Toda cena pop que se preze tem seu quinto beatle: aquele sujeito que, como Pete Best, perde o trem da história e fica para trás, mergulhado no anonimato, longe das tietes e da possibilidade dos milhões. No Mangue, quem desempenhou esse papel clássico foi um rapaz magro e de poucos amigos apelidado de Bob Mofo. Sua biografia de "pobre'star" é um amontoado de pequenas e grandes tragédias: o pai se suicidou quando ele tinha 4 anos, o padrasto sempre o discriminou, a família mostrou-se de uma ignorância atroz, o vestibular foi uma muralha intransponível. A conseqüência de tanto azar foi o sur-gimento de Bob Mofo, o punk mais radical da filial pernambucana do movimento. Quando o Mangue surgiu, Vinícius Enter, seu novo alter-ego, deveria participar da primeira coletânea do movimento. Mas o projeto não vingou, Vinícius perdeu-se no ano-nimato e seu paradeiro atualmente é desconhecido. FILHA DE CARANGUEJO Estilo é DNA. Louise Taynã Brandão França tem 10 anos, adora cantar, dançar e preza pela elegância, mostrando a mesma preocupação que o pai tinha em apresentar um jeito invocado e inovador de vestir. Filha de um romance de Chico com Ana Luiza Brandão, jovem da periferia de Olinda, mesma quebrada do malungo da Nação Zumbi, Louise nasceu quando o pai ainda não era Science, tinha 24 anos, mas já andava com uma penca de vinis de black music debaixo do braço. O ÚLTIMO CASE Conheça os últimos CDs que tocaram na aparelhagem perfeita do velho Landau 79, carro comprado ao pintor e novo amigo Felix Farfan, por R$ 800 - "é o papa-gasolina", alardeava Science -, e acompanharam o líder da CSNZ nos seus últimos suspiros: A Jazz Colletion, Herbie Hancock (1991) A Tábua de Esmeraldas, Jorge Benjor (1974) Acid, Ray Barretto (1968) Best of Jungle, vol. 2 e 4 (1995)

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Black Sunday, Cypress Hill (1993) Blue in the Face (trilha sonora do filme homônimo, dirigido por Wayne Wang, 1995) Concrete Jungle vol. 2 (Bemank, Bizzi B., The Rood Project, 1995) Doggy Style, Dr. Dre featuring Snoop Doggy Dog (1993) Funhouse, The Stooges (1970) Greatest Hits, Mongo Santamaria (1964) Hold on It Hurts, Cornershop (1995) Jazzmatazz, vol. 2 Guru (1996) Jungle Heat, Ragga Jungle & Hardcore Breakbeats (1995) Jungle Vibes, vol. 2 (1995) Jurassic Tumbi, Bittu (1995) La Esperanza, Willie Bobo (1964) Maxinquaye, Tricky (1995) Minha História, Mutantes (1994) O Melhor de Jackson do Pandeiro, com participação do poeta Patativa do Assaré (1981) O Melhor de Jorge Benjor (coletânea com a emblemática "Zumbi", 1981) Pomme Fritz, The Orb (1996) Reggae Hits (Winston Samuels, The Caribbeans, Jackie Mittos, 1990) Roots, Sepultura (1996) Soul Sauce, Memories of Cal Tjader, Poncho Sanchez (1995) Stolen Moments, Red Hot + Cool (1994) Super Ape, Lee Scratch Perry and The Upsetters (1978) Temples Boom, Cypress Hill III (1995) The Is How We Do It, Montell Jordan (1995) The Rebirth of Cool 4 (Dj Krush, Justin Warfield, Tricky, Simple e Tranquility Bass, 1994) Uno, Dos, Tres, Willie Bobo (1963) * Amigos pessoais de Chico Science, os autores desta reportagem viveram intensamente a cena mangue.

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ANEXO 6 O SAMBA-RAVE, MEU IRMÃO (TRIP #68) por Xico Sá

Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira uma malandragem distorcida ou um galope trance no pandeiro imaginário que Otto carrega pra tudo que é lugar desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão.

O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas moedas no bolso e lá vem um xote eletrônico, o vento mexe nas panelas e tome polca de primeira, um bêbado sem-teto entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.

Tudo com muita psicodelia, essência tão importante para o mangue beat quanto os samples de ciranda e maracatu. "Samba pra Burro" é a música para viagem feita por um festivo gozador.

Batuqueiro nas ruas e metrô de Paris, onde viveu a sua temporada, ele não esqueceu nem mesmo de cantar na língua de Gainsbourg, a quem sempre dedica homenagens noturnas nas mesas de bares. A música "Changez tout", em parceria com Apollo, é a prova de que a França pode até ter esquecido Otto, mas Otto não esqueceu o seu francês.

No mesmo espírito parisiense, "Samba pra burro" traz "Renault/Peugeot", jingle que tira uma onda com um dilema chique, quase existencialista, entre as duas carroças. Croissant fino para as massas.

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ANEXO 7 OS LIMITES DO PARAÍSO (TRIP #89) por Xico Sá Fernando de Noronha é um arquipélago formado por sol, céu, mar e surf inacreditáveis. Mas as 19 ilhas também podem ser descritas como pedaços de terra a 300 quilômetros da civilização. Como diz um velho pescador local, “o limite entre o paraíso e a prisão depende do espírito de cada um”. Bem-vindo à Norinha que não cabe nos folhetos turísticos

Os golfinhos rotadores repetem o balé como se fossem pagos pela companhia de turismo – é a única reserva do mundo em que o espetáculo tem hora marcada, ao nascer do sol e no meio da tarde! –, o mar bravo teima contra as pedreiras no eterno tanto-bate-até-que-fura, os visitantes, desde o naturalista inglês Charles Darwin, que ficou chapado com as espécies do lugar em 1832, já chegam com seus adjetivos e interjeições (“oh!”) ensaiados, os mergulhadores vêem peixes com exagero de pescadores, a natureza abusa da retina, os velhos narram lendas e os jovens... bem, os jovens bebem pelos golfinhos, pelos turistas, por Darwin, pelos pescadores, pelos velhos, pelas pedras e por todos os abstêmios d’além-mar.

Uma pesquisa feita em 1998 pela Administração do Distrito Estadual de Noronha apontou que o alcoolismo atinge 25% da população do arquipélago. A antropóloga pernambucana Janirza da Rocha Lima, em sua tese de doutorado defendida na PUC de São Paulo no ano passado, detectou que na ilha "além do dinheiro fácil, o turismo introduziu na comunidade insular [...] a música reggae, as pranchas de surf, os veleiros e, como acessórios complementares, o turismo sexual e a droga".

Ora, o paraíso também enche o saco. Não poderia ser diferente na última colônia ultramarina do planeta (como define o agrônomo e maior liderança popular nativa Domício Alves Cordeiro, na ilha desde 1948). Com administrador enviado pelo governo de Pernambuco, que reanexou o território de Fernando de Noronha em 1988, os nativos nunca mandaram no seu pedaço de terra, desejo que politicamente vive a sua mais intensa articulação neste momento.

Mesmo quem não tem queixa e elogia muito a gestão de Sérgio Salles, o mandatário enviado do Recife, acha que chegou a hora, depois de quase 500 anos, de um noronhense - a auto-estima local impede que os ilhéus se definam como pernambucanos - comandar os destinos do arquipélago que já passou por mãos francesas, holandesas, militares, civis de tudo quanto é canto, menos pelo domínio dos locais.

Enquanto os nativos mais velhos e chegados neonoronhenses se articulam politicamente, reunidos na Assembléia Popular de Noronha - órgão sem direito a voz nem voto, já que os destinos da ilha são decididos pelos deputados estaduais de Pernambuco, a 545 quilômetros da ilha -, os mais jovens tentam curar o banzo do isolamento na ilha, o que a ciência denomina como síndrome insular, com a danada da cachaça. Preferem encher a cara a morrer de tédio, mesmo que nunca tenham lido o famoso verso de Maiakóvski, vermelho que reinou numa terra gelada, longe, muito longe dali. Um poeta-taxista, Emerson Nilson, 26 anos, estranho no paraíso há quatro anos - veio de

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Abreu e Lima, na Grande Recife - descreveu o mesmo sentimento no livro Noronha, sombra que ilumina, publicado no ano passado. "Como posso existir / se essas águas me aniquilam? / Como posso viver / Se estou longe da vida? / Minha língua bate / Meu coração caminha / Mas não posso voar", recita o existencialista local. neuronia e euforonha

Em Fernando de Noronha, que era chamada de Fora do Mundo no século XIX, a mais famosa de uma penca de 21 ilhas e ilhotas que formam o arquipélago homônimo, existem dois sentimentos básicos: a euforonha e a neuronia, conforme os neologistas locais.

A euforia é fácil e óbvia ("oh!") para qualquer visitante - filtro solar 30 numa mão e pé-de-pato na outra - que pisa naqueles 17 quilômetros quadrados na beira do abismo do Atlântico equatorial, como reza tecnicamente a cartilha de geografia; a neura, estranha para o cenário paradisíaco, parece herdada da vocação de colônia correcional, com solitárias construídas entre locas de pedras, espécie de Carandiru de formação vulcânica, mas também com os seus PCCs - são inúmeros os relatos de rebeliões e fugas ao melhor estilo Papillon.

Descoberta por Américo Vespúcio, em 1503, em expedição bancada pelo fidalgo português Fernan de Loronha - daí o onha, rima rica de maconha que está no batismo do lugar e dos seus sentimentos básicos -, a ilha virou presídio ainda em 1845, embora o seu período de maior fama tenha sido depois do 31 de março de 1964, quando a ditadura militar passou a fornecer passagens forçadas para gente como o então governador de Pernambuco, Miguel Arraes, um dos presos políticos famosos daquelas plagas [leia no site da TRIP, histórias e lendas a respeito da ilha]. Muito antes, todavia, foram enviados para lá milhares de ciganos tidos como "vagabundos" (1979) e todos os capoeiristas do Brasil, confinados na área de 1890 depois de enquadrados pela República, que acabara de se instalar, como desordeiros e contraventores. O famigerado presídio só foi desativado no final dos anos 60. paraíso-prisão

Com a palavra o pescador Salviano José de Souza, 83 anos, nascido no Recife, 60 anos de Noronha e mar, misto do velho Santiago de Hemingway com o zen-budismo de Dorival Caymmi: "O limite entre paraíso e prisão depende do espírito de cada um que vive por aqui. Para os mais agoniados, pode ser terrível, para os que têm a alma sossegada, vixe!, é um bálsamo da vida", diz, enquanto hipnotiza o repórter com o balanço da rede na varanda. "Aqui se bebe faz séculos. Claro que a vinda de mais turistas, com um dinheirinho, aumentou um pouco a bebedeira dos meninos, que ficam na cola deles. Mas num faz mal não. Eles gostam dessa brincadeira. O que faz mal é cigarro de maço e droga, mas isso é muito pouco aqui", conta o mais velho habitante do arquipélago, pai de 28 filhos - 14 viveram e 14 "Deus levou" ainda meninos.

Desde o começo dos anos 60, quando houve o último registro de assassinato entre presos, não se tem notícia de uma morte por violência no local. E o velho Salviano olha o mar sob o decote do horizonte logo à frente da sua rede. E diz mais: "O cabra que matar sabe que será capturado fácil, fácil, pois não tem para onde correr. O máximo que nego troca aqui é uns tapas,

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para resolver as pendengas, um negócio malfeito, um ciumezinho que faz parte da raça humana. O grande problema aqui era o sexo antes da camisinha. As meninas - porque a gente sabe que uma menina quando se faz mulher quer um homem e não tem diabo que dê jeito - emprenhavam muito de forasteiro, presidiário, o diabo-a-quatro, era um monte de filho de guaiamun ["todo mundo tem um pai e ele não tem um", diz a moral popular sobre os rebentos dessas natureza]. Agora não, sai ali do forró do Cachorro, desce na praia e vuco-vuco-vuco-vuco, com caminha, e não tem perigo de doença ou pegar bucho. É uma beleza, meu filho!". O senhor usaria a famosa borracha, indaga este incrédulo que vos fala. "A véia num gosta", soletra, enquanto vira a cabeça para a direita, onde ela se encontra, num cantinho escuro da casa, na sombra, quase invisível para quem olha da varanda incandescida pelo sol.

Enquanto muitos pais se preocupam com o comportamento e o futuro dos seus filhos em Noronha, o casal Geraldo Barreira e Glorinha Moreira Lima acompanha, numa situação que definem como um legítimo mergulho na felicidade, o crescimento do pequeno Thor, um menino de três anos e meio, portador da síndrome de Down, que chegou ao arquipélago com apenas dois meses.

Glorinha, jornalista paulista que atuava na 89 FM, conheceu Geraldo, pernambucano, em São Luís do Maranhão, a ilha mais urbana do Brasil. Casaram há quatro anos e foram morar em Fernando de Noronha, onde possuem um barco, o Planasub, que conduz turistas para o mergulho nos arredores do Atlântico. De lá não pretendem sair tão cedo. Ou nunca, quem sabe. O motivo é a bela história de Thor, para quem o lugar se aproxima mesmo da idéia de paraíso. "Graças às condições que encontrou aqui, ele tem uma vida formidável, sem comparação com as crianças portadoras da síndrome que moram em cidades grandes", exalta a mãe. "Thor conseguiu andar com um ano e seis meses, quando o normal, nas cidades, é dar os primeiros passos somente lá pelos quatro anos".

A vantagem de Noronha, segundo os pais, é que na ilha Thor pode fazer a sua hidroterapia todos os dias e é totalmente favorecido pelo contato visceral com a natureza. "Para uma criança como ele, ver os peixes e acompanhar os golfinhos, por exemplo, é mais comovente e interessante do que para uma criança que não tem a síndrome", conta a mãe. "Em que cidade eu poderia levá-lo à praia, ao mar, todos os dias?", indaga Glorinha, cheia de orgulho e de razão. o melhor amigo do noronhense

O Cachorro é certamente um dos bares mais bonitos do mundo. Tem forró toda noite, com uma lua dos diabos, à beira de um precipício que dá no oceano e nas boas safadezas descritas pelo velho do mar citado. É o encontro mais quente entre turistas e nativos que se tem notícia por aqui. Pode perder para o congraçamento entre européias e rastas nas boates estilo caverna de Montego Bay, na Jamaica, mas nós preferimos duvidar. Com a palavra um dos incontáveis netos de Salviano - ele tentou as quatro operações e parou em trinta e tantos -, o mestre do barco Na Onda, o nativo Felipe Roberto Oliveira da Silva, 21 anos, que a TRIP encontrou, por acaso, no bar-animal citado pelo avô. Ele deu a receita contra a neuronia: "Para curar o isolamento, nada melhor do que uma boa turista. É diversão garantida. A gente começa no fungado do forró e vai até aonde Deus quiser. Se rolar, chega junto, banha a moça de

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carinho, coisa que ela não costuma ter em São Paulo, pois a vida é muito corrida e os homens chegam cansados em casa".

Nessa mesma noite, o barqueiro cruzou o paraíso, depois de seguidos forrós e muita birita, com uma paulistana, daquelas que costumamos chamar, com todo respeito, de balzaca de responsa. "Para as coroas, aqui é o paraíso", diz, quase repetindo a frase de Américo Vespúcio, o descobridor, que disse apenas a parte da vírgula para a frente. Mesmo sem a sabedoria do velho Salviano, muitos habitantes da ilha dizem, sem medo de errar, que Noronha é hoje o nirvana das afilhadas de Balzac.

Isso não quer dizer que os ativos, que aproveitam a oferta para tomar umas a mais à custa do turismo, não pensem mais longe. "Muitos caras daqui sonham em se arrumar com uma coroa, para viver sem fazer força, só fodendo, ih, peraí, quero dizer, só amando!", relata ainda o barqueiro. Numa dessas tantas farras, Felipe se apaixonou por uma paulistana de 30 e poucos anos, que atendia pelo nome de Cláudia e trabalhava como administradora de empresas em terras bandeirantes. No ano passado, deixou o barco ancorado no porto de Noronha e se mandou para São Paulo, onde repetiu, por 15 dias, a paudurescência (neologismo pernambucano que significa "essência do priapismo ou do pau duro") em um hotel dos Jardins, onde foi acomodado pela amante.

No bar do Cachorro, a TRIP ouviu dezenas de histórias semelhantes. E uma variante: os gays também recorrem fartamente aos meninos de Noronha, que vêem nesses encontros um apêndice do turismo e nada mais. "Nem todo mundo topa, mas que existe, existe. E muito", conta C. S., 22 anos, que se diz surfista. "Tem um cara do Rio que, de ano em ano, troca de boy aqui. Como ele trata bem os amigos da gente, já ganhou boa referência, o que faz com que os outros sigam o mesmo caminho para as bandas cariocas."

O DJ e gerente do Cachorro, Genilson, 31 anos, testemunha ocular da história: "Já vi ilhéu ganhar uma mulher em segundos; num piscar de olhos saíam aqui do balcão, na minha frente, e já estavam se amassando ali naquela cadeira [aponta um assento que fica quase no despenhadeiro, na paredinha que divide o bar do abismo que leva à praia]".

Ir a Noronha e não falar com o dono do Cachorro é como ir a Roma e não ver o papa. Ney Costa, 38 anos, pai de um filho de 10 que mora com a mãe em São Paulo, conta que a situação da rapaziada da ilha é embaraçosa. "Aqui é um lugar muito bom para adultos, mas não é confortável pra essa moçada entre 14 e 20 e poucos anos. Essa turma entra pesado no álcool e na maconha. Uma coisa é uma pessoa esclarecida fumar maconha pra pensar melhor, outra coisa é uma moçada sem escola que preste - caso de Noronha - e sem perspectivas, isolada em uma ilha. Acaba não ligando muito para os estudos ou para preparar um futurozinho melhor. Agora ninguém vê isso, mas eles não vão agüentar ficar velhos vivendo a ilusão dos turistas descendo e subindo trilhas", dá o parecer.

Guilherme Gross, 30 anos, surfista carioca, foi duas vezes a Noronha. A primeira, atraído pelas ondas do primeiro Red Bull Tube Rider, que aconteceu em janeiro por lá - quando faturou a categoria "Melhor Tubo", completando a mais longa onda da sessão. Na segunda ocasião, no mês passado, esteve na ilha para dar continuidade a um documentário Surf Adventures que prepara sobre os points de surf em todo o mundo. "Na verdade, a rapaziada não tem muito o que fazer, não há muitas opções. Acho

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que deveriam investir mais no esporte, que é a grande saída, com incentivo a competições internas para os surfistas nativos", sugere. "Até a TV aqui, que é uma opção de lazer em qualquer lugar, só tem dois canais, a Globo e o SBT. A moçada merecia um cinema, por exemplo."

A assistente social da administração da ilha, Sara Escobar, reconhece que o alcoolismo e a vida sexual colada ao mundo dos turistas são um problema que merece todos os cuidados. "É muito difícil convencer os jovens de que precisam ter uma profissão que não seja obrigatoriamente ligada ao turismo. Mas nos esforçamos, dando oficinas, palestras e programas sobre esse tema", conta. "Ora, é muito atrativo e sedutor o mundo em que vivem, com mulheres e homens de fora, rapazes bonitos, moças bonitas. Mas as nossas atividades de prevenção, com camisinha e equipes médicas, têm sido eficientes."

Em Fernando de Noronha há 12 anos, o cientista gaúcho José Martins, 38 anos, coordenador do projeto Golfinho Rotador, que tem o apoio do Ibama e da Fundação Nacional do Meio Ambiente e ajuda da Petrobrás, elogia a educação ambiental dos mais jovens. "Eles sabem que dependem da preservação como meio de vida e são mais compreensivos que as velhas gerações", relata a maior reserva humana de conhecimento sobre tudo quanto é bicho do mar do arquipélago.

Membro da comissão escalada para estudar o Plano de Gestão de Ecoturismo e Desenvolvimento Sustentável do arquipélago, documento que serve de guia para futuro do lugar. Martins põe o dedo no alarme para o momento que vive Noronha. Com problemas de saneamento, abastecimento e energia elétrica, a ilha, com seus 3 mil habitantes e a presença, como comprovou TRIP no registro do aeroporto local em janeiro, de até 1 140 visitantes (a lei limita em 750 turistas/dia), está no limite das suas possibilidades de infra-estrutura.

Segundo Murilo Cavalcanti, 40 anos, coordenador de programas estratégicos do arquipélago, foi feito um estudo científico de capacidade de carga que concluiu que a ilha pode receber mais de 800 turistas sem agredir seu meio ambiente. Mas Murilo salienta que o governo do Estado de Pernambuco não tem interesse em aumentar demais o número de visitantes em Noronha. "A idéia é praticar um turismo qualitativo e não quantitativo. Não queremos turismo de massa". fantasma da ilha

Esse cenário faz com que os nativos, como Domício Alves Cordeiro, benzam-se várias vezes quando a eterna polêmica da implantação de grandes redes hoteleiras rondam a área, como ocorre desde o início do ano. Com cerca de cem pousadas em casas de família, o que é considerado um ganho em ascensão social e distribuição de renda para os moradores, o debate é um assombro equivalente à lenda local da Alamoa, uma galega gigante, que costuma andar nua, com "fosforescência e maldade nos olhos", para devorar os homens sem mulheres do lugar.

Os grandes hotéis, pensam os moradores da ilha, vão aniquilar as pequenas pousadas e engolir a ilha, como ocorre adoidado nas comunidades de pescadores espalhadas pela costa nordestina. A Alamoa, no imaginário noronhense, costuma espantar os pescadores e notívagos em geral apenas

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nas noites escuras e misteriosas de sexta-feira. Já o fantasma dos resorts não sai da cabeça dos nativos um só instante.

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ENTREVISTA COM XICO SÁ* A partir de que momento você percebeu que a maneira Xico Sá de escrever tinha forte tendência a fugir do esquema lead, pirâmide investida, dos tais ideais de impessoalidade e objetividade? Foi um processo de descoberta natural? O jornalismo “quadrado” sempre te entediou? Xico Sá – Tive umas boas experiências logo no começo da trajetória como jornalista, nos anos 80, no Recife, quando escrevia para o "Rei da Notícia", uma revista mensal feita por uns malucos de lá e que fazia muito sucesso com a rapaziada mais jovem. Aí pratiquei um gonzo radical, sem ter a menor idéia de que diabos fosse gonzo ou new journalism. Depois, por uma questão de sobrevivência, cai no jornalismo mais convencional, trabalhando nos grandes veículos (Veja – argh!, Estadão, Folha...). Aí ficava quase impossível escrever como gosto, ou seja, sem a chatice dos jornalões. Na Folha ainda fiz uma coisa ou outra mais livre, mas somente de uns 8, 10 anos para cá é que pude me soltar mesmo, e agora desaprendi o que venha a ser lead e sub-lead. Então a sua maneira de narrar hoje (a chamemos de sui generis) nasceu mesmo por acaso? Xico Sá – Não por acaso, acho que minha queda pela literatura é que me ajuda nessa história. Antes mesmo de ser jornalista, meu sonho era ser escritor. Desde que li Angústia, de Graciliano Ramos, ainda em Juazeiro, que botei na cabeça a obsessão de ser escritor. Como essa profissão não existe, cai na mais próxima, que é o velho jornalismo. Indo direto ao ponto: Quanto de Gonzo existe na narrativa do Xico Sá? Aliás, para você, o que é escrever ao estilo gonzo? Hunter Thompson fazia/faz parte de suas leituras? Ele pode ser considerado um tipo de influência sua? Xico Sá – Fui ler o Thompson para valer de uns dois anos para cá, adoro o cara, mas não sou influenciado diretamente. Pode lembrar algumas situações, meras coincidências. Os papas do new journalism, como Capote e Talese, também li bastante tarde. Minhas principais influências são mesmo de escritores de ficção. Dessa linhagem americana de new journalism um que aprecio bastante é o Joseph Mitchell, sensacional, mestre em detalhes nos seus perfis e histórias. Voltando ao Thompson: sempre, em palestras e debates de estudantes, me falam de semelhanças. Isso me deixa contente, todo besta, mas acho que sou mais barroco, coisa da oralidade nordestina. Walter Benjamin foi assaz incisivo ao afirmar, numa longínqua década de 30, que estamos todos perdendo a habilidade de narrar satisfatoriamente boas histórias. Trazendo essa teoria apocalíptica para o nosso jornalismo cotidiano, você acredita que teríamos como melhorá-lo, aperfeiçoarmos nós mesmos como mediadores sociais, por meio da relação Jornalismo-Literatura? Xico Sá – Ótima pergunta, ainda mais citando esse cara que amo que é o Walter Benjamin, aliás um dos caras que me influenciam em tudo, nessa coisa de tentar uma narrativa afetiva. Infelizmente os meios mais convencionais não

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sacaram que uma das saídas do jornalismo seria essa aproximação com a literatura. Preferem a chatice sempre, por isso que as tiragens despencam a cada mês. Acho que o jornalismo literário seria grande saída para enfrentar a concorrência da internet. Um dia eles vão atentar. Aliás, como você vê a relação polêmica entre o Jornalismo e a Literatura? Consegue atribuir ao jornalismo o título de subgênero, ou concordas com Alceu Amoroso Lima, que afirma que o jornalismo é, sim, um gênero literário? Xico Sá – O jornalismo é um gênero narrativo, mas anda muito pobre, mal escrito, burocrático. Então seria válido lançar mão de recursos estilísticos próprios da literatura no intuito tanto de ser o mais fiel possível à realidade, quanto de tornar a narrativa mais aprazível? Se sim, até que ponto podemos ousar, sem que para isso o teor jornalístico da narrativa esteja comprometido? Xico Sá – Até aquele exagero nas tintas dos noticiários policiais anda em falta. Anda tudo muito chato e nem por isso a coisa ainda mais real, menos mentirosa. As inexatidões, as falhas de informação e apuração são as mesmas... E embaladas num formato enfadonho. É isso mesmo, tem que lançar mão da ficção para contar bem as historias reais. Aliás, esse é o ponto: contar histórias. Xico, e observando essa nossa realidade frustrante, dá para chegar a conclusão de que o jornalista que se propor a mesclar jornalismo e literatura deve se considerar fora do mercado de trabalho, das grandes redações dos jornais? Nada mais lhe resta do que convites para freelas, escrever livros-reportagens, etc.? Xico Sá – Eu consegui furar um pouco esse bloqueio e viver disso por muita insistência e por uma coisa mais óbvia ainda: os leitores vibram quando sai uma coisa legal, mais ou menos acertada. Gostam, escrevem para as publicações, ai vinga. Minha transição foi assim: continuei fazendo umas coisinhas chatas pra sobreviver e fui atacando no paralelo com esses textos mais malucos. Hoje vivo só das coisas ditas mais malucas. Um caminho é essa transição, mas acho que quanto mais gente acertar na mão nesse jeito menos careta podemos fazer vingar novas e boas publicações. Paula, eu acredito mesmo nessa forma de narrar. Acho o formato dos jornalões mentiroso, falsamente sério. E em relação ao seu tom oras debochado, isso seria um reflexo de quê? O que você pretende dizer com ele? Você se considera um iconoclasta, ou isto estaria mais ligado ao fato de você ser um cara com opiniões fortes, politizado? Xico Sá – Tem um quê da fuleiragem nordestina, esse espírito mungangueiro que muitos de nós temos. E pra completar não levo mesmo a vida a sério. Faço com o maior profissionalismo, mas não sou obrigado a levar a sério e muito menos me levar a sério. É uma coisa meio anarquista mesmo. E como esse jeito despachado acaba reverberando na sua relação com as fontes? Tem gente por aí te odiando pela maneira como foi retratada por

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você em alguma reportagem ou isso não existe; as fontes tendem a não levar para o lado pessoal. Você teve retorno do Severino Cavalcante, por exemplo, depois que a reportagem “Jornal Nacional” foi publicada na Trip? Xico Sá – Tem gente que odeia. Um assessor do Severino me disse que ele ficou dizendo que eu era um doido, um maconheiro, só podia ser um maconheiro pra escrever esculhambado daquele jeito. Você viu o texto do Tom Zé que fiz na Rolling Stones? O que acontece é que quando o personagem é ótimo, fico até razoável também. Bom, e quanto a Jeany Mary Córner (personagem principal da reportagem “Programas de Governo”)? Achei a pauta genial. Foi idéia sua? Alias, você tende a propor as suas pautas ou os caras que costumam te convidar? Xico Sá – Sempre pensava em escrever sobre política a partir da putaria propriamente dita. É a melhor forma de narrar a política nacional. Eu mando sugestões, mas muitas vezes os caras também já associam alguns temas a mim e me pedem pra escrever. * A entrevista com o jornalista Xico Sá foi concedida no dia 1º de dezembro de 2006.