semiotica

Post on 16-Aug-2015

213 Views

Category:

Documents

0 Downloads

Preview:

Click to see full reader

DESCRIPTION

Semiotica

TRANSCRIPT

CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 1 Cadernos de Semitica Aplicada Vol. 8.n.2, dezembro de 2010 O EU E O OUTRO EM O ESPELHO, DE JOO GUIMARES ROSA ME AND THE OTHER IN THE MIRROR BYJOO GUIMARES ROSA Vera Lucia Rodella ABRIATA UNIFRAN Universidade de Franca RESUMO:IgnacioAssisSilva,emsuaobraFigurativizaoeMetamorfose:omitodeNarciso (1995),refletesobrearelaoentreomitodeNarcisoeaconstruodosujeitoemJacquesLacan. Segundo o autor, Freud e Lacan leem o Narciso ovidiano no como lenda, tal qual o liam os gregos e osromanos,mascomomito:comofigurativizaodaantropognesedosujeito.Combasenas observaesdeSilva,estabelecemosumaleiturasemiticaparaocontoOespelhodeJoo GuimaresRosa,objetivandoanalisarcomooenunciadorconstrideformamitopoticaoator protagonistadotexto,lendo-otambmcomofigurativizaodaantropognesedosujeitoemsua relao com o outro. PALAVRAS-CHAVE: Semitica Francesa; Ator; Mito; Antropognese do Sujeito. ABSTRACT:IgnacioAssisSilva,inFigurativizaoeMetamorfose:omitodeNarciso(1995), reflectsabouttherelationbetweenNarcissusmythandtheconstructionofthesubjectinJacques Lacan. According to the author, Freud and Lacan read the Ovidian Narcissus no more as a legend (as it seemed to be for the Greek and Romans), but as a myth: as a figurativization of the anthropogenesis ofthesubject.BasedonSilvasobservation,weestablishedasemiotics readingtotheshortstory The mirror, byJoo Guimares Rosa, aiming at analysing how the enunciator constructs in a myth poeticwaytheprotagonistactorofthetext,readinghimalsoasafigurativizationofthe anthropogenesis of the subjecthis relation with the other. KEYWORDS: French Semiotics; Actor; Myth; Anthropogenesis of the Subject. A enunciao enunciada: a proposio de contrato com o narratrio NasequnciainicialdotextorosianoOEspelho,haprojeodeum narrador,nopresentedaenunciao,pormeiodeumadebreagemenunciativa,quedialoga comumnarratrio,propondo-lhenarrarsuaexperinciacomespelhos.Nessedilogo,oeu revela-sedetentordeumconhecimentosobreespelhosqueoapartadorestantedoshomens, inclusivedonarratrio,cujosconhecimentoscientficossobreoassuntoelereconhece,mas faz questo de frisar que seu /saber/ diferenciado, pois se associa ao transcendental: Se quer seguir-me, narro-lhe; no uma aventura, mas experincia a que me induziram alternadamente, srie de raciocnios e intuies [...] O senhor, por exemplo,quesabeeestuda,suponhonemtenhaideiadoquesejana verdadeumespelho?Demais,decerto,dasnoesdafsicacomquese CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 2 familiarizou, as leis da ptica. Reporto-me ao transcendente. (ROSA, 1977, p. 61). O narrador se revela, portanto, um sujeito cognitivo, conjunto com um /saber/ secreto sobre espelhos e intenta manipular o narratrio a /querer-fazer/, ou seja, entrar tambm emconjunocomesseobjetomodal.Assim,inicialmenteconstriumaimagempositivaa seu respeito o senhor que sabe e estuda para, em seguida, avaliar veridictoriamente esse /saber/comoprecrio,ilusrio,poisestariarelacionadosomentecinciafsicaeno metafsica.Dessemodo,objetivamanipul-locomaintenodelev-loaentrarem conjuno com o /saber/ secreto, de carter transcendental, que afirma deter sobre o assunto, e que se prope revelar-lhe por meio do contar. O processo de transmisso do /saber/ do narrador para o narratrio se realiza de formagradual,pormeiodeumrelatoemqueaqueleentretecereflexessobreoator espelho, questionando sua natureza: O espelho, so muitos, captando-lhe as feies; todos refletem-lhe o rosto, e osenhorcr-secomaspectoprprioepraticamenteimudado,doquallhe doimagemfiel.Masqueespelho?H-osbonsemaus,osque favorecem e os que detraem; e os que so apenas honestos, pois no. E onde situar o nvel eo ponto dessahonestidade ou fidedignidade? Como queo senhor, eu, os restantes prximos, somos, no visvel? (ROSA, 197, p.61). Onarradorinvesteoatorespelhodopapelactancialdeumsujeito Destinadormanipuladorcujofazerpersuasivoseriaodetecerimagensacercadeumoutro sujeito, o ser humano, a figurativizado por o senhor, ns, os restantes prximos.O ator espelho definido, por sua vez, por meio de figurasgeneralizantes e indefinidascomomuitosetodos.Logoonarradormantmemestadodesegredo,de mistrio o conhecimento que detm sobre o assunto. No entanto propicia-nos estabelecer uma correlaometafricaentreoespelhoediversasoutrasfigurasquesemanifestamnotexto, taiscomofotografias,retratos,lentesdasmquinas,dadosiconogrficos,olhos. Elas corresponderiamadiferentesrevestimentosfigurativos para um mesmo papel actancial: odeumsujeitoDestinadormanipulador,cujopapelseriaodedotaroserhumanodeuma competnciailusriaum/saber/sobreseuserque,porserbaseadoemimagens,seria enganoso,daordemdo/parecer/,mas/no-ser/.Porconseguinte,oserhumano,namedida em que se deixasse manipular por imagens aceitando aquelas que o favoreceriam ou aquelas que o detrairiam estaria mergulhado numa iluso cognitiva, sobremodalizado por um /crer: saber-ser/. Enfatizandoaisotopiafigurativarelacionadaimagemilusria,o questionamentodonarradornoenunciadocomoqueosenhor,eu,osrestantesprximos somos, no visvel? recobre um dos temas implicitados no texto o do autoconhecimento do serhumanoqueseriaenganososebaseadoemimagensespeculares,advindasdooutro,seu espelho. Emoutromomentodotexto,comomesmoobjetivo,onarradordestacaa figura dos olhos: Eosprpriosolhos,decadaumdens,padecemviciaodeorigem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. [...] Os olhos, porenquanto,soaportadoengano;duvidedeles,dosseus,nodemim. (ROSA, 1977, p. 62). CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 3 Destaca-se a, a mxima Os olhos so a porta do engano, mediantea qual o narradoraludeaoenganoemqueincorreoserhumanoqueseidentificacomasimagens ilusrias.Assim,insinuaqueoserhumano,aomoldar-seaumavisosuapreestabelecida pelooutro,osmuitosespelhos,estariadotadodeumautoconhecimentomentiroso,deuma imagemsuaqueseriadaordemdo/parecer/,masdo/no-ser/,semrelaode correspondncia, por conseguinte, com a verdade.Aofinaldoprimeirosegmento,onarradorrevelaotemorquesempreo acometeu de enfrentar sua imagem no espelho temor que o acompanhara desde a infncia e o atribui superstio do homem do interior com quem se identifica: Sou do interior, o senhor tambm; nanossaterra,diz-se quenunca se deve olharemespelhoshorasmortasdanoite,estando-sesozinho.Porque, neles,svezes,emlugardenossaimagem,assombra-nosalgumaoutra medonha viso. Sou, porm, positivo, um racional, piso o cho a ps e patas. Satisfazer-mecomfantsticasno-explicaes?jamais.Que amedrontadora viso seria ento aquela? Quem o Monstro? (ROSA, 1977, p. 63). Recusando-se a crer no /saber/ da ordem do misticismo arcaico-popular sobre a naturezadaimagemmedonhafornecidapelosujeitoespelho,onarradordeclaranomais deixar-se manipular por ela. Entretanto, ao situar a incoatividade do estado tenso-disfrico de medo dos espelhos em sua infncia, o narrador aponta para a influncia inegvel que recebeu da cultura mstica do interior, espao de onde proveio, influncia que perdura at o presente. O efeito passional de medo, relacionado credulidade popular, por outro lado, teriaimpelidooeupretritoaumasobremodalizaopelo/dever-saber/,levando-oa automanipular-se para entender a causa desse temor.Nesse sentido, outra figura do texto a superstio fecundo ponto de partida para a pesquisa pode ser considerada uma catfora que prenuncia, em nvel de enunciao, a origem do programa narrativo por meio do qual o eu passouasemobilizar,nopretrito,paraaaquisiodeum/saber/sobreanaturezada medonhavisoe,somenteaoadquirirtalconhecimento,quepdejulgaressasimagens detratoras ilusrias, fantsticas no explicaes.Onarradorvai-sedesvelando,porconseguinte,umserconstitutivamente heterogneo,influenciadotantopelaculturaarcaico-popular,quantopeloconhecimentoda ordem da cincia.Afacetacultadonarradormanifesta-seconstantementenorelato,como podemos verificar, se nos reportarmos, por exemplo, referncia ao mito de Narciso que ele j explicitara em: Tirsias havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo no se visse ... Sim, so para se ter medo, os espelhos.(ROSA, 1977, p. 62). AoaludirsprediesdeTirsiasacercadopercursodevidadeNarciso,o narrador antecipa que tratar do tema do autoconhecimento do ser humano, fazendo aluso s implicaes narcsicas a ele relacionadas. Logo, ao levar o enunciatrio a refletir sobre os temas de sua histria pretrita, onarradorvaialongandoatemporalidadedaenunciao,oqueeleexplicita,pormeioda utilizaodometadiscurso.Convmnotar,nessesentido,aimportnciadesuaalusoao processonarrativoquesecorporificanoenunciadoAlongo-me,porm.Contava-lhe....Essaaviaqueeleencontrapararetardaraprojeodoenunciadoenunciadoemquesitua sua histria pretrita, o que ocorre na segunda sequncia do texto. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 4 Metamorfoses do eu pretrito: a busca da vera forma Esta sequencia inicia-se por uma debreagem temporal enunciativa em que h a revelaodonarradoracercadotemorqueoacometeuumdia,aosedarcontadesua alteridade, quando visualizou sua figura em dois espelhos: Foinumlavatriodeedifciopblico,poracaso.Eueramoo,comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ngulo propcio faziam jogo. E o queenxerguei, por instante, foi umafigura,perfil humano,desagradvel ao derradeirograu,repulsivo,senohediondo.Deu-menuseaaquelehomem, causava-medioesusto,eriamento,espavor.Eeralogodescobri...era eu, mesmo! [...] Desdea,comeceiaprocurar-meaoeupordetrsdomimtonados espelhos, em sua lisa, funda lmina, em seu lume frio. (ROSA, 1977, p. 63). Anusea,odio,osusto,oeriamento,oespavorsofigurasque manifestamosestadospassionaisdemedoedeangstiadosujeitoeu,responsveispela instaurao de uma crise interna em que ele se enredou, ao vislumbrar sua figura monstruosa no espelho. Nota-se,apartirda,arevelaodoprogramanarrativodebasedoeu,como actantedoenunciadooinciodeseupercursoembuscadoobjeto-valoridentidade manifestado em e Comecei a procurar-me ao eu por detrs do mim. Inconformado com a cisointernaqueelenoqueriaaceitareentender(/noquerer-ser/),oeucomeaarealizar vrios programas narrativos de uso, desejando libertar-se inicialmente dos aspectos que em si mesmo ele abominava e que a imagem no espelho refletia. Aumestadonarcsicodevaidadeedeconformidadeanteriorescomsua imagemsucedeu-se,pois,umestadodeinconformismodoeuperanteafiguradooutro,o desconhecido com o qual ele abruptamente se defrontou e que ele no pde aceitar. AssisSilva(1995,p.187,grifodoautor)observaquenafasedoespelhoda teoria lacaniana, o objetivo de Narciso de identificar-se com a imagem cuja beleza o fascina e imobiliza realiza uma alienao do desejo num objeto que est signado por uma valorizao que depende dos cnones estticos que o Outro (im)pe. Seria,pois,esseobjetivonarcisistaqueterialevadoosujeitoeuabuscaro eupordetrsdomimtonadosespelhos,atrsdaimagemperdidaqueoenvaidecia.O espelho, por sua vez, representando o outro, teria a funo de revelar ao sujeito que esse outro buscado seria um objeto faltante, evanescente, como afirma Silva (1985, p. 189). Conforme Laplanche e Pontalis (1998, p. 177), importante lembrar que a fase do espelho, na teoria lacaniana, relaciona-se constituio do primeiro esboo do ego. Nessa fase, a criana percebe na imagem do semelhante ou na prpria imagem especular, uma forma em que antecipa uma unidade corporal que objetivamente lhe falta, identificando-se com essa imagem.Afasedoespelhoquefariasurgirretroativamenteafantasiadocorpo fragmentado.Notratamentopsicanaltico,segundoosautores,v-se,porvezes,aparecera angstia de fragmentao por perda da identificao narcsica, e vice-versa. Seria, portanto, essa perda de identificao narcsica que teria passado a ocorrer com o eu pretrito.CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 5 Voltandotemporalidadedaenunciao,onarradorrefere-senovamenteao temadoautoconhecimento,dabuscadaidentidade,queestaria,noentanto,legadaao fracasso, na medida em que regida por um modelo que se associa ao ego ideal 1: Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais oumenosfalazpressuposto:ningumseachanaverdadefeio:quando muito,emcertosmomentos,desgostamo-nosporprovisoriamente discrepantes de um ideal esttico j aceito. Sou claro? O que se busca, ento, verificar,acertar,trabalharummodelosubjetivopreexistente;enfim, ampliar o ilusrio, mediante sucessivas novas capas de iluso. (ROSA, 1977, p. 64, grifo do autor). Desse modo, o narrador vai levando o narratrio a perceber os enganos em que se enredou oeu no pretrito em busca de suavera forma. Antecipa, assim, um /saber/ que ele demoraria muito tempo para adquirir: o saber sobre suas tentativas de resgatar aimagem narcsica que o envaidecia, relacionada ao ego ideal. Nesse sentido, sobremodalizado pelo /querer-saber/,osujeitoeuapoiou-seinicialmentenoDestinadormanipuladorcincia para a aquisio de sua vera forma: Eu,porm,eraumperquiridorimparcial,neutroabsolutamente.Ocaador domeuprprioaspectoformal,movidoporcuriosidade,quandono impessoal, desinteressada, para no dizer o urgir cientfico. Levei meses.Sim, instrutivos. (ROSA, 1977, p. 64). O narrador, entretanto, j declarara que seria intil buscar no outro as respostas paraoautoconhecimento.Seriaampliaroilusriomediantesucessivas,novascapasde iluso (ROSA, 1977, p. 64), de acordo com sua avaliao veridictria.Poroutrolado,valedestacarafiguraeueraumperquiridorimparcial, neutro absolutamente, que, aliada do urgir cientfico, delineia o percurso figurativo de buscadoautoconhecimento,porpartedoeu.Essepercursoseassocia,nonvelnarrativodo texto, s performances do sujeito eu, que iniciou um lento e gradativo processo de busca da modalidadedo/saber/sobreseuserpormeiodaobservaoedoenfrentamentodesuas imagensqueelepassouaperscrutarnosespelhos,objetivandoentend-lascombase inicialmente no conhecimento cientfico: Operavacomtodasortedeastcias:orapidssimorelance,osgolpesde esguelha,alongaobliquidadeapurada,ascontra-surpresas,afintade plpebras,atocaiacomaluzderepenteacesa,osngulosvariados incessantemente.Sobretudoumainembotvelpacincia.Mirava-me, tambm,emmarcadosmomentosdeira,medo,orgulhoabatidoou dilatado,extremaalegriaoutristeza.Sobreabriam-se-meenigmas.Se,por exemplo, em estado de dio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, odiorefluierecrudesce,emtremendasmultiplicaes:eosenhorv, ento, que, de fato, s se odeia a si mesmo. Olhos contra os olhos. Soube-o:osolhosdagentenotmfim.Selespairavamimutveisnocentro do 1 Laplanche e Pontalis (1998, p. 139) afirmam que o ego ideal, na teoria lacaniana, corresponde a uma formao essencialmentenarcsicaquetemsuaorigemnafasedoespelhoequepertenceaoregistrodoimaginrio.O texto em queFreud introduzo termo, segundo os autores,situa na origem da formao das instncias ideais da personalidadeoprocessodeidealizaopeloqualoindivduotemcomoobjetivoareconquistadoestadode onipotncia do narcisismo infantil. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 6 segredo. Se que de mim no zombassem, para l de uma mscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. (ROSA, 1977, p. 64). Nota-se, entretanto, que o aprender a no ver do sujeito eu relacionou-se paixodomedoqueoacometeueasuaincompetnciapara/poder-fazer/,ouseja,poder aceitar as componentes que herdara da natureza animal e, ao mesmo tempo, aprendera na sua relao com o outro. Onarradorrelataqueeleobtinhasucessonaempreitadadelibertar-seda facetaqueoabominava,eossujeitosdestinadoresdacompetnciado/saber-fazer/para tanto, foram, alm dos postulados da cincia, os oriundos da religio e da filosofia, em cujos mtodos ele tambm se apoiou: Mas, era principalmente nomodus de focar, na viso parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar no-vendo. Sem ver o que em meu rosto, no passava de reliquat bestial. [...]Edigo-lhequenessaoperaofaziareaisprogressos.Poucoapouco,no campo-de-vistadoespelho,minhafigurareproduzia-se-melacunar,com atenuadas,quaseapagadasdetodo,aquelaspartesexcrescentes.Prossegui. J a, porm, decidindo-me a tratar simultaneamente as outras componentes, contingenteseilusivas.Assim,oelementohereditrioasparecenascom ospaiseavsquesotambm,nosnossosrostos,umlastroevolutivo residual.[...]E,emseguida,oquesedeveriaaocontgiodaspaixes, manifestadasoulatentes,oqueressaltavadasdesordenadaspresses psicolgicas transitrias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa ideias esugestesdeoutrem;eosefmerosinteresses,semsequncianem antecedncia,semconexesnemfundura.(ROSA,1977,p.65,grifosdo autor). Assim,oeumobilizou-separaumasucessodefazeresqueolevaramauma gradual desreferencializao fsica, e da figura monstruosa inicial que ele vislumbrara no jogo deespelhos,suaimagemfoisetransformandoatqueelesedeparoucomsuafigura lacunar. Essas metamorfoses podem ser associadas ao tema da desumanizao, visto que aos poucos elefoi aprendendo a negartudo que emseu perfil lembravaa referncia aoanimal e ao humano.Nesse momento, novamente dominado pela paixo do medo, j que os fazeres quetinhamcomoobjetivolibert-lodooutroladodeseueuolevaramaadoecer,osujeito eu, manipulado por intimidao, resolveu abandonar por algum tempo o programa narrativo de anulao das partes excrescentes, o que se torna perceptvel no excerto: medidaquetrabalhavacommaiormestria,noexcluir,abstraireabstrar, meuesquemaperspectivoclivava-se,emformamendrica,amodosde couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como umaesponja.E escurecia-se. Por a, noobstanteoscuidados com asade, comecei a sofrer dores de cabea. Ser que me acovardei, sem menos? [...]. Degolpeabandoneiainvestigao.Deixei,pormeses,deolhar-meem qualquer espelho. (ROSA, 1977, p. 66). A deciso do sujeitoeu de abandonaros experimentos com espelhos ocorre ao final da segunda sequncia do texto, e o narrador, no presente da enunciao, manifesta a CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 7 dvida sobre o estado patmico de medo, de covardia em que se encontrou naquele momento passado em relao a tais experimentos. A assuno do eu heterogneo A terceira sequncia abre-se com uma reflexo do narrador acerca do papel do tempo.Depoisdemesesemquedesistiradeperseguiraveraforma,assustadocomo despojamentogradualdoscaracteresfsicos,queforaseoperandoemsuafigura,oeu, novamentesobremodalizadopelo/querer-saber/,voltouaolhar-senoespelhoedeparou-se com a total desfigura. Essatransformaodeestado,todavia,nofoiumaperformanceporele realizada, mas foi se processando sua revelia, com o passar do tempo: Mas com o comum correr cotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, sempretranquilo. E podeser, no menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia... Desculpe-me, no viso a efeitos deficcionista,inflectindodepropsito,emagudo,assituaes.Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e no me vi. No vi nada. S o campo, liso, s vcuas aberto como o sol, gua limpssima, disperso da luz, tapadamente tudo. Eu no tinha formas, rosto? Apalpei-me em muito. Mas,oinvisto.Oficto.Osemevidnciafsica.Eueraotransparente contemplador?... [...] Comque,ento,duranteaquelesmesesderepouso,afaculdade,antes buscada, por si, em mim se exercitara! Para sempre? [...] Tantoditoque,partindoparaumafiguragradualmentesimplificada, despojara-meaotermo,attotaldesfigura.Eaterrvelconcluso:no haveriaemmimumaexistnciacentral,pessoal,autnoma?Seriaeuum... des-almado? (ROSA, 1977, p. 66). Evidencia-seainda,nesseexcertodotexto,oinciodaaquisioda competnciaparaoautoconhecimentoporpartedoeu/saber-ser/queserelacionaaseu processo de conscientizao sobre a vacuidade existencial do ser humano, quando este deixa de considerar a importncia do outro na constituio de sua identidade. Para Lacan (1986, p.197-198): [...]nummovimentodebscula,detrocacomooutroqueohomemse apreendecomocorpo,formavaziadocorpo.Damesmaforma,tudooque estnelenoestadodepurodesejo,desejooriginrio,inconstitudoe confuso,oqueseexprimenovagidodacrianainvertidonooutroque eleaprenderareconhec-lo.Aprender,porquenoaprendeuainda, enquanto no colocamos em jogo a comunicao. [...] Antes que o desejo aprenda a se reconhecer [...] pelo smbolo, ele s visto no outro. Naorigem,antesdalinguagemodesejosexistenoplanodarelao imaginriadoestadoespecular,projetado,alienadonooutro.Atensoque ele provoca ento desprovida de sada. Quer dizer, no tem outra sada [...] seno a destruio do outro. Segundo o psicanalista francs (LACAN, 1986, p. 198), o desejo do sujeito s pode,nessarelao,confirmar-seatravsdeumaconcorrncia,deumarivalidadeabsoluta comooutro,quantoaoobjetoparaoqualtende:Ecadavezquenosaproximamos,num CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 8 sujeito,dessaalienaoprimordial,seengendraamaisradicalagressividadeodesejode desaparecimento do outro enquanto suporte de desejo do sujeito.Logo, o fazer a que se voltou o sujeito eu pode ser homologado a esse desejo dedesaparecimentodooutro.Todavia,aoeliminaroqueadveiodooutro,elesofreu metamorfoses que o levaram da figura, que ele inicialmente percebera monstruosa no espelho, para a total desfigura. O eu: uma nebulosa Naltimasequnciadotexto,ocorremoutrasmetamorfosescomoeuque tambm se relacionam ao processo de passagem do tempo: Poisfoique,maistardeanos,aofimdeumaocasiodesofrimentos grandes,denovomedefronteinorostoarosto.Oespelhomostrou-me. Oua.Porumcertotempo,nadaenxerguei.Sento,sdepois:otnue comeo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-seemdbilcintilao,radincia.[...]Queluzinha,aquela,quedemimse emitia, para deter-se acol, refletida, surpresa? [...] Pora,perdoe-meodetalhe,eujamava-japrendendo,istoseja,a conformidade eaalegria. E...Sim,vi,amimmesmo,denovo,meurosto, um rosto; no este que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto-quasedelineado,apenasmalemergindo,qualumaflorpelgica,de nascimento abissal... E era no mais que: rostinho de menino, de menos-que-menino,s.S.Serqueosenhornuncacompreender?(ROSA,1977,p. 68). Otrminodosofrimentodoeu,comosepodeobservarnoexcertoacima, deveu-seaquisiodecompetnciaparaamare,emconsequncia,para/poder-fazer/: aceitar-seheterogneo,oqueserevelaemOespelhomostrou-me.Queespelhoseriaesse seno o outro, que ele pde comear a aceitar e a amar?Assim,afiguradaluzinhaquedeleseemitiupodeserconsideradauma metfora que o narrador utiliza para revestir essa descoberta do sujeito. Ela se relaciona a sua percepo,depoisdemuitosofrimento,dequecomeara,enfim,areconhecer-sehomem humano (ROSA, 1976, p. 460).Portantoao/saber/ilusrio,associadoaumaautoimagemqueoeuimaginara positiva,homognea,predeterminadaequeserelacionava,pois,aseuegoideal 2 sobrepe-se a incoatividade do processo deaquisio do /saber/ verdadeiro sobre sua radical heterogeneidade. Logo, ao procurar um modelo subjetivo preexistente, o eu partiu da figura monstruosa que vislumbrara no espelho e, com seus programas narrativos relacionados aseu ladoracional,chegoutotaldesfigura.Poroutrolado,somenteaoadquiriracompetncia paraamarasimesmocomosujeitoextremamenteheterogneoe,portanto,paraaceitar 2LaplancheePontalis(1998,p.139,grifonosso)observamqueaexpressoegoideal,segundoLacan, pertence ao registro do imaginrio ese distinguedaexpresso ideal do ego, quecorresponde instnciada personalidaderesultantedaconvergnciadonarcisismo(idealizaodoego)edasidentificaescomospais, comseussubstitutosecomosideaiscoletivos.Enquantoinstnciadiferenciada,oidealdoegoconstituium modelo a que o indivduo procura conformar-se. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 9 tambmosoutrossereshumanosemsuaradicalheterogeneidade,mistrioeimperfeio que o eu pde ver-se novamente.Nessemomento,outrametamorfosequesofreuoeupretrito,equese manifestanotextopelafiguradorostinhodemeninoqueelevislumbrounoespelho, corresponde ao incio do processo de sua humanizao. importanteobservar,deacordocomLacan(1986,p.198),queos sofrimentos com os quais se defrontou o eu se relacionaram a seu desejo de fazer desaparecer ooutro,suportedeseudesejo.Masopsicanalistafrancsafirmaque,comoosujeitoest imerso no mundo do smbolo, num mundo de outros que falam, seu desejo suscetvel da mediaodoreconhecimento.ConvmaquicitarLacan(1986,p.198)novamente,para apreendermosarelaoqueseestabeleceentresuasreflexeseomomentoemqueoeuse reconhece outro e no outro: [...]Inversamente,cadavezque,nofenmenodooutro,algoapareceque permite ao sujeito reprojetar, recompletar, nutrir, como diz Freud em algum lugar, a imagem do Ideal-Ich, cada vez que se refaz de maneira analgica a assuno jubilatria do estdio do espelho, cada vez que o sujeito cativado porumdeseussemelhantes,odesejovoltanosujeito.Masvolta verbalizado. (LACAN, 1986, p. 198, grifo do autor). Nesse aspecto, que, para Lacan (1986, p. 166), o amor reabre aporta [...] perfeio. interessante enfatizar, ainda em relao ao excerto supracitado, a explicitao dotemadaradicalheterogeneidadedoserhumano.Onarradordirige-seaonarratrio, observando que ele, como sujeito da instncia da enunciao, j era um outro, que comeou a nascer,aconstruir-se,aperceber-sehumanonummomentopretrito,nomomentoemque pdeconformar-secomsuadiversidade,enfim,comseuinsondvelmistrio.Nopresente, porconseguinte,elejsesabeoutro.Daaimportnciadamenoquefazimagemdo meninonoespelho,explicandoaonarratrioqueelanomaiscorrespondiaasuaimagem presente.Evidencia-se,portanto,que,desuaperspectiva,oautoconhecimentoseriaum objeto-valorevanescente3,aserperseguidocontinuamenteaolongodatravessiadavidae nuncasemoldariasimagensideais,preconcebidas,oriundasunicamentedeum/saber/de ordem racional. Pelocontrrio, talconhecimentode nada lhe valeria se, paralelamente a ele, nohouvesseaaquisiodeoutracompetnciaconstrudainterna,progressivae continuamenteaolongodopercursoexistencial:acapacidadeparaamar-seeaceitar-se heterogneo,contraditrioe,apartirda,/poder-fazer/,ouseja,amareaceitarooutrocomo seu espelho igualmente heterogneo. Nesse sentido, vale ressaltar que, ao trmino do relato, o narrador volta-se para onarratrio,dirigindo-lhequestionamentossobreomistriodapersonalidadehumana,por meiodeenunciadosinterrogativoscomosquaisfinalizaosquatroltimospargrafosdo texto. Isso nos remete, enquanto enunciatrios, ao incio do texto. Ali o narrador se propusera narrarum/saber/decartertranscendentalacercadanaturezadosespelhos.Afinal,pode-se concluirqueesse/saber/relaciona-seconscientizaodoserhumano,acercadaradical 3AplicandoateorialacanianadafasedoespelhonaanlisequefazdomitodeNarciso,Silva(1995,p.195) observa,apartirdasreflexesdeVallejo,queOjequementaementeosujeitonegacomsuailusria unidade o lugar de uma ciso; funciona como mero suporte de uma carncia. Assim, como nas aulas de anatomia seobtm,pelasobreposiodetransparncias,umailusriaunidadedocorpohumano,asobreposiodos registros real, simblico e imaginrio produz esse efeito de integrao que a ilusria unidade do eu (je). CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 10 heterogeneidadeemistrioqueconstituiriamaessnciadeseuser,enfim,dequeoeu constitudodooutro,seuespelho.Explicita-se,dessaforma,aoenunciatrioqueavera forma,arduamentebuscadapeloeupretrito,aolongodeseupercursoexistencial, permaneceria uma nebulosa4. Convm mencionar aqui, conformeLacan (1986,p. 164), que o transcendente relaciona-se ligao simblica entre os seres humanos: O que a ligao simblica? [...] que socialmente ns nos definimos por intermdiodalei.datrocadesmbolosquenssituamosunsemrelao aos outros nossos diferentes eus [...]. Emoutrostermos,arelaosimblicaquedefineaposiodosujeito como aquele que v. a palavra, a funo simblica que define o maior ou menor grau de perfeio, de completude, de aproximao ao imaginrio. Dessaperspectiva,outro/saber/secreto,decartertranscendental,queo enunciadornospossibilitoudesvendarnoespelholingusticodeseutexto,relaciona-se relao especular que estabelece no texto com o mito.Observa-sequeoenunciador,emOespelho,simulaconstruiromito,no sentido em que o entendem Freud e Lacan, ou seja, como figurativizao da antropognese do sujeito.Naverdade,porm,oatoreufrutodalinguagemliterriaque,porsuavez, dialogatantocomanarrativadeOvdio5,quantocomoconceitodemitonosentido psicanaltico.Nessesentido,porconseguinte,queentendemosotextorosianocomo mitopotico. interessanteressaltaraobservaodeLacan(1986,p.164),quandoreflete sobreafunosimblicadapalavra,queimprimeaelaumcartertranscendental.Parao psicanalistafrancs,seriaessaafunoresponsvelpelomaiorgraudeperfeio,de completude,deaproximaodoimaginrioaquepoderamoschegar.Podemosassoci-laa uma tentativa de resposta a um questionamento do narrador, quando o eu pretrito se d conta de que sua identidade se constitua da alteridade: Ento,oquesemefingiadeumsupostoeu,noeramaisque,sobrea persistnciadoanimal,umpoucodeherana,desoltosinstintos,energia passionalestranha,umentrecruzar-sedeinfluncias,etudoomaisquena impermannciaseindefine?Diziam-meissoosraiosluminososeaface vazianoespelhocomrigorosainfidelidade.Eseriaassimcomtodos? Seramos no muito mais que as crianas o esprito do viver no passando dempetosespasmdicos,relampejadosentremiragens:aesperanaea memria. (ROSA, 1977, p. 67, grifo do autor). 4Umaretroleituradotextopossibilita-nosobservarqueonarradoranteciparatambmesse/saber/deforma cifrada ao narratrio, quando, ao referir-se quele que seria o programa narrativo de base do eu pretrito, utiliza-se do ditico essa no enunciado Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuo, a travisagem daquela mscara, afito dedevassar o ncleodessanebulosaaminhaveraforma. (ROSA, 1977, p. 64, grifo nosso). Ao aludir, no presente da enunciao, sua vera forma como uma nebulosa, ele antecipa ao narratrio, mais uma vez, um /saber/ que o eu, como sujeito do enunciado, demoraria para adquirir. 5 Nota-sequeo dilogo com a narrativa ovidiana seprocessa, no texto OEspelho, por meio deumarelao polmica, uma vez que o percurso do eu deste conto pode ser considerado um percurso narcsico s avessas. CASA, Vol.8 n.2, dezembro de 2010 http://seer.fclar.unesp.br/casa 11 Vale notaro encurtamento da distnciaque se processa nesse excerto entreo eu e o ns. angstiado eu quefigurativiza o ser humano frente conscincia da cisooriginria,memriainscritaemnossocorpo,reagimoscomaaspirao,aesperana deresgataracompletude,deacordocomateoriapsicanalticaquepareceressoarnasduas figuras em destaque. DeacordocomLacan,caberiapalavraconstruir,commaioroumenorgrau de perfeio, a ponte entre a esperana e a memria.A nosso ver, a palavra potica rosiana, namedidaemqueressemantizavaloresinscritosemdiscursosoutrosquepartilhamoscom nossa comunidade enunciativa, cumpre tal papel de modo radicalmente inovador. Referncias bibliogrficas LACAN, J. Os escritos tcnicos de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. (O Seminrio, livro1). LAPLANCHE,J.;PONTALIS,J.B.Vocabulriodepsicanlise.7.ed. SoPaulo:Martins Fontes, 1998. ROSA, J. G. Grande serto: veredas. 10 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1976. ______. Primeiras estrias. 10 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1977. SILVA, I. A. Figurativizao e metamorfose: o mito de Narciso.So Paulo: UNESP, 1995.

top related