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“Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para ajustiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA”
por
Renan Finamore Gomes da Silva
Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciênciasna área de Saúde Pública.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto
Rio de Janeiro, abril de 2015.
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Esta tese, intitulada
“Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a
justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA”
apresentada por
Renan Finamore Gomes da Silva
foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:
Prof.ª Dr.ª Raquel Maria Rigotto
Prof. Dr. Gabriel Eduardo Schütz
Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas
Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos
Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto – Orientador
Tese defendida e aprovada em 29 de abril de 2015.
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Catalogação na fonteInstituto de Comunicação e Informação Científica e TecnológicaBiblioteca de Saúde Pública
S586r Silva, Renan Finamore Gomes daRiscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para
a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. / Renan Finamore Gomes da Silva. -- 2015.
208 f. : il. ; tab. ; mapas
Orientador: Marcelo Firpo de Souza PortoTese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca, Rio de Janeiro, 2015.
1. Conhecimento. 2. Riscos Ambientais. 3. Justiça Social. 4. Impacto Ambiental. 5. Mineração. 6. Urânio - efeitos de radiação. 7. Administração Ambiental. 8. Poluição Ambiental. 9. Vigilância em Saúde do Trabalhador. I. Título.
CDD – 22.ed. – 363.7
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AGRADECIMENTOS
À minha família, meus pais e minha irmã, sempre presentes em minha trajetória.
Sem a compreensão, o apoio e o incentivo deles, dificilmente eu concluiria mais esta
importante etapa.
À CAPES e à FAPERJ, pelo apoio financeiro durante a primeira e a segunda
metades, respectivamente, do desenvolvimento deste estudo.
Ao meu orientador, Professor Marcelo Firpo, pela inspiração acadêmica e
profissional, pela orientação, pelo incentivo e pela confiança em mim depositada na
condução desta tese.
Aos professores Carlos Machado de Freitas, Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos,
Gabriel Eduardo Schütz e Raquel Maria Rigotto, por terem gentilmente aceitado
compor a banca avaliadora do presente trabalho, pelas importantes críticas
realizadas e pelas valiosas contribuições dadas.
A todos de Caetité que contribuíram para a elaboração desta pesquisa. Agradeço
imensamente a hospitalidade com que sempre fui recebido na cidade, bem como a
disposição de todos em colaborar, seja compartilhando informações importantes,
seja fornecendo o suporte necessário para a realização das oficinas e das visitas às
comunidades rurais do entorno da mina de urânio, para a coleta de dados. Um
agradecimento mais que especial a todos os integrantes da CPMA, dentre os quais
destaco: Padre Osvaldino Barbosa, professora Adélia Nunes, Suzane Ladeia, Ione
Rochael, Elenilde Cardoso, Dema, Florisvaldo Cardoso, Gilmar Ferreira Santos
(CPT-BA), João Batista (CPT-BA), Lucas Mendonça (SINDMINE) e Zoraide
Vilasboas (AMPJ). A participação e a ajuda de vocês foi fundamental para realização
desta tese.
Aos integrantes do EJOLT, com os quais pude dialogar e aprender bastante sobre os
temas da justiça ambiental, ecologia política e economia ecológica. Agradeço,
principalmente, ao coordenador geral do projeto, professor Joan Martínez Alier, e
aos demais membros que participaram e colaboraram com a oficina “Justiça
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Ambiental, Exploração de Urânio e Monitoramento Comunitário de Radioatividade”,
realizada em junho de 2012, em Caetité.
Ao CRIIRAD, em especial ao engenheiro Bruno Chareyron, pelo suporte técnico
tanto nas oficinas de capacitação sobre mineração de urânio e seus riscos, como
nos trabalhos de monitoramento de radiação e coleta de amostras no entorno da
mina de urânio. A oportunidade de trabalhar em parceria com o CRIIRAD foi
determinante para uma compreensão mais adequada dos riscos e impactos
radiológicos das atividades de mineração e beneficiamento de urânio em geral, e
sobretudo no contexto de Caetité.
Ao pesquisador e amigo Diogo Rocha, parceiro de trabalho no projeto EJOLT e com
quem também pude discutir muitos dos dilemas desta pesquisa de doutorado.
Ao pesquisador Raphael Guimarães, pela contribuição em boa parte das questões
epidemiológicas tratadas no presente trabalho.
Aos professores da ENSP, os quais contribuíram bastante para minha formação
acadêmica.
Aos sempre prestativos e atenciosos funcionários da SECA.
Aos colegas de turma com quem convivi ao cursar as diversas disciplinas no
decorrer do doutorado.
Por fim, meus agradecimentos mais do que especiais à minha mulher Gisele
Fonseca e ao meu filho Pedro Finamore, que souberam como ninguém suportar e
tolerar, pacientemente, minhas angústias e meus dilemas na confecção desta tese.
Agradeço o incentivo constante, as sugestões, o carinho e, principalmente, o amor.
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RESUMO
No município de Caetité, sertão baiano, situa-se a única mina de urânio em atividade
no Brasil, operada desde 2000 pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Esta
empresa tem sua atuação bastante questionada por comunidades locais e
movimentos sociais da região, os quais alegam que a mesma omite informações
sobre os riscos e impactos ambientais e à saúde relacionados ao empreendimento.
Suspeitas de contaminação ambiental são reforçadas pelos acidentes ocorridos,
sobretudo pelos episódios de vazamento de material radioativo para o ambiente.
Portanto, verifica-se, em Caetité, um cenário de desinformação e incertezas quanto
aos riscos e impactos potencialmente atribuídos as atividades de mineração e
beneficiamento de urânio na região, que atingem, basicamente, trabalhadores da
mina e comunidades rurais vizinhas. As abordagens técnico-científicas clássicas de
investigação e produção de conhecimentos mostram-se limitadas para lidar com
situações que envolvem riscos complexos, sobretudo em contextos de conflito e
injustiças ambientais, como ocorre com a operação da mina de urânio em Caetité.
Assim, diante do quadro apresentado, esta tese busca realizar uma reflexão crítica
sobre a importância de estratégias alternativas de produção de conhecimentos, as
quais valorizem e incorporem o saber situado dos sujeitos atingidos, a fim de
possibilitar uma melhor compreensão, mais contextualizada, de riscos tecnológicos
complexos e suas implicações para o ambiente e a saúde. Para tanto, são tomadas
como referência experiências participativas e integradas de produção de
conhecimentos acerca dos riscos e impactos verificados junto às atividades de
mineração e beneficiamento de urânio em Caetité.
Palavras-chave: Produção de Conhecimentos; Justiça Ambiental; Saúde, Riscos;
Mineração de Urânio.
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ABSTRACT
In the municipality of Caetité, semi-arid region of Bahia, it is located the only active
uranium mine in Brazil, which is operated by the Brazilian Nuclear Industries (INB)
since 2000. This company has its operations very questioned by local communities
and social movements. They claim that INB omits information about environmental
and health risks and impacts related to the mine's operation. Suspicions of
environmental contamination are reinforced by accidents, mainly by past episodes of
radioactive material leakages into the environment. So, in Caetité, it turns out a
scenario of misinformation and uncertainty regarding the risks and impacts potentially
due to the uranium mining and milling activities, which affect basically mineworkers
and nearby rural communities. Classical technical and scientific approaches of
research and knowledge production appear limited to deal with situations that involve
complex risks, especially in contexts of conflict and environmental injustices, just like
the case of Caetité's uranium mine operation. Thus, considering this setting, this
dissertation aims to make a critical reflection on the importance of alternative
knowledge production strategies, which value and incorporate the situated
knowledge of affected people in order to enable a better and contextualized
understanding of complex technological risks and its environmental and health
implications. Therefore, it is taken as reference participatory and integrated
knowledge production experiences about the risks and impacts related to uranium
mining and milling in Caetité.
Keywords: Knowledge Production; Environmental Justice; Health; Risks; Uranium
Mining.
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1.1: Representação esquemática dos níveis de engajamentocomunitário em pesquisas participativas Pág. 63Figura 1.2: Rigor, relevância e alcance, no âmbito dos processo de CBPR Pág. 65Figura 2.1: Reservas brasileiras prospectadas Pág. 72Figura 2.2: Produção e demanda mundial de urânio Pág. 78Figura 3.1: Mina de urânio e as instalações da URA-Caetité Pág. 90Figura 3.2: Fluxograma das etapas do beneficiamento de urânio na URA-Caetité Pág. 92Figura 3.3: Boletim Informativo da INB para Caetité, veiculado em junho de2009 Pág. 107Figura 3.4: Modelo hierárquico das causas fundamentais do sistema defalhas Pág. 112Figura 3.5: Evidência de material radioativo acumulado em piso Pág. 115Figura 3.6: Evidência de material radioativo acumulado em piso Pág. 115Figura 3.7: Sistema de exaustão com baixa eficiência de arraste do materialradiativo Pág. 116Figura 3.8: Abertura no portão evidenciando a possibilidade de vazamentode material particulado radioativo para áreas externas Pág. 116Figura 3.9: Monitoramento de radiação na comunidade Gameleira, em localonde ocorreram atividades de prospecção Pág. 119Figura 3.10: Furo relativo à prospecção realizada na comunidade Gameleira Pág. 119Figura 3.11: Tambores de yellow cake armazenados próximo à cabine dovigia Pág. 120
Figura 3.12: Armazenamento provisório de materiais contaminados na INB Pág. 121
Figura 3.13: Armazenamento provisório de materiais contaminados na INB Pág. 121
Figura 4.1: Oficina EJOLT no Centro Paroquial de Caetité Pág. 130Figura 4.2: Debate público na Casa Anísio Teixeira Pág. 133Figura 4.3: Localização da amostra TS4, abaixo do aterro de material estéril Pág. 137Figura 4.4: Ponto de coleta TS4, com a pilha de estéril ao fundo Pág. 137Figura 4.5: Localização de todos os pontos de amostragem e pontos demonitoramento Pág. 138Figura 4.6: Capacitação em monitoramento comunitário de radioatividade Pág. 141Figura 4.7: Mapa das comunidades pesquisadas Pág. 160Figura 4.8: Mapa das comunidades pesquisadas situadas em Caetité Pág. 161Figura 4.9: Mapa das comunidades pesquisadas situadas em Lagoa Real Pág. 161Figura 4.10: Palestra ministrada pelo CRIIRAD, em 07 de abril de 2014, noCentro Paroquial de Caetité Pág. 165
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Figura 4.11: Monitoramento de radiação e coleta de amostra de solo Pág. 168Figura 4.12: Monitor de radiação gama RADEX utilizado no do dia 09 deabril de 2014 Pág. 169Figura 4.13: Monitoramento de radiação gama na área de prospecção emJuazeiro, com auxílio do cintilador, em 10 de abril de 2015 Pág. 170
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LISTA DE QUADROS E TABELAS
Lista de Quadros
Quadro 2.1: Ciclo de vida de uma projeto de mineração de urânio Pág. 79
Lista de Tabelas
Tabela 2.1: Concentrações típicas de urânio na crosta terrestre Pág. 69Tabela 2.2: Reservas brasileiras de urânio (t U3O8) Pág.72Tabela 2.3: Produção mundial de urânio, conforme método deextração (2013) Pág.75Tabela 3.1: Produção de urânio em Caetité Pág. 89Tabela 3.2: Principais acidentes verificados na mina de Urânio em
Caetité Pág. 94Tabela 4.1: Casos confirmados por localidade Pág. 150Tabela 4.2: Casos suspeitos por localidade Pág. 151
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AAB – Articulação Antinuclear Brasileira
ACRO – Association pour le Contrôle de La Radioactivité de l'Ouest
AIA – Avaliação de impacto ambiental
AIPA – Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes
AMATER – Movimento Ambientalista Terra
AMPJ – Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça e Cidadania
CBPAR – Community-Based Participatory Action Research
CBPR – Community-Based ParticipatoryRresearch
CESTEH – Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana
CICP – Complexo Mínero-Industrial do Planalto de Poços de Caldas
CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear
COMEST – World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and
Technology
CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente
COPPE – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de
Engenharia
CPMA – Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité
CPN – Ciência pós-normal
CPT-BA – Comissão Pastoral da Terra
CRIIRAD – Commission de Recherche et d’Information Indépendantes sur la
RADioactivité
CTM – Centro Tecnológico da Marinha
DAM – Drenagem ácida de mina
DATASUS – Banco de Dados do Sistema Único de Saúde
EJOLT – Environmental Justice Organizations, Liabilities and Trade
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EMBASA – Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A.
ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca
EPE – Empresa de Pesquisa Energética
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FCN – Fábrica de Combustível Nuclear
Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz
GSIEN – Groupement des scientifiques pour l’information sur l’énergie nucléaire
IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IESC – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva
INB – Indústrias Nucleares do Brasil
INCA – Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva
INEMA – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos
INGÁ – Instituto de Gestão das Águas e do Clima
MCTI – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
MI – Medico International
MM – Movimento de Mulheres
MME – Ministério das Minas e Energia
MPF-BA – Ministério Público Federal da Bahia
MTE – Ministério do Trabalho e Emprego
NEA – Nuclear Energy Agency
Nuclebrás – Empresas Nucleares Brasileiras S.A.
OIT – Organização Internacional do Trabalho
PNE – Plano Nacional de Energia
PROSUB – Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil
RBJA – Rede Brasileira de Justiça Ambiental
SIM – Sistema de Informação sobre Mortalidade
SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação
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SINDMINE – Sindicato dos Mineradores de Brumado e Micro Região
SLA – Science Led Activism
STA – Sistemas sociotécnico-ambiental
STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caetité e Pindaí
SUS – Sistema Único de Saúde
TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TRAMAS – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde
URA-Caetité – Unidade de Concentrado de Urânio de Caetité
UFC – Universidade Federal do Ceará
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNEB – Universidade Estadual da Bahia
WNA – World Nuclear Association
WNN – World Nuclear News
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................1
Apresentação.....................................................................................................................1
Justificativa.........................................................................................................................5
Objetivo Geral.....................................................................................................................6
Objetivos Específicos.........................................................................................................6
Hipótese.............................................................................................................................7
Metodologia........................................................................................................................7
Estrutura da tese...............................................................................................................11
1 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, RISCOS, SAÚDE E JUSTIÇA AMBIENTAL...........13
1.1 Ciência pós-normal, riscos complexos, incertezas e comunidade ampliada de pares 13
1.1.1 CPN e epistemologia política: possibilidades e desafios.....................................14
1.1.2 Críticas à CPN....................................................................................................18
1.1.3 Para além das críticas da CPN...........................................................................19
1.1.4 Gestão de problemas complexos e CPN.............................................................21
1.1.5 Sobre as incertezas............................................................................................22
1.2 Produção de conhecimentos e saúde coletiva: a experiência do campo da saúde do
trabalhador.......................................................................................................................34
1.2.1 Considerações sobre o campo da saúde do trabalhador e os métodos de
pesquisa-intervenção...................................................................................................34
1.2.2 Vigilância em saúde do trabalhador....................................................................39
1.2.3 Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes............................................40
1.3 Riscos e produção de conhecimento e justiça ambiental: a importância do saber
situado..............................................................................................................................44
1.3.1 Justiça ambiental e saúde do trabalhador: uma aproximação necessária...........48
1.3.2 Propostas alternativas de produção de conhecimento, justiça ambiental e saúde
.....................................................................................................................................51
2 MINERAÇÃO DE URÂNIO: PANORAMA GERAL, RISCOS, SAÚDE E AMBIENTE..........67
2.1 Mineração de urânio: contexto mundial......................................................................67
2.2 Mineração de urânio no Brasil....................................................................................70
2.3 Principais métodos de extração e beneficiamento de Urânio.....................................75
2.4 Gestão ambiental: a experiência internacional...........................................................76
2.5 Riscos ambientais e à saúde......................................................................................83
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3 RISCOS, CONTROVÉRSIAS E A GESTÃO DA URA-CAETITÉ........................................89
3.1 O contexto..................................................................................................................89
3.2 Conflito ambiental em Caetité.....................................................................................93
3.3 Riscos, controvérsias, saúde e ambiente..................................................................101
3.3.1 Considerações sobre o estudo epidemiológico relativo à eventual ocorrência de
danos genéticos e neoplasias malignas na área de influência da URA-Caetité.........105
3.3.2 Crítica sociotécnica ao modo operatório da URA-Caetité..................................109
4 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO PARA A JUSTIÇA AMBIENTAL E OS RISCOS DA
URA-CAETITÉ....................................................................................................................123
4.1 Oficina EJOLT em Caetité: “Justiça Ambiental, Exploração de Urânio e Monitoramento
Comunitário de Radioatividade”......................................................................................123
4.1.1 Antecedentes....................................................................................................123
4.1.2 Os preparativos.................................................................................................124
4.1.3 A oficina EJOLT em Caetité...............................................................................128
4.2 Epidemiologia Popular: a busca ativa de casos de câncer em Caetité.....................141
4.2.1 Antecedentes do projeto....................................................................................141
4.2.2. O projeto de pesquisa......................................................................................143
4.2.3 Desenvolvimento da pesquisa: a busca ativa de casos....................................145
4.2.4 Resultados preliminares da pesquisa................................................................150
4.3 A missão CRIIRAD a Caetité, em 2014.....................................................................163
4.3.1 Antecendentes..................................................................................................163
4.3.2 Atividades de formação e treinamento..............................................................164
4.3.3 Monitoramento de radiação e coleta de amostras.............................................168
4.3.4 Resultados preliminares....................................................................................170
5 CONCLUSÕES................................................................................................................173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................181
ANEXO 1.............................................................................................................................195
ANEXO 2.............................................................................................................................199
ANEXO 3.............................................................................................................................208
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INTRODUÇÃO
APRESENTAÇÃOMinha aproximação com o tema dos riscos tecnológicos complexos, e sua
interface com o ambiente e a saúde pública, tem a ver com minha trajetória
acadêmica. Desde meados de minha graduação, em engenharia civil (UFRJ), nutro
interesse de pesquisa pela questão ambiental, em especial no que diz respeito aos
processos de gestão de problemas relacionados à poluição ambiental. E, por
ocasião do meu trabalho de conclusão do curso de graduação, abordei o problema
de contaminação do solo por resíduos industriais no município de Queimados
(FINAMORE, 2005), minha cidade natal, no Rio de Janeiro. Foi aí a primeira vez que
tive contato com a noção de injustiça ambiental, ou, melhor, com o argumento
segundo o qual a poluição ambiental (e seus efeitos) se distribui de maneira desigual
e desproporcional entre os diversos grupos e sujeitos que compõem a sociedade.
No mestrado, em planejamento ambiental (COPPE/UFRJ), discuti a gestão de
áreas contaminadas, a partir da utilização de uma metodologia de estruturação de
problemas e apoio à tomada de decisões em situações de conflito. Neste sentido, foi
realizada uma simulação da aplicação da Abordagem da Escolha Estratégica ao
conflito em torno da área contaminada na localidade conhecida como Cidade dos
Meninos, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (FINAMORE, 2007). Entretanto, este
trabalho, de perfil mais técnico, não privilegiou o olhar do problema ambiental em
questão sob a perspectiva crítica da justiça ambiental, o que me levou a buscar tal
abordagem no curso de doutorado.
Assim, em meados de 2008, com a ideia geral de articular o enfoque da
justiça ambiental para discutir riscos tecnológicos complexos, entrei em contato com
o professor Marcelo Firpo, que já trabalhava há muitos anos com esta linha de
pesquisa na ENSP/Fiocruz e junto a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)1, a
fim de verificar a possibilidade de cursar o doutorado em saúde pública sob sua
orientação. A resposta inicial foi positiva, mas ainda havia a necessidade de definir
um objeto de pesquisa mais claro, e elaborar um projeto para, então, realizar a1 A RBJA consiste em um espaço de discussões, denúncias, mobilizações e articulação política,seguindo os princípios de Justiça Ambiental. Entre seus membros encontram-se: movimentos sociais,entidades ambientalistas, ONGs, associações de moradores, sindicatos, pesquisadores universitáriose núcleos de instituições de pesquisa/ensino.
1
-
inscrição no processo seletivo para o curso de doutorado na ENSP. Todavia, por
questões pessoais, tive que dar uma pausa nesse processo, pois, entre fevereiro de
2009 e abril de 2010, residi fora do Brasil. Durante esse período, em pesquisas na
internet, encontrei o relatório “Ciclo do Perigo”, elaborado pela organização
GREENPEACE (2008). Ao lê-lo, tomei conhecimento e logo me interessei bastante
pelo caso de conflito ambiental relativo às atividades de mineração e beneficiamento
de urânio no município baiano de Caetité. Assim, busquei mais informações sobre o
mesmo, e decidi estudá-lo com maior profundidade ao longo o doutorado. Quando
retornei ao Brasil, apresentei esta proposta ao professor Marcelo Firpo, que a
recebeu muito bem. Daí, me inscrevi no processo seletivo para o doutorado em
saúde pública, para o qual fui aprovado, dando início ao curso em março de 2011.
A presente tese, portanto, traz a seguinte indagação como objeto de
pesquisa: Como processos alternativos de produção de conhecimentos em saúde e
ambiente podem contribuir para uma compreensão contextualizada de situações de
riscos tecnológicos complexos, como as que se relacionam às atividades de
mineração e beneficiamento de urânio, a exemplo do que se verifica no município de
Caetité, Bahia?
A ideia de estudar propostas alternativas de produção de conhecimentos em
saúde e ambiente surgiu do meu interesse inicial de tentar entender como sujeitos
potencialmente expostos a situações de riscos complexos percebem, compreendem
e lidam com os mesmos. E, ao mesmo tempo, como a articulação do saber de tais
sujeitos com pesquisadores solidários aos seus problemas pode gerar formas
alternativas de uma ciência mais engajada. Para tanto, optei por buscar inspiração
em propostas de investigação alternativas, que visem superar a tradicional
separação entre sujeito pesquisador e objeto da pesquisa2. Tais propostas
configuram o que pode ser denominado como processos de construção
compartilhada de conhecimento em problemas de saúde e ambiente, e apontam
para a valorização do diálogo e da parceria entre sujeitos portadores de distintas,
porém complementares, formas de saber: os pesquisadores (saber especializado,2 Neste sentido, vale destacar a própria trajetória de pesquisa do Centro de Estudos da Saúde doTrabalhador e Ecologia Humana, da ENSP (CESTEH/ENSP), de trabalho cooperativo comtrabalhadores, comunidades e movimentos sociais, em especial a partir de 2001, em colaboraçãocom a RBJA. Vide como exemplo o projeto “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúdeno Brasil”, uma parceria entre a Fiocruz e a ONG FASE, cujos detalhes podem ser encontrados noseguinte sítio eletrônico: http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/.
2
http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/
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técnico-científico) e os sujeitos que experienciam os riscos em seus cotidianos
(saber situado, local, investido na experiência) (CORBURN, 2005, 2007;
FUNTOWICZ e RAVETZ, 1993, 1994, 1997; PORTO, 2012; PORTO e FINAMORE,
2012).
E no que se refere a riscos complexos, naturalmente surgem aqueles
relacionados a exposição humana a materiais radioativos, como o urânio, que,
dentre outras aplicações, serve principalmente como matéria prima para a produção
do combustível das usinas nucleares. Daí, como já explicitei, ao tomar conhecimento
do conflito em Caetité, de onde se extrai o urânio que abastece as usinas nucleares
brasileiras, resolvi selecioná-lo como estudo de caso para minha pesquisa de
doutorado. Há muitas controvérsias em torno deste processo de exploração de
urânio, sobretudo em relação à possibilidade de agravamento dos cenários de
exposição ambiental a níveis não naturais de radiação ionizante, via contaminação
do ar, do solo e da água subterrânea. A empresa responsável pela exploração de
urânio em Caetité, Indústrias Nucleares do Brasil (INB), nega que suas atividades
ofereçam riscos à saúde e ao ambiente, fato que é bastante contestado por
movimento sociais locais e outras organizações não governamentais como o
GREENPEACE (GREENPEACE, 2008) e a Plataforma Dhesca Brasil3 (LISBOA et
al., 2011).
Outro fator importante a ser considerado refere-se à minha participação no
projeto Environmental Justice Organisations, Liabilities and Trade (EJOLT)4, que
possibilitou o contato com a organização francesa Commission de Recherche et
d'Information Indépendantes sur la Radioactivité (CRIIRAD)5, a qual desenvolve
trabalhos de contra-expertise6 com vistas a garantir o acesso de cidadãos a
informações independentes sobre os perigos da radioatividade, como a exposição3 Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.4 O projeto EJOLT reuniu um consórcio de atores internacionais (cientistas, organizações ativistas,grupos de reflexão, decisores políticos), dentre os quais a Fiocruz (que coordena o grupo de trabalhosobre avaliação de riscos e saúde ambiental), através de uma série de campos (direito ambiental,saúde ambiental, ecologia política, economia ecológica) para promover aprendizagem mútua ecolaboração entre as partes interessadas a fim de explorar as raízes do aumento dos conflitosambientais em diferentes escalas, e como transformá-los em forças para a sustentabilidadeambiental. Mais informações podem ser obtidas em: www.ejolt.org.5 Um panorama geral das atividades desenvolvidas pelo CRIIRAD pode ser obtido no seguinteendereço eletrônico: http://www.criirad.org/.6 Como “contra-expertise”, assumo a definição elaborada por Topçu (2008) que apresenta estaexpressão como “um conjunto de mecanismos e atividades com o intuito de verificar, contrabalancear,e complementar um dado sistema de expertise”.
3
http://www.criirad.org/http://www.ejolt.org/
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humana a radiações ionizantes. O CRIIRAD surgiu como resposta ao acidente de
Chernobyl e seus efeitos, e tem atuação tanto na França como em outros países,
inclusive no recente desastre nuclear em Fukushima, no Japão. Além do mais, seu
laboratório de análises possui certificação de qualidade do Ministério da Saúde
francês.
No âmbito do projeto EJOLT, no mês de junho de 2012, foi possível realizar
uma oficina em Caetité sobre justiça ambiental e monitoramento comunitário de
radioatividade. O CRIIRAD teve papel fundamental na execução deste processo,
que, além de um mini-treinamento sobre monitoramento de radiação ionizante a
moradores e trabalhadores da mina de urânio, incluiu a coleta de amostras de solo e
de água superficial para análise na França. Como um dos desdobramentos da
oficina, houve, em abril de 2014, uma missão CRIIRAD com o intuito de dar
seguimento aos processos de coleta e análise de amostras, bem como da condução
de oficinas de treinamento específicas para os trabalhadores da mina e os
moradores da região circunvizinha à mesma. Estas atividades contaram com a
colaboração ativa de pesquisadores da Fiocruz.
Há, também, em curso, outro projeto de pesquisa participativa: um estudo de
epidemiologia popular, que visa à sistematização das informações relacionadas a
casos de câncer, com ou sem óbito, coletadas por organizações locais da sociedade
civil de Caetité. Trata-se de uma demanda das organizações comunitárias de Caetité
e da RBJA, decorrente do questionamento ao argumento da empresa e de estudos
contratados, conduzidos por pesquisadores da própria Fiocruz, que apontam a não
correlação entre as atividades da mina de urânio e novos casos de câncer na região.
Segundo relatos das organizações locais, desde a instalação da mina tem havido
um aumento no surgimento de novos casos de câncer nas regiões próximas à mina,
inclusive em jovens. O projeto de epidemiologia popular tem a coordenação de
pesquisadores da ENSP/Fiocruz e conta também com a colaboração de
pesquisadores do IESC/UFRJ. Tal projeto, devidamente aprovado pelos comitês de
ética em pesquisa em saúde envolvidos, constitui uma demanda dos movimentos
comunitários e sociais envolvidos no conflito em Caetité, assim como também faz
parte de uma estratégia de avanço metodológico do grupo de pesquisa ao qual
estou vinculado na Fiocruz.
4
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Ambos os projetos constituem iniciativas de produção compartilhada de
conhecimento em saúde e ambiente, as quais têm o intuito de compreender os
riscos à saúde e ao ambiente decorrentes das atividade de mineração e
beneficiamento de urânio no contexto de Caetité. Estas experiências, entre outras,
serão analisadas e problematizadas ao longo desta pesquisa de doutorado.
JUSTIFICATIVAEsta proposta de investigação se justifica na medida em que se verifica uma
grande carência de estudos acadêmicos sobre a temática dos riscos associados às
atividades de mineração e beneficiamento de urânio no Brasil, sobretudo no âmbito
de uma interface entre saúde coletiva e justiça ambiental. Além do mais, discutir a
relação radioatividade e riscos à saúde, numa perspectiva contextualizada e que se
paute no ponto de vista dos sujeitos atingidos, se mostra muito relevante por
explicitar e problematizar as controvérsias que envolvem o elevado nível de
complexidade e as incertezas existentes.
Em termos metodológicos, o trabalho se destaca por trazer para discussão no
campo da saúde coletiva, em especial da área de saúde e trabalho, o papel da
contra-expertise e da produção compartilhada de conhecimentos em saúde e
ambiente diante de problemas com elevado nível de complexidade, riscos,
incertezas e valores em disputa. Com efeito, será possível refletir sobre a
importância de se estabelecer espaços de diálogo entre saberes especializados e
saberes situados como estratégia coprodução de conhecimentos para compreender
e lidar com tais modalidades de problema.
Ademais, resta mencionar que o conflito em torno da exploração de urânio em
Caetité tem gerado bastante repercussão não só localmente, como mostram alguns
relatórios de importantes ONGs lançados nos últimos anos, os quais denunciam:
problemas relacionados a: suspeitas de contaminação das águas subterrâneas
locais por radionuclídeos (GREENPEACE, 2008); e violações aos direitos humanos
no ciclo de produção do combustível nuclear (LISBOA et al., 2011). O caso,
inclusive, está relacionado e brevemente detalhado no Mapa da Injustiça Ambiental
5
-
e Saúde no Brasil7 e foi recentemente incluído em dois relatórios do EJOLT: o de
número 7, sobre conflitos ambientais no mundo, associados à mineração
(ÖZKAYNAK et al., 2012); e o de número 19, sobre riscos, saúde e mobilizações por
justiça ambiental (PORTO et al., 2015, no prelo). Sendo assim, e em consonância
com os princípios da justiça ambiental, o presente estudo busca, ao propor
processos coletivos e contextualizados de compreensão do dos riscos, colaborar
para transformar a situação-problema investigada, no sentido de promover saúde e
auxiliar nos processos de superação das desigualdades ambientais.
OBJETIVO GERALRealizar uma reflexão crítica sobre a importância de propostas alternativas de
produção compartilhada de conhecimentos como estratégias que possibilitem uma
melhor compreensão, mais contextualizada, de riscos tecnológicos complexos e
suas implicações para o ambiente e a saúde, em situações de conflito e injustiças
ambientais. Para tanto, serão tomados como referência experiências participativas e
integradas de produção de conhecimentos acerca dos riscos e impactos verificados
junto às atividades de mineração e beneficiamento de urânio em Caetité, no
sudoeste da Bahia.
OBJETIVOS ESPECÍFICOSComo objetivos específicos para a presente proposta de pesquisa, são
colocados os seguintes:
1. Discutir o papel das propostas alternativas, participativas e
integradoras, de produção de conhecimento em contextos de conflito e
injustiça ambiental, para melhor compreender situações de riscos
complexos, como as relacionadas às atividades de mineração e
beneficiamento de urânio em Caetité;
2. Caracterizar os processos produtivos relativos às atividades de
mineração e beneficiamento de urânio na mina de Caetité, destacando
7 O Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil constitui uma iniciativa conjunta entre a Fiocruz e aONG Fase, e tem como objetivo maior dar suporte à luta de inúmeras populações e grupos atingidosem seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento consideradainsustentável e nociva à saúde de tais populações. O Mapa encontra-se disponível em:http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br.
6
http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/
-
suas implicações em termos de riscos e impactos para a saúde
humana e o ambiente;
3. Compreender os riscos ambientais da exploração de urânio em
Caetité, considerando o saber situado dos moradores na região do
entorno da mina de urânio;
4. Compreender os riscos ocupacionais da mina de urânio em Caetité,
tendo como referência as experiências dos trabalhadores;
5. Refletir sobre as potencialidades, limites e desafios de iniciativas de
investigação como a epidemiologia popular e a contra-expertise, no
contexto da mineração de urânio em Caetité.
HIPÓTESEA presente tese de doutorado assume como hipótese central que as
abordagens técnico-científicas clássicas de investigação e produção de
conhecimento mostram-se limitadas para identificar e compreender, de forma
contextualizada, riscos complexos e suas implicações para a saúde dos sujeitos
expostos, sobretudo em situações que envolvem conflitos e injustiças ambientais,
como ocorre com a operação da mina de urânio em Caetité. Desta forma, portanto, a
fim de superar tais dificuldades, torna-se necessário adotar propostas alternativas de
produção de conhecimentos, capazes de incorporar e dialogar com outros saberes,
não científicos apenas, mas também investidos na experiência cotidiana de quem
está exposto às situações de risco.
7
-
METODOLOGIAConsiderando as limitações apresentadas pelos métodos científicos
tradicionais de investigação para abordar problemas de saúde e ambiente que
envolvem elevado grau de complexidade, riscos, incertezas e valores em disputa, a
presente proposta de pesquisa assume uma perspectiva qualitativa e participativa,
orientando-se principalmente pelos referenciais metodológicos da denominada
ciência pós-normal (CPN). Dentro destes, merece destaque o dispositivo da
comunidade ampliada de pares como inspiração para buscar uma compreensão
contextualizada dos riscos à saúde e ao ambiente decorrentes das atividades de
mineração e beneficiamento de urânio em Caetité.
Segundo Funtowicz e Ravetz (1997), o dispositivo da comunidade ampliada
de pares é adequado à necessidade de uma nova abordagem científica para lidar
com problemas complexos, de forma integradora, interdisciplinar e plural, que
permite a incorporação de outros saberes que não técnico-científicos, estimulando
um diálogo estendido a todos os afetados por ocasião da compreensão e formulação
de soluções. Portanto, é nesta linha que se insere a noção de contra-expertise
proposta e analisada na presente pesquisa para abordar os riscos da exploração de
urânio em Caetité. Ou seja, a partir do estabelecimento de uma relação dialógica
entre saberes (especializado e situado), num processo de construção compartilhada
de conhecimento, coanálise ou mesmo coprodução de conhecimentos sobre os
riscos da mineração e beneficiamento de urânio, no contexto de Caetité.
Neste sentido, visando alcançar os objetivos propostos em termos práticos
para esta investigação, busca-se inspiração no método da pesquisa-ação, pois o
mesmo se enquadra perfeitamente no que sugere o dispositivo da comunidade
ampliada de pares e está em consonância com as propostas de epidemiologia
popular (BROWN, 1987, 1992), pesquisa participativa de base comunitária (LEUNG
et al., 2004), a denominada Street Science (CORBURN, 2005, 2007) etc. Conforme
Thiollent (2009), o método da pesquisa-ação surge como uma das alternativas ao
padrão convencional de pesquisa na qual é valorizada a busca de compreensão e
de interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas. Desta
forma, é possível situar a pesquisa-ação como uma modalidade de pesquisa social
qualitativa e participativa, a qual propõe uma interação dialógica entre os sujeitos
8
-
envolvidos na pesquisa (pesquisadores e participantes) a fim de gerar subsídios
para a transformação social da situação sob investigação.
O campo de observação da presente proposta de pesquisa delimita-se em
torno das áreas e sujeitos afetados pelos riscos relacionados à operação da mina de
urânio em Caetité. Basicamente, os locais incluídos para a investigação serão as
áreas influenciadas pelas atividades da referida mina: as comunidades rurais
situadas em sua circunvizinhança, inscritas tanto aos municípios de Caetité como de
Lagoa Real. Já entre os sujeitos da pesquisa estarão, fundamentalmente, moradores
de tais comunidades, trabalhadores da mina e integrantes dos seguintes
movimentos sociais de Caetité críticos à atuação da INB: Associação Movimento
Paulo Jackson – Ética, Justiça e Cidadania (AMPJ), Comissão Paroquial de Meio
Ambiente de Caetité (CPMA) e Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA).
Diante do exposto, fica evidente a necessidade de realização de trabalho de
campo para a coleta de dados empíricos, que se dará por meio da interação e do
diálogo com os sujeitos expostos às situações concretas de risco: os moradores da
área circunvizinha à mina e os seus trabalhadores. E para a realização desta etapa
será utilizada a técnica de pesquisa observação participante. Ao lançar mão desta
técnica, almeja-se captar os aspectos mais subjetivos e informais da relação
estabelecida com os sujeitos da pesquisa. Esta técnica permite, entre outras coisas,
compreender as discrepâncias entre o que é dito e o que é feito pelos sujeitos da
pesquisa, e auxilia no entendimento do contexto social no qual estão envolvidos.
Para tanto, tais observações serão registradas num diário de campo, para posterior
análise.
Com efeito, por meio das falas destes sujeitos, juntamente com as notas
registradas no diário de campo, espera-se apreender elementos que permitam
caracterizar o modo operatório real da Unidade de Concentrado de Urânio de
Caetité (URA-Caetité), bem como o processo de gestão ambiental posto em prática.
Além do mais, é fundamental destacar a ocorrência de três atividades de
produção de conhecimentos desenvolvidas entre 2012 e 2014. As mesmas são
objeto de análise da pesquisa aqui proposta e constituirão parte do trabalho de
campo:
a) A primeira diz respeito à oficina internacional “Justiça Ambiental,
9
-
Exploração de Urânio e Monitoramento Comunitário de Radioatividade”,
realizada em junho de 2012 em Caetité, no âmbito do projeto EJOLT, e
composta de atividades como: palestras, debates públicos, toxic tour pelas
imediações da mina de urânio, monitoramento ambiental e coleta de
amostras de solo, sedimentos e água em áreas suspeitas de
contaminação.
b) A segunda, refere-se ao projeto intitulado “Pesquisa participativa de base
comunitária sobre problemas de saúde na área próxima à mina de urânio
em Caetité, Bahia”. Esta é uma pesquisa participativa que visa à
sistematização das informações relacionadas a casos de câncer, com ou
sem óbito, coletadas por organizações locais da sociedade civil de Caetité,
que tem a coordenação de pesquisadores da ENSP/Fiocruz e conta
também com a colaboração de pesquisadores do IESC/UFRJ. Tal projeto
foi devidamente aprovado pelos comitês de ética em pesquisa em saúde
envolvidos.
c) A terceira, realizada no primeiro semestre de 2014, refere-se a uma
missão da organização francesa CRIIRAD em Caetité, com o intuito de
conduzir monitoramento e avaliação da potencial contaminação ambiental
devido às atividades da mina de urânio. Na ocasião, o CRIIRAD também
colaborou na realização de oficinas de treinamento sobre monitoramento
independente de radiação ionizante, junto aos trabalhadores da mina e
aos moradores das comunidades do seu entorno. Este trabalho contou
também com a participação ativa de pesquisadores da Fiocruz e
organizações locais de Caetité.
Para além do trabalho de campo, também serão realizados levantamento e
análise documental a respeito das atividades da URA-Caetité, tendo como referência
principal as seguintes fontes:
• o acervo disponibilizado pela INB em seu sítio eletrônico8: relatórios deatividades da empresa, relatórios de monitoramento ambiental e
ocupacional e outros documentos que sejam relevantes;
8 Disponível em: www.inb.gov.br.
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http://www.inb.gov.br/
-
• o sistema informatizado de licenciamento ambiental federal do InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA)9: todos os documentos relacionados ao processo de
licenciamento da mina de urânio, desde o início, incluindo relatórios de
vistorias técnicas realizadas por técnicos do IBAMA;
• o acervo da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN): normas desegurança e proteção radiológica que sejam aplicáveis às atividades
desenvolvidas na URA-Caetité;
• o acervo organizado pelos movimentos sociais (CPMA, CPT-BA e AMPJ):relatórios, vídeos e documentos produzidos por tais entidades;
• pesquisas acadêmicas (teses, dissertações e artigos científicos) quetenham como objeto de análise o processo de mineração de urânio em
Caetité sobretudo na interface com questões de saúde e ambiente.
ESTRUTURA DA TESEA presente tese está organizada em mais quatro capítulos e a conclusão. No
primeiro capítulo, são abordadas as principais contribuições teóricas e conceituais
sobre a relação entre produção de conhecimentos, riscos tecnológicos complexos,
saúde e justiça ambiental. Para tanto, discute-se a proposta da CPN, suas críticas e
potencialidades como alternativa para lidar com problemas ambientais e de saúde
classificados como complexos. Daí, parte-se para as reflexões sobre alternativas de
produção de conhecimento que valorizem o saber situado, dialogando com as
experiências do campo da saúde do trabalhador, em especial a vigilância em saúde
do trabalhador e a análise interdisciplinar e participativa de acidentes, e com as
experiências do campo da justiça ambiental e a saúde, como a epidemiologia
popular e a community-based participatory research (CBPR).
No capítulo 2, é apresentado um panorama a respeito da atividade de
mineração de urânio, com enfoque para os riscos ambientais e à saúde. Neste
sentido, são discutidos os contextos mundial e brasileiro, bem como os principais
aspectos técnicos e de gestão ambiental envolvidos nesta atividade produtiva. Ao
final do capítulo, realiza-se uma breve reflexão sobre a relação entre mineração de
9 Disponível em: http://www.ibama.gov.br/licenciamento/.
11
http://www.ibama.gov.br/licenciamento/
-
urânio, metabolismo social e justiça ambiental.
O capítulo 3 direciona-se à situação de mineração e beneficiamento de urânio
que ocorre em Caetité, município do sudoeste da Bahia. A partir de uma
contextualização do empreendimento, destaca-se o histórico de irregularidades e
acidentes que marcam sua operação desde seu início. Com efeito, realiza-se uma
crítica sociotécnica ao modo operatório do empreendimento, com ênfase nos riscos
e controvérsias, em termos de saúde e ambiente, relacionadas.
No capítulo 4, são relatadas e analisadas as experiências de produção de
conhecimentos ocorridas em parceria com organizações locais de Caetité, para
melhor compreender as situações de riscos geradas pela operação da mina de
urânio local. Basicamente, apresentam-se as limitações, os desafios, os resultados
preliminares e as potencialidades das atividades desenvolvidas no contexto de
Caetité.
Por fim, são discutidas as conclusões.
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-
CAPÍTULO 1:PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, RISCOS, SAÚDE E JUSTIÇA
AMBIENTAL
1.1 CIÊNCIA PÓS-NORMAL, RISCOS COMPLEXOS, INCERTEZAS ECOMUNIDADE AMPLIADA DE PARES
A CPN tem origem nos trabalhos desenvolvidos por Funtowicz e Ravetz
(1990, 1993, 1994, 1997), nos quais dedicam-se a discussões de cunho
epistemológico e político sobre os problemas socioambientais modernos. Tais
problemas, na visão destes autores, apresentam desafios que tornam evidentes os
limites da ciência normal hegemônica, no sentido dado por Kuhn (2011), em definir
os problemas, propor soluções e orientar adequadamente os processos de tomada
de decisão de políticas públicas. Turnpenny et al. (2011), por sua vez, apontam que
a CPN pode ser compreendida como: (a) uma resposta às reflexões trazidas por
Kuhn (2011), que apresentou o conceito de ciência normal; (b) o desenvolvimento de
um método para ampliação da ciência tradicional; (c) uma força para mudanças
sociais, políticas e epistemológicas frente a problemas complexos com elevado nível
de incertezas e valores em jogo.
Conforme Porto (2012), a ciência clássica ou normal é um fenômeno
moderno, resultante de avanços nos últimos séculos relacionados à descoberta de
leis que regem muitos fenômenos da natureza. Fundamentalmente, baseia-se no
desenvolvimento de disciplinas como a física e a química, e seus modelos analíticos
e preditivos que preferem métodos quantitativos. Evidentemente, é preciso
reconhecer as diversas e impressionantes aplicações tecnológicas e industriais
proporcionadas pela ciência normal à sociedade moderna, através da constituição
das várias áreas de especialização científica. Assim, é possível compreender o
porquê da legitimação da ciência normal como critério de “verdade”. Porém, como
chamam a atenção Funtowicz e Ravetz (1994), esta pretensa superioridade do
conhecimento científico baseia-se em critérios de “objetividade” e “neutralidade”, os
quais apontam para a separação dos fatos e valores, de forma a rejeitá-los no
âmbito de uma prática científica correta.
Entretanto, apesar de não devidamente reconhecido, é importante perceber
13
-
que valores e relações de poder, explícitos ou não, sempre estão presentes, mesmo
nos critérios definidores de um problema. Essa limitação tem se agravado,
sobretudo ao longo do século XX, por conta da crescente transformação da
pesquisa científica em algo “industrializado”, orientado fortemente por interesses de
grandes corporações econômicas, as quais financiam, definem e controlam linhas de
pesquisa (GALLOPÍN, 2004).
No âmbito dos problemas socioambientais, existem inúmeras situações com
alto nível de complexidade, urgência, muitas incertezas presentes, além de valores e
interesses em disputa. Estes fatores devem ser levados em conta para garantir a
qualidade do conhecimento científico a ser gerado a fim de lidar adequadamente
com tais problemas. Da mesma maneira, é importante abranger o interesse público,
os conhecimentos científicos e, sobretudo, os conhecimentos investidos na
experiência, ou seja, o conhecimento vivencial ou situado de sujeitos não
especialistas, como as populações e pessoas que vivenciam cotidianamente
situações de risco (ambientais ou à saúde). Como bem colocam Gamarra e Porto
(2015, no prelo), esta perspectiva justifica a importância da participação não apenas
em relação à defesa da democracia frente aos interesses em jogo, mas também à
dimensão epistemológica, de forma a juntar epistemologia e política. Portanto, as
referências teóricas, os caminhos metodológicos e os dados a respeito de
determinado problema não são considerados absolutos ou únicos, principalmente
diante de problemas complexos. Isto porque as análises realizadas a partir de
distintas abordagens científicas podem desconsiderar valores, incertezas e saberes
importantes para uma compreensão ampla e adequada sobre as questões em jogo,
e, assim, direcionar de forma restrita ou mesmo manipuladora as decisões a serem
tomadas.
1.1.1 CPN e epistemologia política: possibilidades e desafiosO conceito de complexidade, ou, melhor, de problemas ou sistemas
complexos, é de extrema relevância no âmbito da CPN. A esse respeito, as reflexões
desenvolvidas por Funtowicz e Ravetz (1994) são bastante elucidativas. Em primeiro
lugar, faz-se necessário diferenciar sistemas simples de complexos. Os primeiros
são aqueles que até podem apresentar diversos níveis de complicação, porém são
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fundamentalmente estudados e analisados por disciplinas oriundas do campo das
ciências naturais, em especial a física e a química. Já os sistemas complexos, por
sua vez, são aqueles estudados e analisados por disciplinas vinculadas aos campos
da ecologia e das ciências sociais e humanas. Mais ainda, como salienta Porto
(2012), diferentemente dos sistemas simples, os sistemas complexos não são
passíveis de compreensão por uma única perspectiva apenas, sem que haja perdas
de aspectos essenciais constituintes dos mesmos em relação aos problemas
analisados.
Funtowicz e Ravetz (1994) também estabelecem uma distinção entre dois
tipos de complexidade: a ordinária e a emergente. No caso da complexidade
ordinária, predomina um padrão de complementaridade nas relações entre os
elementos e subsistemas presentes, tanto por meio de competição como de
cooperação. Por outro lado, a complexidade emergente apresenta um padrão de
comportamento oscilante entre hegemonia e fragmentação, ou, melhor, uma disputa
entre possíveis hegemonias. Diversidade e hegemonia, entretanto, estão presentes
tanto em sistemas complexos ordinários como nos emergentes. Todavia, como
enfatizam Funtowicz e Ravetz (1994), o padrão desejado é a diversidade, que ocorre
de maneira não intencional no caso da complexidade ordinária; mas depende de
consciência, intencionalidade e um comprometimento especial entre as partes
constituintes para seu alcance e manutenção, no caso da complexidade emergente.
Desta forma, é possível afirmar que a complexidade ordinária refere-se,
basicamente, ao padrão de organização típico dos sistemas biológicos; ao passo
que a complexidade emergente é característica dos sistemas sociais, técnicos ou
mistos, os quais também incluem os seres humanos.
A CPN consiste, fundamentalmente, em uma proposta metodológica voltada
para a gestão de problemas complexos. Sua abordagem destaca aspectos
geralmente negligenciados pela ciência clássica ou normal, como: incertezas, a
influência dos valores nos processos decisórios e a pluralidade de perspectivas
legítimas existentes. No âmbito da CPN, estes elementos são considerados
essenciais, com o intuito de possibilitar a estruturação de problemas complexos e
dar suporte a processos decisórios que permitam ampla participação social. Com
efeito, a abordagem que a CPN propõe para lidar com problemas complexos é muito
15
-
diferente da tradicionalmente adotada pela ciência normal. Pois esta busca reduzir a
complexidade através do estudo de um determinado fragmento. E aí é que reside o
sentido da denominação “pós-normal”, que se opõe à noção de ciência normal,
fragmentadora, no sentido atribuído por Kuhn (TURNPENNY et al., 2011). Contudo,
conforme ressaltado por Gamarra e Porto (2015, no prelo), existe uma certa
confusão em torno do termo “pós-normal”, que erroneamente é, por vezes,
associado a visões pós-modernas e relativistas, quando na verdade seu foco é
justamente a busca da qualidade do conhecimento gerado e de posturas éticas e
democráticas na interface ciência-política, ao lidar com problemas complexos.
É importante destacar que as contribuições e avanços da dita ciência normal
não devem ser descartados para a CPN. Na verdade, são considerados peças-
chave para o desenvolvimento de muitos dispositivos metodológicos desta nova
proposta. Todavia, no que concerne à gestão de incertezas científicas, existe uma
diferença significativa entre a CPN e ao que Funtowicz e Ravetz (1994 e 2008)
denominam por ciência aplicada e consultoria profissional, cujas estratégias podem
se apresentar apropriadas frente a níveis menores de complexidade, os quais
compreendem as incertezas, os valores e os interesses em jogo.
Para a ciência aplicada, o enfrentamento das incertezas se dá pelo controle
das variáveis relevantes do problema (como num laboratório), e também pelo uso de
probabilidades e estatísticas para a concepção de estudos e análise de seus
resultados, considerando-se que as incertezas e os interesses em jogo são baixos.
Já a consultoria profissional pressupõe um número maior de incertezas e interesses
em jogo, de maneira que para reduzir tais incertezas são realizadas avaliações
profissionais. Este é o caso, por exemplo, de inúmeros problemas solucionados por
indivíduos e equipes de médicos, engenheiros ou profissionais de outros campos,
nos quais a experiência exerce um papel central para lidar com situações reais, as
quais tendem a ser bem diferentes dos laboratórios.
Entretanto, quando as incertezas e os interesses em jogo são elevados, a
proposta da CPN aponta que a abordagem adotada não deve ser a de tentar reduzir
as incertezas – algumas são irredutíveis, até –, mas sim a de buscar elevar a
qualidade das decisões a serem tomadas diante de situações mais complexas
(MARSHALL; PICOU, 2008). Em tais circunstâncias, admite-se que nenhuma
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solução adequada poderá ser proposta unicamente a partir da dimensão do
conhecimento especializado, pois, ao lidar com problemas complexos, faz-se
necessário levar em conta não só a dimensão epistemológica, mas também a ética e
a política, uma vez que valores e interesses somente podem ser expressos ou
defendidos pelos próprios sujeitos ou grupos envolvidos no problema.
Portanto, um elemento-chave proposto pela CPN é a denominada
comunidade ampliada de pares, cuja principal finalidade consiste na discussão,
estruturação e proposição de alternativas para enfrentar problemas complexos. A
ciência normal, especializada, tende sempre a buscar “neutralidade” e “objetividade”,
de maneira a adotar padrões de qualidade sempre validados por comunidades
especializadas de pares. Estas mantêm-se delimitadas em torno de paradigmas
hegemônicos, os quais tendem a explicitar fatos duros e ocultar tanto os valores
quanto as incertezas em jogo. Estas limitações mostram-se ainda mais relevantes
em situações complexas, com elevado grau de incertezas e decisões envolvendo
valores importantes. Assim, segundo a CPN, a estruturação dos problemas, as
análises possíveis e as soluções propostas vão demandar abordagens criativas e
abrangentes, capazes de envolver uma ampla gama de sujeitos, desde especialistas
a não especialistas, incluindo aí os afetados pelos problemas. Isto porque considera-
se que todos os sujeitos são portadores de conhecimentos e saberes distintos, os
quais podem proporcionar visões relevantes para a compreensão adequada dos
problemas e contribuir para a apresentação de soluções de maior qualidade.
As comunidades ampliadas de pares devem, então, ser compostas por
diferentes sujeitos, pertencentes aos diversos grupos de interesse que possuam
relação com o problema que se esteja lidando. A importância de tais sujeitos ou
grupos está na possibilidade de contribuir para uma compreensão mais ampla e
contextualizada do problema, trazendo seus conhecimentos, valores, vivências e
necessidades, e, assim, melhor orientar o encaminhamento de soluções possíveis e
adequadas. Desta forma, verifica-se que uma comunidade ampliada de pares
equivale a um fórum de produção de conhecimentos e, também, de construção de
compromissos, e sua efetividade exige um determinado grau de liberdade e
disposição ao diálogo. Como afirma Gamara e Porto (2015, no prelo), os membros
participam com suas diferentes habilidades de comunicação e tradução, a fim de
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avaliar as evidências (científicas ou não) existentes, aportar novos conhecimentos
(sobretudo, os investidos na experiência), reestruturar o problema em si e, com
efeito, subsidiar processos decisórios mais adequados, a partir de critérios e valores
explicitados e assumidos. É importante ressaltar que não há um modelo único ou um
guia metodológico passo a passo sobre como constituir uma comunidade ampliada
de pares. A premissa básica para tanto é criar condições básicas para uma maior
qualidade ética e epistemológica, considerando a diversidade de experiências,
saberes e valores legítimos e relevantes para propor prioridades e alternativas de
solução frente ao problema em questão (GAMARRA e PORTO, 2015, no prelo).
1.1.2 Críticas à CPNA CPN, todavia, não é imune a críticas. Na literatura, há estudos que
destacam suas fragilidades e limites, como o de Goeminne (2011), que questiona se
em algum momento a prática científica tradicional chegou a ser “normal”, pois
considera, conforme apontado por vários trabalhos da sociologia do conhecimento,
que estudos científicos sempre implicam escolhas de métodos e que tais escolhas
são, obviamente, influenciadas por contextos políticos e sociais.
Gamarra e Porto (2015, no prelo) ressaltam que uma importante crítica à CPN
refere-se à sua carência de compreensão sociológica a respeito das relações de
poder e da governança dos problemas políticos e, também, dos aspectos conflitivos
ou contraditórios presentes na democracia participativa e deliberativa. Segundo esta
perspectiva crítica, para a CPN o raciocínio metodológico deveria prevalecer sobre a
deliberação política, as disputas políticas e as interações em contextos mais ou
menos democráticos. E, assim, a mudança do tipo de avaliação da evidência
científica seria capaz de alterar os resultados de uma determinada política
(WESSELINK e HOPPE, 2011). Outros autores, como Collins e Evans (2002),
também ressaltam este importante limite presente no referencial da CPN, com a
dificuldade em compreender que os processos políticos, econômicos, culturais e
técnicos possuem fronteiras tênues, sendo bastante difícil intervir no último sem a
influência dos demais.
No caso dos conflitos ambientais, que decorrem do atual capitalismo
globalizado, Porto (2011) aponta certa ingenuidade por parte da CPN, dada a
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ausência de reflexões sobre como lidar com as situações de conflito presentes em
sociedades estruturalmente desiguais e plurais, com valores e interesses
divergentes, e com fortes assimetrias no acesso a recursos, incluindo informações,
mecanismos de participação e influência sobre processos decisórios. Esta suposta
“ingenuidade”, comenta Porto (2011), estaria relacionada em grande medida à
ênfase metodológica da CPN, em detrimento de reflexões mais aprofundadas sobre
questões sociológicas e de economia política inerentes aos conflitos que emergem
em instâncias de ampla participação, a exemplo da própria comunidade ampliada de
pares.
Collins e Evans (2002) também ressaltam que um grande problema da
abordagem da CPN seria assumir o conhecimento científico (dos especialistas) e o
conhecimento situado (investido na experiência) como facilmente conciliáveis, e que
a compreensão do problema em novas bases seria capaz de gerar uma nova
racionalidade, em termos de práticas sociais, como nos processos decisórios. Desta
forma, há que se considerar também um importante desafio à viabilidade da
comunidade ampliada de pares, que se refere à disposição de cada participante em
concordar com a possibilidade de rever suas posições, tanto em termos políticos
como cognitivos, e aceitar a legitimidade de argumentações contrárias ou diferentes
de suas posições iniciais através do diálogo.
1.1.3 Para além das críticas da CPNTodavia, apesar das críticas, a proposta da CPN tem sua importância
justamente pelo foco na qualidade do conhecimento que dá base aos processos de
tomada de decisões em sociedades democráticas. Neste sentido, vale ressaltar o
que Funtowicz e Ravetz (1993) chamam de epistemologia política, uma estratégia
que visa trazer para o centro do debate sobre qualidade do conhecimento questões
como os riscos, as incertezas e ignorâncias presentes nas diversas análises,
soluções e decisões em torno de importantes problemas modernos. Isto porque, em
geral, estas questões tendem a ser sistematicamente ocultadas pela formulação
teórica e prática dos especialistas da ciência normal, ou mesmo pelas
argumentações dos que defendem interesses específicos em detrimento de outros.
Uma importante articulação entre epistemologia política e conflitos ambientais
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é proposta por Porto (2011), que apresenta duas perspectivas: a epistemológica e a
sociopolítica. A perspectiva epistemológica baseia-se na noção de complexidade, ou
seja, no entendimento de que há limites nas várias áreas de conhecimento em torno
dos problemas e conflitos que, por serem complexos, possuem inúmeras e
irredutíveis dimensões. Nesta perspectiva, também assume-se a necessidade de
explicitação das incertezas e valores em jogo, sempre presentes em processos
decisórios e políticas públicas. Já a segunda perspectiva, a sociopolítica, toma como
base os referenciais da economia política e da ecologia política, e tem a ver com a
explicitação dos conflitos ambientais em contextos de vulnerabilidade nos quais há
disputas por recursos, valores, modelos de desenvolvimento e cosmovisões. Estas
duas perspectivas, portanto, permitem reconhecer a complexidade do problema bem
como aceitar a pluralidade de perspectivas e metodologias legítimas associadas.
Ao unir epistemologia e política, torna-se mais fácil entender como as formas
de ocultamento de valores e incertezas podem estar relacionadas aos interesses em
disputa. No entanto, conforme Porto et al. (2014b), esta junção demandaria a
formação de fóruns de debate, onde grande destaque seria dado à tradução e ao
papel dos tradutores. A importância destes sujeitos está na capacidade de conseguir
estabelecer pontes não só entre paradigmas científicos, mas entre culturas, valores,
linguagens, saberes e experiências, com o intuito de melhor compreender e
ressignificar os problemas a partir das necessidades, insatisfações, anseios e busca
de alternativa por parte dos sujeitos vulnerabilizados. Os tradutores dominam, em
algum nível, diferentes paradigmas e linguagens, e são representados geralmente
por: líderes comunitários ou de movimentos sociais; investigadores engajados que
dialogam com comunidades e movimentos sociais na busca de compromissos
construídos por meio de práticas ativistas e métodos de pesquisa-ação; ou mesmo
representantes frutos da junção dos dois grupos anteriores, cientistas oriundos de
classes sociais economicamente desfavorecidas, grupos étnicos, ou ainda
comunidades específicas (como portadores de certas doenças) que elegem como
objetos de pesquisa problemas que atingem suas comunidades de origem.
Mesmo com as limitações apontadas em relação à CPN, acredita-se que esta
proposta possa contribuir significativamente para melhorar os processos decisórios
que lidam com problemas complexos, uma vez que busca articular epistemologia e
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política, por meio do desenvolvimento de abordagens epistêmicas que possibilitam
soluções mais consistentes (KASTENHOFER, 2011).
1.1.4 Gestão de problemas complexos e CPNBuscando orientar uma gestão mais adequada de problemas complexos, De
Marchi e Funtowicz (2004), apresentam alguns princípios constituintes da CPN que
podem contribuir para este fim. São eles:
• Compartilhar o conhecimento: relaciona-se à necessidade de reconhecer evalorizar os diferentes formas de conhecimento que distintos sujeitos
podem trazer ao debate. Cidadãos, ativistas, trabalhadores ou moradores
do entorno de empreendimentos poluidores não podem ser reduzidos a
meros “leigos”. Os conhecimentos que tais sujeitos detêm, com base em
suas vivências e experiências cotidianas, são de bastante relevância para
a adequada compreensão e o enfrentamento de problemas e situações de
riscos reais a que estão expostos. Este tipo de conhecimento, situado e
contextualizado, também refere-se aos costumes e práticas sociais, e,
portanto, são capazes de proporcionar valiosas observações muitas vezes
não obtidas somente com o aporte do conhecimento científico tradicional.
Assim, ressalta-se a necessidade de estabelecer pontes para permitir um
diálogo amplo entre saberes e experiências para além daquelas de origem
puramente técnico-científica.
• Congruência: refere-se à coerência tanto interna como recíproca entreideias e ações, bem como sua correspondência com a realidade da
experiência anterior e de iniciativas futuras. Neste sentido, vale destacar
que, por vezes, as medidas de prevenção sugeridas para diferentes
situações de risco podem ser mutuamente contraditórias, ou mesmo a
aplicação de planos de reparação de danos já ocorridos pode não ser
viável em determinados contextos sociais, sob pena de gerar resultados
incongruentes, não efetivos e possivelmente perigosos.
• Recursos: relacionam-se aos econômicos, mas não apenas, incluindotambém o conjunto de todos os conhecimentos, habilidades e
possibilidades de conexão entre as diferentes partes implicadas no
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processo decisório, bem como o acesso a redes mais amplas. Para tanto,
é importante que o diálogo político favoreça o surgimento de tais recursos,
de forma a permitir sua utilização e seu aperfeiçoamento em processos de
aprendizagem, ampliando os recursos sociais existentes. Também é
considerada estratégica a formação de redes compostas por organizações
comunitárias, sociais e profissionais envolvidas no problema, incluindo-se
também a participação de instituições e autoridades regionais e locais.
• Confiança: constitui condição fundamental para a efetividade de qualquercooperação ou processo dialógico entre diferentes atores. Em geral, a
confiança do público leigo nos especialistas e autoridades públicas vêm se
deteriorando, sobretudo a partir da percepção pública da existência de
omissão de informações e/ou manipulação de incertezas científicas, na
tentativa de confundir a sociedade, bem como subordinar instituições e
cientistas a determinados interesses econômicos.
Desta forma, vale ressaltar, na mesma linha que Funtowicz e Strand (2007), o
esforço da proposta da CPN em reforçar a posição processual e democrática de
gestão de conhecimentos, uma vez que seu objetivo principal é garantir a qualidade
das decisões em situações com alto nível de incerteza e complexidade, a partir da
lógica da defesa do interesse público.
E quanto ao tema das incertezas, salienta-se que as mesmas, quando
consideradas, tendem a ser tratadas de maneira puramente quantitativa e sem a
devida contextualização quanto aos valores e interesses implícitos que estão
presentes. Na visão da CPN, o caminho para superar tal situação é a constituição de
uma “comunidade ampliada de pares” (FUNTOWICZ e RAVETZ, 1993, 1994, 1997),
dispositivo capaz de discutir as incertezas e consequências das escolhas possíveis
em um processo de tomada de decisões, assim como buscar garantir que o
interesse público prevaleça, a partir da explicitação dos diversos interesses coletivos
em disputa frente a certo problema complexo.
1.1.5 Sobre as incertezasUm problema característico da ciência normal consiste em sua dificuldade de
explicitar e lidar com as incertezas em jogo. Quanto ao tratamento dos riscos
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ambientais e tecnológicos, a concepção predominante é que os mesmos são
sempre passíveis de identificação, mensuração e controle pela ciência, bem como
pelos métodos desenvolvidos de análise e gestão de problemas ambientais e de
saúde. Todavia, tal posição não leva em conta as discussões sobre riscos,
complexidade e incertezas apresentadas por autores como Funtowicz e Ravetz
(1990, 1993, 1994, 1997).
Na visão de Wardekker et al. (2008), avaliações científicas de riscos
ambientais complexos, bem como as respostas políticas aos mesmos, sempre
envolvem incertezas de muitos tipos. As quais podem surgir nos diversos momentos
constituintes do processo de elaboração de políticas públicas: a identificação inicial
de um possível problema; a formulação da política; e, eventualmente, o
monitoramento e os ajustes de políticas existentes. Os autores destacam também
que muitas incertezas não conseguem ser reduzidas com a realização de mais
pesquisas, e, no entanto, decisões importantes precisam ser tomadas antes que
evidências científicas conclusivas estejam disponíveis. Daí a importância de
desenvolver e adotar estratégias adequadas de comunicação de incertezas, não só
pela capacidade de influenciar políticas públicas (ambientais e de saúde, sobretudo),
mas porque também têm relação com o que pode ser qualificado como boa prática
científica, pautada na responsabilidade e transparência junto ao público em geral.
Contudo, no âmbito da interface entre ciência e sociedade, não é uma tarefa
simples lidar com incertezas elevadas, bem como com os limites das possibilidades
de quantificação das mesmas. Em geral, as informações relacionadas a incertezas
são de difícil compreensão, além de constituírem fonte de muitas controvérsias
científicas, as quais, quando tornadas públicas podem nutrir o sentimento de
desconfiança em relação à ciência e aos cientistas. Portanto, na mesma linha que
Wardekker et al. (2008), considerando o quadro de incertezas inerente a muitos
problemas ambientais e de saúde envolvendo riscos complexos questiona-se: teria a
ciência condições de exercer o papel de fornecer conhecimento confiável, válido e
objetivo? Mais ainda: existem abordagens no âmbito da ciência capazes de remover
ou reduzir incertezas elevadas, e fornecer fatos objetivos?
As respostas para as questões colocadas acima não são triviais. Van der
Sluijs (2005) traz uma interessante contribuição ao refletir sobre as diferentes
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maneiras pelas quais a comunidade científica lida com as incertezas que não são
facilmente domadas. Para tanto, o referido autor utiliza como metáfora o termo
“monstro” a fim de caracterizar as incertezas, de modo que as estratégias da
comunidade científica para tratamento de tal monstro, com diferentes níveis de
tolerância em relação ao anormal, seriam:
• Recusa (exorcismo do monstro): eliminação das incertezas por meio demais pesquisas científicas independentes;
• Quantificação (adaptação do monstro): diante da inevitabilidade dasincertezas, busca-se quantificá-las e separá-las de fatos e valores, da
forma mais efetiva possível;
• Deliberação (acolhimento do monstro): a ciência é desafiada a contribuirpara um debate público menos tecnocrático e mais democrático;
• Ciência como um jogador (player) (assimilação do monstro): ressalta-se ocaráter político que conforma a prática científica, e desafia-se a mesma a
assumir um papel influente na arena pública.
Van der Sluijs (2006) traz algumas considerações sobre o tema das incertezas
que merecem destaque: (i) a primeira refere-se ao fato das incertezas científicas
serem, em parte, socialmente construídas e sua avaliação sempre envolver
julgamentos subjetivos; (ii) a segunda aponta que mais pesquisas não
necessariamente reduzem as incertezas, mas revelam complexidades não previstas
e incertezas irredutíveis; (iii) a terceira salienta que incerteza é mais do que um erro
estatístico ou inexatidões em números, ou seja, é cada vez mais compreendida
como um conceito multidimensional envolvendo dimensões quantitativas e
qualitativas, que, muitas vezes, dominam as primeiras; (iv) a quarta, por fim, lembra
que, em geral, metodologias e práticas que lidam com incertezas focam apenas em
seus aspectos quantificáveis, de modo que métodos que abordem suas dimensões
qualitativas e questões de estruturação de problemas bem como valores imbricados
são ausentes ou encontram-se em seus estágios iniciais.
Wynne (1992) também apresenta contribuições importantes a respeito das
discussões sobre incerteza. O autor critica a ideia segundo a qual o inadequado
controle dos riscos ambientais decorre apenas do conhecimento científico
inadequado. Além desta crítica, também apresenta o conceito de indeterminância
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como uma categoria de incerteza. Esta categoria relaciona-se a um fim em aberto
(open-endedness), em termos científicos e sociais, nos processos de danos
ambientais de origem antrópica. A noção de inderteminância, portanto, introduz a
ideia de que o comportamento social contingente deve ser incluído e na estrutura
analítica e prescritiva. Desta forma, intui-se que muitos dos comprometimentos
intelectuais que constituem nosso conhecimento não são inteiramente determinados
por observações empíricas. Ou seja, o conhecimento científico é condicionado não
só pelas relações naturais, mas também pelas que moldam o mundo social, e pela
habilidade de construir e negociar confiança e credibilidade para a ciência. Van der
Sluijs (2006), então, ressalta que, em situações de controvérsia social com disputas
elevadas, todo argumento científico torna-se indeterminado e incerto e não
fundacional.
No âmbito da regulação ambiental, o ônus científico da prova em situações de
risco nas quais as incertezas são elevadas, constitui uma questão bastante
conflituosa e controversa, de maneira que Wynne (1992) destaca dois aspectos que
dão margem para a manipulação política das incertezas: (i) onde o ônus da prova
deve ser situado no espectro entre a completa proteção ambiental e a espera por um
dano óbvio? e (ii) que ônus de prova pode ser cientificamente sustentado?
Assim, a manipulação política das incertezas coloca a exigência de “provas” e
“evidências” objetivas que demonstrem, de forma inequívoca, a associação entre
atividades produtivas, riscos ambientais e problemas de saúde. No entanto,
seguindo Porto et al. (2015), a obtenção destas provas é, em geral, uma tarefa muito
difícil no caso de problemas complexos, de origem multicausal e com escalas
espaciais e temporais raramente contempladas nos estudos, por vezes caros e de
longa duração. Além do mais, mesmo que estes estudos científicos sejam
realizados, suas limitações e incertezas muito dificilmente são explicitadas com
clareza. Entretanto, não se deve assumir a ideia equivocada de que esta suposta
falta de “evidências” corresponderia a uma comprovação científica da não
associação entre o risco ambiental e os problemas de saúde analisados. Ou seja, a
falta de uma evidência totalmente comprovada não deveria significar que o problema
não existe. Nesses casos, aplicar o princípio da precaução deveria ser assumido
como de grande importância para a defesa da vida e do meio ambiente.
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Assim, tomando como base as discussões sobre regulação ambiental e a
consolidação do paradigma preventivista10, que se colocava nos anos 1980, Wynne
(1992) já chamava a atenção que para lidar com as incertezas, não poucas e
crescentes, associadas aos efeitos ambientais dos lançamentos de poluentes, o
passo inicial é o reconhecimento de sua existência, para, em seguida, buscar
compreender seu caráter social complexo, mesmo dentro do domínio do
conhecimento cientí
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