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Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
Centro Sócio Econômico
Departamento de Ciências Econômicas
REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TÉCNICA E DIVISÃO INTERNACIONAL
DO TRABALHO: ELEMENTOS PARA A ANÁLISE DA DEPENDÊNCIA
TECNOLÓGICA NA AMÉRICA LATINA
DIÓGENES MOURA BREDA
Florianópolis, dezembro de 2011
4
DIÓGENES MOURA BREDA
REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TÉCNICA E DIVISÃO INTERNACIONAL DO
TRABALHO: elementos para a análise da dependência tecnológica na América Latina
Monografia submetida ao Departamento de Ciências Econômicas para obtenção da carga horária na
disciplina CNM 5420 – Monografia, como requisito
obrigatório para a aquisição do grau de Bacharelado.
Orientador: Prof. Dr. Nildo Domingos Ouriques
FLORIANÓPOLIS, 2011
5
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS ECONÔMICAS
A Banca Examinadora resolveu atribuir a nota 10 (dez) ao aluno Diógenes Moura
Breda na disciplina CNM 5420 – Monografia, pela apresentação deste trabalho.
Banca Examinadora:
-------------------------------------------------
Prof. Nildo Domingos Ouriques
--------------------------------------------------
Profª. Karine de Souza Silva
-------------------------------------------------
Prof. Rabah Benakouche
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AGRADECIMENTOS
Tive a possibilidade e tentei viver a universidade plenamente, ao contrário daqueles
que, por necessidade ou acomodação, passam os 5 anos da vida estudantil querendo apenas o
canudo de um título superior. É claro – e todos que por ali passaram o sabem – que não foi a
sala de aula o espaço onde mais aprendi. Minha universidade foi a universidade dos
descontentes, dos jovens que, percebendo a mutilação espiritual executada de maneira
cirúrgica pelos professores (com as eficientes armas das “chamadas” e dos currículos) nos
estudantes realmente interessados em desvendar os dilemas de seu tempo, buscaram construir
sua própria universidade. E fizeram-no traçando sua própria trajetória intelectual, cujos
desafios evidenciaram, mais cedo do que tarde, a necessidade da militância política, da luta
por uma universidade que tivesse como fundamento de existência a superação dos grandes
problemas de nosso povo: a “Universidade Necessária” do velho Darça. Afinal de contas, o
projeto intelectual desses jovens não se alimentava de caprichos pessoais. O que queriam – e
ainda querem, tenho certeza – era contribuir para a transformação do Brasil, colocar seus
braços e mentes a serviço da construção de um projeto popular de nação. Foram esses meus
verdadeiros professores, os quais me passaram suas “lições” nas verdadeiras salas de aula de
minha graduação: grupos de estudo, reuniões do CALE e do DCE, assembléias estudantis,
manifestações de rua, festas e mesas de bar. Ressalvas feitas, vamos aos agradecimentos...
Gostaria de agradecer: aos meus pais, Ana Maria e Nestor, por me terem dado a
possibilidade de dedicação integral aos estudos nesses anos em Florianópolis e,
principalmente, pelo apoio incondicional à decisão de trocar um futuro brilhante e frustrante
como engenheiro de automação pelas sinuosas veredas da carreira de intelectual militante. Ao
meu irmão Fausto, fonte de inspiração, mesmo que nutrida em silêncio pelas rusgas de nossas
divergências no ME. Aos inesquecíveis amigos e companheiros de vida, Luana, Fernandinho,
Jojô, Pietro-Pióta, Gerson-Pióta, Anninha, Carol... por serem minhas “musas inspiradoras” (!)
e os grandes responsáveis pela metamorfose do “colono de São Miguel” nestes 7 anos em
Florianópolis. À Júlia, pela bela surpresa, sentimento e apoio nos meses derradeiros e
cavernosos da monografia. Aos camaradas do Coletivo 21 de junho e das Brigadas Populares,
os “mil olhos” de minha militância, fonte de ousadia e aprendizado. É um orgulho construir
uma organização com pessoas tão brilhantes como vocês. Aos companheiros do DCE e do
CALE, espaços onde vivi os mais preciosos anos de universidade. Sigamos criando o novo!
7
Ao mestre (não se trata de um professor...) Nildo Ouriques, pela amizade, orientação e por ter
aberto os caminhos que me levaram à América Latina como utopia a ser construída
cotidianamente.
E a todos os amigos com quem, neste tempo, compartilhei uma roda de um bom mate
amargo ou uma mesa bar,
Muito obrigado.
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“Lo que hace un hombre es como si lo hicieran todos los hombres.”
Jorge Luis Borges, Ficciones, 1944.
“... dedicarse a transformar prácticamente el mundo, única manera de estar a la altura del
estádio científico de la humanidad.”
Ludovico Silva, Anti-manual,1979.
9
RESUMO
A bibliografia sobre ciência e tecnologia é atualmente abundante nas Ciências Econômicas.
Todavia, percebe-se a ausência de uma compreensão mais profunda do papel da ciência e de
suas aplicações na dinâmica da acumulação capitalista em escala mundial. O objetivo deste
trabalho é o formular um marco conceitual adequado para o estudo da dependência
tecnológica na América Latina contemporânea, a partir das transformações ocorridas nas
forças produtivas a partir das primeiras décadas do século XX – período no qual tem início a
Revolução Científico-Técnica – e seus impactos sobre a Divisão Internacional do Trabalho,
por meio de uma revisão bibliográfica dos autores que têm abordado o tema, seguido de uma
análise dos principais indicadores de produção de C&T no mundo. De maneira geral, a
recuperação do capitalismo mundial a partir da década de 1950 consolidou uma Nova Divisão
do Trabalho, operando uma profunda cisão entre os níveis de desenvolvimento técnico-
científico entre os países centrais e os países dependentes, no qual cabe àqueles o monopólio
das etapas mais avançadas da produção científica. No que diz respeito à América Latina, tal
processo ocorre no momento de esgotamento da primeira etapa do processo de
industrialização. A opção da burguesia nacional pelo desenvolvimento associado aos grandes
monopólios internacionais sedimenta a dependência econômica e tecnológica da região.
Palavras-chave: Revolução Científico-Técnica, Divisão Internacional do Trabalho,
dependência, América Latina.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
C&T Ciência e Tecnologia
P&D Pesquisa e Desenvolvimento
NDIT Nova Divisão Internacional do Trabalho
NFS National Science Foundation - EUA
OCDE Organização das Nações Unidas para cooperação e desenvolvimento econômico
RCT Revolução Científico-Técnica
UNESCO Organização das Nações Unidas para educação, ciência e cultura
WIPO World Intelectual Property Organization
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SUMÁRIO
1. TEMA E PROBLEMA ................................................................................................ 4
1.1. Introdução ................................................................................................................... 4
1.2. Objetivos ..................................................................................................................... 6
1.2.1. Objetivo geral .......................................................................................................... 6
1.2.2. Objetivos específicos ............................................................................................... 6
1.3. Justificativa ................................................................................................................. 6
1.4. Metodologia ................................................................................................................ 8
2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ............................................................. 9
2.1. A ciência da histórica: materialismo histórico e método dialético .............................. 10
2.2. Ciência, Técnica e Tecnologia: desvelando os conceitos ............................................ 16
3. A CIÊNCIA COMO FORÇA PRODUTIVA: O SURGIMENTO E A CONSOLIDAÇÃO
DA RCT NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO ..................................................................21
3.1. Ciência, tecnologia e a grande indústria moderna ...................................................... 26
3.2. A consolidação da Revolução Científico-Técnica ...................................................... 32
3.2.1. A mudança na dinâmica das forças produtivas ....................................................... 32
3.2.2. A ciência como investimento: aspectos gerais da RCT no capitalismo monopolista 36
3.2.3. Ciência como investimento: o Estado na era da RCT ............................................. 41
3.2.4. RCT e o emprego ................................................................................................... 44
4. REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TÉCNICA E PAÍSES DEPENDENTES ...........................46
4.1. Divisão Internacional do Trabalho, imperialismo e dependência ................................ 49
4.2. Nova Divisão do Trabalho e dependência tecnológica ............................................... 59
4.2.1. Os efeitos da NDIT sobre a C&T nos países dependentes....................................... 65
5. RCT e NDIT: ALGUMAS CIFRAS ...................................................................................68
5.1. Investimentos globais em P&D.................................................................................. 68
5.2. Número de cientistas e engenheiros dedicados à P&D ............................................... 69
5.3. Concentração da produção nos setores de alta tecnologia ........................................... 70
5.4. Pesquisa e Desenvolvimento nas multinacionais estadunidenses ................................ 71
5.5. Pesquisa Básica, Pesquisa Aplicada e Desenvolvimento ............................................ 71
5.6. Produção de patentes no mundo................................................................................. 73
12
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ESTUDO DA C&T NO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO .....................................................................................................................75
7. REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 81
4
1. TEMA E PROBLEMA
1.1. Introdução
A presença da ciência e da tecnologia na vida contemporânea é uma realidade
percebida pelo olhar menos atento. Bilhões de seres humanos reproduzem sua existência
diária com o auxílio dos mais modernos “produtos tecnológicos”, de maneira tão familiar
como antigamente os primeiros homo sapiens empunhavam suas rudimentares ferramentas
para sobreviver. Aparelhos celulares, computadores, sistemas inteligentes de controle, robôs
industriais, localizadores via satélite, produtos geneticamente modificados... se nos
apresentam em quantidades cada vez maiores e com tamanha rapidez evoluem que mal temos
tempo para deslumbrar-nos com as novas “descobertas da ciência”. “Vivemos em uma era
tecnológica!”, dizem-nos os cientistas, os engenheiros e os CEOs das grandes companhias de
tecnologia. A tecnologia aparece, assim, como uma “coisa”, um organismo dotado de vida
própria, autônomo, em constante desenvolvimento e cujos frutos são irremediavelmente
identificados com o progresso da humanidade em geral.
Tal mistificação tem sua razão de ser: a apologia do desenvolvimento tecnológico e
sua identificação com um suposto progresso humano em geral esconde as abissais assimetrias
existentes entre o restrito número de países e empresas que monopolizam a produção de C&T
e que dela extraem vultuosos lucros, restringindo, ao mesmo tempo, o desenvolvimento
tecnológico autônomo dos demais países. Ora, a ciência e a tecnologia não “se produzem” a si
mesmas e “se distribuem” livremente pela sociedade: quem as produz e as coloca em
movimento são os homens, sobre a base de determinadas relações sociais. Se não, como
justificar o abismo entre o atual desenvolvimento científico das nações? Como explicar a
contradição entre a enorme produtividade do trabalho alcançada nos dias de hoje com a
pobreza em que vivem 2 bilhões de pessoas? Por que, apesar da automação e da robótica
industrial, continua-se com uma jornada de trabalho de oito horas diárias?
As contradições entre as promessas e os resultados do progresso científico apresentam
um problema a ser desvendado, tarefa que só o estudo do desenvolvimento histórico da
ciência e da técnica pode assegurar boas pistas para levá-la a termo. A fase de extrema
velocidade das descobertas da ciência é, ela mesma, recente: até a última metade do século
5
XIX, a atividade científica era ofício de poucos indivíduos, toscamente organizada,
desvinculada da produção. A computação doméstica e a automação industrial se
generalizaram há menos de 50 anos. O que possibilitou, então, seu rápido avanço a partir do
século XX?
Com relação à posição retardatária dos países periféricos na corrida pelo domínio da
C&T, seria irresponsabilidade afirmar que não se tenha conhecimento do problema. Pelo
contrário. No Brasil, por exemplo, economistas, engenheiros e representantes de entidades de
classe gastam tinta semanalmente nos jornais de circulação nacional na tentativa encontrar
soluções à baixa “tendência de inovar” de nossas empresas, não obstante as políticas públicas
de incentivo à pesquisa e desenvolvimento existentes no país. Opiniões divergentes a parte,
todo estão de acordo – inclusive nós: ainda estamos muito distantes dos indicadores de C&T
dos países centrais. Qual o fundamento de tal atraso?
Para tentar responder às perguntas acima, seguiremos o caminho aberto pelas obras de
Radovan Richta (1972) e Theotonio dos Santos (1983; 1986, 1987) sobre a Revolução
Científico-Técnica, conceito com que caracterizam as transformações científicas e
tecnológicas no capitalismo a partir do século XX. As melhores formulações sobre as
conseqüências de tal processo nos países latino-americanos foram feitas, a nosso juízo, pelos
representantes da teoria marxista da dependência, especialmente por Ruy Mauro Marini e
Andre Gunder Frank, dos quais extrairemos nossos argumentos centrais na segunda parte do
trabalho.
Por fim, uma advertência. Vemos neste trabalho apenas o início de um programa de
pesquisa sobre a questão tecnológica na América Latina. A complexidade do tema exigirá
futuramente uma série de estudos teóricos e empíricos ora obstaculizados pelas limitações do
autor, que assume inteira responsabilidade pelas conclusões aqui defendidas.
6
1.2. Objetivos
1.2.1.Objetivo geral
Resgatar os estudos sobre a Revolução Científico-Técnica e a Divisão Internacional do
Trabalho como fundamentos para a elaboração de um marco teórico e conceitual do problema
da dependência tecnológica dos países latino-americanos no século XXI.
1.2.2.Objetivos específicos
i. Realizar a revisão bibliográfica dos principais autores que trataram do conceitos de
Revolução Científico-Técnica e Divisão Internacional do Trabalho dentro da
tradição da teoria marxista da dependência;
ii. Comparar, através de indicadores sobre pesquisa científica e tecnológica, as
diferenças entre os países centrais e os países latino-americanos, especialmente o
Brasil, no sentido de confirmar ou rechaçar as teses apresentadas no ponto i.
1.3. Justificativa
O estudo do tema justifica-se por dois motivos. Em primeiro lugar, escasseiam no
atual debate sobre o desenvolvimento latino-americano e brasileiro as questões relativas ao
desenvolvimento tecnológico a partir de uma visão da posição do país na Divisão
Internacional do Trabalho, cujas transformações operadas nos últimos 50 anos não podem ser
minimizadas. Via de regra, a maioria dos ensaios sobre o tema restringem sua análise à
questão da “inovação”: à procura dos porquês do medíocre nível de investimento em C&T
pelo empresariado brasileiro e ao debate sobre as políticas públicas mais adequadas ao
7
estímulo da inovação. Em que pesem os esforços empreendidos, pouco se tem avançando em
termos concretos na superação do atraso tecnológico de nossos países. Aqui, coadunam-se
dois fatores: o pragmatismo burguês, que vê nas “políticas de inovação” não mais do que uma
fonte de recursos públicos para elevação de sua taxa de lucros; e a incompreensão, por parte
dos setores críticos, da dinâmica da produção de ciência e tecnologia na sociedade capitalista
contemporânea, onde a inovação é apenas a ponta de um volumoso iceberg de investimentos
estatais e privados destinados à C&T e estruturados em complexos sistemas nacionais de
ciência e tecnologia cuja coordenação realiza o capital monopolista de Estado. A resposta aos
desafios de superação do atraso científico dos países dependentes é uma complexa tarefa que
deve, necessariamente, ter seu início na formulação de um marco teórico adequado para a
compreensão da questão científica e tecnológica no capitalismo contemporâneo para,
posteriormente, debruçar-se sobre manifestação daquelas tendências em situações concretas.
Em segundo lugar, no campo marxista, o estudo da Revolução Científico-Técnica ou,
mais especificamente, de uma economia política da ciência e da tecnologia perdeu vigor a
partir dos anos 80. É nas obras do brasileiro Theotonio dos Santos onde encontramos o maior
avanço relativo do debate, sobretudo nos ensaios Forças Produtivas e Relações de Produção
(1986), Revolução Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo (1983) e Revolução
Científico-Técnica e Acumulação de Capital (1987). Duas obras posteriores do autor,
justamente as que abordariam os temas de transferência de tecnologia e dependência
tecnológica, não vieram à luz, sem motivo aparente. Por entendermos que foi esta linha de
pesquisa a que mais avançou, no seu tempo, na análise do objeto de pesquisa que nos
interessa – deixando, ao mesmo tempo, um campo aberto a pesquisas posteriores –, julgamos
fundamental a recuperação de seus estudos, cuja precisão reside, a nosso ver, na correta
apreensão do método de Marx e no rico tratamento empírico com que fundamenta suas teses.
8
1.4. Metodologia
Os objetivos específicos explicitados acima impelem o avanço do trabalho em duas
direções: a revisão bibliográfica e a pesquisa empírica. A revisão bibliográfica consistirá na
recuperação do debate sobre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho e sua
relação com as respectivas relações de produção surgidas de distintos estágios das sociedades
humana. Neste sentido, recorrer-se-á aos escritos de Karl Marx sobre o tema – ainda que o
autor não tenha se dedicado a elucidar esta questão em uma obra orgânica –, bem como a
diversos autores do pensamento marxista que o abordaram. Aqui, o êxito da pesquisa
dependerá de uma elucidação preliminar do método em Marx, passo necessário para a ligação
teórico-metodológica coerente ao longo do texto.
Posteriormente, trataremos do impacto da RCT sobre os países dependentes,
particularmente sobre a América Latina. Para tanto, realizaremos uma breve recuperação
histórica da inserção da região no desenvolvimento capitalista mundial e as formas
particulares que tomou este vínculo nas principais etapas históricas de seu desenvolvimento.
Serão particularmente úteis nesta etapa do trabalho as contribuições de Ruy Mauro Marini e
Andre Gunder Frank.
Por fim, confrontaremos as principais teses da Revolução Científico-Técnica e da
Divisão Internacioal do Trabalho através de uma pesquisa de indicadores relativos à produção
científica e tecnológica de países e empresas. Recorreremos, como fonte, às bases de dados da
National Science Foundation dos Estados Unidos; da WIPO – World Intellectual Property
Organization; da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico; e
da UNESCO – Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.
9
2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Ao cientista é dada a complexa e excitante tarefa de descobrir os “mistérios da
realidade”, seja ela natural ou social. Para levá-la a termo, o indivíduo se arma com o
conjunto dos conhecimentos que a humanidade já desenvolveu e com os instrumentos
peculiares ao “ramo” da ciência do qual faz parte: utiliza microscópios, termômetros,
balanças, computadores, calculadoras, a capacidade de abstração1, etc. Tais conhecimentos e
instrumentos só são úteis, porém, na medida em que são aplicados ao “objeto desconhecido”
de acordo com um determinado método, de uma maneira particular utilizada para desvendá-
lo.
Ora, mas se o método científico é maneira pela qual o cientista se acerca à realidade
para desvendá-la, sua aplicação deve, necessariamente, guardar alguma relação com a
realidade mesma, deve estar de acordo com “a estrutura da realidade”, com seu
funcionamento, com sua dinâmica: deve andar de mãos dadas com a realidade em seu
movimento2. Caso contrário, a utilização do método não servirá para desvendar a realidade do
objeto pesquisado, mas para mistificá-la, encobri-la ainda mais. Portanto, o pressuposto do
método é a concepção que se têm da realidade, é a resposta à pergunta: o que é a realidade?
Pois bem, o assunto é espinhoso e, por não termos as armas necessárias para enfrentá-
lo sem sairmos de lá feridos (ou não sairmos mais!), não seguiremos por esta vereda.
Restringiremos o debate metodológico ao tema que aqui desenvolveremos: a ciência e a
tecnologia, mas estas em sua relação com a sociedade ou, melhor dito, a forma pela qual se
articula o desenvolvimento das sociedades humanas e o progressivo conhecimento que o
homem tem da natureza e de si mesmo na relação com outros homens (ou seja, vivendo em
sociedade). Estamos, portanto, no âmbito das ciências sociais, do estudo do homem em
sociedade, do desenvolvimento histórico dos homens em sociedade: falaremos de realidade
social. Mas podem a ciência e a tecnologia serem assim consideradas,
“indiscriminadamente”, como um mero elemento da realidade social, assim como o Estado, as
1 “[...] na análise das formas econômicas, não se pode utilizar nem microscópio nem reagentes químicos. A
capacidade de abstração substitui esses meios.” (MARX, 2006, p. 16). 2 “O mais elementar conhecimento sensível não deriva em caso algum de uma percepção passiva, mas da
atividade perceptiva. Todavia [...], toda teoria do conhecimento se apóia, implícita ou explicitamente, sobre uma
determinada teoria da realidade e pressupõe uma determinada concepção da realidade mesma.” (KOSIK, 2002,
p. 54).
10
leis, a formas de propriedade, as classes sociais, etc.? Não são elas entidades à parte, que se
desenvolverão segundos suas próprias leis, seja qual for a forma sociedade em que estiverem?
É o que este capítulo se propõe a responder, ainda que de maneira geral.
Cabe, ante, uma advertência. O escopo deste trabalho impede um debate profundo
sobre o método nas ciências sociais, cuja bibliografia é extensa e complexa. Assumiremos o
ponto de vista de Marx em sua concepção de história, que é a base sobre a qual se constrói o
edifício de seu método dialético. Tal escolha não é, de modo algum, arbitrária: se o fazemos é
por compartilharmos dos fundamentos sobre os quais este grande intelectual explicou, como
ninguém até o presente tempo, a dinâmica das sociedades humanas, principalmente a
dinâmica da sociedade capitalista.
2.1. A ciência da histórica: materialismo histórico e método
dialético
Comecemos, pois, pela realidade social. Mas nos poderiam questionar: qual realidade
social? De que época histórica? De que região, de que país? Estes questionamentos
pressupõem um elemento que é imediatamente visível a um observador atento: o caráter
historicamente mutável da realidade social, das sociedades humanas, seu eterno movimento
em transformação, mesmo que os representantes das classes dominantes ao longo da história
afirmassem o caráter definitivo, imutável, das sociedades cujo poder exerciam.
Se o elemento comum a todas as sociedades humanas – e a todas as realidades sociais
já existentes – é seu caráter transitório, seu ciclo finito de existência, a única forma de
conhecermos cientificamente (em suas reais determinações e mecanismos de
desenvolvimento) uma realidade social é respondendo de outra maneira à pergunta: o que é
realidade? “No que toca a realidade social, é possível responder a tal se ela é reduzida a uma
outra pergunta: como se cria a realidade social?” (KOSIK, 2002, p. 53). O próprio Marx, em
seu tempo3, colocou-se este questionamento e tratou de respondê-lo da seguinte forma: a
realidade social é produto da atividade dos homens, ao longo da histórica, na produção e
3 No período em que trabalhou como redator da Gazeta Renana, Marx viu-se em apuros para tomar parte na
discussão sobre os “interesses materiais”, particularmente sobre as decisões do Parlamento sobre o roubo de
madeira e parcelamento da propriedade fundiária. A partir deste problema é que o grande pensador empreendeu
uma longa para desvendar a “anatomia da sociedade burguesa”. (MARX, 1982, p.24-25).
11
reprodução material de sua existência. Estamos diante de uma teoria geral da história4, cujo
fundamento é a atividade humana sensível, a praxis concreta dos homens ao longo da história.
Vejamos a definição do autor com mais atenção, para que não nos acusem de aceitá-la
como um dogma. O primeiro pressuposto de Marx são os homens produzindo e reproduzindo
em sociedade sua existência. Pero, ¡ojo! A premissa, ou pressuposto, de que parte Marx neste
caso – assim como é o caso de todas as premissas de que parte em sua teoria – não são
simples produtos de seu intelecto, escolhidos ao capricho. São, ao contrário, pressupostos
empíricos, verificáveis historicamente:
Os pressupostos com os quais começamos não são dogmas arbitrários nem dogmas, são pressupostos reais, dos quais se pode abstrair apenas na imaginação. Eles são os
indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto as encontradas
quanto as produzidas através de sua própria ação. Esses pressupostos são
constatáveis, portanto, através de um caminho puramente empírico. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 41).
De fato, como elucida o próprio autor, a primeira forma de existência do homem é sua
organização corpórea, meio pelo qual elabora seus comportamentos com relação ao resto da
natureza com a finalidade de extrair dela seus víveres, produzindo posteriormente seus meios
de vida que lhe proporcionarão, de maneira progressiva, maior capacidade de domínio da
natureza e de sua transformação intencional. Produzirá, assim, além de sua existência
biológica, sua maneira de relacionar com o mundo exterior e consigo mesmo, seu modo de
vida, sua própria vida material.
A maneira como os homens produzem seus meios de vida depende, acima de tudo,
da própria natureza destes meios, com os quais se defrontam e que procuram
reproduzir. Este modo de produção não deve ser unicamente considerado como
reprodução da existência física dos indivíduos. Trata-se antes de um modo
específico de atividades destes indivíduos, um determinado modo de vida. E tal
como manifestam este modo de vida, assim são. Por conseguinte, o que eles são
coincide com suas produções, com o que produzem e com o modo como produzem.
4 “A noção chave para entender o sistema de Marx é a noção de história; sua teoria é uma teoria da história, da
evolução dos seres humanos no curso de sua atividade para produzir sua vida. E esta teoria foi desenvolvida
segundo um método dialético, método que jamais foi utilizado por Marx para explicar „as leis gerais do
universo‟, mas para explicar concretos fenômenos históricos, muito em especial o fenômeno do modo de
produção capitalista” (SILVA, 1979, p. 178, tradução nossa).
12
Portanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais de suas
produções. (MARX;ENGELS apud DOS SANTOS, 1986, p. 14).
Continuemos aprofundando a questão no caminho da argumentação de Marx. O
“modo como produzem” sua existência – ou o modo de produção - em um determinado
período histórico da existência humana determina o que são os homens. Tal modo de
produção, por sua vez, depende da maneira pela qual os homens se apropriam da natureza
para extrair os elementos indispensáveis à sua vida, maneira essa que é função da capacidade
do homem dominar a natureza através de seu trabalho em cada período da história humana,
cujo caráter cumulativo nos permite falar em grau de desenvolvimento das forças produtivas.
À medida, portanto, em que desenvolvem as forças produtivas, os homens desenvolvem os
meios de produção para sua existência – seus meios de trabalho –, aumentando a
complexidade da produção, estabelecendo para tal determinadas relações de produção entre
si, através da divisão do trabalho, das formas de intercâmbio, das relações de propriedade:
conformam uma determinada estrutura econômica.
Observemos que se trata de uma relação de determinação, uma relação de
“precedência lógica, causal, histórica e material” (DOS SANTOS, 1986, p. 29) das forças
produtivas sobre o conjunto das relações de produção. Marx sintetiza assim a questão, na sua
Introdução à Crítica da Economia Política:
[...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que
correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas formas
produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura
econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura,
jurídico e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de
consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral
de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o
seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX,
1982, p. 25).
Muitas deformações tem sofrido tal passagem, elevando o que se chamou de
superestrutura a um compartimento da vida social, separado e influenciado desde fora pela
13
estrutura econômica5. Mas Marx nunca dividiu a sociedade em compartimentos autônomos.
Pelo contrário, vimos que o caráter materialista de sua teoria geral da história não
desemboca em um todo caótico, em que as partes se movimentam autonomamente segundo
seus caprichos. O que existe é uma relação de determinação que estrutura a realidade social
como totalidade. Chegamos, assim, à essência do método de Marx: “o ponto de vista da
totalidade” (SILVA, 1979, p. 195).
A totalidade como princípio metodológico de conhecimento da realidade não é o
conhecimento de todos os fatos, possibilidade que o conhecimento humano nunca realizará,
“[...] pois é possível acrescentar, a cada fenômeno, ulteriores facetas e aspectos, fatos
esquecidos ou ainda não descobertos” (KOSIK, 2002, p. 43) de maneira que, operando sobre
esta lógica, poderia-se afirmar a não-concreticidade do conhecimento. Para o marxismo,
totalidade tem outro significado:
Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade
como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes
de fatos, conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular
todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em
seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da
realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético – isto é, se não são
átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia
constituída – se são entendidos como partes estruturais do todo. (KOSIK, 2002, p.
44).
A esta altura da argumentação, já possuímos os elementos fundamentais para definir
sinteticamente a concepção materialista do desenvolvimento das sociedades humanas,
fundamento primeiro desta monografia: os homens, ao produzirem sua existência, o fazem de
acordo com um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade
que, por sua vez, criam e determinam as relações de produção e o edifício ideológico
correspondente e àquele grau6, conformando assim uma determinada estrutura social como
5 O venezuelano Ludovico Silva mostra, ao contrário, que Marx nunca usou os termos “base” e “superestrutura”
como conceitos, mas como simples analogia. Ao contrário, “[...] abundam suas explicações teóricas sobre a
estrutura da sociedade [...], e isso se deve a que a estrutura não era para Marx uma metáfora, mas um concreto
conceito epistemológico.” (SILVA, 1979, p. 107, tradução nossa). 6 “A observação empírica tem de, necessariamente, provar empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou
especulação, em cada caso concreto, a relação existente entre a estrutura social e política e a produção. A
estrutura social e o Estado brotam constantemente do processo de vida de determinados indivíduos; mas esses
indivíduos tomados não conforme possam se apresentar ante a imaginação própria ou alheia, mas sim como tal
realmente são, quer dizer, como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas
14
totalidade concreta. Como fruto, em última instância, da atividade humana sensível dos
homens sobre a realidade – em constante movimento, portanto –, a totalidade não é um todo
recheado com o conteúdo das partes, fixado, inerte. A totalidade se cria não só criando o
correspondente conteúdo, mas, ao criá-lo, recria-se a si mesma, (re)transforma-se como
totalidade concreta7.
Esta concepção da história consiste, pois, em expor o processo real da produção, partindo,
para tanto, da produção material da vida imediata, e do ato de conceber a forma de
intercâmbio correspondente a este modo de produção e engendrada por ele, quer dizer, a
sociedade civil em suas diferentes fases, como o fundamento de toda a história,
apresentando-a em sua ação como Estado e explicando a partir dela todos os diferentes
produtos teóricos e formas de consciência, a religião, a filosofia, a moral etc., assim como
estudando, a partir dessas premissas, seu processo de nascimento, coisa que,
naturalmente, permitirá expor as coisas em sua totalidade (e também, por isso mesmo, a interdependência entre esses diversos aspectos). Esta concepção, diferentemente da
idealista, não busca uma categoria em cada período, mas se mantém sempre sobre o
terreno histórico real; não explica a prática partindo da idéia, mas explica as formações
ideológicas sobre a base da prática material, através do que chega, conseqüentemente,
também ao resultado de que todas as formas e todos os produtos da consciência não
podem ser destruídos por obra da crítica espiritual, mediante a redução à
“autoconsciência” ou à transformação em “fantasmas”, “espectros”, “visões” etc., mas tão
somente podem ser dissolvidas com a derrocada prática das relações sociais, das quais
emanam essas quimeras idealistas – de que a força propulsora da história, inclusive a da
religião, da filosofia e a de toda a teoria, não é a crítica, mas sim a revolução.” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 62).
Resta, porém, um último passo na concepção materialista da história: o método
dialético aplicado por Marx. Não basta afirmar que a realidade social apresenta-se como
totalidade concreta em constante criação segundo a determinação material da práxis humana;
é preciso desvendar as formas pelas quais esta totalidade se desenvolve, a direção de seu
desenvolvimento. A explicação da realidade tal qual se desenvolve (e, portanto, tal qual ela
é)8 “[...] não [pode se dar] mediante a redução de algo diverso de si mesma, mas explicando-a
com base na própria realidade, mediante o desenvolvimento e a ilustração de suas fases, dos
momentos de seus movimento” (KOSIK, 2002, p. 35). Em outras palavras, para possuir
atividade sobre determinados limites, premissas e condições materiais independentes de seu arbítrio.”
(MARX;ENGELS, 2007, p. 47). 7 “O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos „reais‟ fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem
uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das idéias platônicas; ao invés, é
um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o
próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante
secularizada do paraíso, de um estado já e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o
indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem.” (KOSIK, 2002, p. 23). 8 “[...] conhecer a substância [...] significa conhecer as leis do movimento da coisa em si. A „substância‟ é o
próprio movimento da coisa ou a coisa em movimento.” (KOSIK, 2002, p. 34).
15
validade científica, o método deve reproduzir espiritualmente (mentalmente, como abstração),
o movimento da realidade mesma.
Para Marx, portanto, o método dialético não é uma simples exigência metodológica,
mas surge das entranhas da sua concepção materialista da história, da percepção empírica do
movimento das sociedades humanas – e, particularmente, do modo de produção capitalista –
de maneira dialética9, isto é, como movimento de contradições históricas, opostos
antagônicos em luta, tal como o proletariado em relação à burguesia, a socialização da
produção em relação ao modo privado de apropriação, o valor de uso em relação ao valor de
troca, etc. O desenvolvimento dialético de tais antagonismos leva, em um determinado
momento, à impossibilidade de reprodução da estrutura social tal como vinha se dando.
Elucidando o método de Marx em toda sua complexidade, o trecho da Introdução assinalada
acima se livra de qualquer conotação estática, harmônica, que lhe possa haver sido imputada,
com a seguinte conclusão:
Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que
nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro
das quais até então tinham se movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma
época de revolução social. (MARX, 1982, p. 25).
Por fim, cabe limpar o terreno em relação a um suposto de determinismo de que tantas
vezes foi acusado o método marxiano. Deixamos a resposta à Ludovico Silva, que a nosso
julgamento é particularmente lúcida e sintetiza de maneira genial o que tentamos demonstrar
nas linhas acima:
Marx não era um mero interpretador da História, como era Hegel. Nunca partiu [...]
das obscuridades da História, mas de determinados momentos históricos. Todo o
determinismo de Marx, que nada tem de metafísico, resume-se nisto: é um fato que
o capitalismo existe; é um fato que se trata de um sistema concreto organizado
segundo leis específicas, as leis de uma sociedade baseada em um determinado
modo de produção; é um fato que o cientista pode estudar essas leis; é um fato que,
se descobre o funcionamento real dessas leis, poderá premeditar um
desenvolvimento, porque, finalmente, é um fato que, uma vez constituído o sistema,
9 “Marx empregava o método dialético. Este consistia em ver a história humana como o que efetivamente tem
sido: um teatro da luta de classes.” (SILVA, 1979, p. 188).
16
suas leis atuarão sob a forma de um determinismo, mas não „metafísico‟, mas
totalmente concreto. Agora bem, os homens – escreveu Marx – fazem sua própria
história ao mesmo tempo em que sofrem a determinação social; o qual significa que
a ação dos homens pode agudizar as contradições sociais e mover o mundo à
transformação. Tudo depende dos homens, inclusive a marcha das leis do
capitalismo. (SILVA, 1979, p. 224).
2.2. Ciência, Técnica e Tecnologia: desvelando os conceitos
Falta-nos ainda definir alguns dos conceitos principais que serão utilizados para a
análise do nosso objeto de pesquisa. O ponto de partida da definição de ciência, técnica e
tecnologia só pode ser, se quisermos manter a coerência com nosso método, seu
desenvolvimento ao longo da história humana. Tais conceitos apresentam-se, pois, como
produtos da atividade, da práxis humana concreta. Não existem em si, pairando sobre a
estrutura social de qualquer período, como elementos externos a ela. Formam elementos dessa
estrutura concebida como totalidade concreta, a qual lhes dá conteúdo específico em cada
modo de produção, ao mesmo tempo em que operam como transformadores dessa totalidade.
Comecemos pela definição de ciência, tarefa que resulta complexa pelo incontável
número de obras que já se escreveram a respeito no campo da teoria da ciência e da filosofia
da ciência, e cujo debate seria impossível de recuperar neste trabalho. Mesmo dentro do
materialismo histórico a definição não se torna, por si, mais confortável, como afirma Jonh D.
Bernal em seu trabalho Historia Social de la Ciencia: “A idéia de definição não pode aplicar-
se estritamente a uma atividade humana que em si mesma é somente um aspecto inseparável
da evolução social” (BERNAL, 1976, p. 27, tradução nossa). Inusitadamente, ao afirmar a
impossibilidade de definir estritamente a ciência, Bernal brinda os elementos suficientes para
definirmos a ciência no escopo de nosso trabalho. Vejamos.
Em primeiro lugar, o autor afirma que a ciência é uma atividade humana, produto dos
homens, portanto. Se é atividade humana, elemento da práxis humana, logo só pode ser
histórica, visto que a existência de uma essência humana imanente é desprovida de sentido.
Corrobora o autor com nossa posição ao afirmar que se trata de “um aspecto inseparável da
evolução humana”, dando ao mesmo tempo mais uma pista: a evolução humana é, na sua raiz
material, o progressivo domínio do homem sobre a natureza, subordinando-a a seus fins, que
17
se concretizam em determinados graus de desenvolvimento das forças produtivas e, por
conseguinte, em modos de produção historicamente determinados. Pois bem, temos aqui uma
primeira aproximação do conceito de ciência: uma atividade essencialmente humana, posto
que é práxis, que age sobre a realidade e, portanto, a transforma, sobre a base de um
determinado estágio ou grau de desenvolvimento das forças produtivas.
Mas em que consiste, especificamente, esta atividade? A natureza, o mundo natural, só
adquire real significado para o homem na medida em que este entra em contato com a
natureza, utilizando de sua força de trabalho para dela extrair os elementos necessários à sua
vida. “A utilização da força de trabalho é o próprio trabalho” (MARX, 2006, p. 211), dirá
Marx. É através do trabalho que o homem entra em contato e transforma a natureza:
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, o
processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla
seu intercâmbio material com a natureza (...) Põe em movimento as forças naturais
do seu corpo – braços e pernas, cabeça e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos
da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana (...). Não se trata aqui das
formas instintivas, animais, de trabalho. (MARX, 2006, p. 211).
O que distingue atividade humana como trabalho das formas animais de contato com a
natureza é justamente a capacidade que os homens têm de “colocar a cabeça em
movimento”:“...o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente
sua construção antes de transformá-la em realidade10
. No fim do processo de trabalho aparece
um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador” (MARX, 2006, p.
211). Ora, esta capacidade de projetar a realidade em seu cérebro, de conceber a realidade
idealmente, faculdade da consciência presente nos seres humanos, só é possível através do
conhecimento dos mecanismos da realidade mesma, seja ela biológica ou social. Em outras
palavras, o homem só pode projetar abstratamente a realidade se conhecê-la em suas leis
internas de movimento, cuja validade poderá ser comprovada ou rechaçada empiricamente11
.
De maneira muito geral – como nos adverte o próprio Bernal – podemos definir, para os fins
propostos neste trabalho, a ciência como a atividade pela qual o homem desvenda as leis do
10
Na edição do Capital de Marx publicada em espanhol pelo Fondo de Cultura Económico, este trecho aparece
da forma seguinte: “[...] es el hecho de que, antes de ejecutar la construcción, la proyecta en su cérebro.”
(MARX,1959, p. 130, grifos nossos). 11
“A verdade da ciência [...], já faz muito tempo, reside no êxito de sua aplicação aos sistemas materiais, sejam
estes inanimados, como as ciências físicas, organismos vivos, nas ciências biológicas, ou sociedades humanas,
como nas ciências sociais.” (Bernal, 1976, p. 41, tradução nossa).
18
movimento da natureza para submetê-la a seus próprios fins, cujo grau de efetividade, por sua
vez, é determinada pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas e o modo de produção
constituídos em cada momento da história.
Ciência, portanto, não é contemplação, mas atividade12
. Tal atividade, cujo
fundamento é o trabalho, inicia-se no ser humano como experiência, experimentação na
natureza, “tentativa e erro”, sobre o qual se fundamentam posteriormente um corpo de formas
organizadas de intervenção no meio natural que chamaremos de técnica.Tal concepção,
segundo o filósofo Álvaro Vieira Pinto, já estava elaborada em Aristóteles:
Aristóteles distingue, por conseguinte a técnica, conceito humano referido ao
trabalho, que é um modo de ser exclusivo do homem, e a matéria sobre a qual o
agente opera [...]. Nesse movimento, ou seja, no ato humano, reside o princípio da
técnica. Tais indicações têm, ao nosso ver, valor supremo no encaminhamento da
compreensão da técnica [...]. A ciência e a técnica são adquiridas pelo homem como
resultado da experiência. A técnica identifica-se com o trabalho na indução
abstrativa na procura do conceito universal. (PINTO, 2008, p. 138).
Mais à frente, o filósofo brasileiro adverte que, apesar da técnica ter sua origem na
experiência, é já um grau superior da atividade humana.
A técnica, ou a arte, é superior à experiência por motivo de permitir o conhecimento
do porquê e da causa, enquanto a experiência apenas diz o que é o objeto. Se a
experiência mostra-se também superior à simples ordem das sensações, limitadas à
particularidades dos seres, a técnica tem acima dela o raciocínio, e em sua forma
mais perfeita a filosofia. (PINTO, 2002, p.138).
Com estes esclarecimentos, fica patente o absurdo que seria dissociar a ciência da
técnica. No momento em que o homem rompe a barreira da experiência, quando começa a
desvendar – mesmo que de maneira grosseira, a princípio – as leis do mundo em que vive,
ambos os conceitos passar a constituir-se um todo único fundamentado no trabalho. E esse
momento confunde-se com o próprio surgimento do homem, ainda que tenha alcançado
proporções assombrosas em épocas recentes, sobretudo após a Revolução Industrial (PINTO,
2002, p. 142), pelos motivos que adiante debateremos.
12 “... o homem, para conhecer as coisas em si, deve primeiro transformá-las em coisas para si; para conhecer as
coisas como são independentemente de si, tem primeiro de submetê-las à própria praxis: para poder constatar
como são elas quando não estão em contato consigo, tem primeiro de entrar em contato com elas”. (KOSIK,
2002, p. 28)
19
Por fim, quanto ao conceito de tecnologia, defini-lo-emos como o conjunto de técnicas
disponíveis à sociedade em um determinado período histórico. Ao fazê-lo como tal sabemos
que corremos um risco: o de que a tecnologia seja interpretada de maneira fetichizada, como
um conjunto de objetos (máquinas, robôs, computadores, etc.) dotados de existência própria
cuja atividade também autônoma transforma a sociedade. Dissociados, portanto, da praxis
humana. E tal é a interpretação corrente, cuja finalidade consiste em legitimar o uso da ciência
e da técnica por parte das classes dominantes como instrumentos de exploração do trabalho
alheio. Trata-se da ideologização da tecnologia13
. A escolha da definição àquela maneira se
deve, no entanto, ao seu uso generalizado na literatura sobre o tema, facilitando o tratamento
do problema ao longo do trabalho. De nossa parte, a concepção materialista da história do
homem de que partimos nos blinda do risco de cair em mistificações. Toda vez que
utilizarmos o termo tecnologia estará implícita sua definição como elemento da praxis
humana.
* * *
Temos, antes de passar ao próximo tópico, uma questão pendente. A percepção dessa
relação íntima entre ciência e técnica não permitem, por si só, explicar o desenvolvimento
científico ao longo da história. Para tal, nos remeteremos a duas características da atividade
científica. A primeira delas é a natureza acumulativa da ciência e da técnica, em seu âmbito
histórico e social. Realmente, um indivíduo qualquer, por mais genial que seja14
, é incapaz de
percorrer sozinho toda a trajetória do conhecimento necessária para fazer avançar a ciência.
“Os métodos do cientista lhe serviriam muito pouco se não tivesse a sua disposição o imenso
fundo da experiência e dos conhecimentos anteriores” (BERNAL, 1976, p. 40, tradução
nossa). Em certo sentido, o cientista, ao realizar uma nova descoberta, utiliza a totalidade da
ciência existente até o momento, fruto da idéias, das ações e da experiência de uma ampla
corrente de trabalhadores e pensadores, cujas conclusões anteriores pode, inclusive, refutar,
13 Uma brilhante desmistificação de tal ideologização assunto encontra-se no capítulo IV da obra de Álvaro
Vieira Pinto, O Conceito de Tecnologia. (2008) 14
“Naturalmente, a existência de grandes homens tem tido efeitos decisivos no progresso da ciência, mas suas
realizações não podem ser estudadas isoladamente do seu contorno social. Cai-se nesse erro tão amiúde que com
freqüência se crê necessário recorrer, para explicar seus descobrimentos, a palavras como “inspiração” ou
“gênio” [...] Quanto maior é um homem mais se submerge na atmosfera de sua época. Somente dessa maneira
pode abarcá-la o suficiente para alterar de um modo substancial o esquema do conhecimento e da ação.”
(BERNAL, 1976, p. 43, tradução nossa).
20
descontruir15
. É esta natureza eminentemente social da ciência que dará origem, sobretudo na
época atual, a uma organização da atividade científica – uma divisão do trabalho científico –
materializado em universidades, institutos e laboratórios.
O segundo elemento necessário para compreender o desenvolvimento da ciência e
da técnica é sua determinação histórica, pois existe como atividade humana dentro de um
determinado modo de produção. Cremos que tal fato já foi suficiente esclarecido em páginas
anterior, bastando somente proceder a uma síntese adequada.
Um certo modo de produção só é compatível com determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas – e, por conseguinte, um certo grau de
desenvolvimento da ciência e da técnica – que, como vimos, determinam a configuração de
certas relações de produção com suas específicas relações de trabalho, relações de
propriedade e relações de troca (SANTOS, 1986, p. 56). Não é aqui o lugar de revisar
historicamente a configuração dos modos de produção ao longo da história. Basta assinalar
que a cada grau de desenvolvimento das forças produtivas corresponde uma quantidade de
produto social: uma determinada quantidade de trabalho humano objetivado em bens úteis
disponíveis ao consumo da sociedade. Até o momento em que a produção de um período era
inteiramente consumida pelos indivíduos daquela sociedade, ou seja, até o momento em que
não havia excedente econômico, não justificava-se materialmente a apropriação privada – por
indivíduos ou por grupos sociais – daquele excedente, dado que ele inexistia. Somente quando
a elevação da produtividade do trabalho permite a produção de uma quantidade de bens
superiores à necessidade de reprodução da existência da sociedade é que surgem as primeiras
formas e propriedade e, conseqüentemente, as classes socias diferenciadas entre proprietários
e não proprietários dos meios de produção:
As formas de propriedade privada somente surgem quando o modo de produção
pôde gerar um excedente econômico suficiente para justificar a exploração do
homem pelo homem e a organização de uma estrutura de poder autônoma,
encarregada da defesa de um sistema de relações sociais que conciliava interesses
contraditórios. Somente então é que surgem os germes da luta de classes e, com ela, o embrião do Estado, que marcaram o início de uma nova etapa na história das
sociedades humanas. (DOS SANTOS, 1986, p. 56).
15
“A ciência consiste em algo mais do a reunião de todos os fatos conhecidos, de todas as leis, de todas as
teorias. Na realidade é um descobrimento constante de fatos, leis e teorias que critica e com freqüência destrói
muito do já construído.” (BERNAL, 1976, p. 40, tradução nossa).
21
Pois bem, a partir deste momento as classes sociais detentoras da propriedade dos
meios de produção passarão à organizá-los no sentido de elevar – em maior ou menor grau –
constantemente o excedente econômico de que podem se apropriar. Colocarão, pois, as forças
produtivas, a ciência e a técnica, a funcionar segundo seus interesses de classe16
,
desenvolvendo-as até aquelas choquem com as relações de produção existentes, como
assinalamos na primeira seção deste capítulo. A intensidade e o sentido desse
desenvolvimento são distintos em cada modo de produção específico. A nós, interessam-no
captar a tendência do desenvolvimento da ciência e da tecnologia no modo de produção em
que vivemos: o modo de produção capitalista, sobretudo em seu estágio atual de
desenvolvimento. Este é o objetivo dos próximos capítulos.
3. A CIÊNCIA COMO FORÇA PRODUTIVA: O
SURGIMENTO E A CONSOLIDAÇÃO DA RCT NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
16
“[...] essas relações de produção, que dependem tecnicamente dos meios de produção, suscitam a necessidade
da transformação dos próprios meios de produção, dando lugar assim ao desenvolvimento da ciência.”
(BERNAL, 1976, p.46, tradução nossa).
22
No primeiro capítulo deste trabalho procuramos aclarar a relação de determinação
entre o grau de desenvolvimento das forças produtivas da humanidade (ou do grau de domínio
do homem sobre a natureza) sobre a definição do modo de produção e das relações sociais ao
longo da história. Estabelecida esta relação, o caminho da argumentação obriga, no sentido da
progressiva concreção da nossa análise, a uma mirada sobre a maneira como esta relação
opera em formações sociais concretas. Como estamos interessados na investigação do
desenvolvimento científico e tecnológico no capitalismo, trataremos da dialética acima neste
modo de produção em geral, e no seu atual estágio de desenvolvimento em particular, o qual
caracterizaremos como capitalismo monopólico. Nosso ponto de partida será o trabalho
realizado pelo filósofo Radovan Richta (1972) e sua equipe de pesquisadores da então
Academia Tchecoslovaca de Ciências, o livro Economia Socialista e Revolução Tecnológica,
de onde extraímos o conceito de Revolução Científica e Tecnológica17
, tema geral desta
monografia. A importância do livro citado para o debate sobre o papel da ciência e da
tecnologia no capitalismo contemporâneo nos obriga a dedicar-lhe alguns parágrafos de nossa
argumentação.
É emblemático que o debate sobre os problemas relativos ao desenvolvimento da
ciência e da tecnologia no século XX tenha tido seu berço nos países do campo socialista. O
pensamento dominante, no intuito de desprezar a viabilidade histórica de um modo de
produção superior ao vigente, identifica as tentativas de construção do socialismo no século
XX com a miséria e a ignorância das massas, com o culto cego ao líder, e com atraso
científico e tecnológico. Veremos que estão equivocados. Se há que buscar os determinantes
para a derrota do chamado “socialismo real”, certamente não será no campo do
desenvolvimento da ciência dos países em questão. A necessidade do desenvolvimento da
produção, da técnica e da ciência, pelo contrário, estiveram presentes desde o início como
uma das principais diretivas dos militantes e intelectuais de esquerda, sobretudo pelas
condições sobre as quais se iniciava a construção socialista daqueles países: economias
majoritariamente agrárias, de baixíssimo desenvolvimento tecnológico e destruídas pela
Primeira Guerra Mundial. A esperada herança do desenvolvimento capitalista pleno como a
17 Foi o britânico J. D. Bernal (1976) quem cunhou o termo “Revolução Científica e Tecnológica. Em trabalhos
posteriores dedicados ao desenvolvimento do tema, o termo “Revolução Científica e Tecnológica” aparece
grafado de outras maneiras. Braverman (1987) e Martins (1998) o substituem por “Revolução Técnico-
Científica”. Dos Santos (1983; 1987; 1994) utiliza “Revolução Científico-Técnica” e, no último trabalho citado,
“Revolução Científico-Tecnológica”. Não sabemos se tais diferenças decorrem das preferências dos autores ou
são conseqüências das traduções ao português. Todos, porém, remetem-se ao mesmo conceito. De nossa parte,
seguiremos Dos Santos (1983; 1987). Nas citações de outros autores, o conceito aparecerá grafado na
terminologia por eles utilizada.
23
base para ascensão de um modo de produção superior não existia naquela parte do globo.
Lênin reconhecia as dificuldades:
[...] atormenta-nos não apenas o desenvolvimento da produção capitalista, mas sim a
falta desse desenvolvimento. Além das misérias modernas, nos angustia toda uma
série de misérias herdadas, resultantes do fato de que continuam vegetando modos
de produção antiquados, meros processos remanescentes, como o seu séquito de
relações sociais e políticas anacrônicas. Não só padecemos por causa dos vivos, mas
também por causa dos mortos. Le mort saisit le vif! (LENIN apud BAMBIRRA,
1993, p. 147).
São conhecidas as tentativas posteriores de implantação do sistema taylorista de trabalho na
Rússia, a adoção da NEP em 1921, dentre outras medidas.
A tarefa nada simples da construção do socialismo consistia em dotar aqueles países
de forças produtivas suficientemente desenvolvidas – que só poderia ser levado a cabo por
meio da industrialização, capaz de elevar a produtividade do trabalho e, por conseguinte, os
níveis de produção e consumo. A própria natureza do trabalho industrial – expressa na
subordinação do trabalhador ao sistema de máquinas; na separação entre trabalho manual e
intelectual, e entre atividade operativa e diretiva, etc. –, porém, era uma barreira
intransponível à progressiva socialização da produção e da libertação da população da
necessidade do trabalho18
. Em outras palavras, a permanência indefinida das formas
produtivas herdadas da Revolução Industrial – que, de fato, ocorria19
– constituía-se um
entrave fundamental ao avanço do socialismo. A miopia de certos setores dos partidos
comunistas do período ante a magnitude do dilema posto ao futuro dos países que dirigiam
fez surgir no seio da intelectualidade soviética a advertência quanto aos riscos de tal ponto de
vista, sintetizados de forma clara no seguinte trecho da introdução da obra de Richta:
18 “No fluxo da produção mecanizada, no qual o complexo das máquinas constitui em si mesmo um todo único
[...] a própria realização dialética de produção encontra sua adequada materialização técnica. A auto-expansão do
capital através do trabalho e o fato de que o próprio trabalho é dominado pelas condições encontram a expressão
material e técnica que lhes corresponde. [...] O quadro técnico da indústria mecanizada encarna na realidade
significados sociais correspondentes que são típicos do capital enquanto relação de produção”. (RICHTA, 1972, p. 38-39). Desenvolveremos a questão nas próximas páginas. 19 “Na realidade, o socialismo, em seus aspectos materiais, está geralmente fundado num tipo idêntico de
trabalho, que tinha se desenvolvido sob o sistema industrial que ele herdou. Embora as pessoas que vivem nas
novas condições de uma sociedade socialista estejam colocadas numa relação diferente com o próprio trabalho
(sendo agora, verdadeiramente, um componente do trabalho social global), e mesmo que nenhuma atividade
socialmente útil e necessária, qualquer que seja sua forma material, possa ser descuidada em uma comunidade
socialista, não há dúvidas de que, sendo caracterizadas por suas típicas limitações industriais, uma grande parte
do trabalho reproduz sua divisão interna em um novo nível. Consequentemente, o socialismo não pode estar
satisfeito com esses limites abstratos herdados pela indústria”.(Richta, 1972, p. 105).
24
Estas considerações sublinham a necessidade vital das reformas econômicas radicais
que hoje vêm sendo introduzidas nos países socialistas. Estas exigências clarificam a
exigência de um novo caminho não ortodoxo no desenvolvimento das forças produtivas, e mostram como para a construção do comunismo são necessárias
transformações profundas e à longo prazo na estrutura e na dinâmica daquelas
forças. [...] são apresentadas novas possibilidades de criar um modo de vida
socialista, sente-se a crescente exigência no sentido de serem resolvidos os difíceis
problemas da participação na vida civil, do desenvolvimento das formas
democráticas de vida social, e assim por diante (RICHTA, 1972, p. 8).
Recuperando as raízes do pensamento marxiano, Richta e seu colegas tentam mostrar
os limites do pensamento revolucionário que olvida a questão do desenvolvimento das forças
produtivas:
Contrariamente aos princípios dos clássicos do marxismo, quando se chegou a levar
à prática o socialismo científico, prevaleceu por certo tempo entre nó a convicção de que o comunismo podia ser realizado através de transformações no campo do poder,
transformações dos sistemas de propriedade e ideologia, acompanhadas
possivelmente por um aumento geral da produção. [...] Este fato, entretanto, levou a
que se atribuísse um valor absoluto e permanente às formas de desenvolvimento
social derivadas das fases mais importantes da revolução industrial e das lutas de
classes que foram geradas por ela. A questão das transformações nas forças
produtivas, no trabalho, nas formas de auto-realização do homem, era considerada
como aspecto puramente exterior do comunismo e, então, era excluída do ensino
marxista. (RICHTA, 1972. p. 81).
A negligência do debate sobre a necessidade de transformações radicais nas forças
produtivas desses países havia criado, segundo Richta, um círculo vicioso, onde as
insuficiências tecnológicas reduziam as possibilidades de cultivar as capacidades criadoras da
população e, por outro lado, a insuficiente capacidade criativa limitava o desenvolvimento
científico e tecnológico do país (RICHTA, 1972, p. 94), justamente em um período no qual a
produção passava a se subordinar definitivamente à ciência. E era o domínio ciência em sua
forma mais avançada a única possibilidade de superação das formas de produção e das
relações sociais decorrentes do período industrial, a única possibilidade de, finalmente,
revolucionar tanto a natureza quanto o conteúdo do trabalho humano, transformando a
atividade criadora do homem na principal manifestação de sua vida e, ao mesmo tempo, na
25
condição do desenvolvimento futuro das sociedades20
(RICHTA, 1972, p. 108). Dessa
maneira, a era da Revolução Científico-Técnica apresentava as condições objetivas para a
construção de uma sociedade comunista21
.
A partir de fins da década de 1950 o debate sobre a Revolução Científico-Técnica se
torna um elemento central da estratégia de construção socialista: uma série de pesquisas sobre
a temática tem início a partir da Academia de Ciências da URSS e da Academia de Ciências
da Tchecoslováquia, e em dezembro de 1963 o XX Congresso do Partido Comunista da
União Soviética coloca a RCT como elemento central da sua política de desenvolvimento. O
9º e o 10º planos qüinqüenais dão especial enfoque às diretrizes de automatização e
introdução de melhorias tecnológicas em todo o aparato produtivo, bem como a intensificação
da pesquisa científica e tecnológica (DOS SANTOS, 1983, p. 44-45). Em menor escala, esse
mesmo movimento tem lugar nos outros países do campo socialista.
O reflexo das diretivas de planejamento deste período sobre os indicadores de C&T a
partir da década de 1950 só reafirmam a importância que tais países deram à questão. De 1965
a 1975, o número de cientistas e engenheiros dedicados à Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
subiu de 499 mil para 1,1 milhões, o dobro dos EUA naquele então, que dispunha de 530 mil
profissionais dedicados à mesma atividade (43,8 por 10.000 habitantes, contra 24,8 nos
EUA). Com relação aos gastos nacionais em P&D como porcentagem do PIB, naquele
mesmo período, a URSS passou de 2,40% para 3,18% (US$ 18.900 milhões), enquanto os
EUA viram seus gastos caírem de 2,95% para 2,25% (US$ 32.000 milhões) (DOS SANTOS,
1983, p. 113-115). Os gastos com educação apresentam evolução semelhante: passaram de
5,5% do PNB em 1955 para 7,3% em 1973 (DOS SANTOS, 1983, p. 90) 22
.
20 “Como o desenvolvimento da ciência e da tecnologia depende em grande medida de energia criadora do
homem, e também do desenvolvimento do próprio homem, encontramo-nos aqui diante de um novo elemento
determinante do desenvolvimento econômico e da própria história de nossa época, um elemento que revela o
segredo da moderna revolução científica e tecnológica: a um certo nível de desenvolvimento da sociedade
moderna, o meio mais eficaz para desenvolver as forças produtivas da sociedade e da vida humana,
inevitavelmente, passa a ser o desenvolvimento do próprio homem, o aumento de sua capacidade e energia
criadora, isto é, o desenvolvimento do homem como fim em si mesmo.”( RICHTA, 1972, p. 34).
21 “O fator verdadeiramente decisivo na posição da classe operária – que faz dela a vanguarda da nova sociedade
– não deriva de seus interesses transitórios e de seu orgulho particular de classe, que são frequentemente objeto
de demagogia social, mas de sua capacidade de transformar o mundo e a sociedade assumindo o controle do
produto de todo o processo humano que está situado na ciência.” (RICHTA, 1972, p. 241).
22
No “capítulo IV – A ciência como investimento: fatos e tendências” (DOS SANTOS, 1983), o autor expõe
outros dados de evolução da P&D em diversos países. Deixamos a pesquisa a cargo do interesse do leitor, pois o
prosseguimento da exposição extrapolaria os objetivos deste texto.
26
Mas o que é a Revolução Científico-Técnica? Qual sua origem e quais são as
características que a diferenciam dos períodos anteriores do desenvolvimento das forças
produtivas? É o que discutiremos nas seções seguintes.
3.1. Ciência, tecnologia e a grande indústria moderna
É o período da industrialização clássica que oferece os elementos materiais e sociais
necessários ao advento da Revolução Científico-Técnica. Por esse motivo, faz-se
indispensável recuperar alguns dos traços fundamentais do período situado entre os séculos
XVII e XIX, sem o qual nossa análise trataria a ciência e seu desenvolvimento de maneira a-
histórica.
A subsunção da ciência e da tecnologia ao modo de produção capitalista caminha pari
passu com a evolução da divisão do trabalho que permite a consolidação deste modo de
produção como dominante. Como é sabido, as duas condições fundamentais para a
reprodução do modo de produção capitalista são, por um lado, a existência de trabalhadores
livres, possuidores da sua força de trabalho como única propriedade passível de venda e, por
outro, e existência de proprietários de dinheiro, meios de produção e artigos de consumos,
desejosos por valorizar sua propriedade mediante a compra da força de trabalho alheia23
. O
capitalismo, porém, cria condições necessárias para seu nascimento a partir do legado do
modo de produção anterior. Em outras palavras, o capital, no período de transição entre o
modo de produção feudal e sua consolidação, se depara com um determinado grau de
desenvolvimento da divisão do trabalho, um determinado grau de relações de trocas
mercantil, um determinado nível de concentração de acumulação e de concentração de
trabalhadores (DOS SANTOS, 1986, p. 36). Foi na manufatura que, em fins do séc XVII, que
o capitalismo encontrou o terreno fértil de seu desenvolvimento posterior, após a apropriação
23 “Estabelecidos esses dois pólos do mercado, ficam dadas as condições básicas da produção capitalista. O
sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam
o trabalho. Quando a produção capitalista se torna independente, não se limita a manter essa dissociação, mas a
reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que
retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios
sociais de subsistência e os de produção e converte em assalariados os produtores diretos.” (MARX, 2005, p.
828).
27
de seus elementos por meio, sobretudo, do exercício da violência, no que Marx chamou de
acumulação originária24
.
O que fez, no entanto, com que o capitalismo absorvesse de maneira revolucionária o
conhecimento científico e técnico e o desenvolvesse como nenhuma época anterior na
História, de maneira cada vez mais racionalizada aos seus fins? A resposta a esta questão há
de buscar-se no próprio caráter da acumulação do capital.
A produção capitalista se apóia na separação taxativa entre o trabalhador e os meios de produção, ao passar ambos a serem propriedade do capital. O trabalho e os meios
de produção se incorporam assim ao capital em forma de capital variável e de capital
constante.
Na medida em que o aumento da taxa de lucro depende da redução dos custos de
produção, o capitalista precisa:
a) Reduzir o valor da força de trabalho, aumentando a produtividade nos setores
produtores de bens salariais;
b) Incrementar a produtividade do trabalho acima da média do setor ou ramo em que
opera, introduzindo melhorias tecnológicas dos meios de produção ou intensificando
a jornada de trabalho (racionalização da gestão e do controle);
c) Reduzir o valor dos meios de produção mediante o aumento da produtividade nos
setores de produção dos bens de capital e de matérias-primas, bem como na
construção de instalações, etc.;
d) Reduzir a rotatividade do capital fixo através da utilização mais intensa dos meios
de produção ou de seu aperfeiçoamento técnico; e) Diminuir os custos de circulação das mercadorias, do transporte e da comunicação,
da comercialização, etc.;
f) Aumentar a jornada de trabalho (mais-valia absoluta) (DOS SANTOS, 1983, p. 15).
O aumento da jornada de trabalho, bem como sua intensificação, tem como limite a
capacidade biológica do trabalhador, de maneira que não pode ser estendida infinitamente.
Sem embargo, o capital sempre que possível lançará mão do prolongamento da jornada de
trabalho com o objetivo de elevar a massa de mais-valia extraída25
. Neste terreno, contará
com a resistência da classe trabalhadora organizada, que pressionará no sentido contrário pela
redução da jornada. Diante das resistências à utilização da mais-valia absoluta, o capital, para
24
“Marcam época, na história da acumulação primitiva, todas as transformações que servem de alavanca à classe
capitalista em formação, sobretudo aqueles deslocamentos de grandes massas humanas, súbita e violentamente
privadas de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de proletários destituídas
de direitos.” (MARX, 2005, p. 829).
25 “[...] o prolongamento desmedido da jornada de trabalho revelou-se o produto mais genuíno da grande
indústria moderna.” (MARX, 2005, p. 579). Marx mostra como a mecanização da produção facilita ao capitalista
a extensão da jornada de trabalho e, portanto, o aumento da mais-valia absoluta. (MARX, 2005, p. 460).
28
elevar a taxa de lucro, lançará mão das outras formas mencionadas acima. Terá como
principal aliado nessa disputa a tecnologia.
Dessa forma o capital aplica os conhecimentos científicos à produção para, com
isso, reduzir massivamente o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado
nos produtos. Poupar tempo de trabalho é o lema que dá sentido revolucionário ao
capitalismo. O capitalismo, porém, não poupa tempo de trabalho para diminuir a
carga horária dos trabalhadores; poupa para cobrir o mais rápido possível o tempo de trabalho necessário para reproduzir a força de trabalho e apropriar-se do tempo
excedente, fonte de mais-valia (DOS SANTOS, 1983, p. 16).
O constante aperfeiçoamento da tecnologia como o intuito de elevação da
produtividade do trabalho deixa de ser, pois, para o capitalista, uma opção e converte-se em
um imperativo, onde o domínio da aplicação de novas soluções tecnológicas determinará, em
grande medida, sua capacidade de sobrevivência em relação aos concorrentes. Veremos
adiante como, mesmo em condições de monopólio esta condição se mantém, ainda que por
meio de outros mecanismos. Por ora, voltemos aos séculos XVIII e XIX.
A manufatura já impunha, então, certa divisão do trabalho, ao concentrar uma série de
artesãos em um único local de trabalho, sob a vigilância e controle do capitalista (DOS
SANTOS, 1986, p. 36). Tal divisão operava ainda sob a destreza individual de cada operário,
limitando, por este mesmo motivo, o domínio do capital sobre o trabalho, dando-lhe um
caráter eminentemente formal, no sentido de que o capital ainda dependia da destreza
individual de cada artesão para o processo de acumulação. Foi esta primeira forma de
concentração física dos trabalhadores que possibilitou, porém, a progressiva especialização
dos trabalhadores em tarefas específicas, parciais em relação ao processo produtivo global, e
cada vez mais rotineiras e próximas a simples movimentos mecânicos (DOS SANTOS, 1983,
p. 17).
A busca por maior controle e produtividade do trabalho levou, como de maneira
“natural”, à pronta substituição do braço humano pela máquina-ferramenta, abrindo-se a
possibilidade de aplicação de outras formas de energia, algumas já existentes, mas sem
perspectiva de aplicação prática – caso da energia a vapor -, outras criadas posteriormente
pela perspectiva de aplicação imediata (DOS SANTOS, 1983, p. 18). A utilização de outras
fontes de energia permitiu, por sua vez, que se passasse a movimentar de maneira articulada
29
diversas máquinas-ferramentas através de uma única fonte, dando origem ao que Marx
denominou como sistema de máquinas.
O inegável aumento da produtividade do trabalho operado por este autômato – agora
ele mesmo, o sistema de máquinas, elevado à condição de unidade produtiva – alterou o lugar
do trabalhador na produção. Subjugado pelo gigantismo das máquinas, sua habilidade como
artesão já nada mais valia. A máquina, com uma velocidade inúmeras vezes superior, passava
a realizar a atividade que o operário antes realizava com o máximo de perfeição técnica e com
o mínimo de erros. Sua função passa à de mero apêndice da máquina, auxiliando em seu
controle, ajustando a matéria-prima ao movimento da máquina, transportando o produto
parcialmente finalizado de uma etapa a outra do processo. O processo de trabalho passa a ser
objetivo: a separação do trabalhador de seus meios de produção já não necessita da força para
ser efetivada, mas passa a aparecer como algo “natural”. O operário passa a se defrontar,
então, com uma força produtiva de tal forma desenvolvida que ele já não a pode controlar.
Pelo contrário, o sistema de máquinas é que passa a “utilizar” o operário para uma série de
tarefas parciais cujo desenvolvimento imperfeito ainda não lhe permite realizar
mecanicamente.
A divisão do trabalho na produção mecânica se torna objetiva, quer dizer, se
emancipa das faculdades individuais do operário, o processo produtivo total se
esgota em si mesmo, divide-se em seus princípios constitutivos, em suas diferentes
fases, e o problema que consiste em executar cada um dos processos parciais e
combiná-los entre si, se resolve mediante a aplicação da mecânica, da química, etc.
(DOS SANTOS, 1983, p. 20).
A este processo progressivo de substituição do homem como unidade produtiva, dando
lugar à máquina e, posteriormente, ao sistema de máquinas, denominaremos mecanização. Do
ponto de vista da acumulação de capital, é importante notar que só em um elevado nível de
concentração e centralização de capital é possível a conformação de complexos produtivos
mecanizados. Os investimentos necessários para colocar em funcionamento um sistema
produtivo mecanizado se elevam à medida que o próprio processo de mecanização evolui. Ao
mesmo tempo, a mecanização torna-se condição para uma maior concentração do capital. Dos
Santos (1983) afirma:
30
Como se vê, o processo de automatização ou mecanização apenas aprofunda a
tendência à concentração que havia alcançado um nível muito elevado no século
passado e ao mesmo tempo revoluciona a divisão do trabalho e as formas de
cooperação que, como vimos, são profundamente afetadas quando se substitui a
manufatura pela maquinofatura e esta pelos processos produtivos automatizados.
Portanto, a tendência à concentração é parte integrante do desenvolvimento da
tecnologia moderna e não apenas da tecnologia vista da perspectiva das máquinas, dos instrumentos utilizados para a produção, mas também vista no sentido das
unidades produtivas, dos sistemas de produção, das organizações produtivas que
mudam com o desenvolvimento das forças produtivas. (DOS SANTOS, 1983, p.
24).
Do ponto de vista da relação social capitalista, a mecanização concretiza a transição da
subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital. Essa nova fase tem, para os
objetivos deste trabalho, especial significação. Trata-se de uma virada completa nas condições
de produção, de uma abertura sem precedentes na possibilidade de evolução das forças
produtivas sociais do homem.
O quadro técnico da indústria mecanizada encarna na realidade significados sociais
correspondentes à inversão entre sujeito e objeto, significados que são típicos do
capital enquanto relação de produção: seja no atual processo de produção (não é o
trabalhador individualmente considerado que utiliza os meios de produção, mas, ao
contrário, são os meios de produção que hoje utilizam a massa de trabalhadores), seja no modo de desenvolvimento industrial (deste ponto de vista, a massa de capital
traduzida em máquinas é, de fato, sinal infalível da amplitude a que chegou o
complexo de riqueza material que está diante do trabalhador, e também do nível de
monopolização do desenvolvimento social). (RICHTA, 1972, p. 39)
Ora, se o processo produtivo deixa de ser função da destreza individual de cada
operário e passa a depender fundamentalmente do sistema de máquinas, a aumento da
produtividade do trabalho e, conseqüentemente, da diminuição do preço unitário dos produtos
e de uma posição de vantagem em relação aos concorrentes, dependerá, sobretudo, do
aperfeiçoamento deste sistema26
. É por este motivo que o capital passará, deste momento em
diante, a buscar cada vez mais o domínio da ciência e da tecnologia com vistas à sua
aplicação na produção de mercadorias (DOS SANTOS, 1983, p. 22).
26 O aperfeiçoamento técnico da maquinaria pode elevar a intensidade do trabalho e, conseqüentemente, a taxa
de exploração. E é o que geralmente ocorre. Além disso, do ponto de vista do processo produtivo global, a
progressiva mecanização e automação da produção eleva a taxa de lucro do capitalista pela diminuição dos
salários via desqualificação do operário, pelo aumento do exército industrial de reserva, etc.
31
Mas qual a real importância da ciência e de sua aplicação no período até aqui
estudado, da metade do século XVIII aos fins do século XIX? Braverman (1987) afirma que
ciência é a última propriedade social a ser incorporada pelo capital (BRAVERMAN, 1987, p.
138). De fato, no processo da evolução da manufatura à grande indústria moderna, o
melhoramento das ferramentas de trabalho e dos processos produtivos de produção ocorria de
maneira difusa, indireta, através de experiências e melhoramentos parciais. A técnica precedia
a ciência (BRAVERMAN, 1987, p. 138).
Assim, em contraste com a prática moderna, a ciência não tomou sistematicamente a
dianteira da indústria, mas freqüentemente ficou pra trás das artes industriais e
surgiu delas. Em vez de formular significativamente novos enfoques das condições
naturais de modo a tornar possíveis novas técnicas, a ciência, em seus inícios sob o
capitalismo, no mais das vezes formulou suas generalizações lado a lado com o
desenvolvimento tecnológico ou em conseqüência dele. (BRAVERMAN, 1987, p.
138).
Tomemos como exemplo a máquina a vapor, um dos instrumentos de maior
importância para a Revolução Industrial. Os mecanismos de funcionamento de dita máquina
não surgiram a partir dos princípios e fórmulas da termodinâmica, ramo da Física que estuda
as causas e efeitos de mudanças na temperatura, pressão e volume. Pelo contrário, foi por
meio da experiência e melhoramentos de homens práticos, mecânicos que pouco
compreendiam de física teórica, que a máquina a vapor tomou forma. A termodinâmica, como
ramo da ciência, surge posteriormente. É termodinâmica, portanto, que deve tributo aos
métodos empíricos de construção das máquinas a vapor (BRAVERMAN, 1987, p. 139-140).
A organização da pesquisa e produção científica, a essa época, era precária. Até fins
do século XIX, o ensino universitário era predominantemente clássico, pouco vinculado às
questões relativas ao desenvolvimento de seus países27
. As sociedades científicas eram obra
de amadores e financiadas por privados. O Estado raramente se ocupava das questões
científicas. É essa tosca base, no entanto, que possibilitará uma significativa virada no rumo
27 A universidade alemã constitui uma exceção. O esforço de superação do atraso em relação à Grã-Bretanha e
França estimulou a criação de um complexo sistema de pesquisa básica e desenvolvimento de novos produtos,
sobretudo na indústria química. A reforma da educação prussiana foi fundamental para elevar o país à condição
de potência capitalista mundial: nas décadas de 1830 foram criados os primeiros institutos politécnicos e por
volta de 1870 a universidades já contavam com um corpo de professores e pesquisadores com cargas horárias
leves e laboratórios bem equipados (BRAVERMAN, 1987, p. 141). Sobre os principais sistemas universitários
nacionais e suas reformas, ver Ribeiro (1982).
32
da pesquisa científica em fins deste século, sobretudo como conseqüência no avanço em
quatro campos: eletricidade, aço, petróleo e motor a explosão (BRAVERMAN, 1987, p. 140):
A pesquisa científica influía bastante nesses setores para demonstrar à classe
capitalista, e especialmente às entidades empresariais gigantes, então surgidas como
resultado da concentração e centralização do capital, sua importância como um meio
de estimular ainda mais a acumulação do capital. Isto era verdade sobretudo quanto
às indústrias elétricas, que eram totalmente produto da ciência do século XIX, e na química dos produtos sintéticos do carvão a óleo (BRAVERMAN, 1987, p. 140).
Vemos, pois, que à medida que se desenvolvem as forças produtivas da sociedade
capitalista, o próprio sistema requer e organiza progressivamente um sistema científico e
tecnológico capaz de responder às exigências de seu desenvolvimento. O século XIX se
encerra, assim, com um elevado grau de desenvolvimento das forças produtivas em relação a
épocas anteriores: uma elevada concentração do capital; uma ampla divisão do trabalho
dentro da fábrica; uma elevada produtividade objetivada em um sistema de máquinas que pôs
em segundo plano a destreza do operário e em novas fontes de energia. (DOS SANTOS,
1983, p. 22). Será esta a base para o ingresso definitivo da ciência na produção capitalista.
3.2. A consolidação da Revolução Científico-Técnica
A união entre a ciência e o processo produtivo gestada na época da Revolução
Industrial adquire concretude no início do século XX. Vimos que esta é conseqüência da
lógica de acumulação do capital que opera a separação entre o trabalhador e os meios de
produção, de maneira a aprofundar a divisão do trabalho e aumentar sua produtividade. Ficou
claro, da mesma forma, que para tal operação a aplicação técnica dos princípios científicos
torna indispensável, assumindo a função central no desenvolvimento das forças produtivas.
Denominaremos este novo estágio como a era ou o período da Revolução Científico-Técnica.
3.2.1. A mudança na dinâmica das forças produtivas
33
Para Richta, a distinção fundamental entre a era da Revolução Industrial e a da
Revolução Científico-Técnica é conversão da ciência em força produtiva, passando a ser o
elemento determinante do desenvolvimento destas. O avanço da ciência e da tecnologia
quebraram, segundo o autor, as cadeias da Revolução Industrial e transformaram o processo
produtivo, de mero processo operativo, em processo científico. Já em 1972, Richta antecipava
– na esteira das formulações de Marx –, o que hoje é usual no processo produtivo moderno:
Se não há dúvida nenhuma de que o sistema industrial abriu as portas à ciência
como força produtiva, é verdade também que seu funcionamento continuou em
grande parte a depender dos tradicionais procedimentos empíricos, formados através
de gerações. Mas, agora, estamos assistindo a uma aplicação muito mais ampla da ciência: por toda parte, estão sendo empregadas em larga escala práticas não
derivadas dos conhecimentos acumulados durante séculos pelo homem. O curso da
produção é exposto in toto sobre uma plataforma de equações e expressões
algébricas, preparando-se dessa maneira a transformação radical da automação. A
ciência começa a se beneficiar universalmente da força produtiva; e, por outro lado,
a indústria está se beneficiando em toda a sua linha na aplicação tecnológica da
ciência. (RICHTA, 1972, p. 26).
As mudanças no processo de produção causadas pela transformação descrita não são
apenas quantitativas, mas, sobretudo, qualitativas. Este fato é simplesmente negligenciado
pela corrente dominante da economia, a neoclássica. Aqui, a mudança tecnológica aparece
como um fator exógeno à função de produção (que em si mesma já é limitada). A produção é
analisada de forma estática, onde a proporção de utilização dos fatores – capital e trabalho –
aparece em infinitas possibilidades de alocação, podendo ser alterada a qualquer momento de
acordo com os preços relativos de cada um, como se ao capitalista não houvesse diferença
alguma em produzir o mesmo produto com muitas máquinas ou com muitos homens. Mesmo
nos modelos de crescimento econômico, como o modelo de Solow, o conhecimento
tecnológico aparece como exógeno e livremente disponível em toda a economia, dissociado
da acumulação. Vimos, ao contrário, que a mecanização crescente da produção e a mudança
tecnológica são parte constituinte do processo de acumulação de capital.
De fato, em seu aspecto quantitativo, a cientificização da produção acarreta um
gigantesco aumento da produtividade do trabalho, mas o faz, justamente, por alterar a
34
qualidade dos elementos internos das forças produtivas28
e sua relação29
. É fundamental que
captemos a real dimensão da transformação da qualidade da aplicação da ciência operada pela
Revolução Científico-Técnica desde princípios do século XX. O fato de as transformações
qualitativas adquirirem importância central na produtividade do trabalho altera os
pressupostos necessários para a elevação daquela, que reclamará cada vez mais a organização
da atividade científica. Mais uma vez nos remeteremos à Braverman (1987).
Nos últimos vinte e cinco anos do século XIX, começou o que Landes chamou “a
exaustão das possibilidades tecnológicas da Revolução Industrial”. A nova
revolução técnico-científica que reabasteceu o acervo das possibilidades
tecnológicas tinha um caráter consciente e proposital amplamente ausente na antiga.
E conclui:
A revolução técnico-científica, por essa razão, não pode ser compreendida em
termos de inovações específicas – como no caso da Revolução Industrial, que pode
ser corretamente caracterizada por um punhado de invenções básicas –, mas deve
ser compreendida mais em sua totalidade como um modo de produção no qual a
ciência e investigações exaustivas da engenharia foram integradas como parte de
um funcionamento normal. (BRAVERMAN, 1987, p. 146).
A integração da ciência e da tecnologia na produção implica, portanto, que a
capacidade de um capital, um setor ou um país de desenvolverem suas forças produtivas
dependerá do domínio da ciência e de suas aplicações em todas suas fases, da pesquisa básica
ao desenvolvimento de produtos e processos. Já veremos como se dá a busca por este domínio
no capitalismo monopólico.
Detenhamo-nos, por ora, um pouco mais sobre as mudanças qualitativas no processo
de produção concretizadas pela RCT. As principais mudanças no processo de produção são
(RICHTA, 1972, p. 15; DOS SANTOS, 1983, p. 47):
a. Os instrumentos de trabalho superam a condição de máquinas. A automação da
produção permite o nascimento de complexos produtivos autônomos, capazes de
28
Os elementos internos que constituem as forças produtivas são: a força de trabalho, o objeto de trabalho, os
meios de produção e os elementos auxiliares (fontes de energia, instalações, matérias-primas auxiliares, etc.)
(DOS SANTOS, 1986, p. 45). 29 “Desse ponto de vista, o elemento fundamental na evolução da maquinaria não é a dimensão, complexidade ou
velocidade de operação, mas a maneira pela qual suas operações são controladas (BRAVERMAN, 1987, p. 163).
35
executarem funções de controle e auto-correção de suas atividades sem o auxílio
do ser humano, de acordo com objetivos planejados previamente;
b. Os objetos de trabalho já não são simples matérias-primas naturais, mas podem ser
previamente modificados por processos químicos e biológicos capazes de dotá-las
de propriedades ideadas previamente pelo homem. A modelagem das qualidades
das matérias-primas antes de sua entrada no processo de produção evita operações
secundárias durante aquele processo;
c. O trabalhador deixa de ser o único fator subjetivo. Suas funções são cada vez mais
substituídas pelo computador. As implicações deste fato são amplas e serão
debatidas nas próximas linhas;
d. Eleva-se significativamente a demanda por novas fontes de energia.
No plano técnico, as mudanças acima descritas se materializam na automação dos
sistemas de produção, fruto do desenvolvimento da eletrônica, da computação e do controle
numérico, cujos princípios foram descobertos nas primeiras décadas do século XX, e
aplicados largamente a partir da década de 1950. A substituição do cérebro humano por
processadores e controladores de informação desloca a intervenção do homem às fases pré-
produtivas (pesquisa, preparação tecnológica, programação dos robôs, etc.) ao eliminar a
função de vigilância e controle humano da produção. Tem início um processo de produção
extremamente detalhado, mecanizado e contínuo, dentro do qual o ser humano passa a
assumir uma função colateral (RICHTA, 1972, p. 17). A máquina da era da RCT pode agora
operar em função de um plano pré-estabelecido, medir o resultado do seu trabalho durante seu
progresso e efetuar os ajustes e correções necessárias à fabricação do produto de acordo com
o plano. Diante dessas novas características, observa-se uma inversão na tendência do
desenvolvimento da máquina (BRAVERMAN, 1987, p. 165), rumo à universalização: a
adaptabilidade proporcionada pelo controle numérico permite reaglutinar as etapas do
processo de trabalho que haviam sido desintegradas no período da Revolução Industrial,
quando cada máquina servia a uma tarefa específica.
Por fim, as transformações operadas pela Revolução Científico-Técnica estimulam o
surgimento de ramos inteiros dedicados à produção de seus elementos constituintes: um novo
impulso é dado à indústria química e de novos materiais; as indústrias de microprocessadores,
controladores, computadores e softwares, etc., crescem vertiginosamente e despontam hoje
como um dos maiores setores econômicos mundiais. A gestão da produção cientificiza-se e
36
aumenta exponencialmente o número de cientistas ligados à pesquisa e diretamente à
produção. Em seções seguintes analisaremos alguns dados referentes à evolução citada acima.
3.2.2. A ciência como investimento: aspectos gerais da RCT no
capitalismo monopolista
Vimos que os avanços tecnológicos implementados na era da Revolução Científico-
Técnica, na busca por menores custos de produção, elevaram drasticamente a produtividade
do trabalho. Essa busca constante do capitalista pelo aumento da produtividade do trabalho
decorre da possibilidade de, por meio desta via, apropriar-se de uma porção superior da mais-
valia do setor ou da economia, uma mais-valia extraordinária, base sobre a qual repousa o
lucro extraordinário.
[...] de fato, ao elevar sua produtividade acima do nível normal em que se estabelece o tempo de trabalho socialmente necessário, ou seja, acima daquele que determina o
valor social da mercadoria, o capitalista individual logra que a mesma jornada de
trabalho propicie um maior produto de valor, precisamente porque, pese à
diminuição em termos reais do valor individual da mercadoria, esta segue
ostentando o mesmo valor social mas é produzia, agora, em maior quantidade;
definitivamente, posto que o valor é uma relação social, é o valor social o que conta
e afirmar que o capitalista individual reduziu o valor unitário de sua mercadoria não
é senão uma maneira de dizer que se reduziram seus custos de produção,
relativamente aos demais capitalistas do setor. É mediante esse mecanismo como o
capital individual obtém uma mais-valia extraordinária, a qual se converte, na
concorrência intercapitalista, no fator por excelência da introdução do progresso
técnico. (MARINI, 1979, p. 8).
Porém, a mudança tecnológica altera também a distribuição do valor produzido dentro
da própria empresa, pela incidência sobre o grau de exploração do trabalho e,
conseqüentemente, sobre a taxa de mais-valia. Vejamos:
Na medida em que esta (o aumento da produtividade) permite ao capitalista
individual reduzir custos, e sendo o capital variável um elemento integrantes destes,
o aumento da produtividade implica a redução da participação dos salários na massa
de valor criada; mesmo que o preço da força de trabalho permaneça invariável (ou seja, a relação entre seu valor e o número de horas trabalhadas, sobre a base de uma
dada intensidade) e tampouco se modifique o salário em termos reais ou nominais,
há uma elevação do grau de exploração (a relação entre trabalho necessário e
37
trabalho excedente) e a taxa de mais-valia (relação essa expressa em valor)
(MARINI, 1979, p. 8).
No longo prazo, porém, quando o aumento da produtividade se difunde e se generaliza
aos outros capitalistas, os custos de produção caem em todo o setor e cai, conseqüentemente,
o preço médio da produção. Da ótica do valor, a diminuição do valor unitário das mercadorias
implica uma diminuição da massa de mais-valia incorporada em cada produto e, caso a
mudança tecnológica aumente a composição orgânica do capital, em uma queda da taxa de
lucro30
(DOS SANTOS, 1983, p. 53). O aspecto contraditório da mudança tecnológica no
capitalismo reside no fato de ser uma necessidade e, ao mesmo tempo, um fator gerador de
constante instabilidade econômica para a empresa e para o sistema como um todo.
Assim, a introdução de uma nova tecnologia por parte do capitalista só será vantajosa
no curto prazo, até o momento em que se difunda ao restante do setor. Mais: ela será função
do potencial que tenha para aumentar a taxa de lucro, independentemente de sua função da
melhoria do aumento da produtividade da sociedade em geral. Ao capitalista que adota uma
nova tecnologia interessam, portanto, três coisas:
i. Que a tecnologia adotada se difunda o mais lentamente possível, de maneira
que possa se beneficiar por mais tempo da vantagem tecnológica. “Essa
regulação será tanto mais eficiente quanto maior for o grau de monopolização
que a empresa tem sobre o mercado. Segundo este grau, ela poderá introduzir
e/ou difundir a inovação com maior autonomia de decisão” (DOS SANTOS,
1987, p. 70);
ii. Que baixe o custo das máquinas e matérias-primas que ele compra, reduzindo
o valor dos elementos fixos do capital – sobretudo o capital constante –
diminuindo assim a composição orgânica do capital e se contrapondo à
tendência à queda da taxa de lucro31
;
30
O debate sobre a queda tendencial da taxa de lucro no capitalismo extrapola os limites do presente trabalho.
Sempre que tratarmos do tema, porém, subjacerá a interpretação por nós aceita, desenvolvida no trabalho de Henryk Grossmann. La ley de la acumulación y del derrumbe. Una teoria de la crisis. Siglo XXI editores. 2004,
3ed. 31 “O capitalista só subsitui o capital instalado em grande escala, levando a uma baixa em massa nos seus custos
de capital fixo, em circunstâncias excepcionais, como são as crises econômicas de longo prazo, nas quais há uma
rebaixa automática do valor do capital instalado, em consequência do grande volume de falências, de tal
magnitude que justifica uma substituição em massa da capacidade instalada por outra mais avançada e mais
econômica, o que torna obsoletas as fábricas tecnologicamente superadas. É, portanto, falsa a afirmação de
certos autores no sentido de ver na luta pela desvalorização do capital constante o aspecto essencial do
desenvolvimento tecnológico sob a dominação do MPC. Essa dever ser considerada antes como uma
38
iii. Diminuir a participação do capital variável, para aumentar o domínio do capital
sobre o trabalho, elevando seu poder de barganha, portanto (Dos Santos, 1983.
Pg 54).
Essas três tendências operam de maneira conjugada e contraditória, e cada qual
adquire predominância de acordo com os ciclos econômicos mundiais, o grau de mudança
tecnológica e o grau de monopolização do setor em questão. A forma pela qual o capitalista
restringirá o acesso da tecnologia a seus concorrentes será a do uso de seu poder de
monopólio, cujo aumento é resultado da crescente concentração das mudanças tecnológicas
(DOS SANTOS, 1987, p. 75). Os mecanismos de concentração e centralização do capital,
inerentes ao processo de acumulação capitalista, são bem conhecidos e seu detalhamento
resultaria ocioso neste trabalho32
. Já esclarecemos, também, a maneira pela qual o capitalista
busca diminuir seus custos de produção e aumentar seus lucros. A esta altura do nosso
raciocínio, importa-nos apreender os efeitos sobre o domínio da ciência e da tecnologia à
medida que a concentração e centralização do capital têm lugar.
Em primeiro lugar, a progressiva divisão do trabalho e o uso generalizado da
tecnologia implicam que uma quantidade igual de trabalho moverá mais matérias-primas por
período e que os investimentos em máquinas e instalações tendem a ser cada vez maiores que
os gastos em salários. Em decorrência, tende-se a produzir uma maior concentração das
unidades produtivas e dos gastos em trabalho morto (capital constante: instalações,
maquinaria, matérias-primas) em relação ao trabalho vivo, elevando a composição orgânica
do capital. Do ponto de vista da produção, denominaremos tal processo como concentração
tecnológica, ou seja, de uma concentração dos volumes de capital constante: i. em relação ao
volume de capital variável (aumento da composição orgânica do capital); e ii. em relação à
massa de capitais necessários para iniciar o funcionamento de uma fábrica (aumento da escala
de produção) (DOS SANTOS, 1987, p. 75).
Já analisamos os aspectos contraditórios do aumento da composição orgânica do
capital para o capitalista. Vimos, porém, que a concorrência intercapitalista obriga-o a elevá-
la, mesmo que signifique o rebaixamento de sua taxa de lucro à medida que as inovações
aplicadas se generalizem ao setor.
contratendência ao comportamento monopólico que se nega a substituir a capacidade instalada, que ocorre
fundalmentalmente em situações de crise e recuperação.” (DOS SANTOS, 1987, p. 247). 32 Em sua obra O Capital, Marx elucida este ponto. Ver, especialmente, o capítulo 23 do Livro I.
39
A lógica da acumulação capitalista leva, pois, a um movimento contraditório entre os limites monopolistas ao progresso técnico e os fatores objetivos globais que
obrigam a empresa a absorver o progresso técnico, o que por sua vez conduz a uma
concentração crescente dos meios de produção, num processo anárquico e
contraditório (Dos Santos, 1987. Pg 77).
Esta lógica o impelirá a diminuir os custos dos bens que lhe são fornecidos (setor de
bens de produção), estimulando a introdução de mudanças tecnológicas nesses ramos ou,
inclusive, deslocando-se a eles para introduzir tais mudanças, processo conhecido como
concentração vertical. Ao lado da concentração vertical observa-se também uma alteração
qualitativa da estrutura produtiva, caracterizada pela divisão das unidades produtivas em
várias fábricas que operam de maneira combinada entre si, em um mecanismo que demonstra
a amplitude da divisão do trabalho, e tende a englobar unidades econômicas regionais,
nacionais e internacionais (DOS SANTOS, 1987, p. 72).
O processo de concentração implica uma maior socialização da produção e,
conseqüentemente, leva à maior complexificação e diferenciação do processo produtivo
global, com a desagregação de etapas diferentes da produção em unidades produtivas
individuais, que se transformam em indústrias especializadas ou em novos ramos da
produção. Isto exige que haja um plano técnico geral que coordene as diversas etapas da
produção em termos de volume de produção, demanda, qualidade dos produtos, etc. Esta
necessidade implica, por sua vez, o aumento significativo da unidades de decisão da economia
capitalista e uma centralização do processo de decisão econômica que é exercido atualmente
pelo monopólio, em sua estrutura multi-fábricas ou através de uma rede subcontratação e de
pequenas e médias firmas abastecedoras (DOS SANTOS, 1987, p. 78-79), cuja autonomia é
suprimida em favor da grande empresa monopolista. Tal centralização abrange todos os
aspectos da produção: o monopólio define os sistemas de produção de suas subsidiárias e
empresas subcontradas, a característica dos produtos a serem produzidos, o tipo de tecnologia
utilizada, etc. Na seção seguinte situaremos historicamente este desenvolvimento lógico de
concentração e centralização do capital e seus efeitos sobre a divisão internacional do
trabalho.
Mas a socialização da produção operada pela RCT exige outro âmbito a ser dominado
pelas empresas: a produção e o conhecimento científico. Dado que o desenvolvimento
40
tecnológico está intimamente ligado ao desenvolvimento científico33
, as empresas incluirão o
domínio deste campo – da pesquisa básica à invenção – cada vez mais em suas estratégias de
crescimento como um imperativo do monopólio sobre as novas tecnologias, internalizando
algumas etapas da pesquisa e desenvolvimento dentro de suas matrizes e contanto com
generoso e cada vez maior aporte financeiro do Estado e de universidades (DOS SANTOS,
1983, p. 58), em uma estratégia nacional de desenvolvimento científico, sobretudo nos países
centrais. Por outro lado, conformar-se-á um sistema mundial de produção de conhecimento,
hegemonizado pelos monopólios dos países centrais e composto por centros de pesquisa,
revistas científicas de alcance mundial e políticas de atração de cientistas de países
periféricos, com o expresso objetivo de drenar aos países centrais os talentos científicos e os
conhecimentos relevantes que possam resultar em patentes e domínio de novas tecnologias.
Ou seja, o monopólio organizará tanto o sistema de C&T do país de origem como os sistemas
dos países periféricos que lhe possa prover conhecimentos potencialmente lucrativos
(OURIQUES, 2011, p. 81).
A passagem da ciência de mera atividade individual e esporádica ao status de força
produtiva social estende sua abrangência a campos cada vez maiores do conhecimento
humano. Entretanto, o fato desta nova força produtiva ter seu desenvolvimento circunscrito
aos estreitos limites das relações sociais de produção capitalistas, resulta em sua aplicação,
sobretudo, ao processo produtivo. A ciência torna-se, assim, um investimento. Os gastos de
Pesquisa e o Desenvolvimento (P&D) passam a fazer parte dos custos totais das empresas
que, para sua implementação, contratam cientistas, engenheiros e técnicos, constroem
laboratórios. Este fenômeno é recente, inicia-se nas primeiras décadas do século XX e
generaliza-se entre os países centrais após a Segunda Guerra Mundial, quando surgem os
33 Grosso modo, a pesquisa científica e tecnológica pode ser dividida em: i) pesquisa básica: cujo objetivo é a
compreensão dos processos naturais, humanos e sociais em geral, sem o objetivo direto de aplicação; pesquisa
aplicada: destina-se à aplicação do conhecimento teórico humano na intervenção da realidade; e
desenvolvimento: conjunto de estudos que buscam adaptar produtos ou processos à produção e ao mercado. O
estreito vínculo existente entre desenvolvimento tecnológico e pesquisa científica reside no fato de que a
pesquisa básica é a condição para transformações radicais que dão origem a novos produtos e processos. “Do ponto de vista do conhecimento humano em geral, a pesquisa básica ou fundamental aparece como sendo a mais
importante, pois ela é que abre caminho para a fase aplicada e o desenvolvimento. Do ponto de vista econômico,
é o desenvolvimento final do produto ou processo que define a importância comercial da pesquisa – e sua
conversão em fato econômico – ao permitir a inovação e a difusão”. (DOS SANTOS, 1983, p. 100). Porém,
“Apesar de as pesquisas básicas e aplicadas também serem reflexo de um modo de produção determinado, um
caráter mais geral lhes permite maiores amplitudes de utilização e implicações que as independentizam em maior
grau do modo de produção que lhes dá origem.” (DOS SANTOS, 1983, p. 67). É esta autonomia relativa da
ciência em relação ao modo de produção a que está subordinada que evidenciará as potencialidades de aplicação
para elevar o bem-estar da humanidade e as barreiras impostas pelas relações de produção capitalistas vigentes.
41
grandes laboratórios34
, centros de pesquisa científica e tecnológica, e a correlata articulação
entre Estado, universidade e empresa monopolista neste âmbito. Em outras palavras, o modo
de produção capitalista em sua fase monopolista tem que dominar todos os âmbitos da
sociedade que condicionem o desenvolvimento científico e tecnológico:
Todavia, dominar a produção do conhecimento científico e tecnológico,
monopolizar a propriedade de seus resultados, o direito de sua aplicação e,
finalmente, orientá-lo na direção dos objetivos assinalados anteriormente obrigam o
modo de produção capitalista a intervir cada vez mais na produção científica, a
utilizar o aparelho estatal como apoio fundamental nesta tarefa e a promover a
ciência como objeto central da formação cultural e da educação. Desta forma, as
condições para a RCT são geradas pelo próprio capitalismo e se evidenciam
particularmente na sua fase monopolista. (DOS SANTOS, 1983, p. 60).
Ao internalizarem parte da pesquisa científica e tecnologia, as empresas assumem
também, os riscos de tais dispêndios: os gastos em P&D independem de seus resultados
potencias. Caso não gerem novas tecnologias e produtos capazes de proporcionar à empresa
vantagem em relação a seus concorrentes, terão que arcar com eles da mesma forma,
diminuindo, portanto, seus lucros. Daí a necessidade da intervenção cada vez maior do Estado
como planejador e financiador da P&D (DOS SANTOS, 1983, p. 73) em todos seus níveis.
Todavia, a participação do Estado na era da Revolução Científico-Técnica não se resume a de
“absorvedor” dos riscos inerentes à pesquisa científica. Sua função é mais ampla,
imprescindível no capitalismo monopolista, como trataremos de mostrar a seguir.
3.2.3.Ciência como investimento: o Estado na era da RCT
34 “Os laboratórios de pesquisa das empresas dos Estados Unidos começaram mais ou menos com os inícios da
era do capitalismo monopolista. A primeira organização de pesquisa fundada com o propósito específico de
invenção sistemática foi inaugurada por Thomas Edison em Menlo Park, Nova Jersey, em 1876 (...) Estes foram
os precursores das organizações de pesquisa nas empresas: Eastman Kodak (1893); B. F. Goodrich (1895) e o
mais importante, a General Eletric (1900)” (BRAVERMAN, 1987. Pg. 144).
42
A organização da P&D moderna é de extrema complexidade, como já assinalamos. O
progressivo domínio do homem sobre a natureza cria, a cada momento, novas áreas do
conhecimento e novas especializações, fruto do desenvolvimento anterior da ciência e, ao
mesmo tempo, condição para seu desenvolvimento posterior. Esta socialização da ciência e
conseqüente divisão do trabalho científico tornam os avanços nas áreas do conhecimento cada
vez mais dependentes uma das outras. Os métodos de pesquisa exigem, na medida em que
evoluem, condições materiais cada vez mais sofisticadas de trabalho, tais como laboratórios,
aceleradores de partículas, microscópios de alta precisão, produtos químicos e biológicos de
difícil síntese; além de uma extensa formação de cientistas, engenheiros e técnicos. Tal
crescimento quantitativo e qualitativo da atividade científica pressupõe gastos cada vez
maiores e uma coordenação precisa entre os diversos setores de P&D, ações que escapam às
possibilidades da empresa monopolista. Esta calcula e define sua estratégia de crescimento em
termos microeconômicos, ao nível da firma, em termos do lucro individual. É incapaz,
portanto, de planejar a pesquisa científica em sua totalidade e arcar com os elevados custos
necessários à conformação de um sistema de pesquisa científica.
A solução – ainda que precária – desenvolvida historicamente para pôr termo à
contradição entre a necessidade do capital de fazer avançar o domínio da ciência e tecnologia
e a impossibilidade de fazê-lo no atual estágio de socialização das forças produtivas é a
intervenção do Estado como o principal articulador da pesquisa e desenvolvimento (DOS
SANTOS, 1983, p. 80). Neste estágio, sobretudo após a década de 50, o Estado passa a atuar
como capitalista global, como afirma Dos Santos (1983, p. 144):
Estamos aqui diante de uma manifestação importante do capitalismo monopolista de
Estado. Do mesmo modo que em outros aspectos da vida econômica, no campo
científico e tecnológico – que representa o núcleo do processo de acumulação
capitalista atual – as despesas estatais, isto é, a expressão mais elevada da
centralização dos recursos nacionais, convertem-se em elementos essenciais, em
partes constitutivas desta faceta da acumulação. A necessidade da intervenção estatal
explica-se pelo grau de concentração e centralização dos investimentos e recursos
financeiros necessários para a P&D, os quais na fase atual da revolução científico-técnica reduzem os níveis exigidos de concentração e centralização atingidos pelo
capital corporativo, grupos econômicos ou associações mais amplas de capital
privado; estes finalmente não conseguem reunir por conta própria os recursos
suficientes para financiar a P&D. Por outro lado, os investimentos em P&D, como
vimos, implicam em riscos e custos não retribuídos, sobre os quais a empresa não
quer assumir a responsabilidade e que por isso deverão ser assumidos por um órgão
coletivo que não tenha fins lucrativos, como o Estado (DOS SANTOS, 1983, p. 144).
43
O Estado passa a coordenar todos os âmbitos da pesquisa científica nacional,
organizando a política científica e tecnológica conforme aos ditames das grandes empresas
monopolistas. São deste período – primeiras décadas do século XX, com o auge nas décadas
de 50 e 60 do mesmo – os grandes entes estatais de coordenação e pesquisa científica: o
National Research Council em 1916, nos EUA e no Canadá; o Department of Industrial and
Scientific Research do Reuno Unido, no mesmo ano; a instituição da Academia de Ciência da
URSS como órgão de Estado em 1917 ; o Consiglio Nazionale delle Richerche em 1923, na
Itália; o CNRS, Centre National de la Recherche Cientifique da França, em 1941; a National
Science Foundation dos Estados Unidos, criada em 1950 (LEITE LOPES, 1978, p. 18-19).
Os Estados organizarão, assim, um sistema de ensino capaz de formar os cientistas e
técnicos necessários à pesquisa básica e aplicada; absorverão as etapas da pesquisa mais
custosas e arriscadas, principalmente a pesquisa básica; financiarão direta e indiretamente a
pesquisa aplicada das empresas, através de linhas de crédito, subsídios, utilização de
estruturas universitárias, parcerias governo-empresa, etc. Os diferentes setores monopolistas
passarão a disputar as verbas e estatais para a pesquisa das mais diversas formas. De fato,
como nos mostra Dos Santos, existe uma perfeita correlação entre as pesquisas financiadas
pelo Estado e os setores econômicos com maior grau de concentração e monopólio. O Estado
torna-se, assim, o principal encarregado do financiamento da P&D e o principal doador de
recursos para o setor privado (DOS SANTOS, 1983, p. 147).
Mas como se estratifica a participação estatal no financiamento e no planejamento dos
diversos níveis da P&D? Grosso modo, nos países centrais, a Revolução Científico-Técnica
cria uma divisão do trabalho de pesquisa, no qual o Estado financia e realiza diretamente a
pesquisa básica através das universidades e centros de pesquisa, que também se encarregam
que pesquisas de utilidade pública. Os laboratórios privados desenvolvem a pesquisa aplicada
de acordo com os interesses das empresas. Ou seja, é o Estado quem se encarrega das etapas
mais custosas e arriscadas da pesquisa científica (pesquisa básica), além dos setores que não
apresentam perspectivas de lucro (pesquisa de interesse público). As empresas, por sua vez,
assumem as etapas cujo risco é menor (desenvolvimento de produtos e processos) (DOS
SANTOS, 1983, p. 133-134). Em geral, esta última etapa é bastante cara e só a grande
empresa terá condições de absorvê-la:
Os graves problemas e os gastos de desenvolvimento que são inerentes à conversão
de uma invenção num produto comercial mostram que a chave da hegemonia
44
tecnológica está na capacidade financeira de se realizar o desenvolvimento final do
produto ou processo (DOS SANTOS, 1983, p. 72).
Ou seja, mesmo que a pequena empresa seja mais flexível e inventiva na criação de
inovações, a capacidade de aplicá-las está determinada em grande parte por sua capacidade
financeira, que as impede de competir com os grandes monopólios, a não ser em novas áreas
do conhecimento. A tendência à monopolização, cedo ou tarde, porém, atingirá este novo
setor.
Com relação aos países periféricos, elevado percentual de pesquisa básica em relação
às etapas aplicada e de desenvolvimento expressa, ao contrário de uma intenção explícita de
assumir a vanguarda do conhecimento científico, a ausência destas últimas, realizadas
majoritariamente nas matrizes de empresas multinacionais dos países centrais onde têm
origem. A pesquisa básica, naqueles países, é geralmente pouco efetiva e original, de escassa
capacidade de impulsionar o desenvolvimento de um sistema de C&T autônomo.
3.2.4. RCT e o emprego
Toda e qualquer transformação nas forças produtivas sociais influenciam a natureza do
trabalho humano e suas estruturas tipológicas. Já debatemos brevemente a forma pela qual a
grande indústria moderna realiza a subsunção real do trabalho ao capital, a partir da qual as
condições de trabalho dominam o trabalhador, passando esse a constituir mera engrenagem do
processo produtivo total.
No fluxo da produção mecanizada, no qual o complexo das máquinas constitui em si mesmo um todo único, - elemento este que serve à coletividade dos trabalhadores e
controla o trabalho elementar de todo o grupo – a própria realização dialética de
produção encontra sua adequada materialização técnica. A auto-expansão do capital
através do trabalho e o fato de que o próprio trabalho é dominado pelas condições de
trabalho encontram a expressão material e técnica que lhes corresponde (RICHTA,
1972, p. 38)
A Revolução Científico-Técnica, ao transformar a dinâmica das forças produtivas por
meio da ciência, revoluciona também o processo de trabalho, transformando-o, de mero
45
processo operativo, em um processo científico e planejado de antemão. Com a prevalência da
aplicação tecnológica da ciência no processo produtivo, os elementos intensivos assumem
maior importância do que o volume dos meios de produção (DOS SANTOS, 1983, p. 50). Há
uma progressiva automação das funções antes exercidas pelo homem, deslocando-lhe a uma
posição colateral no processo produtivo, com implicações profundas no campo da estrutura
das ocupações, da preparação profissional, na educação, etc., que apresentaremos a seguir.
Do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, a RCT, pela primeira vez
na história da humanidade, apresenta a possibilidade objetiva da superação do trabalho
imediato e fragmentado da época industrial. A automação, ao substituir a força física e
mental do homem em praticamente todo o processo produtivo – da execução mecânica ao
controle e correção da produção, passado pelo transporte intra-fábrica, controle de qualidade,
etc. – apresenta a possibilidade real de transferir a participação do trabalhador a funções pré-
produtivas exigindo-lhe, sobretudo, um conhecimento universal técnico, econômico,
sociológico, etc. (RICHTA, 1972, p. 108). Em outras palavras, abre-se a possibilidade de uma
universalização do trabalho como forma de impulsionar o progresso humano em geral.
Segundo o autor, a RCT, “[...] libera-o de sua função de simples engrenagem num sistema
mecânico e lhe oferece a posição de inspirador, de criador, de dono do sistema tecnológico,
em condições de ficar fora do processo imediato de trabalho.” (RICHTA, 1972, p. 106).
De fato, observa-se o aumento absoluto e relativo do pessoal técnico e especialista em
todas as áreas da produção, principalmente nas áreas relacionadas à C&T, no trabalho de
escritório e nos serviços, dando a idéia do surgimento de uma “nova classe média”, apesar de
serem conseqüência de uma diferenciação no seio da classe trabalhadora (RICHTA, 1972, p.
242–243).Em contrapartida, há uma diminuição relativa dos trabalhadores vinculados à
produção direta, e um aumento do emprego nos setores não produtivos (RICHTA, 1972, p.
112-113), ainda que, em termos absolutos, aqueles possam inclusive aumentar em número,
devido ao aumento da produtividade e da produção absoluta resultante da automação
(BRAVERMAN, 1987, p. 203). Outro aspecto característico da era da Revolução Científico-
Técnica é o desenvolvimento dos sistemas de educação em todos os níveis, da formação de
pessoal técnico aos cientistas, o que Richta caracteriza como uma revolução cultural sem
precedentes (RICHTA, 1972, p. 126).
No entanto, as mudanças acima indicadas se efetivam no seio das relações de
produção capitalista em sua fase monopólica, cujos determinantes circunscrevem e limitam as
46
possibilidades de realização abertas pela Revolução Científico-Técnica. Mais: a necessária
manutenção da acumulação a partir da relação capital-trabalho acaba por deformar aquelas
possibilidades e as transforma no seu contrário. A potencial superação do trabalho elementar,
em vez de resultar na diminuição da jornada de trabalho, planejamento coletivo da produção e
capacitação do operário fabril, resulta na desvalorização da força de trabalho pelo decréscimo
geral da especialização exigida35
, na elevação do desemprego estrutural e reforço do poder
das gerências36
sobre os trabalhadores. Não há, porém, uma inversão na relação entre aumento
da produtividade e grau de exploração da força de trabalho: essa continua sendo direta. O fato
de haja setores de alta produtividade que proporcionem salários superiores à média não
alteram a tendência descrita. O aumento da produtividade pode, de fato, permitir um aumento
do salário sem alterações significativas na taxa de lucro. (Dos Santos, 1987. Pg. 108)
Enquanto as relações capitalistas de produção regerem o desenvolvimento da
Revolução Científico-Técnica, observaremos sua deformação tanto na criação e aplicação da
ciência quanto no papel desempenhado pelo ser humano dentro do processo produtivo. Ambas
conseqüências serão decisivas aos analisarmos as implicações da RCT nos países periféricos.
4. REVOLUÇÃO CIENTÍFICO-TÉCNICA E PAÍSES
DEPENDENTES
35 “O processo tornou-se mais complexo, mas este está perdido para os trabalhadores, que não sobem com o
processo, mas se afundam debaixo dele. Exige-se de cada um desses trabalhadores que conheçam e
compreendam não mais que o trabalhador isolado de antigamente, mas muito menos. O mecânico especializado
é, por esta inovação, considerado deliberadamente obsoleto como a ventoinha ou o telégrafo de Morse, e via de
regra é substituído por três espécies de operadores.”. (BRAVERMAN, 1987, p. 172). Ou autor exemplifica
ricamente tal processo no capítulo 9 do referido livro. 36 “A capacidade humana para controlar o processo de trabalho mediante maquinaria é dimensionada pelo
gerenciamento desde o início do capitalismo como o meio principal pelo qual a produção pode ser controlada
não pelo produtor imediato, mas pelos proprietários e representantes do capital. Assim, além de sua função
técnica de aumentar a produtividade do trabalho – que seria uma característica da maquinaria em qualquer
sistema social –, a maquinaria tem também no sistema capitalista a função de destituir a massa de trabalhadores
de seu controle sobre o próprio trabalho.” (BRAVERMAN, 1987, p. 167-168).
47
No capítulo anterior analisamos a transformação da dinâmica das forças produtivas da
humanidade causada pela Revolução Científico-Técnica. O ingresso definitivo da ciência no
processo produtivo acarreta conseqüências muito mais extensas do que os efeitos sobre a
produtividade do trabalho ocasionado por sua aplicação. A gigantesca elevação da
produtividade do trabalho após a década de 1950 – ainda que apareça como o aspecto mais
marcante do período – só foi possível graças a significativas transformações no processo de
trabalho e na organização gerencial das empresas; ao processo de concentração e
centralização do capital, que dá origem às corporações multinacionais; à organização do
processo de Pesquisa e Desenvolvimento em todas suas fases; e às novas formas de
intervenção do Estado, que passa a atuar como capitalista global.
Os elementos citados acima não são, no entanto, suficientes para caracterizar o período
da Revolução Científico-Técnica em sua totalidade. Resta saber quais foram as conseqüências
de tal transformação sobre o capitalismo em escala mundial neste período, afinal de contas,
basta um pouco de atenção para perceber que o desenvolvimento desigual do capitalismo
opera também no âmbito da ciência e da tecnologia. Qual o fundamento de tal desigualdade?
Por alguns países concentram o grosso da pesquisa científica e da produção de patentes no
mundo? Por que em outros esta realidade não existe, não lhes restando outra alternativa senão
o consumo dos produtos tecnológicos dos países avançados?
O raciocínio que tenta buscar a razão do maior investimento em C&T nos países
centrais em seu maior desenvolvimento econômico não nos parece consistente. Além de
óbvia, não passa de mera tautologia: os países que mais investem em C&T o fazem porque
são mais desenvolvidos; e os países são mais desenvolvidos porque são os que mais investem
em C&T. Tampouco nos parecem consistentes as explicações que tentam imputar a
inexistência de indicadores robustos no âmbito da C&T nos países periféricos a fatores tais
como a “ausência de cultura empreendedora do empresariado nacional”, “fragilidade das
instituições” ou o “excesso de burocracia para iniciativas inovadoras”. Segundo essa
explicação, os países centrais estariam na vanguarda da produção de C&T justamente por
gozarem daqueles atributos culturais – que nos países periféricos inexistem – capazes de
estimular o desenvolvimento econômico por meio da ciência e da tecnologia. Nossa dúvida
quanto à efetividade de tais “teorias” deriva, principalmente, da sua ineficácia prática ao
longo das últimas décadas, não obstante o esforço público por meio de uma série de
48
incentivos e leis – no caso do Brasil – destinados especificamente ao estímulo da inovação
tecnológica37
. Pois, para nós,
[...] se a política recomendada não é efetiva, levanta suspeitas sobre a teoria da qual
deriva; e se a teoria empregada é inadequada, importa relativamente pouco se as
reclamações feitas sobre alguns aspectos parciais da realidade são, de fato,
empiricamente exatos. (FRANK, 1976, p 36).
Ao fim e a cabo, tais explicações chegam às mesmas conclusões práticas: a necessária
importação de valores, cultura, instituições e, obviamente, capital e tecnologia estrangeiras.
No entanto, mínimo conhecimento histórico do desenvolvimento dos países centrais e
periféricos mostra que: i. tais atributos professados pelos ideólogos da inovação nunca
existiram nos países centrais da forma em que nos são “desenhados”; e ii. a aplicação
daquelas receitas os países periféricos resultaram sempre no aprofundamento do
subdesenvolvimento e da dependência38
.
Em seus aspectos fundamentais, a ineficácia das teses que tentam explicar a profunda
brecha científica e tecnológica existente entre os países centrais e periféricos deriva da
incompreensão do desenvolvimento do capitalismo em escala mundial até alcançar a fase da
RCT. O capitalismo, como modo de produção, desenvolveu-se, desde o século XVI, em bases
mundiais, conformando uma Divisão Internacional do Trabalho entre metrópoles
desenvolvidas e satélites subdesenvolvidos, estas últimas incapazes de definir seu destino pela
subordinação econômica e política imposta pelas primeiras. “O atual subdesenvolvimento da
América Latina é o resultado de sua participação secular no processo de desenvolvimento
capitalista mundial” (FRANK, 1976, p. 26). Será esta relação de subordinação, contínua e
37 Em artigo de opinião intitulado “Por que nossas firmas não inovam?”, publicado jornal Valor Econômico, o
professor Naercio Menezes constata a baixa taxa de inovação das empresas brasileiras, não obstante os inúmeros
incentivos existentes no país: “Tanto a Finep como o BNDES tem vários programas para fomentar a inovação,
subsidiando atividades de P&D, inclusive com recursos não reembolsáveis [...]. Além disso, o governo federal
tem introduzido várias leis nos últimos anos para tentar aumentar as inovações, sem nenhum efeito substantivo”.
As receitas a que chega repetem as ideologias liberalizantes já criticadas por Frank, tais como “Existem no Brasil fortes barreiras à competição, que fazem com que empresas ineficientes operem em todos os setores” e “O país
protege e subsidia setores que precisariam de mais competição”. Jornal Valor Econômico, São Paulo, p. A11, 18
nov. 2011. O que o autor omite é que a alta taxa de inovação nos países centrais se deve justamente ao subsidio e
à proteção do Estado às grandes empresas de tecnologia! 38 Se pouco eficazes na superação dos condiciones do “atraso” científico e tecnológico dos países
subdesenvolvidos, tais “teorias” possuem a virtude de se atualizarem constantemente sem a alteração seus
pressupostos fundamentais. A crítica a estas feitas por Frank (1976) no capítulo O traje do imperador goza, por
isso, de plena atualidade e é ponto de partida obrigatório para o estudo dos efeitos de sua aplicação ao longo dos
últimos 50 anos.
49
intensificada até os dias de hoje (apesar das mudanças qualitativas que tenha sofrido), a
determinante do aparecimento das transformações características da RCT nos países centrais,
sobretudo nos Estados Unidos da América. Em outras palavras, ainda que seja correto
caracterizar a Revolução Científico-Técnica como um fenômeno mundial, pois ligado à
dinâmica própria da acumulação de capital e às inerentes contradições a que está sujeita, as
modalidades que ela assumirá nos diferentes países do mundo será função da posição de cada
um na Divisão Internacional do Trabalho. Assim, não nos resta outro caminho que não seja a
retomada do processo histórico do desenvolvimento do modo de produção capitalista em sua
relação com a América Latina, região do capitalismo periférico que nos interessa para os fins
desta monografia.
4.1. Divisão Internacional do Trabalho, imperialismo e
dependência
É a conquista do século XVI que põe a América Latina no cenário do desenvolvimento
do capitalismo mundial. Neste momento, atingia seu auge o capitalismo mercantil e a
expansão das colônias ibéricas dava nota da superioridade desta região do mundo na corrida
por novos espaços de conquista territorial. A partir de então – mais cedo nas colônias
espanholas do que no Brasil – a América Latina é chamada a participar do comércio
internacional como um pólo de extração de matérias-primas e metais preciosos, cujo fluxo aos
países metropolitanos permitiu o desenvolvimento do capital bancário e comercial na Europa,
sustentou o crescimento manufatureiro europeu e abriu caminho para o surgimento da grande
indústria moderna.
Neste primeiro momento de vínculo, os países ibéricos estabeleceram com as colônias
uma estrutura metrópole-satélite, onde o monopólio da primeira determinava o
desenvolvimento da última à condição de produtora de matérias-primas de que necessitava a
Europa. As regiões produtoras se articulavam com a metrópole e tinham seus ciclos de
florescimento e depressão econômica dependentes das oscilações do mercado europeu.
Quando os preços dos produtos destas regiões caíam ou a metrópole encontrava um centro
produtor mais lucrativo, tais regiões entravam em um profundo processo de regressão
50
econômica (FRANK, 1970, p. 152, tradução nossa). Não existia, pois, determinação interna
da produção nessas regiões: deviam produzir as mercadorias de interesse do centro
metropolitano, e qualquer indício de florescimento que colocasse em risco aquele monopólio
econômico eram prontamente aniquilados. Basta recordar das tentativas de criação de
manufaturas em terras brasileiras – em Minas Gerais e São Paulo – no século XVIII (FRANK,
1970, p. 162, tradução nossa).
A partir de começos do século XVIII, o centro metropolitano britânico vai
progressivamente subordinando as então metrópoles Portugal e Espanha39
, tomando conta de
todo o comércio com as colônias latino-americanas e, por conseqüência, de grande do
excedente econômico gerado nesta região do globo. Nas primeiras décadas do século XIX, o
desenvolvimento da grande indústria e a consolidação do capitalismo na Europa, sobretudo na
Inglaterra, dão novo impulso à relação entre Inglaterra e América Latina. Esta é chamada a
uma participação mais ativa no comércio com o Velho Mundo, fornecendo-lhes os alimentos
e as matérias-primas de tinha necessidade, cujo efeito foi o de reduzir o valor da força de
trabalho, o valor do capital constante e aprofundar a divisão do trabalho, condições
necessárias ao advento da Revolução Industrial. Não houvesse cumprido este papel, a criação
da grande indústria moderna sofreria uma série de dificuldades40
. Do ponto de vista do
desenvolvimento da acumulação de capital, este período corresponde, nos países centrais, à
transição do eixo de acumulação da mais-valia absoluta para a mais-valia relativa (MARINI,
2005, 144). Com relação ao desenvolvimento das forças produtivas, este período corresponde
à introdução, também nos países centrais, dos primeiros grandes avanços tecnológicos: a
máquina a vapor, o sistema de máquinas e o transporte ferroviário (RIBEIRO, 2005, p. 194).
Mas tiveram as colônias a mesma sorte dos países europeus?
As conseqüências de tal processo foram exatamente opostas. O período da Revolução
Industrial na Inglaterra corresponde, na América Latina, à independência política de inícios
39 A decadência de Portugal tem no Tratado de Methuen (1703) seu emblemático desfecho. De acordo com o
tratado, Portugal ficava obrigado a comprar a produção de tecidos inglesa, enquanto a Inglaterra comprometia-se
a comprar os vinhos de Portugal. O acordo causou a ruína da indústria têxtil e da economia de Portugal, sendo progressivamente penetrada por capitais ingleses. O excedente das colônias passou a fluir de Portugual à
Inglaterra, dando novo fôlego ao desenvolvimento industrial britânico. 40 “De fato, o desenvolvimento industrial supõe uma grande disponibilidade de produtos agrícolas, que permita a
especialização de parte da sociedade na atividade especificamente industrial. [...] O forte incremento da classe
operária industrial e, em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos
países industriais no século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios de
subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável pelos países latino-americanos”.
Aliada a esta função, a América Latina contribuirá “... para a formação de um mercado de matérias-primas
industriais, cuja importância cresce em função do mesmo desenvolvimento industrial. (MARINI, 2005, p. 142).
51
do século XIX. Longe de revolucionar as bases da produção primário-exportadora sobre a
qual operava no período colonial, as independências consolidam uma burguesia agrário-
exportadora em estreito vínculo com a metrópole inglesa.
[...] ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a
metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a
exportar bens primários, em troca de manufaturas de consumo e – quando a exportação supera as importações – de dívidas. (MARINI, 2005, p. 140).
Os intentos nacionalista de desenvolver uma indústria própria naqueles países foram
novamente aniquilados pelo pacto da burguesia agrário-exportadora com o capital inglês –
cujo caso mais trágico foi a guerra do Paraguai (FRANK, 1970, p. 277) – e a necessidade de
abrir os mercados latino-americanos para a produção européia, justificada através da ideologia
do liberalismo (FRANK, 1970, p. 164), selou a nova posição da América Latina na Divisão
Internacional do Trabalho. Eliminou-se assim qualquer possibilidade de absorção autônoma
dos avanços técnicos produzidos pela Revolução Industrial41
. “Com este liberalismo
econômico, Inglaterra desenvolveu sua indústria, enquanto seus satélites subdesenvolviam
suas manufaturas e sua agricultura” (FRANK, 1970, p. 165, tradução nossa).
Havia outro desfecho possível neste momento? A resposta deve se buscada nos
condicionamentos anteriores que impossibilitaram a vitória de um nacionalismo
industrializante nas ex-colônias. A burguesia agrário-exportadora não tinha interesse algum
em uma política de taxação às importações e às exportações objetivando a proteção da
nascente indústria nacional, pois se aproveitavam dos mecanismos de livre comércio para
garantir preços mais vantajosos a suas mercadorias no exterior e preços mais baixos para a
importação de artigos de consumo. O capital estrangeiro, por sua vez, via na industrialização
dos países latino-americanos uma ameaça à venda de seus produtos industriais (FRANK,
1974, p. 69). Assim,
As linhas de batalha estavam preparadas com a tradicional burguesia latino-
americana em natural aliança com a burguesia industrial-mercantil da metrópole,
41
O fato de que alguns países latino-americanos como Brasil, Argentina e México tenham logrado um incipiente
desenvolvimento industrial no seio da economia exportadora não desqualifica nossa análise, pois a economia
desses países ainda possuíam como eixo a atividade exportadora.
52
contra os débeis industriais nacionalistas da América Latina. O resultado estava
praticamente predeterminado pelo processo histórico anterior de desenvolvimento
capitalista, que desta maneira havia disposto as cartas. (FRANK, 1970, p. 276).
Ou seja, ainda que, teoricamente, a tecnologia da primeira fase da Revolução
Industrial pudesse ser desenvolvida em qualquer país, bastando para tal que houvesse técnicos
capacitados à fabricação de tais produtos (RICHTA, 1972, p. 270 – 271), a estrutura de
classes conformada na América Latina e a penetração do capital estrangeiro durante o período
colonial impediram, de fato, que esta alternativa teórica se concretizasse historicamente. Pelo
contrário, “o desenvolvimento do capitalismo industrial e o livre comércio implicaram, mais
que a abertura da América Latina ao comércio, a adaptação de toda sua estrutura econômica,
política e social às novas necessidades da metrópole” (FRANK, 1970, p. 279).
Do ponto de vista dos recém independentes países latino-americanos, o vínculo
estabelecido com os países centrais implicava uma transferência de valor decorrente do
monopólio da produção industrial nos países centrais42
e do pagamento dos empréstimos
contraídos durante a Independência. Tal transferência aparece, do ponto de vista do capitalista
da nação desfavorecida, como uma queda em sua taxa de lucro. Como forma de compensação
ao valor que lhe é subtraído pelos países centrais, ele lançará mão de uma maior exploração
da força de trabalho, remunerando-a abaixo do seu valor43
(MARINI, 2005, p. 153), cujas
conseqüências se farão sentir particularmente na fase de industrialização dos países latino-
americanos.
Afirmamos anteriormente que é neste período, nas primeiras décadas do século XIX,
que se estabelece definitivamente a Divisão Internacional do Trabalho, estabelecida no
marcos da dependência dos países periféricos, “[...] entendida como uma relação de
subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de
produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência” (MARINI, 2005, p. 141). Pois bem, esta relação se desenvolveu na
forma em que apresentamos até meados do século XIX, possibilitando uma enorme
42 “No segundo caso – transações entre nações que trocam distintas classes de mercadorias, como manufaturas e
matérias-primas – o mero fato de que umas produzam bens que as outras não produzem, ou não o fazem com a
mesma facilidade, permite que as primeiras iludam a lei do valor, isto é, vendam seus produtos a preços
superiores a seu valor, configurando assim uma troca desigual.” (MARINI, 2005, p. 152). 43 As três maneiras apresentadas por Marini para por em marcha o mecanismo da superexploração são 1) o
aumento da intensidade do trabalho, 2) a prolongação da jornada de trabalho e 3) redução do fundo de consumo
do operário – o salário – além do limite necessário à reprodução de sua força de trabalho (MARINI, 2005, p.
154)
53
concentração e centralização de capitais nos países centrais, aumentando o desenvolvimento
da indústria pesada, à concentração das unidades produtivas, dando origem aos monopólios,
aos cartéis, aos trusts e ao desenvolvimento do capital financeiro. Aqueles países passam a
dispor de um excedente econômico que se direciona aos países dependentes em busca de
campos de inversão lucrativos mediante empréstimos públicos, financiamentos, investimentos
em carteira e, em menor medida, investimentos diretos (MARINI, 1974, p. 5). Novas
potências se projetam a nível internacional, sobretudo Estados Unidos e Alemanha, dando
início a uma disputa entra nações – e seus capitais – pelo monopólio econômico,
principalmente por fontes de matérias-primas, a nível mundial (DOS SANTOS, 1993, p. 24),
a etapa imperialista de desenvolvimento do modo de produção capitalista, tal qual qualificou
Lênin em seu trabalho sobre o tema.
Assim, o resumo da história dos monopólios é a seguinte: 1) décadas de 1860 e
1870, o grau superior, culminante, de desenvolvimento da livre concorrência. Os
monopólios não constituem mais do que germes quase imperceptíveis. 2) Depois da
crise de 1873, longo período de desenvolvimento dos cartéis, os quais constituem
ainda apenas uma exceção, não são ainda sólidos, representando apenas um fenômeno passageiro. 3) Ascenso de fins do século XIX e crise de 1900 a 1903: os
cartéis passam a ser uma das bases de toda a vida econômica. O capitalismo
transformou-se em imperialismo. (LENIN, 1981, p. 591).
As características da fase imperialista do capitalismo são exaustivamente apresentadas
no trabalho indicado, sendo ocioso reproduzi-las. Não obstante, dois aspetos que nos
interessam merecem atenção. O primeiro deles é a importância que adquire a exportação de
capital neste período (LENIN, 1981, p. 621). Desde a mirada dos países latino-americanos,
esse movimento de capitais se apresenta como investimento estrangeiro. O capital excedente
nos países centrais fluiu inicialmente aos países latino-americanos nos setores comerciais,
financiando44
também obras de infra-estrutura para a produção (ferrovias, portos, eletricidade)
e exportação de matérias-primas: “[...] os países dependentes criavam, às custas de seu
endividamento, as pré-condições materiais do sistema exportador”(DOS SANTOS, 1993, p.
44 “No Brasil, Argentina, Paraguai, Chile, Guatemala e México [...] o capital nacional construiu as primeiras
ferrovias. No Chile, deu acesso às minas de nitrato e cobrem que viriam a converter-se nas principais
abastecedores de fertilizantes e metal vermelho do mundo; no Brasil, aos cafezais cujo grão abasteceu quase todo
o consumo do globo, e assim em todas as partes. Somente depois que demonstraram ser negócios brilhantes [...]
e quando Inglaterra teve de encontrar saída a seu aço, entrou o capital estrangeiro neste setores para encarregar-
se da propriedade e administração de empresas inicialmente latino-americanas, mediante a compra – a menudo
com o próprio capital latino-americano – das concessões dos nativos”. (FRANK, 1974, p 76, tradução nossa).
54
29). Onde não havia uma oligarquia nacional suficientemente desenvolvida, o capital
estrangeiro monopolizou a própria produção dos produtos primários.
O caso do Brasil é muito típico. Não interessava ao grande capital penetrar na
produção do café e entrar em choque com a burguesia agrária local. Por isso,
localizou-se no setor comercial, onde estabeleceu seu monopólio, articulando-se
com a oligarquia local. (...) Também na Argentina e no Uruguai o capital
internacional se especializou no setor de frigoríficos, isto é, de industrialização de
matéria-prima local, a carne, além de controlar a exportação, deixando a pecuária
para a oligarquia local. (DOS SANTOS, 1993, p 25).
O investimento direto, entretanto, não constituía neste momento a forma predominante dos
investimentos estrangeiros na América Latina.
Estes investimentos se realizavam em carteira, isto é, através da compra de ações e a
especulação na bolsa de valores. Elas se inscreviam num processo de expansão do
capital financeiro e procuravam facilitar a exportação de produtos que exigiam
investimentos muito significativos (como o caso das ferrovias) ou a instalação de
empresas de produção e comercialização de matérias-primas e produtos agrícolas,
para vendê-los nos países mais ricos. (DOS SANTOS, 1977, p. 48).
Seja como for, o fluxo de capitais para a América Latina só aparentemente se apresenta como
o ingresso de capitais aos países dependentes. Ao contrário, a contribuição líquida do
investimento estrangeiro não é pequena nem grande, é negativa, afirma Frank (1970; 1976)
em seus trabalhos45
.
Em segundo lugar, e de forma a completar a fotografia da época do imperialismo para
os fins que nos interessam, debrucemo-nos sobre a questão do ponto de vista das forças
produtivas da época dos monopólios. Esta nova fase leva consigo o selo dos motores elétricos,
da siderurgia e, posteriormente, dos motores de combustão interna movidos a derivados da
nascente indústria do petróleo, da produção em massa e da administração científica da
produção (RIBEIRO, 2005, p. 194 ; DOS SANTOS, 1993, p. 33). Tais avanços técnicos
foram acompanhados de uma elevação da concentração e centralização do capital, com os
conhecidos efeitos sobre a produtividade do trabalho. Pois bem, o aumento da produtividade
45 Sobre os efeitos do investimento estrangeiro no Brasil até a década de 1970, ver o capitulo 8 – “Ajuda ou
Exploração” da obra de Frank (1976). Sobre as tendências contemporâneas do IED, indicamos a monografia de
nosso ex-colega de graduação, Luís Felipe Aires Magalhães, sob o título de O Investimento Estrangeiro Direto
(IED) na América Latina: elementos para uma análise totalizante.
55
do trabalho neste período fez crescer de tal maneira a demanda por matérias-primas que
direcionou os monopólios em busca de fontes daquelas em outros países, criando ali toda a
infra-estrutura necessária à sua exploração.
Observemos que a inversão estrangeira se realizou, neste contexto, em função das
necessidades de acumulação de capitais nos países centrais, aprofundando nesses a divisão do
trabalho, a concentração de capitais e o aumento da produtividade. Novamente, para os países
dependentes os efeitos foram rigorosamente opostos. O novo grau de desenvolvimento das
forças produtivas da época do imperialismo não foi incorporado pelos países dependentes.
Pelo contrário, o capital estrangeiro penetrou nessas nações com o objetivo de reforçar sua
estrutura agrário-exportadora, extraindo sempre maiores quantidades da mais-valia aqui
produzida. Este reforço, da mesma forma que no período anterior, é aceito ativamente pelas
classes dominantes dos países dependentes, haja vista o auge econômico experimentado pela
economia exportadora neste período.
A conseqüência, portanto, da expansão imperialista na América Latina foi a de
atualizar a velha estrutura primário-exportadora, agora controlada pelos monopólios dos
países centrais. Consolidou-se, assim, a dependência, com a necessária cristalização de uma
estrutura de classes nos países latino-americanos que atua subordinada às classes dominantes
dos países centrais, e que trata de ressarcir-se da drenagem do excedente econômico – seja
devido à estrutura de preços vigentes na economia mundial, seja pelas práticas financeiras
impostas a estas economias – através de uma maior exploração da força de trabalho local
(MARINI, 1974, p. 8).
Tudo isso vai operando de final do século XIX até primeiras décadas do século XX,
momento em que o capitalismo se revitaliza como sistema econômico. Este curto ciclo de
prosperidade se arrasta até o início da Primeira Guerra Mundial, quando se acirra a disputa
pela hegemonia das nações centrais e seus monopólios em meio à crise econômica do sistema
a partir de 1929. Nos países dependentes, a crise limitou a forma de acumulação baseada no
mercado externo e deslocou o eixo da acumulação para a indústria e para o mercado interno,
dando origem ao processo de industrialização latino-americano. No plano científico, criaram-
se as primeiras universidades e centros de pesquisa para estimular o processo de
industrialização, ainda, porém, com resultados menores (LEITE LOPES, 1978, p. 22). Não é
este o espaço para discutir detalhadamente as etapas de dito processo, que adquiriu distintos
matizes de acordo com o grau de desenvolvimento de cada país latino-americano. Para os fins
56
deste trabalho, basta traçá-lo em linhas gerais, sempre de acordo com nossa premissa
fundamental de que é só à luz do desenvolvimento do modo de produção capitalista em escala
mundial – e de acordo com seus ciclos econômicos – que poderemos interpretar corretamente
as possibilidades e os limites do desenvolvimento dos países latino-americanos.
À primeira vista, assinalemos que a industrialização nos países dependentes adquiriu
plena viabilidade no momento em que se debilitaram os laços que os mantinham
subordinados aos centros imperialistas, principalmente entre as décadas de 1930 a 1950. O
estrangulamento do mercado externo imposto pela crise mundial impossibilitou, por um lado,
a manutenção das importações de bens de consumo, bem como secou a fonte de
financiamento que fluía à América Latina. Por outro lado, a economia exportadora viu seu
mercado de produtos primários drasticamente debilitado, tornando nada atraente a
manutenção dos investimento neste setor. Esse capital fluiu à indústria nascente, por meio do
sistema bancário, em busca de melhores condições de valorização. Ao mesmo tempo, a
política de defesa de preço dos produtos primários garantia a demanda do mercado interno
que a industrialização trataria de suprir. Deriva daí o caráter relativamente pacífico do trânsito
da economia agrário-exportadora para uma economia industrial (MARINI, 1974, p. 11).
O mercado interno a disposição da indústria latino-americana neste momento é, no
entanto, essencialmente distinto daquele do período da Revolução Industrial nos países
centrais. Nestes, o consumo dos trabalhadores foi fundamental para a realização da produção.
Na medida em que o capitalista dos países centrais dependia do mercado interno para
completar o ciclo do capital, estimulou a produção de bens de consumo popular, procurando
inclusive barateá-los através do aumento da produtividade, na medida em que incidia
diretamente no valor da força de trabalho e, pois, sobre a taxa de mais-valia (MARINI, 2005,
p. 168). Aqui, esfera de circulação de bens-salário não se distancia grandemente da esfera de
circulação de bens de consumo suntuário, demandados pelos setores que dispõem da parte da
mais-valia não acumulada. Ao contrário, a industrialização latino-americana não criou sua
própria demanda. Nasceu para suprir a demanda das classes dominantes que, em vista do
estrangulamento do mercado externo, já não podem importar. A compressão sobre o nível de
vida das classes trabalhadoras exercida pela economia exportadora não permitiu o
57
desenvolvimento desta esfera da circulação dos bens de consumo popular, não influenciando,
portanto, o processo de industrialização em seu começo46
.
Vemos, portanto, que em seus primeiros momentos a industrialização na América
Latina não se enfrenta com problemas de demanda. Somente à medida que evolui o processo
de industrialização que se choca a oferta industrial com a demanda existente, período que
coincide, no plano histórico, com o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. Do ponto de
vistas do desenvolvimento das forças produtivas, os limites apresentados neste período se
apresentam da maneira seguinte:
[...] esta situação corresponde ao término da etapa de industrialização de primeiro grau, substitutiva de bens de consumo não-duráveis, e a necessidade de implantar
uma indústria pesada, produtora de bens intermediários, de consumo durável e de
capital. A burguesia industrial toma consciência desta situação, no princípio, pelo
esgotamento relativo com que choca no mercado interno a expansão da indústria
ligeira, de primeiro grau. (MARINI, 1974, p. 13, tradução nossa).
Acirram-se neste momento as disputas entre a burguesia industrial nacional e os
setores exportadores e comerciantes, pois, para levar a cabo a criação das etapas seguintes da
industrialização, fazia-se necessário deslocar os excedentes do setor exportador para o
desenvolvimento da indústria de bens de capitais e estabelecer tarifas protecionistas à
indústria nacional. Os limites do mercado interno, por sua vez, deveriam ser rompidos pela
redistribuição do ingresso nacional, onde a reforma agrária cumpriria uma papel determinante.
A luta entre tais setores se travou no plano da política econômica – nos vaivens da política
cambial e fiscal – e nas ruas, onde a burguesia industrial lançou mão da aliança com as classes
populares através de suas demanda para tentar superar a força das oligarquias (MARINI,
1974, p. 12).
Por seu lado, a burguesia agrário-exportadora passa a contar neste momento com o
poder do capital estrangeiro. A entrada do capital estrangeiro neste momento da disputa foi
46 “Dedicada à produção de bens que não entram, ou entram muito escassamente, na composição do consumo
popular, a produção industrial latino-americana é independente das condições de salário própria dos
trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao não ser um elemento essencial do consumo
individual do operário, o valor das manufaturas não determina o valor da força de trabalho; não será, portanto, a
desvalorização das manufaturas que influirá na taxa de mais-valia. [...] Em segundo lugar, porque a relação
inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder de compra dos operários, isto é, o
fato de que a primeira cresça à custa da redução do segundo, não cria problemas para o capitalista na esfera da
circulação, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas não são elementos essenciais no consumo
individual do operário.” (MARINI, 2005, p. 172).
58
possível graças à recuperação do capitalismo a nível mundial: por volta de 1950, ele já havia
superado a crise do início do século e estava reorganizado sob a hegemonia dos Estados
Unidos. A concentração do capital posta em marcha nas décadas anteriores disponibilizou,
nas mãos das grandes empresas imperialistas, um enorme excedente de capital em busca de
locais de aplicação lucrativa no exterior, e as bases industriais recém criadas nos países
periféricos apresentavam atrativas possibilidades de lucros (MARINI, 2005, p. 174.). O fator
mais importante neste processo, porém, foi o surgimento de uma nova base de expansão das
forças produtivas através dos avanços tecnológicos realizados pela Revolução Científico-
Técnica.
Vendo suas taxas de lucro decaírem em função do esgotamento da primeira fase da
industrialização, impossibilitada de expandir as importações máquinas e equipamentos devido
à crise do setor externo (MARINI, 1974, p. 17) e, ao mesmo tempo, incapaz de atender à
demanda dos setores populares (que diminuiriam sua taxa de lucro), a burguesia nacional,
pressionada pelos trabalhadores, de um lado, e pela burguesia latifundiária em aliança com o
imperialismo, abandonou o projeto nacionalista em curso e encontrou na abertura do país ao
capital estrangeiro a oportunidade de elevar sua produtividade sem o ônus das conseqüências
políticas das reformas de base. No Brasil, este ciclo se inicia com o suicídio de Getúlio
Vargas e se consolida com o golpe militar de 1964, momento em que a luta de classes no país
atingiu seu auge.
Assim como anteriormente, cabe perguntar: havia outra saída possível para o
desenvolvimento das forças produtivas dentro do capitalismo dependente? Em outras
palavras, poderia a América Latina e, principalmente, seus países de maior desenvolvimento
relativo (Brasil, México, Argentina) avançar a uma nova fase de desenvolvimento autônomo
de suas forças produtivas, baseadas na produção de bens de capital, superando os
condicionamentos impostos pela economia agrário-exportadora? Marini afirma que “... a
causa fundamental deste fracasso se deve, em último termo, à impossibilidade da indústria
para se sobrepor ao condicionamento que lhe havia imposto o setor externo, desde seus
primeiros passos (MARINI, 1974, p. 15, tradução nossa). Ou seja, um avanço no sentido de
uma industrialização autônoma implicaria o aplastamento do poder da burguesia exportadora,
uma profunda reforma agrária, uma política protecionista no âmbito externo e uma ampla
redistribuição da renda nacional. Vendo suas taxas de lucro despencar, e não podendo atender
a demandas de seus aliados táticos – os setores populares –, na medida em que sua taxa de
lucro advinha da compressão que exerciam sobre o consumo popular, a burguesia nacional,
59
frente ao acirramento da luta de classes, ciente de que, caso os trabalhadores vencessem,
poderia deixar de existir, preferiu “entregar os dedos para não perder a mão”: aceitou sua
dependência frente ao capital estrangeiro e a condição de sócia menor do imperialismo.
Tem início, assim, uma Nova Divisão do Trabalho a nível mundial, atualizando a
dependência dos países latino-americanos, desta vez sobre as bases industriais da Revolução
Científico-Técnica.
4.2. Nova Divisão do Trabalho e dependência tecnológica
O curso da industrialização autônoma na América Latina é obstaculizado no momento
em que o capitalismo mundial recupera-se da crise que o atingiu durante a crise de 1929 até o
final da Segunda Guerra Mundial. Nos países centrais, este fenômeno se caracteriza pela
recuperação da demanda interna e, principalmente, pela nova base de expansão das forças
produtivas proporcionada pela aplicação dos avanços da Revolução Científico-Técnica: a
computação, a eletrônica e a automação dos sistemas de produção (RICHTA, 1973, p. 271).
Este nova fase representou, como vimos no capítulo anterior, uma salto de socialização das
forças produtivas, fazendo-se necessárias novas estruturas científicas, administrativas,
gerenciais e de organização do trabalho adequadas às exigências do novo auge econômico, na
qual o Estado assume o papel de articulador do capital a nível nacional e mundial em todas
suas fases, acompanhado por novas modalidades de liquidez internacional por de meio
agências financeiras como o FMI e o Banco Mundial, criadas neste período. Surge o
capitalismo monopolista de Estado (DOS SANTOS, 1993, p. 31).No plano da produção,
aparece a empresa multinacional como etapa superior dos monopólios da primeira fase do
imperialismo47
, com alterações substanciais para as modalidades de investimento estrangeiro
nos países dependentes. Vejamos.
47 “A formação das empresas multinacionais tem a ver muito diretamente, com a concentração econômica e com
o desenvolvimento do monopólio e da grande empresa. Há uma correlação direta entre o multinacionalismo, o
monopólio e a grande empresa. As empresas multinacionais são exatamente aquelas que tiveram maior grau de
controle monopolista do mercado interno de seus países e, com raras exceções, são as mais concentradas que já
se formaram em função do mercado internacional. Multinacionalismo, concentração e monopólio estão unidos e
configuram as tendências principais da economia mundial contemporânea” (DOS SANTOS, 1977, p. 52). O
último trabalho de René Dreiffuss, Transformações: Matrizes do século XXI (2004), é rico em dados que
corroboram com a tese aqui apresentada.
60
A moderna empresa multinacional não se desloca ao exterior para especular com
ações, comercializar produtos ou estabelecer bases para a exportação de matérias-primas,
como suas antecessoras. Passam a aplicar capitais no exterior orientados aos mercados
internos dos países onde operam, estabelecendo uma relação muito mais direta entre matrizes
e filiais, articulando-as estas em distintas etapas de produção, subcontratando pequenas e
médias empresas, dando origem aos “complexos produtivos”, coordenados a partir de um
centro de decisão nas nações de origem (DOS SANTOS, 1993, p. 34).
A essência da empresa multinacional se encontra [...] em sua capacidade de dirigir,
de maneira centralizada, este complexo sistema de produção, distribuição e
capitalização em nível mundial [...] que reflete a característica global do sistema
internacional, do qual a empresa multinacional é a célula (DOS SANTOS, 1977, p.
55).
A matriz, centro de decisão da empresa multinacional, passa a deter o monopólio das
condições de investimento nos países destinatários, determinando os locais de sua aplicação,
assim como a etapa da produção e o tipo de tecnologia que será utilizada por suas filias,
contanto com a pressão dos governos de seus países de origem e organismos financeiros
internacionais, além da conivência das classes dominantes dos países receptores do
investimento estrangeiro.
Aos limites da primeira fase da industrialização nos países dependentes virá a se unir,
portanto, o novo auge econômico dos países centrais no pós-guerra. Nestes, o
desenvolvimento do setor de bens de capital em função da Revolução Científico-Técnica
encontra a demanda dos países dependentes por bens de capital capazes de criar a indústria
pesada necessária à nova etapa da industrialização.
Isso levou, por um lado, a que os equipamentos ali produzidos (nos países centrais),
sempre mais sofisticados, tivessem de ser aplicados no setor secundário dos países
periféricos; surge então, por parte das economias centrais, o interesse de impulsionar
nestes o processo de industrialização, com o propósito de criar mercados para sua
indústria pesada. Por outro lado, na medida em que o progresso técnico reduziu nos
países centrais o prazo de reposição do capital fixo praticamente à metade, colocou-se para esses países a necessidade de exportar para a periferia equipamentos e
maquinários que já eram obsoletos antes de que tivessem sido amortizados
totalmente. (MARINI, 2005, p. 174).
61
Esta entrada do capital multinacional em sua nova fase de expansão, combinando
investimento estrangeiro direto (“solucionando” o estrangulamento do setor externo) e entrada
de bens de capital (permitindo a recomposição da taxa de lucros na economia) soluciona o
dilema da burguesia industrial dos países dependentes – que opta, neste momento, pelo
desenvolvimento integrado ao imperialismo – e dá origem a uma Nova Divisão Internacional
do Trabalho48
, não mais entre países industriais e países produtores de matérias-primas, mas
entre países industriais especializados em diferentes etapas da produção, sob a batuta dos
conglomerados multinacionais e do capitalismo monopolista de Estado.
A industrialização latino-americana corresponde assim a uma nova divisão
internacional do trabalho, em cujo marco são transferidas para os países dependentes
etapas inferiores da produção industrial [...], sendo reservadas para os centros
imperialistas as etapas mais avançadas [...] e o monopólio da tecnologia
correspondente (MARINI, 2005, p. 174).
A expansão das inversões externas solucionou, em parte, os problemas derivados da
queda da taxa média de lucro nos países centrais, que se completaram com o aumento do
monopólio e intervenção estatal, possibilitando novas condições para uma ainda maior
socialização das forças produtivas. Deste ponto de vista, vimos que é neste momento que se
consolidam naqueles países os sistemas científicos e tecnológicos, em um esforço articulado
entre universidades, empresas e Estado – da pesquisa básica à difusão – para a pesquisa e
desenvolvimento de novas tecnologias e produtos comercializados, agora, mundialmente.
Podemos afirmar, portanto, que a etapa do desenvolvimento das forças produtivas
caracterizada pela RCT é a base objetiva que dá sustentação à Nova Divisão do Trabalho.
Novamente, cabe indagar qual o efeito destas transformações sobre os países
dependentes, em especial sobre os países latino-americanos. O efeito imediato da introdução
da introdução de novas técnicas de produção pela importação de capital foi o aumento da
produtividade do trabalho, caracterizado pela diminuição do tempo de trabalho socialmente
necessário para a produção das mercadorias. Este aumento da produtividade do trabalho
ocorreu, no entanto, sem a criação de um setor interno de bens de produção, mas via
introdução do capital estrangeiro com técnicas mais modernas que se dirigiram
48 Estamos cientes de que a Nova Divisão do Trabalho foi um processo de alcance mundial. Os excedentes de
capital estadunidense no pós-guerra fluíram para a Europa (em maior medida do que para a América Latina,
inclusive), Sudeste Asiático, Japão, entre outros países. Nosso interesse, neste momento, limitará a análise aos
efeitos de tal processo sobre os países dependentes latino-americanos.
62
majoritariamente aos setores produtores para as camadas médias e altas da população, as
únicas que, como vimos, eram representativas do consumo dos países dependentes.
A presença do capital estrangeiro e a maior produtividade deste setor lograda pela
importação de máquinas49
o possibilitou abocanhar uma parte maior da mais-valia produzida
no país através de um lucro extraordinário, cujos mecanismos elucidamos no capítulo
anterior. O pequeno e médio capital nacional dificilmente podem anular os lucros
extraordinários do capital estrangeiro, devido ao monopólio tecnológico detido por este. Estas
condições geram uma progressiva centralização e concentração do capital nas mãos das
empresas de maior desenvolvimento tecnológico. Deriva daí a monopolização precoce
observada nas economias dependentes (MARINI, 1979), com sua contrapartida nas elevadas
taxas de falência das pequenas empresas.
As empresas médias e pequenas reagirão à transferência de parte de sua mais-valia,
como vimos, por meio de uma super-exploração da força de trabalho. Reproduzem, assim, a
forma de produção específica das economias dependentes, agora em sua fase industrial. Este
mecanismo termina por favorecer, porém, o capital estrangeiro pelo rebaixamento do preço
médio da força de trabalho, pois também cai o nível dos salários em toda a economia. A estes
dois elementos – monopolização e super-exploração do trabalho – somam-se, pela introdução
da tecnologia estrangeira, o aumento do exército industrial de reserva, condição indispensável
para a manutenção da modalidade de exploração da força de trabalho específica da
dependência.
Conseqüentemente, opera uma progressiva dissociação entre a estrutura de produção e
a capacidade real de consumo das massas dos países dependentes. Mesmo os setores
trabalhadores que recebem acima da média do valor da força de trabalho, por conta do efeito
compressor da super-exploração, verão seus ingressos constantemente pressionados. Por fim,
e não em menor importância, capital estrangeiro também limita o mercado interno ao
transferir parte da mais-valia produzida nas economias dependentes por meio de remessas de
lucros, pagamento de juros da dívida, etc. A modalidade específica de produção colocada em
marcha no processo de industrialização latino-americano cava, portanto, um abismo entre o
49 “Por sua conexão com o exterior, mediante a vinculação mais estreita que se dá na fase de circulação entre o
capital estrangeiro sob a forma dinheiro e sob a forma mercadoria, a tendência é que sejam as empresas
estrangeiras que operam na economia dependente, ou as que correspondem à associações de capital interno e
estrangeiro, as que tenhas acesso mais direto à tecnologia implícita nestes meios de produção” (Marini, 1979)
63
nível de consumo das massas e o consumo originado da mais-valia50
, que se expressa na
elevada concentração de renda da região, mesmo nos países de maior desenvolvimento
relativo, como Brasil, Argentina e México. A fatia do consumo da mais-valia não acumulada
passa a representar, seja pelo consumo dos capitalistas, seja pelo aumento do consumo das
chamadas classes médias (via aumento do aparelho burocrático do Estado, subvenção da
produção, estímulo ao consumo, etc.), o grosso do consumo total das economias dependentes,
orientando assim, a produção aos produtos consumidos por estes setores (MARINI, 1979).
Quando os inevitáveis problemas de realização começam a ocorrer em virtude da estreiteza de
seus mercados internos, aqueles países se voltaram a exportação de parte de seus produtos
industrializados.
Ao contrário do que à primeira vista possa aparentar, a passagem de uma econômica
industrial voltada ao mercado interno para uma economia exportadora não representou, no
entanto, um passo rumo à superação da dependência dos países latino-americanos. Pelo
contrário, reforçou-a. Mesmo que, a partir de certo momento, nas décadas de 60, 70 e 80,
países como Brasil e México tenham passado a exportar parte de sua produção industrial51
, tal
conversão se deu sob os ditames dos países centrais que, imersos em uma crise que se estende
de fins dos anos 60 aos inícios dos anos 80, utilizaram as possibilidades de inversão na
América Latina para superá-la.
O impulso de crescimento dos países dependentes [..] foi, precisamente, a crise que
viviam os centros capitalistas. Implicando ali uma sobreacumulação de capital, ela
provocou a busca de novos campos de inversão e deu lugar a grandes fluxos de
inversão em direção a esses países. (MARINI, 1993).
Nos países centrais, neste momento,
[...] se registra a formulação de estratégias de reconversão, a nível dos grandes
setores (automotriz, eletrônica, telecomunicações, etc.), que envolvem medidas de
50 Os dados sobre a concentração de renda no Brasil são esclarecedores. Segundo o IPEA, 10% população mais
rica detêm 74,5 % da renda do país. Apenas 6% da população brasileira é proprietário de algum meio de
produção. 51 “Esta foi a chave do crescimento econômico de Singapura, Hong Kong, Coréia do Sul, Formosa e, em parte,
do México, Brasil, Irã e Indonésia. Trata-se dos NICs (New Industrialized Countries). Eles criaram verdadeiros
paraísos fiscais e estabeleceram enormes incentivos ao capital internacional, gerando um aparente poder
industrial no terceiro mundo.” (DOS SANTOS, 1993, p. 37).
64
modernização e contemplam inversões tecnológicas quantiosas, ao mesmo tempo
em que se agudiza ali a concorrência entre grandes grupos econômicos. As quebras,
fusões e acordos inter-firmas se sucedem e assumem caráter brutal durante a
recessão que atravessaram os centros capitalistas”(MARINI, 1993).
O crescimento econômico dos países latino-americano por meio de capital estrangeiro
e dívida externa possibilitam a recuperação da economia capitalista mundial, sobre a
hegemonia dos Estados Unido, com a posterior consolidação de novas potências como Japão
e Alemanha. A partir dos anos 80, há uma sustentável expansão do comércio mundial e da
taxa de investimento naqueles países, principalmente nos setores de alta tecnologia (MARINI,
1993).
Em seu conjunto, o capitalismo avançado passa a centralizar violentamente os fluxos
de mercadorias e capital, fazendo jogar em seu proveito a expansão do comércio
internacional e reunindo a massa de recursos necessária para levar a cabo o
desenvolvimento de novas tecnologias. (MARINI, 1993).
Com a recuperação dos centros imperialistas mundiais, os países dependentes mais
uma vez se vêem imersos em uma reconversão econômica tendentes a ajustá-los como
provedores de matérias-primas e manufaturas de segunda classe. Cai sua participação no
comércio mundial devido à desvalorização dos produtos que exportam e o parque produtivo
que haviam construído anteriormente é destruído:
O objetivo é forçar a reconversão econômica da região para adequá-la aos
requerimentos dos centros imperialistas, frente aos quais está chamada a produzir e
exportar bens primários e manufaturas de segunda classe e importar bens industriais
de tecnologia superior. Com pequena variação, trata-se de implantar um esquema de
divisão do trabalho similar ao que opera no século XIX. (MARINI, 1993).
Naqueles em que há uma burguesia industrial relativamente desenvolvida, caso
brasileiro, ainda que considerem inevitável sua integração aos blocos capitalista central,
tratam de negociar com este bloco e reservarem a si certa autonomia para aproveitar certas
vantagens de comércio com outros blocos econômicos, particularmente dentro da região. A
consolidação da produção para exportação se dá a partir da plataforma tecnológica dos países
centrais, de maneira associada e subordinada ao imperialismo.
65
É evidente que isto impõe um novo esquema de divisão internacional do trabalho, que afeta não somente as relações entre os países latino-americanos e os centros de
dominação imperialista, mas também as relações daqueles entre si. No primeiro
caso, se transferem certas etapas inferiores do processo de produção, reservando-se
os centros imperialistas as etapas mais avançadas [...] e o controle da tecnologia
correspondente. Cada avanço da indústria latino-americana afirmará, pois, com mais
força sua dependência econômica e tecnológica frente aos centros imperialistas, No
segundo caso, se estabelecem níveis ou hierarquias entre os países da região,
segundos os setores de produção que desenvolveram ou estão em condições de
desenvolver, e se nega aos demais o acesso a ditos tipos de produção, convertendo-
os em simples mercados consumidores (Marini, 1974, p. 19).
A sensação da chegada a uma nova fase do desenvolvimento tecnológico latino-
americano neste momento não pode ser, senão, aparente. Os setores supostamente avançados
que se transferem para a América Latina são, nos países centrais, ultrapassados. A indústria
automobilística, siderurgia e petroquímica e agro-indústria dos anos 50 a 80 (DOS SANTOS,
1993, p. 38) correspondem a etapas anteriores do desenvolvimento tecnológico dos países
centrais. Observe-se que é a eletrônica e a automação que se apresentam como os setores de
maior crescimento no período nos Estados Unidos.
Mais recentemente, a partir dos anos 90, o desenvolvimento microeletrônica inicia
uma nova etapa da Revolução Científico-Técnica a nível mundial. Com em fases anteriores,
os efeitos sobre a produtividade do trabalho, o emprego e a divisão internacional do trabalho
se intensificam no sentido já indicado (KATZ, 1999; MARTINS, 1998). O monopólio de tais
avanços continua se concentrando nos países centrais, principalmente Estados Unidos,
Alemanha e Japão que, através de suas multinacionais e políticas de Estado, tratarão de buscar
de controlar tais campos a nível mundial.
4.2.1.Os efeitos da NDIT sobre a C&T nos países dependentes
Como não podia deixar de ser, as transformações postas em marcha com a integração
dos países latino-americanos na Nova Divisão Internacional do Trabalho se refletiram no
campo da ciência e da tecnologia. Neste momento, o domínio da ciência e da tecnologia
passam a ser as condições fundamentais do desenvolvimento das forças produtivas a nível
mundial. As corporações multinacionais, portanto, à medida que colocam em circulação os
66
novos avanços tecnológicos, procuram assegurar que o país destinatário do investimento não
tenha condições de produzir internamente os equipamentos e produtos exportados,
protegendo-se através de patentes, estabelecendo cláusulas de licenças de exclusividade e
outras concessões plenamente aceitas pelas burguesias dependentes. “A principal
contribuição das corporações metropolitanas (...) é, pois, um bloco tecnológico de patentes,
desenhos, processos industriais, técnicos super-remunerados e, o que não é menos importante,
marcas de fábrica e campanhas de propaganda” (FRANK, 1970, p. 290, tradução nossa). A
transferência de tecnologia pelas multinacionais é, portanto, um mito.
A empresa estrangeira também absorve os pequenos e médios empresários nacionais
por meio de um sistema de empresas subsidiárias, às quais
[...] prescreve seu processo industrial, determina sua produção, é o único comprador
da mesma, reduz seu próprio desembolso de capital apoiando-se na inversão e no crédito de seus contratistas e subcontratistas latino-americanos, e translada o custo
das super-produções cíclicas a estes fabricantes, enquanto reserva para si a “parte de
leão” nos lucros deste acordo, para reinversão e expansão na América Latina, para
remetê-la à metrópole e a outros lugares de suas operações mundiais. (FRANK,
1970, 290).
Não é difícil perceber as conseqüências da dependência tecnológica para os sistemas
de ciência e tecnologia dos países latino-americanos. O consentimento das classes dominantes
ao desenvolvimento integrado no pós-Segunda Guerra, e a decorrente inserção na Nova
Divisão do Trabalho de maneira subordinada, justo no momento em que a Revolução
Científico-Técnica se afirmava a nível mundial, eliminou as possibilidades de um
desenvolvimento autônomo das forças produtivas da região, assim como seu pleno
desenvolvimento científico e tecnológico. Como a tecnologia que aumenta a produtividade
nesses países vem do exterior, não há estímulo (nem necessidade) para a burguesia nacional
de que o progresso técnico seja aqui estimulado à maneira dos países centrais. Por isso o
raquitismo de nosso sistema de C&T. O capital nacional vinculado ao capital estrangeiro, ao
depender desse para sua existência, adapta-se necessariamente às condições técnicas impostas
por esse.
A Nova Divisão do Trabalho, pois, colocou o continente diante de uma nova forma de
dependência: a dependência tecnológica, que significa que a América Latina depende, para a
manutenção de sua estrutura produtiva, uma tecnologia cujo controle está nos centros
67
imperialista. O outro lado da dependência tecnológica é que os centros detentores das
tecnologias mais avançadas passam a definir o local/setor de aplicação de seus investimentos,
de acordo com suas possibilidades de lucro, transportando, inclusive, setores da produção a
outros locais do globo sem a mínima preocupação com o futuro dos países onde operam. As
forças produtivas do país são comandadas por uma força externa, com o consentimento da
burguesia nacional, que, associada ao capital estrangeiro ou produzindo para áreas do
interesse do capital estrangeiro (infra-estrutura, partes e peças, etc.), utiliza também
maquinaria importada. As empresas estrangeiras tampouco têm interesse de investir em
ciência em tecnologia nas suas filiais, já que a maioria de sua P&D é realizada nos países de
origem onde, ademais, contam um complexo sistema científico e tecnológico organizado pelo
Estado que lhes dá suporte (ou “dentro do qual estão articuladas”).
68
5. RCT e NDIT: ALGUMAS CIFRAS
Nos capítulos anteriores apresentamos os aspectos da Revolução Científico-Técnica –
dos primórdios à consolidação em nível mundial – e seus efeitos sobre os distintos países
articulados na Divisão Internacional do Trabalho. Os limites deste trabalho nos impedem de ir
além, ou seja, mostrar as características particulares que assume a penetração da RCT em
cada país dependente, subordinadas à sua composição de classe, do nível particular de
desenvolvimento das forças produtivas e de seus níveis de articulação com os países centrais.
Preocupamo-nos, sobretudo, em traçar tendências gerais, conscientes do ônus embutidos em
análises deste tipo. Mas se o fizemos, foi pelo entendimento de que seriam estéreis quaisquer
tentativas de compreensão dos dilemas vividos científicos e tecnológicos na América Latina
sem o vínculo que as conecta com o estágio da acumulação de capital em escala global e com
seu próprio processo de desenvolvimento capitalista, em particular.
Não obstante as intenções deste trabalho, cremos poder comprovar as principais teses
apresentadas com os dados disponíveis sobre o panorama da produção de C&T no mundo
atualmente. Serão úteis os relatório da National Science Foundation dos EUA e da UNESCO,
órgão das Nações Unidas para a educação ciência e cultura. A prevalência de dados sobre os
Estados Unidos se deve, obviamente, ao seu papel de maior potência econômica e tecnológica
mundial.
5.1. Investimentos globais em P&D
Vimos que a RCT implica a organização cada vez maior da investigação e produção
científica em larga escala, em uma estreita articulação entre empresa monopólica,
universidade e Estado, tendo este último a função de ordenar o sistema como um todo. A
nível mundial, observa-se um constante aumento dos gastos em P&D. Mais recentemente, de
1996 a 2007, a estimativa da NFS é de os gastos mundiais totais em P&D passaram de US$
500 bilhões para US$ 1,1 trilhão, mais do que duplicando em 10 anos (NFS, 2010, p. 0-4).
69
De 1945 a 1974 os gastos em P&D nos Estados Unidos passaram de US$ 710 milhões
para US$ 32 bilhões, em um salto de 0,6 % para 2,29% de seu PIB, justamente no período de
consolidação da RCT, com clara tendência de aumento. Em 2002, os gastos deste país no
setor somavam US$ 277,1 bilhões, e em 2007 chegaram à cifra de US$ 373,1 bilhões,
aproximadamente 2,7% do PIB. A tendência se repetiu na maioria dos países centrais: o Japão
elevou seus gastos em P&D de 1,99% do PIB em 1974 para 3,4% em 2007, totalizando US$
147,9 bilhões neste ano; a Alemanha manteve o percentual, indo de 2,2% a 2,5% do PIB no
mesmo período, totalizando UU$ 72,2 bilhões (DOS SANTOS, 1983, p. 87; UNESCO, 2010,
p. 3).
No relatório Science Report 2010 da UNESCO, salta aos olhos o rápido crescimento
da China na participação nos gastos em P&D. De 2002 a 2007, salta de US$ 39,4 bilhões para
US$ 102,4 bilhões, 1,4% do PIB, ficando atrás somente de EUA e Japão em gastos absolutos.
A situação muda completamente nos países periféricos. Tomemos o exemplo do Brasil: de
2002 a 2007 manteve-se constante a porcentagem de gastos em P&D com relação ao PIB,
cerca de 1,1%, ainda que em valores absolutos tenhamos aumentado de US$ 13,2 bilhões para
US$ 20,2 bilhões, cifras muito inferiores a dos países desenvolvidos e aproximadamente 5
vezes inferior aos dispêndios chineses no setor (UNESCO, 2010, p. 3).
Ainda neste âmbito, nota-se uma elevada concentração dos gastos em P&D mundais.
EUA, Japão, União Européia – com clara predominância de Alemanha e França – e China
eram, em 2007, responsáveis por 77,5 % de tudo o que é gasto em Pesquisa e
Desenvolvimento no planeta.
5.2. Número de cientistas e engenheiros dedicados à P&D
O aumento mundial no número de cientistas e engenheiros na área de P&D segue
tendência semelhante aos gastos globais no setor. Em 1941, havia 87.000 desses profissionais
nos EUA. No ano de 1974, a cifra eleva-se a 528.000, cerca de 24,8 por 10.000 habitantes.
Em dados atuais, vemos que tendência de crescimento segue: de 2002 a 2007, o número de
cientistas e engenheiros dedicados à P&D naquele país cresceu de 1,343 milhões para 1.426
milhões, cerca de 46,6 por 10.000 habitantes, um aumento importante que referenda a tese do
70
aumento da importância da C&T para o desenvolvimento dos países. O restante dos países
desenvolvidos apresenta dados relativos semelhantes para 2007: o Japão conta com 55,7 por
10.000 habitantes; Reino Unido, com 41,8; Alemanha, com 35,3 e França com 34,9.
Em números absolutos, no entanto, os EUA lideram, lado a lado com a China, que de
2002 a 2007 saltou de 810 mil investigadores para 1,4 milhão – 19,7 % de todos os
investigadores mundiais dedicados ao setor –, e é bem provável que nos dias atuais já tenha
ultrapassado a potência estadunidense. Com relação aos países periféricos, novamente os
números são contrastantes. O Brasil apresentava em 2007 apenas 6,5 investigadores de P&D
para cada 10.000 habitantes, não obstante o crescimento absoluto de 71,8 mil para 124,9 entre
2002 e 2007 (UNESCO, 2010, p. 45).
A tendência à elevada concentração destes recursos humanos entre poucos países
centrais permanece, tal qual observamos com os gastos em P&D. EUA, União Européia,
Japão e China concentram 69,6% de todos os pesquisadores em P&D do globo.
5.3. Concentração da produção nos setores de alta
tecnologia
Afirmamos que a RCT consolida uma Nova Divisão do Trabalho, reservando para os
países centrais as etapas mais avançadas da produção. Vejamos se os dados abaixo podem nos
indicar algo a respeito.
Em 2007, as chamadas indústrias intensivas em tecnologia e conhecimento juntas
representaram cerca de 30% do PIB global, chegando a US$ 16 trilhões de dólares, com taxas
de crescimento superiores aos outros setores da economia (NFS, 2010, p. O-24). Este setor
inclui a produção industrial e serviços. Com relação aos serviços intensivos em tecnologia e
conhecimento, dos US$ 9,5 trilhões produzidos em 2007, cerca de US$ 6,1 trilhões foram
produzidos por Estados Unidos e Europa.
A tendência é parecida no setor produtivo de bens intensivos em tecnologia e
conhecimento. Dos cerca de US$ 1,1 trilhão produzidos mundialmente em 2007, Estados
Unidos, Europa, Japão e China são responsáveis por cerca de US$ 960 bilhões (NFS, 2010, p.
0-15). Com relação às cinco principais indústrias de alta tecnologia – “comunicação e
71
semicondutores”, “farmacêutica”, “instrumentos científicos”; “aeroespacial”; e
“computadores e maquinaria para escritório”, os EUA lideram com 31%, seguidos pela
Europa, com 25% da produção de tais setores. Separados por setor, os Estados Unidos são
líderes mundiais na indústria de semicondutores (29%), na indústria farmacêutica (32%), na
indústria aeroespacial (52%). A Europa é líder na produção de instrumentos científicos (44%).
Na produção de computadores, no entanto, a China lidera com (39%), seguida pelos EUA
(25%) e Europa (15%) (NFS, 2010, 0-28).
5.4. Pesquisa e Desenvolvimento nas multinacionais
estadunidenses
As multinacionais estadunidenses despenderam em 2006 US$ 216 bilhões em P&D.
Deste montante, 86% foi realizado nos EUA, apenas 13,2% (US$ 28,5 bilhões) em outros
países. Há, porém, uma grande concentração dos gastos das multinacionais fora do país.
Nesse mesmo ano, 80% dos gastos em P&D das multinacionais estadunidenses no exterior se
concentraram na Europa, Canadá e Japão; apenas 3% (UU$ 0,9 bilhões) na América Latina.
Para completar, nota-se, como esperado, a concentração dos cientistas dessas empresas
em solo pátrio. Em 2004, elas empregavam 700 mil cientistas nos EUA e 150 mil fora do país
(NSF, 2010, p. 0-9). Da mesma maneira que a concentração dos gastos, deve se repetir a
concentração destes trabalhadores nas mesmas regiões.
5.5. Pesquisa Básica, Pesquisa Aplicada e Desenvolvimento
Expusemos acima a divisão de responsabilidades existente entre as fases da pesquisa
científica e tecnológica, explicitando a importância das ciências básicas como principal área
de descoberta de novos conhecimentos científicos. Vejamos os números. Em seu ensaio Dos
Santos (1983) contabilizava em 13,6 % a participação dos gastos em Pesquisa Básica no total
72
de P&D nos EUA, em 1963. Os demais países centrais apresentavam percentuais semelhantes
(DOS SANTOS, 1983, p. 67). Do restante, 65,5% era destinado ao desenvolvimento e 22,1%
à pesquisa aplicada. No ano de 2007, de acordo com a UNESCO (2010), as proporções
seguiam praticamente iguais naquele país, com leve aumento no percentual da pesquisa
básica, 17% (US$ 64,1 bilhões, três vezes os gastos totais em P&D no Brasil). Nesse ano,
60% dos recursos foi destinado ao desenvolvimento e 22% à pesquisa aplicada.
Mantêm-se, da mesma forma, para os EUA, a prevalência do investimento privado em
P&D, 67% dos gastos totais em 2007. Porém, esse tem seu destino principal na área de
desenvolvimento. Cabe ao Estado o financiamento da pesquisa básica, realizado
majoritariamente nas universidades. Do total de recursos aplicados em 2007 nessa área, 60%
vem diretamente do governo federal estadunidense. Somando-se governos estaduais,
universidades e organizações não lucrativas, chega-se à conclusão de que 80,1 % dos gastos
totais em Pesquisa Básica nos EUA são financiados pelo poder público e órgãos não
empresariais. Quanto ao destino da verba, 67,5% são gastos por universidades e instituições
federais de pesquisa. O restante é usado pela indústria e por organizações não-lucrativas,
porém com elevada participação de verbas estatais por intermédio de um fundo especial, os
Federal Founded R&D Centers - FFRDCs. Por fim, realiza-se nas universidades
estadunidenses, sobretudo, a pesquisa básica: em 2006, 75% de todas as pesquisas destas
instituições incluíam-se naquela categoria. Do restante, 22% do total era contabilizado como
pesquisa aplicada e apenas 4% como desenvolvimento (UNESCO, 2010, p. 46).
No caso do Brasil, em 2008, do percentual de 1,09% de gastos totais em P&D com
relação ao PIB, 0,50% provinha de recursos privados, ficando 0,59% com o setor público. A
maioria destes eram realizadas por universidades. No setor privado, figura, por outro lado, a
completa anemia na atividade de P&D. Na PINTEC de 2008, das 106.862 empresas
pesquisadas (incluindo entidades dedicadas à pesquisa), apenas 4.754 realizaram
investimentos em P&D. O restante das melhorias nos índices de inovação se refere a
investimento em máquinas, lançamento de novos produtos ou melhorias parciais em produtos
já existentes52
.
52 “São consideradas na pesquisa oito "atividades inovativas", seguindo o referencial conceitual do Manual de
Oslo, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Além da P&D interna e da
aquisição de pesquisas externas, contam investimentos em máquinas, software, treinamento de pessoal e
introdução de produtos no mercado, entre outras. Nessas atividades, o peso do investimento em máquinas e
equipamentos se destaca: a Pintec 2008 aponta como mais importantes a aquisição desses itens (considerada
relevante por 77,7% das empresas inovadoras) e o treinamento de mão de obra (citado por 59,9%). Dessa forma,
73
O elevado percentual da P&D em universidades não deve ser visto como um logro da
política científica nacional, tal qual ocorre nos países centrais. Aqui, pelo contrário, a pesquisa
acadêmica resulta, quando muito, na publicação de artigos em revistas nacionais e
estrangeiras dos países centrais53
, conhecimento disponibilizado gratuitamente a esses e
convertido posteriormente em patentes estrangeiras de produtos e descobertas científicas
nacionais (OURIQUES, 2011, p. 86). Basta, para comprovação, ver o mapa mundial da
produção de patentes e sua disparidade com relação à publicação de artigos.
5.6. Produção de patentes no mundo
Ainda que não nos apresente o real panorama da produção de Ciência e Tecnologia
mundial54
, a produção de patentes no mundo permite visualizar a proporção da divisão da
propriedade do conhecimento entre os países. Novamente, os dados são marcados pela
elevada concentração do depósito de patentes entre as potências centrais. Nos países
periféricos, destaca-se a elevada proporção de patentes registradas por não-residentes55
: dos
2.451 registros de patentes no Brasil em 2007, 2.217 foram feitos por não-residentes (WIPO,
2010, p. 40). Por conseqüência, cabe a tais países a aquisição de direitos de utilização e a
subseqüente remessa de royalties.
Tomamos como base os dados o relatório de 2010 da WIPO – World Intelectual
Property Organization. O documento aponta que, em 2008, o Japão registrou 239.388
patentes, dentro e fora do país. Os EUA aparecem em segundo lugar com 146.871 registros no
empresas que compraram máquinas e multinacionais que lançaram no país produtos desenvolvidos no exterior
(como as fabricantes de automóveis) contam como inovadoras.” Jornal da Ciência, São Paulo, 29 out. 2010.
53 Denominadas “revistas internacionais”, tais publicações não são mais do que de revistas científicas dos países
centrais, sobretudo dos EUA. Nas bases de dados Scopus e ISI, propriedades das multinacionais estadunidenses
Elsevier e Thomson Reuters Corporation, respectivamente, a maioria das revistas indexadas são dos EUA, 5.152
e 3.915; da Inglaterra, 3.491 e 2.011; da Holanda 1.782 e 768; e da Alemanha, 1.148 e 724 (OURIQUES, 2011,
p. 79).
54 “As grandes empresas têm preferido ocultar a invenção não registrando a patente até à fase em que a invenção
está pronta para entrar no mercado (...). Em muitos casos não se chega a recorrer à patente, pois a brecha tecnológica, entre a empresa inovadora e as empresas concorrentes, é suficiente para assegurar as vantagens
econômicas derivadas da introdução do novo produto ou processo”. (Dos Santos, 1987. Pg. 14)
55 O registro mundial de patentes por não-residentes apresenta tendência de acentuado crescimento a partir de
1994. (WIPO, 2010, p. 34). Nos países centrais, prevalecem as patentes registradas por residentes. Com os países
periféricos ocorre o oposto (WIPO, 2010, p. 41).
74
mesmo ano. Os países seguintes apresentam números significativamente inferiores: Coréia do
Sul, 79.652; Alemanha, 53.752; China, 48.814; e França, 25.535 (WIPO, 2010. p. 46). O
Brasil sequer aparece entre os 20 maiores depositários de patentes no mundo, em 2007 foram
apenas 620 patentes depositadas por indivíduos ou empresas nacionais (WIPO, 2010, p. 129).
Por fim, os dados sobre as patentes requisitadas por empresas e universidades
impressiona. Dentre as 50 empresas signatárias do tratado mundial de patentes PCT que mais
pedidos de patentes tiveram em 2008, 29 eram de origem estadunidense ou japonesa. A
grande maioria se dedicava à fabricação de produtos de alta intensidade tecnológica
(eletrônica, máquina e equipamentos automatizados, telecomunicações, etc.) (WIPO, 2010, p.
54). O cenário nas universidades é parecido, somente que aqui o domínio dos EUA é
completo. Das 50 que mais pedidos tiveram em 2008, 31 são estadunidenes. O Japão aparece
em segundo lugar, com 7 universidades.
75
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ESTUDO DA C&T NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
A Revolução Científico-Técnica deu um novo status à ciência: transformou-a no
principal fundamento do desenvolvimento das forças produtivas da humanidade. Durante
séculos a atividade científica havia se constituído antes como um ofício esporádico cultivado
por indivíduos interessados na descoberta das leis da natureza do que como uma instituição
organizada, com o deliberado sentido de buscar aplicações técnicas à produção. Foi o modo
de produção capitalista que uniu a ciência à produção de maneira orgânica, já inseparável,
pelos cimentos que são suas próprias leis do desenvolvimento, cujos fundamentos cremos
haver deixado claros e que se desenvolvem de acordo com irreconciliáveis antagonismos. A
incorporação da ciência ao modo de produção capitalista na era da Revolução Científico-
Técnica não poderia, portanto, eximir-se daqueles antagonismos, mas sim aprofundá-los, e foi
o que de fato operou: o aumento exponencial da produtividade do trabalho às custas de uma
maior exploração do trabalhador; uma elevação gigantesca da socialização da produção sobre
os limites de bases privadas de apropriação; e a expansão mundial do capital sobre as bases da
desigualdade cada vez maior entre os países.
Nosso objetivo ao longo do trabalho foi de discutir tais mecanismos em suas
articulações internas, cuja base não pode ser outra senão a acumulação capitalista em escala
mundial. As limitações inerentes ao escopo do trabalho não nos permitiram dissecar cada um
daqueles aspectos, que si por sós possibilitariam dezenas de monografias e que ficam, assim,
como tarefas a serem levadas a cabo futuramente. Mas observemos que o que caracteriza o
debate sobre ciência e tecnológica atualmente não é a ausência dos estudos sobre esses temas,
mas a pobreza teórica dos mesmos. Abundam no Brasil textos sobre políticas de educação, de
inovação tecnológica, de produção de patentes, de ciência e tecnologia, onde a regra é
ausência de uma visão histórica do desenvolvimento da ciência no modo de produção
capitalista e seu desenvolvimento desigual no mundo. Sob este aspecto, a opção metodológica
que elegemos se apresenta como a principal virtude de nosso trabalho, por permitirem
conclusões gerais que devem fundamentar qualquer trabalho mais “específico”. Vamos a elas.
Em primeiro lugar, a ciência e suas aplicações, ao contrário do que afirmam os
neoclássicos, não estão livremente disponíveis no mercado. São, ao contrário, propriedade do
capital que, em sua fase mais avançada monopoliza-as para assegurar a acumulação ampliada
76
e a superioridade frente a seus concorrentes a nível mundial. Os complexos sistemas de
ciência e tecnologia – articulados entre Estado, multinacionais e universidade – dos países
centrais são a expressão mais desenvolvida desta nova fase do capitalismo, onde a empresa,
de maneira individual, é incapaz de levar a cabo todas as etapas do desenvolvimento
tecnológico. Em outras palavras, o eixo da estruturação do desenvolvimento científico na era
da RCT não está na capacidade individual de inovação ao nível da firma, seja ela pequena,
média ou grande, mas nos sistemas nacionais de ciência e tecnologia existentes nos países
centrais e em suas estratégias de monopolização do conhecimento a nível mundial por meio
de uma série de mecanismos tais como os banco de dados de revistas científicas
“internacionais”, “fuga de cérebros” (brain drain), pirataria tecnológica, entre outros.
A América Latina, por sua vez, foi chamada a participar da era da Revolução
Científico-Técnica na condição de periferia do sistema. A forma pela qual se inseriu, desde o
início, no desenvolvimento do capitalismo em escala mundial estruturou sua economia e a
correlata estrutura de classes, manifesta em uma burguesia incapaz de levar adiante as tarefas
realizadas por suas congêneres nos países desenvolvidos. Tal incapacidade não deriva da
ausência por parte do empresariado dos elementos culturais necessários à inventividade, mas
de sua posição objetiva na Divisão Internacional do Trabalho. A dependência tecnológica nos
países latino-americanos é, antes de mais nada, funcional à reprodução do capitalismo
dependente! Esta interpretação do desenvolvimento capitalista latino-americano contrasta
com outras interpretações correntes do atraso tecnológico latino-americano e revelam, no
fundo, a incompreensão da natureza da RCT mesmo entre os principais representantes da
teoria marxista, a exemplo de Francisco de Oliveira. Cuidemos de sua tese no ensaio O
Ornitorrinco (2008), que se propõe a uma análise crítica da situação brasileira
contemporânea. A análise desse texto será útil para a segunda conclusão do nosso trabalho.
O animal – meio ovíparo, meio mamífero, meio réptil – que dá título ao ensaio é a
metáfora do Brasil56
contemporâneo. Discutindo as possibilidades atuais de superação das
características do “ornitorrinco” Brasil, Oliveira afirma:
56 “O que é o ornitorrinco? Altamente urbanizado, pouca força de trabalho e população no campo, dunque
nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agribusiness. Um setor industrial da Segunda Revolução
Industrial completo, avançado, tatibitate, pela Terceira Revolução, a molecular digital ou informática. Uma
estrutura de serviços muito diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas rendas [...]; noutra,
extremamente primitiva, ligada exatamente ao consumo dos estratos pobres[...]”( OLIVEIRA, 2008, p. 133).
77
Hoje, o ornitorrinco perdeu a capacidade de escolha, de “seleção”, e por
isso é uma evolução truncada: como sugere a literatura econômica da
tecnologia, o progresso técnico é incremental; tal literatura é evolucionista,
neoschumpeteriana. Sendo incremental, ele depende fundamentalmente da
acumulação científico-tecnológica anterior. Enquanto o progresso técnico
da Segunda Revolução Industrial permitia saltar à frente, operando por
rupturas sem prévia acumulação técnico-científica, por se tratar de
conhecimento difuso e universal, o novo conhecimento técnico-científico
está trancado nas patentes, e não está disponível no supermercado das
inovações. Ele é descartável, efêmero, como sugere Derrida. Essa
combinação de descartabilidade, efemeridade e progresso incremental corta o passo às economias e sociedades que permanecem no rastro do
conhecimento técnico-científico. (OLIVEIRA, 2008, p. 138).
Logo em seguida, o autor apresenta as implicações do “novo conhecimento técnico
científico”, definido como a Terceira Revolução Industrial ou revolução molecular-digital:
A revolução molecular-digital anula as fronteiras entre ciência e tecnologia:
as duas são trabalhadas agora num mesmo processo, numa mesma unidade
teórico metodológica. Faz-se ciência fazendo tecnologia e vice-versa. Isso
implica que não há produtos tecnológicos disponíveis, à parte, que possam
ser utilizados sem a ciência que os produziu (OLIVEIRA, 2008, p. 139).
Comecemos pelo último extrato reproduzido. Fica claro que, ao afirmar que “não
existem produtos tecnológicos disponíveis que possam ser utilizados sem a ciência que os
produziu”, o autor não compreende a radicalidade da apropriação da ciência pelo capital na
era da RCT. A história da industrialização latino-americana comprova o contrário:
adquirimos, desde o princípio, “produtos tecnológicos disponíveis” nos países centrais sem
dominar a “ciência que os produziu”! Esta se restringia e continua restrita – seja pelas
patentes, seja poder de monopólio das companhias que detêm o conhecimento científico – ao
âmbito dos países centrais.
Na época da Revolução Científico-Técnica, a ciência precede à tecnologia, e esta, por
sua vez, precede à indústria. Não há problema algum dos países centrais difundirem a
tecnologia aos países periféricos. Ao invés, trata-se de uma solução quando novos avanços
tecnológicos são aplicados naqueles países, tornando obsoleta a tecnologia então utilizada.
Para assegurar sua hegemonia, basta que monopolizem as condições científicas – “os meios
de produção da ciência” mais avançada – e o direito de propriedade de suas descobertas,
podendo seguir reproduzindo os mecanismos de transferência de excedente dos países
periféricos aos países centrais via lucro extraordinário decorrente de tal monopólio.
78
As confusões de Oliveira se repetem no primeiro trecho reproduzido, onde afirma que
“Enquanto o progresso técnico da Segunda Revolução Industrial permitia saltar à frente [...],
por se tratar de conhecimento difuso e universal, o novo conhecimento técnico-científico está
trancado nas patentes, e não está disponível no supermercado das inovações”. Realmente, a
Nova Divisão do Trabalho que dá inicio à expansão da Revolução Científico-Técnica por todo
o planeta não deixa aos países dependente possibilidade de escolha: sua participação se
resume à de produtores das etapas menos avançadas do desenvolvimento tecnológico e
consumidores do desenvolvimento científico dos países centrais. O erro do autor está em
cogitar que antes deste período haveria possibilidades de um desenvolvimento autônomo da
indústria e da tecnologia do Brasil nos marcos do capitalismo dependente. Nunca houve. Não
importa que a técnica da denominada Segunda Revolução Industrial (eletricidade,
petroquímica, etc.) – cuja maturidade coincide com a industrialização latino-americana –
fosse de fácil apropriação, “por se tratar de conhecimento difuso e universal”. De fato, esta
possibilidade teórica, do estrito ponto de vista da técnica, existia. Concretamente, porém, a
partir do momento em que se configura a dependência, a fins do século XIX, as portas para
um desenvolvimento autônomo dentro do capitalismo – e o conseqüente desenvolvimento
tecnológico que dele decorre – se fecharam.
A tentativa de industrialização desses países – suspiro em meio à crise da primeira
metade do século XX –, quando atinge seu ponto de inflexão (a criação de uma indústria de
bens de capital), não esbarra em limites técnicos, mas nos condicionamentos da estrutura de
classes do período anterior que não dão à burguesia industrial outra solução que não aceitação
de um desenvolvimento subordinado ao imperialismo em sua nova fase de ascensão.
Note-se que a posterior transferência dos setores característicos da Segunda Revolução
Industrial para o Brasil não abriram as portas para um desenvolvimento tecnológico
autônomo: restringiram-no ainda mais, colocando-o à mercê da tecnologia mais avançada dos
países centrais e da decisão de investimento das empresas multinacionais, para as quais,
diante do pavor de sua migração a outros cantos do globo, o país segue concedendo vultuosos
subsídios. Em posse do monopólio das tecnologias mais avançadas, as multinacionais dos
países centrais seguem drenando o excedente econômico aqui produzido. Quitam-nos, assim,
a capacidade de desenvolvermos uma tecnologia própria, acorde com as necessidades dos
povos das nações latino-americanas. A dependência tecnológica é, portanto, apenas uma das
faces da dependência econômica, que por sua vez, é a forma particular de participação da
América Latina no desenvolvimento desigual do capitalismo em escala mundial.
79
Desse modo a capacidade de iniciativa tecnológica dos sistemas
econômicos capitalistas dependentes se limita à criação de estímulos
para atrair as empresas multinacionais e a tecnologia que elas possuem
incorporada na instalação de máquinas e importação de matérias-primas
e complementadas pelos serviços técnicos e „know-how‟ que estas
empresas codificam em instruções secretas. Em conseqüência, o preço
da tecnologia importada não se limita ao pagamento de bens que
incorporam a tecnologia (máquinas e matérias-primas), nem aos
serviços a ela associados (manutenção, engenharia de funcionamento, sistemas de operação, etc.), nem tampouco aos pagamentos pelo direito
de uso da tecnologia (regalias por patentes e marcas), mas também ao
pagamento pelo direito de exploração direta da mão-de-obra local
através do investimento direto e a transferência de capitais (que se
reflete nas posteriores remessas de lucro). A transferência de capitais
que acompanha a transferência das máquinas, matérias-primas e „know
how‟ é um elemento abstrato: é a transferência de uma relação
econômica de acompanhar um movimento real de bens e serviços com
uma relação de propriedade que permite explorar a força de trabalho
local no país que recebe o investimento direto. (RICHTA, 1972, p. 26).
Chegamos, assim, à nossa segunda conclusão: o atraso científico e tecnológico dos
países dependentes não é a causa do “atraso” econômico – na verdade, dependência – dos
países latino-americanos, mas ao contrário, é a situação de dependência que causa e reproduz
de maneira ampliada o atraso científico em relação aos países centrais. Portanto, o
prosseguimento dos estudos sobre o panorama atual e o futuro da produção de ciência e
tecnologia na América Latina, caso queiram fugir à simplicidade do somatório de fatores
aleatórios como a burocratização do Estado, a ausência de cultura empreendedora, etc.57
,
devem partir das tendências do desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, cujos
avanços tecnológicos atingem sempre a periferia de maneira reflexa, aprofundando a brecha
tecnológica entre nós e os centros do capitalismo contemporâneo.
Tais foram as teses que procuramos desenvolver ao longo desta monografia e que
constituirão, daqui por diante, ponto de partida para futuras investigações. Temos consciência
das prováveis lacunas as permeiam e, como qualquer conclusão que se pretenda científica,
57 Em matérias publicada na Revista Exame On-line, Rogério Filgueras, coordenador da Agência de Inovação da
UFRJ, ao ser indagado sobre os motivos pelos quais não há nenhuma brasileira entre as 100 cidades mais
inovadores do mundo, responde: “Falta entre os brasileiros um pouco de cultura de inovação, inclusive entre o
empresariado” Por conta disso, "grande parte dos estudos foi feita em universidades, e não nas companhias, onde
o produto é desenvolvido, produzido e aperfeiçoado e, posteriormente, chega até os consumidores", acrescenta.
Na mesma matéria, Patrícia de Toledo, da Inova UNICAMP, ressalta que “Se as companhias percebessem a
importância do quanto isso representa para cada uma delas, com certeza muitas se engajariam nesse movimento
de inovação, ajudando o Brasil a ter uma melhor posição entre as cidades mais inovadoras do mundo”. A
cantilena se repete semanalmente nos meios de comunicação nacional sem a explicação de por que, apesar dos
incansáveis apelos, as empresas brasileiras ainda não tenham abertos os olhos para o problema.
80
deixamos também as nossas abertas ao questionamento e à superação. No entanto, se este
trabalho servir para despertar o interesse pelo estudo da Revolução Científico-Técnica nos os
países dependentes – independentemente da concordância com nossos argumentos –, já
teremos recompensa suficiente pelo esforço aqui realizado.
81
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