refletindo sobre representaÇÕes e prÁticas...
Post on 23-Aug-2021
9 Views
Preview:
TRANSCRIPT
PROGRAMA DE INCENTIVO À CRIATIVIDADE E À INCLUSÃO: REFLETINDO SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS SOCIAIS
Kátia Regina Xavier da Silva;
Colégio Pedro II/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro katiarxsilva@globo.com
Ana Patrícia da Silva;
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, escolagestoresanatutora@gmail.com
Resumo: O presente trabalho visa problematizar duas metáforas surgidas no contexto das interações realizadas durante a pesquisa Criatividade e Inclusão na Formação de Professores: representações e práticas sociais: a metáfora dos ingredientes, através da qual acredita-se que existe uma receita para a inclusão e a metáfora do professor-ator, que expressa a visão de que o professor não deve se envolver emocionalmente diante dos processos de exclusão, em virtude das exigências da profissão. A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação que teve como foco a preparação professores, em fase de formação inicial, para o trabalho com problemas que vêm sendo apontados como causadores de processos de exclusão na escola brasileira. Os resultados da pesquisa indicam elementos importantes para se pensar como as diferentes formas de promoção da inclusão podem se transformar em processos explícitos de exclusão ou se travestir em mecanismos sutis de inclusão perversa.
Palavras-chave: Inclusão, criatividade, formação de professores.
Introdução
O presente artigo constitui um recorte da Tese de Doutorado intitulada Criatividade e
Inclusão na Formação de Professores: Representações e Práticas Sociais, que teve como
objeto o Programa de Incentivo à Criatividade e à Inclusão na Formação de Professores
(PICI). O PICI é um plano de ação que tem por objetivo o desenvolvimento do processo
criativo e das habilidades de solução de problemas relativos à dialética inclusão/exclusão,
através de um conjunto de estratégias que visam incentivar a aproximação crítica entre a
teoria e a prática no campo educacional, durante o processo de formação inicial de
professores.
A formação de professores para a inclusão em Educação ainda não é uma realidade
no ensino superior brasileiro. Embora as políticas educacionais apontem para a necessidade de
democratizar o acesso ao saber, cabe reconhecer a impossibilidade de transformar a escola e o
sistema educacional da noite para o dia. Além da reorganização dos sistemas educacionais, no
que concerne à elaboração de políticas de largo alcance que incidam diretamente na melhoria
das condições de trabalho nas escolas, defendemos neste artigo que a formação inicial de
professores constitui uma importante demanda para construção de uma escola mais inclusiva.
Nessa perspectiva Pimenta, Fusari, Almeida e Franco (2013) entendem que “as formas de
concretização do processo de ensino variam no tempo e no espaço, criam-se e recriam-se
produzindo modelos e estruturas que caracterizam cada momento histórico” (p.144). Para os
referidos teóricos, o processo de ensino é uma prática social complexa, realizada “por seres
humanos entre seres humanos”, ou seja, é um processo que se transforma de acordo com o
momento sócio-histórico e com os contextos: ”institucionais, culturais, espaciais” (p.144).
As práticas que incentivam a expressão da criatividade do futuro professor na
formação inicial podem colaborar para o reconhecimento e desenvolvimento de características
necessárias à atuação orientada para a inclusão. Assim sendo, entendemos a criatividade como
componente do ensino e da formação de professores embora constitua um tema polêmico, seja
por sua amplitude, seja pela ambiguidade que permeia a origem de seus debates.
Silva C. (2001) destaca a incipiência de tais estudos no contexto brasileiro e
contextualiza historicamente o tema, assinalando que grande parte dos estudos desenvolvidos
na área da psicologia da criatividade foram – e ainda são – realizados nos EUA. A autora
argumenta que as teorias que embasam o conceito de criatividade desde a década de 50 –
período em que situa o despertar do interesse dos pesquisadores pelo tema, incentivados que
foram pela Guerra Fria e pelas inovações tecnológicas dela precedentes – sugerem dois
direcionamentos: o primeiro ligado aos processos cognitivos que promovem a criatividade e o
segundo ligado aos aspectos sociais que interferem no surgimento, desenvolvimento e difusão
da criatividade e dos produtos criativos. No primeiro grupo de teorias existe uma preocupação
notória com os aspectos individuais que caracterizam a criatividade e no segundo grupo
tende-se a priorizar os fatores ambientais que incentivam ou cerceiam a criatividade.
A relação entre a criatividade e a sociedade nas produções científicas desenvolvidas
no campo da psicologia da criatividade baseia-se em três paradigmas bem delimitados: o
primeiro, representado pelas teorias cognitivas, define a criatividade como sendo uma
característica inerente ao indivíduo; essa visão vai sendo aos poucos modificada por
paradigmas que defendem a influência dos fatores sociais no desenvolvimento da criatividade
e, posteriormente, por paradigmas que defendem a influência recíproca de fatores individuais
e ambientais (SILVA C. 2001). Dentre as teorias referentes à abordagem sistêmica da
criatividade podemos citar: a Psicologia Social de Amabile, o modelo sistêmico de
Csikszentmihalyi e o modelo sistêmico de Woodman e Schoenfeldt (LUBART, 2007).
Silva C. (2001) defende que, em contraponto às abordagens norte-americanas, o
referencial soviético “se diferencia dos demais por não reduzir os aspectos sociais a variáveis
situacionais” (p.53) e que tal abordagem representa “um caminho com grandes possibilidades
para uma melhor compreensão da criatividade” (p.53). Dentre os autores soviéticos destaca
Vygotsky, que “considera ser a criatividade mais uma regra do que uma exceção, não
constituindo privilégio apenas de cientistas” (p.55). De uma forma geral, o tema é profícuo e a
tentativa de abordá-lo na instituição universitária abre grandes possibilidades de pensarmos
pares como teoria/prática; indivíduo/sociedade; tradição/inovação, entre tantos outros.
A criatividade é definida neste artigo com base na abordagem múltipla, proposta por
Sternberg & Lubart (1995) e denominada Teoria do Investimento da Criatividade. De acordo
com esta abordagem, a realização de produções criativas depende de quatro fatores:
cognitivos (relacionados a aspectos específicos da inteligência e conhecimento), conativos
(ligados a estilos cognitivos, de personalidade e motivação), emocionais (relacionados a
sentimentos, afetos, desejos) e ambientais (que dizem respeito às condições materiais de
realização), estando o potencial criativo presente nas diversas áreas do conhecimento como a
arte, literatura, Ciência, comércio e outras (LUBART, 2007). O ambiente social é essencial na
avaliação da criatividade e a interação de seus componentes pode incentivar ou limitar a sua
expressão.
Pimenta, Fusari, Almeida e Franco (2013) “reafirmam que o ensino, como prática
social, significa a interpretação desse objeto como um fenômeno complexo que requer uma
abordagem dialética multifuncional” (144). Defende-se aqui, neste sentido, que a discussão
sobre a inclusão em Educação se torna mais profícua quando levamos em consideração as
Representações Sociais (RS) dos diferentes grupos sobre esse objeto. Sendo a representação
social um tipo de pensar que organiza e orienta as práticas sociais, a maneira como se
representa a inclusão em Educação pode interferir na forma como o sujeito a realiza – ou não.
Para Abric (2000), “a identificação da ‘visão de mundo’ que os indivíduos ou os grupos têm e
utilizam para agir e para tomar posição, é indispensável para compreender a dinâmica das
interações sociais e clarificar os determinantes das práticas sociais” (p.27). Wagner (2000) se
refere ao termo representação social como “um conteúdo mental estruturado – isto é,
cognitivo, avaliativo, afetivo e simbólico – sobre um fenômeno social relevante, que toma a
forma de imagens ou metáforas, e que é conscientemente compartilhado com outros membros
do grupo social” (p.3-4). Segundo o autor, o grupo social cria, difunde e transforma
publicamente o conhecimento partilhado através de discursos e práticas cotidianas.
No PICI, tanto a criatividade como a inclusão são entendidos como processos. O
termo incentivo tem um duplo sentido neste Programa: o sentido de estímulo e de valorização.
Deste modo, vale a pena esclarecer que ao elaborar um Programa de Incentivo à Criatividade
e à Inclusão pretendeu-se, sobretudo, oferecer possibilidades de “despertar” o potencial
criativo inerente a todo e qualquer ser humano e, de igual forma, valorizar as diferentes
expressões da criatividade dos participantes, mesmo que essas expressões não representassem
uma “novidade radical” quando se considera o grupo como um todo ou o contexto geral mais
amplo como parâmetros de comparação.
Institucionalmente, o PICI caracterizou-se como um Curso de Extensão Universitária
e teve a duração total de 60h (sessenta horas), distribuídas em 02 (dois) encontros semanais
com a duração de 01h (uma hora), realizados numa instituição de ensino superior da rede
privada na baixada fluminense. O PICI foi organizado com base no ciclo de resolução de
problemas proposto por Sternberg (2000), um processo que mobiliza “trabalho mental para
superar obstáculos que obstaculizam a resposta a uma questão” (p.336). Essas etapas incluem:
identificação do problema; definição do problema; formulação de estratégias; organização das
informações; alocação de recursos; monitorização e avaliação da solução. Cotidianamente, as
etapas podem ser alteradas em sua sequência ou repetidas, conforme a necessidade.
O presente artigo visa problematizar, sob o ponto de vista da dialética
inclusão/exclusão (SAWAIA, 2002a, 2002b), duas metáforas surgidas no contexto das
interações realizadas a partir das atividades desenvolvidas no PICI, a saber: a metáfora dos
ingredientes, através da qual acredita-se que existe uma “receita” para a inclusão e a metáfora
do professor-ator, que expressa a visão de que o professor não deve se envolver
emocionalmente diante dos processos de exclusão, em virtude das exigências da profissão.
Metodologia
A pesquisa caracterizou-se como uma pesquisa-ação, na perspectiva de Barbier
(2004) sendo classificada como aplicada, com caráter de intervenção, com vistas à preparação
dos futuros professores para o trabalho com problemas que vêm sendo apontados como
causadores de processos de exclusão na escola brasileira. A referida preparação se deu através
do Programa de Incentivo à Criatividade e à Inclusão em Educação (PICI), uma proposta de
enriquecimento curricular que tem como meta desenvolver o processo criativo dos futuros
profissionais da educação através do exercício de habilidades consideradas primordiais à
solução de problemas relativos à dialética inclusão/exclusão: (1) a disposição para se colocar
no lugar do Outro, (2) a disposição para o diálogo e (3) a disposição para articular teoria e
prática.
As atividades para o desenvolvimento da criatividade foram organizadas em dois
grupos. O Grupo I foi denominado atividades de análise e visou a definição dos conceitos
utilizados (inclusão, exclusão, formação continuada, entre outros), a justificativa das
definições escolhidas e a articulação entre as definições escolhidas e a dialética
inclusão/exclusão. A análise pautou-se em três perguntas centrais: O quê? Para quê/por quê?
Como/de que forma? No primeiro grupo de atividades, buscou-se definir o conceito de
inclusão de acordo com as RS do grupo de participantes; identificar características de
criatividade dos participantes, a partir de sua própria percepção e identificar problemas da
prática pedagógica. O Grupo II foi chamado de redefinição de problemas e busca por
soluções.
As estratégias para fomentar a redefinição dos problemas e a busca por soluções
foram: a técnica dos seis chapéus do pensamento (DE BONO, 2008); a tempestade de ideias,
também conhecida como Brainstorming, de Alex Osborn; a organização de esquemas visuais
de pensamento, estratégia inspirada na técnica do Mapa Mental de Tony Buzan e nos Mapas
Conceituais de Joseph D. Novak; a interpretação lúdica de papéis – estratégia inspirada na
técnica do Sociodrama, um procedimento dramático específico desenvolvido por J. L.
Moreno. Durante os encontros do PICI as narrativas dos participantes foram registradas em
vídeo e posteriormente analisadas com base na técnica de análise do conteúdo de Bardin
(1977).
Resultados e Discussão
As discussões realizadas nos primeiros seis encontros do PICI trouxeram à tona
algumas analogias e metáforas que ilustram RS da inclusão e do “professor inclusivo”, na
visão dos participantes. A primeira delas foi a metáfora dos ingredientes para a inclusão.
No primeiro encontro do PICI foi solicitado aos participantes que escolhessem e
hierarquizassem termos considerados “indispensáveis para a inclusão”. Dos termos eleitos
pelo grupo destaca-se: professor, dignidade, acesso, direito, igualdade, conscientização,
respeito e inclusão. Em seguida, os participantes deveriam analisar as palavras escolhidas e
discutir, em grupos, sua importância no contexto da dialética inclusão/exclusão. Ao final
deveriam escolher, consensualmente, um participante para apresentar um discurso
argumentativo com as conclusões a respeito do assunto, a fim de convencer uma plateia
imaginária de educadores sobre a importância das palavras eleitas para a concretização dos
ideais de inclusão em Educação. Ao final das apresentações o grupo foi incentivado avaliar a
experiência. Por mais que você tente... o A. foi por uma linha de raciocínio. Sendo que ele falou palavras que o F. usou sendo que sinônimas (...) eu acho que toda essa parte citada, respeito, acesso... eu acho que tudo isso aí, se pudesse fazer uma massa de bolo e pegar tudo isso aí colocar numa batedeira, fazer uma massa e... não tem como você tirar o fermento, tirar a farinha... (L.)
São todos ingredientes. (G.R)
Argumentou-se, a partir das avaliações realizadas, que os participantes utilizaram
palavras diferentes que pareciam se encaminhar para os mesmos argumentos: o professor é o
principal responsável do processo de inclusão. Com base na metáfora utilizada por G.R. foi
proposto ao grupo que refletisse sobre a questão que parecia emergir: o papel do professor é
misturar esses ingredientes para produzir a inclusão? O professor é quem faz o bolo?Eu imaginei que o professor é o resultado, nesse caso, é o que sai do forno, assado (...) na minha visão, o professor tem que ter todos esses ingredientes. O que adianta o professor pensar em inclusão sem pensar em respeitar o outro? Sem ter a consciência? Sem ter a visão de acesso? (L.)
Na tentativa de compreender a metáfora utilizada pelo grupo, foi solicitado que
descrevessem a imagem que estavam tentando produzir, a partir de outra pergunta: vocês
estão me dizendo que professor é o resultado de todos esses ingredientes?Eu achei interessante essa coisa do professor como bolo. Existem bolos e bolos. Pode ter bolo bom e bolo ruim. (...) Qual é a diferença dos dois? É a preparação, é a formação. O profissional de Educação Física, ele na faculdade tem acesso a todos esses deveres que é o respeito, formar cidadãos
com valores... mas tem aqueles que querem, que desejam isso e outros que não. Levam assim, à toa, não estudam, não querem... e faz-se um bolo ruim. (S.S.).
As representações expressas pelo grupo nesse primeiro encontro parecem confirmar
elementos presentes no provável núcleo central e sistema periférico das RS da inclusão
(SILVA K., 2008), trazendo à tona a discussão a respeito de algumas virtudes necessárias ao
professor para que a inclusão seja feita, entre elas a consciência, a dignidade, o respeito, o
esforço e a vontade. Além disso, traduzem, também, a crença de que a escola é a redentora da
sociedade (SAVIANI, 2006) e que o professor é o principal ator da inclusão. Esse debate pôs
em questão o papel da formação do professor para o desenvolvimento dessas virtudes: se o
professor deve apresentar virtudes específicas (ingredientes) para promover a inclusão dos
alunos, de onde vêm essas virtudes? São elas inerentes ao próprio sujeito? São resultantes da
formação acadêmica? Dependem da vontade do sujeito para desenvolvê-las?
Considerando a crença expressa por A., de que “O professor, ele vai ser o topo da
torre. Ele tem que ter a consciência da capacitação, da inclusão, do respeito, do acesso...”, e
que em breve todos ali se tornariam professores formados, o grupo foi incentivado a refletir
sobre as próprias virtudes e se estas eram condizentes com o protótipo de “profissional
inclusivo” que aos poucos estava sendo delineado.
No segundo encontro, após um breve resgate das discussões realizadas no encontro
anterior, foi pedido aos participantes que, individualmente, fizessem a sua apresentação
através de um exercício a ser apresentado posteriormente para o grupo. Após a realização
desta tarefa, todos apresentaram suas produções: desenhos, poemas, músicas e textos. Quatro
participantes utilizaram desenhos para expressar suas características de personalidade e
descrever seu estilo de vida.
L. desenhou uma tenda de circo com quatro palhaços, fazendo menção à leveza, à
alegria e a simplicidade desse profissional e, ao mesmo tempo, à ingratidão sofrida por ele,
por ter que esconder os seus verdadeiros sentimentos, em virtude das exigências da profissão:
“porque independente de como ele esteja ele [o palhaço] está sempre sorrindo. Ele está
sempre tentando fazer com que as outras pessoas se sintam bem” (L.). A. desenhou “um rio
no seu curso” aparentemente calmo em cima e demonstrando uma visível “confusão” no seu
interior. Embaixo da “confusão” do rio, A. desenhou o que chamou de “um soldado
israelense”, fazendo referência “a determinação que ele se dispõe a fazer aquilo que foi
determinado para ele. Se for preciso ele morre, mas ele faz o que foi determinado para ele. E
eu tomo isso para a minha vida. Eu acredito nos meus ideais e vou até o fim dela acreditando
neles” (A.).
R. desenhou um campo de futebol, duas equipes – Flamengo e São Paulo – e no
banco de reservas colocou o próprio nome e o nome de L. R. compara sua trajetória de vida à
trajetória de superação do técnico da equipe do Flamengo: “acham que o Técnico não sabe
nada... mas o cara que chegou e estudou, lutou pra caramba pra ganhar o São Paulo e ficar em
primeiro lugar... é o que eu penso da minha vida” (R.). F. desenhou uma pessoa dormindo em
uma cama e ilustrou seu desenho com a frase: “Sou um cara tranquilo, decidido e
preguiçoso”. F. afirma: “costumo lutar por tudo aquilo que eu quero, apesar de saber que tudo
aquilo pode dar errado, mas mesmo assim eu insisto. Sou persistente. (...) eu sempre aprendi
que é errando que se aprende. (...) Eu sou engraçado, preguiçoso, durmo um pouco...” (F.).
Três participantes optaram pela poesia e pela música para falar de si mesmos. C.
escreveu uma autoanálise e se descreveu como “um todo que possui subdivisões”, afirmando
que “dentro de nós existem várias faces escondidas” (c.). S.F. afirma ver-se como um “ator
respeitando a vida, compreendendo os meus semelhantes” (S.F.). S.S. utilizou uma música de
origem religiosa para declarar como se sente hoje, após ter vivido um processo de depressão:
“hoje me considero o homem mais feliz do mundo e busco cada dia pesquisar e conhecer,
para que eu possa me tornar um grande educador como foi Jesus!” (S.S.).
O debate que se seguiu à apresentação das produções foi incentivado pelas seguintes
questões: (1) Como vocês se sentiram fazendo esta atividade? (2) que relações vocês
estabelecem entre as características pessoais apresentadas e o que falamos sobre o protótipo
ou o perfil de professor orientado para a inclusão? (3). De que forma relacionam os resultados
desta atividade com o que discutimos no encontro passado? (4) quais as características
pessoais que vocês acham que contribuem para a inclusão e quais as que vocês acham que
limitam a possibilidade de fazer inclusão?
Um dos participantes, L., enfatizou que a atividade permitiu ao grupo “conhecer o
seu outro lado, a questão dos dois lados da moeda”. Conhecer o outro lado da moeda pode
significar, neste sentido, refletir a respeito das características pessoais e dos valores a elas
atribuídos e, também, identificar o que está oculto – para si e para os outros – e o porquê está
oculto. Pode significar, também, o exercício de desvendar que papéis estão representando,
quais os que gostariam de representar e que juízos de valor atribuem a esses papéis. As
problematizações a respeito das três primeiras questões propostas trouxeram à tona reflexões
sobre: (1) a importância do conhecimento de si e do reconhecimento dos valores que regem as
próprias ações e (2) a dificuldade de reconhecer as próprias características pessoais,
superações e limitações, e de expressá-las a outras pessoas.
Se, por um lado, conhecer a si mesmo é algo que causa prazer e facilita “lidar com a
diferença”, conforme afirma C., por outro, o autoconhecimento também é visto como um
processo que causa medo, oferece dificuldades e promove complicações. Quando
questionados a respeito das características pessoais que contribuem e/ou que limitam a
possibilidade de fazer inclusão, a determinação, amor, superação, persistência, ludicidade,
envolvimento emocional e a união foram consideradas virtudes que contribuem para a
inclusão e identificadas pelos participantes como características que lhes são peculiares.
Dentre essas virtudes, o envolvimento emocional foi visto por alguns participantes como algo
que limita a inclusão.(...) o que literalmente me limita é o meu emocional, gente! Eu sou muito chorona, eu sou muito abalada emocionalmente (...) você acaba vendo muitos tipos de limitação do aluno e tem determinados momentos que você desaba (C.)
(...) ver muita dificuldade (...) se você tiver com algum problema (...) dificuldade até mesmo física (...) eu tenho dificuldade de separar o que é teudo que é meu (...) Eu vou me envolvendo, assim, e eu fico pensando e aí eu acho que isso não é legal. (G.R.)
S.F., ao falar sobre as suas percepções em relação a atividade proposta, trouxe sua
experiência de vida para ilustrar a dor de reconhecer que não satisfazia às expectativas de sua
família no que se referia à condição social e compartilhar o prazer da busca por uma nova
condição, através da formação acadêmica. Mais do que isso, possibilitou ao grupo
compreender que todos desejam e sofrem, sendo a intensidade e a direção do desejo e do
sofrimento reconhecidas, percebidas e sentidas de forma diferente pelos sujeitos. A expressão
dessas emoções e sentimentos faz parte da dialética inclusão/exclusão e é na relação entre os
sujeitos que se pode tentar compreender – ou pelo menos conhecer – como os diferentes
sujeitos reconhecem a sua condição e como se sentem diante dela. De acordo com Sawaia
(2002b),[...] perguntar por sofrimento e por felicidade no estudo da exclusão (...) epistemologicamente, significa colocar no centro das reflexões sobre exclusão, a ideia de humanidade e como temática o sujeito e a maneira como se relaciona com o social (família, trabalho, lazer e sociedade), de forma
que, ao falar de exclusão, fala-se de desejo, temporalidade e de afetividade, ao mesmo tempo que de poder, de economia e de direitos sociais (p.98)
Convém destacar que o sentido da afetividade no debate a respeito da dialética
inclusão/exclusão nada tem a ver com a benevolência, generosidade ou caridade típicas da
ética cristã (CHAUÍ, 1997). A afetividade, neste contexto, deve ser qualificada como uma
questão ético-política (SAWAIA, 2002), na medida em que impregna o sujeito por inteiro em
seu corpo, emoções, relações sociais e históricas. O debate a respeito da dialética
inclusão/exclusão preocupa-se, deste modo, com o sofrimento ético-político que[...] abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas. Qualifica-se pela maneira como sou tratada e trato o outro na intersubjetividade, face a face ou anônima, cuja dinâmica, conteúdo e qualidade são determinados pela organização social. Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonalidade ética da vivência cotidiana da desigualdade social, da negação imposta socialmente às possibilidades da maioria apropriar-se da produção material, cultural e social de sua época, de se movimentar no espaço público e de expressar desejo e afeto (SAWAIA, 2002b, p.105).
A experiência do encontro que reconhece no Outro a possibilidade de (re)construção
eterna do eu, vivida no segundo dia do PICI, talvez tenha resultado na possibilidade de
constatar que o processo de inclusão exige mais do que uma receita, ou ingredientes que
podem ser listados de forma antecipada. Essa constatação não foi feita, apenas, por intermédio
da razão. Como professores em formação e atores – agentes do ato – da inclusão os
participantes se emocionaram e reconheceram-se humanos, nas suas dores e prazeres, ao
falarem de si para os Outros e ao ouvirem o que os Outros tinham a falar sobre si.
Conclusões
A metáfora dos ingredientes para a inclusão e a metáfora do professo-ator indicam
elementos importantes para se pensar como as diferentes formas de promoção da inclusão
podem se transformar em processos explícitos de exclusão ou se travestir em mecanismos
sutis de inclusão perversa. Um exemplo disso é a falsa ideia de que para se fazer a inclusão
basta acabar com a exclusão, tornando a sociedade um ambiente harmônico e sem conflitos.
Outro exemplo é a crença de que no exercício da prática pedagógica competente basta
“colocar as coisas no seu devido lugar”: razão de um lado, emoção do outro. O conhecimento
científico daria conta, portanto, de informar ao professor “o que fazer para incluir seus
alunos”.
Historicamente, a Ciência e a mídia têm contribuído para definir, classificar e atribuir
valor às pessoas, sob pontos de vistas bastante particulares, em relação a sua condição de
incluídas ou excluídas. Esses pontos de vista corroboram, de certa forma, para a construção da
crença de que existem fórmulas ou receitas de sucesso para resolver os problemas cotidianos
no âmbito da prática pedagógica. É como se, em posse do conhecimento “correto”, os sujeitos
fossem capazes de extinguir a complexidade das relações humanas. Daí a força da ideia de
que basta juntar determinados “ingredientes” para se fazer a inclusão.
O movimento empreendido pelo PICI possibilitou que o grupo participante
aproximasse a teoria da prática, criativamente, em busca do que se chama de práxis (FREIRE,
1998). Possibilitou, também, um primeiro passo em direção ao questionamento sobre de onde
vem o conhecimento para resolver os problemas relativos à dialética inclusão/exclusão. Se, no
contexto geral das RS da inclusão em educação esse conhecimento deve ser técnico,
produzido por especialistas, no PICI, nos empenhamos em desvelar essa visão que oculta
relações de poder e coloca o professor na condição de mero consumidor do conhecimento.
Não basta, portanto, “ter” os ingredientes em mãos, tendo em vista que o “ser” professor,
requer um envolvimento que vai além da técnica. Neste sentido, na visão de Sawaia (2002a),
“a exclusão assume seu caráter dialético em sua relação inseparável com a inclusão. A
exclusão não é uma coisa ou um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e
suas relações com outros” (p.9).
No processo de formação inicial de professores para a inclusão cabe refletir que as
condutas do professor perante os Outros que convivem com ele constituem uma das fontes de
informação sobre suas concepções acerca da dialética inclusão/exclusão. O professor expressa
e representa a si mesmo na interação face-a-face, desempenhando diferentes papéis em que os
scripts nem sempre estão previamente determinados. Não é possível, portanto, separar razão
de emoção, embora o discurso em defesa da racionalidade técnica esteja muito presente no
cotidiano da escola. O produto da criação na prática pedagógica é materializado através da
transformação do aluno naquilo que pode vir a ser. É a transformação do potencial em algo
real e na descoberta de novos potenciais, no sentido Vigotskyano. Desta forma, o ganho
afetivo do professor é indissociável do desempenho cognitivo dos alunos. No contexto da
prática pedagógica criativa e inclusiva, o professor, consciente de seus potenciais e limitações,
percebe que seu trabalho contribuiu, de alguma forma, para a transformação de seus alunos.
Para Freire (2001a) “amar não é um gesto, é um ato e um ato de libertação, que implica a
comunhão dos sujeitos que amam e se amam” (p.272). É neste cenário no qual gostar pode ser
traduzido em amor, que a prática pedagógica criativa e inclusiva acontece, cheia de esperança,
sem perder de vista a humanidade e o rigor.
Referências
ABRIC, J.-C. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P. (Org.); OLIVEIRA, D. C. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: AB, 2000. p. 27-38.BARBIER, René. A nova pesquisa-ação e seu questionamento epistemológico. In: BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Liber Livro, 2004, p.37-62.BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.BERGER, Peter L. & BERGER, Brigitte. O que é uma instituição social? In: FORACCHI, Marialice M. & MARTINS, José de S. Sociologia e sociedade – leituras de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2007, p. 163-168.CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1997.DE BONO, Edward. Os seis chapéus do pensamento. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1998.LUBART, Todd. Psicologia da criatividade. Porto Alegre: Artmed, 2007.PIMENTA, FUSARI, ALMEIDA, FRANCO. A construção da didática no GT da didática – análise de seus referenciais. Revista Brasileira de Educação. v.18, n.52, jan.-mar. 2013.SAVIANI, Demerval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. Campinas: Autores Associados, 2006.SAWAIA, Bader B. Introdução: exclusão ou inclusão perversa? In: SAWAIA, Bader B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.7-13.SAWAIA, Bader B. O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão In: SAWAIA, Bader B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.97-117.SILVA, Claudia Jorge. Criação e Sociedade. Tese (Doutorado em Psicologia). Rio de Janeiro: UFRJ/Instituto de Psicologia, 2001.SILVA, Kátia R. X. da: Criatividade e inclusão na formação de professores: Representações e Práticas Sociais. Rio de Janeiro, 2008. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.STERNBERG, Robert. J. & LUBART, Todd. Defying the crowd: cultivating creativity in a culture of conformity. New York: Free Press, 1995.WAGNER, Wolfgang. Sócio-gênese e características das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P. (Org.); OLIVEIRA, D. C. (Org.). Estudos interdisciplinares de representação social. Goiânia: AB, 2000. p. 03-25.
top related