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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – ICHS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA HISTÓRIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS
QUILOMBO MATA CAVALO:
TERRA, CONFLITO E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE NEGRA
SILVÂNIO PAULO DE BARCELOS
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz
Cuiabá/MT Março/2011
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QUILOMBO MATA CAVALO:
TERRA, CONFLITO E OS CAMINHOS DA IDENTIDADE NEGRA
SILVÂNIO PAULO DE BARCELOS
Dissertação apresentada à banca de defesa do Programa de Pós-graduação Mestrado em História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso, para a obtenção do grau de mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz
Cuiabá/MT Março/2011
FICHA CATALOGRÁFICA
B242q Barcelos, Silvânio Paulo de.
Quilombo Mata Cavalo: terra, conflito e os caminhos da identidade negra. –
2011.
ix, 211 f. : il. color.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em História. Cuiabá,
2011.
Bibliografia: p. 192-195. Inclui anexos.
1. Escravidão – Mato Grosso – História. 2. Identidade negra. 3. Quilombo Mata Cavalo – Mato Grosso. 4. Identidade quilombola. 5. Quilombo –
Identidade social. I. Título.
CDU – 94(817.2)
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Avenida Fernando Corrêa da Costa, 2367 - Boa Esperança - Cep: 78060900 -CUIABÁ/MT Tel : (65) 3615-8493 - Email : gerapesquisa@gmail.com
FOLHA DE APROVAÇÃO
TÍTULO : “Quilombo Mata Cavalo: terra, conflito e os caminhos da identidade negra”
AUTOR : Mestrando Silvânio Paulo de Barcelos
Dissertação defendida e aprovada em 05/05/2011.
Composição da Banca Examinadora:
Presidente Banca / Orientador: Doutor Marcus Silva da Cruz Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Interno: Doutor Leonice Aparecida de Fátima Alves Instituição: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Examinador Externo: Doutor Paulo Staudt Moreira Instituição: UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CUIABÁ, 05/05/2011.
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DEDICATÓRIA Aos meus queridos netos Gabriel, Thor, Ohana e Helena, mestres incondicionais do companheirismo e da alegria.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, sempre presente.
Ao Professor Dr. Marcus Silva da Cruz, pelo profissionalismo, segurança e amizade
demonstrados em todos os momentos da nossa pesquisa, revelando, para além do exercício da
orientação, um profundo respeito ao processo da construção de saberes.
À Professora Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves, por sua simpatia e desvelada
dedicação à leitura de nosso trabalho, contribuindo de forma inestimável para uma nova visão
acerca da comunidade do Mata Cavalo.
Aos nossos pares acadêmicos, companheiros na gratificante jornada em busca de
conhecimentos, com os quais compartilho essa história.
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Resumo:
A identidade negra na Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, localizada
no município de Livramento, em Mato Grosso, está ancorada conceitualmente a dois pilares bem
definidos: “terra e memória” dos escravos da Sesmaria Boa Vida, seus ancestrais. As terras que
foram doadas por D. Anna da Silva Tavares a seus escravos, forros e cativos, em 1883, foram
responsáveis pela própria origem desse Quilombo, criando-se um modo de vida baseado nas relações
de reciprocidade e trabalho comunal. Reminiscências do imaginário fértil e da herança escrava
largamente difundida entre os povos negros na diáspora. Por licença do acaso e da fortuna, já
proprietários das terras que bem conheciam, coube-lhes a tarefa maior de expandir seus ideais de
liberdade reterritorializando aquele espaço como um lugar de negros, concebido a partir do
intercâmbio das memórias e das experiências coletivas. Assentados naquela localidade há mais de
cento e vinte anos, os descendentes dos escravos resistem, ainda hoje, à pressão de alguns fazendeiros
daquela região pela disputa em torno da sua propriedade. A questão quilombola, surgida a partir da
Constituição Federal de 1988, possibilita pelas vias jurídicas acessar novas formas de lutas por suas
terras, ao mesmo tempo em que contribui para o surgimento de dissensões internas no Mata Cavalo.
Essa alternativa equivale para os que lá permaneceram, enfrentando toda sorte de violência e conflito,
a negação de sua própria história. Paradoxalmente, os remanescentes envolvidos diretamente na luta
pelas terras, como protagonistas sociais dessa trama singular, também se apropriam do conceito
“quilombola” buscando um possível desfecho favorável ao processo jurídico em trâmite na Justiça
Federal. Desta forma, em pleno século XXI os integrantes dessa comunidade tradicional lutam pela
preservação de uma memória afro-referenciada enquanto sonham conquistar o reconhecimento do seu
espaço primordial, um espaço de negro, numa sociedade marcada por interesses difusos e pelo estigma
da globalização.
Palavras-chave: Terra, identidade negra, tradição e diáspora.
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Abstract:
The specifically black identity in the remnants Comunidade de remanescentes do Quilombo
Mata Cavalo, located in the town of Livramento, in Mato Grosso, are anchored conceptually well-
defined two pillars: “land and the memory” of Sesmaria Boa Vida slaves, his ancestors. The lands that
were donated by D. Anna da Silva Tavares liners to their slaves and captives in 1883 were responsible
for their own source of Quilombo, creating a way of live based on relations of reciprocity and
communal work, reminiscent of the fertile imagination and the legacy of slavery widespread black
people in the diaspora. Why leave to chance and the fortune as owner of the lands they knew well, it
was up to than the task of the expanding the higher ideal of freedom reterritorialized that space as a
place for black, designed from the exchanged of memories and collectives experiences. Settler in that
area to more then one hundred and twenty years, the descendant of slaves to resist, even today, to
pressure from farmers in the region by the dispute over its ownership. The question maroon, arising
from the Constitution of 1988 provides legal access routes for new ways of fighting for they lands,
while contributing to the emergence of internal dissent in the Mata Cavalo. This alternative is
equivalent, for those who remained in those lands facing all sorts of violence and the conflict, denial
of they own history. Paradoxically, those remaining directly involved in the struggle for lands as
protagonists of social weft singular, also appropriated the concept of “maroon” seeking a favorable
outcome to the possible legal proceedings underway in the Federal Court. Thus in the XXI century the
members of the community traditional fight for the preservation of a memory African-referenced
while they dream to win recognition of their primordial, an area of black in a society marked by
diffuse interest and the stigma of globalization.
Key-word: Earth, black identity, tradition and diaspora.
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LISTA DE FIGURAS E TABELAS
Página Imagem 1. Engenho na residência de Antonio Mulato..........................................03 Mapa 1. Localização da Fazenda Cocais.................................................................72 Gráfico 1. Atividades produtivas área central no lustro 1790/94...........................81 Gráfico 2. Dados estatísticos do índice de retração demográfica da população escrava no ano de 1872..........................................................82 Imagem 2. Cópia do original da página 42, livro da Câmara de Livramento.............................................................................................102 Mapa 2. Planta da Sesmaria Boa Vida/Mata Cavalo............................................104 Mapa 3. Perímetro da área do Mata Cavalo, revisado.........................................105 Tabela 1. Quadro socioeconômico do Mata Cavalo..............................................133 Gráfico 3. Renda familiar........................................................................................134 Gráfico 4. Grau de alfabetização............................................................................134 Gráfico 5. Religiões..................................................................................................136 Imagem 3. Detalhe da festa da banana quilombola..............................................147 Imagem 4. Rosa Domingas de Jesus e seu neto.....................................................164 Imagem 5. Rosa Domingas de Jesus recepciona membros do Fundo Canadá.......................................................................................169
ix
SUMÁRIO
Página
1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................01 2. Capítulo 1: ESCRAVIDÃO RACIAL DA ERA MODERNA........................... 10 2.1 Escravidão e modernidade..................................................................................... 11 2.2 Escravidão racial: uma contradição da modernidade.........................................16 2.3 Escravidão no Brasil................................................................................................23 2.4 Escravidão em Mato Grosso...................................................................................34 2.5 Escravidão no Mata Cavalo....................................................................................41 2.6 Remanescentes de quilombo: Conceitos................................................................42 2.7 A Política dos “homens bons”................................................................................45 2.8 No centenário da abolição, novas possibilidades................................................. 48 2.9 Identidade quilombola.............................................................................................50 3. Capítulo 2: TERRAS CATIVAS:............................................................................58 3.1 Sesmarialismo no Brasil.........................................................................................61 3.2 Mata Cavalo: Origens............................................................................................64 3.3 A Carta de Sesmaria, 1751.....................................................................................66 3.4 Do “auto de medição e posse da Sesmaria Boa Vida”. .......................................69 3.5 Inventário de Custódia de Arruda e Silva........................................................ ...74 3.6 Testamento de Ricardo José Alves Bastos...........................................................75 3.7 Inventário de Ricardo José Alves Bastos.............................................................78 3.8 As declarações de vontade de D. Anna da Silva Tavares............................... ...85 3.9 A doação da Sesmaria Boa Vida...........................................................................88 3.10 A doação do Ribeirão Mutuca............................................................................90 3.11 Uma dura realidade.............................................................................................91 3.12 Decadência............................................................................................................94 3.13 A trama.................................................................................................................97 3.14 Fênix Negra........................................................................................................103 4. Capitulo 3: DESIDERATO...................................................................................109 4.1 História oral e memória, breves conceitos.........................................................113 4.2 Terras do Quilombo.............................................................................................125 4.3 Fragmentos da memória negra...........................................................................141 4.4 Mulheres do Mata Cavalo: A resistência negra................................................154 4.5 Conflitos de memórias: a negação da história...................................................170 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................188 Bibliografia..................................................................................................................192 Anexos documentais...................................................................................................196
1. INTRODUÇÃO Em 15 de junho de 2008, participamos dos festejos em comemoração ao aniversário de
Antonio Mulato, um homem respeitável que acabava de completar seus bem vividos 103 anos
de idade, a convite de seu sobrinho-neto José Gregório de Almeida1. Naquele dia especial
entramos em contato, pela primeira vez, com o fascinante universo sociocultural da
Comunidade de remanescentes do Quilombo2 Mata Cavalo. Não precisa muito esforço para
compreender a emoção de estar-se em um lugar prenhe de estórias e histórias, um mundo
permeado por lembranças, sempre presentes, do tempo das senzalas e dos senhores, dos
sonhos de uma liberdade sempre adiada e os pesadelos da escravidão racial. Hoje, em pleno
século XXI - quase cento e vinte anos após o ato de doação da Sesmaria Boa Vida realizada
por D. Anna da Silva Tavares aos seus escravos forros e cativos - os homens e mulheres do
Quilombo ainda lutam pelo direito de permanecer em suas próprias terras. A tradição herdada
dos ancestrais, que aqui chegaram provenientes de Minas Gerais, segundo depoimento de
Antonio Mulato, possui valor simbólico de alta relevância para o ethos cultural e também para
o imaginário dos afro-descendentes do Mata Cavalo. Mesmo para as pessoas que migraram
para outras regiões, como o caso de José Gregório de Almeida e família, aquele território
representa bem mais que lugar de memória, configura-se como espaço sagrado, e também
profano, permeado sempre pela esperança do possível retorno.
A terra no Quilombo Mata Cavalo, como passaremos a partir de agora a
designar sem que se altere sua condição de lugar de remanescentes, constitui-se como
catalisadora do sentimento de pertença de seu território. No percurso da história, seus
ancestrais fincaram ali suas raízes, construindo através delas os elementos culturais de suas
identidades marcadas pela singularidade do ser negro e quilombola. Os costumes, a
religiosidade, a vida comunitária, as tradições e o esforço na manutenção de suas identidades
produzem uma territorialidade única, edificando-a enquanto espaço vital, real e simbólico,
1 José Gregório de Almeida é uma das lideranças das, aproximadamente, 30 famílias oriundas do Mata Cavalo que transferiram-se para a cidade de Cuiabá em meados do século XX, assentando-se na antiga localidade conhecida por Gleba Despraiado, atual bairro Ribeirão da Ponte. 2 De acordo com o senso comum a palavra “quilombo” de imediato implicaria a ideia de um lugar longínquo e de difícil acesso, um espaço de fuga. Na realidade, existem inúmeras outras formas de classificação dos quilombos e entre elas a resultante de atos de doação, como foi o caso no Mata Cavalo. Trataremos desse assunto de forma pormenorizada ainda neste capítulo, no subitem “remanescentes de quilombo – conceitos”.
2
simultaneamente. Para além do significado do sentimento de pertença, a questão essencial na
história dos remanescentes do Mata Cavalo consiste no fato da existência dessa comunidade
em função da terra. Foi a partir da doação de parte da [antiga] Sesmaria Boa Vida aos
escravos e ex-escravos de D. Anna da Silva Tavares, que passou a existir de forma concreta o
próprio Quilombo. Tendo como ponto de partida o território ressignificado na diáspora, os
descendentes daqueles escravos perpetuaram a memória de seus ancestrais, fazendo daquele
lugar seu espaço de liberdade, sem ao menos imaginar que precisariam lutar nas malhas do
tempo pela “libertação” de suas terras. Ironia.
O chão, expressão de sonhos e possibilidades, muitas vezes irrigado com o vermelho
tom da intolerância, testemunha o vigor e a determinação dos homens, mulheres e crianças
que foram moldados na têmpera precisa dos ideais da resistência, criando e recriando
constantemente um modo de vida peculiar. Esse mundo, dividido entre o velho e o novo,
conserva a “aura da negritude” de seu universo cultural, cultivando tradições que vão se
modificando, no interior de uma sociedade que se quer moderna, sem, contudo, perder sua
essência fundamental, uma essência que não é somente africana, mas afro-brasileira,
resultante do encontro de povos diferentes e do caráter híbrido de sua população.
O trânsito constante entre geografia e memória, cultura e imaginário, faz do
território do Quilombo Mata Cavalo um campo aberto a constantes reconfigurações de ordem
material e simbólica. Segundo Haesbaert, “teríamos vivido sempre uma
multiterritorialidade”3, onde percebemos que em toda relação social há uma implicação, uma
interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Nesse quadro sociocultural,
o indivíduo vive ao mesmo tempo ao seu nível particular, bem como de seus familiares, do
grupo social, e da própria comunidade. A dinâmica das transformações, em conseqüência do
estado de conflito pela disputa da propriedade das terras do Mata Cavalo, determinam, num
certo grau, a própria constituição da identidade do grupo, como Bauman aponta em seus
tratados teóricos. Para ele o próprio conceito “identidade” nasce em função da crise de
pertencimento e da necessidade de se adaptar a um mundo em constantes mudanças.4 Toda
3 Haesbaert, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 2ª. Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 344. 4 Ainda sobre identidade devemos referir as contribuições de Max Weber, para o qual a identidade resulta sempre da implementação de uma variável de ordem política, sendo, pois instrumentalizada, já que os sujeitos acessarão determinados caracteres em razão da necessidade momentânea da coletividade. Nesta perspectiva sociológica da identidade cada indivíduo representa um papel atuante no meio onde vive, estando este condicionado à função por ele exercida em sua organização social. Numa visão um pouco simplista das
3
uma tradição herdada das senzalas reflete no cotidiano dessa comunidade, criando
territorialidades diversas que ora convergem, ora divergem confrontando interesses no seu
interior. Ao rebuscar os elementos culturais a partir da memória de seus antepassados recriam
seus territórios na diáspora, ressignificando seu espaço e delimitando-o como um território de
negros.
Numa entrevista gravada em 28 de novembro de 2009, Antonio Mulato fala, com
profunda nostalgia, de um tempo que ficou somente na memória. Tempo da fartura marcado
pelo modo de vida coletivo, onde a maioria das casas contavam com engenhos, criações de
animais domésticos, plantações de mandioca, milho, arroz, feijão e a cana de açúcar.
Rebuscando antigas recordações, relembra os dias felizes de uma vida comunitária:
muxiruns5, trabalhos no campo e as festas em comemorações aos dias santos. Quando lhe
perguntamos como se sentia nessa altura de sua vida respondeu que: “to alegre porque ainda
to vivo, mas hoje cada um faz por si. Esse é o atraso da vida, né? Não existe mais a união,
acabou a união. Fazer o que? To alegre por que ainda to vivo.”
Imagem 1 = engenho na residência de Antonio Mulato
formulações weberianas alusivas aos processos identitários, podemos concluir que o conjunto do que somos e pensamos, nossas expectativas de vida, percepções de nós mesmos e do mundo em que vivemos constituem, isso não é relativo, os padrões sociais que norteiam nossas condutas e comportamentos. Desta forma, assevera Weber, a identidade, tais quais os processos dinâmicos da ação, é criada e recriada continuamente nas estruturas sociais onde os atores se identificam ao mesmo tempo em que são identificados. 5 O trabalho realizado em sistema de mutirão, ou muxirum como é mais conhecido na região, muito utilizado no período do Brasil Colônia, consistia na execução de tarefas coletivas e também particulares, onde o contratante se obrigava a servir o almoço, feito pelas mulheres, enquanto os homens executavam o serviço braçal.
4
Fotografia de Antonio Mulato junto ao seu antigo engenho Formato JPEG, tirada em 28/novembro/2009, modelo da câmera DMC-FX07 Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos Na fotografia acima, onde o anfitrião faz questão de nos mostrar o funcionamento do
seu antigo engenho, percebe-se a atmosfera nostálgica, naquele ambiente calmo, provocada
pelas lembranças de outros tempos. Tempos que por contingência ou capricho, na visão para
quem a vida se fez obstinadamente tenaz, pertence mais à memória que à possibilidade do
devir e o homem acostumado a se expressar com intensa determinação parece perder a noção
da fala. Sua voz, quase um sussurro, no limite da expressão se torna simples lamento. Com
certeza, para ele, mesmo não admitindo tal hipótese, a impossibilidade do retorno àquele
tempo se torna tão real quanto o seu presente alimentado por memórias e recordações.
Essas preocupações, reveladas na fala simples de Antonio Mulato, indicam problemas
que preocupa grande parte dos moradores do Mata Cavalo. A tradição6 e os costumes
herdados dos seus antepassados constituem-se para essa comunidade a possibilidade de
perpetuação da memória escrava, um dos elos formadores de suas identidades. Entretanto,
para os jovens dessa comunidade, a tradição possui outras configurações que respondem a
seus próprios anseios e às necessidades de afirmação em um mundo marcado pela
modernidade, por constantes transformações e pelas incertezas que delas se originam. Apesar
dessas perspectivas um tanto nebulosas, a terra, testemunha viva da história do Mata Cavalo,
ainda possui o mesmo valor material e simbólico capaz de conformar identidades singulares.
No confronto das gerações, nessa comunidade, o velho e o novo se entrecruzam e, apesar da
aparente contradição, a tensão social, sempre presente, assume novas dimensões quando todos
se reúnem em torno dos festejos nos dias santos. Nessa ocasião festiva, a alegria reforça os
elos da solidariedade ao mesmo tempo em que cultiva o ideal da negritude, uma herança de
resistência ao regime escravista, que se revela maior que as querelas de suas vidas sociais e
seus aparentes antagonismos.
6 De acordo com o Dicionário de Ciências Sociais do Instituto de Documentação da Fundação Getúlio Vargas, publicado pela Editora FGV em 1986, na cidade do Rio de Janeiro, o termo “tradição, em sentido restrito, é um termo neutro, empregado para designar a transmissão, geralmente oral, por meio da qual modos de atividade, gosto ou crença são passados (entregues) de uma geração para a seguinte, perpetuando-se dessa forma. Assim, aplicando o termo às ciências sociais, tradição é o veículo através do qual cada criança aprende de seus antepassados alguma coisa dos seus costumes e do conjunto de conhecimentos e preconceitos acumulados. [...] O termo tradição também se aplica a alguns dos elementos culturais assim transmitidos, mas não a todos. Os elementos escolhidos e que recebem o status de tradições são geralmente considerados de valor, e está fortemente implícito que são especialmente dignos de serem aceitos. Assim, uma tradição é um modo de comportamento ou padrão produzido por um grupo como tal, distinto de um indivíduo; e serve para intensificar a consciência de grupo e sua coesão”. P. 1254.
5
Como objetivo geral de nossa investigação apontamos o propósito de entender como
essas pessoas, e também os grupos aos quais pertencem, puderam experimentar o próprio
passado, recuperado por suas memórias de vida, dotando de significado a trama de suas
próprias histórias. Cabe ainda mencionar a importância de conhecer o contexto de estudo,
além de problematizar as relações sociais, jurídicas e políticas que permitiram e permitem a
constituição daquele grupo em seu espaço.
A partir dessas reflexões preliminares passamos agora a apontar alguns aspectos
relevantes no que tange a procedimentos metodológicos utilizados nessa pesquisa.
Inicialmente devemos referir sobre o uso da “pesquisa bibliográfica”, especialmente
no que diz respeito à apropriação dos principais conceitos e categorias que balizaram nossa
pesquisa, merecendo destaque o conceito de identidade, tradição, afro-referenciamento, além
de categorias de natureza jurídica, em razão da especificidade do tema de investigação. Aqui
destacamos uma importante reflexão que norteou nossas investigações: as teorias
desenvolvidas pelo sociólogo Paul Gilroy na obra “O Atlântico negro”.
Apontamos ainda a utilização sistemática dos pressupostos da “pesquisa documental”,
uma vez que a compreensão da comunidade do Mata Cavalo implica no manuseio e
problematização de documentos de natureza pública. Entre estes documentos destacam-se,
por suas relevâncias, aqueles que instruem o processo judicial que discute a titularidade das
terras da comunidade, além de uma série de documentos de natureza administrativa oriundos
do INCRA, Fundação Cultural Palmares, INTERMAT, bem como acervos do NDHIR e do
APMT7 além de documentos de natureza cartorial.
Por fim utilizamos da “pesquisa de campo”, tendo sido realizado inúmeras visitas aos
locais de estudo, sendo importante referir que durante essas incursões utilizamos daquilo que
a bibliografia denomina de observação direta e na maioria das vezes “observação
participante”. Além da observação direta cujos principais elementos foram registrados num
diário de campo, devemos referir a realização de entrevistas semi-estruturadas e não
estruturadas, utilizando-se dos pressupostos da história oral. A escolha dos depoentes atentou
para alguns pressupostos que julgamos pertinente e elucidadores de nossas premissas de
trabalho. Assim sendo, optamos pelas entrevistas com a atual presidente do quilombo, bem 7 INCRA: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; INTERMAT: Instituto de Terras de Mato Grosso; NDHIR: Núcleo de Documentação Histórica e Regional da Universidade Federal de Mato Grosso; APMT: Arquivo Público do Estado de Mato Grosso.
6
como algumas pessoas mais idosas que possuem, em suas narrativas de vida, memórias muito
expressivas herdadas de seus ancestrais o que, via de regra, fornece elementos importantes da
trajetória social e política da comunidade como um todo. Utilizamos também dos relatos de
algumas pessoas de destaque entre as famílias que migraram para as cidades de Cuiabá e
Várzea Grande que guardam forte ligação com o Mata Cavalo e, também, lutam pela
possibilidade de retorno ao lugar de onde vieram. Através dos relatos de vida e da
recuperação das memórias das pessoas mais velhas que, de uma forma ou de outra, lutam pela
legitimação da propriedade daquelas terras, será possível viabilizar a narrativa em torno da
história da cadeia dominial, onde os atores utilizam-se da própria trama jurídica envolvida no
processo litigioso para conquistar definitivamente suas terras. Em contrapartida, realizamos
também entrevistas com pessoas mais jovens da comunidade do Mutuca (uma das associações
que integram o complexo do Mata Cavalo) que se destacam no interior da comunidade por
estarem sintonizadas com os movimentos de resistência e luta pela causa quilombola.
Trabalhando com essas múltiplas memórias, presente e passado serão analisados, no
afã da identificação dos elementos que permitirão questionar interpretações e visões de
mundo, a partir das falas dos entrevistados e seus conseqüentes posicionamentos quanto à
própria constituição do presente vivido no interior do Mata Cavalo. Obviamente, os relatos
biográficos trazem consigo uma intencionalidade específica de quem procura dar sentido à
sua narrativa, escolhendo e classificando os fatos do seu passado, que podem ou não
apresentarem-se de forma cronológica. De acordo com Pierre Bourdieu, o relato propõe
“acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica,
tendem ou pretendem organizar-se em seqüências ordenadas segundo relações inteligíveis”.8
Não obstante, há que considerar-se que a história de vida e seus relatos podem conter sim, e
isso não é pouco, descrições bastante coerentes das ações cotidianas de um determinado
grupo, principalmente quando confrontadas com outras histórias de vida, delineando-se, por
assim dizer, os fios condutores de uma realidade presente. Essa conjuntura constitui-se, no
dizer de Verena Alberti, “histórias dentro da história”9.
Em razão das impressões iniciais, e da análise dos depoimentos colhidos no decurso
dessa pesquisa, podemos levantar uma questão explicativa do processo de constituição da
8 Bourdieu, Pierre. A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes; Amado, Janaína (coords.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV 1996. P. 184. 9 Alberti, Verena. Histórias dentro da história. IN: Pinsky, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. – São Paulo: Contexto, 2005. P. 166.
7
identidade no Mata Cavalo, tendo como seus elementos principais a terra e a memória afro-
referenciada, construída pelas vias do imaginário, no período em que os ancestrais do Mata
Cavalo ainda se encontravam em cativeiro. Para além de local de subsistência, do conforto de
uma moradia e a segurança do espaço de pertencimento, a terra, para os descendentes dos ex-
escravos da Sesmaria Boa Vida, possui valores simbólicos plenos de subjetividades. Via de
regra, constitui-se na fronteira entre o “nós” e os “outros”, possibilitando, na interface com a
memória escrava, a edificação dos pilares de uma identidade singular: o ser negro e também
quilombola. Essa constatação nos leva a trilhar caminhos de busca dos elementos que
possibilitarão a escrita da narrativa proposta.
Por fim, cabe referir que essa pesquisa pode ser identificada como “participante” em
vista dos interesses pessoais e acadêmicos que consolidamos em torno do destino desta
comunidade. As pessoas que se interessam pela história dos que se colocaram em posição
antagônica na trama social aqui explorada – a saber, alguns fazendeiros da região - não
encontrarão neste trabalho nenhuma forma de expressão a não ser aquelas que entraram, de
alguma forma, no contexto da disputa litigiosa em questão. Importa frisar que nosso esforço
historiográfico expande-se além do limite da simples especulação retórica de fatos ocorridos,
pois sensibilizamo-nos pelas causas sociais ainda não resolvidas, e nesta vertente percebemos
o movimento quilombola para além da necessidade de conquista de suas próprias terras,
constituindo-se em reparação histórica aos desterrados pela violência da escravidão racial da
era moderna. Nosso lugar da enunciação, em alusão a Michel de Certeau, de onde falamos e
escrevemos, pode ser referido metaforicamente a partir dos terreiros da senzala da Sesmaria
Boa Vida, privilegiando-se os interesses e anseios mais elementares daquela gente simples
para as quais a terra é bem mais que possibilidade de trabalho, é vida.
Feitas essas considerações de ordem metodológica, passaremos agora a descrever a
forma escolhida para organizar essa dissertação.
O propósito central do primeiro capítulo, denominado “A escravidão racial da era
moderna”, é o estudo da própria escravidão enquanto objeto histórico. Para dar conta de
nosso propósito utilizamos nesse capítulo prioritariamente da pesquisa bibliográfica. Através
da contextualização da escravidão racial da era moderna, e tudo que ela trás de novidade e
mudança para a própria modernidade ocidental, buscaremos os elementos constitutivos da
cultura, bem como dos aspectos sociais do grupo aqui estudado. Isso se torna relevante na
medida em que fornecem as bases teóricas, e também práticas, capazes de dotar de
8
racionalidade os processos distintos da formação da identidade negra no seio desta
comunidade tradicional. Para entender quem são os homens, mulheres e crianças que
constituem, nos dias atuais, o Mata Cavalo, torna-se imprescindível a análise dos processos
que levaram o africano, em resposta à pressão do sistema escravocrata, a criar os mecanismos
de defesa e, também, de sobrevivência dentro do universo marcado pela violência
característica das relações senhor/escravo. O escravo foi considerado, equivocadamente, pelo
senso comum e pela historiografia, que tradicionalmente trabalhou essa questão, como um
simples objeto do sistema, um feixe de músculos pronto a impulsionar, de forma passiva e
amorfa, as engrenagens do próprio sistema capitalista em boa parte do ocidente.
De acordo com trabalhos historiográficos recentes10, o escravo localizou-se não nas
extremidades dicotômicas reducionistas das relações entre opressor e oprimido, mas, sim na
posição intermediária da negociação. Colocado no vértice e no limite da tensão, oriunda do
próprio sistema que o aprisionou, os africanos na diáspora negociaram o seu modo de vida, o
seu cotidiano, da melhor forma possível, resgatando sua dignidade e sua condição de sujeito
de sua própria história. Por analogia a condição dos remanescentes do Mata Cavalo segue a
mesma orientação. Pressionados duplamente pelo sistema que oprime e os colocam como
objetos passivos de suas histórias, os descendentes dos escravos da Sesmaria Boa Vida
criaram, com imaginação, as formas do seu viver tornando-se senhores de si mesmo. Neste
processo de recuperação histórica, eles edificaram uma identidade singular em um cotidiano
expressivo marcado pela herança ancestral africana, numa feliz combinação entre passado e
presente, tradição e modernidade.
No segundo capítulo, denominado “Terras cativas”, desenvolvemos uma análise mais
aprofundada da questão agrária, envolvendo a disputa das terras no Mata Cavalo tendo por
conseqüência o estado de conflito e de conflitividade, que perdura até aos dias atuais. A
releitura da farta documentação disponível, relativa a essa comunidade, tais como relatórios
produzidos pelo INTERMAT, pelo Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares,
inventários e testamentos diversos que se encontram no Arquivo Público do Estado de Mato
Grosso, no NDHIR e de alguns documentos jurídicos11, permitirá a construção da narrativa
histórica da questão agrária no Mata Cavalo. Essa documentação consiste no corpo principal
10 Conferir algumas das obras historiográficas que representam essa nova tendência na citação número 42, ainda neste capítulo. 11Entre os documentos jurídicos destacamos: Informe ao X Congresso de Direito Agrário: Quilombos, produzido pelo defensor público José Orlando Muraro Silva; Ação Civil Pública empreendida pelo Ministério Público Federal contra a União, Fundação Palmares, INCRA e Carlos Campos Maciel.
9
na elaboração e reinterpretação desta questão, que por sua vez possibilitará uma análise mais
abrangente quanto à própria história deste Quilombo.
Em resposta às pressões impostas pelo estado litigioso, essa comunidade de
remanescentes criou mecanismos próprios de defesa e auto-afirmação, através do cultivo da
tradição que tem suas origens nas senzalas e da manutenção, via cultural, do universo
simbólico que a identifica como descendentes de escravos. Cientes de sua condição
fundamental de estar ocupando uma área que receberam a título de doação, os representantes
dessa comunidade tradicional lutaram, como puderam, pela preservação de suas terras, local
de subsistência, de memória e de auto-afirmação étnica específica. Uma terra quilombola.
Sem dúvida, a questão subjetiva da identificação étnica, possibilitada pela memória da
escravidão, possui peso e densidade relevantes no processo de manutenção das tradições
ancestrais africanas, constituídas a partir dos relatos orais repassados de geração a geração no
interior da comunidade. Toda uma memória específica, constituída no imaginário afro-
descendente, é insistentemente preservada em prol da conservação dos elos de solidariedade
do grupo permitindo assim, no limite, a própria existência do Mata Cavalo.
Tendo a diáspora negra como pano de fundo, trataremos no terceiro capítulo
denominado “Desiderato” dos processos de construção da identidade negra no interior desta
comunidade. Confrontando a trajetória da luta pela posse da terra e a questão subjetiva da
tradição ancestral afro-referenciada, constituída pelas vias do imaginário, tendo por
testemunho os depoimentos dos integrantes do Mata Cavalo, será possível comprovar nossas
afirmações acerca da formação desta identidade singular. Nesse contexto, mostraremos como
as manifestações artísticas e culturais da comunidade constituem-se em reflexo do próprio
movimento da diáspora negra, da forma como o entende Paul Gilroy em seu “Atlântico
negro”. A terra como meio e fim, objetivo e destinação, o desiderato primordial, constitui-se,
nas tramas de sua história, em local privilegiado da conformação da identidade negra, que por
sua vez, juridicamente, permitirá a legitimação da sua propriedade, através da questão
quilombola.
10
2. Capítulo 1 - ESCRAVIDÃO RACIAL DA ERA MODERNA
Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!
(Navio Negreiro – Castro Alves)
De acordo com a convenção sobre a escravatura assinada em Genebra, no dia 25 de
setembro de 1926, e emendada pelo protocolo aberto à assinatura ou à aceitação na sede da
Organização das Nações Unidas, realizada em 7 de Dezembro de 1953 na cidade de Nova
York, em seu artigo primeiro, parágrafo primeiro: “A escravidão é o estado ou condição de
um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de
propriedade”.12 Ainda tratando da mesma temática em seu parágrafo segundo do mesmo
artigo:
O tráfico de escravos compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo com o propósito de escravizá-lo; todo ato de aquisição de um escravo com o propósito de vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão, por meio de venda ou troca, de um escravo adquirido para ser vendido ou trocado; assim como em geral todo ato de comércio ou de transportes de escravos. 13
Paul Lovejoy aprofunda ainda mais esses conceitos ao apontar as características
específicas da escravidão incluindo a idéia de que os escravos eram, em termos absolutos,
uma propriedade, e que também: “ eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por
sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a
coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição
12 Em nossa qualificação fomos informados que as Convenções antes referidas são utilizadas como os instrumentos jurídicos mais antigos quando do trato da denominada escravidão contemporânea. Para maiores esclarecimentos acerca dos tratados relativos à escravidão negra vide: Tratados de paz de Paris de 1814 e 1815; Declarações do Congresso de Viena de 1815; Declaração de Verona de 1822; Tratados de 1831 e 1833 entre França e Inglaterra; Tratado de Londres de 1841; Tratado de Washington de 1862; Ato Geral da Conferência de Berlin de 1885 e o Ato Geral da Conferência de Bruxelas de 1890. 13 Disponível em: http://www.onu-brasil.org.br/doc_escravatura.php , acesso em 22 de Junho de 2010.
11
de um senhor”14. Uma observação mais acurada desses conceitos permite entender, de alguma
forma, a transformação do africano escravizado em “coisa”, em mero “feixe de músculos” a
serviço do regime que o oprime. Essa visão estereotipada do escravo como res, no limite,
como um ser desprovido de história, contribui (isso não é pouco!) para a configuração atual
da posição social dos negros no interior das sociedades contemporâneas. Pode-se, com
relativa facilidade, relacionar os processos socioculturais excludentes a partir de premissas
raciais - a racialização do negro, portanto, no interior de sociedades marcadas profundamente
pelo predomínio e pela hegemonia das populações brancas – à própria construção, no âmbito
da história, da condição do escravo como um mero instrumento de produção de bens
capitalistas. No entanto, o que nos interessa aqui são, exatamente, as condições contrárias a
esses conceitos. Atribuindo-lhe a condição de ator na história, como já afirmamos
anteriormente, nos aproximamos da realidade cotidiana desse sujeito que se viu obrigado a
construir sua vida em terras estrangeiras estigmatizadas pelo contexto violento da dominação.
Compreender essa condição singular, marcada sempre pelo imperativo da negociação
constante, é fundamental para o entendimento da cultura e da sociedade híbrida resultante dos
movimentos da diáspora negra. No limite da expressão, não há como analisar a própria
modernidade ocidental sem considerar os processos inerentes à escravidão racial da era
moderna. Essa questão é altamente relevante, ao que nos interessa, na medida em que
possibilita interpretar o mundo constituído pela comunidade do Mata Cavalo, ela mesma uma
conseqüência do entrecruzamento entre o antigo e o moderno, a tradição e a mudança.15
2.1 Escravidão e modernidade
Paul Gilroy, sociólogo e um dos expoentes do movimento negro mundial, ao focalizar
a questão da modernidade a partir do convés dos navios negreiros, percebe o absurdo e a
contradição nas vastas obras de intelectuais que tratam da modernidade sem, ao menos,
considerar a hipótese da interação dos africanos escravizados com a formação do mundo
capitalista, condição relevante à sua própria existência. Para ele, torna-se necessário um
esforço no sentido de fazer com que a cultura e a história negras “sejam levadas a sério nos
círculos acadêmicos, em lugar de serem atribuídas, via a idéia de relações raciais, à
14 Lovejoy, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P. 29. 15 Cabe aqui referir que o conceito de mudança pode ser melhor compreendido tomando como pressuposto as investigações desenvolvidas por Bauman quando da referência acerca da “liquidez”da sociedade contemporânea.
12
sociologia, e, daí, abandonadas ao cemitério de elefantes no qual as questões políticas
intratáveis vão aguardar seu falecimento”16.
Esse autor ao buscar os elementos que possibilitem o rompimento dos diques, muito
bem instalados na política cultural eurocêntrica nacionalista, que coloca o negro ora como
não-humano ora como não-cidadão, procura os meios que possam ativar os códigos re-
interpretativos da condição do negro na modernidade. Assim, a diáspora responde o debate e
ancora o caráter híbrido meta-nacional17 da condição cultural desse negro: “sob a idéia-chave
da diáspora, nós poderemos então ver não a raça, e sim formas geopolíticas e geo-culturais de
vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só
incorporam, mas também modificam e transcendem”18.
Stuart Hall19 utiliza o conceito “diáspora negra” para explicar a experiência dos
Africanos desterritorializados em função da escravidão racial. Afro-caribenho, vivendo em
Londres, Hall entendeu sua condição de ser-no-mundo: conhecendo intimamente os dois
lugares [Jamaica e Inglaterra] percebeu que na verdade não pertencia a nenhum deles, “e esta
é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de
exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma chegada sempre adiada”20.
Esse autor aponta que “de uma forma curiosa, o pós-colonial prepara o indivíduo para viver
uma relação pós-moderna ou diaspórica com a identidade”21. De acordo com Hall a
experiência da diáspora origina-se na bíblia ao narrar a recuperação de uma terra ocupada por
outros povos. No esforço de aproximação entre a diáspora bíblica e a diáspora negra ele
aponta a experiência de sofrimento, exílio, cultura do livramento e da redenção como alguns
dos seus fatores comuns. Essa condição explica, de alguma forma, porque os adeptos do
16 Gilroy, Paul, 1956. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência. São Paulo; Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. P. 40. 17 Acerca dessa denominação devemos referir que o autor aponta a possibilidade de identidades supra-nacionais, marcadas por caracteres resultantes da aproximação de diferentes traços, daí seu caráter hibrido. 18 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 25. 19 Esse jamaicano de classe média viveu as contradições culturais e sociais no contexto colonizado da Jamaica, uma sociedade marcada por políticas de branqueamento racial. Na sua infância foi chamado de “coolie” uma espécie de pária entre os seus, por ser de todos os membros de sua família o mais negro. Em 1951 mudou-se para a Inglaterra onde mais tarde filiou-se à “Nova Esquerda Inglesa”. 20 Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; tradução Adelaine La Guardia Resende... [et. al.]. – Belo Horizonte: Ed. UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. P. 415. 21 Hall, Stuart. Op. Cit. P. 416.
13
Movimento Rastafári22 utilizam com freqüência a bíblia, pois ela “Conta a história de um
povo no exílio dominado por um poder estrangeiro, distante de casa e do poder simbólico do
mito redentor”23. Conforme conclusões desse autor, o que marcou definitivamente o
rastafarianismo foi o fato de ter tornado definitivamente negra a Jamaica, descolonizando as
mentes. “Como todos os movimentos, o rastafarianismo se representou como um retorno.
Mas, aquilo a que ele nos retornou foi a nós mesmos. Ao fazê-lo produziu a África,
novamente, na diáspora”24.
A análise das estruturas políticas, sociais e culturais no interior das fazendas que
utilizavam o regime de escravidão Plantation25
revela dados impressionantes de
particularismos e concentração de poderes num regime fechado, longe dos olhos e do alcance
das instituições estatais. Foi nesse ambiente que o terror racial se desenvolveu. Entretanto, foi
também nesse espaço “permitido”26 que os escravos, absorvendo os elementos culturais da
sociedade dominante, criaram mecanismos de defesa e auto-afirmação como forma de
subsistência numa terra distante e desconhecida, recriando seu espaço primordial,
analogamente pequenas porções da África reterritorializadas pelas vias da recordação.
Expressando-se através do corpo os africanos, na diáspora, recriaram padrões estéticos que
conformaram a própria noção de contracultura da modernidade. A música, um dos elementos
culturais permitidos e/ou até incentivados pelos senhores da Plantation, expressando
pensamentos e desejos inefáveis, colocava para os escravos um mundo idealizado, tal qual
22 Na década de 1960, excluídos do sistema capitalista, muitos Rastas procuraram formas de subsistência através da arte, entre elas o artesanato, esculpindo peças inspiradas em motivos africanos. Entretanto, onde a cultura Rasta desenvolveu-se, tanto na Jamaica quanto fora dela, foi na música, com o surgimento do Reggae, um estilo musical inovador . No começo o Reggae é o Ska, ritmado ao som de instrumentos metálicos que foram inspirados na Black music norte-americana. Mais tarde o Ska que ficara mais lento, originou o Rocksteady. Acrescido das percussões africanas e batidas da guitarra ao estilo Rock nos anos 1970 o antigo Rocksteady passa a denominar-se Reggae 23 Hall, Stuart. Op. Cit. P. 417. 24 Id Ibidem. 25 O conceito de plantation utilizado aqui refere-se às fazendas de monocultura do algodão encontradas no sul dos Estados Unidos no século XVIII e início do XIX, que utilizavam mão de obra escrava. 26 Utilizamos essas aspas para chamar a atenção do leitor para o fato da questão subjetiva intrínseca ao próprio termo por nós utilizado. O sentido de apropriação, como o entende Roger Chartier, explica bem toda dinâmica envolvida nos espaços controlados das senzalas, onde os escravos gozando de relativas e momentâneas liberdades expressavam seus modos de vida característicos, manifestando a resistência natural ao regime da escravidão através dos sincretismos religiosos, das manifestações culturais e lúdicas. Obviamente, as pequenas liberdades aconteciam em um nível elevado de negociação subliminar em resposta à necessidade sempre constante da utilização de meios para aliviar a pressão do próprio sistema. Esses recursos foram largamente utilizados pela elite escravocrata que também se viam obrigadas a negociar seus interesses. Desta forma, as concessões de privilégios colaboravam para a manutenção do próprio regime da escravidão. Por outro lado se os espaços de relativa liberdade lhes eram “permitido” isso ocorria também em função da pressão interna, de dentro da senzala para fora, tendo por conseqüência o medo sempre presente de revoltas ou sublevações incontroláveis. Considerado neste contexto o espaço “permitido” existe em função do espaço “negociado”.
14
gostariam que fosse, em oposição à realidade do vivido, fornecendo-lhes a necessária dose de
coragem para prosseguirem suas vidas. Essa concepção utópica de um mundo perfeito,
recriado ludicamente através da música, é denominada por Gilroy de “política de
transfiguração” que enfatiza desejos novos no interior da comunidade racial. Segundo ele a
política de transfiguração “Aponta especificamente para a formação de uma comunidade de
necessidades e solidariedades, que é magicamente tornada audível na música em si e palpável
nas relações sociais de sua utilidade e reprodução cultural”27.
É notável o valor e a centralidade que a música e as manifestações artísticas possuem
para a cultura e a sociedade no interior do Mata Cavalo. Elo espiritual importantíssimo,
considerando-se a licença poética, a arte concentra o poder simbólico capaz de conformar
parte da cultura e das estruturas sociais desta comunidade tradicional. Nas ocasiões festivas
desta comunidade, arte e vida se misturam de forma a dotar de sentido as hierarquias de poder
no seu interior.
A evasão lúdica do mundo real constitui-se numa espécie de resistência ao presente
opressor dilatando, poeticamente, as esperanças num amanhã glorioso. Obviamente, transitar
no espaço “permitido” no interior das fazendas no regime da escravidão exige exercício
laborioso de audácia e inteligência buscando no espaço do subliminar o escopo de suas ações.
Desenvolvida debaixo do nariz dos senhores, os desejos utópicos que alimentam a política
complementar da transfiguração, como espaços de transgressões, só podem tomar forma por
meios mais sutis, situando-se em regiões de difícil acesso aos olhos de quem domina e
oprime, pois:
Essa política existe em uma freqüência mais baixa, onde é executada, dançada e encenada; além de cantada e decantada, pois as palavras, mesmo as palavras prolongadas por melisma e complementadas ou transformadas pelos gritos que ainda indicam o poder compíscuo do sublime escravo, jamais serão suficientes para comunicar seus direitos indizíveis à verdade. 28
Não se trata de um contra discurso, como o afirma Gilroy, mas sim de uma
contracultura capaz de reconstruir, de forma desafiadora, sua própria genealogia crítica,
intelectual e moral recriando seu espaço “permitido” numa esfera pública particular e pouco
perceptível, porém totalmente dotada de singular personalidade. No centro dinâmico dessa 27 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 96. 28 Id Ibidem.
15
contracultura29 encontram-se as expressões artísticas da música negra, que embora não
excluindo as desigualdades sociais sua ética bem estabelecida oferece as condições para o
debate em torno das questões de dominação que determinam a sua própria existência.
Conclusivamente, as expressões artísticas possibilitam meios plausíveis para a afirmação do
indivíduo, bem como para a libertação da comunidade como um todo. “Poiésis e poética
começam a coexistir em formas inéditas – literatura autobiográfica, maneiras criativas
especiais e exclusivas de manipular a linguagem falada e, acima de tudo, a música. As três
transbordaram os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu a elas”30.
A discussão do caráter poético da música negra, e sua notável influência na cultura e
nas sociedades negras estabelecidas no movimento da diáspora, no entorno do oceano
Atlântico, são importantes para o entendimento do universo negro aqui estudado, na medida
em que fornece elementos teóricos explicativos de alguns aspectos da cultura e da
comunidade do Mata Cavalo. Não precisa muito esforço para entender que, ao menos, boa
parte das manifestações sócio-culturais percebidas no Mata Cavalo tem sua origem no período
em que seus ancestrais ainda se encontravam no cativeiro. Obviamente, essas manifestações
culturais sofreram, no curso da história, as influências externas nas zonas de contato, por
assim dizer, com outras culturas. O que se percebe hoje é que as manifestações artísticas
obedecem aos imperativos da conformação de identidades específicas recriadas no panelão da
cultura afro-americana como um todo. Em Mato Grosso, assim como em inúmeras outras
regiões do Brasil e do “Atlântico negro”, as manifestações artístico-culturais são resultantes
do confronto direto entre povos africanos, europeus e ameríndios.
De acordo com a pesquisadora Julieta de Andrade, o siriri “é uma suíte de danças de
expressão hispano-lusitana, fortemente aculturada no ritmo e no andamento, com expressão
africana”31. Uma dança que lembra os divertimentos indígenas, conforme nos aponta João
29 De acordo com a socióloga Marília Quentel Corrêa, “a contracultura é um movimento que tem seu auge na década de 60, quando teve lugar um estilo de mobilização e contestação sociais e com ele novos meios de comunicação em massa. Jovens inovando estilos, voltando-se mais para o anti-social aos olhos das famílias mais conservadoras, com um espírito mais libertário, resumindo como uma cultura alternativa ou cultura marginal, focada principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano.” Ainda segundo sua análise “a contracultura pode ser definida como um ideário alternador que questiona valores centrais e vigentes instituídos na cultura ocidental”. Disponível em: http://estudossociologicos.blogspot.com/2009/06/contracultura.html acesso em 12 de Fevereiro de 2011. 30 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 100. 31 Ferreira, João Carlos Vicente. Mato Grosso e seus municípios. – Cuiabá: Secretaria de Estado da Educação, 2001. P. 210.
16
Carlos Vicente Ferreira, o siriri provavelmente tem sua origem na palavra “otiriri” no
vocabulário da língua lusitana, na Portugal do século XVIII. Ou, como revela a crença
popular, significa um tipo de formigão com asas. Um dos instrumentos utilizados na dança do
siriri é o “mocho” ou “tamboril”, um banco revestido com couro de boi geralmente tocado por
homens e cujos ritmos sincopados, provavelmente lembram os tambores largamente
utilizados por diversas etnias e povos da África. Enfatizamos aqui o exemplo da expressão
cultural do “siriri” para destacar a influência do encontro de culturas resultantes do
movimento de colonização européia e da diáspora africana para a sociedade mato-grossense.
O cururu, rasqueado, dança do congo, festa do Divino Espírito Santo, Cavalhada, dança dos
mascarados, festa de São Benedito e a dança do chorado compõem o universo cultural desta
região do Brasil que influencia diretamente o caldo de cultura da comunidade do Mata
Cavalo. Importante frisar que essas expressões artísticas e culturais resultantes dos
movimentos de diáspora no Atlântico negro, de alguma forma, influenciaram as culturas
locais sendo por elas também influenciadas, como é o caso de algumas regiões do Estado de
Mato Grosso notavelmente marcadas pela influência indígena e africana.
Todo o movimento atual de ressignificação da tradição cultural no interior do Mata
Cavalo sofre a influência direta de várias forças, que ora divergem ora convergem no bojo das
profundas transformações da sociedade envolvente estigmatizada pela globalização. A seguir
delinearemos algumas questões importantes acerca da modernidade e globalização para
buscar os elementos com os quais será possível explicar, de alguma forma, o universo cultural
da comunidade do Mata Cavalo no que respeita aos processos de construção da identidade
negra e os esforços da afirmação enquanto grupo tradicional no interior de uma sociedade
convulsionada e pós-moderna.
2.2 Escravidão racial: Uma contradição da modernidade
É latente a necessidade de se repensar historiograficamente todas as periodizações
simples do moderno e do pós-moderno, sob uma nova orientação que privilegie a história da
escravidão racial enquanto elo importante na conformação do próprio conceito de
modernidade. Tudo que se produziu, e diríamos até que se produz em termos de trabalhos
historiográficos acerca desta temática desconsidera simplesmente a presença atuante, em
escala nada desprezível, dos africanos na diáspora, salvo honrosas exceções. Se considerados,
por exemplo, a porcentagem de afro-descendentes na população brasileira, cujas estimativas
17
apontam um índice superior a cinqüenta por cento, natural seria sua presença também no
âmbito historiográfico. A escravidão racial da era moderna demanda, portanto, uma nova
leitura despida de idéias eurocêntricas pré-concebidas, em prol de um nível mais elevado de
entendimento da nossa sociedade atual. Essa questão primordial parece adormecida nos
ânimos de pensadores ocidentais, embora o aparecimento de expressivos críticos que,
exasperadamente, tentam dotar de significado suas vozes no interior de uma sociedade
marcada por interesses difusos, em um mundo pressionado pela globalização.
Zygmunt Bauman, em suas análises sociológicas, percebe as transformações sociais
por que passam as sociedades atuais em conseqüência da globalização. Em sua obra
Modernidade Líquida, publicada em 2001, observa o homem enquanto ator social em
processo contínuo de individualização, tendo como agravante as mudanças nas suas formas de
relacionamento e de percepção do mundo que o rodeia. Utilizando-se da metáfora
“liquefação” consegue captar a dinâmica das mudanças socioculturais de um mundo
reestruturado pela velocidade da comunicação e pela inversão dos valores éticos. No interior
dessa sociedade convulsionada as instituições sociais, descritas como estados de solidez,
obliteram-se acentuadamente desestruturando antigas formas de convivências humanas dos
espaços familiares e do mundo do trabalho. Na nova conformação social o estado de fluidez e
flexibilidade molda a plasticidade com a qual os indivíduos interagem com o meio envolvente.
Nessa perspectiva, o estado de liquefação dos sólidos metaforicamente demarca o tempo da
provisoriedade provocando a sensação de uma falsa liberdade, que traz em conseqüência o
desconforto e o desamparo social. Subjetivamente, Bauman relaciona o desprendimento do
homem, individualizado pela modernidade, das suas redes de pertencimento social e familiar,
localizando-o num terreno movediço onde as estruturas do individual se sobrepõem às do
coletivo.
O estado de contínuo movimento em que o mundo se encontra, produz desequilíbrios e
alarga o fosso que separa ricos de pobres. “Todos nós estamos, a contragosto, por desígnio ou
à revelia, em movimento. Estamos em movimento mesmo que fisicamente estejamos
imóveis.”32. Essa noção de movimento polariza a balança do poder aumentando a capacidade
de operação dos que são globalizados, estendendo as fronteiras de seus domínios ao mesmo
tempo em que aumentam o nível de exclusão social dos localizados. “Ser local num mundo
32 Bauman, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. P. 8.
18
globalizado é sinal de privação e degradação social”33. Nesse contexto globalizado a
mobilidade constitui-se na peça chave com a qual os privilegiados da sociedade combinam os
fatores essenciais hegemônicos dominando o mundo dos negócios, das finanças, comércio e
controle dos fluxos de informações. A falta da mobilidade estratégica, a redução à condição de
“local” são os fatores que determinam a exclusão social de pobres no mundo contemporâneo
promovendo um estado de insegurança e incertezas, sendo importante articular as dimensões
do local e global como forma dos grupos sociais garantirem efetivamente a sua identidade
num mundo cada vez mais marcado pela homogeneização.
Por analogia, podemos comparar a condição da questão fundiária no Mata Cavalo com
o universo conceitual criado por Baumam acerca da modernidade e das vantagens de quem
possui a capacidade de estar em movimento, mobilizando as forças no jogo do poder a seu
favor, como bem o perceberam os movimentos sociais. Inicialmente, trata-se da verificação
de condições muito simples de manipulação do poder realizada pela elite composta por
fazendeiros no confronto com os remanescentes do Mata Cavalo, visando à legitimação das
terras em litígio. De forma resumida, a questão gira em torno da capacidade de se mover entre
signos e códigos jurídicos visando manobras políticas, nem sempre lícitas, que possibilitam
momentaneamente alterar a realidade no que respeita aos processos de titulação de terras
naquela região. Essa condição privilegiada demanda certo grau de escolaridade e capacidade
de influenciar os meios onde localizam-se as estruturas de poder, tais como cartórios de
registros e até mesmo alguns setores representativos da força política e também policial. Não
precisa muito esforço para entender que esse não é o caso dessa comunidade, composta em sua
maioria por gente simples, acostumada à vida no campo, fator que originou, na maioria das
vezes, uma postura pacífica frente a uma realidade incomum no confronto entre esses e os
fazendeiros envolvidos naquela disputa. Como veremos nos capítulos subseqüentes, esses
remanescentes, salvo algumas exceções, encontravam-se relativamente isolados em seu
próprio território, estando, em função do baixo nível de conhecimento acerca das questões
jurídicas, entregues à própria sorte.
Objetivamente, o estado de incertezas percebido por Bauman constitui-se em um
problema a mais na configuração social e cultural das comunidades negras trans-atlânticas,
embora, de acordo com o pensamento de Paul Gilroy, não representar o cerne da questão aqui
33 Id. Ibidem.
19
discutida. Agravante sim, mas não determinante no contexto histórico mais amplo que estuda
e analisa a modernidade sob a ótica da escravidão racial. Gilroy alerta para a questão de que
“tanto os defensores como os críticos da modernidade parecem não atentar para o fato de que a
história e a cultura expressivas da diáspora africana, a prática da escravidão racial ou as
narrativas de conquista imperial européia podem exigir que todas as periodizações simples do
moderno e do pós-moderno sejam drasticamente repensadas”34.
Argumentando sobre o impacto violento da escravidão racial na sociedade marcada
pela modernidade, Gilroy afirma que uma parte muito expressiva da novidade que representa o
pós-moderno se oblitera, se desfaz, quando analisada sob a ótica da luz histórica inexorável
que representou os encontros entre europeus e aqueles que eles conquistaram, mataram e
escravizaram, de uma forma brutal e inconseqüente. Daí a importância da periodização do
moderno e do pós-moderno para a história do negro no ocidente e da sua narrativa histórica
das relações de dominação e subordinação entre povos da Europa e o resto do mundo. Assim,
a periodização “é essencial para nossa compreensão da categoria de ‘raça’ em si mesma e da
gênese do desenvolvimento das formas sucessivas da ideologia racista. É pertinente acima de
tudo, na elaboração de uma interpretação das origens e da evolução da política negra.”35.
Gilroy se preocupa com a evolução do racismo científico para formas culturais novas,
um tipo mais complexo de racismo gestado no pós-guerra, em lugar da hierarquia biológica
simples tratada pela cientificidade do século da razão. Para ele o racismo científico,
propugnado em meados do século XIX, foi o produto intelectual mais durável da
modernidade. Como vimos, a questão da dominação racial e suas conseqüências não faz parte
da agenda de debates da modernidade. Em seu lugar, afirma ele, aparece uma modernidade
inocente que discute a vida feliz pós-iluminista em Paris, Berlim ou Londres.
Esses lugares europeus são prontamente purgados de qualquer traço dos povos sem história, cujas vidas degredadas poderiam levantar questões incômodas sobre os limites do humanismo burguês. A famosa pergunta de Montesquieu ‘como pode alguém ser persa?’ permanece obstinada e deliberadamente sem resposta. 36.
34 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 103. 35 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 106. 36 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 107.
20
Um fator que explica a atmosfera conflituosa na região compreendida pela
comunidade do Mata Cavalo, sem dúvida, é a questão da racialização e tudo que ela trás de
problemas inerentes aos processos do estranhamento em relação ao “outro”, à alteridade. Sob
esse prisma, a pergunta de Montesquieu certamente não encontrará resposta satisfatória,
constituindo mesmo talvez uma impossibilidade. Apesar de estarem na região há quase um
século e meio, os remanescentes desta comunidade são vistos como os outros, os estrangeiros
e em certo nível até como “exóticos”. Essa condição singular, que foi percebida por Stuart
Hall com relação às comunidades na diáspora, é fundamental para o entendimento dos
processos de edificação da própria identidade em seus interiores. Numa visão um pouco
simplista das formulações deste pensador, quando saímos de nosso lugar de origem, perdemos
a condição do retorno a ele ao mesmo tempo em que no local de destino somos considerados
estrangeiros.37 Apanágio dos tempos pós-modernos, em função dos intensos movimentos
migratórios, a identidade nesta condição única só poderia ser constantemente conformada
pelas vias do conceito da diáspora. Desterritorializados de seus lugares de origem os
remanescentes do Mata Cavalo recriaram, na diáspora, o seu território conformando-o como
uma territorialidade única clivada pela tradição herdada de seus ancestrais. Isso explica o alto
valor simbólico que a terra possui para essa comunidade, para além de simples lugar de
recolhimento e subsistência, o que ocorre também com outras populações tradicionais. Numa
consideração minimalista constitui-se como lugar de fronteira entre o “eu” e o “outro”.
Jürgen Habermas, filósofo, eminente representante da Escola de Frankfurt e assistente
do também filósofo e sociólogo Theodor Adorno, em suas obras, foi hábil defensor do
potencial democrático da modernidade. No entanto Habermas não atenta para o fato de que
os ideais iluministas não consideravam a questão da raça, central no pensamento de Gilroy em
cujos conceitos acerca da escravidão racial destaca-se uma profunda contradição: “Há uma
tênue percepção, por exemplo, de que a universalidade e a racionalidade da Europa e da
América iluminista foram usadas mais para sustentar e transplantar do que para erradicar uma
ordem de diferença racial herdada da era pré-moderna.”38. Como vimos, os pensadores da
modernidade em sua grande maioria não observaram, em suas numerosas formulações, a
importante questão da escravidão racial como um dos elementos que a constituem e lhe
37 Durante nossa qualificação fomos questionados acerca da afirmação referida. Naquela oportunidade a avaliadora destacou que essa afirmação não pode ser extensiva a todos os grupos sociais, em especial levando-se em conta a denominada ‘diáspora gaucha’ no norte de Mato Grosso, ainda que para o contexto de investigação dessa pesquisa essa afirmação seja procedente. 38 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 114.
21
conferem sua condição privilegiada nas vias das grandes inovações do mundo pós-guerras.
Desta forma, contribuem com os continuísmos históricos, presentes nas políticas sócio-
culturais, capazes de fazer sombra à importante movimentação das comunidades negras ao
mesmo tempo em que legitima as relações de poder no seu interior.
Na região onde se encontra a comunidade do Mata Cavalo, são visíveis as práticas
racistas principalmente se considerarmos que aquelas terras constituem objeto de disputa entre
ela e alguns fazendeiros que ali se instalaram ao longo do tempo. Obviamente, o contexto
violento do litígio acrescenta um elemento de instabilidade a mais nas complexas relações
sociais entre os remanescentes e representantes da sociedade circunvizinha. Em resposta às
pressões do meio envolvente, alguns membros dessa comunidade tradicional, principalmente
aqueles ligados à comunidade do Mutuca, empenham-se na participação dos movimentos
negros na região e também no país. Cientes de sua condição singular, procuram da melhor
forma possível edificar o seu espaço como um território de negros, um local decantado pela
história como remanescentes de quilombo. Conectados à vanguarda desses movimentos
negros integram-se, de alguma forma, ao mundo do “Atlântico negro” e tudo que ele
representa de possibilidades e afirmação no interior da sociedade globalizada, pelas vias da
valorização da negritude. Portanto, embora presos à sua condição econômica, social e política
enquanto “locais” conseguem ideologicamente transitar por algumas esferas delimitadas pelo
mundo globalizado. Essa condição representa certo avanço, mas não modifica
substancialmente o status quo desta comunidade tradicional que luta, cotidianamente, por sua
própria sobrevivência enquanto tal.
Na verdade, apesar da integração de alguns segmentos da comunidade do Mata Cavalo
aos movimentos negros globalizados, a realidade do cotidiano no seu interior é marcado pela
política de continuísmos históricos colaborando para a manutenção das estruturas de poder
vigente, como aponta Gilroy. Isso reforça, sobremaneira, a necessidade de se protegerem em
uma comunidade estruturada fortemente nos imperativos da tradição e do modo de vida
comunal, que por sua vez alimenta os elos de solidariedade entre os membros do grupo, ainda
que existam no seu interior, coletividades que tenham outra perspectiva acerca de sua inserção
no mundo. Esse é exatamente o grande desafio a ser enfrentado pela comunidade como um
todo: como manter a tradição e as práticas sócio-culturais, arraigadas num período de longa
duração, em um mundo marcado por instabilidade, insegurança e profundamente
estigmatizado pela globalização?
22
Paul Gilroy utiliza-se da obra e do pensamento de Frederick Douglass, intelectual e
ativista político em meados do século XIX, um forte candidato a ser o pai do “nacionalismo
negro”, pois entre grandes expressões do universo de pensadores do Atlântico negro [tais
como: Martin Delany, Edward Wilmot Blyden e Alexander Crummell] foi o único marcado
por sua condição de ex-escravo, fator que lhe confere uma posição privilegiada no estudo da
escravidão. Em sua complexa relação com a modernidade, evocava o iluminismo maior que
supostamente traria um pouco de luz para a escuridão ética da escravidão. Para ele a
Plantation escravista era marcada pelo arcaísmo e por sua condição anti-modernista. Gilroy
cita uma passagem de Douglass na sua clássica obra My bondage and my freedom (Minha
escravidão e minha liberdade), “[...] A Plantation é uma pequena nação em si mesma, tendo
seu idioma próprio, suas regras, regulamentos e costumes. As leis e instituições do Estado
aparentemente não a afetam em parte alguma. As dificuldades que surgem aqui não são
resolvidas pelo poder civil do Estado”39. Reiteradamente, Douglass entendia a Plantation
escravista como uma própria antinomia da modernidade, um sistema atrasado, pré-capitalista
e comparável às relações de trabalho pré-modernas da Europa feudal. Ele ia mais além ao
afirmar que, junto ao cristianismo que não fez outra coisa senão servir à causa burguesa, com
seus aparatos ideológicos da sujeição escrava, a Plantation significava estagnação, quando
não recuo, que encerrava a civilização na parte externa do mundo iluminista.
Considerando-se o panorama político e social na arena de conflito entre a comunidade
do Mata Cavalo e seus opositores, o pensamento de Frederick Douglass continua muito atual.
Comparando a Plantation escravista, do Sul dos Estados Unidos da América, com seu
arcaísmo das relações de trabalho e a política “coronelesca”, característica do Brasil do final
do século XIX e boa parte do século XX, encontramos, sem muito esforço, os resquícios dos
sistemas de dominação concentrado na idéia da superioridade da raça40 branca. A política dos
coronéis, o paternalismo às avessas, a estigmatização do negro em coisa e a facilidade com
que as elites dominantes lançam mão de subterfúgios, muitas vezes de forma ilícita,
evidenciam um problema ainda não resolvido ao mesmo tempo em que revela a herança de 39 Gilroy, Paul. Op. Cit. P. 49. 40 Utilizamos aqui o conceito de superioridade da raça branca para referenciar práticas ainda arraigadas na mentalidade política de nossa sociedade de forma coletiva. Embora estudos recentes nas áreas das ciências biológicas afirmarem sua inexistência comprovada em laboratório, a questão da racialização ainda é um problema não resolvido. Através desse prisma não faz o menor sentido fingir que essa delicada questão já não faz parte da nossa agenda de debates acadêmicos. Enquanto persistir na prática os processos de racialização e suas nefastas conseqüências para as comunidades negras torna-se eticamente relevante a manutenção dos esforços em torno de sua resolução, principalmente nos meios intelectuais em nossa sociedade.
23
mais de três séculos de escravidão racial no Brasil. Apesar dos aparentes avanços nas relações
sociais entre negros e brancos em nossa sociedade, o que se verifica na prática, nessas
mesmas relações, entre as comunidades do Mata Cavalo e seus vizinhos é uma realidade
profundamente marcada por antagonismos e interesses difusos. Nessa delicada teia de
relações sociais, o preconceito racial determina o ritmo e a dinâmica turbulenta do convívio,
sempre difícil, de ambas as partes. Certamente, o interesse econômico envolvido na disputa da
terra explica, mantidas as devidas proporções, o contexto de instabilidade política naquela
região, mas não constitui a peça chave capaz de elucidar os problemas resultantes da
dificuldade na aceitação da alteridade, do diferente, do outro. Tanto nos Estados Unidos da
América, como aponta Douglass, como aqui, os ideais do iluminismo não consideraram a
posição dos negros africanos, cujo trabalho e herança cultural contribuíram inexoravelmente
para a constituição da própria modernidade ocidental.
2.3 Escravidão no Brasil
Na palestra de abertura do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Escravidão
Africana no Brasil, realizada em Junho de 2010 na cidade de Natal – RN, Luis Felipe de
Alencastro, cientista político e historiador, professor titular da cátedra de História do Brasil da
Universidade de Paris IV Sorbonne, alerta para a defasagem dos estudos da história atlântica
que atribui pouco valor à história do Atlântico Sul. De acordo com suas formulações, esse
silêncio na produção historiográfica escamoteia, parcialmente, a própria história do Brasil no
que se refere aos movimentos de migração forçada de africanos às terras brasileiras. Os dados
estatísticos divulgados pelo IPEA em 2010 confirmam o caráter da colonização africana no
Brasil, ao revelar que mais da metade da população brasileira é afro descendente. Outros
pesquisadores apontam defasagens ainda mais amplas que denotam silêncios quanto à história
da escravidão no interior da própria história da humanidade, como é o caso de Mary Del
Priore.
Priore, no prefácio à primeira edição de “Escravidão e Universo Cultural na Colônia:
Minas Gerais, 1716-1789” de Eduardo França Paiva, publicada pela Editora UFMG em 2001,
utiliza-se com muita propriedade da metáfora do “buraco negro” para descrever o vazio na
história da humanidade em função da escravidão racial moderna, uma história ainda não
resolvida, um devir à espera de reparações e resgates. Ainda segundo ela, no bojo das
24
transformações provocadas pelas comemorações em torno do Centenário da Abolição,
trabalhos inéditos caminham no sentido de resgatar nossa dívida histórica aos africanos que
ajudaram a construir a imensa nação brasileira. A idéia do africano escravizado desprovido de
qualquer conhecimento e de capacidade intelectual, totalmente impregnado por crendices e
costumes degenerados, foi cultivada com muito esmero na memória coletiva do Brasil
Colônia e seus efeitos ainda se fazem presentes nos dias atuais. Conforme Paiva esta “é uma
marca facilmente identificável em práticas e representações culturais corriqueiras e, até
mesmo, nos mais recentes programas curriculares de História, desde o ensino fundamental até
os cursos de graduação universitária e de pós-graduação”.41 Posicionando-se em terreno
favorável, alguns setores da historiografia brasileira contemporânea, que trabalham com a
questão da escravidão racial da era moderna, privilegiam não mais os dualismos de natureza
reducionista, antagonismos que opunham à África bárbara a “civilização” da Europa
iluminista, mas sim, os esforços no resgate do cotidiano de homens e mulheres que, vivendo
no limite entre cativeiro e liberdade construíram imaginativamente seus modos de vidas
peculiares. Fluxos e refluxos de suas historias, os dois lados de uma mesma moeda,
entendimento e negociação. (Vide citação 42).
Como temos enfaticamente insistido ao longo deste capítulo, as relações sociais e
culturais da comunidade do Mata Cavalo com seus vizinhos próximos e também com os
habitantes das cidades no seu entorno são marcadas por antagonismos e idéias preconcebidas
por parte de quem enxerga os remanescentes como “outros”, “exóticos”, “diferentes”.
Conforme Paiva esta é uma característica de fácil identificação no caldo de cultura originado
no panelão do Brasil Colônia, estando, pois, profundamente arraigado na mentalidade coletiva
como um todo. Essa questão nodal possibilita o entendimento dessas complicadas relações,
não só no âmbito da comunidade aqui estudada, mas também no que se refere às comunidades
negras em geral. No entanto, de acordo com a nova tendência da historiografia que trata da
escravidão racial da era moderna, uma nova linha de pensamento desenvolve-se com grande
expressão, resgatando a dignidade do negro como ator de sua própria história42. No Mata
Cavalo, observamos o esforço sempre contínuo na manutenção de uma tradição afro-
41 Paiva, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. p. 218. 42 Entre os representantes dessa nova tendência historiográfica destaca-se: Eduardo França Paiva (Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagens no novo mundo); Luíza Rios Ricci Volpato (Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850/1888); Robert Slenes (Família escrava e trabalho); Manolo Florentino (A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro: 1790/1850); Eduardo Silva e João José Reis (Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista).
25
referenciada, através do culto à memória ancestral herdada das senzalas o que, de forma
bastante intensa, recupera a posição de seus integrantes como sujeitos ativos frente à suas
próprias histórias. Como veremos a seguir, os descendentes de africanos no Brasil negociaram
da melhor forma possível os seus modos de vida. Na seqüência da investigação, buscaremos
os elementos que corroboram com a idéia central, proposta inicialmente, nos caminhos de
construção da identidade negra, tendo como parâmetro a memória escrava e,
substancialmente, o valor da terra, como meio e fim de todo processo. Para tanto, torna-se
necessário entender como se processou, ao longo da história dos afro-descendentes na
diáspora em terras brasileiras, os caminhos de uma identidade negra específica, conformando
aspectos sócio-culturais relevantes às comunidades tradicionais que se formaram deste lado
do Atlântico.
Segundo Florentino “[...] 40% dos quase 10 milhões de africanos importados pelas
Américas desembarcaram em portos brasileiros”43. Não constitui grande problema identificar
no fluxo contínuo externo da oferta de mão de obra escrava barata a própria permanência do
sistema escravista. Não podemos desconsiderar os cálculos econômicos da empresa colonial,
que certamente faziam parte das preocupações de todos que se envolveram de alguma forma
no rentável negócio da escravidão. Certamente, os comerciantes da empresa escravista
colonial perceberam que à reprodução física dos homens correspondia, na escala dos cálculos
econômicos, a reprodução da própria oferta de mão de obra e da força disponível para o
trabalho.
Analisando a empresa escravista sob esse prisma, Florentino assevera que nos momentos
de expansão dessa economia verificava-se a necessidade de ampliação do plantel de escravos:
“Ao aumento do volume das exportações de produtos tropicais correspondia o da importação
de mercadorias muito especiais – os homens”.44 Afastando-se da questão da ética e do
politicamente correto, o comércio e a utilização do escravo africano condicionou-se à própria
lógica do mercado e do capital. Por um lado o baixo preço da mercadoria em si – o africano
escravizado – permitia o contínuo fluxo de reabastecimento da mão de obra requerida, ao
mesmo tempo em que alimentava o vetor principal dessa economia: o próprio tráfico. Uma
lógica perversa. Isso explica as condições insalubres a que os escravos eram submetidos, ao
menos no longo período compreendido entre o início da empresa escravista e meados do
43 Florentino, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. – São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P. 23. 44 Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 24.
26
século XIX com o recrudescimento em torno das campanhas abolicionistas. Não havia,
aparentemente, uma grande preocupação na manutenção da longevidade da escravaria, como
explica Florentino: “Mas a alta mortalidade escrava daí derivada tramaria para a constância da
incapacidade colonial em suprir, internamente, de braços as empresas exportadoras. Desse
ponto de vista, a perenidade do comércio de almas deveria remeter paradoxalmente, ao
próprio tráfico.”45 Conclui-se, portanto, que a mão de obra indígena só foi substituída pela do
africano devido à perspectiva da alta lucratividade que o tráfico negreiro propiciaria à
economia colonial, como já o afirmava Fernando Novais na sua obra “Portugal e Brasil na
crise do antigo sistema colonial” publicada em 1983. De fato, como percebe Florentino o
comércio de escravos africanos firmou-se “como um dos mais importantes setores de
acumulação para o capital comercial europeu”.46
Essa lógica capitalista desarticula alguns conceitos cristalizados na historiografia, tais
como o da inadaptação do índio à cultura da lavoura, por um lado, e a suposta necessidade de
se povoar o Novo Mundo, por outro. Não que não fosse necessário tal povoamento se
considerada as questões de ordem geopolítica de ocupação das colônias, no contexto das
conquistas de além-mar. Discute-se, nesse momento, o motivo da preferência pela mão de
obra do africano escravizado. Quaisquer outras formas de trabalho se não a compulsória
também não interessava à Metrópole “pois não impediriam a dispersão dos recursos coloniais
na produção para a subsistência, possibilidade real caso o trabalho fosse livre (do europeu ou
de qualquer outro).”47
O peso da economia do tráfico e sua dinâmica comercial explicam como, apesar da
oposição do maior império europeu da época, foi possível a manutenção e a sobrevivência do
comércio transatlântico de escravos até o ano de 1830 oficialmente e, de acordo com
Florentino “de maneira ilegal até meados do século XIX”.48 No entanto, para esse período de
eminente crise do sistema escravocrata no Brasil, o valor do escravo alcançou índices
elevados desestabilizando a relação custo/benefício para o senhoriato que necessitava da sua
mão de obra. Com a supervalorização do preço do escravo, a sua possível perda por morte ou
qualquer outro motivo significava prejuízos imensos, o que levou os empresários escravistas a
utilizarem de seguros contra morte, como comprova a apólice de seguro nº 5032 que favorecia
45 Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 25. 46 Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 26. 47 Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 72. 48 Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 211.
27
o Sr. Antonio Joaquim Pereira Borges, encontrada no acervo documental da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.49 (Vide anexos).
Essa apólice de seguro revela dados impressionantes acerca das práticas comerciais
relativas à escravidão na cidade do Rio de Janeiro. Possivelmente a empresa seguradora
dedicava-se com exclusividade ao ramo de seguros de escravos conforme atesta o seu próprio
nome “Companhia Mútua de Seguro de Vida dos Escravos”. O número 2920 referente a esse
segurado revela uma grande demanda por esse tipo de operação financeira. Isto significa que
quase três mil escravos já haviam sido segurados por essa empresa até a data de assinatura da
referida apólice, 6 de agosto de 1860. O valor do seguro a ser pago por ocasião da morte do
escravo segurado ultrapassa a cifra de um conto de reis, um valor considerável se comparado
a outros bens nesse período histórico. Segundo se pode apurar em documentos de inventários
datados de 1851, Eduardo Campos apontou o valor de 360 mil reis referente a 30 vacas, 35
mil reis atribuídos a um cavalo castanho novo e 150 mil reis por uma escrava mulata com
idade de 50 anos50. Confrontando esses dados, o valor do premio do seguro estipulado em
mais de hum conto de reis equivaleria ao preço de 86 vacas, uma cifra sem dúvida nenhuma
considerável.
Obviamente, esses números revelam o alto valor que a mercadoria representada pelo
africano escravizado alcançou na segunda metade do século XIX, em decorrência das
pressões em torno das políticas abolicionistas e a conseqüente redução da oferta e
disponibilidade dessa mão de obra. O que mais chama a atenção nesse documento são os
“silêncios” que demandam uma leitura mais atenciosa de suas “entrelinhas”. O artigo 22 da
regulamentação constante no anexo desta apólice de seguro, intitulada “Condições extrahidas
dos estatutos”, é particularmente emblemático revelando práticas de resistência por parte dos
escravos ao regime da escravidão racial. Segundo o artigo, “A companhia se responsabiliza
por qualquer gênero de morte, menos a que resultar de sevícias ou suicídio, quando este for
originado por acto forçado, castigo bárbaro ou tortura por parte do segurado”. Por um lado,
49 Para maiores detalhes, conferir a cópia do original da referida apólice de seguro, que se encontra nos anexos desta dissertação.
50 De acordo com o inventário e partilha de bens dos falecidos Capitão Manoel Maria de Oliveira Bastos e sua mulher Joana Joaquina Caídas na cidade de Saboeiro (Ceará), em 3 de janeiro de 1851, documento número 80 do Arquivo Público do Estado do Ceará, levantado pelo pesquisador Eduardo Campos, em sua obra “Revelações: da condição de vida dos cativos do ceará”. Disponível em: http://www.eduardocampos.jor.br/_livros/e27.pdf , acesso em 30 de Junho de 2010.
28
está bastante clara a preocupação geral na preservação da integridade do escravo num
contexto diferente dos séculos anteriores, onde o preço muito inferior e a oferta abundante
possibilitava sua substituição sem maiores dificuldades. Por outro lado, o simples fato desse
artigo existir em uma apólice de seguro da época pressupõe que o suicídio do escravo ocorria
em quantidade tal que justificava a própria ressalva no pagamento do prêmio do seguro.
Segundo pesquisas de Oda e Oliveira o suicídio entre escravos constituía uma forma de
resistência ao regime da escravidão.51 De acordo com eles, foi a partir dos relatos de viajantes
estrangeiros no Brasil que essas práticas tornaram-se conhecidas apontando um alto índice de
suicídios entre os cativos, normalmente relacionados a fatores de ordem psicológica, tal como
o banzo – uma forma passiva de suicídio verificada na recusa de alimentos e profundo
abatimento provocado por tristeza e melancolia. Segundo dados estatísticos levantados
durante essa pesquisa:
No período entre 1847-1882, entre as 295 ocorrências em que se pôde saber a condição do suicida, 160 (54,2%) foram de escravos e 9 (3%) de libertos, sendo os restantes 131 (44,4%) de pessoas livres. Se reagruparmos os dados, veremos que no período compreendido entre os anos de 1847 e 1860, os escravos (134) constituem a maior parte do total de suicidas (222), ou seja 60,4%.
Esses números não podem ser desprezados, pois evidencia no limite da tensão uma
trágica forma de negociação centrada no próprio conflito, características intrínsecas da
contrapartida ao regime, a resistência em sua fórmula mais nua. Pensando em termos de
negociações, torna-se relevante desfazer a imagem, que se pretende naturalizada, do escravo
enquanto suicida. O artifício do suicídio não era a regra, mas sim a exceção, uma resultante,
elevada ao extremo, do próprio fim da possibilidade de negociação. No contexto das relações
entre escravos e senhores predominavam os imperativos da conformação à uma nova ordem,
sob a perspectiva do africano que se viu obrigado a viver no contexto da diáspora, em terras
estrangeiras, distantes de casa e de suas próprias culturas. Negociar significava viver no
espaço do possível. No decorrer da longa experiência histórica da escravidão racial no Brasil,
uma forma dicotômica de relacionamento sintetizou-se na mentalidade coletiva: “De um lado,
Zumbí de Palmares, a ira sagrada, o treme-terra; de outro, Pai João, a submissão 51 Dados provenientes da apresentação de trabalho de pesquisas ao 3º. Encontro Escravidão e liberdade no Brasil Meridional, realizado de 2 a 4 de maio de 2007 na Universidade Federal de Santa Catarina, sob o título: “Registros de suicídios entre escravos em São Paulo e na Bahia (1847 – 1888): notas de pesquisas”, realizadas por Ana Maria Galdini, Raimundo Oda e Saulo Veiga Oliveira.
29
conformada”52. Os africanos que não se conformaram, muito além da passividade, criaram os
sincretismos de ordem religiosa, lingüística e cultural que são facilmente identificáveis nos
padrões estéticos de uma população altamente miscigenada. Importante salientar, também,
que não foram somente os escravos que negociaram, “na verdade, escravos e senhores
manipulam e transigem no sentido de obter a colaboração um do outro; buscam – cada qual
com seus objetivos, recursos e estratégias – os ‘modos de passar a vida’, como notou
Antonil”53.
Ainda pouco estudado no Brasil o conceito “brecha camponesa”54 revela, em larga
escala, os mecanismos de controle em sua forma mais sutil, uma negociação em níveis mais
profundos, considerando-se seus aspectos psicológicos. O silêncio em torno dessa delicada
questão, na historiografia tradicional, se prende, segundo Silva, à própria lógica cristalizada
pela memória da escravidão que, via de regra, não admitia que os escravos fossem senhores
de sua história, “enquanto res, instrumentos de produção, propriedade de outrem, não teria,
simplesmente, uma economia própria”55. Na verdade, a possibilidade fornecida aos escravos
de uma margem de economia própria, através da cessão de pedaços de terra para o plantio e a
folga de um dia por semana para o manejo da plantação, consistia numa poderosa “moeda de
troca” a disposição dos senhores e proprietários de escravos. Desta forma, a “brecha
camponesa”56, de acordo com Silva, “aumentava a quantidade de gêneros disponíveis para
alimentar a escravaria numerosa, ao mesmo tempo que fornecia uma válvula de escape para as
pressões resultantes da escravidão”57. Essa última questão, a segurança, de acordo com esses
autores, é central nas relações entre senhores e escravos, buscando da melhor forma possível
um ambiente de relativa paz. A farta documentação visitada por esses pesquisadores, nos
arquivos relativos ao Rio de Janeiro do século XIX, conecta as práticas de cessões de terras
com a questão do interesse na manutenção da segurança. Entre os documentos pesquisados, o
52Silva, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 13.
53 Silva, Eduardo. Op. Cit. p. 16. 54Segundo Eduardo Silva e João José Reis, o conceito brecha camponesa “embora razoavelmente estudado nos Estados Unidos e, sobretudo, no Caribe”, página 22 de sua obra já citada, tem sido negligenciado pela historiografia brasileira. 55 Silva, Eduardo. Op. Cit. p. 22. 56 Tadeusz Lepkowski (Haiti) utilizou o conceito “brecha camponesa” para designar as atividades econômicas, que escapavam estritamente ao sistema de plantagem, de acordo com sua própria designação, desenvolvidas nas colônias escravistas. 57 Silva, Eduardo. Op. Cit. p. 28.
30
conjunto de seis medidas adotadas pelos cafeicultores do município de Vassouras, que se
reuniram em agosto de 1854, exemplifica essas práticas. De acordo com esse documento, três
das seis medidas a serem tomadas pelas fazendas daquele município se prendem a fatores de
ordem ideológica, tais como o incentivo à diversão, desenvolvimento de idéias religiosas e,
“finalmente, permitir que os escravos tenham roças e se liguem ao solo pelo amor da
propriedade [sic.]; o escravo que possui nem foge, nem faz desordens”.58
A própria lógica do sistema escravista permite essa margem de negociação na medida
em que se admite a irracionalidade da relação entre senhor e escravo baseada exclusivamente
no uso da força. O fato é que esse pequeno direito de uso da terra assume proporção de alta
relevância também para os escravos que tanto lutam por sua manutenção, quanto por sua
ampliação. Silva usa como exemplo os escravos do engenho Santana de Ilhéus que se
rebelaram, no século XVIII, exigindo entre as condições de suas voltas ao trabalho a
ampliação da “brecha camponesa”. Possuir, mesmo que informalmente, um pedaço de terra
onde plantar suas roças, seus sonhos e esperanças, dir-se-ia, constitui um poderoso elo de
ligação entre os escravos, ao mesmo tempo em que possibilita uma economia autônoma,
dentro dos limites permitidos, que produz em certa medida um sentimento de relativa
independência. Possivelmente, a ligação com a terra, nesse nível de entendimento, contribui
de alguma forma para ajudar nos processos de consolidação das famílias constituídas nas
senzalas. Estas, também, revelam as nuances dos processos de negociações no interior do
sistema escravocrata.
A família escrava é tema que produz intensos debates na historiografia atual59. Velhos
paradigmas são obliterados em conseqüência das pesquisas atuais que buscam, auxiliadas
pelas novas tecnologias, uma visão mais crítica acerca desta temática instigante. Entre as
inovações técnicas, a demografia histórica constitui-se num instrumento racional para uma
nova abordagem da história da vida privada nas senzalas. Manolo Florentino e José Roberto
Góes souberam explorar bem esse filão historiográfico, cujos trabalhos culminaram num novo
entendimento acerca dos processos de constituição de núcleos familiares no regime da
escravidão racial no Brasil. Pensar a família e a própria dinâmica da empresa escravista em
58 Silva, Eduardo. Op. Cit. p. 29. Obviamente, o termo “propriedade” utilizado na citação não corresponde ao seu significado literal pois os escravos somente utilizavam aquelas terras, não sendo em hipótese alguma proprietários. Explica-se, dessa forma, a utilização do [sic] pelo autor da presente. 59 Segundo Manolo Florentino, à página 27 do seu “A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, 1790/1850”, existe na atualidade uma sólida bibliografia acerca do tema instigante da família escrava tanto no Brasil, como no Caribe e, também nos Estados Unidos.
31
cálculos econômicos - como o fizeram Jacob Gorender que buscou na economia empresarial
escravista a lógica de sua própria (ir)reprodução demográfica60, ou na superexploração do
escravo, exaurindo suas energias vitais ao limite, e provocando um altíssimo desperdício de
mão de obra, farta e facilmente substituível, conforme conclusões de Celso Furtado61 - afasta
a compreensão do que racionalmente consistia a lógica senhorial. Num contexto permeado de
subjetividades, o empresário escravista se via obrigado a conformar suas necessidades às
necessidades de seus escravos se quisesse, e isto é relevante, obter a maior produtividade
possível. A racionalidade, portanto, apontava para as práticas que respeitassem o próprio
direito ao corpo que o escravo minimamente, e às vezes mesmo sem o perceber, exigia em
troca de sua super exploração. “As estratégias senhoriais, antes de mais nada, deveriam ser
políticas”62 assevera Florentino.
A constituição de famílias escravas se verificava, de acordo com resultados de
pesquisas realizadas por Florentino e Góes, onde havia maior concentração de população
cativa, como nos casos das grandes empresas escravistas e seus vastos plantéis de escravos. A
simples constatação da existência numerosa de famílias escravas contraria o senso comum da
historiografia especializada, que trabalhava com a escravidão racial nos anos 1950, e sua
visão estereotipada quanto à capacidade dos escravos de serem senhores de suas próprias
histórias. Segundo Florentino, aqueles intelectuais julgavam que “a escravidão era uma forma
de organização social de efeitos tão deletérios e reificadores sobre os escravos que fazia viger,
nas senzalas, a anomia (isto é, a ausência de leis, de normas ou de regras de organização) e a
promiscuidade”63. Os dados estatísticos revelados nas suas pesquisas demonstram o caráter
sólido da constituição dessas famílias, principalmente onde havia grandes plantéis,
contrariando a perspectiva hobbesiana do estado geral de guerra de todos contra todos64, em
um ambiente onde não havia um poder constituído e organizado capaz de estabelecer as
normas de convivência em grupo. Mas, é exatamente a possibilidade de uma guerra total que
60Gorender, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978. PP. 321-323. IN: Florentino, Manolo. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 C. 1850 / Manolo Florentino, José Roberto Góes. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p. 28. Para Gorender os senhores de escravos preferiam os africanos do sexo masculino objetivando a maximização da produção em suas fazendas, o que representava maiores lucros. 61 Furtado, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. IN: Florentino, Manolo. Op. Cit. p. 28. 62 Florentino, Manolo. Op. Cit. p. 30. 63 Florentino, Manolo. Op. Cit. p. 27. 64 Segundo essa perspectiva nas sociedades ditas “civilizadas” o indivíduo é um súdito sujeito a uma força maior que rege suas vidas e nas sociedades tribais, em contrapartida, pela ausência de um poder controlador todos se sentem no direito de guerrear.
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a busca da paz se faz necessária. Segundo estudos de Marshal Sahlins: “Aí residia o signo
maior da sabedoria tribal: a luta contra a guerra e a busca pela paz, consoante a experiência da
virtualidade da primeira”65. Desta forma se explica como as relações de parentesco
determinavam uma sólida estrutura social no seio das famílias constituídas nas senzalas.
Não podemos desprezar a função pacificadora e organizadora que as famílias de
escravos exerciam no próprio ambiente da senzala, mesmo quando submetidas aos processos
de partilhas em decorrência da morte do senhor ou proprietário de escravos. Conscientes da
importância da família para a manutenção de uma relativa paz na senzala, sua integridade era
considerada no ato da partilha dos bens entre seus herdeiros. Como demonstra os dados
levantados na pesquisa realizada por Florentino e Góes, em torno da variação dos destinos das
famílias escravas no ato da partilha entre os herdeiros, por faixas de tamanho de plantel
(1790–1835), quase 90% das famílias encabeçadas por africanos permaneceram unidas. Esse,
sem a menor sombra de dúvida, é um dado impressionante que revela uma grande estabilidade
na manutenção das famílias escravas. A preocupação em manter coesa a família escrava, por
outro lado, evidencia alto nível de negociação entre escravos e senhores, cada qual utilizando
das forças políticas de que dispunham, buscando soluções racionais e ao mesmo tempo
produtivas, considerando-se os interesses dos senhores e a dilatação de pequenas liberdades
na perspectiva do cativo.
Robert Slenes concorda com alguns trabalhos da historiografia atual, principalmente a
que utiliza dos métodos da demografia histórica, no que se refere à quebra de antigos
paradigmas quanto ao suposto estado de total anomia dos escravos. Para ele, a constituição da
família de escravos nas grandes propriedades era a norma, e não a exceção, para grande
maioria de mulheres e crianças que buscavam a estabilidade e a segurança da vida familiar.
No entanto, Slenes, apesar de simpatizar com a temática desenvolvida por Florentino e Góes e
suas afirmações quanto à importância das famílias escravas na manutenção da paz nas
senzalas, se coloca em oposição às suas afirmações ao mesmo tempo em que levanta dúvidas
ao indagar: “Que paz pode reinar numa senzala habitada por parentelas, cujos membros têm
experiências, alianças e memórias radicalmente diferentes das de seus senhores?” 66. No
nosso entendimento, admitimos que Slenes está com a razão ao apontar suas dúvidas quanto à
65 Sahlins, Marshall. Lãs sociedades tribales. Barcelona: Labor, 1985. PP. 21-22. IN: Florentino, Manolo. Op. Cit. P. 32. 66 Slenes, Robert. Família escrava e trabalho. Artigo publicado na Revista Tempo (Departamento de história da UFF), vol. 3, número 6 de dezembro de 1998.
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suposta paz entre a senzala e a casa grande. Não obstante, torna-se improdutivo desconsiderar
a hipótese muito razoável de que, no limite do possível, a família contribuiu para uma relativa
paz, no interior da senzala e este fato com certeza ameniza as relações entre escravos e
senhores.
As cartas de alforria, objeto de estudos recentes e inovadores, que antes se supunha
como um ato de bondade do senhor ou do proprietário de escravos está sendo retomada,
enquanto fonte de pesquisa, em oposição aos aspectos humanitários que lhes eram atribuídas.
Estudos reveladores comprovam que na Bahia, entre os anos de 1684 e 1850, cerca de metade
das cartas de alforria eram compradas pelos escravos67. Uma parte expressiva da população
escrava soube operar os códigos da economia de mercado. Segundo Silva, “Com efeito,
alguns escravos puderam, à custa de duro empenho, acumular o capital necessário para retirar-
se, enquanto pessoa, do rol dos instrumentos de produção”68. Evidentemente, as alforrias
conquistadas foram antes de tudo o resultado laborioso de uma feliz negociação do cativo
com o sistema, que com habilidade, paciência e determinação soube se apropriar de tudo que
estava à sua mão, dentro do limite a ele imposto, conquistando, cotidianamente, os recursos
que lhe propiciaria como aconteceu, sua tão sonhada liberdade. Outras formas mais sutis
foram utilizadas também no processo de negociação da alforria. No entanto, nenhuma fora
mais expressiva e reveladora que as fugas e insurreições tendo como ápice destas ações as
formações de quilombos, assunto que será tratado pormenorizadamente no item que trata
desta temática intitulado “Escravidão no Mata Cavalo”, ainda neste capítulo.
Longe de se constituírem, ou de se perceberem, como peças do complexo sistema da
escravidão, os homens e mulheres no cativeiro criaram, na medida do possível, as condições
de suas próprias vidas. Situando-se numa posição intermediária entre a anomia completa e a
agressividade, que se pretendia naturalizada, os escravos souberam negociar, com
engenhosidade, os seus espaços de relativa liberdade no interior de um sistema perverso de
dominação. Na convergência dos interesses, a negociação se processava ora de forma
violenta, ora nos moldes dos ajustes e acertos, pois à luz do pensamento racional, o sistema
representado pela escravidão racial nada mais era que um jogo de interesses, onde a economia
de mercado marcava o compasso e o ritmo de sua própria dinâmica interna. Desta forma,
67 Silva cita os trabalhos inovadores de Kátia Mattoso e Stuart Schwartz e suas pesquisas com as cartas de liberdade na Bahia. 68 Silva, Eduardo. Op. Cit. p. 17.
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senhor e escravo convergia-se em empresa e mercadoria concomitantemente, cujas ações
obedeciam ao fluxo e refluxo do próprio mercado que os regulavam. No entanto, ao escravo
que negociava sua própria forma de vida, a condição que o sistema a ele ofereceu, o “não-
ser”, transmutou-se em “ser consciente de si” criando os elementos vitais que lhe possibilitou
a circunstância fundamental de ator e autor de sua história.
2.4 Escravidão em Mato Grosso
Temática recentemente explorada pela historiografia mato-grossense, a escravidão é
uma questão ainda aberta nos meios acadêmicos neste Estado. Não constitui nenhuma
novidade apontar os Estados da Bahia e Rio de Janeiro como pólos privilegiados na produção
e estudos historiográficos acerca da escravidão racial da era moderna em terras brasileiras.
Talvez a própria historicidade destas regiões, profundamente influenciadas pela cultura e
pelas sociedades negras, que ali se estabeleceram em função do regime de opressão a que
foram submetidas, nortearam os trabalhos acadêmicos voltados à questão da escravidão de
modo geral. Possivelmente, o interesse nesses trabalhos conforma a cultura de uma
população caracteristicamente miscigenada e influenciada pelos movimentos negros, tendo
por conseqüência um adiantado estado de consciência relativa à negritude, como conceito e
como modo de vida. Não obstante, vale salientar que a alta miscigenação também está
presente em grande maioria dos Estados brasileiros, o que nos leva a questionar os motivos e
as razões da falta de interesse no resgate da história dos africanos no Brasil.
Entendemos a importância de se empreender reformulações epistemológicas no que se
refere à produção de trabalhos que busquem a compreensão das formas com as quais os
escravos, em terras mato-grossenses, negociaram suas condições próprias de vida, no interior
do regime da escravidão e na pós-abolição. Luiza Rios Ricci Volpato representa essa
inovação, ao perceber o cotidiano dos escravos para além do senso comum. Segundo ela, “a
vida do escravo era mais dinâmica que o simples cumprir ordens, trabalhando durante o dia e
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descansando à noite, numa sucessão de atos despersonalizados, executados pelo indivíduo
desprovido de vontade e iniciativas próprias”69.
Parafraseando Jaime Pinsky, torna-se profícuo entender que a herança social, cultural
e também política da escravidão ainda são fatores que determinam a mediação das nossas
relações na sociedade como um todo, principalmente quando influencia distinções
hierárquicas entre trabalho manual e intelectual e, também, quando alimenta preconceitos e
discriminações raciais. Para ele, “a escravidão não é apenas uma ‘instituição histórica’ ou um
‘modo de produção’, mas uma maneira de relacionamento entre seres humanos”.70
Compreender nossa sociedade nos dias atuais torna-se um exercício altamente complexo, se
não levarmos em consideração que esta mesma sociedade é resultado direto da dinâmica da
escravidão racial e tudo que ela representou de rupturas, transformações e continuidades.
Concordamos plenamente com Jaime Pinsky e o seu entendimento quanto à herança
social, cultural e política da escravidão como fatores que influenciam, sobremaneira, o nosso
pensamento e nossas ações enquanto membros de uma sociedade exclusivista por natureza.
Sim! Um paradoxo. Tendo como parâmetro a comunidade do Mata Cavalo, tema de nossas
pesquisas, e seu relacionamento com os grupos sociais no seu entorno torna-se, de certo
modo, compreensível a própria dinâmica das práticas racistas observadas nos depoimentos e
nas entrevistas com seus membros. Muito presente no cotidiano dessa gente, o preconceito
racial manifestado de diversas maneiras conforma, em larga medida, o próprio modo de vida
desses remanescentes. Não se trata aqui da questão de “vitimização” perigosa em si mesmo,
pois, como sabemos, coloca a pessoa numa posição subalterna nada produtiva. O que importa
para essa pesquisa é exatamente a posição contrária, os mecanismos de defesa e auto-
afirmação no mundo por onde transitam. Esta predisposição ao enfrentamento natural em
confronto às ações pautadas no preconceito, dinamiza, de forma ativa, o próprio processo da
manutenção da identidade do grupo, dotando-o de personalidade própria e permitindo sua
posição enquanto ator de sua história.
Segundo Israel de Faria Figueiredo, a escravidão em Mato Grosso foi caracterizada
pelo preconceito e pela violência. Em sua argumentação, aponta como um dos primeiros atos
oficiais do Governador e Capitão-general da Capitania de Mato Grosso, Antonio Rolim de
69 Volpato, Luíza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850 / 1888. – São Paulo: Editora Marco Zero; Cuiabá, MT: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1993. P. 11. 70 Pinsky, Jaime. Escravidão no Brasil. – São Paulo: Contexto, 2006. P. 7.
36
Moura, as medidas relativas às formas de punição a serem aplicadas aos escravos foragidos,
bem como os valores a serem pagos por suas capturas, em perfeita sintonia com os interesses
da elite governamental e os “homens-bons” desta Capitania. Obviamente, os objetivos na
recaptura dos escravos foragidos eram econômicos e ideológicos, já que se tratava de uma
mercadoria valiosa e fundamental para o funcionamento das minas de ouro, principal fonte de
renda à época, tanto que “era voz corrente que não haveria ouro sem o concurso da mão de
obra escrava”.71 Por outro lado, permitir que um escravo fuja sem que se envidem esforços na
sua recaptura poderia abrir precedentes perigosos, principalmente se considerarmos o poder
da influência desse ato de rebeldia sobre os outros escravos.
De acordo com o Regimento dos Capitães do Mato, redigido em 12 de Dezembro de
1755, os pagamentos realizados a esses, pela captura de escravos foragidos, eram realizados
em oitavas de ouro e os valores variavam em função da distância entre o local da captura e a
cidade de Vila Bela. O aspecto da doutrinação dos escravos, nas bases do terror e da
violência, fica explícito no próprio regimento que estipulava a recompensa equivalente a
quatro oitavas de ouro pela cabeça decepada do escravo: “de acordo com o Regimento, esse
procedimento macabro era necessário para servir de exemplo aos demais”.72 Figueiredo
aponta também as condições insalubres e a carência na alimentação destinada aos escravos,
sendo que para cada um era destinada uma quarta de milho e, em alguns casos, dois pratos de
feijão, ambos in natura cabendo a eles prepararem seus alimentos acrescentando, na medida
do possível, alguns peixes e animais encontrados na região. Figueiredo faz uma breve citação
das “negras de tabuleiro” que vendiam produtos manufaturados, comidas e bebidas nos locais
das minas de ouro. Essa é como entendemos, uma prática que denota um grau elevado de
resistência ao próprio regime, uma negociação em alto nível que merece um exame
pormenorizado.
Com a implementação de atividades no comércio e na produção de alimentos em
função da mineração na região de Cuiabá, assim como em outras regiões, verificou-se a
presença ostensiva do escravo em diversas atividades ocupacionais, tais como no comércio e
prestação de serviços diversos. Via de regra, essas práticas comerciais possibilitaram a esses
trabalhadores informais a acumulação de capital excedente que, normalmente, era utilizado
71Figueiredo, Israel Faria de. Rolim de Moura e a escravidão em Mato Grosso: preconceito e violência – 1751 – 1765. IN: Revista Territórios e Fronteiras – Programa de Pós-graduação em História – UFMT, Vol. 2 – No. 2 – Jul./Dez. 2001. p. 44. 72 Figueiredo, Israel Faria de. Op. Cit. P. 45.
37
para a compra do seu bem mais importante: a liberdade. Para Silva, a grande massa de
população africana que foi traficada para a colônia portuguesa “não pode ser analisada apenas
como ‘força de trabalho’ e, por isso, muitos historiadores hoje procuram discernir os
caminhos, nem simples nem óbvios, através dos quais os escravos fizeram história.”73 Nas
trilhas percorridas pelos escravos sempre houve, isso é essencial, o exercício de vontades,
delimitando seus espaços de atuações consentidas e até conquistadas por força de
negociações, resistências e, no limite, pelos conflitos inerentes à própria dinâmica do
confronto de interesses entre estes e seus senhores. Torna-se óbvio perceber que eles foram
hábeis em conquistar seus lugares no interior do regime, onde pudessem da melhor forma
possível não apenas sobreviver, mas, sim, viver.
Eduardo França Paiva chama nossa atenção para o fato das mulheres negras e mestiças
participarem ativamente do universo econômico compreendido pelas regiões mineradoras em
Minas Gerais. Segundo ele, essas escravas, e também forras, conhecidas como negras de
tabuleiro circulavam com relativa liberdade pelos locais onde se exploravam metais preciosos
“com seus tabuleiros repletos de quitandas e plenos de outras intenções”.74 A sugestiva
expressão “outras intenções” utilizada pelo autor revela maneiras diversas, sofisticadas e
engenhosas, utilizadas por essas mulheres que criavam, com astúcia e coragem, os modos
com os quais interagiam na economia e no cotidiano dessas regiões, estabelecendo “redes de
informação, de solidariedade, de intrigas e se transformaram em poderosas mediadoras
culturais.”75 A presença do trabalhador escravo nos centros urbanos constituía-se na força
motriz responsável pelo seu funcionamento, em um nível de interação que, provavelmente,
seria inconcebível pensar as cidades sem o concurso da mão de obra escrava, naquele período
da história. Trabalhadores especializados, os africanos desempenhavam os mais diversos tipos
de trabalhos nos centros urbanos. Entre eles, destacamos os carregadores, carpinteiros,
estivadores, pedreiros, pintores, marinheiros, sapateiros, canoeiros, cocheiros, carroceiros,
alfaiates, costureiros, parteiras, bordadeiras e até enfermeiras. Na cidade de Cuiabá, por
exemplo, os escravos eram responsáveis pelo transporte de água potável das fontes públicas
para os banheiros e cozinhas das casas e sobrados. Nada pode ser mais representativo da
73 Silva, Eduardo. Op. Cit. P. 13. 74 Paiva, Eduardo França. Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo Mundo. IN: Paiva, Eduardo França & Anastásia, Carla Maria Junho. (Orgs.) O Trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH – UFMG, 2002. PP. 187-207. 75 Id. Ibidem.
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atuação dos escravos que as conquistas políticas e sociais representada pela construção da
Igreja do Rosário em Cuiabá, uma igreja voltada para a comunidade escrava.
Longe de ser obra do acaso, os meios urbanos na América Portuguesa seguiam
padrões que atendiam à dinâmica própria do seu absolutismo, com obras e projetos que se
adaptavam a quaisquer formas de áreas geográficas. Embora alguns autores afirmem o caráter
aleatório na constituição das cidades coloniais, pesquisas recentes demonstram exatamente o
contrário. Segundo Silva, “A estruturação dos ambientes urbanos coloniais foi regulada por
leis, instituindo-se mecanismos de controle do espaço e do comportamento, fato notado com
clareza quando se observam as irmandades regulamentadas pela Igreja”.76 Obviamente, como
bem destaca Silva, a construção de igrejas consistia no maior símbolo de dominação e
conquista, uma forma eficiente de transmissão de padrões da cultura européia, da qual se
originava. Em 1722, foi erguida a igreja do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, um espaço de
“brancos”, por excelência, expressões do sagrado e do poder político constituído. Numa
citação a José Barbosa de Sá, essa autora observa que, neste mesmo ano, as comunidades
negras do arraial do Cuiabá conseguiram o direito a um espaço onde pudessem manifestar sua
religiosidade, “conseqüentemente levantaram os pretos uma capelinha a São Benedito, junto
ao lugar chamado depois rua do sebo, que daí a poucos anos caiu e não se levantou mais”.77
Segundo conclusões da autora, pouco tempo após a capelinha ser demolida e numa data que
ainda não foi precisada pelos pesquisadores – falta de documentos de comprovação – a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário foi anexada pela população negra do arraial que, a partir dessa
data desconhecida tornou-se o local sagrado para os africanos e seus descendentes nesta
região.
Para uma sociedade predominantemente católica como a do Mata Cavalo, nos locais
onde a Igreja Católica, enquanto instituição, não se encontra presente, as manifestações de sua
fé, os cultos e os rituais religiosos são orientadas pelos próprios membros de seu grupo. Este é
o caso, para citar um exemplo, das rezas e cerimônias de curas realizadas, semanalmente, na
casa de uma das famílias de remanescentes desse quilombo que moram no Bairro Ribeirão da
Ponte, em Cuiabá – MT. De certo modo, o líder religioso nestes locais sacralizados pela fé
ocupa a posição de “capelão”, estando encarregado de realizar liturgias, celebrações, cultos e
76 Silva, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmãos no poder: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751 -1819). Cuiabá, TM, 2001. P. 22. 77Sá, José Barbosa de. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso, de seus princípios até os presentes tempos. Cuiabá, 1795. IN: Silva, Cristiane do Santos. Op. Cit. P. 24.
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ritos, além de orientar pessoas e prescrever tratamentos para enfermidades diversas.
Normalmente, e esse é o caso aqui estudado, as práticas religiosas nesses locais evidenciam
certo hibridismo entre rituais católicos e aqueles referentes às religiões de matrizes africanas,
embora nem sempre as pessoas envolvidas o admitam com facilidade. De certa forma, para
além da questão do sincretismo, podemos por analogia considerar essas práticas,
profundamente arraigadas no imaginário afro-descendente desta comunidade, como um
catolicismo de novo tipo. Atendendo aos imperativos da fé adventícia representada pela Igreja
Católica, os homens e mulheres do Mata Cavalo transformaram a rigidez das estruturas e da
ritualística tradicional em algo mais familiar, mais próximo de sua própria realidade. Através
dessa perspectiva fica difícil falar em sincretismos, em fusão de doutrinas, pois o que se
percebe na prática é simples acomodação, uma readaptação como forma de melhor
entendimento da fé espontânea dessa gente simples acostumadas à vida comunal e ao labor da
terra.
Mesmo quando havia a ausência do espaço físico representado pela construção de
igrejas, outras formas tornavam possíveis as manifestações do sagrado, tão caras aos
coloniais. No arraial do Cuiabá, bem próximo da localidade onde ficava a capelinha de São
Benedito, um espaço do sagrado foi reterritorializado na forma de um Oratório público
edificado em 1740, na Rua Direita, de acordo com pesquisas do professor Carlos Alberto
Rosa, citado pela autora. Segundo ela, aquele local se identificava “com o espaço da oração e
da procura de graças, como a cura de doenças, fixando-se também como ponto de devoção
dos não brancos. Neste caso, servia para assegurar a crença religiosa em proteção aos negros,
em um local onde havia uma igreja.”78
Entendemos a existência dos espaços do sagrado, destinados aos escravos cativos e
forros, como a resultante da confrontação de interesses de ambos os lados, por analogia, entre
a senzala e a casa grande, revelando formas subjetivas de negociações, avanços e recuos,
conquistas e perdas. Eduardo Silva, como vimos acima, já havia apontado a importância da
religião para a pacificação dos escravos, uma forma muito eficiente de doutrinação ideológica
que, segundo se presumia à época, faria com que o escravo entendesse sua real condição na
colônia: sujeição e obediência absoluta ao regime. Não obstante, a realidade apontava para
outras possibilidades e o devir histórico revelou muito mais que passividade absoluta.
Senhores de sua própria vontade, como temos insistentemente apontado, os homens e
78 Silva, Cristiane dos Santos. Op. Cit. p. 28.
40
mulheres cativos construíram com imaginação seus modos de vida no interior do regime que
os oprimia.
Silva, em sua dissertação de mestrado, percebe o caráter do confronto de interesses no
cotidiano do arraial do Cuiabá. Segundo ela:
As práticas sócio-religiosas dos negros não se sobrepuseram às hierarquias existentes. Ao contrário, criaram situações conflitantes para os poderes instituídos, numa dinâmica interna muito diferente da idealizada. O discurso apresentado pelas autoridades indicava o que era certo para o corpo social, embora cada grupo social tivesse uma forma de viver o real, representando-o conforme sua necessidade e aproveitando-se do sistema religioso instituído para conseguir privilégios. 79
Assim como os escravos de ganho que utilizavam, com habilidade, os espaços de
sociabilidade para conseguir uma relativa liberdade, a grande maioria, e essa parece ser uma
suposição muito razoável, dos escravos cativos e forros que se ligavam às irmandades
religiosas o faziam em busca de compensações de ordem espiritual e, sobretudo, utilizando-se
da mobilidade conseguida, de conquistas políticas e sociais dentro do regime da escravidão.
Minimamente, os espaços, que de alguma forma eram consentidos pelos poderes coloniais
constituídos, se traduziam na acomodação das práticas do sagrado de origem africana. Com
sutileza e imaginação resistiam, na medida do possível, à sujeição completa, ao estado de
mero instrumento do regime que os escravizavam. Por outro lado, também, longe da
inocência pueril da crença na benevolência dos senhores do regime, a astúcia e racionalidade
dos proprietários de escravos, e de todos que deles se beneficiavam, evidenciavam um
elevado nível de negociação pacífica ou conflituosa, dependendo do contexto e do momento,
com os escravos. No limite, o mínimo que se podia esperar do regime, que se expressou com
extrema eficiência, era tirar o maior proveito possível da mão de obra escrava, mantendo ao
mesmo tempo um nível de segurança ideal. Considerando essas perspectivas, a negociação era
o único caminho viável para ambos os lados, escravos e senhores construíram no cotidiano
difícil da colônia seus espaços de atuação e de vida.
79 Silva, Cristiane dos Santos. Op. Cit.. P. 5
41
2.5 Escravidão no Mata Cavalo
Atualmente, em algumas comunidades do “Atlântico negro”, conforme o entende Paul
Gilroy, percebe-se o esforço na busca de uma suposta identidade africana como forma de
elaboração da condição de ser-no-mundo, em resposta às pressões advindas dos processos de
racialização da era moderna. Embora concebida a partir da experiência da escravidão racial, a
memória reconstruída por essas comunidades sofre influência, entre outros, do movimento
pan-africanista desenvolvido a partir do etiopianismo de Marcus Garvey80. No bojo dessas
transformações, tudo que se relacionava ao terror racial foi silenciado no movimento da
história negra que buscava, pelas vias do imaginário, uma nova concepção de identidade
étnica centrada não mais na experiência escrava, mas sim no esplendor da civilização do vale
do rio Nilo. O Faraó do Egito substituiu Moisés e o que ele representava para o êxodo bíblico
com o qual essas comunidades se identificavam. Para os representantes do Mata Cavalo a
idealização de uma África ancestral pouco significa, a não ser para os mais jovens ou aqueles
que de alguma forma estão vinculados aos movimentos negros naquela região. Na maioria dos
depoimentos orais, colhidos ao longo da pesquisa de campo, percebe-se a ênfase da memória
centrada no período de escravidão a que seus antepassados foram submetidos.
Obviamente, a memória da escravidão vincula-se com a memória dos primeiros
africanos que aqui chegaram. Dessa forma, pensar sobre a escravidão racial remete-nos ao
universo compreendido pela experiência do deslocamento, dor, exílio e perda. O conceito
diáspora se enquadra perfeitamente à memória construída a partir dela, e por ela,
possibilitando a elaboração do processo de uma nova identidade marcada por transformações
profundas.
Selecionando elementos a partir da memória coletiva da escravidão, os homens e
mulheres do Mata Cavalo recriam, num processo bastante dinâmico e constante, seus espaços
reterritorializados em função da manutenção de uma identidade que se deseja singular, o ser
negro. De forma inicial, podemos apontar algumas especificidades sócio-culturais que
possibilitam a formação de tal memória. Entre elas, a tradição configura-se como vetor
80 Na revolução cultural e política desenvolvida pelos Rastafáris na Jamaica, a Etiópia constituiu-se no local privilegiado para acolher os negros dispersos pela escravidão racial. Foi na base desse clássico etiopianismo que o movimento de “volta à África” liderado por Marcus Garvey entrou para a história e para o imaginário dos africanos dispersados pela diáspora negra.
42
principal nas práticas culturais ligadas, de alguma forma, aos processos de elaboração de
identidades negras. As festas e as manifestações religiosas são, também, fundamentais nesse
processo. Exatamente nessas ocasiões festivas é que ocorrem as trocas culturais, simbólicas e
imaginárias, consolidando os elos da cadeia de reciprocidade entre seus representantes, tais
como as relações de compadrio, os casamentos e as alianças políticas no seu interior81. Essas
práticas resultam, portanto, da tradição herdada das senzalas, por assim dizer, as quais
revelavam mecanismos surpreendentes de resistência ao regime escravocrata, por um lado, e
de adaptação a esse sistema num processo contínuo de negociação, por outro. Fator este que
era preponderante na balança das relações escravo/senhor, que buscavam cada qual, da
melhor maneira possível, delimitar seus espaços de atuação na empresa do regime da
escravidão.
No ambiente político instável das lutas e disputas no Mata Cavalo, a terra encontra-se
no vértice dos interesses de ambos os lados. Historicamente, aquele pedaço de chão pertence
aos herdeiros da Sesmaria Boa Vida, mas essa condição não alivia e nem garante o fim do
impasse que dura bem mais de um século. Nesse contexto turbulento a tradição mantida e por
vezes até recuperada permite o espaço de sociabilidade, da alegria e da coesão do grupo, ao
mesmo tempo em que se constitui em instrumento simbólico de alta relevância na própria
constituição da identidade afro-referenciada que, possivelmente, garantirá pelas vias
jurídicas82 a legitimação da propriedade daquelas terras.
2.6 Remanescentes de quilombo: conceitos
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos
títulos”. Este é o texto constante no Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Falar de quilombos no século XXI
pode causar certo estranhamento ao leitor pouco informado quanto aos movimentos da
81 Exemplo dessas alianças políticas são as inúmeras associações que existem hoje no Mata Cavalo, o que por um lado reforça tais elos de solidariedade entre os grupos pertencentes a elas ao mesmo tempo em que coloca em risco a unidade do Quilombo como um todo, por outro. Esta questão será retomada no fechamento desta dissertação. 82 Referimos-nos aqui à questão quilombola, tema que será debatido no terceiro capítulo desta.
43
história dos negros vindos da África para o Brasil, em função da escravidão racial da era
moderna. Pretende-se aqui, inicialmente, elucidar ao menos de forma um tanto empírica a
transição do conceito “quilombos” para “remanescentes de quilombos”.
De acordo com alguns manuais de história do Brasil, a noção de quilombo de imediato
remete à idéia, um tanto equivocada, de espaço de isolamento em local longínquo e de difícil
acesso, utilizado pelos escravos que se rebelaram contra o sistema vigente, procurando um
lugar onde pudessem viver de forma livre e autônoma durante, e somente, no período
compreendido pela escravidão no Brasil.
Kilombo (Quilombo em português) é uma palavra de origem Bantu. Sua presença no
Brasil certamente tem a ver com alguns segmentos desses povos que foram trazidos a bordo
dos navios negreiros na condição degradante de escravos. “A história do quilombo como a
dos povos Bantu é uma história que envolveu povos de regiões diferentes entre o Zaire e
Angola.”83. Como sabemos, a tradição oral, ainda nos dias de hoje, constitui a principal fonte
de informação em grande parte do Continente Africano. É exatamente a partir dessa tradição
que Kabengele Munanga busca suas fontes historiográficas para reconstituir a origem
histórica do quilombo nas tribos Bantu. Foi através de uma vertente mitológica que a tradição
oral situou a gênese dessa instituição no império Luba, localizado entre o centro e o sudeste
do atual Zaire, em finais do século XVI, governado por Kalala Llunga Mbidi. De acordo com
o mito, o príncipe Lunda Kinguli, irmão da rainha Rweej que casara com Kimbinda Llinga,
um dos filhos de Mbidi, aliou-se aos poderosos bandos Jaga cujos guerreiros dominavam
aquela região antes de sua chegada. Segundo esse autor:
Kinguli e seu exército formado pelos Lunda e aliados Jaga adotaram o quilombo e formaram um exército mais poderoso constituído de bandos de guerreiros nômades conhecidos como Imbangala. Tiveram a capacidade de espalhar-se por toda a região Mbundu depois de 1610 e finalmente se estabeleceram para fundar novos estados Mbundu (Kalandula, Kabuku, Matanda, Holo, Kasanje, Muwa Ndonge, etc.).84
83 Munanga, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. São Paulo: Revista USP, edição Dezembro/Fevereiro 1995-96. Pp. 56-63. P. 58.
84 Munanga, Kabengele. Op. Cit. P. 60.
44
A sociedade guerreira, representada pelo quilombo, propiciou ao exército de Kinguli a
estabilidade centrada numa estrutura bastante dinâmica, sólida e perfeitamente capaz de
abrigar no seu interior uma quantidade expressiva de pessoas que pertenciam às linhagens
derrotadas nos campos de batalha que, assimiladas, passavam a desconsiderar suas próprias
origens étnicas. Outra característica marcante do quilombo consistia na disciplina militar
extremamente rígida que era imposta aos seus homens, criando, dessa forma, uma força capaz
de derrotar os reinos que se opunham à sua marcha rumo ao norte e ao oeste de Kwanza.
Numa análise do mito do quilombo no império Luba, Munanga conclui que: “A palavra
quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos sem distinção de
filiação a qualquer linhagem”85. Embora localizados em contextos históricos singulares, a
conformação dos quilombos tradicionais no Brasil assemelhava-se ao seu equivalente africano
quanto à questão sensível da segurança: ambos constituíam, na maioria dos casos, forças
militares para sua sobrevivência. Obviamente, no Brasil os habitantes dos quilombos
adotavam táticas de resistência e defesa de território, ao passo que para os povos nômades dos
atuais Zaire e Angola, essas instituições representavam forças de expansão e conquistas
territoriais, bem como de poderio bélico contra tribos rivais.
O tema relacionado às comunidades negras descendentes de escravos no Brasil
assume lugar privilegiado nos debates tanto nas academias quanto fora delas no pós 1988,
ano da promulgação da nossa atual Carta Magna. No esforço de trabalhar com uma
conceituação adequada que seria aplicada a essas comunidades, a Associação Brasileira de
Antropologia (ABA) divulgou um documento que possibilitou a definição do termo
“remanescente de quilombo”, utilizado então para designar as comunidades em questão.
Segundo tal documento:
Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.
85 Id. Ibidem.
45
Fundamentalmente, os antropólogos envolvidos nessa pesquisa perceberam que no
Brasil as constituições dos quilombos obedeceram às dinâmicas muito diversificadas que de
longe superaram a questão simplista do espaço de fuga, de distanciamento. Segundo suas
conclusões, no Brasil os quilombos representaram os processos de fugas com ocupação de
terras livres isoladas ou não, heranças, doações, recebimento de terras como pagamento de
serviços prestados ao Estado, permanência em locais distintos dentro das próprias
propriedades onde trabalhavam os escravos e, também, através da simples compra por parte
daqueles que se interessavam por suas terras.
Desta forma, isolamento e fuga deixaram de caracterizar o quilombo, sendo antes, um
lugar privilegiado de manifestação da resistência e da afirmação de autonomia própria,
definindo-o a priori como um movimento de transição de um sistema de escravidão para a
liberdade, da condição de escravo ao trabalhador livre. Portanto, definir uma comunidade de
remanescentes de quilombo já não depende da existência de provas de um passado marcado
por rebeliões e isolamentos, e sim da sua predisposição em se reconhecer como quilombola.
Trata-se de uma construção antes de tudo ideológica, uma auto-identificação étnica, no
sentido mais abrangente do termo, que não a reduz às questões simplistas de características
biológicas da comunidade, de fatores como cor de pele, para citar um exemplo, mas sim da
maneira como o grupo social define sua própria identidade. Nestes termos a identidade
cultural quilombola se relaciona a uma ancestralidade, elementos lingüísticos e religiosos
comuns.
2.7 A política dos “homens bons”
Historicamente, a [antiga] sesmaria denominada Boa-Vida, atual Comunidade de
remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, teve sua origem com a descoberta de ouro na
região onde hoje se encontra a cidade de Cuiabá. A partir do assentamento de doação do
imóvel da [antiga] sesmaria Boa Vida aos escravos de D. Ana da Silva Tavares, em 1883,
iniciaram-se, pelos interesses da elite rural dominante nesta região, as manobras políticas que
levariam ao início dos conflitos pela disputa desta terra. Como já dissemos anteriormente, a
46
questão da história agrária do Mata Cavalo será devidamente desenvolvida no capítulo II
dessa dissertação.
Como vimos nestes fragmentos da história desta comunidade, a origem do Mata
Cavalo repousa na ação judicial em forma de doação das terras da Sesmaria Boa Vida aos ex-
escravos de D. Anna da Silva Tavares. Apesar de este ato jurídico ser formal, como veremos
no capítulo seguinte, a legitimidade da propriedade das suas terras não foi reconhecida pela
elite agrária daquela região, originando dessa forma, a disputa litigiosa que perdura até aos
dias atuais. No entanto, nessa história já conturbada pela violência e incertezas outros fatores
aumentaram a tensão no interior da comunidade aqui estudada.
O acirramento da disputa pela posse das terras do Mata Cavalo ocorreu em
conseqüência das políticas expansionistas do Governo Vargas – movimento que ficou
conhecido como “Marcha para o Oeste”86 – o que provocou uma supervalorização fundiária
em todo Centro Oeste brasileiro. No período compreendido entre o surgimento dessa
comunidade e os anos 1930, a permanência dos descendentes dos escravos naquela região era
tolerada, por assim dizer, em função do baixo valor atribuído àquelas terras e, também, pelas
relações de mútuos interesses entre esses e os fazendeiros que fixaram residência nas
localidades próximas àquela área. Não obstante o reconhecimento, de parte da elite agrária no
entorno da área do Mata Cavalo, de que as terras haviam sido repassadas a eles em forma de
doação espontânea, as intrigas e o estado de beligerância já haviam se instalado em suas vidas
de forma inexorável. Por contingências de ordem financeira, boa parte dos habitantes daquele
Quilombo se empregava nas fazendas circunvizinhas em troca de irrisórios salários que, no
entanto constituíam na única forma de sua subsistência. Em toda relação social, de acordo
com o senso comum, há uma troca de interesses, e no caso do Mata Cavalo esse debate se
tornaria infecundo se não levássemos em conta que o poder também está nas mãos dos
dominados. Entretanto, tal pensamento acerca dessas relações sociais não se constitui em
tentativa de redução, perigosa em si mesma, das tensões provocadas pelo confronto nas
relações de dominação, uma espécie de diluição do conflito. Para Gomes, “Essa é uma
tentativa de sofisticar o tratamento dado às relações de dominação, ampliando seu escopo, até
86 Para maiores detalhes acerca do tema “A marcha para o oeste” consultar a obra: LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1986.
47
para evidenciar que, em certas circunstâncias, pode haver convergência de interesses entre
dominantes e dominados, pode haver negociação, pode haver pacto político”87.
Com a valorização das terras, o aumento da violência se tornara inevitável, e em
meados do século XX os legítimos herdeiros da [antiga] Sesmaria Boa Vida se viram diante
de uma situação delicada entre ficar e enfrentar todos os reveses oriundos do confronto com
seus opositores, ou abandonar as suas terras, o que equivaleria perder também suas esperanças
em um futuro melhor. De todas as famílias que viviam no Mata Cavalo, apenas uma pequena
parte delas não saiu da região, tornando-se pelas vias dolorosas do conflito e da conflitividade
os protagonistas de uma história peculiar88.
A situação se torna tensa para a população do Mata Cavalo. Aos poucos partes das
terras foram compradas pelos grandes fazendeiros da região, muitas vezes a preços irrisórios,
de acordo com depoimentos orais colhidos ao longo de nossa pesquisa de campo. Ainda de
acordo com esses depoimentos orais outras partes foram griladas em contextos violentos sob a
ação de jagunços e pistoleiros contratados por alguns representantes dessa elite agrária. Essas
ações desenvolvidas pelos representantes da elite dominante na região, em meados do século
XX, contra os remanescentes do Mata Cavalo se apresentam de forma quase natural, perante
uma sociedade que ainda carrega os traços históricos muito recentes da política oligárquica do
Coronelismo no Brasil. As famílias dos remanescentes que permaneceram naquela região
ainda lutam por sua permanência no lugar onde seus ancestrais deitaram as suas raízes,
fazendo dele o lugar sagrado da memória, que a partir das senzalas sobrevivem às intempéries
do tempo, conformando pelas vias da cultura um modo de vida marcado pelos ideais da
resistência. Em finais do século XX, uma nova possibilidade de ação foi disponibilizada para
o grupo, não sem provocar inúmeras controvérsias e dissensões entre grupos da própria
comunidade, como veremos na seqüência.
87 GOMES, Ângela de Castro. História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões. IN: Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história / organizadoras Rachel Soihet, Maria Fernanda B. Bicalho e Maria de Fátima S. Gouvêa. Rio de Janeiro: Ed. Mauad, 2005. P. 26. 88 Referimo-nos a um pequeno grupo de famílias em sua maioria componentes da comunidade do Mutuca, que sob a liderança de Rosa Domingas de Jesus enfrentaram, sob duras penas, com determinação e coragem, seu próprio destino fazendo daquela pequena parte do Quilombo um bastião da resistência negra. Retomaremos o comovente protagonismo desses remanescentes no terceiro capítulo desta.
48
2.8 No centenário da abolição, novas possibilidades.
No bojo das comemorações do Centenário da Abolição e, também, em resposta às
pressões advindas dos movimentos negros no país, o Governo Federal dá início aos projetos
de políticas públicas possibilitando às comunidades tradicionais negras, o resgate das dívidas
históricas contraídas em função do longo período da escravidão racial no Brasil. O Artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) possibilitou uma nova
configuração de ordem jurídica bastante expressiva, que poderá, ao menos teoricamente,
legitimar a propriedade das terras do Mata Cavalo. Recentemente, o Procurador da Fazenda
Nacional e Assessor Especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da
Presidência da República, Cláudio Teixeira da Silva, num artigo levado a público na Revista
Eletrônica do Planalto89 levantou uma questão fundamental relacionada ao Artigo 68 da
ADCT, que segundo sua interpretação constitui-se numa forma jurídica de “usucapião
singular disciplinado”. Para ele o termo empregado neste texto jurídico “remanescente das
comunidades dos quilombos” sofre uma redução perigosa, pois contempla com o título da
propriedade da área em questão somente os remanescentes dos escravos que ocupavam
efetivamente as suas terras no período compreendido entre 1888 e o dia 5 de outubro de 1988,
data da promulgação da Constituição Federal. O Procurador atesta que não se trata de um
simples sistema jurídico de usucapião, segundo ele:
Ora, a aquisição da propriedade disciplinada no art. 68 do ADCT reúne esses dois elementos, porque o dispositivo, de um lado, reconhece a posse centenária, contínua e pacífica dos remanescentes sobre as terras dos quilombos (posse prolongada), e, de outro, atesta que eles a exercem com intenção de dono (posse qualificada). Pode-se afirmar, portanto, que essa norma constitucional, de fato, versa sobre espécie nova de usucapião.
Levantamos essa questão do direito de propriedade, nas formas de usucapião singular
disciplinado, por entendermos que essa condição reflete possíveis mudanças na vida e nos
destinos de muitos dos moradores do Mata Cavalo. Como já foi dito, apenas uma pequena
parte de mais de quatrocentas famílias daquela região permaneceram no próprio local entre os
89 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_28/artigos/Art_Claudio.htm , acesso em 20 de Abril de 2010.
49
anos de 1888 e 1988, condição essa que lhes conferem o direito inalienável à sua propriedade.
No entanto, de acordo com levantamento do INCRA, cerca de 350 famílias compõem o Mata
Cavalo como um todo nos dias atuais. Entre essas a maioria composta pelos que retornaram
ás suas terras, também legítimos herdeiros dos antigos escravos da Sesmaria Boa Vida,
pleiteiam seus direitos à terra. A questão quilombola, um dos prováveis caminhos para o
deslinde dessa delicada questão, mas que também entra em choque com o protagonismo de
quem não saiu das terras, acrescentou um elemento novo aos ânimos exaltados de todos os
envolvidos no processo de habilitação da propriedade das terras deste quilombo, evidenciando
uma disputa doméstica entre descendentes dos herdeiros da Sesmaria Boa Vida.
Disputas internas à parte, a questão fundamental para a vida dos remanescentes do
Mata Cavalo é que as novas políticas públicas de inclusão social do Governo Federal abriram
uma possibilidade jurídica capaz de por fim, ao menos hipoteticamente, importante repetir, à
violência gerada pelo conflito fundiário que se arrasta por mais de um século. No entanto, a
simples caracterização jurídica do “usucapião singular disciplinado”, embora no caso do Mata
Cavalo muito bem explicitada, parece não ser suficiente para legitimar a propriedade tão
desejada por homens e mulheres cujos ancestrais entregaram seus corpos e suas almas ao
regime nefasto da escravidão racial. Prova disso é o complexo processo jurídico da cadeia
dominial do imóvel da Sesmaria Boa Vida, que pela nossa perspectiva, por si só, constitui
prova irrefutável da legitimidade desta propriedade a favor dos remanescentes do Mata
Cavalo. Este processo será minuciosamente detalhado no capítulo 2, a seguir. Considerando-
se os pressupostos da questão quilombola, torna-se tão necessário quanto essencial que a
comunidade seja caracterizada, em sua origem, como um agrupamento humano que se
enquadre nos moldes do conceito de quilombo fornecido pela ABA, como vimos
anteriormente. Assim, os aspectos de consolidação da identidade afro-referenciada
constituem-se nos elementos que poderá ou não conferir à comunidade do Mata Cavalo o
estatuto jurídico exigido como pré-requisito básico à legitimação da propriedade de suas
terras, ou seja, através de uma caracterização dos remanescentes como “quilombolas”.
50
2.9 Identidade quilombola
Como já foi dito anteriormente numa citação aos textos de Paul Gilroy, as culturas
desenvolvidas no circuito transatlântico - condicionadas ao sofrimento pela perda, dor e a
distância - criaram mecanismos de consolação, moldados em valores estéticos e simbólicos
construídos por intermédio da recordação, que entraram para a memória coletiva perpetuando-
se através das gerações. Assim, o mundo ancestral recriado pelas vias da imaginação coletiva
constitui patrimônio imaterial relevante para a manutenção do ethos90
e da identidade que
caracteriza um determinado grupo em sua singularidade.
A partir desses conceitos, quando somos desapropriados de nossas origens, criamos
mentalmente um espaço conceitual que entra para o imaginário coletivo como um lugar ideal
concebido a partir dos mecanismos da recordação, via de regra, transmitido pela tradição oral
entre as gerações. No mundo idealizado das comunidades do “Atlântico negro”, a África
desde o período da escravidão racial, constitui-se em fonte de inspiração para as culturas
negras. De acordo com Pinho:
A África da qual se fala aqui não é o imenso continente africano, que abriga dezenas de diferentes países e centenas de diferentes povos. É uma África que pode até ser muitas Áfricas, mas que permanece una. África que é tribal, vinculada ao passado e aos ancestrais, mas que seria sobretudo fiel aos seus descendentes, quer estes habitem ou não em suas terras, pois o que importa é que a África, possuindo a totalidade indivisível de um signo, resida no campo fértil e criativo dos imaginários afrodescendentes.91
O conceito de identidade étnica surgiu devido à crise de “pertencimento” e do esforço
em se consolidar enquanto indivíduo dotado de história num local em constante mudança,
recriando sua própria realidade ao nível da idéia. De acordo com Bauman “a identidade só
poderia ingressar na lebenswelt – conceito de vida no mundo humano na sua auto-definição e
experiência – como uma tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo, um dever e um
90 O termo ethos, emprestado da Antropologia, explica as características sociais e culturais comuns que se verificam em um grupo de indivíduos pertencentes a uma mesma sociedade. 91 PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia/ Patrícia de Santana Pinho – São Paulo : Annablume, 2004. P. 27.
51
ímpeto à ação”92. Para este notável sociólogo o conceito “identidade” relaciona-se com
processos dinâmicos altamente fluídos, constituindo-se não como um estado definido
metaforicamente como sólido, mas antes como a resultante de um estado social volátil e em
constante transformação. Em sua obra “Modernidade Líquida”, 2001, Bauman nos projeta no
interior de um mundo onde tudo é caracterizado pela ilusão, angústia, dor e insegurança em
conseqüência das condições próprias da vida em sociedade.
Conforme assevera Marcus Cruz, Doutor em História Social pela UFRJ, professor da
Universidade Federal de Mato Grosso, vivemos em um momento da história onde as
identidades são marcadas por um processo contínuo de mudanças sendo “constante e
permanentemente construídas, desconstruídas e reconstruídas”.93 Não se trata, evidentemente,
de uma coisa que existe anteriormente à uma determinada situação, um apriorismo, mas sim
de seu antípoda: resulta de uma “construção humana”, desta forma o conceito à elas aplicadas
relaciona-se diretamente “com a maneira com que os homens interagem com o mundo”.94
Numa análise da concepção de identidade do “sujeito sociológico”, encontrado no
livro “A identidade cultural pós-moderna”, de Stuart Hall, citado por Marcus Cruz,
percebemos a similaridade, no âmbito da filosofia, entre os conceitos trabalhados por Hall e a
condição do “ser quilombola” para os integrantes do Mata Cavalo, em oposição ao mundo
exterior ao quilombo onde vivem. Para quem a vida, sob as pressões constantes do cotidiano
de lutas, é continuamente marcada pela necessidade de se impor ao meio envolvente clivado
pela instabilidade, a identidade não resulta da suposta auto-suficiência, presente no interior do
sujeito que a desenvolve, como é o caso da identidade do “sujeito iluminista”, também
analisada por Hall.
“A identidade somente se torna uma questão quando está em crise”95, afirma Kobena
Mercer, também citado por Marcus Cruz. Ela só se processa subjetivamente na realidade do
vivido, quando a condição estável de ser-no-mundo, marcada pela coerência, é subitamente
desorganizada e desestabilizada em função de mudanças capazes de alterar significativamente
92 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 93 Cruz, Marcus. O ser cristão e o triunfo da igreja. Um estudo acerca das transformações da identidade do homem ocidental. Artigo apresentado ao XXIV Simpósio Nacional de História, da Associação Nacional de História – ANPUH, 2007. P. 1. 94 Cruz, Marcus. Op. Cit. P. 2. 95 Id. Ibidem.
52
essa mesma realidade. Desta forma, a identidade do “sujeito sociológico” segundo conclusões
do Professor Marcus Cruz é “formada a partir da relação com outras pessoas importantes para
ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos em
que o sujeito sociológico habitava”.96
É exatamente a partir do conceito de identidade do “sujeito sociológico” que
percorreremos os caminhos que possibilitarão legitimar nossa questão norteadora da formação
da identidade negra assentada nos conceitos da “terra” e da “memória escrava”. Estando esta
última, evidentemente, vinculada à memória da África, ou, das Áfricas idealizadas e/ou
imaginadas, que foram trazidas pelos escravos a bordo dos navios negreiros para o novo
mundo. Apesar de tratar-se de uma memória relacionada à terra natal de origem, na prática,
pelas características e dinâmicas da conformação da identidade em constante mudança, para
os descendentes dos ex-escravos da Sesmaria Boa Vida trata-se da memória, muito recente, de
seus pais, avós e bisavós, que dão sentido à realidade de suas vidas. Não se trata, portanto, de
reorganização de antigas formas identitárias, mas sim, como bem sintetizou Marcus Cruz, de
surgimentos de novas identidades. É no confronto entre o “nós”, que para eles se reveste da
condição de descendentes de escravos, e os “outros” com os quais negociam seus modos de
vidas, que a organização da identidade é processada na condição do “ser quilombola”. No
limite, significa uma identidade cultural capaz de operar, no campo da política, os códigos e
signos jurídicos que possibilitarão legitimar a propriedade de suas terras, ressalvando-se
obviamente seu caráter hipotético. No entanto retomamos aqui a centralidade que o conceito
“terra” possui para a própria existência do Mata Cavalo, constituindo-se no campo fértil da
realidade a sua própria gênese, posto que ao considerar-se a questão da doação das terras aos
ex-escravos, foi o próprio ato em si que permitiu a consolidação do quilombo. Neste caso o
processo se deu de forma invertida aos quilombos constituídos a partir dos espaços de fuga
onde os escravos se uniam em torno de um objetivo comum para depois acessar a terra, sendo
esta coadjuvante à formação do grupo tradicional, embora seu caráter intrinsecamente
essencial à sobrevivência dos seus moradores.
O modo peculiar de vida dos membros desta comunidade, seus costumes, as
manifestações do sagrado, as atividades lúdicas ligadas à vida comunitária, tradições herdadas
dos seus ancestrais, constituem o patrimônio cultural estruturado a partir da memória advinda
das senzalas, que foram repassadas oralmente de geração a geração. Retomamos aqui a
96 Id. Ibidem.
53
questão do sagrado por sua importante contribuição à constituição do sentimento de pertença,
nesse caso pertença a uma família, um grupo ou a uma irmandade, normalmente criadas em
torno das pressões pela sobrevivência cultural, e pela resistência natural gestada no âmbito da
exclusão social do meio envolvente de maioria branca e dominante. No caso específico do
Mata Cavalo essa questão não foge à regra. Olhando para um contexto maior, percebemos que
o sincretismo religioso no Brasil é muito significativo e isso se deve, em parte, à forma
diferenciada de catequese a que foram submetidos os africanos na colônia97. Como os
africanos na colônia já estavam ideologicamente submetidos ao regime da escravidão,
diferentes dos índios que receberam atenção especial dos padres Jesuítas, entenderam os
catequizadores que a eles bastariam uma forma simplificada de catequese:
Que espécie de catequese será ministrada aos escravos? Nada de muito exigente. Bastará um “catecismo abreviado” antes do batismo. Ao escravo boçal (recém-chegado) ou de língua desconhecida a instrução será ainda mais sumária; é batizado sem maiores problemas desde que saiba de memória as respostas corretas para estas perguntas: “Queres lavar a tua alma com água santa? Queres provar o sal de Deus? Jogas fora da tua alma todos os teus pecados? Não pecarás nunca mais? Queres ser filho de Deus? Jogas fora da tua alma o diabo?98
De acordo com Afonso Maria Ligorio Soares, assistente-doutor do departamento de
Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e membro do Grupo Atabaque de Teologia e
Cultura Negra, foi exatamente essa forma diferenciada, e notavelmente menos incisiva, de
catequese que permitiu a sobrevivência das religiões de matrizes africanas em solo brasileiro.
Nesta perspectiva, uma feliz vitória do acaso e da fortuna. Além disso, outro fator contribuiu
de forma decisiva à sobrevivência destes aspectos relevantes à cultura negra. Para sujeitar
97 Não poderíamos nos furtar à citação do livro “Ingênuo, pobres e católicos” escrito por Alfredo da Mota Menezes, uma crítica muito bem fundamentada acerca da visão com a qual somos vistos pelo senso comum da intelectualidade Norte Americana, para o qual toda a América Latina é nivelada em um bloco monolítico. Uma visão obviamente estereotipada, mas dotada de razão se consideradas o caráter da colonização profundamente marcada pela presença da Igreja Católica, que por sua vez sintonizava-se com os interesses de uma elite colonial abastada, dominada por fora dominante por dentro. Utilizamos esse exemplo para acentuar a perspectiva análoga com a qual os Jesuítas conduziram as práticas da catequese aos africanos e seus descendentes em terras brasileiras, induzindo-os à subserviência cega ao regime que os oprimia. Profundo paradoxo.
98 SOARES, Afonso Maria Ligorio. Sincretismo afro-católico no Brasil: Lições de um povo em exílio. São Paulo. Revista de Estudos da Religião. No. 3, 2002. PP. 45-75. p. 48.
54
ainda mais o escravo, as estruturas dominantes entenderam que havia necessidade da criação
de espaços de liberdade onde os negros pudessem expressar seus modos de vida:
Em igual medida, pode-se assinalar as “sociedades de diversão” aprovadas pelo governo da Bahia com o objetivo explícito de reavivar as diferenças étnicas entre os escravos. Assim, Igreja e Estado são coniventes na criação da seguinte situação, resumida por P. Verger nestes termos: Todos saíram satisfeitos: o governo por dividir e assim reinar melhor, assegurando a paz do Estado; os escravos por cantar e dançar; as divindades africanas por receber os louvores; os senhores por verem a sua gente com tanto sentimento católico.
Isso explica em larga medida o alto teor do sincretismo religioso verificado nas
comunidades negras do Brasil contemporâneo. No Mata Cavalo o culto a Santo Antonio e as
festas em sua homenagem evidenciam a presença de uma forte tradição herdada dos escravos,
seus ancestrais em terras mato-grossenses. Normalmente as rezas coletivas, nos dias de festas,
são intercaladas com cantorias e danças numa agenda que pode durar até três dias, iniciando
sempre numa sexta-feira e terminando no domingo subseqüente.
A Congada ou Dança de Congos, como é mais conhecida, uma manifestação folclórica
muito difundida em Mato Grosso, é de origem autenticamente africana. Normalmente
encenada nas comemorações festivas de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, seu
potencial estético expresso nas indumentárias coloridas (azul e vermelho), associadas à
utilização de espadas, remetem a uma simbologia muito forte de lutas entre dois potentados
africanos. De um lado a nação do Rei de Portugal, o dominador e de outro a nação do Rei
Congo, por analogia a África negra dominada. Dividida em duas partes bem distintas, a
cantiga, ou cortejo real, reflete os aspectos do bailado, e a embaixada representa a parte mais
dramática da dança. De acordo com Ferreira, “a embaixada como o próprio nome diz, se
constitui de grupos de representantes dos dois reis e geralmente com mensagens de guerra.
[...] O motivo fundamental desta segunda parte da dança é a louvação a São Benedito”99. No
Mata Cavalo, apesar de grande maioria de seus habitantes serem católicos praticantes, não
resta sombra de dúvida que a presença da tradição religiosa herdada dos escravos, seus
99 FERREIRA, João Carlos Vicente. “Mato Grosso e Seus Municípios”. Cuiabá: Secretaria de Estado da Educação, 2001. P. 212.
55
antepassados, integra o cotejo, pelas vias do sagrado, aos seus santos de devoção, interferindo
dinamicamente na composição de uma forma específica de identidade.
Notamos nas falas de vários dos entrevistados em nossa pesquisa uma grande
preocupação com a identidade negra. Entendemos esse esforço coletivo em duplo sentido. De
um lado a ligação idealizada com suas raízes Africanas, através da assimilação da memória de
seus ascendentes, em sua grande maioria escravos que trabalhavam nas dependências da
Sesmaria Boa Vida. Essa dinâmica da construção idealizada de um tipo de africanização pelas
vias da recordação oferece, no tempo presente, uma saída para fora dos vínculos de
branqueamento racial. Obviamente não se trata aqui de uma questão objetiva de esforços
empreendidos no sentido de purificação de raça, mesmo porque no interior desta comunidade
são freqüentes os casamentos entre negros e brancos tendo por conseqüência uma alta
miscigenação étnica. Quando abordamos essa questão procuramos ressaltar a natureza
subjetiva deste conceito para explicar uma busca pela valorização dos ideais da negritude.
Para os integrantes do Mata Cavalo, principalmente aqueles envolvidos de alguma
forma com as lutas sociais e políticas no seu interior, a bandeira da “negritude”100 levantada
por inúmeros movimentos negros dentro e fora do país serve como fonte de inspiração,
reordenando pensamentos e orientando ações práticas no sentido de resgatar a dignidade do
ser negro, no interior de uma sociedade marcada pelo preconceito racial. As manifestações em
forma de preconceito racial contra os negros do Mata Cavalo ainda estão muito presentes no
cotidiano dessa comunidade. Segundo entrevista gravada em 28 de novembro de 2010 com
D. Tereza, presidente do Quilombo, toda forma de manifestações de intolerância racial, por
parte da população branca no entorno do quilombo, para com os negros ainda são praticadas.
De acordo com seus relatos, em data recente, quando um grupo numeroso de remanescentes
do quilombo desceu do ônibus, fretado para levá-lo a uma reunião promovida pela Igreja
Católica na cidade de Livramento – MT, foi vítima de protestos violentos por parte de vários
100 O termo "Negritude" aparece pela primeira vez, escrito por Aimé Césaire, em 1938, no seu livro de poemas, "Cahier d'un retour au pays natal". O conceito está intimamente associado ao trabalho reivindicativo de um grupo de estudantes africanos em Paris, nos princípios da década de 30, de que se destacam como principais responsáveis e dinamizadores Léopold Sédar Senghor (1906) senegalês, Aimé Césaire (1913), martinicano, e Leon Damas (1912), ganês. Estes autores da Negritude legaram-nos uma obra literária da máxima importância; mas foi Senghor que, com o exercício da Presidência do seu País (Senegal) e uma larga aceitação Ocidental (política literária e acadêmica) contribuiu decisivamente para a divulgação da Negritude. Disponível em: http://www.prof2000.pt/users/hjco/alternativas01/Pag00009.htm . Acesso em 23 de Abril de 2010.
56
habitantes daquela cidade, em forma de xingamentos e palavrões que visavam ofender
moralmente os negros da comunidade. Segundo ela até pedras foram atiradas contra eles por
crianças com apoio e incentivo dos adultos ali presentes.
Entretanto, a valorização da cultura negra não oferece somente uma espécie de
proteção contra os preconceitos raciais, ela cria condições ideais que permitem aos negros
identificarem a si próprios como dotados de história, de vida, de autonomia social e política,
resgatando sua dignidade ética e também estética, perceptível na busca da valorização do
próprio corpo. Conscientes da condição subjetiva de serem, de alguma forma no plano
ideológico, estrangeiros numa terra distante, embora a condição real de pertencimento à uma
nação constituída, os negros nos dias atuais tem buscado numa suposta essência africana o elo
que os liguem à terra de origem dos seus ancestrais. Essa condição social e cultural constitui-
se no cerne da questão que possibilita explicar a situação de quem vive na diáspora. No
interior da comunidade do Mata Cavalo quando seus habitantes buscam as práticas advindas
da tradição herdada das senzalas recriam, talvez mesmo sem saber, uma territorialidade
singular inspirada nos motivos culturais de uma África idealizada a partir dos mecanismos da
recordação. Ou seja, uma África re-significada na diáspora.
Por outro lado, a constante preocupação por parte dos remanescentes na preservação
de uma identidade que os caracterize como pertencentes a uma comunidade tradicional
quilombola se prendem a fatores de ordem prática. Como já citamos acima, a demanda da
propriedade da área do Quilombo depende de sua identificação enquanto tal. A terra, neste
contexto, se torna tanto em objeto quanto em objetivo. O local privilegiado da tradição negra
e da memória dos escravos – o chão - constitui-se no fator primordial da própria manutenção
da identidade, que possivelmente permitirá nos tramites da Justiça a concessão de sua
propriedade. Certamente, tanto no passado como no presente, essa mesma terra foi a
testemunha fiel da trajetória de lutas, de sonhos e esperanças dos ex-escravos de D. Anna da
Silva Tavares. Hoje, tendo a própria história por testemunha, a alegria contagiante daquele
povo fará ressoar os tambores de uma síncope renovada que anunciará, ao menos em forma de
esperança, um novo tempo, o tempo da legitimidade. Tornando-se fato a tão esperada
propriedade, renascerá das cinzas a fênix negra da tradição no Mata Cavalo, trazendo de novo
a ordem ao caos.
57
Nos caminhos que percorremos ao longo do Capítulo 1, buscamos os elementos que
fundamentaram nossa questão de pesquisa da formação da identidade negra a partir da
memória escrava e da centralidade do conceito terra, tema que será retomado, em conclusão,
no capítulo final desta dissertação. Ao tratar de questões relacionadas à escravidão racial da
era moderna, apontamos a formação do mundo compreendido pelo Mata Cavalo como
conseqüência do entrecruzamento entre o antigo e o moderno, tradição e globalização. A
correlação entre escravidão e modernidade, através da análise do conceito do “Atlântico
negro” de Paul Gilroy e “Diáspora negra” de Stuart Hall permitiu situar o Mata Cavalo, como
comunidade dotada de cultura e identidade próprias e, também como autora e atriz de sua
própria história, no interior de uma sociedade marcada por interesses difusos e pelo estigma
da globalização. Através dos conceitos do racismo científico, demonstramos as artimanhas e
os recursos da elite dominante nas relações de poder e sua influência na questão do litígio,
envolvendo a posse da terra nessa comunidade. A trama histórica da luta pela terra no
quilombo será exaustivamente trabalhada no capítulo 2, seguindo a linha do tempo da cadeia
dominial em torno da questão agrária envolvendo a Sesmaria Boa Vida. Neste esforço de
investigação/narração, demonstraremos não o deslinde jurídico da questão, pois se trata de
processo legal em andamento, mas, na medida do possível identificaremos a legitimidade
daquela propriedade a favor dos remanescentes, através da análise de farta documentação
encontrada nos arquivos já citados anteriormente.
58
3. Capítulo 2 – TERRAS CATIVAS
“Então não existia miséria. Não existia fome porque todo mundo era unido.
Todo mundo tinha fartura, rapadura, açúcar de barro. Todo mundo tinha, porque todo mundo fazia”.101
O Decreto número 4.887, de 20 de Novembro de 2003, assinado pelo Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, representou possibilidade de mudanças significativas no contexto do
conflito fundiário entre representantes da comunidade do Mata Cavalo e alguns fazendeiros
envolvidos neste litígio. Juridicamente, este Decreto criou mecanismos que regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o Artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias102. Comunidade negra tradicional, Mata
Cavalo se enquadra nos moldes estabelecidos no presente Decreto, conforme se verifica no
seu Artigo 2º:
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
O ato da assinatura do presente Decreto, embora constitua uma possibilidade plausível
capaz de por fim ao quadro de conflito e conflitividade nessa turbulenta região ocupada pelos
remanescentes, na prática ainda não produziu a tão sonhada paz e muito menos, essa a
agravante maior, possibilitou a legitimação da propriedade das terras a favor do Mata Cavalo.
O que se verificou foi justamente o contrário, de certa forma esperado, o quadro de
instabilidade acirrou os ânimos de alguns representantes da elite agrária local. Em 7 de Junho
de 2008, para citar um exemplo, oito famílias de remanescentes deste quilombo,
101 Trecho da entrevista fornecida por José Gregório, membro da comunidade das famílias do Mata Cavalo residentes no Bairro Ribeirão da Ponte em Cuiabá, a esse pesquisador em 30 de setembro de 2010. 102 Esse artigo, como já referenciamos anteriormente, da Constituição Federal de 1988, trata da regulamentação das terras ocupadas por remanescentes de quilombo no Brasil.
59
aproximadamente 30 pessoas, sofreram ações de despejos, seguidas de violência policial, de
suas moradias na localidade conhecida como fazenda Estiva, no município de Livramento, em
Mato Grosso. Oficiais de justiça apoiados pela Polícia Federal cumpriram um mandato
judicial de reintegração de posse expedida pelo juiz federal substituto da 2ª. Vara, Marcelo
Aguiar Machado. A referida ação legal foi impetrada pelo fazendeiro Miguel Santana da
Costa alegando que “a propriedade é familiar, foi passada para ele por seu pai e fora invadida
por desconhecidos”.103
Os remanescentes do Quilombo, durante o processo da ação de despejo, acusaram
alguns representantes da força policial, envolvida no processo, alegando arbitrariedade
cometida contra os seus. Três pessoas foram detidas por infligirem a lei através da obstrução
do trabalho policial e também por desacato à sua autoridade: Gonçalina Eva de Almeida,
professora, Adenito Alves e Emiliano Venâncio e Santos. Revoltada, a líder e presidente da
associação-mãe do Mata Cavalo, Teresa Conceição Arruda desabafa: “Moramos há oito anos
neste local, tínhamos nossas casas, que agora foram derrubadas pela polícia, e nossa lavoura.
Não é justo que de repente eles cheguem aqui sem nos avisar e, além de nos expulsar,
destruam tudo e nos trate com brutalidade”.104 O fazendeiro Miguel Santana da Costa,
proprietário da área em questão, afirma que sua propriedade é centenária, passada de seu avô
para seu pai, que por sua vez a deixa para ele. Segundo suas declarações, nada mais pretende
que a reivindicação do que já era dele e de sua família há mais de cem anos. Norberto
Ferreira dos Reis105, representante de uma das famílias expropriadas nesse ato policial,
questiona as declarações do fazendeiro Miguel Costa, alegando que com relação às terras em
questão, “a base do direito é o título expedido pela Fundação Cultural Palmares e o Relatório
antropológico de autoria desconhecida106, apresentado em ação civil pública”. Na realidade,
como se pode constatar, o referido título não possuiu os efeitos jurídicos de fato, cabendo este
à instância do judiciário, questão que será tratada ao final desta dissertação.
103 Disponível em: http://www.poconeonline.com/_noticias.php?id=3472 , acesso em 8/Junho/2008. 104 Id. Ibidem. 105 A família de Norberto Ferreira dos Reis, é uma entre muitas, que a partir da década de 1950-60 resolveram retornar às terras do Mata Cavalo, local de onde foram expropriadas em função da ação de jagunços a serviço de alguns fazendeiros da região após os anos 1930, tema que será retomado ainda neste capítulo. 106 O relatório que supostamente tem autoria desconhecida trata-se do “Mata Cavalo (MT) Relatório Histórico Antropológico” de autoria de Maria de Lourdes Bandeira, Triana de Veneza Sodré e Dantas e Elieth Barros Mendes, realizado a pedido do Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, com participação da Universidade de Cuiabá – UNIC. Uma cópia do referido relatório encontra-se no conjunto do processo em trâmite no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, em Cuiabá – MT.
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Paradoxalmente, a Fundação Cultural Palmares e o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária, INCRA, já haviam recorrido juridicamente da decisão aqui tratada antes
mesmo da desocupação das terras em função da ação de despejo. Este processo encontra-se
em trâmite na Justiça Federal, em Brasília. Segundo a Fundação Cultural Palmares, há um
estudo realizado pelo próprio INCRA comprovando que esta área (fazenda Estiva) também
faz parte das terras ocupadas pelo Mata Cavalo. Como podemos concluir, há uma grave e
recorrente assimetria entre os poderes nos âmbitos federais, estaduais e até municipais,
expressos, muito freqüentemente, em ações dessa natureza com a anuência de alguns
representantes da força política e policial na região. De acordo com Bernadete Lopes, diretora
de proteção do Patrimônio Afro-brasileiro da Fundação Cultural Palmares, que estava em
Cuiabá por ocasião do despejo, o problema é grave. Segundo ela, o mais estranho foi que no
momento do despejo, além dos policiais estavam juntos donos e funcionários das fazendas:
Funcionários da fazenda apareceram lá para ajudar a retirar os quilombolas, sem contar a presença constrangedora de donos de fazendas. Se já não bastasse o constrangimento de ser mandado embora, de verem suas casas sendo derrubadas e a vergonha de serem presos, ainda tiveram que aturar a presença das pessoas que moveram o processo para retirá-los de lá, explica. E contesta: a polícia não podia permitir essa coação e constrangimento. Sem contar a situação estranha, já que a ordem de despejo estava dentro da área que pertence às comunidades remanescentes de quilombos (Mata Cavalo), comprovada por um estudo feito a pedido do Ministério Público Federal.107
Em 10 de junho de 2008, a REMTEA – Rede Mato-grossense de Educação Ambiental,
da Universidade Federal de Mato Grosso - promoveu um ato público a favor da
regulamentação das terras do Mata Cavalo. Em seu manifesto, esclareceu que o ato tem o
objetivo não apenas de especificamente protestar contra o despejo, mas também de chamar a
atenção para a necessidade de que “a justiça social e ambiental seja capaz de regularizar
todas as terras quilombolas, com respeito aos direitos legais de terra e, essencialmente, às
identidades negras, para o restauro da herança africana no mosaico da brasilidade.”108
Atualmente, os moradores do Mata Cavalo - e a maioria dos descendentes que, de uma
maneira ou outra, se viram forçados a abandonar aquela região, como é o caso dos
107 Disponível em: http://www.ufmt.br/remtea/atos_publicos.html acesso em 06/Outubro/2010. 108 Id. Ibidem.
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remanescentes do Capão do Negro, atual Bairro Cristo Rei, em Várzea Grande e também do
Bairro Ribeirão da Ponte em Cuiabá - aguardam o desfecho do conflito fundiário que se
arrasta por bem mais de um século. É exatamente no interior desse confuso quadro de conflito
e conflitividade que buscaremos, ao longo deste capítulo, os elementos explicativos da
importância que a terra, local tanto de subsistência quanto de memória, tem para a
conformação da identidade negra. Estabelecida a meta, torna-se essencial trilhar os caminhos
que permearam, no tempo e no espaço, o contexto da história agrária do Mata Cavalo, desde a
origem do território nos processos de aquisição de sesmarias ao estado atual de incertezas que
marcam o compasso de espera pela legalização, via jurídica, das terras dos remanescentes do
Mata Cavalo.
3.1 Sesmarialismo no Brasil
A área ocupada pelos representantes do Mata Cavalo tem seu início no ato de doação
da Sesmaria Boa Vida aos escravos de D. Anna da Silva Tavares. Desta forma, torna-se
indispensável entender os mecanismos intrínsecos à própria instituição das sesmarias em
terras brasileiras. De acordo com Vainfas, no seu Dicionário do Brasil Colonial, sesmaria é
uma palavra de origem discutível, segundo Costa Porto, citado por ele “o termo estaria ligado
ao sesmo, sexviri ou seviri, ‘colégio feudal’, integrado por seis membros, encarregados de
repartir o solo entre os moradores”.109
O instituto do sesmarialismo em Portugal, criado por decreto-lei em 1375, constituiu-
se numa tentativa bem sucedida de resolver o problema da escassez de alimentos naquele país.
Ainda segundo Vainfas, essas medidas tinham por objetivo o aproveitamento integral de todas
as terras agricultáveis “tendo em vista o interesse em diminuir a importação de grãos,
sobretudo trigo”.110 A partir da sua ordenação, obrigava, em todas as partes do Reino
Português, a todos os proprietários de herdades que as lavrassem e cultivassem, concedendo
direitos a outrem de produzirem em suas terras caso não dispusessem de meios para fazê-lo. O
109 Vainfas, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Ronaldo Vainfas (organizador). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 529. 110 Id. Ibidem.
62
decreto obrigava, também, a todos desocupados a trabalharem nas referidas terras como forma
de garantir a produção de alimentos. De acordo com Lígia Osório Silva:
O instituto das sesmarias foi criado em Portugal, nos fins do século XIV, para solucionar uma crise de abastecimento. As terras portuguesas, ainda marcadas pelo sistema feudal, eram na maioria apropriadas e tinham senhorios, que em muitos casos não as cultivavam, nem arrendavam. O objetivo básico da legislação era acabar com a ociosidade das terras, obrigando ao cultivo sob pena de perda de domínio.111
Ao contrário do que ocorreu em Portugal com o instituto da sesmaria que foi
implantado, coercitivamente, para aumentar a produtividade de víveres e alimentos, no Brasil
o objetivo central localizou-se em torno da questão de fixação dos colonos nas terras
realengas, para defesa e ocupação do seu território, garantindo-lhes não a propriedade da terra
mas o direito de usufruto.112 Observa o senso comum na historiografia brasileira, que o
instituto do sesmarialismo no Brasil lançou as bases da implantação do sistema de latifúndio
que perdura até aos dias atuais. De acordo com Guimarães, “a sesmaria encontrara no açúcar
o seu destino econômico”,113 e nada poderia ser mais natural, na expressão deste autor do que
o fato de no Brasil se iniciarem as atividades econômicas “sob o signo da grande propriedade,
da grande lavoura”.114 Conforme Lígia Osório da Silva o regime de sesmarias implantado em
solo brasileiro relacionava-se a condicionantes históricas do seu descobrimento, assim:
Razões de caráter político, no entanto, pressionavam os portugueses a ocuparem de alguma forma a nova conquista. Tratava-se de garantir a sua posse e defendê-la da cobiça dos estados rivais, cujas burguesias mercantis buscavam incessantemente novas oportunidades de acumulação.115
Com a ascensão e conseqüente hegemonia econômica e política das elites cafeicultoras
do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná e a crescente onda de conflitos entre sesmeiros e
111 Silva, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850 / Lígia Osório Silva. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996. p. 37 112Usufruto, segundo o direito romano, constituía numa prerrogativa que delegava a quem o possuía poderes para usar e fruir do bem em questão e nada mais. 113 Guimarães, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. P. 45. 114 Guimarães, Alberto Passos. Op. Cit. P. 47. 115 Silva, Lígia Osório. Op. Cit. P. 23 – 24.
63
posseiros devido à questão de doações de sesmarias em áreas anteriormente ocupadas,
acrescidas as pressões do senhoriato rural em franco desenvolvimento nas terras brasileiras,
tornou-se imperioso repensar o sistema de sesmarias no Brasil. Silva observa que “existia,
sem dúvida, uma contradição entre sesmeiros e os posseiros quando a questão era a doação de
sesmarias em áreas ocupadas. Foi esse aspecto que forçou a tomada de posição das
autoridades para dirimir o conflito”.116 Em conseqüência da impossibilidade de manutenção
do regime vigente, o sistema sesmarial chega a seu fim através da resolução de 17 de Julho
de 1822, que determinou:
Suspendam-se todas as sesmarias futuras até a convocação da Assembléia Geral e Legislativa. O fato que provocou a medida foi a petição de um posseiro do Rio de Janeiro, que dizia viver há mais de 20 anos em terras ‘compreendidas na medição de algumas sesmarias que se tinham concedido anteriormente’. O parecer do Procurador da Coroa e da Fazenda foi de que ‘não é competente o meio’ devendo o interessado ‘requerer por sesmaria as terras de que trata’. Mas a resolução do príncipe regente foi suspender as sesmarias para acabar de vez com esse tipo de pendência.117
Guimarães concorda com Lígia Osório Silva quanto aos motivos que levaram ao fim
do sistema sesmarial no Brasil. Para ele, a ocupação das terras não cultivadas ou devolutas,
como eram conhecidas, por um expressivo contingente da população rural, os posseiros,
constituíam-se em ameaça ao grande latifúndio. De acordo com Guimarães, foi exatamente
essa ocupação desordenada, ferindo os interesses da elite agrária, que “apressaram a
decadência da instituição das sesmarias, obrigando as autoridades do Brasil Colonial a
tomarem outro caminho para acautelar e defender os privilégios da propriedade
latifundiária”118.
Apesar da extinção da instituição do sesmarialismo, não se pode negar que a
abundância de terras no Brasil, notavelmente disponibilizada ao senhoriato rural, contribuiu
para a formação e o fortalecimento do latifúndio, cujos reflexos persistem até aos dias atuais.
Mudaram-se no percurso da história as instituições, as formas de governo, as relações de
produção e os sistemas produtivos, no entanto, permaneceram no cerne do moderno agro-
116 Silva, Lígia Osório. Op. Cit. P. 71 117 Silva, Lígia Osório. Op. Cit. P. 73 118 Guimarães, Alberto Passos. Op. Cit. P. 59.
64
negócio as estruturas do grande latifúndio e tudo que elas representam de concentração de
poderes nas mãos de poucos. Obviamente, a questão mais grave dessa política agrária é a
dispersão e o desmantelamento do modo de vida e de subsistência dos pequenos produtores
rurais. Essa realidade reflete-se, de alguma forma, no cenário e no cotidiano do Mata Cavalo,
ora empurrando os desagregados de suas terras para os ambientes urbanos, ora utilizando a
mão de obra barata, fartamente disponível, em conseqüência da pauperização dos
remanescentes e da obliteração dos seus modos de vida coletivo.
3.2 Mata Cavalo: Origens
A história da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo confunde-se
com a própria história de Cuiabá, e com a formação da cidade de Livramento. A ocupação
deste território remonta os anos 1726/27, cento e nove anos antes da assinatura da Lei nº 11,
de 26 de Agosto de 1835 que instituiu oficialmente a fundação do Distrito de Nossa Senhora
do Livramento. Em 1726 o capitão general da Capitania de São Paulo, Rodrigo César de
Meneses, chega a Cuiabá com determinações da Coroa portuguesa para implementar a
política de cobrança de impostos sobre a mineração – o célebre quinto – satisfazendo aos
anseios de uma corte ávida por metais preciosos. Essas medidas causaram descontentamento
entre os garimpeiros da região, forçando-os a buscar novos garimpos longe da área de
influência lusitana. Assim, “em 1730, os sorocabanos Antonio Aures e Damião Rodrigues
descobriram ouro à margem do ribeirão chamado Cocais, a 6 léguas de Cuiabá e a 3
quilômetros [sic] do local onde mais tarde se formou o povoado de Nossa Senhora do
Livramento”.119 Essa data marca o início da extração de ouro na região compreendida pelas
imediações do Ribeirão dos Cocais, um dos afluentes do Rio Cuiabá. De acordo com Carlos
Alberto Rosa, Doutor em História Social pela USP, professor do departamento de História da
Universidade Federal de Mato Grosso, “Nos anos 1740, documentos se referem à existência
de unidades produtivas agrícolas e agro-manufatureiras na área dos Cocais: no Ribeirão, uma
119 Ferreira, João Carlos Vicente. Op. Cit. P. 517.
65
unidade central, polarizadora, composta de Fazenda, Engenho e Capela, pertencente ao clã
José Paes Falcão”.120
De acordo com Taunay, citado por Rosa, havia na propriedade de Cocais, pertencente
a José Paes Falcão, aproximadamente duzentos escravos, o que lhe conferia a condição de
“homem bom”, em uma sociedade escravocrata, cujos valores da escala social eram medidos
em números de escravos e de terras possuídos. Tratava-se de uma fazenda de grande porte,
contando com considerável povoamento, cercas e uma bem cuidada capela erigida em
homenagem a São José. Paes Falcão, que de certa forma liga-se às origens do Mata Cavalo,
como veremos a seguir, contava com enorme prestígio junto à elite da região do termo de
Cuiabá. De acordo com o autor, Falcão era:
Paulista dos de maior merecimento pelas virtudes moraes que o adornavam, verdadeiro imitador dos nobilíssimos ascendentes, não só no ardor e estímulo do real serviço, como na caridade praticada para com os pobres, que se valiam do seu piedoso ânimo, serviu os cargos da república cuiabana, sempre com geral louvor, adquirido pela afabilidade, retidão, etc.121
A popularidade e o conseqüente prestígio de Falcão aumentaram consideravelmente,
observa Taunay, com sua participação no episódio da expulsão dos castelhanos da margem
direita do rio Guaporé, visando à manutenção e a normalidade do comércio entre Belém do
Pará e Mato Grosso, a serviço do primeiro Capitão-general D. Antonio Rolim de Moura.
Obviamente, não há como desconsiderar o discurso carregado pelo caráter épico dos grandes
feitos dos bandeirantes na obra de Taunay, apesar de sua origem catarinense. Sob a influência
de Capistrano de Abreu, na sua monumental obra “História geral das bandeiras paulistas”,
Taunay combinou a linguagem romântica, que lhe era peculiar, com a narrativa das conquistas
paulistas no interior do país. Isso explica a ênfase e o elogio à condição de Falcão como um
autêntico herói.
120 Rosa, Carlos Alberto; Canova, Loiva; Souza, Nelma de. Escravo e terra em Mato Grosso: o caso de Livramento (1727-1883). In: CADERNOS DO NERU / Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – ICHS – UFMT. No. 2, 1993. P. 35 121 Taunay, Affonso de E. As minas gerais de 1709 a 1721 – Bandeirantes no Rio de Janeiro e Espírito Santo – Os primeiros anos de Cuiabá e Mato Grosso. Tomo décimo da História Geral das Bandeiras Paulistas. Edição do Museu Paulista. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1949. P. 317.
66
A região onde hoje se localiza o Mata Cavalo tem sua origem territorial num ato de
doação de sesmaria, como veremos a seguir.
A emissão da carta de sesmaria em 1751122 a favor de José Paes de Falcão marca,
juridicamente, o início da história da dominialidade do imóvel conhecido por “Sesmaria Boa
Vida”, parte integrante do complexo agro-pecuário Santana-Carcará-Boa Vida, de acordo com
pesquisas documentais realizadas por Rosa.
3.3 A Carta de Sesmaria, 1751.
Uma questão fundamental para a compreensão do processo da área em litígio, aqui
estudada, refere-se à forma de ocupação do território do Mata Cavalo, por parte dos
remanescentes, nos moldes jurídicos de domínio titulado e não de posse simples e pura, como
se pode constatar no percurso da história desta comunidade em três momentos decisivos: A
medição, demarcação e tomada de posse legal da Sesmaria Boa Vida com duas léguas em
quadra, realizada por Antônio Xavier de Siqueira em dezembro de 1788; a arrematação, em
ato público, de parte dessa sesmaria por Ricardo José Alves Bastos em 1850 e por fim, o
registro das terras doadas aos escravos de D. Anna da Silva Tavares realizado pela Câmara
Municipal de Livramento, de acordo com o Artigo 114 do Regulamento 38 de 1893, que por
sua vez regulamentou a Lei no. 20/1892 institucionalizando o primeiro Código de Terras de
Mato Grosso.
Esses momentos decisivos no processo de titulação do imóvel Boa Vida legitimaram,
de forma inconteste, a propriedade dessas terras qualificando, legalmente, seus titulares como
“detentores do domínio” de acordo com a linguagem jurídica. Essa condição singular permite
a quem possui as prerrogativas do direito de propriedade, usar, gozar, dispor e reaver o objeto
em questão de acordo com as regulamentações jurídicas que lhe são inerentes. A seguir,
122 Esta carta de sesmaria está registrada em microfilme no NDHIR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da Universidade Federal de Mato Grosso.
67
desvelaremos, na medida do possível123, através de trabalhos já elaborados referentes ao tema
e vastas fontes documentais, os processos da cadeia dominial que atinge quase dois séculos,
procurando a cada período histórico a sustentação das bases legais que permitiram conservar a
referida propriedade, de acordo com as leis de época.
Como vimos acima, José Paes Falcão possuía uma fazenda nas imediações da
localidade denominada Cocais, atual cidade de Livramento, em Mato Grosso. Como a referida
propriedade situava-se quatro léguas distante daquela localidade e por apresentar alguns
problemas relacionados à qualidade do solo “e que no bairro a onde assiste não tinha matos
gerais e somente capões espalhados”124, o que dificultava a produção de alimentos obrigando,
às vezes, à realização de plantio em dois lugares diferentes, Paes Falcão decide apresentar
uma petição à Dom Antonio Rolim de Moura requerendo uma Sesmaria nos seguintes termos:
a) Concessão de uma área de terra contendo duas léguas em quadra, localizada na
região banhada pelos rios que mais tarde seriam conhecidos por Estiva, Mata
Cavalo e Mutuca, justificando que ali poderia realizar o plantio de roça suficiente
para as suas necessidades. De acordo com essa carta, Falcão possuía “cento e trinta
bocas de escravos e brancos para sustentar”125, o que comprova na prática a
obrigatoriedade dos pretendentes às petições de sesmarias possuírem bens
materiais representados pela mais expressiva moeda de troca no período da
escravidão: o escravo.
123 Uma pesquisa mais aprofundada seria necessária para preencher todos os vazios dessa cadeia dominial, o que demandaria um longo tempo dedicado às transcrições paleográficas e pesquisas documentais outras em cartórios, arquivos e afins o que, devido ao escasso tempo disponibilizado à realização do curso de mestrado, se torna impossível. Devido a essas dificuldades de ordem técnica, esclarecemos que privilegiamos os pontos que consideramos essenciais, nodais mesmo, para a compreensão do processo agrário intrínseco à comunidade aqui estudada, permitindo uma visão um pouco mais generalizada dos momentos históricos onde a propriedade da citada área foi colocada em condição de negociação. 124 Transcrição da Carta de Sesmaria de 1751 a favor de José Paes Falcão, extraída dos documentos 178 e 179, da microficha número 14 do Núcleo de Documentação e Informações Histórica Regional – NDHIR, da Universidade Federal de Mato Grosso. Ao longo desta dissertação utilizamos a transcrição da referida Carta de Sesmaria encontrada no documento judicial de AÇÃO CAUTELAR INOMINADA realizada pelo Ministério Público Federal em desfavor da União Federal, Fundação Cultural Palmares, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, e Carlos Campos Maciel. Este documento encontra-se por dependência ao processo no. 2002.36.00.006503-1, classe 9200, endereçado ao Excelentíssimo Senhor Juiz Federal da segunda Vara da Seção Judiciária de Mato Grosso. Disponível em: http://www.polis.org.br/utilitarios/editor2.0/UserFiles/File/1ACP_reconehcimento%20de%20posse%20por%20comunidade%20remanescente%20de%20quilombo_MT.pdf. Acesso em 12/Agosto/2010. Para conferir a transcrição da Carta de Sesmaria de 1751, citada acima ver os anexos da dissertação. 125 Citação retirada da Carta de Sesmaria de 1751. Ver anexos.
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b) A qualidade da terra solicitada em petição era de boa qualidade “visto serem terras
de sertão remoto e não matos gerais”126.
c) Paes Falcão já possuía uma roça na localidade denominada Boa Vida o que
justificava o seu pedido: “As quais duas léguas faziam pião no meio de uma roça
que ele suplicante tinha em um capão chamado o da Boa Vida”127. De acordo com
sua petição, Falcão requereu a partir da referida roça (designada como o centro das
terras solicitadas, descrita na Carta como “peão”) a demarcação das duas léguas:
“uma légua para o Sul, outra para o Norte, outra para o nascente outra para o
Poente que vinha a fazer as duas léguas em quadro”128.
d) Outra questão importante para Falcão era conseguir um local ideal para manter o
seu gado: “ficando-lhe compreendidos na mesma sesmaria os campos e terras [...]
que medeam entre os capões para poder manter neles o seu gado sem inquietação
dos mais vizinhos”129.
De acordo com a legislação que normatizava as concessões de sesmarias, a legalização
da propriedade só se daria após a demarcação das suas terras, como confirma a seguinte
citação retirada do texto da Carta de Sesmaria de 1751 de Paes Falcão: “e antes de tomar
posse delas as farão medir e demarcar judicialmente”. Outras normas em forma de lei também
faziam parte dos requisitos inerentes à concessão dos direitos de usos das sesmarias,
vinculando na própria carta a declaração de que:
As cultivará e confirmará esta minha carta por sua Majestade, dentro de dois anos e não o fazendo se lhe denegarão mais tempo, [...] e será obrigado a fazer os caminhos de sua testada com pontes e estivas onde necessário for e descobrindo nelas rio caudaloso que permita de barca para se atravessar ficará reservada de uma das margens dele a terra que baste para a serventia pública e nesta data não poderá ceder em tempo algum pessoa eclesiástica ou religião e sucedendo será com o encargo de pagar dízimos e outra qualquer que sua Majestade lhe impuser de novo e não os pagando se poderá
126 Id. Ibidem. 127 Id. Ibidem. 128 Id. Ibidem. 129 Id. Ibidem.
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dar a quem a denunciar como também sendo o dito Senhor servido mandar no distrito dela alguma vila e poderá fazer, ficando livre e sem encargo algum ou pensão para o sesmeiro e não empreenderá esta data [...] ou minas de qualquer gênero de metal que nela se descobrir reservando também as jóias reais e faltando a qualquer das ditas cláusulas por serem conforme as ordens de Sua Majestade e as que dispõe as leis foral das sesmarias ficará privado desta.130
Antes de oficializar na forma da lei a posse de sua sesmaria, José Paes Falcão vende as
referidas terras à Salvador Rodrigues de Siqueira em 16 de Outubro de 1772, vinte e um anos
após a confirmação da Carta de Sesmaria que lhe autorizava o uso da área em questão.
Constituía norma, neste período, utilizar uma cópia da própria carta de sesmaria para assentar
os termos de venda. Neste caso os termos contratados referentes à venda da sesmaria foram
averbados numa cópia da dita carta e logo após apresentado ao oficial da medição dessas
terras no ano de 1788, conforme se lê na integra a seguir:
Pertence esta sesmaria ao senhor Salvador Rodrigues e todos os meus cultivados e posses que atualmente tenho nas ditas terras como também nas testadas dos meus cultivados o que tudo me pertence em virtude da dita sesmaria e que tudo vendo ao senhor Salvador Rodrigues de Siqueira por dois poldros a escolha e recebi os ditos poldros, por assim ser verdade passei o presente de minha letra e signal, hoje, capela do Senhor São José dos Cocais, dezesseis de agosto de mil setecentos e setenta e dois – José Paes Falcão – Declaro mais que vende todas as terras e cultivados e matas virgens que a dita sesmaria cobre e delas os mais que da parte do Livramento correndo para o Norte até testar com as terras do dito Siqueira.
3.4 Do “Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida” O Alferes Antonio Xavier de Siqueira, filho de Salvador Rodrigues de Siqueira, requer
ao juiz de Medição e Demarcação Lavradias da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, o
tenente de granadeiros e advogado dos auditórios da mesma vila e tesoureiro do juízo de
ausentes, Joaquim da Costa de Siqueira, a medição, na forma da lei, e a colocação dos quatro
marcos roliços feitos de pau de aroeira, com duas espias e, finalmente, a tomada de posse
130 Parte da transcrição da Carta de Sesmaria de 1751. Ver anexos.
70
oficial da sesmaria adquirida por seu pai, em 1788. O auto de medição aqui referido foi
assentado no Livro do Senado da Câmara de Cuiabá.131 A fixação dos marcos de aroeira
roliça determinaram os limites da área em quadra conforme se segue:
a. PRIMEIRO MARCO: No dia 4 de dezembro de 1788, na localidade denominada
Mutum, pertencente ao termo da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, em um
lavrado que pertencia a Gregório Dias de Madureira, na altura da estrada que vinha de
São Pedro de El Rey, foi fixado o primeiro marco. Para que a ação fosse legitimada na
forma da lei, a fixação se deu na presença do juiz das Demarcações Joaquim da Costa
e Siqueira, do sesmeiro demarcante, o Alferes Antonio Xavier de Siqueira, e outras
testemunhas. De acordo com o texto do auto de medição: “se meteu, com efeito, no
referido lugar um marco de mourão de pau de aroeira roliço que depois de fincado
ficou com sete palmos e meio fora da terra, atochado com duas espias.”132
b. SEGUNDO MARCO: Em 4 de Dezembro de 1788, na localidade denominada morro
da Boa Vida, junto a um capão de mato que era nascente de um córrego que fazia
barra com o ribeirão Bento Gomes “se meteu, com efeito, o dito marco de um mourão
de pau de aroeira roliço”133 com as mesmas características de profundidade e posição
de espias do primeiro marco.
c. TERCEIRO MARCO: Em 5 de dezembro de 1788, no local denominado de Urubu,
próximo a uma chapada que ficava acima do local onde aconteceu o incêndio do paiol
do dito sesmeiro, e fazendo fronteira com um capão de mato do qual corria um
córrego em direção ao meio do dito capão, “se meteu com efeito este, de um mourão
de pau de aroeira, com altura de nove palmos fora da terra e atochado com duas
131 Para maiores detalhes conferir cópia da transcrição paleográfica do Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida, nos anexos. 132As espias ou testemunha, como eram chamadas, serviam como aparato de identificação do marco comprovando sua originalidade, bem como para delinear a direção da área demarcada. Neste caso uma das espias estava na direção do Norte para o Sul e a outra de Leste para o Oeste identificando, portanto, as laterais resultantes do primeiro vértice da propriedade medida. Informações retiradas do texto do Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida. Conferir anexos. 133 Informação retirada do Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida. Ver anexos.
71
testemunhas, ou espias sendo uma olhando do Sul para o Norte e outro de Oeste para
Leste”134.
d. QUARTO MARCO: No dia 10 de Dezembro de 1788, nas margens de uma vargem
contendo um pequeno córrego que faz barra no Ribeirão chamado de Brumado “se
meteu, com efeito, este, de um mourão de cambarú roliço, que depois de afincado
ficou com a altura de 7 palmos atochados com duas espias do mesmo material”.135
Assentados os quatro marcos que determinaram os limites da sesmaria – desde as lavras
velhas de Gregório Madureira, no rio Mutum até o início do morro da Boa Vida e rumando
para o Sul até encontrar a nascente do rio Urubu e os pantanais da Várzea Grande, nos
varadouros do rio Brumado136 – é lançada a sentença na forma da lei, quando acontece o ato
final da tomada de posse judicial da área da Sesmaria Boa Vida. Conforme atesta o referido
auto de medição, tendo-se cumprido todos os requisitos de acordo com a legislação vigente à
época, “a qual mesmo andando por elas cortou ramos de árvores silvestres que nela se achava,
lançando terra para o ar, dizendo em alta e inteligível voz, há quem a ela se oponha ou
contradiga”137, consumou-se a validação da transferência da Sesmaria Boa Vida em 1788,
“sendo feita todas as cerimônias da lei e costume praticados, demos com efeito ao dito alferes
Antonio Xavier de Siqueira por empossado das ditas terras demarcadas, com posse judicial,
atual, civil, natural e real”.138 Desta forma concluiu-se, sem margem a nenhuma dúvida, o
processo de mudança de propriedade da referida sesmaria, que antes pertencia ao patrimônio
da Coroa Portuguesa, para a pessoa física do alferes Antonio Xavier de Siqueira, constituindo-
se a partir daquela data em propriedade de domínio particular, portanto.
134 Id. Ibidem. 135 Id. Ibidem. 136 Para melhor compreensão da localização exata da Sesmaria Boa Vida vale ressaltar que o Ribeirão Brumado é formado pelos dois córregos Mutucas, constituindo-se desta forma em suas cabeceiras. Seus afluentes da margem esquerda são o ribeirão Mata Cavalo e o Estiva sendo que na sua margem direita é formado por dois córregos de pequena dimensão localizados na Várzea Grande. 137 Informação retirada do Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida. Ver anexos. 138 Informação retirada do Auto de Medição e Posse da Sesmaria Boa Vida. Ver anexos.
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Mapa 1. Localização da Fazenda Cocais
Mapa extraído da Folha levantada, desenhada e impressa pela Diretoria de Serviço Geográfico Brasil, ano de 1973. Detalhes 1 e 2 = Localidade da Fazenda Cocais, que pertencia ao Alferes Antonio Xavier de Siqueira, próxima da região onde se localiza a atual cidade de Livramento – MT. Detalhes 3, 4 e 5 = Localidades da Estiva, Boa Vida e Mutuca pertencentes ao Mata Cavalo.
Na data de 11 de outubro de 1804, na cidade de Poconé, registrou-se o óbito do
sesmeiro demarcante do imóvel Boa Vida. O Dr. Gaspar Pereira da Silva, juiz de Fora, Crime
e Órfãos, determinou o início do inventário do alferes Antônio Xavier de Siqueira, em 10 de
novembro de 1804, deixando como cabeça de casal a viúva Eugênia Maria da Silva e seus
catorze filhos. De acordo com o testamento deixado por Siqueira, declarava ser filho de
Salvador Rodrigues de Siqueira e de Dona Úrsula de Campos Rondon e que tinha onze filhos
legítimos, frutos de seu casamento com Eugênia Maria da Silva: Maria, Antônio, Ana,
Francisco, Mariana, Úrsula, Francisca, Isabel, Nora, José e Maria e também, três filhos
73
naturais139: Maria, Manoel e Eufrásia. O que interessa neste inventário para a nossa análise é a
relação dos bens materiais constituintes, mais precisamente a existência de uma casa de
engenho de cana na localidade de Boa Vida: “Uma sesmaria cita na paragem de Boa Vida e
que nela detém uma légua por ter vendido a outra ao capitão Manoel Francisco Rondon, cuja
sesmaria é de terras lavradias as quais se acham medidas e demarcadas na dita légua que toca
esta herança”.140
Em consonância com a descrição do inventário do alferes Antonio Xavier de Siqueira,
realizado em 1804, como vimos acima, ocorreu a divisão da referida sesmaria que fora
medida e demarcada em 1788, tendo como divisor natural, o Córrego Mata Cavalo, que corre
de Noroeste para Sudeste, dividindo a Sesmaria concedida em 1751 em duas: a da Boa Vida,
ao Sul, segura nas mãos da família Siqueira e a Sesmaria Rondon141, ao Norte do Ribeirão
Mata Cavalo de propriedade do tronco familiar do mesmo nome. Os outros dois córregos
citados no inventário seriam o Mutuca e o Mutuquinha, ao Sul do Mata Cavalo.
De acordo com as informações encontradas no texto da Ação Cautelar Inominada, do
Ministério Público Federal, processo nº 2002.36.00.006503-1, classe 9200, à página 39, a
divisão efetuada antes do óbito do alferes Antonio Xavier de Siqueira originou, em todo o
desenrolar do século XIX, duas histórias jurídicas próprias, resultando, portanto, em cadeias
dominiais distintas, embora os laços de simetria sócio-culturais percebidos entre ambas.
Como interessa ao presente estudo, trataremos a seguir apenas dos desdobramentos históricos
referentes à cadeia dominial e jurídica da Sesmaria Boa Vida, uma das partes da referida
divisão.
139 Segundo Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, doutora em Direito pela USP, filhos naturais seriam aqueles nascidos fora dos laços matrimoniais, de acordo com os primórdios do Direito Romano. Para tanto, Hironaka utiliza-se de uma citação de Fustel de Coulanges, em seu “Cidade Antiga”: “O laço de sangue isolado não constituía, para o filho, a família, era-lhe necessário o laço de culto”. Modernamente, afirma Hironaka, “prepondera a noção de paternidade responsável [...] daí decorrendo a obrigatória relação de parentesco”. Obviamente esse não era o caso no início do século XIX, pois as modificações do código de lei em relação aos filhos naturais citados pela autora referem-se à Constituição Federal de 1988. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/528>. Acesso em 30 de outubro de 2010. 140Folha 39 do inventário de Antonio Xavier de Siqueira, Arquivo Público do Estado de Mato Grosso. 141A sesmaria Rondon pertencerá a João José de Siqueira até o ano de 1847, data de sua mudança para a localidade chamada Chapada dos Guimarães, tendo posteriormente como proprietário João Lopes de Abreu, que fora casado com Maria de Almeida Lara até o ano de 1872. Neste mesmo ano, Lopes de Abreu vendeu a sua propriedade para Marcelino Paes de Barros, um negro forro. Este é um fato significativo, a história de Marcelino, de certa forma, é a repetição de uma prática muito usual nesse período da história: o negro comprando sua liberdade e a terra onde antes era escravo.
74
3.5 Inventário de Custódia de Arruda e Silva
José Vieira d’Azevedo, em 29 de janeiro de 1849, dá entrada ao processo de inventário
de bens, pela morte de D. Custódia de Arruda e Silva, com quem fora casado, no Juizado
D’Órfãos da Cidade de Cuiabá, conforme consta nas páginas 1 e 1v:
Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos quarenta e nove, vigésimo oitavo da Independência e do Império, aos vinte e nove dias do mês de Janeiro do dito anno, nesta cidade de Cuyabá, em o escritório de mim Escrivão assistente nomeado e assignado [ilegível] ahí compareceu José Vieira d’Azevedo, viúvo de Dona Custódia d’Arruda e Silva, reconhecido por mim Escrivão de que dou fé, e por ele me foi entregue uma rica petição despachada pelo meritíssimo Senhor Juiz de Órfãos supplente, o cidadão José Joaquim Graciano de Pina, em que pede a factum do inventário dos bens que ficarão por falecimento de sua mulher D. Custódia d’Arruda e Silva, pedindo-me que para efeito de prosseguir nos termos a houvesse de aceitá-la, o que eu Escrivão em razão do meu ofício e direito das partes, e em cumprimento ao dito despacho a aceitei e autuei tanto quanto posso e sou obrigado; cuja petição a adiante se segue. De que poderá a todo tempo constar fiz este termo [falta pedaço do papel] a petição. Eu Antonio José [falta pedaço do papel] Amarante, Escrivão do Juízo de [falta pedaço do papel] ficam que o escrevi, e assignei.142
Antonio José Zeferino Amarante. (escrivão).
D. Custódia de Arruda e Silva foi casada em primeiras bodas com João de Arruda e
Oliveira, falecido em 1845, com quem teve duas filhas, Ana Maria e Custódia e,
posteriormente com José Vieira de Azevedo, o inventariante, como vimos acima, tendo com
ele uma única filha chamada de Francisca. De acordo com a descrição dos bens no inventário,
aqui referido, é notável a riqueza material relatada em juízo. Uma quantidade expressiva de
peças em ouro, prata e, também, cobre, um enorme plantel de cabeças de gado, em torno de
três mil unidades entre muares, eqüinos e ovinos, duas propriedades rurais, uma na localidade
do rio Cassange, próximo à cidade de Poconé e outra a denominada Sesmaria Boa Vida, com
uma légua em quadra, em Livramento.
142 Trecho da transcrição paleográfica realizada pelo autor desta, referente ao Inventário pós-morte de D. Custódia de Arruda e Silva que se encontra no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, no grupo: Cartório do 5º. Ofício, série: Cível, sub-série: inventários, processo no. 877, caixa anterior: 65, caixa atual: 57, anos: 1849-1850.
75
O Capitão Antonio José do Couto anexou, na forma da lei, ao presente inventário, três
confissões de dívidas que foram contraídas com João José de Siqueira durante os anos de
1848 e 1849, pelo segundo esposo de D. Custódia de Arruda e Silva, José Vieira de Azevedo.
Segundo consta no referido documento, esta dívida já havia sido firmado entre as partes no
sítio Burity, na localidade de Chapada dos Guimarães, local para onde havia se mudado
Siqueira. Na transação comercial, segundo essa fonte documental, foram contratadas em
dívida uma determinada quantia em dinheiro e também cento e quinze cabeças de boi. Em
função da dívida registrada no ato oficial de inventário junto ao Juizado D’Órfãos da Cidade
de Cuiabá, a propriedade denominada Boa Vida, contando com sítio e engenho, contendo uma
légua em quadra, foi agregada, na forma da lei, ao patrimônio partilhado em função da morte
de D. Custódia. De acordo com os trâmites legais o patrimônio foi avaliado pela quantia de
seiscentos mil réis, e a herança bruta no valor de quarenta e cinco contos, quatrocentos e vinte
e quatro mil e quinhentos e vinte réis. Depois de deduzidos os encargos oficiais e a dívida em
questão sobraram a quantia de trinta e três contos, quinhentos e cinqüenta e oito mil e
trezentos e cinqüenta e cinco réis, para serem partilhadas entre as partes interessadas e que
possuíam o devido direito no processo.
3.6 Testamento de Ricardo José Alves Bastos
O segundo grande momento da história dominial referente à questão agrária do Mata
Cavalo se dá com a arrematação, em hasta pública, da Sesmaria Boa Vida, com uma légua em
quadra, pelo valor de dois contos de réis, por parte de Ricardo José Alves Bastos. De acordo
com Rosa, essa sesmaria integrava a área secular do complexo Santana-Carcará-Boa Vida,
fazendo divisa com “as terras de João Lopes de Abreu, casado com Maria de Almeida Lara,
irmã de Dona Anna. Essas terras de João Lopes de Abreu constituíam a ‘sesmaria do Ribeirão
do Mata Cavalo’ até 1873, quando Abreu vendeu-as a Marcelino Paes de Barros”.143
Acometido de grave doença, em 5 de Dezembro de 1874, Ricardo José Alves Bastos,
na sede de seu engenho e na presença de cinco testemunhas, declara aberto o seu testamento.
O testador, através de instrumento jurídico legal, como forma de seu último desejo, destina a
143Rosa, Carlos Alberto, e outros. Op. Cit. P. 43.
76
terça parte do seu patrimônio, que por força de lei lhe é permitido utilizar da forma que
melhor lhe convier, a Francisco José da Silva, em forma de fideicomisso144. De acordo com a
Consolidação das Leis Civis do Império “organizada por Augusto Teixeira de Freitas,
harmonizando as ordenações e legislações posteriores, [o fideicomisso] era a parte
disponível que podia ser destinada em testamento”.145 Importante ressaltar, portanto, que o ato
jurídico do fideicomisso determina que a propriedade em questão só poderá ser transferida à
Francisco José da Silva, seu vizinho, após o falecimento de sua esposa, D. Anna da Silva
Tavares. No entanto, contrariando de certa forma as expectativas de Ricardo Bastos no ato da
instituição do fideicomisso, Francisco José da Silva vai à óbito bem antes que D. Ana. De
acordo com o Artigo 1002 da Consolidação das Leis Civis do Império “São nulas todas as
disposições em que for instituída a alma por herdeira, o que é extensivo aos legados”.146 Desta
forma, tendo falecido a pessoa objeto do fideicomisso, D. Anna é naturalmente declarada
única herdeira do patrimônio de seu marido Ricardo José Alves Bastos. D. Anna da Silva
Tavares adjudica a herança do falecido marido em 19 de março de 1883, tornando-se
proprietária de direito e de fato do imóvel da Sesmaria Boa Vida. Uma leitura acurada do
testamento de Ricardo José Alves Bastos se faz necessária, pois revela características que
marcaram os destinos dos escravos da Sesmaria Boa Vida.
1875 Juízo da Provedoria de Cuiabá Testamento Testador: RICARDO JOSÉ ALVES BASTOS Testamenteira: D. ANA DA SILVA TAVARES Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e setenta e cinco, aos vinte oito dias do mês de abril do dito ano, nesta cidade de Cuiabá, em meu escritório autuo o traslado do testamento aberto com que faleceu no Distrito de Livramento Ricardo José Alves Bastos. E para constar fiz este termo. Eu, Antônio [...] de Sousa, escrivão que escrevi.Traslado do testamento aberto que fez e assina o cidadão Ricardo José Alves Bastos, como abaixo se declara. Saibam quanto do público instrumento virem que sendo no ano do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e setenta e quatro, aos cinco dias do mês de dezembro do dito ano, em as casas de morada do cidadão Ricardo José Alves Bastos, no sitio denominado Boa-
144 De acordo com o Código Civil Brasileiro “fideicomisso é uma espécie de substituição onde o substituto não herda no lugar do substituído, mas após o substituído, beneficiando pessoas não concebidas ao tempo da morte do testador”. 145 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 41. 146 Id. Ibidem.
77
Vida, distrito do Livramento, onde eu escrivão de Paz e Notas fui vindo a seu chamado e sendo ele ai presente que reconheço pelo próprio, que achei enfermo e em seu perfeito juízo segundo o meu entender do que dou fé, e sendo também presentes as testemunhas os cidadãos Francisco Vieira da Cunha, Manoel Felipe da Cunha, Joaquim Jorge, Antônio José Mendes e Antônio Paes de Faria, no fim deste assinados, o dito Ricardo José Alves Bastos declarou que queria fazer o seu testamento aberto o qual [...] seguinte ditado pelo mesmo. Em nome de Deus amém. Eu abaixo assinado Ricardo José Alves Bastos, como cristão católico apostólico romano [...] com a qual religião nasci, fui criado e educado e que me mantenho conservado e espero morrer, tenho deliberado fazer o meu testamento, como faço de minha livre vontade, e em meu perfeito juízo, apesar de estar enfermo, declaro minha disposição pela maneira e forma seguinte: Declaro que sou natural desta província, filho legítimo dos finados Bento José Alves Bastos e Gertrudes Maria da Conceição. Declaro que sou casado com D. Ana da Silva Tavares, filha legítima do finado Antônio d'Almeida Lara e Dona Ana de Moura Meirelles, de cujo matrimônio não tivemos filho algum. Declaro, por conseguinte e por não ter herdeiro algum necessário que instituo-a mesma minha mulher Dona Ana da Silva Tavares minha universal herdeira do remanescente. Declaro que o meu funeral seja feito com simplicidade sem pompa alguma e desejo que por minha alma se celebrem dez missas e que no sétimo dia haja também missa. Declaro que a minha terça deixo para o senhor Francisco José da Silva (por morte de minha mulher) o meu sítio em que [...] denominado Boa-Vida com todas as suas benfeitorias.Declaro que deixo todos os meus escravos para servirem a minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem de plena liberdade como se de ventre livre nascessem. Declaro que nada devo a pessoa alguma e que minha mulher sabe aqueles que me devem, assim como tudo quanto possuo. Declaro que nomeio para meus testamenteiros em primeiro lugar minha mulher Dona Ana da Silva Tavares, em segundo o senhor Francisco José da Silva e em terceiro o Alferes Antônio Paes de Couto aos quais concedo um ano para prestação de contas. E por esta forma tenho concluído e acabado este meu testamento aberto e disposição de última vontade, sendo por mim ditado e assinado e por este testamento revogo qualquer outro anterior. Eu, Manoel Antônio Ferraz, escrivão de Paz e Notas que escrevi e assinei tudo em presença das cinco testemunhas abaixo assinadas. Manoel Antônio Ferraz, Ricardo José Alves Bastos, Francisco Vieira da Cunha, Manoel Felipe da Cunha, Joaquim José dos Santos, Antônio José Mendes e Antônio Paes de Faria. É este o fiel traslado do testamento aberto que fez Ricardo José Alves Bastos e ao livro citado me reporto e dou fé. Em o mesmo dia, mês e ano [...] declarado. Eu, Manoel Antônio Ferraz, escrivão de Paz e Notas que escrevi e assinei em público.147
Uma primeira questão a ser levantada aqui é que o dito casal não possuía filhos,
“declaro que sou casado com D. Anna da Silva Tavares [...] de cujo matrimônio não tivemos
filho algum”. Trata-se de uma questão relevante, pois resulta na condição da inexistência de
herdeiros ao patrimônio de D. Anna, o que de alguma forma poderia explicar os possíveis
motivos que levaram a referida senhora a declarar como seus legítimos herdeiros os escravos
147 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 43.
78
de sua propriedade, muito embora alguns questionamentos, muito bem fundamentados, que
apontam outros motivos para a doação da Sesmaria Boa Vida, o que trataremos
oportunamente.
Entendemos como uma parte fundamental para a própria existência da Comunidade de
remanescentes do Quilombo Mata Cavalo a declaração de intenção, em testamento feito por
Ricardo José Alves Bastos, de alforriar os seus escravos: “Declaro que deixo todos os meus
escravos para servirem a minha mulher durante a sua vida e por seu falecimento gozarem de
plena liberdade como se de ventre livre nascessem”. Realmente, esse é um ponto essencial na
história dessa comunidade, na medida em que proporcionou as condições para que, no futuro,
sua esposa destinasse em testamento a doação do seu imóvel aos seus escravos. Condição
essa, nos parece, poderia ou não ser diferente, se considerarmos a hipótese de na época do
falecimento de D. Anna da Silva Tavares, seus escravos não fossem alforriados.
Ricardo José Alves Bastos vai a óbito no dia 6 de Abril de 1875. Em 28 de abril do
mesmo ano, o Sr. João da Costa Teixeira apresenta ao órgão competente o testamento para
que se cumpram os protocolos e as providências cabíveis de acordo com a lei. Como D. Anna
da Silva Tavares não dá entrada aos trâmites do inventário no prazo de trinta dias após a
morte de seu esposo, como era estipulado legalmente148, o Procurador Fiscal da Fazenda
Provincial informa ao Juiz da Provedoria e requer a imediata consumação do referido
inventário. O inventário de Ricardo José Alves Bastos é muito importante para a nossa análise
na medida em que fornece os limites e a localização da Sesmaria Boa Vida ao mesmo tempo
em que relaciona os negros alforriados na ocasião do próprio inventário.
3.7 Inventário de Ricardo José Alves Bastos
Conforme consta na Ação Cautelar Inominada, fonte já citada anteriormente,
na data de 31 de maio de 1875, o então Procurador Fiscal da Fazenda Provincial, senhor José
148 O prazo de 30 dias para processamento de inventários e o esforço no empenho para que o mesmo fosse levado à efeito interessava aos cofres da Fazenda Provincial, pela vultosa soma de impostos agregados no processo o que, de certa forma, explica a intervenção direta dos meios competentes à implementação dos inventários, caso os interessados não se pronunciassem dentro do prazo estabelecido.
79
Anastácio Monteiro de Mendonça, leva à efeito o protocolo da petição junto ao Juiz da
Provedoria, nos seguintes termos:
Tendo falecido na freguesia de Livramento, termo desta Capital, lugar denominado Boa Vida, há mais de um mês o cidadão Ricardo José Alves Bastos com testamento, ficou de posse dos bens do casal D. Anna..., como cônjuge que lhe sobrevivera e por que não tenha aquela viúva dado começo ao inventário e partilha dos espólios em prejuízo da Fazenda, requer o suplicante a V. S. mandado citatório contra a dita D. Anna..., a fim de comparecer neste juízo em dia e hora que V. S. designar para prestar o juramento de estilo, fazer declarações necessárias e prosseguir se nos ulteriores termos do inventário até a sentença de sua execução, e ser deduzida a taxa devida a mesma Fazenda Provincial. Neste Termos P.r. Vosso deferimento.149
Ainda segundo esse texto, às folhas 04 do Inventário de Ricardo José Alves Bastos, D.
Anna da Silva Tavares constitui como seu bastante procurador, na forma da lei, o Capitão
Amâncio Pulchério de França. Importa ressaltar que Francisco José da Silva assina em nome
de D. Anna, por ser esta analfabeta, a procuração dando plenos poderes ao mesmo, tendo
como testemunhas o Capitão Domingos Monteiro da Silva e o alferes Ayres Antunes Maciel,
além do Sr. Manoel Antunes Ferraz, escrivão de Paz e Notas do Distrito de Livramento.
À folha 15 do referido inventário consta a relação dos bens de raiz. Esse documento é
fundamental para o processo jurídico inerente ao litígio das terras do Mata Cavalo, na medida
em que situa a Sesmaria Boa Vida, através dos limites com seus vizinhos, sendo possível pela
própria documentação disponível em arquivos localizar geograficamente aquela localidade:
Raiz. Uma sesmaria de matas lavradias com uma légua em quadra sita no lugar denominado "Boa Vida" com engenho de moer, casa de vivenda coberta de telhas e mais benfeitorias, com frente ao Nascente, fundos ao Poente, compreendendo nela dois ribeirões denominados "Engenho e Mutuca", cuja sesmaria confina para o Norte com terras de João Lopes de Abreu e para o Sul com terras de Francisco José da Silva. Havida por arrematação em praça pública, em mil oitocentos e cinqüenta, na execução que movia o finado capitão Antônio José do Couto à herança de Dona Custódia d'Almeida e Silva cujos autos estão apensos por linha aos do inventário da dita executada no Cartório do 1º Escrivão de Órfãos. Vista e avaliada pelos avaliadores
149Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 44.
80
Antônio da Costa Teixeira e Francisco Xavier Gonzaga em dois contos de réis com que se solve a margem.150
Às folhas 17 e 17 verso, encontra-se a transcrição de parte do termo referente às
últimas declarações fornecidas por D. Ana da Silva Tavares, na data de 29 de Julho de 1875,
nas quais encontram-se relacionados alguns dos escravos que foram alforriados pelo
pagamento da quantia de dois contos e cinqüenta mil réis, cinqüenta mil réis a mais que o
próprio valor pago pela Sesmaria Boa Vida. Segundo tal documento, os escravos Silvério,
crioulo de 39 anos, Maria, crioula de 47 anos, Beatriz, crioula de 45 anos, Juliana, crioula de
43 anos e Jezuína de 27 anos, matriculados sob os números 1980, 1986, 1987, 1988 e 1995,
consecutivamente, “pretendendo suas liberdades acabam de oferecer as quantias por que
foram avaliados e requerem ao Sr. Juiz as mesmas liberdades.”151
Antes de prosseguir na análise da história dominial relativa ao imóvel da Sesmaria
Boa Vida, tomamos a liberdade de abrir um parêntesis para realizar uma sondagem hipotética
com relação ao ato de doação da Sesmaria Boa Vida, por parte de sua legítima proprietária, a
seus escravos, o que marcou na linha do tempo dessa história a própria consolidação do
Quilombo Mata Cavalo, hoje uma comunidade de remanescentes. Importante empreender
essa discussão, pois segundo nossas avaliações até o presente momento, tudo indica a
existência de mais de um vetor explicativo ao fato que originou a existência dessa
comunidade. Considerando a mera aparência dos fatos, a referida doação soa como fruto de
um ato de bondade e do espírito altruísta de sua protagonista, o que nos afasta de maneira
perigosa, conceitualmente falando, de pelo menos uma parte dessa realidade. Acreditamos, e
isso se torna quase óbvio, que o Mata Cavalo foi conseqüência de um estado de negociação,
nesse caso em um nível subjetivo elevado. Esses atores da vida real conjugaram forças no
embate do momento histórico onde se desenrolaram as tramas de suas vidas, no interior de
uma sociedade em franca decadência econômica, como apontam alguns estudos pioneiros da
historiografia mato-grossense, sintetizados nas pesquisas históricas do professor Carlos
Alberto Rosa, como veremos a seguir.
150 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 44. 151 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 45.
81
De acordo com Rosa, no início da década de 1790 aconteceu a implementação da
ocupação do território por ele denominado de “área central”, uma tendência que se verificou
até o ano de 1883, conforme análise realizada em 58 requerimentos de sesmaria para aquela
área que apontavam a referida ocupação no lustro 1790-94. Este pesquisador contata que,
nesta área compreendida a norte “pelo rio Pari e a sul por linha entre as confluências Bento
Gomes/Landi e Cocais/Cuiabá”152, ocorreu intensa diversificação de atividades produtivas na
lavoura, criação e, também, mineração, apontando a predominância da lavoura sobre a criação
e também a mineração. (Vide gráfico 1).
Conforme esses estudos, a agro-manufatura era predominante na “área central”
principalmente aquelas relacionadas à produção de açúcar, aguardente e rapadura, incidindo
no aparecimento de grandes benfeitorias como as casas de engenho, fornalha, casa de
alambique, tendas de açúcar e paiol/armazém. Rosa salienta, também, a importância das
“casas de vivenda coberta de telha (registrou-se uma, de ‘sobrado’), as senzalas e os
canaviais, milharais e laranjais, cercados de pau-a-pique”.153 No que nos interessam, essas
pesquisas apontam a parte noroeste da área central como o local onde se situa as terras de
Mata Cavalo.
Analisando o caso da transferência de João José de Siqueira, que até 1845 era
proprietário da área da Sesmaria onde se encontra o atual Mata Cavalo, para Chapada dos
Guimarães, onde passa a dedicar-se à produção canavieira e também, cafeeira, Rosa encontra
um significativo “momento conjuntural” conforme suas próprias palavras. Esse momento da
história indica uma crise na produção agro-manufatureira e agrícola na região de Livramento
no decênio 1862-72. Concomitante à depressão econômica desta região, verificou-se um
considerável aquecimento da economia em expansão na área da Chapada dos Guimarães. De
acordo com o Barão de Melgaço, citado por Rosa, a população escrava – principal indicador 152 Rosa, Carlos Alberto et alii. Op. Cit. P. 39. 153 Rosa, Carlos Alberto et alii. Op. Cit.. P. 41.
Gráfico 1: Atividades produtivas área central no lustro 1790/94
82
econômico à época – sofreu uma dramática perda de 68,8% no ano de 1862 em relação ao ano
de 1852, ou seja, no período de dez anos a população escrava naquela região sofreu um
decréscimo equivalente a mais ou menos sete décimos do seu total. Segundo Rosa:
Mesmo levando-se em conta a Guerra do Paraguai e a epidemia de ‘Bexigas’ de 1867-68, esse alto percentual de perda continua expressivo. Examinando-se os dados de 1872 relativos a 5 freguesias/municípios na área do antigo Termo/Comarca de Cuiabá (Chapada, Diamantino, Livramento, Poconé e Rio Abaixo), constata-se que os índices de perda nas respectivas populações escravas são sintomaticamente bem diferenciados. Assim, os maiores índices ficam com Livramento, Diamantino (66,7%) e Poconé (64,4%). Rio Abaixo fica com um índice que representa praticamente a metade dos anteriores e Chapada apresenta o menor índice: 17,4%.154
A simples observação desses números estatísticos estabelece, sem margem a qualquer
dúvida, a existência do recesso econômico por que atravessava a região de Livramento,
Poconé e Diamantino, bem como fundamenta a hipótese da transferência dos escravos dessa
região para a Chapada e “mesmo para Rio Abaixo, entre 1850 e o pós-guerra do Paraguai”.155
Concluindo esse raciocínio investigativo, tomamos a liberdade de parafrasear Rosa, em sua
citada obra: o contexto histórico referente a doação da Sesmaria Boa Vida, atual Mata
Cavalo, no ano de 1883, era fortemente marcado pela retração da população escrava,
conseqüência da crise econômica regional. Poderia, no entanto, a questão econômica, aqui
relatada, constituir na única explicação dos motivos que influíram nas decisões de D. Anna
em seu ato de doação da sua propriedade a seus escravos?
154Rosa, Carlos Alberto et alii. Op. Cit. P. 45. 155 Id. Ibidem.
Gráfico 2: Dados estatísticos do índice de retração demográfica da população escrava no ano de 1872
83
D. Anna da Silva Tavares, uma mulher nos destinos do Mata Cavalo. Filha de
Antonio de Almeida Lara e de Ana de Moura Meireles, neta, pelo lado materno, de Teresa,
uma parda liberta conhecida pela alcunha de “Pacupeva” e de um português de São Salvador
de Vilhó, Arcebispado de Braga, de nome Manoel Meireles, também “filho natural”.
Segundo Rosa, pode-se considerar a hipótese muito plausível da dimensão sentimental e
pessoal envolvida no caso da dita doação. “Em 1883 D. Anna estava com 73 anos. Seu
Marido morrera havia 8 anos. Sem filhos, avançada em idade, a percepção da velhice e da
morte certamente aliaram-se à percepção de ruptura da ordem-do-mundo em que vivera”.156
Concordamos com Rosa quanto à ruptura da ordem e a instalação do aparente caos na
vida dessa senhora, em função de sua idade avançada e salientamos que poderia haver algo a
mais para quem a vida do corpo já estava prestes a se extinguir. Tomamos como referência
seu próprio marido que, pratica usual à época, encomenda em testamento seja realizada dez
missas em favor de sua alma e também, segundo seus desejos, a declaração que o “funeral
seja feito com simplicidade sem pompa alguma”157. Fato revelador, indaga-se, de uma
questão incrustada à mentalidade coletiva, com relação à expectativa do além-túmulo, que
perdura aos dias atuais: o medo do desconhecido, do vazio desconcertante e do nada relativo
ao "pós-morte". Como sabemos, o referido casal possuía considerável patrimônio material o
que o colocava numa posição bem cômoda frente à vida de fartura e ostentação, e nada seria
mais natural que a pretensão a uma morte singela, piedosa e humilde, uma contrapartida à
riqueza terrena, uma busca do paraíso celeste, segundo os dogmas cristãos. No caso singular
de D. Anna, uma atitude altruísta como representou a doação de um bem de alta relevância a
seus escravos certamente, ao menos no seu íntimo particular, conjectura-se, proporcionaria
um refrigério à sua alma, e uma esperança da redenção no devir escatológico. Rosa enfatiza,
com muita propriedade, esse pensamento ao afirmar que:
Embora delicada, esta mediação entre o estrutural/conjuntural e o pessoal pode ser balizada, por algumas constatações. O estudo de Testamentos, por exemplo, revela que a percepção da morte antecede de vários anos o efetivo falecimento. Revela também que o momento dessa percepção é, muitas vezes, um ‘momento de libertação’ por parte dos senhores, dentro da situação escravista: é nesse momento que predominam os reconhecimentos
156 Rosa, Carlos Alberto et. alii. Op. Cit. P. 47. 157Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 42.
84
de filhos e mães escravos ou libertos; é nesse momento que ocorre boa parte das declarações de liberdade e das doações.158
Eduardo Silva, citado no primeiro capítulo dessa dissertação, tem como eixo norteador
de parte de suas produções historiográficas a questão da negociação entre escravos e senhores,
no contexto da escravidão racial da era moderna no Brasil. Representante de uma gama de
historiadores que segue essa linha de pensamento159, ele afirma que entre o ímpeto reacionário
e a submissão passiva existe o escravo que negocia seu modo de vida, no interior de uma
sociedade escravocrata marcada por interesses difusos, que por sua vez também negocia seus
interesses. Considerando esse aspecto fundamental nas relações escravistas, Rosa salienta que
o texto da doação de 1883 merece uma análise mais acurada. De início, aponta ele, emerge
um detalhe importante: “o texto cartorial fala em ‘os que se libertaram’, não em ‘os que se
libertou’, ou “a que se deu liberdade”.160 Segundo a análise desse pesquisador, essa é uma
diferença paradigmática, pois remete à diferença entre “ativo” e “passivo”. No inventário de
Ricardo José Alves Bastos, marido de D. Anna, essa nuance, percebe Rosa, torna-se
evidência:
Os libertos referidos compraram sua liberdade. Esse comprar, por sua vez, implica ‘tratos’, acordo no interior das relações escravistas, que possibilitem acumular créditos ou capital-dinheiro para a compra. E esses tratos pressupõem uma ação consciente, uma negociação ‘política’, entre escravos e seus senhores.161
Nestes termos, em conclusão, a hipótese da existência de tratos entre D. Anna da Silva
Tavares, seus escravos e os negros do mesmo grupo que foram libertados de uma forma ou de
outra, não é descartável, constituindo-se em algo coerente e racional. O fato é que no contexto
dos últimos dias de vida de D. Anna, nesse momento pessoal houve acomodação de
interesses, houve negociação. Uma pergunta instiga a sondagem investigativa: por que incluir
na referida doação os que se libertaram? A hipótese da negociação assume caráter plausível,
portanto. Segundo Rosa: “a doação foi, na prática, resultado de um acordo, por meio do qual
escravos e libertos com ligações de parentesco e/ou laços grupais desenvolvidos no estar
158 Id. Ibidem. 159 Ver nota 42 no primeiro capítulo desta dissertação. 160 Rosa, Carlos Alberto et. alii. Op. Cit. P. 48. 161Id. Ibidem.
85
juntos, por anos, em uma mesma unidade produtiva, passaram a ter, em comum, a propriedade
da terra em Mata Cavalo”.162
De volta à linha do tempo da cadeia dominial envolvendo a história da Sesmaria Boa
Vida, encontramos o caso do escravo Silvério que comprou sua liberdade, conforme atesta a
certidão às folhas 18 verso, do Inventário de Ricardo José Alves Bastos, onde ele afirma, de
acordo com a lei, que “passei carta de liberdade aos escravos Silvério, Beatriz, Maria, Juliana
e Jezuína, de conformidade com o despacho retro. Cuiabá, digo, Engenho da Boa Vida, 29 de
Julho de 1875”.163 O caso do escravo Silvério é de fundamental importância para a nossa
investigação pois, como veremos mais adiante, foi utilizado de maneira equivocada no
processo jurídico de Ação de Usucapião que originou a matrícula que legitima a propriedade,
mesmo de forma provisória, de parte do imóvel São Carlos, agregando um elemento à mais na
já instável questão fundiária aqui estudada.
3. 8 As declarações de vontade de D. Anna da Silva Tavares
O dia 15 de Setembro de 1883 marcou de forma profunda os destinos dos
escravos da Sesmaria Boa Vida. Nesta data, D. Anna da Silva Tavares convocou o escrivão de
Paz e Notas de Livramento, Sr. Manoel Antônio Ferraz a comparecer à sede do imóvel
Engenho Boa Vida, para proceder ao assentamento no livro número 49 de três declarações de
vontade. Essas declarações trarão profundas conseqüências para o processo de
aquisição/expropriação de terras no Mata Cavalo, em função do imóvel em litígio. Por outro
lado assinala na linha do tempo o momento de fundação do próprio Quilombo no âmbito da
história. Um fato a ser destacado, é que o tal livro de número 49 sumiu em circunstâncias
misteriosas, sendo que a reconstituição de tais declarações só foi possível em função dos
traslados desses documentos em outros processos que se encontram no Arquivo Público do
Estado de Mato Grosso e no Instituto de Terras de Mato Grosso. A seguir transcrevemos na
íntegra as intenções da proprietária deste imóvel:
162 Id. Ibidem. 163Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 46.
86
a) Confirmação de doação de parte da sesmaria para os herdeiros de Francisco José da Silva, registrada às fIs. seis e sete verso do livro 49, e que o cidadão Leopoldino Alves da Costa (assina a rogo de d. Ana da Silva Tavares) e tem como testemunhas os senhores José Paes de Proença, João Pinto de Figueiredo, Matheus Antônio da Costa, José Luiz Coelho e Miguel Clemente do Amaral Coutinho. O traslado de tal declaração encontra-se no inventário do finado Francisco José da Silva. b) Doação do Ribeirão Mutuca, por parte de D. Ana da Silva Tavares para Leopoldino Alves da Costa conforme assento feito às fIs. sete verso e oito, em que o cidadão Matheos Antônio da Costa assina a rogo de D. Ana da Silva Tavares e o beneficiário Leopoldino Alves da Costa e as testemunhas João Pinto de Figueiredo e José Paes de Proença. c) E nas mesmas fls. 8 do citado e desaparecido Livro 49 da serventia de Notas de Livramento, está assentado a doação feita para seus escravos, inclusive aqueles que se libertarão por ocasião do inventário de seu marido finado Ricardo José Alves Bastos, e assinou a rogo de D. Ana da Silva Tavares o Sr. José Paes de Proença e como testemunhas Joaquim Leite de Medeiros e Matheus Antônio da Costa, conforme faz prova o traslado de fls. 110v a 112 do Livro da Câmara de Livramento sob guarda do INTERMAT.164
Continuando a análise realizada no texto da Ação Cautelar Inominada, várias questões
são levantadas, que serão a seguir transcritas devido à gravidade que elas representam para o
processo estudado na presente pesquisa histórica:
a) Todas as declarações foram feitas no mesmo dia e assentada em seqüência pelo escrivão de Notas Manoel Antônio Ferraz. b) Há uma clara intervenção das mesmas pessoas, ora assinando a rogo de D. Ana da Silva Tavares e ora como testemunhas. c) Dos três atos acima narrados, os de letras "b" e "c" foram devidamente levados a assento junto ao registro de propriedade que funcionava na Câmara de Livramento, cumprindo o disposto no artigo 114 do decreto 38 de 1893. d) O assento de letra "a" não foi para o registro da Câmara, pois antes foi efetuado o inventário de Francisco José da Silva, conforme cópia do existente no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso, mas que incluiu toda a área do imóvel Boa Vida em tal partilha, desconhecendo os outros dois atos de D. Ana da Silva Tavares, em favor de Leopoldino Alves da Costa e dos escravos de D. Ana e daqueles que se libertaram em 1875. e) Dá para se inferir que tal registro de letra "a" nunca foi efetuado porque o cidadão Leopoldino Alves da Costa era justamente o secretário da Câmara
164 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 46.
87
Municipal e encarregado de colher os registros de propriedade daquele distrito!165
Como afirmamos anteriormente, essa data marcou o momento em que a propriedade
da Sesmaria Boa Vida passa às mãos dos escravos de D. Anna da Silva Tavares. De acordo
com a documentação que se encontra no Arquivo Público do Estado de Mato Grosso e
também no Instituto de Terras de Mato Grosso, fica provado, sem margem à dúvidas, que,
conforme as determinações encontradas no texto jurídico do artigo 114 e seguintes do
Decreto 38 de 1893, tanto a doação para Leopoldino (que em 18 de junho de 1896 será
vendida para o negro liberto Vicente Ferreira Mendes), como a feita para os escravos de D.
Anna em 1883, constituiu-se em ato jurídico legítimo. Conforme assento feito às fls. 110v à
112 do livro 2 da Câmara de Livramento, os donatários, no caso os escravos cativos e também
libertos da Sesmaria Boa Vida, passaram a ser os legítimos proprietários do referido imóvel.
Torna-se, aqui, indispensável à compreensão dos processos legais em jogo uma breve citação
da conjuntura jurídica inerente à dinâmica que envolve as leis de terras à época no que se
refere aos serviços burocráticos cartoriais.
De acordo com a Constituição Federal de 1891, em seu Artigo 68, as terras devolutas,
que antes pertenciam ao Império, foram transferidas para os Estados da Federação sendo que
as áreas consideradas indispensáveis à segurança nacional ficariam sob responsabilidade da
União. Em face dessa nova conjuntura, os Códigos de Terras passaram a ser editados pelo
Estado, regulamentando assim as posses e propriedades de imóveis. Em 9 de Novembro de
1892, através da Lei nº 20, foi instituído o primeiro Código de Terras de Mato Grosso, sendo
este regulamentado pelo Decreto 38, de 15 de Fevereiro de 1893. Entre outras atribuições, o
código estabeleceu que os registros dos títulos de propriedade e posse de terras particulares
fossem realizados na sede de cada município do Estado. De acordo com o seu Artigo 113:
O registro será confiado na capital à Repartição de Obras públicas, Terras, Minas e Colonização, e no interior do Estado aos intendentes gerais dos municípios, incumbindo todo o serviço da respectiva escrituração, no primeiro caso, ao amanuense [conforme o Dicionário Brasileiro Globo: escrevente de repartição pública ou copista] da dita repartição e no segundo,
165 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 47.
88
ao secretário da câmara municipal. O parágrafo segundo do citado artigo estabelece que serão dois livros especiais, o de posse e o de propriedade, e um terceiro que seria um índice alfabético dos nomes dos registrantes. E tal registro seria instalado dentro de dois meses, na capital e seis no interior, após a publicação deste regulamento na folha oficial (§ 10 do artigo 113 do Decreto 38/1893).166
3.9 A doação da Sesmaria Boa Vida
O terceiro grande momento da cadeia dominial relativa à propriedade da Sesmaria Boa
Vida vincula-se ao ato do registro jurídico da doação destas terras aos ex-escravos de D.
Anna, em 1893. No acervo do Instituto de Terras de Mato Grosso, INTERMAT, encontram-
se quatro livros contendo registros de títulos de propriedades de que trata o artigo 114, e seus
parágrafos, do Regulamento número 38 de 15 de Fevereiro de 1893, assentados pela
administração da Repartição de Obras Públicas, Terras, Minas e Colonização. O Livro de
número 2 contém anotações referentes à doação da Sesmaria Boa Vida aos escravos de D.
Anna da Silva Tavares, conforme atesta o índice de número 38 na folha datilografada e que
faz parte integrante do referido livro. Na citação a seguir relacionamos a nossa transcrição
paleográfica relativa ao documento do ato de doação da Sesmaria Boa Vida, na íntegra,
devido à centralidade que esse fato histórico possui para a história da cadeia dominial da
referida sesmaria, bem como para os destinos dos remanescentes do Mata Cavalo.167
1883 Livro de notas n.° 49 a fls. 8, transverso, traslado de escriptura de doação que fas e assigna Dona Anna da Silva Tavares a seus escravos, inclusive aquelles se libertarão por occasião do inventário de seu marido finado Ricardo José Alves Bastos como adiante se lê = Saibão quantos esta escriptura de doação virem que sendo, digo, no anno do nascimento de Nosso senhor Jesus Christo de mil oitocentos oitenta e três, aos quinze dias do mês de setembro, neste sítio denominado Boa-Vida, aonde eu escrivão de Paz e Notas vim a chamado de Dona Anna da Silva Tavares, sendo ela ali presente e reconhecida pelo próprio, de que faço mensão e das testemunhas adiante nomeadas e assignadas em presença das quais por ela foi dito que sendo senhora possuidora de uma parte do ribeirão denominado Matta
166 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 48. 167 Para maiores detalhes verificar cópia dos originais nos anexos.
89
Cavallo, com suas vertentes de cuja parte faz doação a seus escravos inclusive aos que se libertarão por ocasião do inventário de seu finado marido estimando no valor de cento e cincoenta mil réis podendo os doados tomarem posse quando quiserem, saptisfazendo os ônus da Lei. Depois de escripto esta eu escrivão, ali perante ella que reciprocamente a outorgou e aceitou, testemunhas a todos presentes Joaquim Leite de Medeiros e Matheus Antônio da Costa e a rogo de Dona Ana da Silva Tavares, por [ilegível] José Paes de Proença e comigo Manoel Antônio Ferraz, escrivão de Paz e Notas a escrevi e assignei Manoel Antônio Ferraz, a rogo de Dona Ana da Silva Tavares, José Paes de Proença, Joaquim Leite de Medeiros = Matheus Antônio da Costa. He este o fiel traslado da dita escriptura de doação que ao citado livro e folhas me reporto e dou fé no mesmo dia, mês e ano, no princípio declarado. Eu, Manoel Antunes Ferraz, escrivão de Paz e Notas a escrevi e assignei em público e raso. Em nome da verdade estará o signal público. Manoel Antunes Ferraz. Nada mais se continha o traslado da dita escriptura acima registrada. Secretaria da Câmara Municipal da Villa de Livramento. 15 de setembro de 1893. Leopoldino Alves da Costa.
Como enfatizamos anteriormente, apesar do misterioso desaparecimento do Livro
número 49 dos acervos da Serventia de Notas de Livramento, o que no mínimo suscita certo
estranhamento, este documento foi preservado graças à sua transcrição, na forma da lei, feita
pela Câmara Municipal de Livramento. Segundo José Muraro Silva a explicação ao
desaparecimento do Livro número 49 deveu-se à influência da elite agrária daquela região,
“pois a antiga titular é descendente das fortes famílias da oligarquia que falsificaram todo tipo
de documentos para expropriar os negros de Mata Cavalo de suas terras”.168 Em face ao acima
exposto, as terras doadas por D. Anna da Silva Tavares a seus escravos e aos libertos, em
testamento no ano de 1875, foram devidamente registradas na referida Câmara, dentro do
prazo de um ano conforme determina os termos do Decreto número 38 de 1893. Entendemos
ser este um importante momento na história da cadeia dominial da Sesmaria Boa Vida que
determina, legalmente, o direito à propriedade das terras do Mata Cavalo.
168Silva, José Orlando Muraro, Mata Cavalos: Escravos e proprietários de suas terras. Artigo publicado no Informe ao X congresso de direito agrário – Quilombos. P. 13.
90
3.10 A doação do Ribeirão Mutuca
Nos caminhos que percorremos para o deslinde da questão agrária aqui tratada, outro
fato converge no conjunto da cadeia dominial: a doação do Ribeirão Mutuca feita a
Leopoldino Alves da Costa, de acordo com documento original encontrado no acervo do
INTERMAT. Na citação abaixo relacionamos a nossa transcrição paleográfica do documento
de doação do referido Ribeirão, referente às páginas 41 a 42 v, do Livro número 3 de Registro
e Declaração do Município de Nossa Senhora do Livramento.169
Escritura de doação que faz e assigna como doadora Dona Ana da Silva Tavares e doado Leopoldino Alves da Costa como adiante se vê - Saibão quanto esta escriptura de doação virem que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos oitenta e três aos quinze dias do mês de setembro neste sítio denominado Boa-Vida aonde eu escrivão de paz e Notas vim a chamado de Dona Ana da Silva Tavares, reconhecida pelo próprio de que faço menção e das testemunhas abaixo nomeadas e assignadas em presença dos quais por ela foi dito que por esta escriptura faz doação a Leopoldino Alves da Costa, do ribeirão existente em sua sesmaria denominado Mutuca, com suas nascentes desde suas cabeceiras até a estrada geral, onde presentemente existe roça dos herdeiros do finado Francisco José da Silva. E Por ele Leopoldino Alves da Costa foi aceita esta doação e desde já se dava por empossado do referido ribeirão. E depois desta ser lido por mim presente eles, assignarão a rogo de Dona Ana da Silva Tavares, por não saber escrever o cidadão Matheus Antônio da Costa, como testemunha João Pinto de Figueiredo e José Paez de Proença e comigo Manoel Antunes Ferraz, escrivão de Paz e Notas a escrevi e assino. Manoel Antunes Ferraz - a rogo de Dona Ana da Silva Tavares - Matheus Antônio da Costa - João Pinto de Figueiredo, José Paez de Proença. Nada mais se continha em a dita escriptura do que têm a copiei e conferi do próprio livro sem erro [ilegível] faça do qual me reporto em o meu poder e cartório nesta vila do Livramento aos primeiros dias do mês de junho de mil oitocentos e noventa e quatro. Eu, Leopoldino, digo, Leopoldo de Holanda da Costa Freire, escrivão do Juiz de Paz a escrevi, subscrevi conferi e assinei - Leopoldo de Holanda Costa freire. Nada mais se continha em o dito translado da escriptura acima registrada. Câmara Municipal da vila do Livramento, 21 de junho de 1894. O secretário. Leopoldino Alves da Costa.
Dois anos após o ato de doação do Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa, o
titular e sua esposa, em 18 de junho de 1896, venderam através de escritura pública, na forma
169 Para maiores detalhes conferir cópia do original nos anexos.
91
da lei, a área de terra em questão a Vicente Ferreira Mendes, um ex-escravo libertado em
função da assinatura da Lei Áurea em 1888. Essa área passa a integrar o complexo
compreendido pelo Quilombo Mata Cavalo constituído pelos ex-escravos de D. Anna da Silva
Tavares, que tinham por norma de convivência social o sistema comunal de exploração da
terra. O que importa para a análise da cadeia dominial do imóvel em questão, no caso agora,
acrescido pela área comprada por Vicente Ferreira Mendes, é que tanto a compra do Ribeirão
Mutuca, como a doação da Sesmaria Boa Vida foram devidamente registradas de acordo com
as leis vigentes à época. Ou seja, encontravam-se em conformidade com a legislação fundiária
em vigor após o ano de 1893 e, também, com o primeiro Código de Terras de Mato Grosso,
conforme comprovam as cópias dos documentos originais anexadas à presente.
3.11 Uma dura realidade
Sob a égide do conflito e da conflitividade, a sobrevivência do grupo como um todo
não foi facilitada. Em 1890, Apenas sete anos após a doação das terras da Sesmaria Boa Vida,
e em função da morte de D. Anna, os vizinhos dessa comunidade utilizaram de meios
judiciais suspeitos para “expropriar os libertos e ex-escravos de D. Anna da Silva Tavares, e
outros, que indevidamente ocupam e estragam terras e matas da Sesmaria Boa Vida, no lugar
denominado Mata Cavalo”.170 Moldados pela têmpera do sofrimento e da paciência, esse
agrupamento negro não sucumbiu à ação judicial de 1890, conseguindo manter-se coeso até a
década de 1930, conforme o entende Rosa.
Após o advento da Lei de Terras de 1850, para grande maioria daqueles que nunca
chegaram a acumular riquezas, como é o caso dos ex-escravos da Sesmaria Boa Vida, possuir
terras no Brasil constituía-se em um “sonho quase impossível”.171 Para as pessoas que não
possuíam recursos para efetuar medição e demarcação de suas posses, acrescidas as
dificuldades em compreender os processos jurídicos devido ao baixo índice de alfabetização,
como bem o percebeu Dantas, a expulsão ou grilagem de suas terras eram uma constante,
170 Rosa, Carlos Alberto et. Alii. Op. Cit. P. 50. 171 Dantas, Triana de Veneza Sodré e. Educação do negro: a pedagogia do Congo de Livramento, MT. / Triana de Veneza Sodré e Dantas. –Cuiabá: Instituto de Educação, 1995. P. 27.
92
naquele período de sua história. Essa delicada questão está presente no discurso da maioria
das pessoas que entrevistamos durante o percurso de nossa pesquisa de campo:
Então o proprietário hoje, que se diz proprietário, ele chegou na área comprou uma pequena área, [com violência! afirma a esposa do entrevistado], ele comprou a pequena área, comprou 200 hectares, outro comprou 300 hectares, mas grilaram 2000 hectares, grilava 2500 hectares, grilava 3500, assim mais ou menos que eu tenho conhecimento. Comprou uma pequena área e ficava uma grande área. Expulsava pessoas de lá, negro de lá, com pistolagem, com tiro, queimando barraco. Eu tenho conhecimento até hoje de pessoas que existe no quilombo, que saíram de noite através de pistoleiros queimando, pegavam assinatura em branco, no papel em branco. É pra preencher depois do jeito que eles queriam, de modos que eles comprou, pagou e os coitados humildemente sem ter conhecimento assinava.172
Infelizmente essa é, e sempre foi, uma realidade recorrente no Brasil. Amalgamado
numa rede de relações de reciprocidade no interior das camadas mais abastadas de nossa
sociedade, o poder e o prestígio social permitiam, e ainda o fazem, que algumas propriedades
rurais fossem dilatadas a custo da utilização de meios ilícitos, quase sempre sob a tutela do
terror e da coerção.
Neste contexto violento, conseguir um pedaço de terra onde plantar o sustento do dia a
dia não era uma tarefa fácil para as famílias pobres do Município de Livramento. Para os
negros, então, esse acesso tornava-se quase uma impossibilidade. Os colonizadores, nessa
região, ocuparam as terras férteis baseadas na agricultura e pecuária, nos moldes do sistema
sesmarial que a originaram e nas relações baseadas no direito consuetudinário. De acordo com
Dantas, “Na vida local, um mundo marcado pela palavra e uma enorme rede de obrigações e
favores, nascidos de relações de gratidão, de proteção, de compadrio, historicamente se afirma
a demarcação consuetudinária destes espaços de posses/propriedades”.173 No entanto,
contraditoriamente, afirma Dantas, no interior dessas relações sociais e políticas de
predominância da elite branca, por assim dizer, “abre-se aos negros, oportunidade de acesso à
terra embora sob rígidos padrões de controle. O acesso à terra nos interstícios das
172 Entrevista gravada com o Senhor Pedro Guilherme, ex-líder do movimento negro no Mata Cavalo, em sua residência na cidade de Livramento – MT, em 15 de Abril de 2010, conforme originais disponíveis no acervo deste autor. 173 Dantas. Op. Cit. P. 31.
93
propriedades era consentido, servindo a seus interesses.”174 Considerando-se o caráter volátil
das propriedades negras “consentidas” pelos poderes estabelecidos, a posse nessas condições
era marcada pela fragilidade, onde as famílias assentadas viviam sob o estigma da eterna
pressão, passíveis de à qualquer momento serem expulsas de suas terras. Entretanto, mesmo
sob as mais severas condições, muitas dessas comunidades sobreviveram às intempéries do
meio em que viviam como é o caso dos negros do Mata Cavalo.
A década de 1930 marcou o início de uma nova configuração com relação à
valorização das terras no Oeste brasileiro. Pensando-se numa expansão capitalista nacional, a
cúpula do Governo Vargas inaugurou a política da “Marcha para o Oeste”,175 no bojo das
profundas transformações legitimadas pelo discurso modernista da construção de um novo
país. Desta forma, o território em algumas regiões no Brasil foi reordenado tomando-se por
premissa as necessidades de base econômica, o que levou os arquitetos desta política
governamental a considerarem como “vazios” aqueles espaços que tinham como base o valor
de uso das terras, ou dito de outra forma: uma base consuetudinária que ordenava a posse
assentada nas relações de confiança mútua, onde a palavra valia mais que qualquer
documento escrito. Neste período da história, as terras nas zonas rurais foram amplamente
valorizadas de acordo com a política de mercado, ganhando um novo significado como “valor
de propriedade” e não mais como “valor de uso” como outrora tinham sido.
A propriedade das terras no Mata Cavalo marcava-se pelo estigma da indecisão,
embora aquela área se distinguir das demais pelo caráter legal de sua posse. Sua localização
privilegiada, ocupando a parte central do município, margeada pela estrada que faz a ligação
entre Cuiabá, Livramento e Poconé, o que facilitava sobremaneira o escoamento da produção,
ao mesmo tempo em que permitia uma comunicação mais rápida, constituía motivo de cobiça
por parte de alguns fazendeiros da região. Outro fator que determinava a super valorização
dessas terras é que pertenciam ao “complexo Santana-Boa Vida-Carcará”,176 uma das áreas
mais privilegiadas daquele município. Em face dessa nova realidade a comunidade do Mata
Cavalo começa a se desintegrar enquanto grupo. De certa forma, a descoberta de uma grande
174 Dantas. Op. Cit. P. 31. 175 Para maiores informações acerca da questão da valorização das terras mato-grossenses ver: Lenharo, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro Oeste, os anos 30. Campinas: UNICAMP, 1985. 176 Bandeira, Maria de Lourdes e Sodré, Triana de Veneza. O Estado Novo, a reorganização espacial de Mato Grosso e a expropriação de terras de negros (o caso de Mata-Cavalos). IN: CADERNOS DO NERU/Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos – ICHS – UFMT. N. 2 (1993) – Cuiabá: EDUFMT, 1993. P. 98.
94
pepita de ouro reacende o brilho da cobiça resgatando o mito do eldorado naquela região,
demarcando sombriamente o início de um tempo de privações e instabilidades.
3.12 Decadência
O retorno dos homens do Mata Cavalo ao garimpo e ao sonho da fortuna fácil marca,
de forma indelével, o início do processo de dissolução daquela comunidade. Ao abandonarem
suas atividades principais na agricultura colocou-se em risco uma já fragilizada estrutura de
organização baseadas nas relações comunais de acesso aos bens produzidos, bem como aos
modos de sociabilidade centrado nas relações de mútuos favorecimentos. Essa nova
configuração sócio-econômica colocou a comunidade em situação de dependência. De acordo
com Bandeira e Sodré “a já fragilizada comunidade é alcançada pela revalorização das terras
promovida pela Marcha para o Oeste determinando o rompimento dos mecanismos
consuetudinários de reconhecimento da propriedade da terra aos ocupantes tradicionais”.177
A despeito da desestabilização da comunidade do Mata Cavalo, reverso da fortuna,
iniciou-se um movimento violento de grilagem e expropriação dos integrantes daquele
quilombo. Todo o processo de expulsão se materializa quando um fazendeiro daquela região
compra uma área de 200 hectares adquirida de Vicente Paula do Nascimento e sua mulher D.
Maria Rodrigues do Nascimento, conforme averbação anexada ao documento de doação da
área do Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa.178 De acordo com entrevistas gravadas
com alguns integrantes do Mata Cavalo, toda sorte de ações ilícitas foram impetradas pelo
fazendeiro visando à expropriação daquela propriedade. Maria de Lourdes Bandeira e Triana
Veneza de Sodré, em obra já citada neste texto, também falam de ações similares a aqui
relatada, onde:
O novo proprietário inicia um movimento ativo e agressivo de grilagem de terras, ampliando os limites da área adquirida. Inicialmente utiliza como estratégia o plantio de novos roçados e criação de gado em campos fora da
177 Bandeira e Sodré. Op. Cit. P. 100. 178 Para maiores detalhes conferir cópia do original nos anexos. Segundo a maioria dos entrevistados em trabalhos de campo nesta pesquisa, foi a partir da aquisição dos 200 hectares de terra pelo dito fazendeiro que iniciou-se um processo de anexação de terras tanto por vias legais (por compras legítimas) quanto por ação de grilagem.
95
área adquirida invadindo as terras dos negros. Em seguida começa o levantamento de cercas, incluindo esses campos nos limites da área, inchando cada vez mais a sua ‘propriedade’. Posteriormente manipulando valores tradicionais, especialmente a reciprocidade, via avalização de crédito para comprar fiado em estabelecimentos na vila de Livramento, via engodo de que as terras cercadas estavam fora do ‘documento’, esse proprietário contesta a ‘posse’ de Mata-Cavalos.179
Utilizando-se de um recurso perspicaz, o proprietário exige da comunidade a medição
total daquela área de terra, compreendida pela Sesmaria Boa Vida. O momento vivido pela
comunidade do Mata Cavalo é muito grave e precário, sem condições financeiras para custear
despesas com a medição de terras foram vítimas da sagacidade e da influência de quem podia
manipular a máquina administrativa dos poderes públicos a seu favor. Desta forma, os
integrantes dessa comunidade negra perceberam a fragilidade que a posse de suas terras
representava, pois, de acordo com Bandeira e Sodré: “não passara, de acordo com a lei, pela
validação do título de propriedade”.180 Em continuação, os integrantes da comunidade do
Mata Cavalo foram envolvidos num processo de expulsão, via de regra, utilizando-se dos
recursos da violência, ora incendiando seus roçados, ora suas próprias casas, chegando ao
limite extremo da ocorrência de algumas mortes.
A comunidade do Mutuca, uma das integrantes do complexo do Quilombo Mata
Cavalo, foi à época, um expressivo baluarte da resistência negra contra o processo de
expropriação iniciada na década de 1930. Várias famílias desta comunidade resistiram à
pressão dos fazendeiros, de acordo com depoimentos orais em nossas pesquisas de campo, na
figura heróica de suas mulheres que, com bravura, organizaram um movimento de resistência
à invasão dos grileiros, chegando, às vezes, a enfrentar, utilizando apenas os seus corpos e
dos filhos menores, o fogo do inimigo. “Mantiveram vigilância constante e postavam-se em
grupos com seus filhos, interpondo-se entre os invasores e suas casas, obstruindo a
aproximação dos jagunços. Por muito tempo resistiram a uma vida de sobressaltos constantes,
de angústia e medo.” 181
O clima tenso na região resultou no resgate de uma antiga forma de vida, expressa pela
cultura de seus antepassados, marcadas pelo sentimento de solidariedade e pelas práticas
179 Bandeira e Sodré. Op. Cit. P. 101. 180 Id. Ibidem. 181 Bandeira e Sodré. Op. Cit. P. 102.
96
sociais comunitárias. A recuperação destas tradições possibilitou sua sobrevivência, através
da distribuição igualitária de alimentos, divisão coletiva do trabalho na roça e nos cuidados
domésticos. Ao privarem-se da presença dos seus homens182 as mulheres do Mata Cavalo
defenderam à custa de suas próprias vidas a sua propriedade, ora denunciando às autoridades
os abusos à que eram submetidas, ora, com muita coragem, cobrando de seus próprios algozes
uma posição ética frente à situação humilhante, pautadas pelas “regras sociais tradicionais que
também partilhavam”183. Graças a esse movimento de resistência, o grupo familiar da
Comunidade do Mutuca conseguiu conservar a posse e propriedade de 200 hectares de terra, e
por extensão a própria existência da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata
Cavalo.
Entre as numerosas famílias que migraram para outras regiões, num movimento de
diáspora, encontram-se as que compõem parte da antiga comunidade do Capão do Negro,
atual Bairro Cristo Rei, cidade de Várzea Grande – MT, e aproximadamente 60 famílias que
se estabeleceram na localidade conhecida por Gleba Despraiado, atual Bairro Ribeirão da
Ponte, cidade de Cuiabá. Conforme entrevista nos concedida por José Gregório, residente à
Av. Joaquim Louzada, Bairro Ribeirão da Ponte, em 8 de Junho de 2008, seu pai mudou-se
no final da década de 1940 para esta localidade onde havia recebido da administração do
então governador Arnaldo Figueiredo uma área de 47 hectares. Segundo suas palavras a
migração teve sua origem em função do estado de conflito na região do Mata Cavalo:
[...] Mas o iniciar desse conflito aí começô por causo dum tal de Manoel Monteiro da Silva é que meteu a medição na época. Então ele como fazendeiro lá compro 200 hectares de um fulano chamado [incompreensível]. E aí ele começou agradar os nego lá com fumo, com uma pinguinha, com guaranazinho, fazer um serãozinho... de tarde os nego ia pra lá... não sei o que? E foi botando os nego pra trabalhar pra ele aí, de repente, ele foi crescendo, foi crescendo e virou fazendeiro. Aí ele já começou a intrigar como pessoal lá, aonde ele veio aqui em Cuiabá, por intermédio das amizade aqui, pegô a polícia levou na época e pegou trinta nego que tava de tanguinha no multirão, pegou, levou trouxe na cadeia pública. Nessa cadeia pública aí... ficou preso aí. Aí enquanto isso ele meteu a medição mediu... aí mediu a área: essas 14.800 hectares, mediu tudo aonde entrou no Mata Cavalo de Cima e Mata Cavalo de Baixo. Mediu perímetro da área de marco a marco aí fechou o perímetro. Desceu aí não convocou nenhum, ninguém
182 Nesse momento da história do Mata Cavalo, a maioria dos homens da comunidade se viram obrigados a saírem à busca de trabalho, pois as suas roças haviam sido queimadas enquanto outros, embalados pelo sonho da riqueza aventuravam-se nas lavras de ouro. 183 Bandeira e Sodré. Op. Cit. P. 102.
97
de lá de dentro, não avisou ninguém que ele tava fazendo essa medição. Quem tava com a escritura ficou dentro.
O depoimento de José Gregório confere com a realidade encontrada em documentos
pesquisados no acervo do Instituto de Terras de Mato Grosso – INTERMAT, no Livro 3 da
Câmara da cidade de Livramento – MT, paginas 41 à 42v, onde encontra-se em anexo uma
declaração de averbação referente à compra de uma área de terra de 200 hectares efetuada por
Manoel Monteiro da Silva, conforme mencionado anteriormente. Com riqueza de detalhes,
José Gregório narra uma série de eventos marcados pelo estigma da violência e humilhação
por que passaram sua família enquanto ainda moravam na área do Mata Cavalo. No trecho
acima, em transcrição de sua entrevista, o que nos chama a atenção foi o episódio do
encarceramento dos trinta negros que estavam, no momento que a polícia lá chegou,
trabalhando na roça trajando apenas uma tanguinha, como era de costume para quem lidava
com a terra em um lugar de clima marcado por altas temperaturas. Sem a menor dúvida a
humilhação de ser preso e transportado naquelas condições superou e muito a própria
condição do cárcere. Numa explicação depois de desligado o gravador no momento da
entrevista, ele esclarece que apesar dos apelos dos trabalhadores no sentido de poderem ir à
suas casas para vestirem uma roupa mais adequada, a polícia respondeu com uma negativa.
Este episódio ilustra bem o caráter vexatório das ações empreendidas pelas elites dominantes
com objetivos claros de expropriação pura e simples de determinadas áreas de terra. Foi nesse
contexto violento que grande parte dos moradores do Mata Cavalo se viram obrigados a
migrarem para outras regiões, abandonando as terras que foram tão arduamente conquistadas
pelos seus ancestrais, os ex-escravos de D. Anna da Silva Tavares. Ao saírem de suas terras,
um espaço sacralizado pela memória escrava, perderam bem mais que um lugar de
subsistência, por um bom tempo lhes foram negados a condição primordial de se
reconhecerem enquanto comunidade, no sentido estrito da palavra.
3.13 A "trama"
Em 12 de Julho de 1943, João Monteiro da Costa, Manoel Monteiro da Costa e
Tibúrcio Rodrigues da Costa saem vitoriosos no processo judicial em forma de usucapião
referente a uma área de 884,50 hectares. Essa área de terra encontra-se, em parte, nos limites
formados pelo triângulo entre os marcos P3, P4 e P5 do domínio reconhecido pela União em
98
favor da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo “conforme portaria da
Fundação Cultural Palmares, datada de 15 de Julho de 2000”.184
Carlos Campos Maciel, apoiado na matrícula de número 20.739, registrada às folhas
número 188 do Livro 3.R em 20 de janeiro de 1963 do 2º. Ofício de Cuiabá, sustenta em
ofício enviado ao deputado Nico Baracat, membro da Comissão de Terras e Meio Ambiente
da Assembléia Legislativa, datada de 24 de Outubro de 2001, a validade da propriedade do
Imóvel São Carlos. Cabe ressaltar que o referido imóvel localiza-se, em parte, na área
reconhecida como domínio do Mata Cavalo, conforme portaria assinada em 15 de Julho de
2000 pela Fundação Cultural Palmares. Essa propriedade, segundo Carlos Campos Maciel
compõem-se de duas áreas com origens distintas: A primeira área com 884,50 hectares,
relacionada acima, e a segunda área com:
1.231 hectares tem outra origem documental, a saber: o Estado de Mato Grosso (556 hectares em favor de Geraldo Gonçalves de Queiroz; Espólio de Simão Bargas da Costa julgado por sentença em 26.4.1926) e de Januária Agostinha Costa (julgado por sentença em 26.2.1931) e em sucessivas operações, todas realizadas no mesmo dia, 22.04.1955, permanecem em poder de Manoel Inácio da Silva as outras duas áreas de 450 e 225 hectares respectivamente. Em 1955 tais áreas passam ao poder de Geraldo Gonçalves e sua mulher e, finalmente, em 11.06.1958, o citado recebe mais 556 hectares do Estado de Mato Grosso e na mesma data transfere as três áreas para Auriste Ernesto Schuring e este, em 19.3.1973 transfere as três áreas para CARLOS CAMPOS MACIEL.185
A segunda área por encontrar-se fora dos limites da propriedade do Mata Cavalo não
interessa à nossa análise. De acordo com as pesquisas e acurada análise documental realizada
em função da Ação Cautelar Inominada, que temos exaustivamente utilizado como fonte para
a escrita deste segundo capítulo, interessa ao deslinde dessa questão conflituosa o narrado na
matrícula no. 2945, do 2º. Ofício, unificada pela matrícula no. 2947 do 1º. Ofício de Cuiabá,
em 22 de Abril de 1955. Segundo o texto referente a esta matrícula, uma área equivalente a
225 hectares e uma casa de telha de barro foi localizada na antiga área da Sesmaria Boa Vida,
em um lugar denominado Pirizal. Conforme o ofício de Carlos Campos Maciel, essa área
184Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 54. 185 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 53
99
encontra-se acobertada em lei na propriedade do imóvel São Carlos. No entanto, ao
confrontarem-se os dados, em momento algum situa estes 225 hectares no triângulo formado
pelos marcos P3, P4 e P5 do decreto federal, “eis que o Pirizal localiza-se bem ao SUL, já
quase na barra do Brumado no ribeirão Santana. Portanto esses 225 hectares finais na
matrícula unificada sob número 2.947 do 1° Ofício estão fora do limite determinado pela
portaria da Fundação Cultural Palmares.”186
Interessante observar que segundo conclusões encontradas nesta Ação Cautelar
Inominada, a área incluída entre o triângulo formado pelos marcos P3, P4 e P5 cuja
propriedade é pleiteada por Carlos Campos Maciel, não possui titulação legal conforme
comprovado em seu texto judicial. Confrontados o mapa utilizado pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária, INCRA, e os marcos declarados na matrícula número 20.739
do 2º. Ofício deduz-se que:
O marco ou "estação" I está fincado na confluência dos ribeirões Estiva com Mata-Cavalo, e prolonga-se por 3.120 metros até atingir a "estação" ou marco II, sem atravessar o córrego Mata-Cavalo! Todos os marcos assentados e materializados no solo deixam claro que a área usucapida em 1943 é um polígono irregular que tem pelo seu meio, a atravessá-lo longitudinalmente, somente o córrego Estiva e não atravessam o Córrego Mata Cavalo! Os documentos da segunda área apresentada pelo réu ao deputado Nico Baracat, claramente estão ao Sul do córrego Mutuca, fora do perímetro demarcado pelos marcos P4 e P5. E os documentos da primeira área situam-se ao Norte do córrego Mata Cavalo, deixando claro, portanto, que o réu não possui qualquer documentação incidente sobre a área que pleiteia localizada entre os córregos Mata-Cavalo e Mutuca!187
Portanto, inexistindo qualquer documentação que comprove efetivamente a
legitimidade da área aqui discutida, o triângulo formado pelos córregos Mata Cavalo e
Mutuca, fica naturalmente delimitada por lei a favor do Mata Cavalo, de acordo com o
despacho publicado no Diário da União, pela Fundação Cultural Palmares, em 18 de Julho de
2000.
Perplexidade. Esse o sentimento que descreve o processo de usucapião assentado sob
o número 20.739, do Segundo Ofício Registral e Notarial de Cuiabá, em 29 de janeiro de
186Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 55. 187 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 56.
100
1963, vinte anos após a publicação do Edital no Diário Oficial do Estado de Mato Grosso, em
9 de Abril de 1943. De acordo com o processo em questão, em momento algum durante o
trâmite da Ação de Usucapião foram mencionados os ex-escravos de D. Anna da Silva
Tavares e seus descendentes, da mesma forma que não foram citados os herdeiros de Vicente
Ferreira Mendes. Este, um antigo escravo da Sesmaria Boa Vida que na data de 18 de Junho
de 1896 adquiriu na forma da lei, uma área de terras da referida sesmaria doada à Leopoldino
Alves da Costa, que passou a integrar as terras do Mata Cavalo, devido ao sistema comunal de
acesso à mesma, característica própria desta comunidade. Ora, essa é uma questão capital aos
processos inerentes à aquisição de terras via usucapião, ou seja, considerar todas as partes
envolvidas. Neste caso singular, perpassado por imposições ilícitas e manobras políticas por
parte de quem domina as redes e as relações de poder, a comunidade que se encontrava
naquelas terras a mais de um século simplesmente foi ignorada. Eis que se encontra no edital:
Juízo de Direito da Comarca da Capital EDITAL DE CITAÇÃO O Dr. Francisco Bianco Filho, Juiz de Direito da Comarca de Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso, na forma da lei. FAZ SABER aos que o presente edital com prazo de trinta (30) dias virem e dele conhecimento tiverem que por parte de João Monteiro da Costa, Manoel Benedito da Costa e Tibúrcio Rodrigues da Costa, lhe foi dirigida a petição que abaixo segue: Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Comarca da Capital. Dizem João Monteiro da Costa, Manoel Benedito da Costa e Tibúrcio Rodrigues da Costa, brasileiros, casados, moradores e lavradores os últimos, e comerciante o primeiro, no lugar denominado Estiva, município de Livramento, por seu bastante procurador o advogado José Feliciano de Figueiredo, mandato junto, que vê expor a V. Excia. O que abaixo se segue para final requerer: 1°- Que, há setenta anos, por si e seus antecessores, ocupam como senhores e possuidores mansa e pacificamente de boa fé, sem oposição de quem quer que seja, uma posse de terras de mais ou menos mil e oitocentas hectares com os seguintes limites: uma linha partindo da "Várzea Funda" recolhendo o aramado do segundo requerente, até o fio de "água do Ribeirão Estiva, por este acima, até a barra do "Rondonzinho"; daí rumo ao Poente recolhendo o capão de "João Mina", desse rumo à barra do Estiva, e deste ao ponto de partida. Essas terras foram exploradas pelos ancestrais dos suplicantes, que construíram ali casa de moradia, roças e pequena criação de gado vacum, hoje pertencente aos suplicantes;; que ao nascerem já encontraram este sítio montado como de propriedade dos mesmos que se chamava e chama Estiva; Que essas terras se encontram situadas dentro da sesmaria denominada Boa Vida, de propriedade dos herdeiros de D. Leopoldina Alves da Costa e
101
Silvério da Silva Tavares, únicos proprietários dos quais se tem notícias nos Registros de Títulos de propriedades do município de Livramento; sesmaria esta que possui sete mil hectares. Que de acordo com o disposto no artigo 530, inciso terceiro combinado com o artigo 550, do Código Civil Brasileiro, adquire a propriedade imóvel pelo USOCAPIÃO aquele que por trinta anos sem interrupção nem oposição possuir como seu um imóvel independentemente de título e boa fé, que em tal caso se presumem. Que os requerentes se encontram nas condições expressas nos artigos supra citados, visto que não possuem outro título hábil para a aquisição de propriedade sobre as referidas terras a não ser a prescrição aquisitiva de propriedade, ou usucapião contra os sucessores dos já supracitados; Que diante do exposto, como os documentos juntos provam os requisitos exigidos pela lei, para a aquisição da propriedade sobre as terras descritas, que são: a) posse mansa e pacífica dos requerentes, de boa fé, por mais de trinta anos, sem oposição de quem quer que seja, sobre as terras supracitadas; b) ser a posse de terras de domínio particular, contra quem pode correr o usucapião, vêem os suplicantes propor a presente AÇÃO ORDINÁRIA DE USOCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO,como proposto tem, contra os atuais sucessores dos últimos proprietários conhecidos da sesmaria Boa Vida, já citados, todos desconhecidos e em lugar incerto e não sabido. Nos termos do artigo [...] do Código de Processo Civil e Comercial, em seus incisos, uma vez que já se encontra justificada a posse mansa e pacífica, sem oposição de quem quer que seja, requisito para o USOCAPIÃO, pede-se a citação dos interessados os réus ou seus sucessores, todos desconhecidos e em lugar incerto e não sabido, para contestarem o pedido no prazo de 30 dias. Pede-se também a citação dos confinantes Emiliano Monteiro da Silva, Benedito Gregório de Almeida e sua mulher, e o Sr. Felipe Benício - e sua mulher, para alegarem o que for de direito, e também do Dr. Promotor da Justiça,como representante do Ministério Público. Deixa-se de pedir a citação pessoal daqueles em nome de quem se encontra transcrito o imóvel, pelos motivos já declarados. Protestando por todos os meios de provas admitidos em Direito, esperam os suplicantes seja julgada procedente a presente Ação, para que se produza os seus efeitos legais. Dá-se a presente ação para os efeitos da taxa judiciária o valor de cinco mil cruzeiros. Cuiabá, 31 de março de 1943. José Feliciano de Figueiredo (Estava devidamente selada) DESPACHO. D. e A. - expeça-se mandado de citação na forma do requerido. Cuiabá, trinta e um de março 1943. F. Bianco Filho. Distribuição. Distribuição ao 3° Ofício Civil. Cuiabá, 2 de abril de 1943. A dist. Olga Bastos Cuiabano (colada e devidamente inutilizada uma estampilha da taxa judiciária do valor de vinte cruzeiros. E para que chegue ao conhecimento de todos mandou expedir o presente que será afixado e publicado na forma da Lei. Dado e passado nesta cidade de Cuiabá, aos treis de abril de mil novecentos e quarenta e treis. Eu, Pedro P. Antunes Maciel, Escrivão fiz datilografar. Francisco Bianco
Filho - Juiz de Direito
Confere: Pedro P. Antunes Maciel - Escrivão
O primeiro grande absurdo verifica-se na falsa citação de Leopoldina Alves da Costa,
como antiga proprietária da área em questão. Na verdade o beneficiário da doação ocorrida
em 1883 era homem e conhecido pelo nome de Leopoldino Alves da Costa, que recebera de
102
D. Anna da Silva Tavares uma área de terra denominada Ribeirão Mutuca, conforme assento
às folhas 41 a 42 v, no Livro número 3 da Câmara de Livramento, em que o cidadão Matheos
Antonio da Costa assina à rogo de D. Anna. Essa área de terra foi posteriormente vendida a
Vicente Ferreira Mendes, um ex-escravo da Sesmaria Boa Vida, o que implica o retorno dessa
propriedade ao Mata Cavalo, por ser este um integrante da mesma. Em conclusão, se na
sentença de usucapião em questão não existe menção dos herdeiros de Vicente Ferreira
Mendes e/ou seus sucessores “a sentença não faz coisa julgada, eis que nunca foram citados,
sendo estranhos ao processo de usucapião em estudo”188.
Imagem 2: Cópia do original da página 42, Livro da Câmara de Livramento.
Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos
No caso da citação, no processo de usucapião, do ex-escravo Silvério da Silva
Tavares, vale ressaltar que o mesmo individualmente nunca foi proprietário da área doada por
D. Anna da Silva Tavares, sendo que em 1883, no ato da doação havia no mínimo 34
escravos, segundo testamento de Ricardo José Alves Bastos, 8 anos antes, o que o coloca,
legalmente entre os 34 ex-escravos que foram beneficiados, conforme anotado no documento
de doação. Portanto, inevitavelmente, havia a necessidade jurídica de mencionar neste
188 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 61
Cópia do original da página 42, do Livro 3 da Câmara de Livramento, contendo a declaração de doação da área compreendida pelo Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa, feita por D. Anna da Silva Tavares, em 15 de setembro de 1883. Ver detalhe grifado contendo o nome de Leopoldino Alves da Costa.
103
processo os herdeiros destes escravos. Em conseqüência, a sentença de usucapião não faz
sentido legal por não ser “coisa julgada” contra quem nunca foi parte no processo, no caso os
referidos 34 ex-escravos. Desta forma, “nunca em tempo algum, a sentença proferida em
1943 atingiu seus direitos sobre as terras recebidas em doação em 1883”.189
A não citação pessoal daqueles em cujo nome se encontra transcrito o imóvel,
exigência formal do Artigo 455 do CPC de 1939, implica em uma violação do código de
Direito. Ou seja, uma sentença de usucapião que dá origem a uma matrícula no Registro de
Imóveis, sem considerar os registros existentes anteriormente, fere de morte o “princípio da
continuidade de registros”. Convém ressaltar que no Brasil o registro de imóveis existe desde
o ano de 1917.
3.14 Fênix negra
As décadas de 1950-60 marcaram para essa comunidade o retorno de alguns de seus
membros às terras de origem, num processo que mistura audácia e coragem em busca de um
lugar onde viver, reavendo no mesmo movimento e às expensas de pesados ônus o território
de seus ancestrais. O conturbado retorno se verificou tanto pelas vias legais, através de
compras de pequenas áreas, uma ironia do destino para aqueles que descendem dos ex-
escravos da Sesmaria Boa Vida, como de forma marginal através de invasões em áreas
periféricas, se considerada a área histórica delimitadas pelos ribeirões. Segundo depoimentos
orais de alguns representantes desta comunidade, essas invasões se verificaram nas áreas onde
se encontravam propriedades sem documentações legais, muitas das vezes terras dilatadas à
custa de processos de grilagem, a partir de áreas compradas legalmente.
No mapa nº 2 a seguir, encontra-se a Planta da Sesmaria Boa Vida / Mata Cavalo e
Ocupações, conforme a doação da área original, contando com um total de 9.258,3165
hectares, elaborado por Liliane Soares Neres Castilho, a serviço do Instituto de Terras de
Mato Grosso – INTERMAT, em Agosto de 2008. Neste documento estão localizadas as
Fazendas Nossa Senhora Abadia, Fazenda Romale, Fazenda Nova Ourinhos, bem como todos
189 Ação Cautelar Inominada. Op. Cit. P. 61.
104
os proprietários quilombolas e não quilombolas, além do acampamento do MST – Movimento
dos Sem Terras. Nas páginas seguintes encontra-se, também, o mapa nº 3, contendo o
Perímetro do Mata Cavalo, realizado a partir do Relatório de Reconhecimento realizado pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA. Neste mapa, foi delimitada a
área atual da comunidade, incluindo a área de origem e a ampliada em função do
levantamento realizado por este órgão governamental. Note-se que a nova área possui
14.748,3413 hectares, 5.490 hectares a mais que a área original.
Mapa 2: Planta da Sesmaria Boa Vida/Mata Cavalo
Elaborado por: Liliane Soares Neres Castilho em Agosto de 2008 Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos
105
Mapa 3: Perímetro da área do Mata Cavalo, revisado.
Perímetro da Comunidade de remanescentes de Quilombo Sesmaria Boa Vida / Mata Cavalo, a partir do relatório de reconhecimento realizado pelo INCRA, em Agosto de 2008. Elaborado por: Liliane Soares Neres Castilho. Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos
O processo de retorno dos remanescentes à área do Quilombo Mata Cavalo marca
também, de forma inexorável, o acirramento da tensão pela disputa das terras entre esses e
alguns fazendeiros da região. Inúmeros são os exemplos inquestionáveis que apontam uma
enorme distância entre discurso e prática, no que ser refere à solução desses delicados
problemas, como é o caso das oito famílias despejadas em função do mandato de reintegração
de posse da Fazenda Estiva, mencionado na introdução deste capítulo; de todos envolvidos no
processo verificado através do texto da Ação Cautelar Inominada que foi exaustivamente
trabalhado ao longo deste capítulo; bem como da Fazenda Ourinhos, uma antiga área de
garimpo nos limites confinantes da área original da Sesmaria Boa Vida, cujo processo judicial
106
tramita na 1ª. Região do Tribunal Regional Federal, sob no. 200336000089346, onde os
remanescentes requerem ação de reintegração de posse. O deslindar dessas delicadas questões
não dependem unicamente, como já está provado, de ações verticalizadas dos poderes federais
constituintes. O que se verifica na prática é que questões como essas envolvem interesses
entre partes, maturados, quase sempre, em período de longa data. O caso do Mata Cavalo é
singular considerando-se todas as vertentes jurídicas prováveis, pois mescla no interior do
litígio ações de doação, herança, compra, invasão, expulsão e grilagem de terras num período
compreendido por bem mais de um século.
Na atualidade, a nova geração do Mata Cavalo busca na arena política a legitimação de
suas terras, apoiando-se na Constituição Federal de 1988 e tudo que ela representa de avanço
para o resgate histórico das dívidas contraídas no passado do Brasil escravocrata. Sem,
contudo, esquecer que na questão do litígio em torno da legitimação da propriedade das terras
do Quilombo, encontra-se vários fazendeiros que conquistaram suas terras pautadas nos
princípios da legalidade190, o que se discute é a natureza histórica de um território que
assumiu proporções primordiais à conservação de um modo de vida singular, centrado na
tradição e no sistema comunal de acesso a terra.
O ano de 2004 demarcou um significativo avanço para os movimentos negros
mundiais. Proclamado pela Assembléia Geral das Nações Unidas como o “Ano internacional
para comemorar a luta contra a escravidão e a sua abolição”, representou um momento de
profunda reflexão, no âmbito das relações internacionais, quanto à problemática ainda não
resolvida das conseqüências nefastas da escravidão racial da era moderna. Entre outras
delicadas questões, trabalhamos no capítulo 1 o tema da modernidade ocidental como
resultante do trabalho e da cultura escrava, um paradigma da própria contradição191. Na
190 Por essa perspectiva as ações ilícitas que tiveram por testemunha a própria história do Mata Cavalo, constitui-se em exceção e não a regra. Seria, portanto, uma grande injustiça enquadrar todos os fazendeiros daquela região numa só categoria, quando consideramos a ilegitimidade das ações referidas no conflito agrário aqui tratado. No entanto, para aqueles que compraram suas terras no território em litígio, se confirmadas as propostas governamentais quanto à política quilombola, caberá a restituição equivalente ao valor de suas terras, quando da consumação da expropriação que se encontra em sua fase inicial, de acordo com informações prestadas por Nelson Juvenal, encarregado do processo das áreas de remanescentes de quilombo, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. 191 Ironia e paradoxo. Como resultante do trabalho escravo ressurgem os movimentos das belas artes, com suas inovações na arquitetura, literatura, expressões artísticas da música, pintura, escultura e da dança, possibilitando o próprio “renascimento clássico” europeu. O paradoxo reside no esforço que o iluminismo, um desdobramento da Europa renascentista, realiza no sentido de escamotear tudo que se relacionava com a escravidão, sendo esta a mola propulsora de sua própria existência, não só pela questão financeira, mas principalmente pela influência dos povos africanos na cultura e no modo de vida ocidental.
107
complexa interação biológica de várias etnias africanas, povos europeus e ameríndios surge,
em conseqüência dos movimentos da escravidão, um novo povo: o afro-americano, produto
direto da diáspora negra.
Obviamente, os novos povos afro-americanos não eram somente um resultado do
caráter híbrido de sua conformação biológica. No contexto turbulento da escravidão,
delinearam no tempo e no espaço uma nova cultura. Resultante da memória ancestral e do
confronto com outras culturas desenvolveram, em terras estrangeiras, novas religiões,
expressões artísticas e outras visões de mundo. Nos espaços restritos das senzalas, sob a
expectativa nebulosa da opressão, souberam negociar suas formas do viver, criando e
recriando na diáspora suas regras de convívio humano. Entre as concessões da “casa grande”
e o chicote, formularam novos padrões éticos, dentro do espírito das relações de reciprocidade
e mútuos favores. Ali, no terreno fértil da imaginação, codificaram as bases de uma identidade
marcada pela singularidade de constantes mudanças, num processo contínuo de construção,
desconstrução e reconstrução, de acordo com o professor Marcus Cruz. Não mais um africano
em terras estrangeiras, mas, sim, um africano na diáspora, um novo americano.
Neste capítulo, trabalhamos exaustivamente a questão do conflito fundiário, sob o qual
se encontra todos os integrantes da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo.
Rebuscando os significados da instituição do sesmarialismo no Brasil, adentramos os
escaninhos das estruturas políticas marcadas pelo protecionismo elitista. Ao voltar nossos
olhos ao passado, identificamos nas origens da fundação do Quilombo Mata Cavalo, a
legitimidade da propriedade de suas terras, através da análise de Cartas de Sesmaria, Autos de
Medição, Inventários, Testamentos, Declarações de Vontade e Documentos de Doação. Esses
documentos, para além de seus complexos significados jurídicos, revelam uma coisa muito
simples. Caracterizam, em suas entrelinhas, dois mundos opostos marcados pela supremacia
de um em detrimento à necessidade imperiosa da conformação à realidade do vivido por
outro. Demonstra em toda sua amplitude a política da imposição do poder sob a tutela
cuidadosa da coerção, que faz do cotidiano dessa gente simples do Mata Cavalo uma dura
realidade.
O espírito de luta dos integrantes do Mata Cavalo, no percurso de sua história, sempre
se revelou ativo, como o foi nos anos 1950-60 e o retorno de parte dos seus membros às terras
de seus ancestrais, enfrentando as asperezas do conflito em busca de sua destinação e de seu
108
desiderato. Não se tratava, e nem o é nos dias atuais, um simples retorno à terra da
subsistência. Nesse ponto, o território dos remanescentes, para além da questão de moradia e
refúgio, como já o dissemos, constitui-se no espaço da memória, da tradição e da
conformação da fronteira do “eu” em oposição ao “outro”. Foi nesse espaço sacralizado pelo
tempo, que os ancestrais do Mata Cavalo criaram as relações familiares e também sociais. Foi
também ali que souberam, com inteligência e imaginação, mesclar a religião adventícia, o
cristianismo, aos cultos sagrados dos ancestrais, ressignificando os aspectos do que lhes eram
mais caro ao mesmo tempo em que conformavam uma religião emoldurada pelos complexos
dogmas da Igreja Católica. A cultura desenvolvida a partir dos terreiros nas senzalas,
potencializadas pela tradição constantemente reinventada no tempo e no espaço, permitiram,
tanto no passado, como no presente, resistir ao controle e à opressão da sociedade envolvente
de maioria branca. Desta forma, os processos culturais dinâmicos incentivaram a auto-estima
e a confiança do grupo enquanto tal, e também alicerçaram a esperança em dias melhores no
devir histórico.
A seguir, utilizando-se de depoimentos e entrevistas com alguns representantes dessa
comunidade tradicional, previamente escolhidos, percorreremos os caminhos, nem sempre
óbvios, da construção da identidade deste grupo para descortinar ao menos uma parte de sua
história, que pela nossa perspectiva desdobra-se em duas possibilidades que ora convergem,
ora divergem nos destinos do Mata Cavalo. Nas trilhas da subjetividade humana, nossa
pesquisa toma corpo, à medida que avança em conceitos e materialidade, permitindo a
compreensão do esforço dos membros desta comunidade em manter sempre ativa uma
identidade baseada na memória escrava e na terra. Elos inseparáveis da cultura e da tradição
negra, essa identidade expressa, objetivamente, a possibilidade da legitimação, pelas vias
jurídicas da questão quilombola, da propriedade de suas terras, espaço sagrado de suas
lembranças, mas, também da subsistência, do ser e do viver. Certamente, transitar nas vias
nebulosas do paradoxo que enfrenta os remanescentes em suas lutas pela propriedade de suas
terras exigirá a interface e o diálogo com os teóricos da história oral, base de sustentação
técnica do próximo capítulo. Apesar de contraditória, na medida em que retira destas pessoas
sua condição de protagonistas da história, a questão quilombola, uma das escolhas possíveis,
certamente consiste em esperança para o deslinde do litígio que se arrasta por quase dois
séculos.
109
4. Capítulo 3: DESIDERATO
Ontem a Serra Leoa, a guerra, a caça ao leão,
o sono dormido à toa sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo, infecto, apertado, imundo, tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado
pelo arranco de um finado, e o baque de um corpo ao mar...
(Estrofe do poema Navio Negreiro, Castro Alves)
São oito horas da manhã do dia 25 de Janeiro de 2011. O céu está coberto por
algumas nuvens de chuva e o sol, sempre generoso nesta porção de terras da baixada
cuiabana, parece ainda não haver despertado, é um dia atípico. Tomamos nosso café da manhã
após uma noite mal dormida. Inquietação e ansiedade. Hoje, finalmente, iremos entrevistar a
Sra. Gonçalina Eva de Almeida. Há muito aguardamos essa oportunidade, trata-se de uma
personagem importante na trama histórica da comunidade do Mata Cavalo. Nossa expectativa
justifica-se na medida em que, certamente, seus relatos de memória poderão trazer
contribuições valiosas tanto para nossa pesquisa quanto para o próprio grupo, do qual se fez
líder natural por sua militância, abnegação, coragem e determinação. Sintonizada com a
vanguarda do movimento negro no interior do quilombo, sua experiência equivale à da pessoa
que se viu obrigada a defender seus interesses, que também são interesses da coletividade. Já
se tornou senso comum nos meios especializados que trata das causas quilombolas entender o
papel fundamental da mulher nos processos de emancipação, e de luta por liberdade nos
inúmeros quilombos brasileiros192. Tanto isso é verdade que outro ícone da resistência nesta
comunidade está representado também na figura de Laura Ferreira da Silva, que não por acaso
192 Para quem se interessa por essa temática sugerimos a leitura de “Terra de pretos, terra de mulheres: terra, mulher e raça num bairro rural negro”, publicado pela Fundação Cultural Palmares em 1995; “Conceição das crioulas: um caso de sucesso”, publicado pela UFPE em 2004; “Mulheres quilombolas e desenvolvimento sustentado” publicado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo; e também o acesso ao documentário “Sentinelas do Tempo – mulheres quilombolas” realizado por Sergio Brito, Léo Sant’ana, J. Paulo Traven e Emanuel Santana, lançado em 2006 pela Terra do Sol Filmes e Vídeo Saúde Distribuidora da Fiocruz. Esse documentário faz parte do DVD “A terra e o tempo: Vozes do Quilombo” dos mesmos produtores. “Sentinelas do Tempo – Muheres quilombolas” retrata a luta das mulheres do Mata Cavalo na arena instável do conflito e da conflitividade, revelando o ideal de resistência no qual são emolduradas.
110
é neta de Rosa Domingas de Jesus cujo coração indomável fez de sua pessoa um exemplo às
futuras gerações do Mata Cavalo. Professora e agricultora, como faz questão de frisar,
também como a Gonçalina uma militante engajada nas lutas políticas para afirmação dos
negros, não só no circunscrito espaço de sua comunidade, mas em sua forma mais ampla,
cosmopolita, por assim dizer. Como veremos no decorrer deste capítulo suas idéias muito
bem discernidas traduzem o ideal de quem se vê frente às severas condições de vida, de lutas
e de esperanças, uma herança maturada pela memória coletiva em período histórico de longa
duração.
Assim que deixamos a rodovia MT 060, adentramos por uma pequena e sinuosa
estrada vicinal cercada por vegetação típica do cerrado rumo à Fazenda Ourinhos, um antigo
garimpo aberto pela Mineradora Tetron na segunda metade do século passado. A sede da
fazenda, hoje habitada por Gonçalina Eva de Jesus, Geremias de Abreu e respectivos
familiares, ainda guarda reminiscências de um passado não tão longínquo. Todas as
instalações originais ainda se encontram intactas. As casas dos administradores, o grande
barracão com inúmeros quartos para os garimpeiros bem como um imenso galpão aberto que
outrora era destinado aos afazeres do garimpo e que hoje é utilizado como local de festas
promovidas por essas famílias.
Tal como em outras localidades que antes eram ocupadas por fazendeiros e hoje são
residências dos remanescentes do quilombo, a sede desta fazenda (re)ocupada pelos negros do
Mata Cavalo nos levam à uma constatação simples. De alguma forma, ao menos na forma
precária de ocupação da terra, o território deixado pelos antigos escravos da Sesmaria Boa
Vida aos poucos volta às mãos de seus descendentes. Mas, entre a (re)ocupação precária e a
definitiva titulação das terras ainda existe um abismo, um fosso à ser transposto. Na arena
instável das lutas no interior do quilombo outros ingredientes desestabilizadores também
reclamam seu lugar no estado de conflito e conflitividade. Destaca-se entre estes, um de
ordem institucional que merece atenção mais detalhada: A criação das numerosas associações
no interior do quilombo provocou cisões perigosas que podem mudar os rumos da
coletividade como um todo. Além dessa questão, outra de ordem prática pode trazer sérias
complicações para os anseios de todos que lutam pela propriedade de suas terras. De acordo
com o INCRA o prazo final para o processo de titulação de terras no Mata Cavalo expira-se
em Novembro de 2011. Considerando-se a enorme quantidade de documentos em trâmite
111
naquele órgão, o fator tempo não pode ser desprezado no que se refere ao desfecho da questão
fundiária e do destino daquela comunidade.
Como dissemos, este capítulo percorrerá os caminhos da subjetividade humana a fim
de subsidiar os recursos, materiais e imateriais, à nossa narrativa história proposta tendo como
fonte de referência os depoimentos orais que foram colhidos a campo ao longo de nossa
pesquisa além, obviamente, da vasta documentação e fontes bibliográficas que foram
utilizadas na trajetória da cadeia dominial do imóvel da Sesmaria Boa Vida, que foi
pormenorizadamente trabalhada no capítulo anterior, e que serão referenciadas sempre que
necessário.
Buscando o aporte teórico e metodológico ao processo de realização do nosso
trabalho, empreenderemos a revisão bibliográfica dialogando com autores que se debruçaram
sobre as questões da história oral e da memória. Utilizaremos, entre outros, das teorias
desenvolvidas por Paul Thompson, Alberti Verena, Janaína Amado, Marieta de Moraes
Ferreira, Etienne François, Jorge Eduardo Aceves Lozano, Alistair Thomson, Michael Frisch,
Paula Hamilton, Vera Maria Antonieta T. Brandão e Julio Aróstegui. Torna-se necessário
destacar que buscaremos alguns conceitos chaves referentes aos tipos de pesquisas que foram
realizadas no interior da comunidade, que no caso, como já o dissemos, refere-se à interação
significativa entre pesquisador e pesquisado através do desenvolvimento da pesquisa em
forma de ação, ou pesquisa-ação193, de acordo com as formulações de Miranda e Rezende.
Outra questão importante será devidamente trabalhada neste capítulo a fim de apresentar ao
leitor, de forma clara, os aspectos físicos da comunidade aqui estudada. Neste, utilizaremos de
alguns dados estatísticos referentes a trabalhos de outros pesquisadores, bem como de órgãos
governamentais como o INCRA e o INTERMAT, além, obviamente, dos próprios dados que
foram por nós coletados ao longo de uma série de entrevistas realizadas a campo.
Torna-se tão indispensável quanto necessário ao desfecho de nosso trabalho, ao longo
deste capítulo, retomar algumas questões acerca da identidade negra que foi trabalhada no
capítulo 1 para o entendimento dos processos de construção desta a partir dos conceitos terra,
193 Segundo Marília Gouvêa de Miranda e Anita C. Azevedo Resende, em artigo publicado na Revista Brasileira de Educação, v. 11, nº 333, Set./Dez. 2006, à página 511, pesquisa-ação trata de uma concepção de pesquisa que “desde o início, se define por incorporar a ação como sua dimensão constitutiva [...], sendo que a própria investigação se converteria em ação, em intervenção social, possibilitando ao pesquisador uma atuação efetiva sobre a realidade estudada”.
112
memória e tradição, tendo como pano de fundo o pensamento de Paul Gilroy em sua obra "O
Atlântico negro".
Profundamente influenciada pelas culturas desenvolvidas pelas comunidades na
diáspora, a questão quilombola resultante da ação dos movimentos negros reflete-se na
conformação social de uma parte considerável das inúmeras comunidades do Mata Cavalo.
Em reposta à pressão social, foi incluída na Constituição Federal de 1988 decretos visando
atender as reivindicações mais sensíveis de uma imensa massa populacional afro-descendente
no Brasil, que sonha com as reparações históricas que lhe são devidas. Não obstante, no Mata
Cavalo a questão quilombola resulta no confronto com os interesses, em certo nível, dos
verdadeiros protagonistas da contenda fundiária que se arrasta por quase dois séculos,
originando no seu interior duas correntes conflitantes de memória. De um lado a cadeia
dominial do imóvel da Sesmaria Boa Vida, trabalhada no capítulo 2 desta, que coloca os
atores sociais como protagonistas de suas histórias. E de outro lado a questão quilombola.
Inspirada nos processos de lutas políticas dos movimentos negros mundiais essa
questão poderá, ao menos em hipótese, e algumas pessoas do Mata Cavalo já o perceberam,
permitir a legalização da propriedade das terras no quilombo. Na verdade, em certo momento,
essas questões conflitantes se entrelaçam conjugando interesses maiores dos membros dessa
comunidade. Para quem, no curso da história, a terra representa o grande ideal, e pelo qual
lutaram e ainda o fazem numa mescla de sofrimento e expectativa, desilusão e sonho, os
caminhos da questão quilombola constituem-se em reconfiguração das formas e dos
instrumentos de luta no terreno inseguro do conflito. Dito de outra forma, ela agrega
elementos novos significativos que, hipoteticamente, permitem aos remanescentes uma nova
esperança de acesso às suas terras.
A despeito das expectativas positivas por parte de grande maioria das pessoas no
quilombo, como podemos constatar em inúmeras entrevistas, ao que tudo indica a situação
fundiária no Mata Cavalo ainda é uma questão política sem definição prevista a curto prazo.
Quanto às formas jurídicas da titulação das terras que serão concretizadas no futuro, isso o
que se espera, outra questão também preocupa àqueles que se importam com a integridade do
Mata Cavalo, como é o caso do Sr. Antonio Mulato e tantos outros. Caso a escritura definitiva
não for coletiva a comunidade correrá sério risco de desestruturação total. Na verdade, a
desintegração do grupo, como um todo homogêneo, parece já estar ocorrendo de forma lenta
113
e gradual. Isso ocorre, primeiramente, em conseqüência da diáspora forçada de numerosas
famílias verificadas em meados do século XX, questão já trabalhada anteriormente, e também
em função das disputas intestinas como veremos no decorrer deste capítulo com a questão da
criação das diversas associações.
No confronto entre as gerações no Mata Cavalo observamos os limites para ambas nas
fronteiras do moderno e da tradição. De um lado a necessidade dos jovens de situarem-se num
mundo competitivo e cheio de novidades ao ritmo das inovações tecnológicas e nas inúmeras
possibilidades que as cidades oferecem. De outro, as pessoas mais velhas voltadas para um
passado cheio de significados, perpassadas no tempo e no espaço pelos elementos da tradição
escrava. É exatamente no vértice do confronto desses interesses que existe certa possibilidade
de simetria entre as gerações, pois também os jovens atentam-se para a questão da tradição.
Isso fica evidente, por exemplo, na fala da professora Laura Ferreira da Silva que vê a
necessidade crescente do aumento de consciência social, cultural e política no interior de sua
comunidade com relação aos problemas impostos pela globalização. É nesta confluência que
nosso trabalho aponta a questão da propriedade da terra, e da identidade negra, para além da
subsistência e auto-identificação étnica, pois a despeito de tudo viver é preciso, e para essa
gente viver significa conviver com a herança escrava e tudo que ela representa no mundo
atual.
4.1 História oral e memória, breves conceitos.
De acordo com Thompson, a subjetividade humana não está presente somente nos
textos que utilizam em sua matriz teórica e metodológica os aportes da história oral. Para ele
tal condição é intrínseca a qualquer tipo de documento histórico em seu sentido mais
abrangente. Segundo suas conclusões, o mero fato de um documento qualquer ser escrito e
oficial, contrariando os positivistas, não o faz mais fiel à realidade do vivido, sendo que a
única forma prática de solucionar tais problemas conceituais é a de submeter às fontes
históricas com as quais lidamos uma crítica sistematizada. Desta forma o autor nivela a
história oral a qualquer outro tipo de história quanto aos problemas e limitações impostas pela
fragilidade das fontes no campo da pesquisa. Não se trata de um esforço concentrado no afã
de tornar objetiva a prática da história oral, mas, sim de apontar a universalidade da
subjetividade em qualquer vestígio documental que se proponha investigar. Crítico perspicaz
114
da realidade humana, Thompson aponta algumas carências inerentes às fontes orais e aos
relatos de histórias de vida em relação às entrevistas. A autobiografia publicada, exemplifica,
além de carregada de intencionalidades “é uma comunicação de mão única, cujo conteúdo é
positivamente selecionado, tendo em mente o gosto do público leitor”.194 Desta forma, adverte
o autor, os relatos autobiográficos pouco informam quanto à investigação proposta por
historiadores, pois mesmo quando revelam segredos isso acontece em resposta aos anseios de
um público qualquer. Fiel à sua posição, ele desvela a necessidade de se privilegiar o caráter
subjetivo das estatísticas, por exemplo, pois nada mais são na origem que resultado de relatos
de atores humanos em estreita ligação com os profissionais que delas se utilizam, tanto nos
processos de recolhimento de dados quanto nos momentos de avaliação. As estatísticas
sociais não representam fatos absolutos mais significativos que qualquer outro tipo de
documento, assevera Thompson, da mesma forma que o resultado de entrevistas gravadas
sejam elas de quaisquer origens representa a “percepção social dos fatos”195.
Uma das grandes contribuições de Paul Thompson, como entendemos, refere-se à
questão fundamental das formas como são produzidas as evidências históricas. Sendo essas
condicionadas ao meio em que foram gestadas, estão sujeitas às pressões impostas pelas
condições e pelo seu contexto social, pois “com essas formas de evidência, o que chega até
nós é o significado social”.196 Essa questão ajuda de forma significante a compreensão dos
resultados de nossas pesquisas de campo no Mata Cavalo. Em vários depoimentos
percebemos uma recorrência nas falas quando o tema abordado nas entrevistas relacionava-se
com a questão quilombola quanto à possibilidade do acesso à propriedade da terra. Em sua
grande maioria, os entrevistados revelaram um alto grau de envolvimento com a questão de
identificação enquanto quilombolas, admitindo essa caracterização como um fator
potencialmente positivo em suas vidas, como veremos mais detalhadamente neste capítulo. O
que importa neste momento é perceber que para todos os membros desta comunidade a
questão quilombola poderá, supostamente, ter conseqüências positivas no processo do conflito
fundiário, constituindo-se numa forma de evidência, como aponta Paul Thompson, em função
da pressão social e do contexto histórico de lutas no interior do Quilombo.
194 Thompson, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 142. 195 Thompson, Paul. Op. Cit. p. 145. 196 Id. Ibidem.
115
Apesar das dificuldades naturais no trato com as fontes orais relativas ao tempo gasto
na manipulação das gravações, Thompson ressalta sua importância enquanto fonte histórica,
constituindo-se em registro fidedigno de um encontro entre autor e ator no processo da
pesquisa. Para ele esse tipo de documento supera o registro escrito, pois ali se encontram
todas as palavras que foram ditas em sua forma real no ato da entrevista, permitindo no
momento da análise a percepção de subjetividades plenas de significado tais como incertezas,
ímpetos de humor e também de fingimento. Este documento oral, devidamente processado de
forma crítica, pode fornecer pistas importantes para a elaboração da narrativa posterior. Além
disso, no momento da entrevista o depoente pode ser questionado, refutado ou simplesmente
inquirido a desenvolver outras linhas de raciocínio indo de encontro aos objetivos propostos
pelo pesquisador o que não acontece de forma nenhuma com o texto escrito senão após a sua
criação. Para Thompson “Um falante, porém, pode sempre ser imediatamente contestado; e à
diferença do texto escrito, o testemunho falado jamais se repetirá exatamente do mesmo
modo. Essa autêntica ambivalência o aproxima muito mais da condição humana”.197
Tal como Thompson, Verena Alberti entende os aspectos abrangentes da entrevista
oral como dotados plenamente por subjetividades, assim como em toda relação humana. Para
ela, pesquisador e pesquisado se avaliam mutuamente tanto nas formas de comportamento
como nas reações diversas e também nas expressões corporais, evidenciando uma interação
maior ou menor de simpatia de ambas as partes. Essa permuta de interesses, assevera, influi
realisticamente no resultado das entrevistas, o que deve ser devidamente filtrado no momento
da análise e da realização da narrativa histórica. Essa questão é importantíssima, e à medida
que aumenta o nível de confiança entre ambas as partes, após o natural período inicial de
estranhamento, torna-se “possível alcançar uma empatia benéfica para a reflexão pretendida,
de modo que entrevistado e entrevistadores se tornem cúmplices na proposta de recuperar,
problematizar e interpretar o passado.”198 Em nossas experiências de campo, e
particularmente nos momentos das entrevistas realizadas no Mata Cavalo, podemos constatar
que essa questão levantada por Verena é fundamental aos resultados à que nos propomos. Na
medida em que nossos contatos com pessoas dessa comunidade passam a ser reconhecidos
por elas como útil, e até certo ponto necessário, aumenta-se o grau de interação e empatia,
como diz Verena, entre ambas as partes. Esse nível de relação, baseado no respeito e objetivos
mútuos, produz resultados satisfatórios na busca da construção do conhecimento histórico
197 Thompson, Paul. Op. Cit. p. 147. 198 Alberti, Verena. Manual de história oral. – 3ª Ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. 102.
116
acerca dos problemas enfrentados no Mata Cavalo o que faz com que nossa pesquisa assuma
um caráter mais produtivo e direcionado. À medida que avança o nível de confiança entre
entrevistados e entrevistador aumenta a liberdade, de ambas as partes, no sentido de um
diálogo em seu significado pleno buscando-se sempre, e cada vez mais, os elementos no vasto
campo da memória e experiências de vida que possibilitem a construção da narrativa
proposta. Desta forma, os problemas mais sensíveis da comunidade, que legitimam nossa
pesquisa junto à comunidade acadêmica ao mesmo tempo em que revela sua função social,
são levantados e colocados em evidência na busca por soluções viáveis, pois como entende
Verena:
O ideal, numa situação de entrevista, é que se caminhe em direção a um diálogo informal e sincero, que permita a cumplicidade entre entrevistado e entrevistadores, à medida que ambos se engajam na reconstrução, na reflexão e na interpretação do passado.199
Necessário esclarecer, no entanto, que a cumplicidade proposta por Verena requer de
ambas as partes, no momento da entrevista bem como nas análises posteriores por parte do
pesquisador, que as diferenças relativas à singularidade humana sejam respeitadas para que se
consiga o maior nível de interação possível, em busca da racionalidade que a própria pesquisa
requer. De acordo ainda com essa autora é necessário que ambos respeitem essas alteridades
posto que cada pessoa representa aquilo que vivenciou ao longo de sua vida, pela sua
formação, cultura, experiência e visão de mundo características. Essa questão leva a outra de
ordem técnica quanto à impossibilidade no momento da interpretação de se conseguir o
distanciamento entre pesquisador e o seu tema escolhido, devido à subjetividade intrínseca à
própria relação entre autor e atores da história. Como bem explica Janaína Amado e Marieta
de Moraes Ferreira, para as quais no exercício da história oral, mais especificamente no
momento das entrevistas, a geração de documentos resulta do diálogo entre “entrevistador e
entrevistado, entre sujeito e objeto200 de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de
interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar
199 Id. Ibidem. 200 . Fazemos aqui somente uma ressalva quanto ao termo objeto de estudo ou de pesquisa que a nosso entender, mesmo que de forma subliminar, leva a caminhos perigosos de transformação de pessoas em coisas, sendo que no caso preferimos utilizar tema de estudo ou de pesquisa.
117
caminhos alternativos de interpretação”.201 Concordamos plenamente com essas autoras e
nossa experiência no Mata Cavalo corrobora com esses conceitos na medida em que nos
vimos obrigados a considerar a singularidade da pessoa humana. Mesmo quando os
depoimentos coincidem em determinados assuntos o fazem a partir dessa visão individual, o
que nos levam a procurar caminhos interpretativos que considerem a alteridade como
característica inerente à própria condição humana.
Na obra “Usos & abusos da História oral”, Amado e Ferreira falam da centralidade do
testemunho oral, indo mais além, ao afirmarem que este testemunho representa “o núcleo” e
nunca sua parte periférica, coadjuvante. Para elas, isso faz com que o pesquisador busque uma
interface, no momento da investigação, com as interações entre a “escrita e oralidade,
memória e história ou tradição oral e história”202. Desta forma ao se trabalhar com fontes orais
o fazemos a partir de visões de mundo singulares que são por sua vez aceitas enquanto fontes
históricas, tendo-se como parâmetro que ao analisarmos esse tipo de documento devemos
considerar a subjetividade humana como importante questão no esforço interpretativo. Na
história oral, portanto, assevera essas autoras, “o objeto de estudo do historiador é recuperado
e recriado por intermédio da memória dos informantes; a instância da memória passa,
necessariamente, a nortear as reflexões históricas, acarretando desdobramentos teóricos e
metodológicos importantes”203. Sem dúvida a memória constitui no objetivo primordial
quando utilizamos de alguma forma da sondagem no campo da história oral, principalmente
no momento das entrevistas, em busca de respostas a partir das experiências de vida, o que
nos levam a trazer ao leitor algumas questões explicativas do conceito memória.
A memória, bem como os processos de memorização, é altamente complexa se
considerados os fatores subjetivos a ela intrínsecos. Um de seus aspectos mais relevantes é
exatamente aquele que possibilita a identificação da pessoa a partir do conjunto significante
de toda experiência acumulada ao longo de uma vida, ou seja, cada indivíduo é a soma de
suas próprias experiências, ou no dizer de Norberto Bobbio, citado por Brandão “somos
aquilo que lembramos”.204 Curiosamente, o esquecimento também faz parte do processo e
nada pode ser mais natural que utilizemos constantemente dos recursos da memória e,
201 Amado, Janaína e Ferreira, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. Janaína Amado e Marieta de Moraes Ferreira, coordenadoras. – 6ª Ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. p. XIV. 202 Id. Ibidem. 203 Amado e Ferreira. Op. Cit. p. XV. 204 Brandão, Vera Maria Antonieta Tordino. Labirintos da memória: Quem sou?. São Paulo: Paulus, 2008. p. 12.
118
também, de seu antônimo. Ivan Izquierdo, também citado pela autora, fala da arte do
esquecimento: “esquecemos para poder pensar, esquecemos para não ficar loucos;
esquecemos para poder conviver e para poder sobreviver”205. De acordo com a autora a
condição de ser-no-mundo a partir da perspectiva do lembrar e esquecer remete às novas
perspectivas se consideradas enquanto representações sociais das memórias de vida, ou
autobiográficas. Nesse sentido há uma convergência com o pensamento de Paul Thompson,
para o qual o produto final das entrevistas gravadas é resultante do meio social onde é
gestada.
Brandão afirma que a memória considerada a partir da auto-identificação é uma
questão fundamental do ser humano. Se somos o que lembramos ou o que esquecemos, de
acordo com o momento, então a memória por analogia é constitutiva da própria humanidade
do ser. Ela salienta a questão da instantaneidade do tempo que vivemos, onde no mundo
globalizado a aceleração do tempo se dá em função das novas tecnologias de comunicação,
quando tudo pode ser visto e também vivido no momento exato em que acontece. Esse debate
acerca dos problemas da globalização, acreditamos, já foi bem trabalhado no capítulo 1 desta
dissertação. Importa aqui acrescentar que a dinâmica da fragmentação das informações e dos
contatos sociais, de acordo com Brandão, interfere no “estabelecimento das redes de
convivência e de trocas interpessoais, e no aprendizado, elaboração e consolidação dos fatos e
conhecimentos divulgados”.206 Não há como negar as influências da globalização para as
pessoas no Mata Cavalo, fato que leva a constantes embates no seu interior, principalmente
através das gerações, entre os que se preocupam com a conservação da tradição e aqueles que
buscam na medida do possível viver as novidades da modernidade, do urbano em contraste
com o rural e tradicional. Essa é uma questão realmente instigante quando se pensa em uma
comunidade tradicional como é o caso de Mata Cavalo, que vive duas temporalidades
distintas que por vezes se entrecruzam. Isso se percebe principalmente no tempo das festas e
também no esforço de conscientização que a influência dos movimentos negros trás para os
mais jovens em suas buscas, via valorização da negritude, por identificações enquanto atores
de suas histórias. Na verdade, constatamos em nossas pesquisas, na maioria dos grupos
sociais que visitamos nessa comunidade, o esforço constante para uma reordenação do caos
provocado tanto pela própria dinâmica turbulenta de suas histórias clivadas pelo conflito
fundiário, como pela influência oriunda do mundo globalizado, como vimos acima. Para as
205 Brandão. Op. Cit. p. 11. 206 Brandão, Vera Maria Antonieta Tordino. Op. Cit. p. 13.
119
pessoas mais idosas deste agrupamento humano, bem como para algumas professoras da
escola estadual da comunidade do Mutuca, a questão da revalorização e recuperação da
tradição, entendidas como processo de constante reconstrução, é colocada em evidência pelas
vias da educação institucionalizada, bem como doméstica e familiar.
Obviamente que esse esforço trata-se de uma tentativa de solucionar as crises
identitárias que esse estado de coisas gera no interior da comunidade. Segundo Brandão “a
ambivalência gerada por essa dupla sensação – de pertencimento e de desenraizamento – [...]
pode levar a um sentimento de perda de referências e crise das identidades culturais, que são
tanto individuais como coletivas”.207 Para a comunidade do Mata Cavalo essa questão
significa, no limite da expressão, a própria sobrevivência do grupo que busca exatamente
pelas vias da identidade negra, neste caso específico pelas vias políticas da questão
quilombola, a legitimação da propriedade de suas terras. Para esses remanescentes, como
contrapor o tempo da memória ao tempo acelerado do provisório, do instável, do liquefeito
(uma metáfora bauminiana) e da cronologia? Como encontrar a resposta para a questão do
“quem somos?”
Brandão considera que ao colocar em lados opostos o tempo acelerado ao tempo longo
que “articula nossos conhecimentos, experiências, sentimentos e desejos – o tempo vivido –
apresenta-se como possibilidade de sentido do nosso ser-estar no mundo.”208 Tal como as
conclusões de Brandão, esse tempo para o Mata Cavalo pode ser encontrado na memória, o
que permite um constante (re)inventar da identidade, que nesse caso particular também
expressa a inconformação e a resistência às reminiscências do regime da escravidão que ainda
oprime, cerceia, descarta, seleta e exclui, constituindo importante incentivo aos movimentos
negros, uma questão histórica ainda totalmente aberta. Em certo nível, as memórias
individuais e coletivas se entrecruzam, pois como vimos, afirma Brandão:
Cada memória é única, tem a marca e é constitutiva de nossa identidade, fazendo parte, simultaneamente, das comunidades restritas ou ampliadas das quais participamos; ligando-nos também às memórias comuns, sócio-históricas. Ao trabalharmos com as histórias dos sujeitos, como narrativas,
207 Id. Ibidem. 208 Brandão. Op. Cit. p. 14.
120
ficam evidentes as lembranças individuais entrelaçadas às memórias coletivas, também como parte da memória histórica que as contextualiza.209
Um dos primeiros contatos que tivemos com os membros da Comunidade de
remanescentes do Quilombo Mata Cavalo foi realizado com José Gregório de Almeida, em
sua residência no Bairro Ribeirão da Ponte em Cuiabá – MT. Após inúmeras entrevistas
realizadas com ele acabamos criando vínculos de amizade e simpatia o que mudou um pouco
os rumos dos conteúdos discutidos. Dizemos isso para reforçar o conceito desenvolvido por
Brandão quanto ao entrelaçamento das memórias individuais e coletivas, pois em alguns
momentos da entrevista a sua fala era direcionada para aspectos particulares de sua vida, o
que sem dúvida constitui um dos traços de sua identidade. Em outros momentos, no entanto,
quando direcionávamos as perguntas relativas ao conflito fundiário no quilombo ele
reportava-se de forma quase simétrica com as falas de outros entrevistados, em outros
momentos e lugares. Claramente, as recordações do conflito fazem parte de uma memória
mais ampla, coletiva, maturada em período de longa data. De acordo com Brandão, a partir de
conceitos já abordados por ela, as recordações pessoais são “constituídas pelas memórias de
longa duração, consolidadas e que podem ser recuperadas. Elas possuem uma dimensão
subjetiva e socioafetiva; são tanto individuais como coletivas, considerando-se as fontes e
reservas culturais dos grupos humanos”.210
Todo o debate em torno da memória até esse ponto leva a uma questão fundamental
que é a aproximação entre os conceitos de tempo e memória. Se a memória refere-se ao tempo
passado como ligá-la ao presente? Indaga Brandão. Não existe forma plausível na abordagem
de uma das partes sem levar em consideração a interação entre ambas e se debruçamo-nos
sobre o passado, pelas vias da memória, o fazemos a partir do presente. Isso é relevante e
desafiador, pois trazemos sempre conosco a “memória dos tempos” no dizer da autora, “um
tempo externo, Cronos – objetivo, histórico, datado, irreversível; e um tempo interno, Kairós
– subjetivo, vivido, reversível”211. Associado a mudanças e reconfigurações, o tempo interno
possui a faculdade de ser reversível como a memória, e tal qual a ela passível de originar
novas narrativas, escolhas ou recortes que fazemos no passado para dotar de sentido o
presente, e, não raro, projetar mudanças significativas para o futuro. Esses conceitos aplicam-
209 Brandão. Op. Cit. p. 16. 210 Brandão. Op. Cit. p. 15. 211 Brandão. Op. Cit. p. 25.
121
se, envidando-se algum esforço, à questão das escolhas feitas pelos integrantes do Mata
Cavalo, se considerados os impulsos oriundos dos movimentos negros. Em determinado
tempo de sua história criou-se a necessidade premente de se (re)construir uma identidade
específica que fosse capaz de dar esperanças de resolução aos seus problemas no devir
histórico, no caso a identidade relacionada à questão quilombola. Mesmo quando
considerados o tempo fragmentário do mundo globalizado, e sua provisoriedade conceitual, a
dinâmica do tempo e memória podem ser sentidas como fontes e reservas capazes de
estruturar culturas e identidades dos grupamentos humanos, assevera Brandão, pois:
Se somos aquilo que lembramos e esquecemos, vislumbramos novos caminhos e a abertura para reflexão e compreensão de como se constrói uma cultura, no seu sentido amplo, e como nela as memórias, nos tempos, podem ser um ‘antídoto’ ante o ‘desencantamento da existência’, nesse panorama complexo da ‘modernidade líquida’ – leve, fluída, dinâmica, mas incerta – termo utilizado pelo sociólogo Zygmunt Bauman212
Já nos referimos ao esforço de re(construção) das tradições do Mata Cavalo, que
direcionadas ao segmento dos seus jovens busca uma compensação aos atrativos dos meios
urbanos e tudo que ele trás de modernidade e sedução. Isso fica evidente, por exemplo, na fala
da professora Laura Ferreira da Silva, da comunidade do Mutuca, que será oportunidade
analisada no decorrer desta. Importa saber neste momento que todo esforço empreendido
naquela comunidade em prol da recuperação, considerado em certo nível, da tradição consiste
em dispêndio de energia que opõe ao Cronos o tempo subjetivo do Kairós, cuja permeável
plasticidade possibilita a dinâmica da busca por ela, pelas vias da memória recriada
ludicamente através do rico imaginário afro-descendente. O processo do recordar transita
através dos sentidos e significados das trajetórias de vidas individuais, que como já vimos
entrelaçam-se às trajetórias de vidas dos grupos, como um todo, reforçando os elos de
reciprocidade que os mantém, num certo nível, coesos. Segundo Rousso, citado por Brandão,
a memória é também reconstrução psíquica e intelectual capaz de unir o individual ao
coletivo, e que permite a noção de continuidade do tempo, “ela possibilita aos indivíduos
confrontar as incertezas, as mudanças e as rupturas inerentes à existência humana, ampliando
a ‘percepção de si e dos outros’, constituindo-se, assim, a raiz das identidades”.213
212 Id. Ibidem. 213 Brandão, Vera Maria Antonieta Tordino. Op. Cit. p. 29.
122
Plenamente dotada de significados, o processo de recuperação, através de escolhas
conscientes e até inconscientes, de elementos da memória, selecionadas na linha do tempo de
suas experiências vividas, valoriza os indivíduos no caso do Mata Cavalo dotando-os da
capacidade de sentirem-se como sujeitos de sua própria história. Parafraseando Brandão, o
protagonismo dos atores sociais neste quilombo indica caminhos na reconstrução de
significados de suas vidas que vistas como processo “permite-nos a superação de outro dos
‘mitos’ da memória que afirma que lembrar e esquecer é coisa de velhos”.214 Longe de ser
“coisas de velhos” a memória, como constatamos em inúmeras entrevistas nessa comunidade,
é objetivo importante para todos os segmentos sociais no Mata Cavalo, que dela se utilizam
sempre que necessário num trabalho constante de valorização da condição de ser-no-mundo,
este representado pelos ideais da negritude, para utilizar-se de um termo cosmopolita
maturado pelo tempo e legitimado pelos impulsos inovadores dos movimento negros atuais.
Desta forma, acreditamos, responde-se à questão fundamental do “quem somos?” na vida
daqueles remanescentes, contrapondo-se ao tempo acelerado do cronos, do provisório o
tempo subjetivamente humano do kairós pelas vias sempre reconfiguradas da memória afro-
descendente. Neste caso é no tempo da memória, que articula passado e presente, que a
tradição conforma os processos dinâmicos da identidade negra.
No capítulo 6 do livro “Usos & Abusos da história oral” , organizado por Amado e
Ferreira, Alistair Thomson, Michael Frisch e Paula Hamilton, os autores afirmam a existência,
no oficio do historiador oral, de alguns conflitos e dilemas éticos que resultam da interação
entre entrevistado e entrevistador, cujos interesses tanto podem convergir como divergir. Para
eles as entrevistas que “exploram os meios empregados por uma pessoa para se recordar de
seu passado podem ser gratificantes para o entrevistador, mas também podem ser
perturbadoras ou até prejudiciais para o entrevistado”.215
Essa delicada questão constitui-se em grande dificuldade encontrada em nossa
pesquisa no Mata Cavalo. Tratar conflitos quando apresentados na clássica oposição entre o
“eu” e os “outros”, “interno” e “externo” não se torna um exercício complicado se, de
imediato, assumimos a nossa posição enquanto pesquisadores/narradores frente ao problema
214 Brandão, Vera Maria Antonieta Tordino. Op. Cit. p. 30. 215 Thomson, Alistair; Michael Frisch e Hamilton, Paula. Os debates sobre memória e história: alguns aspectos internacionais. IN: Amado, Janaína e Ferreira, Marieta de Moraes. Op. Cit. p. 70.
123
em questão. Porém, ao trabalharmos com dissensões internas a aparente tranqüilidade cede
lugar a dúvidas e perspectivas sombrias o que no percurso da história deste quilombo constitui
fato recente, inédito, pois como já o dissemos a comunidade luta pela preservação do seu
ethos cultural permeado pelas relações de reciprocidade em busca da coesão do grupo. Essa
questão da disputa intestina será retomada oportunamente, mas cabe aqui ressaltar que nosso
esforço será sempre empreendido na construção de uma narrativa que privilegie a comunidade
como um todo, o quilombo em sua potência e totalidade. Somente neste caso então, o da
dissensão, deixaremos de lado nossa posição de pesquisadores participativos, retomando-a
oportunamente nos aspectos que desvelam os conflitos externos, que colocam os atores
sociais da comunidade como protagonistas de suas próprias histórias, como temos
enfaticamente repetido. Quanto a essa delicada questão caberá ao devir da história o papel de
testemunha do desfecho dos conflitos bem como do destino da gente simples do Mata Cavalo,
enquanto unidade que se pretendia indivisa.
Ainda considerando-se os aspectos morais quando confrontados por esses dilemas
éticos, que levantam questões delicadas no proceder do pesquisador da história oral, cabe a
nós na condução de nossas pesquisas junto a essa comunidade, reafirmar o lugar de onde
falamos e escrevemos. Metaforicamente, falamos a partir dos terreiros das senzalas, memórias
ainda muito presentes, feridas abertas que necessitam de um profícuo trabalho de luto. Após a
execução de análises de documentos e fontes históricas relativas ao Mata Cavalo, com as
quais temos trabalhado e também do material das entrevistas gravadas e transcritas,
salientamos com certa tranqüilidade que ao cerrar fileiras junto à esses remanescentes, através
da ação em pesquisa, contamos com a certeza de que o resultado de nosso trabalho contará
com o devido retorno social. Questão essa que legitima de antemão todo nosso esforço no
empreendimento dessa história "vista de baixo" atendendo, por sua utilidade social, aos
nossos anseios quanto ao espírito da investigação acadêmica, que só se tornará plausível
quando necessária e dotada de sentidos.
No bojo dos processos da pesquisa em andamento, ao utilizarmos dos relatos de
memória respaldamo-nos no direito universal que os cidadãos possuem em acessar, na medida
e nas limitações do possível, todos os elementos que o fazer histórico pode fornecer, daí a
necessidade maior de nos posicionarmos claramente frente ao conflito presente na trama
social estudada. Obviamente, não existe a possibilidade de desvelar um tema proposto na
pesquisa em sua totalidade, pois a própria subjetividade a ele intrínseca revela o caráter das
124
escolhas que fazemos, tanto da parte do pesquisador como do pesquisado. Neste caso, a
despeito das escolhas que fazemos, a história oral, bem como a própria oralidade presente na
tradição do quilombo, possuem a capacidade de recriar, acessando-se memórias adormecidas
ou até esquecidas, as vidas dos negros do Mata Cavalo permitindo-lhes o lugar de
protagonistas, personagens significantes no meio social onde lutam, interagem, vivem. Desta
forma, nosso trabalho deverá contribuir, espera-se, para a produção de uma história que leve,
tanto ao público interessado diretamente, como ao leitor de forma generalizada, as memórias
que foram marginalizadas, no afã e no propósito maior de se conseguir o aval público ao
mesmo tempo em que, corajosamente, possa desafiar com propriedade e razão o sistema que,
no percurso desta trama histórica, exerceram a opressão.
Encerrando nossas considerações acerca dos procedimentos teóricos e metodológicos
que utilizaremos para trabalhar com o material recolhido durante nossa pesquisa, reafirmamos
que trabalhar com fontes orais requer ajustar-se, no campo da pesquisa histórica, à
determinantes de ordem social por tratar-se de objetos clivados por densa subjetividade.
Ao confrontar-se diretamente com os sujeitos da história, que ao contrário da
documentação inerte, por isso passível de manipulações, torna-se premente a identificação da
“pertinência social da história e também do lugar e do papel do historiador”.216 Há muito, no
decorrer de nossa pesquisa junto ao Mata Cavalo, percebemos a impossibilidade em
mantermos afastados dos problemas por eles enfrentados, em nome de uma pretensa
racionalidade. Na prática o que ocorre é uma interação ativa entre ambas as partes centrando
esforços que possibilitem, de alguma forma, o deslinde dessas delicadas questões. O
envolvimento do pesquisador, em maior ou menor grau, é inevitável quando se propõe
realmente a consolidar um trabalho com possibilidades de retorno social, como o é este.
A seguir apresentamos ao leitor o Mata Cavalo expresso em sua materialidade, a terra,
sua gente, o espaço territorializado, para logo após adentrarmos os caminhos subjetivos da
pesquisa em busca das respostas quanto a questão da identidade negra, incondicionalmente
ligada à terra, e tudo que ela significa de possibilidades e ação. Todas as informações
objetivas apresentadas neste item que se segue foram retiradas do Relatório Técnico realizado
pela Unidade Avançada Diamantino da Superintendência Regional de Mato Grosso, do
216 François, Etienne. A fecundidade da história oral. IN: Amado, Janaína e Ferreira, Marieta de Moraes. Op. Cit. p. 10.
125
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, do Ministério do Desenvolvimento
Agrário, intitulado “Comunidade Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo”. Este relatório
técnico atende as especificações legais do Decreto nº 4.887, de 20 de Novembro de 2003 e
pela Instrução Normativa nº 20, de 19 de Setembro de 2005. Executado em 2 de Fevereiro de
2006, seus principais objetivos constituem-se na identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras. Estas são informações importantes,
pois consistem os caminhos legais que poderão possivelmente legitimar a propriedade das
terras no Mata Cavalo, cabendo ao INCRA a sua formalização. Importa informar também
que faz parte integrante deste relatório técnico o “Relatório Histórico-Antropológico”,
elaborado pela doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo, Maria de Lourdes
Bandeira. Este trabalho antropológico foi realizado em parceria com a professora mestre em
Educação do Negro pela Universidade Federal de Mato Grosso, Triana de Veneza Sodré e
Dantas, e também pela Historiadora e Professora da Rede estadual de Educação e
Pesquisadora Elieth Barros Mendes.
4.2 Terras do Quilombo
O Quilombo Mata Cavalo, local de domicilio e moradia dos descendentes dos
escravos da antiga Sesmaria Boa Vida, como vimos em detalhes no capítulo 2 desta
dissertação, hoje denominados remanescentes do quilombo, possui uma área total de
14.690,3413 hectares, localizados às margens da rodovia MT 060 que liga a cidade de Nossa
Senhora do Livramento à Poconé, em Mato Grosso, cujos limites iniciam no quilômetro 5 da
mesma, estando a 50,2 quilômetros da cidade de Cuiabá. Possui como limites e confrontantes
ao Norte as propriedades de Wilson Toshya Assami, Marcos Vinícius Paes de Barros, Abdon
Salan Khaled Karhaw, Jonas Alves Freitas, Zenaide Cândida de Arruda, Aristides Romão de
Arruda, Welton Freitas de Carvalho, Wagner de Queluz, Bernadete Terezinha da Silva
Campos, João de Assis Silva, Doraci Marques. Ao Leste com Donato Pinto de Moraes, Maria
José Vieira Mesquita, Edgar Teodoro Borges, Ortêncio Figueiredo, Nelson Ribeiro de
Albuquerque Esteves, Herika do Nascimento Frazão, Benedito Murilo de Godói, Manoel Lino
de Almeida, Clarice Lourdes de Almeida. Ao Sul com Carlos Campos Maciel, Elzio
Saldanha, Osmar Martins, José Irineu Fiacadori, Benedita Marciana de Moraes, Antonio
Cornélio da Costa, Crispina Maxicimiliana da Costa Figueiredo, Ana Lúcia da Costa Nobre,
Leonardo Juliano da Costa, Edgar Teodoro Borges. E à Oeste com Edgar Teodoro Borges,
126
Marcio Ângelo de Carvalho, José Mateus Rondina, Hernesto Herrera, Antonio Nunes de
Castro Junior, Mario Gallo, Idelberto Martins, Valter Toshio Suekane e Sir José da Silva.
De clima predominantemente quente, com temperatura média anual de 22° C, podendo
atingir até 38° C nos meses de Outubro e Novembro, condição que estabelece a ocorrência de
duas estações fixas bem definidas durante o ano: a estação chuvosa que vai de Outubro a
Abril, com umidade relativa acima de 80% e a estação seca que vai de Maio a Setembro, com
baixa umidade relativa do ar e cuja precipitação pluviométrica média anual oscila entre 1.300
a 1.700 mm³. Com abundantes recursos hídricos, o imóvel é servido pelos córregos: Mata
Cavalo, Boa Vida, Mutum, Aguassu, Mutuca, Estiva, Ventura, Pirizal e por outras nascentes
que os formam, todos pertencentes à Zona Fisiográfica do Pantanal, cujos córregos formam
no seu percurso os rios Santana e Bento Gomes. Importante afirmar que se trata de um
delicado eco-sistema cuja preservação é de interesse mundial, o que demanda constantes
ações visando sua proteção por parte dos órgãos ambientais fiscalizadores. A vegetação que
predomina nesta região é a Savana Arbórea Aberta, característica do cerrado, à qual cobre
95% da área e também pela Floresta de Galeria Semidecidual nos 5% restantes do Imóvel.
Importa saber que a Savana Arbórea Aberta é formada por vegetais de fisionomia campestre,
povoado com arvoretas que atingem em média a altura de 5 metros, possuindo também um
tapete gramíneo-lenhoso entremeado de arvoretas raquíticas, esse tipo de vegetação é
característico das áreas areníticas lixiviadas, cujas composições florísticas assemelham-se à da
Savana Arbórea Densa. Neste caso, com estrutura mais aberta e mais baixa. As Florestas de
Galeria, vale ressaltar, são aquelas que se localizam às margens dos cursos de água.
Seu solo característico foi classificado como “concrecionário distrófico” que apresenta
elevada quantidade de cascalho o que constitui um fator de impedimento da mecanização e
desenvolvimento de raízes. Com profundidade média de 30 cm, sua utilização recomendada é
a relacionada às pastagens nativas em regime extensivo. De acordo com as análises técnicas
apresentadas no relatório acima mencionado, uma média de 45% de toda a área são terras que
possuem riscos ou limitações permanentes muito severas quando usadas em culturas anuais.
Apesar de apresentar uma fertilidade natural boa ou razoável não são indicadas como
adequadas ao cultivo intensivo e contínuo. Usualmente recomenda-se a sua utilização como
pastagens o que não impede o cultivo ocasional de certas culturas desde que cuidadas com
especial atenção. 35% desta área, por estarem sujeitas a severas e permanentes limitações são
inadequadas para lavouras sendo seu uso restrito às pastagens e reflorestamento assistido,
127
susceptível à danificação permanente exige em troca severas restrições de uso. Os 20%
restantes são em sua integralidade totalmente impróprios para serem utilizados com qualquer
tipo de cultivo, inclusive o de florestas comerciais ou para produção de qualquer outra forma
de vegetação permanente de valor comercial. Sua característica especial o classifica como
área destinada somente ao abrigo e proteção da fauna e da flora silvestre, bem como para fins
de recreação e turismo ou, o que é muito importante, para o armazenamento de água em
açudes.
Cabe aqui um comentário acerca da perfeita integração dos remanescentes ao meio
ambiente onde vivem. Salvo as pressões advindas dos conflitos e o estado de incertezas que
deles originam - muitas das famílias com as quais tivemos contato não investem tempo e
recursos, mesmo que mínimos, no plantio e na utilização da terra para o seu sustento, pois
como saber se os lugares que ocupam serão efetivamente deles no futuro que se pretende
próximo? Essa questão delicada é recorrente nas falas de vários dos entrevistados durante
nossa pesquisa de campo, cujas transcrições encontram-se anexadas à presente -, uma boa
parte das famílias que residem no Mata Cavalo utilizam-se das suas terras de forma bem
racional, respeitando-a e observando suas limitações no afã de preservá-la. Ali eles cultivam
suas culturas de subsistência plantando mandioca, cana de açúcar (para produção de melado,
aguardente e rapadura), arroz, milho, batata doce, abacaxi, banana217, cará, feijão, maxixe,
quiabo, melão, melancia, moranga, e pastagens. Utilizando-se do método rudimentar de
derrubada e queimada, conhecido como roça de toco, eles cultivam suas roças através do
sistema de rodízio das áreas que foram plantadas em um determinado local. Numa certa área
que foi plantada durante um ano só será novamente reutilizada após cinco, seis ou até oito
anos, quando acontece a regeneração natural da vegetação e da capacidade do solo na
absorção de húmus necessários ao desenvolvimento das culturas. Herança que passa de
geração a geração, como veremos no decorrer deste capítulo nas citações da Dra. Maria de
217 Produto altamente produzido na região do Município de Livramento, inclusive pela comunidade do Mata Cavalo, conforme constatamos em nossas pesquisas, a banana produzida nessa região abastecia os mercados da Grande Cuiabá até início da década de 90 quando uma praga assolou as plantações da região comprometendo seriamente a sua produção. Só agora, após a regeneração do solo, é que esse cultivo está sendo retomado pelos pequenos agricultores da região. Incentivos como o projeto desenvolvido pela COORIMBATÁ – Cooperativa de Pescadores e Artesãos de Pai André e Bonsucesso e também da Rede de Colaboradores Solidários para a Industrialização e Comercialização de Produtos Oriundos da Pesca Artesanal e da Fruticultura Extrativista e Familiar realizada pela Universidade Federal de Mato Grosso, tem alavancado a produção de bananas no Mata Cavalo. Entre outras ações destaca-se a aquisição de caixas d’água e de ferramentas para o manejo e tratamento das frutas colhidas. Disponível em: http://www.portalsinergia.org.br/adaptclim/arquivos/file/ADAPTCLIM-Modelagem%20da%20Vulnerabilidade%20e%20os%20%20Enfoques%20Participativos%20-%20Nicolau%20P.%20Oscar%20S.%20%20.pdf Acesso em 03 de Fevereiro de 2011.
128
Lourdes Bandeira acerca das antigas práticas culturais no Mata Cavalo, a sabedoria empírica
no manejo da terra permite aos remanescentes sua utilização de forma racional e duradoura o
que evita o empobrecimento da sua fertilidade e a conseqüente saturação de sua capacidade
produtiva.
Acerca da fauna na região do quilombo, que se apresenta de forma bem diversificada,
destaca-se entre as espécies que se encontram naquela área as aves tuiuiús, araras, tucanos e
jandaias, entre os répteis os jacarés e lagartos e entre os mamíferos catitus, veados, macacos e
capivaras.218 Animais típicos da região pantaneira, atualmente, já não se encontram em
grandes quantidades em conseqüência do processo de desmatamento da vegetação natural
para o plantio de pastagens. Ainda de acordo com esse relatório antropológico o subsolo é
rico em ouro constituindo até aos dias atuais uma forte atração aos garimpeiros da região que
ainda utilizam do mercúrio no processo de separação do ouro, sem maiores preocupações com
o meio ambiente, o que vem “acarretando problemas como: assoreamento dos cursos d’água,
morte dos rios piscosos, aridez do solo e muita erosão decorrente de escavações
profundas”,219 no caso das mineradoras que se utilizam dos métodos industrializados de
exploração e também pela ação dos garimpos manuais.
Conforme o relatório referente à identificação e cadastro realizado de acordo com a
Ordem de Serviço/INCRA/SR/Nº 133/04, e Ordem de Serviço/INCRA/SR-13/Nº 272/04 sob
responsabilidade do engenheiro agrônomo Daniel Lopes de Macedo e dos técnicos agrícolas
Edjorge dos Santos e Edson Geraldes Carneiro, foram realizados no ano de 2005 os trabalhos
de:
a) Identificação e delimitação do perímetro e área do território do Mata Cavalo.
b) Cadastramento das famílias remanescentes.
c) Cadastramento dos demais ocupantes.
d) Cadeia Dominial efetuada pelo servidor Jamil Benedito Guimarães.
e) Plotagem junto à Cartografia: Ainda Batista da Cruz Lopes e Gilson Álvaro Machado,
em cumprimento ao artigo 10 – V da Instrução Normativa nº 20, de 19 de Setembro de
218 Bandeira, Maria de Lourdes; Sodré e Dantas, Triana de Veneza e Mendes, Elieth Barros. Mata Cavalo (MT) Relatório Histórico-Antropológico. Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, Universidade de Cuiabá – UNIC. p. 5. 219 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 5.
129
2005, o INCRA elaborou a Cadeia Dominial, com respectivas certidões (fls. 142 à 300
do 1º volume, 301 a 572 do 2º volume do processo 1.538/2004 – 70).
Este trabalho de levantamento revelou os dados cadastrados nas diversas associações
que compõe o quilombo, quanto à quantidade e relação dos integrantes destas, como se segue:
a) ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DE MATA CAVALO
DE CIMA: 57 pessoas foram cadastradas pelo INCRA, todas reconhecidas pela sua
Associação.
b) ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DE PONTE DA ESTIVA
(Fazenda Ourinhos): 35 pessoas foram cadastradas pelo INCRA sendo que somente 28
delas foram reconhecidas pela sua Associação, restando 7 pessoas com situação
indefinida.
c) ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DA VENTURA CAPIM
VERDE: 21 pessoas foram cadastradas pelo INCRA sendo que somente 20 delas
foram reconhecidas pela sua Associação, restando 1 pessoa com situação indefinida.
d) ASSOCIAÇÃO DOS PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DO AGUASSU DE
CIMA: 56 pessoas foram cadastradas pelo INCRA, sendo que somente 53 delas foram
reconhecidas pela sua Associação, restando 3 pessoas com situação indefinida.
e) ASSOCIAÇÃO DOS PEQUENOS PRODUTORES RURAIS MUTUCA: 70 pessoas
foram cadastradas pelo INCRA, sendo que somente 66 delas foram reconhecidas pela
sua Associação, restando 4 pessoas com situação indefinida.
f) ASSOCIAÇÃO DE PEQUENOS PRODUTORES RURAIS DE MATA CAVALO
DE BAIXO: 179 pessoas foram cadastradas pelo INCRA, sendo que somente 131
delas foram reconhecidas pela sua Associação, restando 48 pessoas com situação
indefinida.
No total foram cadastrados pelo INCRA 418 pessoas sendo que somente 355 destas
foram reconhecidas por suas devidas Associações, restando um total de 63 pessoas com
situação indefinida. Há uma discrepância entre as pessoas cadastradas por esse órgão
governamental e o reconhecimento por parte das Associações de seus direitos às terras em
questão. Isso se deve a uma questão de pertencimento histórico ao próprio quilombo, pois as
48 pessoas que se encontram com situação indefinida, ou seja fora da lista fornecida pelas
Associações, são pessoas que não foram identificadas como remanescentes. Não faremos,
130
neste trabalho, a análise destes casos em particular, o que interessa à nossa pesquisa é a
posição assumida pelas Associações. Mas, vale ressaltar que entre essas pessoas encontram-se
algumas que realmente não possuem nenhum tipo de vínculo histórico com a comunidade, a
não ser o de compartilhar a moradia em áreas vizinhas, como é o caso do Sr. Gonçalo S. dos
Santos, que nos concedeu uma entrevista em 19 de Janeiro de 2011 onde afirmou que “não
sou quilombola, mas conheço o Sr. Antonio Mulato”. O Sr. Gonçalo S. dos Santos é homem
branco, agricultor, que atualmente reside em caráter provisório na Gleba Jaçanã, na
comunidade do Aguassu. Ele é uma das pessoas que pertencem ao grupo do MST,
Movimento dos Sem Terras que ocuparam uma parte das terras dessa comunidade e que
aguardam providências do INCRA para um possível assentamento em área fora do Mata
Cavalo.
No mesmo levantamento realizado pela equipe técnica do INCRA sob
responsabilidade dos técnicos agrícolas da SR-13, Edjorge dos Santos e Edson Geraldes
Carneiro, encontram-se o assentamento dos “não quilombolas” que atualmente ocupam área
de terras no interior da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo. Na relação
consta o nome do ocupante, número de RG e CPF, denominação do imóvel, área ocupada,
data de ocupação e descrição detalhada das benfeitorias declaradas. No total foram
identificadas 69 pessoas que estão relacionadas das páginas 28 a 54 do referido relatório
técnico do INCRA. Fazem parte também deste levantamento a relação de ocupantes e
benfeitorias em área arrecadada pelo estado através do Instituto de Terras de Mato Grosso,
INTERMAT, perfazendo um total de 43 pessoas cujos registros encontram-se à disposição
nas páginas 54 a 74 do referido relatório. Finalmente, integra também a relação dos ocupantes
de áreas arrecadadas e outras, perfazendo um número total de 30 pessoas cujos registros
encontram-se assentados às páginas 75 a 82 do referido relatório. A maioria destes
fazendeiros, conforme informações colhidas junto ao Sr. Nelson Juvenal, coordenador do
departamento que trata das causas quilombolas no INCRA, serão, no devido tempo, retirados
daquela região sendo que as benfeitorias bem como o valor de suas terras deverão ser
indenizadas pelo Governo Federal.
Ainda de acordo com o levantamento constante no relatório técnico do INCRA as
maiorias das moradias no Mata Cavalo são construídas de casas de pau a pique, choupanas,
com piso de chão batido e cobertura de folhas de buriti, babaçu e outras espécies de palmeiras
nativas da região. A área média construída por moradia varia entre 10 a 40 m². Constituem
131
construções, em sua maioria, em estado precário de preservação o que evidencia o esforço
sempre presente na subsistência destas famílias ao mesmo tempo em que apresenta a
resistência das mesmas frente à situação permanente de opressão face ao conflito fundiário à
que estão expostas. Os utensílios domésticos são simples e rústicos constituindo-se
basicamente no mínimo necessário às necessidades de subsistência destas famílias. Outro
fator precário foi identificado no decorrer dos trabalhos de levantamento dos técnicos no
INCRA referente à infra-estrutura naquela região, sendo descrita por eles como absolutamente
fora das normas mínimas de higiene pela falta de esgoto básico. A energia elétrica quando
existente caracteriza-se pela sua forma irregular de instalação e sem as menores condições de
higiene e segurança.
Objetivando a análise de alguns dados estatísticos referentes à comunidade aqui
estudada, que serão também utilizados como referência à escrita dos textos que se seguem,
tendo como temática a terra e os caminhos da identidade negra, tornou-se necessária a escolha
de 14 depoentes entre o total das entrevistas realizadas ao longo de nossa pesquisa. Esta
seleção foi utilizada por entendermos que responderia na medida do possível à amostragem
por aproximação dos aspectos sócio-econômicos mais relevantes no Mata Cavalo. Do total
dos entrevistados 9 são mulheres e 5 homens, sendo que 12 deles moram no próprio quilombo
e 2 nas cidades de Cuiabá e Várzea Grande, em Mato Grosso. A opção da entrevista com 2
membros desta comunidade que mudaram para fora do quilombo, num movimento que
entendemos como uma diáspora, procura o sentido e a visão que eles possuem acerca do
pertencimento ou não aos seus locais de origem. Com relação às idades dos entrevistados
buscamos o ponto de vista de representantes de todas as faixas etárias nesta comunidade,
assim foram entrevistadas 2 pessoas com idade até os 18 anos, 7 pessoas com idade entre 18 e
50 anos e finalmente 5 pessoas com idade acima dos 50 anos. Com relação ao estado civil
também utilizamos o mesmo processo de escolha tendo sido entrevistadas 3 pessoas solteiras,
6 casadas, 3 divorciadas e 2 viúvas, desta forma entendemos que conseguiremos uma resposta
satisfatória quanto ao quadro geral representativo das famílias do Mata Cavalo.
Considerando-se as profissões também houve uma ampliação da perspectiva. Dos
entrevistados encontramos 1 vigia profissional, 1 militar aposentado, 1 agente de saúde, 2
agricultores, 2 estudantes, 3 professores, 1 secretária e 3 do lar. Importante esclarecer um
aspecto fundamental destas escolhas, que à primeira vista não corresponde à realidade no
quilombo se verificarmos, por exemplo o grau de alfabetização. No total dos depoentes 9
sabem ler e escrever (4 tendo completado o ensino fundamental, 2 cursando o ensino médio,
132
2 graduados e 1 graduando do 3º grau), e somente 5 não sabem ler e escrever. Sabemos que
a grande maioria das pessoas do Mata Cavalo são analfabetas, como atesta mesmo o Relatório
Técnico realizado pelo INCRA à página 83:
O número de analfabetos no quilombo é alto principalmente entre os mais velhos. As crianças que freqüentam a escola municipal a qual está em precário estado de conservação220, estão na faixa etária a partir dos 6 anos. O acesso à escola é feito a pé com dificuldades em função da precariedade das estradas e as grandes distâncias das residências à escola.
Como direcionamos nosso esforço no sentido da procura de respostas aos caminhos da
identidade negra, optamos pelas entrevistas com pessoas que de certa forma estão ligadas aos
movimentos que a implementam, como é o caso das professoras que além de líderes em suas
comunidades, estão profundamente envolvidas nos processos políticos mais sensíveis ao
destino do Mata Cavalo. Este também é o caso, por exemplo, de Edson Batista da Silva,
remanescente do quilombo, agente de saúde, cujo depoimento oral revela um nível de
consciência política bastante crítico em relação às questões tanto externas quanto internas à
comunidade onde vive. No entanto, não podíamos olvidar as outras opiniões, para não perder
o sentido da apreensão dos aspectos mais relevantes as quais nos propomos analisar. Para
tanto, escolhemos também algumas pessoas que não possuem o mesmo grau de escolaridade,
mas, que certamente, muito informam sobre suas experiências no quilombo, enriquecendo as
possibilidades narrativas acerca de suas vidas, realidades e sonhos. Esclarecidos os motivos
das escolhas, passamos à análise dos dados referentes à “Tabela 1: Quadro socioeconômico
do Mata Cavalo” que foi realizado de acordo com as informações coletadas durante nossa
pesquisa de campo.
220 A situação nos dias atuais mudou significativamente com a construção da Escola Estadual Rosa Domingas de Jesus, na Associação dos Pequenos Produtores Rurais Mutuca, que disponibiliza entre outros recursos, uma sala de informática e também o ônibus fornecido pela prefeitura de Livramento para o transporte dos alunos. Além disso outra escola está sendo construída no lugar da antiga escola que se refere o relatório do INCRA na Associação de Pequenos Produtores Rurais de Mata Cavalo de Baixo.
133
Tabela 1:
Quadro socioeconômico do Mata Cavalo
DESCRIÇÃO QUANTIDADE
Total dos entrevistados............................................................................................... 14 Total dos entrevistados sexo masculino...................................................................... 05 Total dos entrevistados sexo feminino........................................................................ 09 Moram no Quilombo................................................................................................... 12 Moram fora do Quilombo............................................................................................ 02 Idade até os 18 anos..................................................................................................... 02 Idade dos 18 aos 50 anos............................................................................................. 07 Idade acima dos 50 anos.............................................................................................. 05 Estado Civil: Solteiros................................................................................................. 03 Casados................................................................................................... 06 Divorciados............................................................................................. 03 Viúvos..................................................................................................... 02 Filhos: Sexo masculino................................................................................................ 14 Sexo Feminino................................................................................................. 24 Total................................................................................................................. 38 Renda familiar: Até 1 salário mínimo......................................................................... 06 2 a 3 salários mínimos....................................................................... 02 Não possui renda............................................................................... 06 Bens móveis: Fogão.................................................................................................... 10 Geladeira............................................................................................... 13 Televisão............................................................................................... 09 Computador........................................................................................... 04 Automóvel / motocicleta....................................................................... 07 Grau de alfabetização: Sabe ler e escrever................................................................. 09 Não sabe ler e escrever.......................................................... 05 Escolaridade: Fundamental completo......................................................................... 04 Médio incompleto................................................................................. 02 Universitário incompleto...................................................................... 01 Religião: Católica........................................................................................................ 07 Evangélica................................................................................................... 06 Religião de Matriz Africana........................................................................ 01
134
Uma primeira questão que revela dados significativos trata-se da condição econômica
em que se encontram as famílias dos entrevistados sendo que 6 entre 14 pessoas não possuem
nenhum tipo de rendimento e segundo seus relatos orais vivem somente do que plantam num
sistema de agricultura de subsistência. Como é o caso do Sr. Palmiro Lucindo dos Santos, 55
anos de idade, remanescente do quilombo, integrante da Associação da Comunidade Negra
Rural Quilombo Mata Cavalo de Cima, agricultor, analfabeto, divorciado, 3 filhos,
possuindo em sua casa provisória apenas um fogão à gás para cozinhar. Do restante dos
entrevistados 6 possuem renda até 1 salário mínimo e 2 possuem renda de 2 a 3 salários
mínimos. A primeira informação que encontramos na análise destes dados referentes ao
rendimento familiar relaciona-se diretamente com o grau de escolaridade: dos 14
entrevistados 12 pessoas possuem renda de no máximo 1 salário mínimo, sendo que entre elas
5 são analfabetas e 4 não terminaram o ensino fundamental.
Gráfico 3: Renda familiar Gráfico 4: Grau de alfabetização
A maioria das estatísticas referentes a quadro sócio-econômicos, que a imprensa
veicula constantemente em seus variados meios de comunicação, relacionam a renda familiar
à situação de escolaridade dos seus membros. Constitui-se mesmo em senso-comum pensar-se
desta forma, devido à própria lógica do mercado que, no mundo da alta tecnologia, busca
privilegiar as pessoas que se especializam em suas áreas de atuação profissional. Mas, o que
pensar acerca das pessoas que vivem e se sustentam dos produtos produzidos em suas terras
no Mata Cavalo e mesmo assim mal conseguem subsistir, desconsiderando-se mesmo o grau
de escolaridade, que apesar de importante no acesso às tecnologias que implementam a
produção agrícola não deveria constituir num complicador significante às suas vidas? Neste
caso, nada deveria impedir um agricultor, por exemplo, que dispondo de terras para plantar
Até 1 salário
mínimo
2 a 3 Salários
mínimos
Até ensino
fundamental
Acima ensino
fundamental
135
nelas produzisse seu sustento além de se beneficiar economicamente com o excedente de sua
produção, como é a situação encontrada em sítios de pequenos produtores rurais bem
sucedidos, analfabetos ou não. No Mata Cavalo, as pesquisas mostram claramente que essa
questão crucial para a vida destes negros do quilombo constitui uma das conseqüências do
estado de conflito e conflitividade vivido por eles ao longo de sua história ligada à disputa
fundiária e às incertezas que dela originam. Como lavrar a terra com o suor do trabalho, para
dela colher os frutos da bonança, sem ao menos ter a certeza de que realmente ela lhe
pertencerá no futuro? Essa é exatamente a condição psicológica que se percebe facilmente em
suas falas, no momento das entrevistas. Como é o caso do depoimento de Ana Francisca da
Silva, 84 anos, analfabeta (só assina o nome conforme disse), descendente direta de Marcelino
Paes de Barros ex-escravo da antiga Sesmaria Rondon, residente provisoriamente na área da
Associação de Pequenos Produtores Rurais de Mata Cavalo de Cima, profissão do lar,
divorciada, 10 filhos. Em resposta à pergunta que lhe fizemos, acerca do que ela produzia em
suas terras ela afirma o estado de incerteza vivido por sua família levando-os a nada
plantarem, à espera da definição da propriedade daquela área, segundo ela:
Se falar que pra nós não ficar nós tem que sair né? Se falar que é pra nós ficar nós fica né? Fazer o que? Eles já falam que aqui é do Estado né? Porque nós já não pagamos mais a coisa do terreno né? Já é por conta do Estado. Nós ta aqui por ta, nós nascemos e criemos aqui e estamos aqui na luta né até Deus abençoar como que vai dar né? Se nós conseguir bem e se não conseguir cada um caça sua direção, num pode ficar né?
Os exemplos não param, o Sr. Edson afirma que “só produzo mandioca, só cultivo
mesmo pro consumo”, bem como o Sr. Palmiro Lucindo dos Santos que responde da seguinte
forma à pergunta sobre se possui plantação e animais de criação? “Não. Isso aí não. Não tem
como por enquanto não rumou ainda, não ta regularizado, não ta feito ainda”. A questão da
indefinição da propriedade destas terras não afeta somente às pessoas com baixa renda e baixo
nível de escolaridade. Em entrevista com Gonçalina Eva de Almeida, 33 anos, remanescente
do quilombo, casada, 1 filho, nível de formação universitária, professora da escola Rosa
Domingas de Jesus, ativista negra e líder de sua comunidade, essa questão fica evidente
quando responde à pergunta sobre se produz alguma coisa em suas terras: “Ainda não, porque
ainda não estou no meu local certo onde vou ficar”. A mesma situação verifica-se na fala de
Ana Maria de Arruda, 41 anos, viúva, 2 filhos, professora, nível de formação universitária,
136
filha de D. Tereza que é presidente da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Mata
Cavalo de Baixo, considerada como a associação-mãe no Mata Cavalo. Segundo ela, em
resposta à mesma pergunta, “Olha, no momento eu estou só criando animais né? Eu tenho
muito pasto. Enquanto você não for dono da terra você não pode plantar muita coisa, já tirei
mandioca, banana, mas no momento tenho só animais”.
Condicionados à incerteza quanto à permanência em suas próprias terras, como atesta
a história da cadeia dominial do imóvel da antiga Sesmaria Boa Vida, origem do Quilombo
Mata Cavalo, esses homens e mulheres sob a tirania do ócio improdutivo são vítimas do
sistema que os aprisionaram e que produz em contrapartida um estado de privações materiais
de todo tipo. Enquanto aguardam pelo desfecho favorável desta questão sensível, para além
do sofrimento e da dor, depositam suas esperanças em uma coisa bem maior que eles. Ter fé é
tão essencial quanto a vida. Esta mesma fé, no Mata Cavalo, herança do catolicismo jesuítico
muito bem maturado no tempo e no espaço, reflete a religiosidade de seu povo. Sempre existe
a possibilidade de saída para fora dos vínculos dos sofrimentos e do estado de incertezas
quando se transita nos espaços do sagrado. No Mata Cavalo os santos católicos já não
possuem a mesma hegemonia que tinham no passado, devido ao avanço das igrejas
evangélicas que a cada dia conseguem mais adeptos e seguidores fieis. Paradoxalmente,
questão de escolhas e contingências, as religiões de matrizes africanas não alcançaram nessa
região sua maior expressão, como atesta o resultado de nossas entrevistas. Num total de 14
entrevistados, 7 são católicos, 6 evangélicos e somente 1 pessoa declarou-se adepta da
Umbanda, uma entre a vasta miríade que representa o mosaico religioso africano na diáspora.
Gráfico 5: RELIGIÕES
Católica
Evangélica
Matriz Africana
137
A figura do benzedor é marcante nas estruturas sociais desta comunidade revelando
uma reconfiguração das práticas do catolicismo, herança do Brasil Colonial, da sabedoria
indígena e da necessidade de assistência aos males do corpo e da mente em regiões pouco
assistidas pelo serviço de saúde pública institucional. Praticamente, existe um tipo de reza
para cada tipo de enfermidade, estando estas vinculadas profundamente aos sentidos da fé e
da devoção. Intensamente praticada no passado, de acordo com várias entrevistas realizadas
no bojo das pesquisas junto aos remanescentes, a fé nesse sentido atravessa o tempo e ainda
constitui elemento importante no caldo de cultura do Mata Cavalo. Essas práticas são
utilizadas mesmo nos meios urbanos, como é o caso do depoimento de um dos remanescentes
que fazem parte das primeiras famílias que migraram para essa Capital. De acordo com sua
entrevista, cujo nome será aqui omitido satisfazendo seu pedido, o local utilizado para as
cerimônias de curas constitui-se em espaço sagrado onde então...
nós temos o crucifixo do nosso Senhor Jesus Cristo crucificado, tem o Divino Espírito Santo, tem a Nossa Senhora, São Benedito, Santo Antonio e as imagens de São Miguel e São Gabriel. A pessoa fala que ta precisando de oração aí a gente vem e coloca os santos aí. E aí as pessoas vem e o altar já ta preparado, aí é só começar o terço, é só rezar. Graças a Deus nós temos êxito aqui, todas as pessoas que vem aqui recebe êxito, a benção de Deus. Porque todas que vem aqui sai curado, graças a Deus. A gente pede pro Pai (ele olha para cima) e a ajuda vem do alto, mas depende da boa vontade das pessoas também. Ter fé. Porque é impossível receber sem a fé.
Não precisa muito esforço para entender que neste local utilizado para a cerimônia de
curas existe uma profunda ligação com as práticas do catolicismo. A ritualística, as rezas, o
terço, a novena, a presença marcante do capelão, a devoção e a fé em santos da Igreja Católica
permitem essa comparação na medida em que percebemos o seu caráter híbrido maturado
pelo tempo e pelas influências das religiões de matrizes africanas e, também, pelas crenças
indígenas. Isso se revela nas práticas das benzeções utilizando-se, a guisa de complemento
para o tratamento das enfermidades, de fórmulas diversas de chás e ungüentos extraídos de
plantas e ervas medicinais. Apesar da notável influência africana e indígena nestas práticas, a
grande maioria dos remanescentes quando questionada assume com muita ênfase um
catolicismo fervoroso.
138
A fé e os domínios do sagrado constituem uma dimensão tradicional, e, por extensão,
política, quando consideradas as relações de poder no interior da comunidade, como é o caso
da visão de mundo, pela perspectiva da fé, de Tereza Conceição Arruda, presidente do Mata
Cavalo, para a qual a festa de São Benedito “é uma tradição daqui do quilombo, era de meu
avô, aí meu avô faleceu, meu pai começou a fazer e parou, aí eu comecei a fazer. Tem trinta
anos que faço essa festa”. Para além da questão da fé, importante em si mesma, a dimensão do
sagrado, principalmente quando relacionado às festas, delimita as estruturas de poder e
hierarquias no Mata Cavalo. É nestas ocasiões, como já dissemos anteriormente, que alianças
e compromissos mútuos são firmados objetivando a coesão do grupo como um todo. Essa
questão é importante para a própria configuração política no Mata Cavalo. Tereza Conceição
Arruda, por exemplo, acumula além do exercício da presidência do quilombo, a função de
Rainha Perpétua da festa de São Benedito, o que demonstra uma estreita correlação entre as
estruturas do sagrado e do poder político. Fé e razão. Em sua fala na ocasião da entrevista
concedida no dia 12 de Setembro de 2008, ocasião da festa de São Benedito, ela demonstrou a
importância das dimensões do sagrado e da tradição para sua comunidade ao afirmar que:
Essa aqui é coisa de santo [ela mostra o altar], é nossa devoção, é coisa do passado, dos nossos avós, dos nossos bisavós, Sr. Macário, Mulato, tia Francisca, tudo esses faziam a festa, então tudo isso é nosso futuro, é nossa lembrança, nossas recordações dos nossos antepassados. Porque nós fazemos o barraco de palha [e não de alvenaria] para não acabar nossa tradição.
Diferente de outras regiões no Brasil onde as religiões de matrizes africanas se
desenvolveram plenamente, como os casos da Bahia, Maranhão e também, Rio de Janeiro, em
Mato Grosso elas se expressaram minimamente. Em parte isso se deve, de acordo com nossas
perspectivas, à incipiente influência dos movimentos negros nessa região, que só muito
recentemente ensaiam seus primeiros passos para uma consolidação mais expressiva. O caso
da cidade de Salvador, considerada a capital negra do Brasil, marcada pelo seu
cosmopolitismo se considerada em seus aspectos relacionados à negritude, constitui exemplo
de afirmação das religiões africanas largamente difundidas entre os soteropolitanos. Essa
questão leva à outra de ordem prática quando pensamos em questões hegemônicas. Numa
cidade composta por maioria de afro-descendentes natural perceber a facilidade da difusão da
cultura negra como um todo, como é o caso de Salvador. Em Mato Grosso a situação é
139
inversa, apesar da presença significativa de negros a grande maioria que detém o poder
pertence a outras etnias, o que nos leva a considerar os processos nefastos da racialização.
Num meio hegemônico de maioria branca e católica, a despeito do avanço considerável das
religiões evangélicas, as expressões das religiões africanas não se consolidam com tanta
facilidade. É o que se percebe facilmente na fala de Laura Ferreira da Silva, da comunidade
do Mutuca, em entrevista concedida em 9 de Fevereiro de 2011, que ao falar de sua religião
afirma o caráter mesmo de oposição, ou não aceitação, por parte de grande maioria dentro do
próprio quilombo. De acordo com ela:
Minha religião eu tenho costume de dizer assim: que minha religião desde pequena eu sempre freqüentei centro espírita, porque a minha mãe é da Umbanda, a minha avó por lado de pai é da Umbanda. Então, a família de meu pai todinho sempre freqüentaram. Então desde pequenininha eu ia muito em centro espírita. Eu gosto. Adoro essa doutrina, tanto é que eu fiquei nessa doutrina porque eu gosto. Eu acho que Deus ele é um só. Acredito muito nessa doutrina por que? É algo assim que vem com a gente desde muitos anos , então eu vejo que a gente jamais deve deixar perder a identidade da gente, mesmo que os outros gostando ou não gostando, mas é algo que a gente vem lutando pra continuar mantendo. Essa é a questão da religião. Que nem assim. Eu fiz crisma, eu fiz primeira eucaristia tudo mas jamais vou deixar a minha identidade, que eu vou no centro, freqüento, participo, por que eu gosto e vou lá direto pra pedir a benção para os meus Orixás.
Contrariando sua própria crença, numa certa medida, e isso é muito significativo,
Laura foi iniciada na fé católica, conforme afirma “eu fiz crisma, eu fiz primeira eucaristia,
apesar de nascida em berço espírita pois minha mãe é da Umbanda, minha avó por lado de pai
é da Umbanda”. Utilizando-se dos recursos da poética fica fácil imaginar a enorme influência
exercida pelos vizinhos e mesmo parentes próximos a ela no sentido de convertê-la ao
catolicismo, tanto que chegou à fazer crisma e primeira eucaristia. Profundamente ligada aos
movimentos negros por sua própria militância política na comunidade em que vive, a questão
da sua religião assume, nos dias atuais, uma proporção política que ultrapassa a fronteira do
sagrado, como se vê nas posições que defende em sua entrevista quando a questionamos
acerca da importância de se professar uma fé baseada em religião de matriz africana. Para ela
essa religião tem ligações mais profundas com suas origens, de acordo com suas próprias
palavras:
140
ela vem retratar toda a história de nosso povo. Então eu acredito assim, que a religião tanto faz Umbanda como Candomblé ela não precisa você ir muito longe. Numa roda você consegue fazer todo aquele ritual, com toda aquela essência, ali você está conversando com o seu povo. O seu povo ta vindo contar mais ou menos a história, te dando a benção, te iluminando, te protegendo dos inimigos e assim sucessivamente.
Consciente da importante questão da tradição para o seu povo, Laura entende sua
religião como um elemento poderoso capaz de contribuir para os processos dinâmicos de
constituição da identidade afro-referenciada, tão cara aos movimentos negros, e à sua
ideologia política no âmbito das lutas pela propriedade de suas terras. A questão da roda, por
exemplo, constitui-se nas práticas da Umbanda uma reconfiguração do território pelas vias do
sagrado. No momento ritual da roda ou gira como é usualmente conhecida nos meios
religiosos, a pequena porção de terra onde ele acontece se transforma por analogia, e pelo
poder simbólico da fé, em uma pequena porção da África reterritorializada ritualisticamente.
Este sem dúvida é um elemento poderoso na conformação dessas identidades singulares
percebidas pela entrevistada como a reconstituição da própria história ancestral de seu povo.
Voltando à questão sensível dos processos de uso das terras dos remanescentes, que
como vimos é regulado pelo compasso da incerteza e estagnação, à espera pelo deslinde do
conflito, para a retomada de uma rotina normal de vida, percebemos, por outro lado, um
esforço no sentido da busca por melhores condições de vida. Nas sedes de algumas das
associações, como a da Associação de Pequenos Produtores Rurais de Mata Cavalo de Baixo
e Associação dos Pequenos Produtores Rurais Mutuca, nota-se o trabalho de preservação da
memória e da tradição ao mesmo tempo em que a educação dos jovens é implementada no
sentido de melhoria do nível de consciência de si próprios. Enquanto partes integrantes de
uma entidade de alto valor simbólico, o quilombo e tudo que ele trás de representação e
signos maturados pela vivência coletiva e preservação de seus valores étnicos e culturais,
buscam pelas vias da recordação e da experiência dos mais velhos a manutenção de uma
identidade que se quer singular. Essa delicada questão pode facilmente ser identificada nas
falas e nas entrevistas gravadas ao longo de nossa pesquisa, evidenciando bem mais que o
simples desejo de legitimar a propriedade de suas terras.
141
4.3 Fragmentos da memória negra
Historicamente, a busca pelos valores étnicos e culturais pautados na tradição negra
sempre constituiu em ideal a ser conquistado à força do trabalho presente nos caminhos da
subjetividade e da busca por uma afirmação do ser-no-mundo frente a uma sociedade
permeada por interesses difusos e pela hegemonia econômica e política. A Dra. Maria de
Lourdes Bandeira e sua equipe, que nos trabalhos do levantamento histórico-antropológico,
identificaram os remanescentes como legítimos herdeiros do quilombo, aponta essa questão
central para a conformação do ethos cultural da comunidade do Mata Cavalo. Segundo ela:
Compreendendo a vida social como a contínua construção dum mundo subjetivado, cujos sentidos elaborados a partir da realidade concreta, da experiência vivida e de uma existência comum, ganham solidez à medida que o grupo concebe tais significados [como] referência de identidade.221
A história recuperada pelas vias da memória, nesta comunidade, é conseqüência de
esforços contínuos pela preservação de sua tradição ancestral. A tradição oriunda dos
terreiros das senzalas na antiga Sesmaria Boa Vida, trás um significado mais profundo,
maturado através do cultivo de reminiscências de um mundo que se perde na linha do tempo,
o mundo simbólico da África que foi deixado pelos ancestrais. Áfricas que são múltiplas em
uma só, ressignificadas na diáspora, e mesmo quando não manifestada nas consciências mais
imediatas são saturadas dos conceitos da negritude, dos valores étnicos, do poder compíscuo
do sublime escravo, uma metáfora muito bem elaborada por Paul Gilroy, em seu “Atlântico
negro”. Tema já visitado anteriormente.
Logo após a morte de D. Anna da Silva Tavares, o grupo de escravos que se tornara
livre fixou moradia em suas terras, o que antes era local do trabalho forçado, da ignomínia e
exploração dos limites da condição humana, se tornou às feições e ao impulso de suas
tradições mais caras, o local da redenção. Parecia mesmo a consumação de seu desiderato. O
território negro tem seus limites expandidos com a chegada de mais escravos dos antigos
senhores daquela Sesmaria e também, ao influxo da generosidade, com a recepção de novos
221 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 16.
142
moradores também libertos com o fim da escravidão e que encontravam ali uma acolhida
sincera com base no sentimento da irmandade racial. “Na área doada, a comunidade se
expande, caminhando a ocupação ribeirão acima, na [antiga] Sesmaria Boa Vida, em direção
a cabeceira do ribeirão Mutuca e para o lado da [antiga] Sesmaria Rondon, em terras
intersticiais.”222 Configura-se, tendo a história por testemunha, a espacialidade negra no Mata
Cavalo.
Naquelas terras os negros aperfeiçoaram as relações de reciprocidade, elos indivisíveis
de uma cadeia de solidariedade, independência e autonomia que a sensibilidade de Maria de
Lourdes Bandeira descreve como “relações sociais [que os] dominantes continuavam a lhes
negar”. O preço da liberdade - embora naqueles dias de euforias e festas ainda não fosse
possível aos africanos desterrados pela violência do terror racial perceber sua real condição -
foi exatamente o condicionamento das novas formas de servidão, exploração e engodo. Por
ironia, ou simples capricho da fortuna, criou-se a despeito de tudo, uma espacialidade negra
que teve como norma a subversão da ordem hegemônica instalada pelo branco, ao menos no
interior dos limites do quilombo. Ser negro ali, pela primeira vez, representava a esperança da
liberdade.
Muito cedo, os negros do Mata Cavalo entenderam os códigos sociais que a
modernidade lhes impunha, o nome próprio que antes os identificavam no interior do grupo
precisava agora identificá-los pelas vias legais. Através de pesquisa documental, Bandeira
percebe a preocupação dos que foram contemplados com a doação das terras da antiga
Sesmaria Boa Vida em assegurar aos seus descendentes, agora legítimos herdeiros, a
fundamental propriedade de suas terras, segundo suas próprias palavras:
Nesse sentido, no mesmo ano de doação das terras de Mata Cavalos, Silvano escravo de Dona Anna da Silva Tavares, reconhece como filho uma criança de nome Elubão, de 7 anos, que teve com Benedita Marciana da Silva, mulher solteira, a fim de que possa ser seu herdeiro e gozar de ‘todas as honras e privilégios que lhes possa caber’. Alguns anos após, Antonio Quirino da Costa, declara como seu filho Manoel, de seis anos de idade mais ou menos, filho que teve com Rita, ex-escrava de Dona Anna da Silva Tavares, tornando-o seu herdeiro.223
222 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 17. 223 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 20.
143
Bandeira levanta duas alternativas para explicar o esforço dos ex-escravos em
assegurar a propriedade das terras aos seus herdeiros. De um lado as reminiscências de uma
sociedade hierarquizada, em período de longa data estando mesmo entranhada na memória
coletiva, nos moldes das relações sociais entre senhor e escravo224. Acostumados a lidar com
os códigos dessa sociedade marcada pelas relações servis e pelo imenso valor que a terra
possuía, considerada símbolo maior do status e da dominação do branco, tornava-se algo
previsível que os negros buscassem, após a conquista de suas liberdades, assumir “o modelo
dominante de oficialização de paternidade, assegurando simbolicamente a si e à sua
descendência – pela via da terra que possuíam – ‘honras e privilégios’ que cabiam aos
senhores”.225 De outro lado a questão do esforço empreendido pela comunidade negra em
formação, sempre nos moldes das relações de dominação a que estavam acostumados, em se
colocar de forma simétrica aos padrões de vida dos brancos na sociedade que os envolvia. De
acordo com Bandeira essa prática do acesso a terra, que antes era baseada nas relações de
reciprocidade mediada sempre pela “via da pertença”, agora necessitava do apoio das
instituições legais, permitindo assim o transito através dos códigos da mesma sociedade que
sempre os seviciaram. Concordamos com o aspecto apontado pela autora quanto à
necessidade da formalização legal da condição de herdeiros pelas vias do registro civil dos
filhos, embora ressalvemos a noção explícita da imposição de fora para dentro destas práticas.
Sem dúvida, lidar com esses códigos significava, e isso não é pouco, assumir um padrão de
poder que sempre fora utilizado pelos brancos dominantes. Todavia, considerando-se os
aspectos sensíveis da subjetividade humana lidar com esses mesmos códigos significava,
também, um hiato, um instante, um grito de liberdade. Conjecturamos, na conjunção poética
da prática histórica, na imaginação racional que nos desprende do óbvio, do relativo, que
aqueles negros ao registrarem seus filhos também queriam mostrar sua autonomia,
independência, capacidade e emancipação. Agora libertos da condição de res, de meros feixes
de músculos a serviço do sistema que os aprisionavam, natural seria que também se
utilizassem dos códigos sociais estabelecendo as suas próprias relações de poder no interior da
sociedade hegemônica.
224 Embora minha preferência pela subversão dessa ordem, pois numa alusão à inversão retórica para a alegoria do “Senhor e o escravo” de Hegel, trabalhada por Frederick Douglass, na sua obra My Bondage, My Freedom, citada no capítulo 2 desta, que coloca em primeiro plano o escravo por dominar o que havia de mais importante: o trabalho, e também ao desafiar a própria morte numa luta com o seu senhor o que o colocava na posição de senhor de si mesmo. 225 Bandeira et alii. Id. Ibidem.
144
O trabalho, a condição da existência própria do trabalho em si, constitui um elemento
vigoroso na conformação, no ideário e nos modos materiais e simbólicos da emancipação dos
negros do Mata Cavalo. Trabalhar para si mesmo representava libertar-se dos pesados
grilhões que foram maturados pela mentalidade coletiva escrava em período de longa data.
Numa entrevista realizada com Antonio Mulato quando solicitamos a ele a autorização para
fotografá-lo de imediato ele escolhe o local do seu antigo engenho, conforme registro
iconográfico constante no início desta dissertação. Essa reação espontânea é reveladora de um
significado atribuído ao trabalho para além da questão econômica e de subsistência. Para os
homens, mulheres e crianças do Mata Cavalo trabalhar significa reafirmar sua condição de
ser-no-mundo, no limite da expressão revela uma forma singular de riqueza, pois na sua
essência indica possibilidades e manutenção do modo de vida. Desta forma, a memória étnica
clivada pelas possibilidades que a terra pode oferecer, em termos de trabalho, constitui-se em
formas de preservação e, por seu caráter dinâmico, de manutenção da própria memória
coletiva do grupo. Obviamente, assevera Bandeira, esta memória é “perpassada pelos mitos de
origem, firmada pela ancestralidade, os antepassados, presente nas lembranças tornam-se
parâmetros de conduta a seguir”.226
Observamos em nossas pesquisas certo conflito entre a tradição, baseada nas relações
de reciprocidade, e as práticas sociais dos remanescentes nos dias atuais, permeadas pela
tendência, vista como perniciosa, da individualidade e do afastamento de um antigo modo de
vida no quilombo, como se pode notar na fala de Antonio Mulato. Com nostalgia no olhar ele
afirma que “to alegre porque ainda to vivo, mas hoje cada um faz por si. Esse é o atraso da
vida, né?”. Certamente Bandeira está repleta de razão quando afirma que a memória étnica
constitui valores da ancestralidade que servem de padrões a serem seguidos pelos
descendentes. Antonio Mulato fala exatamente sobre a questão delicada da manutenção de um
modo de vida baseada nas relações coletivas de uso da terra e de sociabilidade, tendo como
exemplo a prática dos muxiruns. Mas, na verdade, em função dos impulsos transformadores
do mundo globalizado, muito dessas antigas práticas vão se obliterando lentamente ou em
alguns casos conformando-se a uma nova ordem vigente, como o caso da procura por
empregos nos centros urbanos, principalmente por alguns jovens do Mata Cavalo em busca de
melhores condições de vida.
226 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 22.
145
Como explica Bandeira, as estruturas sociais no quilombo foram definidas pelo
sistema de linhagens tendo como base produtiva a roça de mantimentos através do trabalho
familiar e das relações de mútuas trocas de favores o que a tornava um local de labor coletivo
por excelência. Nas roças de toco, tradição passada de pai para filho, o trabalho começava
com o desmatamento da área que seria utilizada para o plantio. De acordo com suas pesquisas,
depois de efetuada a limpeza do local:
Deixava-se secar o mato e ateava-se fogo, em especial no dia 24 de Agosto, dia de São Bartolomeu ou ‘São Bento lambeu’ conforme dizem. Nesse dia ‘dia próprio de queimar e de aprontar’, dia que ‘lambe tudo, queima muito bem, sai uma roça muito feliz’, acreditam os informantes que o trabalho iniciado será coroado de sucesso, que os mantimentos plantados assegurarão fartura para a família, para as festas de santos, para a comunidade. Para poder plantar, fazia a caieira e esperava-se três chuvas para esfriar a terra. Nas roças de arroz destocava-se com a enxada; para cultivar o milho esse procedimento não era necessário.227
Utilizando-se de sistemas de plantações tradicionais, herança de sua própria
ancestralidade e, também, da sabedoria indígena absorvidas e disseminadas pela cultura
popular nos meios rurais, os descendentes dos antigos escravos mantiveram até aos dias
atuais, com algumas exceções, muito dessas práticas, principalmente entre as famílias com
baixa renda e que utilizam-na como meio de subsistência. Prática muito corriqueira até aos
dias atuais, plantava-se à época o feijão logo após o crescimento do milho para que servissem
de suporte para as suas ramas. As sementes de arroz separadas para o plantio eram
conservadas amarrando-as em feixes e colocadas acima do fogão para evitar a umidade e o
conseqüente ataque dos carunchos. As sementes de feijão e de milho também careciam de
cuidados especiais tanto na seleção quanto na conserva buscando-se o maior nível de
aproveitamento que a sabedoria popular podia proporcionar.
Na Associação dos Pequenos Produtores Rurais Mutuca, nos dias atuais, a situação é
inversa. Apesar da prática de cultivo manual, e isso se deve em parte aos incentivos de setores
especializados da EMBRAPA, Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, que desenvolve
junto às comunidades quilombolas um programa de apoio aos pequenos produtores rurais
227 Id. Ibidem.
146
disponibilizando treinamentos, palestras e publicações técnicas acerca do manejo e cultivo de
produtos agrícolas. Além do apoio dos órgãos governamentais, organizações não
governamentais e setores ligados aos movimentos sociais também apóiam a produção agrícola
nesta comunidade, como podemos constatar por ocasião da II Festa da Banana Quilombola
realizada em 06 de Junho de 2010. Carinhosamente chamados de “papa-banana”, esse
produto é motivo de orgulho, tanto para os remanescentes da Comunidade do Mutuca quanto
para a população da cidade de Livramento – MT que, em nenhuma circunstância se
importam com o apelido. Ao contrário, a banana, principal produto produzido na comunidade,
já faz parte da tradição de seu povo.
Ao som das músicas regionais mato-grossenses, muitas danças e comidas típicas do
quilombo, os produtos manufaturados da banana, como doces diversos, geléias, tira-gosto
(banana cortada em rodelas e fritas no óleo de soja) e também a tradicional farinha, são
expostos ao público na pequena feira de produtos agrícolas montadas em um galpão aberto
com cobertura de palhas de coqueiros. Laura Ferreira da Silva, uma das lideranças da
Associação de Pequenos Produtores Rurais Mutuca e organizadora da festa, está
profundamente envolvida nos projetos de melhorias para a sua comunidade. Para ela o evento
da Festa da Banana constitui-se numa rara oportunidade para expor o produto produzido no
quilombo, o que justifica seu empenho na divulgação da feira e na expansão dos produtos
expostos, atraindo assim um maior número de visitantes à sua comunidade.
147
Imagem 3: Detalhe da Festa da Banana Quilombola
Fotografia de detalhe da Festa da Banana Quilombola, Comunidade do Mutuca Foto tirada em 06 de Junho de 2010. Modelo da câmera DMC-FX07, formato JPEG Acerco particular de Silvânio Paulo de Barcelos
Além dos subprodutos produzidos a partir da banana, outras mercadorias também são
oferecidas ao público na feira, tais como: licores de pequi, capim cidreira, quiabo de
angola228, jatobá, jabuticaba, abacaxi e figo, pequi em pó, bala de pequi, farinha de pequi,
bonecas feitas com cabaças, artesanatos e bijuterias confeccionadas com folhas da bananeira,
entre outros, como mostra a imagem acima. Segundo Laura Ferreira da Silva, grande maioria
das famílias que moram na zona rural do município de Livramento – MT, bem como as de sua 228 O Hibiscus sabdariffa L. é um arbusto perene da Família das Malváceas que pode atingir cerca de 2 a 3 metros de altura. Pertence ao gênero Hibiscus, que compreende cerca 200 espécies de plantas. De origem africana e asiática, é conhecida popularmente como hibisco, hibiscus, rosela, groselha, azedinha, quiabo azedo, caruru-azedo, caruru-da-guiné e quiabo-de-angola, além de receber outros nomes como cardadé, rosa da Jamaica, té de Jamaica (espanhol); red sorrel ou Jamaica sorrel (inglês); cardade (italiano); afrikanische malve (alemão) ou roselle (francês). As diferentes partes da planta têm várias utilidades. As folhas são ricas em vitaminas A e B1, sais minerais e aminoácidos. Quando ainda estão bem jovens e tenras, as folhas podem ser consumidas em saladas cruas; depois, um pouco mais velhas podem ser refogadas ou se tornar um ótimo ingrediente para o preparo de cozidos, sopas, feijão e arroz. O cálice vermelho tem um sabor azedinho e contém ácidos cítricos, hibístico, málico e tartárico. O cálice pode ser usado na fabricação de geléias, doces, picles, vinho, vinagre, sucos e também no preparo de um excelente chá. Para o preparo do suco são utilizados os cálices crus ou cozidos, que são triturados no liquidificador com água, depois é só coar e adoçar a gosto. O cálice triturado é aproveitado para o preparo de geléia ou doce. Já o chá é obtido a partir do cálice seco à sombra. As sementes possuem 17% de óleo e 25% de proteína. Disponível em: http://www.jardimdeflores.com.br/ERVAS/A42hibiscus.htm Acesso em 04/Fev/2011.
148
comunidade, estão envolvidas na produção da banana, um ótimo acompanhamento para certos
tipos de carne, além de doces e também para o consumo in natura. Desta região, a banana
transformada em tira-gosto abastece as prateleiras de supermercados, restaurantes, quitandas,
e até restaurantes de várias cidades. A banana, afirma Laura, tem atraído turistas que em suas
visitas à nossa comunidade se encantam com as mais variadas formas de sua utilização. É
visível a euforia que toma conta dos membros desta comunidade durante a realização da feira,
pois ao que sabemos consiste no êxito ao esforço conjunto empreendido por eles no sentido
de alavancar economicamente a sua comunidade, ao mesmo tempo em que lhes confere
visibilidade política pela utilização racional dos recursos do meio ambiente, tema caro à
sociedade contemporânea.
Voltando na linha do tempo da história do quilombo, Bandeira reporta-se ao tempo da
fartura e da vida comunitária em que o labor nas roças consistia no seu principal meio de
subsistência sendo que o excedente, quando produzido era prontamente comercializado na
cidade de Livramento – MT. No Mata Cavalo:
Tinha engenhos, vários engenhos de tração animal, relembram os antigos moradores do lugar. Com as canas provenientes das roças fabricava-se melado, rapadura e açúcar. Nos alambiques, cachaça. Os que não possuíam engenho em suas casas levavam a cana para ser trabalhada nas instalações de um parente mais próximo – pai, irmão, sogro, cunhado. O produto do trabalho era dividido entre os integrantes que participavam do processo do fabrico.229
Em entrevista gravada com José Gregório de Almeida, descendente direto de Vicente
Ferreira Mendes, ex-escravo que comprou uma parte da antiga Sesmaria Boa Vida,
denominada Mutuca230, o tempo da fartura era descrito com riquezas de detalhes ao sabor
nostálgico das lembranças que lhe são mais caras. Segundo ele “a cultura nossa lá era lavoura
de feijão, de arroz, plantava cana, papai fazia rapadura e açúcar, açúcar de barro” e o
excedente era comercializado na cidade de Várzea Grande. Transportado em carros de boi a
mercadoria era vendida no porto, como não existia ponte sobre o rio Cuiabá havia a
necessidade de pagar uma taxa ao dono da embarcação, que era ao mesmo tempo cambista e 229 Bandeira et alii. Op. Cit. p. 25. 230 Para maiores detalhes vide o item “A doação do Ribeirão Mutuca”, no capítulo 2 desta.
149
embarcadista, para empregar um termo utilizado por ele. Normalmente entre as exigências do
atravessador havia quase a obrigação de trocar os produtos por mercadorias diversas até
atingir mais ou menos a metade do valor negociado, o restante era pago em espécie. O
entrevistado, não sem certa ironia, dizia que seu pai mal sabia o que fazer com o dinheiro que
era pendurado em algum lugar de sua residência e ali permanecia por longo tempo, “meio
saco de dinheiro, esse dinheiro ficava lá ó, não tinha com que gastar”. Entre as mercadorias
negociadas eles recebiam chinelos (nem havia botinas ele lamenta), chita, genovesa, genovesa
riscada, utilizada também para confecção de calças, além de chapéu, sabão e outros produtos
necessários. Gordura não precisava! Afirma o entrevistado, “nós tinha capado, porco, galinha,
boi, leite, essas coisas...”.
Como não dispunham de produtos químicos para proteção das lavouras, de acordo com
Bandeira, em Mata Cavalo utilizavam-se os artifícios da fé lançando mão de rituais para a
proteção de suas plantações tanto no plantio como na colheita. A fé é sempre desvelada nas
falas dos entrevistados, constituindo um elemento simbólico poderoso na conformação da
mentalidade coletiva o que reflete de forma intensa no imaginário das pessoas do quilombo.
José Gregório de Almeida reporta-se a ela, na referida entrevista, em uma visão que aceita o
sobrenatural com a mesma tranqüilidade que relata fatos do cotidiano simples de suas vidas.
Segundo ele, seu pai em uma de suas inúmeras histórias de vida, estava à espera da chuva
para umedecer o chão, pois o prazo para os dias de plantio já estava se esgotando. Então, ele
convocou os familiares para uma grande procissão rumo ao local destinado à lavoura e lá
chegando todos se colocaram de joelhos ao chão e rezaram a Deus clamando pela chuva
generosa. Ele termina a narrativa dizendo que todos voltaram à suas casas totalmente
molhados e felizes, e diz mais ainda: que essa era uma prática corriqueira, ou seja, a fé sempre
intermediava a intervenção divina. Não queremos iniciar um debate acerca da questão da fé e
do sagrado para essa comunidade, nem é parte do problema que nossa pesquisa busca
elucidar. Mas vale ressaltar aqui o alto poder que o imaginário religioso representa para essa
gente simples, retemperadas no panelão da herança escrava. Pelos infortúnios do estado de
conflito e de conflitividade, a fé para eles constitui algo mais que devoção e adoração, é no
limite da expressão uma saída para além dos vínculos da dor e do sofrimento, é a esperança
sempre renovada no devir escatológico, renitente, uma bonança capaz de refrigerar almas
inquietas e que, pela interação entre os dois mundos possibilita o fortalecimento da vontade e
da paciência, elementos indispensáveis ao cotidiano de lutas.
150
Ao lançarmos os olhos numa análise interpretativa das entrevistas, no entanto, não
podemos esquecer que a historia biográfica é resultante de escolhas e/ou recortes que fazemos
no labirinto extenso de nossa própria experiência, constituindo-se opções conscientes
realizadas a partir do presente para dotá-las de sentido. No caso dos relatos de José Gregório
de Almeida as lembranças de um tempo marcado pela fé procura dar sentido à sua própria
vida presente identificada com um sentimento profundo de religiosidade, pois como disse
Brandão (citação 205 desta) as recordações pessoais possuem “uma dimensão subjetiva e
sócio-afetiva”. E se “somos aquilo que lembramos e que também esquecemos”, também
citado por Brandão referindo-se à Bobbio e Izquierdo, está muito claro a impossibilidade de
dissociar a vida social do entrevistado, que representa também o mesmo ideal coletivo no
quilombo, da sua vida religiosa, da dimensão sagrada em seu cotidiano.
Diferente do presente, de acordo com Bandeira, no passado a organização social do
trabalho no Mata Cavalo tinha como base de sustentação o esforço familiar nas fainas diárias
da lavoura, possibilitadas pelo recurso da utilização da força de trabalho coletiva, práticas
muito usuais à época. Nesse sistema familiar, todos se envolviam no bem estar coletivo, “os
filhos casados eram responsáveis pelo sustento dos pais e avós, quando esses já se
encontravam bastante idosos, sem condições de continuar a lida da roça”.231A comunidade
como um todo também estava inserida nessas relações sendo que o “trabalho cooperativo
possibilitava a ampliação da força de trabalho em momentos que a mão de obra familiar era
insuficiente.”232 Desta forma, o grupo como um todo era fortalecido através dos elos mantidos
nas relações de reciprocidade, sendo que no momento dos encontros em torno do trabalho
eram conservadas acesas as forças que mantinham o sentimento de amizade que os uniam,
“comunitariamente se aprendia a importância do grupo na vida de cada um, o papel social de
cada um como parte do todo”.233 Neste mundo permeado pelos valores da família a pertença
pelas vias consangüíneas garantia não só a coesão familiar como um todo, mas também do
grupo, estendidas aos órfãos cuja educação era transferida, por ocasião da morte dos pais, aos
parentes mais próximos. Os vínculos sensíveis da parentela não se desfazia por ocasião da
morte, pelo contrário os elos entre os dois mundos eram fortalecidos nos rituais das visitas ao
cemitério criando, desta forma, uma ligação profunda entre os ancestrais e seus descendentes.
Ir ao cemitério constituía numa obrigação social imprescindível aos membros do Mata
231 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 25. 232 Id. Ibidem. 233 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 26.
151
Cavalo, principalmente nos dias de comemoração ao aniversário do morto, no dia de Santa
Cruz, finados e também na sexta-feira santa. Nessas visitas, aponta Bandeira:
Ao chegar ao cemitério nominava-se os antepassados ali enterrados. Depois rezava-se agradecendo a vida, pedindo proteção e saúde. Acreditava-se que evocados os mortos se faziam presentes. Para homenageá-los ofertava-se comida, bebida, vela, flor, cigarro e cachimbo; presentes estimados pela comunidade e pelo morto. Dentre os presentes oferecidos o guaraná era uma oferenda especial, colocava o guaraná, que era temperado, despejado na sepultura ou deixado na vasilha. Outra bebida também muito oferecida era a pinga, deixada na própria garrafa ou derramada na sepultura.234
Esta prática, um importante meio do aprendizado e da manutenção dos rituais que a
sabedoria da coletividade cultivava no interior da comunidade, constitui-se num dos elos
importantes da conformação do ethos cultural que permite pelas vias da tradição a constante
re(atualização) dos componentes da cadeia de reciprocidade e da pertença. Num contínuo e
permanente esforço coletivo as gerações vão se perpetuando no tempo e no espaço da
sociabilidade permitindo a sua continuação no âmbito da realidade. Convergindo o alto poder
da simbologia que o culto aos ancestrais propicia às memórias do passado experimentado por
todos, passado e presente se misturam para depositar no futuro suas aspirações, desejos e
esperanças. Bandeira numa análise das práticas referentes ao culto aos antepassados explica,
pelo viés da antropologia, que:
Pautados em princípios genealógicos, em princípios de solidariedade e reciprocidade e envolvendo responsabilidades que não podem ser quebradas, esses rituais fortalecem os laços comunitários entre os vivos e entre estes e os mortos. Remetendo a temporalidades que dizem respeito ao passado, ao presente e como processo certamente projetando o futuro, as lembranças fornecem subsídios à coesão grupal. Atualizando o passado vivido, o grupo refaz-se para superar os problemas e as adversidades.235
Perfeitamente integrados ao meio ambiente onde viviam, os homens e mulheres do Mata
Cavalo possuíam uma relativa autonomia interna, desde o tecido confeccionado a partir do
processo da plantação e do beneficiamento do algodão, à fabricação dos utensílios da cozinha
234 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 29. 235 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 30.
152
e os móveis da casa com “madeiras das matas, folhas de palmeiras, cipós, taquaras” como
afirma Bandeira. “Do couro dos animais fazia-se surrão, sacos para acondicionar os grãos.
Faziam-se arreios, móveis, instrumentos musicais. Faziam-se potes, moringas e panelas de
cerâmica.”236
De acordo com depoimento oral de José Gregório de Almeida em 30 de Setembro de
2010, em nossas pesquisas, no Mata Cavalo tinha “forno de barro, fogão de fazer comida,
tinha pipa de fazer pinga de alambique, fazia açúcar de barro”. No local próprio que era
constituído por um ranchão de palha que abrigava o engenho, movido geralmente por uma
junta de bois, fazia-se o melado e logo após era acrescido o barro para extrair o açúcar, daí o
seu nome açúcar de barro. Essa autonomia do grupo se devia em grande parte à organização
social do quilombo pelo sistema comunitário da divisão de trabalho, propiciando a energia
necessária à resolução dos problemas tanto individuais quanto coletivos. Na fala simples de
José Gregório de Almeida, “quando fazia muxirum vinha setenta negros, aí depois é de fulano
vamos cortar arroz, aí depois é de sicrano reunia mais quarenta ou sessenta negros e ia cortar.
Então não existia miséria, não existia fome, porque todo mundo tinha, era unido”.
No entanto, acreditamos, e a lógica aponta para isso, que a autonomia e coesão do grupo
não se prendiam exclusivamente a esses fatores apontados acima, aos elos de reciprocidade,
ao sistema comunal. Coordenar essa força, mesmo que aparentemente voluntária, demandava
capacidade de organização que por sua vez pressupõe lideranças capazes de orientar e manter
uma severa disciplina. Baseada no sistema político e social centrado no paternalismo no
âmbito da família e no respeito aos mais velhos no círculo social mais amplo, conforme
Bandeira nos aponta, “nas famílias extensas os filhos casados passavam a morar próximos aos
pais; a eles deviam obediência como pessoas mais velhas e mais experientes”.237 Neste
sistema político o acesso a terra se dava em função da linhagem e da descendência comum,
mas também pelas relações de afinidade, compadrio, compartilhamento de devoção ao santo,
sendo que nestes outros casos, que não o da linhagem, a entrada de um novo membro no
grupo era “avalizada pelo chefe, pessoa responsável pela guarda dos papéis do grupo. Isto é, a
documentação da doação das terras. Na tarefa, auxiliado pelos mais idosos, numa espécie de
conselho de anciões”.238
236 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 29. 237 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 26. 238 Bandeira et. alii. Op. Cit. p. 21.
153
Apesar do poder político, como aponta essa autora, estar centrado nas mãos dos homens
no âmbito da família, e por extensão no social, constitui senso comum no Mata Cavalo,
segundo nossas pesquisas, perceber através das memórias relatadas a forte influência das
mulheres no contexto de lutas emancipadoras e no controle efetivo de todos os setores da vida
social nesta comunidade. Herança do ambiente fértil das senzalas, como veremos a seguir,
nos dias atuais não precisa muito esforço para identificar a influência e a capacidade de
liderança de algumas dessas mulheres. Gonçalina Eva de Almeida, que desde nova participa
ativamente dos processos políticos de lutas no interior de sua comunidade, em resposta à
nossa pergunta referente à visão que ela tinha acerca do papel da mulher nos dias atuais, na
entrevista gravada em sua residência em 21 de Janeiro de 2011, afirma que:
Olha, acho que a mulher ta conseguindo provar que ela é igual ao homem, que ela tem a mesma força, não física, mas intelectual, política, social, não é? E a gente realmente pode contribuir com o mundo melhor. Não que a gente quer ser melhor que os homens nem estamos lutando para isso, simplesmente por igualdade, pra ter a mesma posição de mostrar o trabalho. Eu vejo aqui pela minha casa, eu não quero ser melhor que meu marido sabe? Quero ser igual. A gente fazer igual, o mesmo trabalho, o mesmo direito que eu tenho ele tem, não em força física, mas eu falo intelectual, política, social.
Para além da questão da igualdade social e política apontada pela Gonçalina, algumas
mulheres do Mata Cavalo se destacaram, tanto no passado, como no presente no cenário das
lutas políticas, por vezes permeadas pela violência e pelo terror psicológico, sem abandonar
suas posições. Outro exemplo disso é o de Tereza Conceição Arruda, presidente da
Associação-mãe e uma liderança muito forte frente ao processo de lutas pela legitimidade da
propriedade das terras do quilombo.
Depois de trilhar os caminhos da memória, da estrutura social e da força que
representava o sistema coletivo de organização do trabalho no interior do quilombo no
passado, percorreremos nas linhas que se seguem as escolhas das trajetórias empreendidas no
sentido da legitimação das terras dos negros. Partindo da experiência e da força política da
mulher no processo de lutas pela emancipação do grupo como um todo, tanto no passado
quanto no presente, buscaremos elucidar, na medida do possível, os desdobramentos dessas
154
escolhas. Tanto pelo protagonismo dos sujeitos implícito na cadeia dominial do imóvel da
antiga Sesmaria Boa Vida e dos processos do conflito fundiário, quanto pelas vias dos
movimentos negros, neste caso quilombola, o que se busca são os caminhos da consumação
de um desiderato na vida dessas pessoas, o dia em que a propriedade de direito tornar-se-á de
fato.
4.4 Mulheres do Mata Cavalo: A resistência negra
A possibilidade da pesquisa participativa, ou pesquisa-ação onde autor e atores sociais
na trama proposta consideram a hipótese racional do caminhar juntos, cada qual com suas
ferramentas próprias objetivando a intervenção na realidade do vivido, nos leva a acreditar
que nosso trabalho poderá de alguma forma contribuir para o deslinde das questões pendentes
na história do Mata Cavalo. Mesmo que de forma a fornecer elementos novos, explorados à
luz da sondagem histórica realizada, que possa de alguma maneira contribuir para o
desenvolvimento da resistência à opressão através de dados relevantes comprovados e
levantados durante a pesquisa. Essa, a nossa esperança, o objetivo e o ideal.
“Eu sou quilombola, bisneta de escravos, nós, quilombolas, não somos os invasores”.
Foi com essas palavras duras e cheias de significados que, tomada por tocante comoção,
Joana, da comunidade do Mata Cavalo de Baixo, em audiência pública da Comissão Federal
de Combate à Violência no Campo, realizada em Nossa Senhora do Livramento, na data de 15
de Setembro de 2003, iniciou sua fala diante das autoridades e inúmeras pessoas do
quilombo239. Essa manifestação dos remanescentes se deu, em parte, devido às ações de
despejo realizadas em 21 de Maio de 2003240, que terminou com a expulsão de trinta e cinco
239 Parte do documentário Sentinelas do Tempo: Mulheres Quilombolas contido no DVD A Terra e o Tempo: Vozes do Quilombo, produzido sob a direção de Sergio Brito, em 2006, e distribuído pela Terra do Sol Filmes. 240 De acordo com reportagem veiculada pelo jornal eletrônico Mídia Independente, o ano de 2003 foi marcado pela violência e ações de despejo no Mata Cavalo. Em 21 de maio, policiais invadiram o Quilombo para cumprir o mandado judicial expedido pelos Juízes Marcos José Siqueira e Teomaro Corrêa para reintegração de posse de duas fazendas. Foram despejadas no total trinta e cinco famílias sendo que na ação um quilombola foi preso por desobediência. Segundo o jornal “Depois de toda a opressão, ‘autoridades competentes’ como a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção de Igualdade Racial, o governador Blairo Maggi, deputado federal Carlos Abicalil e a senadora Serys Slhessarenko, vão ao quilombo fazer vistoria e reunir-se com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos”. Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/05/255267.shtml acesso em 12 de Janeiro de 2011.
155
famílias quilombolas, pela Polícia Militar. Joana, como tantas outras mulheres do quilombo,
representa o ideal da resistência negra à opressão, porta-vozes daqueles que a parcela
dominante envolvida na disputa fundiária procura manter a margem do sistema, por força do
poder econômico e político de que são beneficiários. Ao declarar que eles, os quilombolas,
não eram os invasores, como foram classificados naquela época, ela se reporta, com muita
razão, à própria história da cadeia dominial do imóvel da antiga Sesmaria Boa Vida, vista em
detalhes pormenorizados no capítulo 2 desta dissertação. Como descendentes diretos daqueles
escravos que foram beneficiados com o ato de doação das terras constituem-se,
inexoravelmente, em seus herdeiros legítimos de fato e de direito. Sua voz firme e desafiadora
revela bem mais que simples disposição de luta por ideais, no íntimo desvela toda uma
condição social moldada na têmpera de vidas forjadas pelo instinto da sobrevivência.
A despeito do sistema patriarcal vigente nas comunidades negras no Brasil, no Mata
Cavalo, por força de contingência das lutas emancipadoras, as mulheres assumiram seu lugar
de destaque rompendo, de certa forma pelo matriarcado, os parâmetros das estruturas sociais
que delegavam ao homem a centralidade nas estâncias do poder no interior das famílias e dos
grupos sociais. Francisca Romana da Silva representava uma dessas mulheres. Segundo
entrevista oral gravada em 30 de Setembro de 2010, José Gregório da Silva a descreve como
“uma nega bonita, alta, toda cheia daqueles colares no braço, no pescoço, que aquelas
escravas usavam, vestido de roda, de senzala, não sei quantas saias tinha por baixo!”. Com a
morte de seu esposo Vicente Ferreira da Silva, ela se vê na obrigação de assumir o comando e
os destinos de sua prole em um ambiente envolvente marcado pelo estigma da instabilidade
e pela hegemonia dos poderes da sociedade branca dominante. Com firmeza e ao mesmo
tempo devoção maternal manteve a coesão de seu grupo familiar extenso graças à sua
capacidade de liderança. Rebuscando na memória, José Gregório da Silva lembra que graças à
força daquela mulher no seu meio familiar “não existia miséria, não existia fome, porque todo
mundo tinha, era unido. Todo mundo tinha fartura, rapadura, açúcar de barro, todo mundo
tinha porque todo mundo fazia”. Essa questão das relações de trabalho na manutenção das
famílias sempre foi uma condição essencial à sua sobrevivência e à do grupo. Num sistema
onde predominava a agricultura de subsistência, todas as necessidades materiais do grupo
dependiam exclusivamente de sua força de trabalho. Como já o dissemos, de acordo com
nossas conclusões, essa força demandava controle e austeridade visando à homogeneidade
156
social pretendida através de uma dinâmica administração, como era o caso daquela família.
Francisca Romana da Silva “Administrava a terra, administrava os filhos, mandava os filhos
sentar, ela era uma mulher administrativa” assevera José Gregório de Almeida.
Preocupada em manter coeso o seu grupo familiar ela não se furtava aos deveres da
educação dos mais jovens com os rigores e a disciplina requerida naquele ambiente rude.
Quando necessário aplicava os corretivos em forma de castigos físicos, como era
característico à época, lembra José Gregório de Almeida. Caso algum de seus filhos, ou
parentes mais novos sob sua responsabilidade apresentasse comportamento inadequado de
imediato ela ordenava “marra o fulano lá pra mim, aí eles pegavam podia ser irmão, podia ser
quem fosse pegava e amarrava e ela chegava a vara, assim que era”. Preocupada em manter
sua posição de liderança perante sua gente, fazia questão de exigir para si um tratamento
baseados no respeito e consideração, desta forma “todo mundo pedia benção pra ela, tinha
gente que até ajoelhava pra pedir benção pra ela, sabe como era a educação antigamente não
é: Sim senhor! Sim senhora! Não é como hoje”, desabafa o entrevistado. Aliando a seriedade
que sua posição exigia à docilidade do instinto maternal ela conseguiu manter sua família de
acordo com os padrões revelados na fala simples de José Gregório de Almeida. Nas ocasiões
em que a prática do muxirum era utilizada, afirma ele:
Ela tava alegre, acho que tomava uns vinhos, aí ela dançava com os filhos, ficava alegre, fazia aquele rodão, ela ficava assim com os netos e tataranetos. Muito brava ela era, mas tinha os momentos de alegria de agradar também. [...] Quando ela recebia visita todo mundo tinha que comer tudo, ela punha a mesa: doce de leite, doce de mamão, lambari frito, carne com arroz, abóbora, feijão, tinha aquelas vasilhas de barro para colocar comida. Colocava a mesa, tinha que comer tudo, quem fosse lá visitar ela tinha que comer de tudo. Ela arrumava aquele mundo de refeição, era pra comer toda a comida, se não comesse ela era ignorante: ta fazendo pouco da comida? Tinha que ser bom de prato, depois agradecia ela aí ficava alegre, ela tinha gosto de tratar as pessoas.
Sendo os relatos de memórias escolhas conscientes que fazemos a partir da experiência
própria de nossas vidas, objetivando dotar de coerência uma narrativa qualquer a que se
proponha edificar, sempre levando-se em consideração o presente em que vivemos, conforme
Bourdieu afirma no seu artigo “A Ilusão Biográfica”, podemos tirar algumas conclusões das
157
falas de José Gregório de Almeida, na entrevista relatada acima. Para ele, como também para
tantos outros entrevistados durante nossa pesquisa de campo, como o caso de Antonio Mulato
e seu desabafo quanto ao pouco caso que a juventude do Mata Cavalo confere às antigas
tradições do quilombo, o mundo ideal consiste naquele onde a vida comunal faz parte das
regras sociais do grupo. Ao rebuscar essas memórias do tempo da fartura, “onde não existia
miséria [...] onde todo tinha, porque todo mundo fazia”, ele relaciona a desdita vivida no
presente opressor pela desagregação daquele antigo modo de vida, concebendo-o como o
sistema social perfeito e fazendo dele um objetivo futuro, o devir dotado de racionalidade, a
esperança vindoura. Notamos, também, a centralidade que uma liderança forte possui no
imaginário de José Gregório de Almeida quando ele se volta para o seu próprio passado. Para
ele, a harmonia daqueles dias felizes e fartos se devem em grande parte à capacidade de
liderança de sua avó, bem em conformação, em algum nível, com o tipo ideal de dominação,
postulado pela sociologia weberiana, a “dominação tradicional”, esta legitimada pela força
que a tradição possui para aquela gente do quilombo. Não se torna tão complicado, também,
identificar o “ideal puro”, ou o “tipo ideal” preconizado por Max Weber, aos recortes de
memória do entrevistado com relação ao meio social do qual expressa tanto saudosismo.
Tendo como regularidade a harmonia social daqueles dias vividos em função de ações sociais
específicas, no caso o sistema comunal apoiado por uma liderança forte, levando-se em
consideração as características fundamentais do próprio grupo do qual se lembra, baseado em
uma estrutura de sociedade tradicional negra, pode-se identificar aí uma variação do tipo ideal
weberiano. Ou seja, uma comunidade pautada nos valores da reciprocidade humana e nos elos
de solidariedade do grupo a partir das práticas sociais baseadas no sistema comunal, onde o
maior valor a ser preservado encontra-se na própria união do grupo, símbolo de sua fortaleza
e fé.
Ao término desta entrevista, José Gregório de Almeida, de fisionomia grave, como se
buscasse no íntimo de seus pensamentos uma saída para fora daquele estado angustiante,
sentenciou: “Tudo acabou, foi modificando tudo. Hoje em dia a gente fica como história,
conta como história, tem gente que não acredita, naquele tempo tinha união, rezava, vivia pela
fé”. Nesta correlação que o entrevistado faz entre passado e presente como uma séria ruptura
de um estado de coisas, por ele idealizado como perfeito, identificamos novamente aqui os
postulados da sociologia clássica, como capazes de oferecer explicações razoáveis a esta
questão delicada. Agora nos pressupostos teóricos trabalhados por Émile Durkheim em seu
“fato social” que é por definição externo ao indivíduo, coercitivo e geral. No caso do tempo
158
lembrado pelo depoente os fatores externos foram, e ainda o são, aqueles relacionados ao
estado litigioso da disputa fundiária pela propriedade das terras, desagregando o antigo modo
de vida, da forma como é percebida por ele, mas se deve também à outra ordem de fatores
mais gerais.
Esta outra questão, que José Gregório de Almeida não menciona, e pensamos que nem é
de seu interesse essa forma de explicação da realidade do vivido, tem a ver com as próprias
mudanças do mundo atual, marcado pelo individualismo entendido como um estado
metafórico “liquefeito” na visão de Bauman, como já visto anteriormente. Quando o depoente
afirma que hoje eles nada mais são que “história” percebe-se o nível da consciência de si
mesmo e do grupo ao qual pertence, bem como da dinâmica das mudanças que ocasionaram o
estado social em que hoje vivem. De acordo com Julio Aróstegui numa explicação histórica
estão implicadas: “1. A natureza de uma estrutura existente. 2. A origem de uma ação social.
3. A natureza de uma nova estrutura emergente”241, considerados estes conceitos quando
aplicados às lembranças do mundo ideal de José Gregório de Almeida, podemos por analogia
entender a ruptura de um estado social, tido como ideal pelo depoente, marcado pelo tempo da
harmonia e da fartura, para outro estado social, agora no presente opressor, que foi resultado
de várias ações sociais. Como já o dissemos, de um lado o estado beligerante da disputa
fundiária e toda violência desagregadora dela oriunda e de outro, considerando o caso da
mudança de comportamento, as influencias nefastas da globalização e tudo que ela trás de
transformações, provocaram o novo estado social que é percebido pelo entrevistado no
presente como uma lamentação.
Abrimos este breve parêntesis para apontar algum nível de explicação à luz das teorias
acadêmicas para o drama vivido por essa gente simples do Mata Cavalo, que no presente
entende perfeitamente seus vínculos mais profundos com o passado, estando este muito vivo
ainda nas consciências por constituir feridas ainda não curadas. Sabemos, quando olhamos à
distância, se isto é possível num tipo de pesquisa-ação, que a solução à esses graves
problemas ainda pertence ao campo das conjecturas tendo por testemunha o devir histórico.
Hilary McD Beckles e Verene A. Shepherd, da West Indies University, na obra “Las
voces de los esclavizados, los sonidos de la libertad” publicada em função do Projeto de
241 Aróstegui, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução Andréa Dore; revisão técnica José Jobson de Andrade Arruda. – Bauru, SP: Edusc, 2006. p. 388.
159
Escolas Associadas da UNESCO, às páginas 72 e 73, falam da vida e da obra de Harriet
Tubman. Nascida em 1821 em Bucktown, Maryland, aos 6 anos de idade foi designada por
seus proprietários a trabalhar para uma mulher chamada Miss Susan. Pouco depois é
devolvida às lavouras que abasteciam a fazenda do seu senhor. Em 1849, quando soube que
iriam vendê-la a fazendeiros do Sul dos Estados Unidos, resolve então fugir em busca de
liberdade. Ao chegar ao seu destino mal acreditava que houvera conseguido sua
independência, assevera Tubman. De acordo com suas palavras:
Me miré las manos, para ver si yo era la misma persona ahora que era libre. Había tanta gloria, el sol brillaba como oro entre los árboles y sobre los campos, y me parecía que yo estaba em el cielo...Había cruzado la línea con la cual soñaba hacía tanto tiempo. Era libre, pero no había nadie que me diera la bienvenida a la tierra de la libertad; era una extraña en una tierra extraña, y mi hogar estaba en aquel viejo barrio, con todos mis allegados y hermanos. Pero llegué a esta solemne decisión: yo era libre y ellos también debían de serlo; les prepararía un hogar en El Norte, y con la ayuda de Dios, los traería a todos aqui.
Ao perceber que havia deixado para trás não só o tormento e os horrores da escravidão,
mas também seus familiares e irmãos que compartilhavam a mesma sorte, resolve então tomar
uma solene decisão. Nascia naquele momento uma guerreira tenaz. Tubman torna-se líder de
um dos maiores movimento secretos dos Estados Unidos, o Underground Railway, que
ajudava as pessoas escravizadas a fugirem para o Norte daquele país, como também para o
Canadá, onde a escravidão racial fora erradicada para sempre. Em suas 19 viagens ao Sul
escravista ajudou a libertar um sem número de pessoas escravizadas e entre estas sua própria
família. Harriet Tubman é apenas um pequeno exemplo da tenacidade e força de vontade das
mulheres afro-descendentes, como o caso de Tereza Conceição de Arruda, presidente da
Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Mata Cavalo de Baixo, que a despeito de seu
delicado estado de saúde, aos 73 anos de idade, cumpre com todas as obrigações que o seu
cargo requer. Numa entrevista gravada em Novembro de 2009 em sua residência ela fala do
sofrimento de sua bisavó pelo lado materno:
A cabeça dela era assim: não tinha um fio de cabelo de tanto ela carregar panela quente. Não tem aquela folha de imburuçu, que dá uma folhona grande redonda e folha de Belém, não tinha pano para por, e forrava a
160
cabeça com aquelas folhas pra levar comida pro pessoal na roça, pros escravos na roça. A folha cozinhava, queimava, sapecava, panela quente mas eles chegava lá. Caiu tudo o cabelo dela. Tinha essa mão seca dela segurar pavio. Iluminação não tinha de jeito nenhum, era as escravas que seguravam as candeias para eles jantarem. Se faziam alguma coisa errada tinham por castigo que segurar a candeia acesa a noite toda. E aí ela ficou a noite inteira com a candeia na mão, ela dormiu e o pavio queimou a sua mão toda. Pretinha, pretinha que era a mão dela.
Testemunha ativa da história de sua comunidade, muito da determinação, garra e
objetividade certamente constituiu-se a partir dessa herança familiar e comunitária de uma
vida marcada pelo instinto da preservação e sobrevivência ao meio, via de regra hostil. Sua
história, que é a história de sua família e de uma importante parte do quilombo demonstra
com simplicidade sua ligação fecunda com os herdeiros dos antigos escravos de Anna da
Silva Tavares que por ocasião de seu falecimento, receberam em testamento aquelas terras,
como visto anteriormente. A minha avó Marcelina, relembra Tereza Conceição de Arruda,
ainda na mesma entrevista:
Era do Mata Cavalo daqui desse pedaço, a sesmaria era todo lugar. O meu avô era da Estiva, tudo era sesmaria, só pulava o córrego. A sesmaria compunha-se de Sesmaria Boa Vida com Sesmaria Cracará, papai era da Estiva, mãe Celina, mãe de meu pai, é daqui, é povo da Mutuca, da família da Mutuca mesmo, mas tudo dentro da Sesmaria Boa Vida. Papai casando ficava lá na Estiva. Quem morava na Estiva? Era pai de papai que ficou ali na Estiva, o irmão dele Remoardo, Sabino e Marcos, tudo ficou ali na Estiva e a irmã dele Barbina. [...] Com esse negócio de expulsação saíram. A Barbina foi pra Poconé nunca voltou pra cá, mas tem o povo dela que é descendente, esse avô dela Remoardo que é bisavô dela foi pra lá ficar com o padrinho e quem ficou mesmo aqui foi o Marcos, o Mulato e o Sabino, esses que ficou aqui que não foram embora.
Em denúncia feita à Gazeta de Cuiabá a grande matriarca do quilombo mostra, como
sempre, sua coragem e determinação. Segundo ela em Fevereiro de 2002 os fazendeiros
cortaram o arame da cerca de sua plantação e o gado “invadiu cinco hectares e destruiu
culturas de milho, arroz, banana, mandioca, cana e abóbora. Ela estima que, pelo menos, oito
mil hectares foram invadidos por posseiros, fazendeiros e agricultores. ‘Há oito anos estamos
161
nesta luta’, lamenta a matriarca.”242 Na reunião promovida em 20 de Abril de 2004, no Mata
Cavalo, pelo CEDN – Conselho Estadual dos Direitos do Negro, contando com a participação
de membros de outros quilombos, como os de Vila Bela de Santíssima Trindade, bem como
de autoridades representando a Prefeitura Municipal de Livramento, Secretaria de Estado da
Casa Civil, Câmara Municipal de Livramento, Assembléia Legislativa do Estado, Ministério
Público Federal e Estadual, Tereza Conceição de Arruda exige dos órgãos governamentais
medidas mais efetivas para a resolução dos problemas no Mata Cavalo. De acordo com suas
palavras, “Queremos a posse da nossa terra que foi dos nossos antepassados. Queremos
propostas que saiam do papel. Chega de viver debaixo de barracos de lona”.243
Seguindo os passos da grande matriarca do Mata Cavalo, destaca-se também pelo
destemor, engajamento e profundo amor à sua gente, Gonçalina Eva de Almeida, sua neta,
uma autêntica representante da saga das mulheres do quilombo. Professora, ativista da causa
negra, simpatizante dos movimentos negros, principalmente aqueles ligados aos interesses
coletivos pelas políticas afirmativas e pelas lutas contra a discriminação racial. “Não gosto
muito daquela outra linha que é mais política” afirma em entrevista gravada em sua atual
residência na localidade conhecida como Ponte da Estiva, Fazenda Ourinhos no Mata Cavalo
de Cima, em 21 de Janeiro de 2011. Com seu olhar altivo ela se reporta à questão da tradição,
em resposta à nossa pergunta, como um elemento importante que “mantém a gente forte e
vivo, porque uma pessoa que não tem história, não tem passado, não tem raízes, e no nosso
caso isso é bem forte.” Consciente da importância da tradição para a própria existência do
grupo enquanto comunidade tradicional afro-referenciada, ela luta constantemente pela paz
entre os seus, mas percebe o lado positivo da violência - ao nosso entendimento um paradoxo
-, pois no contexto das lutas vislumbra a possibilidade de evoluir rumo à legitimação tão
sonhada da propriedade das terras dos negros. De acordo com ela, sempre pensando nos
caminhos da paz:
Sofremos bastante violência, mas acho que valeu a pena porque nós estávamos lutando por um direito que é nosso, não é? E quem não luta por seus direitos não é digno dele. E a gente conseguiu com essa luta acalmar a questão da violência. E a gente sempre fez uma luta pacífica, graças a Deus.
242 Disponível em: http://www.amazonia.org.br/fogo/noticias/print.cfm?id=8987 . Acesso em 09 de Fevereiro de 2011. 243 Disponível em: http://www.reporternews.com.br/noticia/29139/CEDN-debate-solu%E7%E3o-para-Mata-Cavalo Acesso em 09 de Fevereiro de 2011.
162
Em sua visão de mundo, Gonçalina Eva de Almeida entende a escravidão como um
dos atos mais cruéis praticados contra a humanidade, mas também percebe que foi superada
pela força, determinação e vontade de vencer de sua gente, qualidades que ainda são
preservadas pelos descendentes dos antigos escravos, de acordo com nossa perspectiva. Essa
forma peculiar de entender o mundo que a rodeia como uma constante possibilidade de
superação de limitações individuais e coletivas, certamente constitui os elementos que
moldam seu caráter combativo. Com um grande sorriso fala acerca do preconceito, também
em resposta à nossa pergunta, como uma grande “burrice do ser humano [risos] que no fundo
todo mundo é igual”. Sua consciência acerca dos movimentos da história negra reflete-se na
sua fala quanto à importância da comemoração do 20 de Novembro, entendido por ela como
uma data que foi efetivamente criada pelos negros, sendo conseqüência de lutas no interior
dos movimentos sociais que possibilitou a instituição do feriado em algumas localidades
brasileiras, como em Cuiabá. Um verdadeiro avanço, pelo seu entendimento. Para ela, em
contrapartida, o 13 de Maio lembra mais uma espécie de favor que foi realizado para a
libertação dos negros, “o que não é verdade”, afirma. De acordo com seu pensamento os
negros conseguiram liberdade por seus próprios méritos. “Na verdade a Princesa Izabel não
libertou os negros porque era boazinha, era uma pressão que existia e que não tinha mais
como controlar. O 20 de Novembro é uma forma diferente, por isso eu valorizo mais. Tem
mais significado pra nós”, ela conclui.
Raciocinando em termos de conservação da tradição, elo importante na conformação
da identidade negra, no caso quilombola, que constitui em um dos caminhos para a
legitimidade da propriedade de suas terras, Gonçalina Eva de Almeida vê com preocupação a
influência poderosa da questão da globalização para os grupos sociais do quilombo. De um
lado percebe a importância de estar-se sintonizado com o mundo atual, movimentando-se com
desenvoltura pelos seus códigos para, com liberdade, acessar os benefícios da modernidade,
conceitualmente falando. Com simplicidade a entrevistada assevera que “tem coisa que é
moderna que a gente precisa pra viver: um telefone, um computador, onde a gente pode falar
rapidamente, quer falar com Brasília fala, quer falar com os Estados Unidos você fala.”
Porém, ela afirma que junto com os avanços das novas tecnologias do mundo moderno e tudo
que trás de inovação existe um lado marcado por problemas desestabilizadores e muito
preocupantes, principalmente se considerados os aspectos mais sensíveis de sua comunidade
163
pautados pela necessidade de se conservarem enquanto dotados de uma tradição afro-
referenciada significativa.
Essas não foram exatamente suas palavras, mas com certeza esses são os motivos mais
profundos de sua preocupação, pois segundo ela junto com as novidades do moderno veio a
questão da “individualidade que é uma coisa que não existia aqui dentro e que às vezes causa
conflito, causa prejuízo”. Sem sombra de dúvida, o problema a que se refere Gonçalina Eva
de Almeida tem tudo a ver com as graves questões levantadas por Bauman, em seu
“Modernidade Líquida”, onde o mundo atual é marcado pela provisoriedade e pelo estigma do
individualismo. Questão já largamente debatida nos capítulos precedentes. Ainda
considerando-se as conseqüências da globalização, ela aponta uma questão de alta relevância
para os destinos do quilombo enquanto uma unidade que se pretendia indivisível, mas que ao
que parece, segundo sua própria história, consiste cada vez mais numa impossibilidade. Para
ela a criação de diversas associações no interior do quilombo é um elemento de alta
instabilidade que poderá desagregar definitivamente a união do grupo como um todo. De
acordo com nossas pesquisas percebemos que ela entendeu perfeitamente os perigos dessa
nova conformação social e política no interior do Mata Cavalo. Concluindo a entrevista ela se
mostra um pouco cética, ao contrário de maioria das pessoas entrevistas por nós, quanto ao
desfecho da questão fundiária, assunto que abordaremos nas considerações finais de nossa
dissertação.
Com a expulsão de uma boa parte dos remanescentes do quilombo pelos fazendeiros, a
partir da segunda metade do século XX, como vimos no capítulo 2 desta dissertação, aquelas
terras não ficaram totalmente abandonadas evidenciando um alto nível de resistência à
opressão por parte de muitos dos descendentes daqueles antigos escravos. Entre os que
ficaram destacam-se pelo comportamento e atitude de obstinada tenacidade algumas de suas
mulheres mais ilustres, entre elas um símbolo, um ícone da luta dos negros do Mata Cavalo:
Rosa Domingas de Jesus. Uma mulher extraordinária que ao se ver desamparada da
segurança e da presença de seu esposo, Miguel Ferreira de Jesus, falecido em 13 de Maio de
1982, dia e mês da assinatura da Lei Áurea um coincidência no mínimo curiosa, assumiu a
posição de mãe e pai de seus filhos e por extensão a função nada fácil de matriarca de sua
comunidade familiar entendida, tarefa que soube realizar com desvelado amor aos seus e à
164
terra de seus ancestrais. Na fotografia abaixo Rosa Domingas de Jesus tem aos braços um de
seus netos.
Imagem 4: Rosa Domingas de Jesus e seu neto.
Fotografia do álbum de família cedida por Laura Ferreira da Silva, nua neta, em 09 de Fevereiro de 2011. Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos. Falecida em Maio de 2005 deixa como herança aos seus dez filhos a determinação e a
coragem que sempre demonstrou em vida, mostrando que os caminhos a serem por eles
trilhados devem se pautar pela nobreza que o trabalho oferece, em comunhão com as terras
dos ancestrais, os escravos da [antiga] Sesmaria Boa Vida, que a ela e tantos outros foram
deixadas. Na visão de sua neta, Laura Ferreira da Silva, em entrevista gravada em 09 de
Fevereiro de 2011, D. Rosa “era uma guerreira”, e pelo que se percebe em sua fala, também
um símbolo de amor maternal sempre pronta a socorrer seus filhos e parentes. As terras onde,
junto com seu esposo, nasceu e morreu foi herança deixada pelo sogro Macário, descendente
165
de Vicente Ferreira Mendes244, após a morte de seu sogro começa então para o casal uma dura
vida marcada pela violência do conflito fundiário pela propriedade de suas terras. Miguel
Ferreira de Jesus, seu esposo ainda em vida, em função da ameaça constante dos jagunços a
serviço de fazendeiros da região, passa a viver em clima de instabilidade, levando-os a
redobrar suas atenções com a família em prol de sua segurança. Debaixo da pressão dos
fazendeiros e do clima de tensão constante que este estado de incertezas origina passaram, em
certos momentos, a serem reféns em suas próprias terras. De acordo com a fala de Germano
Ferreira de Jesus245, um dos filhos de D. Rosa, quando o pai ia fazer alguma atividade fora de
suas terras, os seus filhos nem à roça poderiam ir sem que estivessem acompanhados pela
mãe, “porque ela tinha medo dos fazendeiros mandarem jagunços pra fazer algum mal pra
gente”. Meu pai sempre foi perseguido, afirma Germano:
Quando ela ia pra cidade ele tinha que voltar por uma outra estrada. Então foi assim, de 30 anos pra cá foi uma alegria vamos dizer assim uma alegria triste. Porque no mesmo tom que tava alegre ficava triste porque fazendeiro vinha, roça da gente fazendeiro começou a cortar. A gente fechava a roça eles iam lá pra cortar nosso arame e botava gado. Foi uma luta acirrada mesmo.
Incansável e determinado, Miguel Ferreira de Jesus inicia o processo na tentativa de legitimar a
propriedade de suas terras junto aos órgãos do governo que tratam dessa questão. Lamentavelmente
sem obter nenhum resultado satisfatório, tendo como agravante a debilitação de sua saúde em vista da
enorme pressão que suportava no confronto violento com seus opositores, acaba perdendo sua vida
sem ver a sua terra liberta, o grande sonho de sua vida. Começa então uma nova fase para a família de
D. Rosa. Certamente, esta uma tentativa de explicação hipotética, aproveitando-se a oportunidade da
morte do “homem da casa” os fazendeiros acirraram suas ações em torno da pressão pela disputa
daquelas terras, em ações diárias de intimidação pelas mãos de jagunços a seus serviços. De acordo
com as próprias palavras de Laura, “era capanga, às vezes era policial dia e noite, a gente não
tinha paz com os fazendeiros. E ela sempre à frente com sua fé, rezava, pedia aos santos pelos
seus filhos, pelos seus genros e noras”. Quando necessário, trocava as rezas e a devoção
religiosa pelas armas no confronto com seus opositores “ela ia colocava seu machado, seu
244 Como vimos no segundo capítulo desta, dois anos após o ato de doação do Ribeirão Mutuca à Leopoldino Alves da Costa, o titular e sua esposa, em 18 de junho de 1896, vendem através de escritura pública, na forma da lei, a área de terra em questão a Vicente Ferreira Mendes, um ex-escravo libertado em função da assinatura da Lei Áurea em 1888. 245 Entrevista gravada em sua residência na comunidade do Mutuca, em 09 de Fevereiro de 2011.
166
facão debaixo do braço e ficava lá enfrentando eles, e falava que não saía”. Sua determinação
fazia com que defendesse seus familiares e suas terras, se preciso, ao preço de sua própria
vida. D. Rosa tinha consciência plena de si mesmo, tanto que sempre repetia nos momentos
mais graves dos confrontos que “só morta e mesmo morta jamais iria sair daquele
determinado lugar. Pra tirarem ela dali só se matassem ela , mesmo assim ela ia dar muito
trabalho para eles”, conclui Laura.
Cansados dos constantes fracassos na tentativa de expulsar D. Rosa de suas terras, os
fazendeiros começaram então outros tipos de ações, buscando seus objetivos através do
assédio moral e da intimidação, cortando arames das cercas de suas plantações e soltando o
gado para a destruição do que já estava plantado, só que não levavam em consideração o
espírito de luta de sua opositora. Ao ver seus filhos angustiados nos momentos em que viam o
fruto dos seus trabalhos serem destruídos em questão de horas, D. Rosa simplesmente dizia
para eles que não seria dessa forma que os fazendeiros conseguiriam expulsá-los de suas
próprias terras. Com coragem e devoção dizia aos filhos que para cada hectare de plantação
destruída eles cultivariam o dobro, não se entregando jamais. Sua determinação não fora
abalada nem com o episódio da prisão, realizada por policiais da cidade de Livramento, de
todos os homens de sua família, às vésperas de um feriado prolongado, o que provocaria a
demora na soltura de seus familiares. Imediatamente, após algum tempo de oração no altar de
sua casa, ela pede para alguns de seus primos para correrem à delegacia em socorro aos
parentes. Não havendo motivos que justificassem a prisão daqueles homens, eles foram
obrigados a soltá-los ainda no mesmo dia.
Herança do arcaísmo das estruturas de poder da elite dominante, concentrados nas mãos
de poucos, no caso uma elite agrária acostumada a ter do seu lado as benesses de alguns
representantes do sistema policial, que infelizmente não se preocupam com a preservação da
lei e da ordem, os obedecem considerando mesmo estarem prestando um grande serviço à
sociedade como um todo. Não podemos esquecer que, sempre pautados pela legitimidade
institucional, como se espera, via de regra o sistema representado por alguns órgãos
governamentais agem dentro da legalidade ao empreender ações contra grupos
marginalizados, como é o caso aqui exaustivamente estudado, da comunidade do Mata
Cavalo. Algumas das áreas que compreendem o quilombo como um todo foram compradas
legitimamente, outras, como vimos no capítulo 2, foram griladas com o apoio das estruturas
burocráticas cartoriais a serviço do engodo e da falsificação.
167
O que pretendemos levantar aqui com essa pequena discussão é uma corrente de
pensamento baseada nas relações de poder entre as classes dominantes e as subalternas,
legitimadas por uma ideologia poderosa que José de Souza Martins, no seu “Fronteira: a
degradação do outro nos confins do humano” entende como uma fronteira, neste caso uma
fronteira étnica. Foi exatamente esse pensamento exclusivista que legitimou a expansão do
neo-colonialismo da África, de finais do século XIX e início do XX, cujos habitantes eram
considerados não civilizados, consistindo a ocupação maciça do território africano pelas elites
européias nada mais que uma ação benevolente que levaria à "barbárie" daquele povo um
pouco das luzes e da civilização da Europa. Martins ao utilizar-se do conceito de fronteira do
humano percebe a questão da imposição da vontade e potência de uma classe mais abastada
financeiramente, pela força e poder econômicos, à grupos que vivem à margem deste sistema.
Utilizando-se de ações que objetivam a degradação do outro, no limite do suportável, no
limite do humano, viabiliza-se a própria existência de quem o domina, subjuga e explora.
Embora se referindo a contextos diferentes, essa delicada questão levantada por José de Souza
Martins explica, em algum nível, a total liberdade de ação por parte da elite agrária na região
do Mata Cavalo. A partir do princípio da racialização conferindo, ideologicamente, uma
condição social inferior ao negro do Mata Cavalo fica compreensível, de certa forma,
entender a facilidade com que certas autoridades acatavam denúncias feitas por ilustres
representantes da elite local contra membros dessa comunidade. Como foi o caso da prisão
dos membros da família de D. Rosa sem aparente motivo e isso se justifica na medida em que
eles foram soltos no mesmo dia. Isso ocorreria se acaso as denuncias fossem verdadeiras
principalmente em se tratando de negros do quilombo?
D. Rosa, ao que tudo indica, parecia haver entendido essa questão fundamental da
facilidade com que seus opositores, a maioria constituída por pessoas com certo grau de
instrução e escolaridade, lidavam com os códigos legais servindo aos seus próprios
interesses. Pensando dessa forma ela passa a cultivar um sonho, que era o de ver seus filhos,
netos, genros e noras estudando, tendo acesso ao poder que representa o conhecimento.
Germano Ferreira de Jesus, também, entendeu que um dos motivos do fracasso de seu pai na
luta pela legitimidade da propriedade de suas terras se deveu à falta de conhecimentos por
parte dos seus. Assim ele resolveu criar o que foi a primeira associação no Mata Cavalo, a
Associação dos Pequenos Produtores Rurais do Mutuca, sendo seu presidente por quatro anos.
Segundo suas próprias palavras:
168
Começamos a agrupar aí nós como fazer? Vamos fazer uma associação e registrar que aí nós vamos ter mais força, quem registrou uma associação primeiro foi nós da Mutuca. Aí foi que também a D. Tereza fez a associação dela no Mata Cavalo pra fortalecer, ai o Neto fez lá em cima, mas primeiro foi criado essa aqui. Foi através da associação que nós começou a buscar parcerias, que veio o colégio, que veio uma farinheira, então através disso nós cresceu. Ai os governantes passou a olhar nós, quando nós passou a cobrar nós começou a cobrar em conjunto.
Segundo o entrevistado houve uma grande mudança de perspectiva em sua
comunidade com a criação da Associação. Além dos benefícios imediatos conseguidos junto
aos órgãos do governo, em função de uma maior visibilidade do quilombo para a sociedade
envolvente, vários entidades não governamentais passaram a levar sua contribuição aos
negros do Mata Cavalo, como é o caso da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Para ele o
contato com os agentes da Pastoral foi fantástico na medida em que trouxe para dentro da
comunidade um nível de consciência mais elevado com relação ao próprio grupo. Além do
conhecimento adquirido em inúmeras palestras e contatos com seus agentes, abriu a
perspectiva da busca de parcerias tanto dentro do Estado como até fora do país, como é o
caso da farinheira doada pelos alemães e o da construção da escola por um grupo canadense.
Além disso, iniciou-se também de forma marcante um estreito laço com alguns membros
ligados aos movimentos negros, como também de representantes de entidades ligadas à
questão dos direitos humanos. Toda essa interface e intermediação de saberes possibilitaram,
pela primeira vez, ao que parece, uma tomada de consciência de classe246, da percepção do
ser-no-mundo por parte dos negros do Mata Cavalo. De certa forma os sonhos de D. Rosa
estavam se concretizando. Nas palavras simples e profundas de Laura, sua avó entendia a
necessidade da educação e da instrução como essencial à própria sobrevivência do grupo,
pois:
Ela acreditava que toda causa daquela briga, daquela questão da terra se dava pelo fato que eles não tinham leitura, não tinham um entendimento da escrita. Por mais que eles tinham conhecimento, sabiam onde iam seus limites, terra, tudo, mas eles tinham conhecimento de outra forma, não conhecimento científico como é aplicado hoje. Então ela tinha esse sonho
246 Nos permitimos utilizar de forma anacrônica o conceito de “consciência de classe” quase que na forma de uma licença poética, por entendermos que neste caso particular contribui sim, e ainda, para seu melhor entendimento.
169
que todos pudessem estudar. Estudasse ali e continuasse mantendo vivo a história, a resistência, a luta aí passando de geração pra geração.
Os sonhos de D. Rosa começaram a se materializar em 2002, numa reunião no Centro
de Organização e Defesa do Adolescente, que contou com a participação de membros da
entidade não governamental Fundo do Canadá, do país de mesmo nome, ocasião em que
Laura teve a oportunidade de lhes contar a história e os sonhos de sua avó. Segundo a
entrevistada, aparentemente naquele momento os canadenses não deram muita atenção à ela.
Em uma data posterior Laura recebe uma ligação dos membros do Fundo do Canadá avisando
que eles estavam no Brasil e logo que chegassem a Mato Grosso fariam uma visita à
comunidade.
Imagem 5: Rosa Domingas de Jesus recepciona membros do Fundo Canadá
Fotografia tirada a partir de outra fotografia do álbum de família de Laura Ferreira de Silva, em 09 de Fevereiro de 2011, modelo da Câmera DMC- FX07, formato JPEG. Acervo particular de Silvânio Paulo de Barcelos. Nesta ocasião D. Rosa relatou toda a trajetória da sua história de vida no interior da
comunidade, as dificuldades, o conflito, a resistência, os sonhos e os ideais. Ao se inteirarem
da real situação da comunidade os membros da organização Fundo do Canadá resolveram
então patrocinar a construção da Escola. Foi a consolidação de um sonho e a possibilidade de
170
uma nova era para aquela comunidade e para o Mata Cavalo como um todo. Numa outra
visita dos canadenses, antes da morte de D. Rosa, eles disseram que em função do que
representava a figura da grande matriarca para a comunidade, nada poderia ser mais justo que
a escola recém construída levasse o seu nome, ela passa a ser denominada então de Escola
Estadual Rosa Domingas de Jesus. Mais que um tributo, um reconhecimento histórico ao que
representou e que ainda representa para os destinos do seu grupo e por extensão do próprio
quilombo.
Uma simples visita a essa comunidade revela os ares de progresso que ali se respira,
tanto isso é visível que em tempos recentes a comunidade ganhou na justiça o título da
propriedade de 200 hectares em processo de usucapião, constituindo-se na primeira grande
vitória de seu povo. Protagonistas de suas próprias histórias, os homens e mulheres desta
comunidade representam, como assim o entendemos, o verdadeiro espírito do sentimento de
unidade, que os mantêm coesos em torno do que um dia foi o sonho de uma mulher
visionária, que com amor e determinação mudou o destino de sua gente. De um estado
conflituoso, permeado pelo estigma da violência para outro desenhado em um cenário de
promissoras perspectivas essa gente simples mostrou o caminho da determinação em busca de
um ideal. O mesmo ideal que D. Rosa defendeu com os riscos de sua própria vida, e com
desassombrado vigor demonstrando que aquelas terras, pelas quais tanto lutou, representam
bem mais que um lugar de subsistência, para além da terra em seu sentido literal existe a
territorialidade negra, delimitando no tempo o espaço afro-referenciado constituído na
diáspora. Uma terra de negros para negros.
4.5 Conflitos de memórias: a negação da história
No curso de nossa pesquisa junto à Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata
Cavalo, as perguntas e as angustias delas resultantes foram se modificando na medida em que
avançávamos em conceitos, teorias e também em resultados práticos da própria sondagem
histórica proposta. Acompanhamos com grande interesse as manifestações lúdicas das
práticas culturais desses grupamentos humanos singulares buscando seus significados mais
profundos para tentar, em certa medida, compreender a dinâmica social que os mantinham
coesos, ao menos em teoria. Sensibilizamo-nos profundamente ao rebuscar nos escaninhos
171
das memórias, neste caso nada adormecidas, os anseios e os sonhos que afloravam nas falas
simples dessa gente ora carregadas das mágoas de feridas ainda abertas pelo estado de
conflito e conflitividade, ora carregadas do otimismo que tanto os caracterizam. A alegria
contagiante do povo africano também fez a "passagem do meio" a bordo dos navios negreiros,
este talvez o elemento essencial de sua identidade, que sobrevivendo ao terror da escravidão
conforma, nos dias atuais, a importância do lúdico em nossa própria sociedade. Percebemos
indignados, na falta de outra expressão mais adequada, que a história da cadeia dominial do
imóvel da [antiga] Sesmaria Boa Vida, por si só constitui documento irrefutável na
comprovação da legitimidade da propriedade daquelas terras, e que por uma grande ironia
ainda hoje não foi efetivada. Descobrimos, não sem o imprevisto da surpresa e do inaudito, a
partir das experiências de nossos pares na academia, que tanto tem contribuído para o
andamento desta pesquisa que, ao contrário do que imaginávamos no início, o conceito
quilombola está carregado de sentidos outros quando nos debruçamos sobre a história do
Mata Cavalo.
Esta constatação nos levou a trilhar caminhos diferentes em busca das respostas às
questões essenciais na vida dos homens, mulheres e crianças do Mata Cavalo. Desta forma,
tornou-se necessária, e bastante produtiva, buscar o entendimento da questão quilombola, tão
utilizada pelos remanescentes do quilombo, a partir da influência dos movimentos negros com
os quais eles mantiveram e mantém estreitas relações, pelos menos aqueles que estão
envolvidos de alguma forma com a dinâmica política no seu interior. Na convergência dos
interesses dos remanescentes, face a uma disputa fundiária que atravessou séculos, conforme
bem instrumentalizado no capítulo 2 desta, a condição quilombola, com todo o esforço na
recuperação de antigas tradições para reestruturar uma identidade negra baseada nos valores
étnicos e culturais de seus ancestrais, poderá em hipótese determinar o deslinde do conflito
em questão.
Aqui reside um grande paradoxo, memórias que conflitam entre si, negando aos
protagonistas, atores e sujeitos no cenário do conflito, a sua própria história. Confrontados
pelos dilemas éticos no oficio do historiador que sempre se apresenta nos momentos difíceis
das escolhas, optamos pela canalização de esforços no sentido de privilegiar a comunidade
como um todo, na essência o próprio quilombo, que pressupõe unidade, coesão e harmonia,
deixando aos próprios grupos humanos envolvidos e ao devir histórico a resolução de seus
problemas domésticos. Neste sentido, cabe-nos demonstrar na medida do possível os dois
172
caminhos possíveis, segundo nossas perspectivas, em busca de soluções viáveis ao destino
dos remanescentes do Mata Cavalo.
Indubitavelmente, a história da cadeia dominial do imóvel da [antiga] Sesmaria Boa
Vida, repetimos, aponta a legitimidade da propriedade a favor dos remanescentes do Mata
Cavalo. Vários são os exemplos de processos, tramitando a nível do Ministério Público
Federal, que comprovam a existência de manobras ilícitas realizadas nos interstícios do
sistema cartorial da região de influência nas áreas ocupadas pelos remanescentes do
quilombo, as quais não cabe nessa pesquisa apontar os responsáveis, senão apresentar pura e
simplesmente o objeto do engodo. Como é o caso, por exemplo, da citação nas páginas 3, 4 e
5 do Relatório Técnico produzido em 02 de Fevereiro de 2006, já citado anteriormente. De
acordo com este relatório, o Ministério Público Federal através do procurador e doutor José
Pedro Taques fez requerimento endereçado ao Juiz Federal da Segunda Vara da Seção
Judiciária de Mato Grosso, nestes termos:
Seja declarado por sentença, como bom, válido e constitutivo o direito de propriedade da Comunidade Negra Rural de Mata Cavalo o assento feito às fls. 110v à 112, do Livro 2 do Registro de Propriedade da Câmara de Livramento, nos termos do artigo 114 e do decreto 38 de 1.893, bem como requereu ainda sejam declarados nulos, não produzindo efeito em tempo algum, qualquer ato transcritivo de Aquisição ou Transmissão de direitos envolvendo as terras doadas aos escravos de Dona Anna da Silva Tavares e aos libertos de 1.875 e que foi objeto do registro no Livro de Propriedade da Câmara de Livramento, nos termos do Decreto 38 de 1.893.
Ora, como já demonstramos no item “As declarações de vontade de D. Anna da Silva
Tavares” no segundo capítulo desta dissertação, essa data marcou o momento em que a
propriedade da [antiga] Sesmaria Boa Vida passou às mãos dos escravos de D. Anna da Silva
Tavares dentro das formas legais, posto que já pertenciam à eles desde 15 de Setembro de
1883, data em que D. Anna, na presença de várias testemunhas assinou o testamento em favor
de seus escravos. Demonstramos aqui que se aprovado o requerimento acima citado por si só
já constituiria, posto que comprovado historicamente, o deslinde final da questão da titulação
destas terras. O fato é que tanto este, quanto outros processos referentes a esta disputa
fundiária encontram-se em trâmite nas instâncias Federais e Estaduais, como o comprovam
uma gigantesca pilha de papeis que se encontra no setor do Serviço de Regularização
173
Quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, relacionados
ao processo em andamento do Mata Cavalo. As manobras que classificamos como ilícitas
acima, ficam evidentes no processo de arrecadação de duas glebas incidentes no perímetro do
Mata Cavalo, conforme descritos às páginas 4 e 5 do mesmo relatório. A seguir citaremos o
caso da Gleba Tutica.
Gleba Tutica, limitadas ao Norte pela Estrada Vicinal e Fazenda Nossa Senhora da
Abadia, ao Sul pela Sesmaria Urubu, a Leste pela margem direita da rodovia estadual MT –
060, sentido Livramento / Poconé e a Oeste pela Sesmaria Brumado e Lavadeira. De acordo
com o Processo 2004.36.00.004809-4, da 2ª Vara Federal onde o Estado de Mato Grosso
propõe uma Ação de Nulidade de Ato Jurídico junto ao Juízo de Direito da Comarca de
Várzea Grande em desfavor de Mariana Moraes Fiacadori, Rodrigo Moraes Fiacadori, José
Irineu Fiacadori e Marina Moraes Silva Fiacadori. Segundo texto constante do referido
relatório essa área de terras sempre foi habitada pelos ancestrais dos remanescentes, sendo
que estes até hoje lá permanecem. Ainda de acordo com o texto, dentro do perímetro da Gleba
Tutica, onde o INCRA deverá estabelecer “o lar imemorial dos remanescentes do quilombo”,
os membros da família Fiacadori “plantaram” um título de propriedade com seiscentos
hectares, adquirido de Elienai Correa Júnior, por escritura pública de compra e venda lavrada
às fls. 078/079 do Livro nº 53 em 10 de Novembro de 1989, no 1º Tabelionato de Registro de
Imóveis de Várzea Grande, atual 1º Serviço Notarial e de Registro. A filiação do imóvel da
família Fiacadori tem origem em Maria Romana da Silva, título definitivo expedido pelo
antigo Departamento de Terras e Colonização de Mato Grosso, em 10 de Dezembro de 1983.
Fica patente pela descrição das amarrações do imóvel segundo o INTERMAT, que o imóvel
da família Fiacadori situa-se ao longo da rodovia estadual MT-468, no município de Santo
Antonio do Leverger, próximo ao Hotel Termas de Águas Quentes, região da Serra de São
Vicente. Com ironia o autor do texto constante neste relatório à página 5 afirma que:
Portanto, num toque de mágica a família Fiacadori transportaram e plantaram os seiscentos hectares dentro do perímetro da Gleba Tutica às margens da MT – 060 no distante município de Nossa Senhora do Livramento, muito distante de suas amarrações primitivas e da sua correta materialização.
174
Evidência explícita então que tanto no passado como o caso do “misterioso”
desaparecimento das anotações referentes à Carta de Doação da [antiga] Sesmaria Boa Vida
aos escravos de D. Anna da Silva Tavares, constantes do Livro número 49, dos acervos da
Serventia de Notas de Livramento247, como em tempos presentes as práticas ilícitas fizeram
parte dos recursos de alguns dos fazendeiros interessados naquelas terras. O que reafirma a
importante questão da educação e instrução apontada pelas preocupações de Rosa Domingas
de Jesus que buscou em vida os recursos para a instalação de uma escola no quilombo, como
um meio eficiente para aumentar os níveis de consciência de sua gente frente à sociedade
contemporânea.
Múltiplos foram, e ainda são, os caminhos jurídicos em busca da legalização da
propriedade das terras do Mata Cavalo, como indica o relatório supracitado emitido pelo
INCRA, ao referir-se às bases da fundamentação legal no bojo do processo em andamento. De
acordo com o levantamento realizado no sentido de apontar os principais eventos jurídicos
que de alguma forma se relacionam à questão pendente do processo das terras do Mata
Cavalo, foram indicados os seguintes atos:
a. Lei 4.132, de 10 de Setembro de 1962, que de acordo com seu Artigo 1º A Desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do Artigo 147 da Constituição Federal.
b. Lei 4.504, de 30 de Novembro de 1964, que de acordo com seu Artigo 1º
regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis rurais, para os fins da execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola248. Importante informar que no seu parágrafo 1º considera-se Reforma Agrária o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra,
247 Para maiores detalhes vide o item “A doação da Sesmaria Boa Vida” no capítulo 2 desta dissertação. 248 Entendemos que foi exatamente nesta questão que ficou evidente as formas com as quais o governo no regime militar vigente empreenderia o que chamaram de Reforma Agrária. Isto está claramente expresso no parágrafo 2º do Artigo 1º da referida Lei, que explica o que se entende por Política Agrícola. De acordo com o texto Política Agrícola é o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno emprego, seja no de harmonizá-las com o processo de industrialização do país. O último parágrafo deste texto é muito significativo para os interesses de um governo voltado para as campanhas progressistas que buscavam lançar o país no cenário econômico mundial. Neste sentido, “harmonizá-las com o processo de industrialização” conforme está escrito significou privilegiar os interesses, neste caso no campo, da alta produtividade que, no entender da engenharia política e econômica do Planalto concentrava-se nas mãos dos altos latifundiários em torno da produção agrícola mecanizada. Neste caso, entende-se perfeitamente o descaso à época, e ao que parece até aos dias atuais, com que os órgãos governamentais tratam das questões sociais mais sensíveis de nossa sociedade.
175
mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e o aumento de produtividade.
c. Decreto 59428, de 27 de Outubro de 1966, segundo seu Artigo 1º visa a
promover medidas destinadas a melhorar a estrutura agrária no país, vinculando à propriedade quem trabalha a terra agrícola satisfazendo normas sócio-fundiárias que mais se ajustem à dignificação da pessoa humana.
d. Convenção Internacional nº 169, da Organização Internacional do Trabalho –
OIT sobre povos indígenas e tribais, realizada em Genebra na data de 7 de Junho de 1989. Inspirada pelos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sócio-Culturais, pelo Pacto Internacional dos Direitos e Políticos e dos numerosos instrumentos internacionais sobre a prevenção da discriminação, resolve em seu Artigo 1º, alínea A que: Aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial, afirma que conforme seu Artigo 2º: Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.
e. Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, que
preceitua: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
f. Artigos 215 e 216, da Constituição Federal de 1988, que determina ao Estado
garantir à todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (Artigo 215). E no seu Artigo 216 aponta que: Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente e em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
g. Decreto 433, de 24 de Janeiro de 1992, de acordo com seu Artigo 1º o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, fica autorizado a adquirir, mediante compra e venda, imóveis rurais destinados a implantação de projetos integrantes do programa de reforma agrária, nos termos da Lei 4.504, de 30 de Novembro de 1964 e também da Lei 8629 de 25 de Fevereiro de 1993. De acordo com o Artigo 2º desta Lei, compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.
176
h. Decreto 4886 de 20 de Novembro de 2003 que institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PNPIR e dá outras providências.
i. Decreto 4887 de 20 de Novembro de 2003 regulamenta o procedimento para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. De acordo com seu Artigo 2º consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.249. Em seu Artigo 3º delega ao INCRA a responsabilidade de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular as terras dos remanescentes de quilombos.250
j. Instrução Normativa nº 20, de 19 de Setembro de 2005, expedida pelo INCRA,
em seu Artigo 1º estabelece procedimentos do processo administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de comunidades de quilombo.
Conclui-se após uma pequena análise destas referências jurídicas, com as quais o
INCRA estabeleceu as bases da fundamentação legal para implementar o processo, entendido
aqui no seu conjunto, visando à titulação das terras do Mata Cavalo, que não resta dúvida que
o processo em trâmite está embasado com bastante propriedade em regulamentações legais
que legitimam a ação em si. Das bases de regulamentações citadas acima, a partir do item “d”
uma nova configuração se apresenta no processo como um todo, em conseqüência das
políticas inovadoras implementadas pelo Governo Federal relacionadas às comunidades
tradicionais em seu sentido mais amplo. Esta, como sabemos, é reflexo direto dos preceitos da
Carta Magna de 1988 e suas políticas voltadas para setores menos favorecidos de nossa
249 De acordo com este artigo instituiu-se a obrigatoriedade da realização de levantamentos histórico-antropológicos a cargo das universidades, com apoio dos órgãos governamentais que tratam da questão referida. No Caso do Mata Cavalo o relatório foi executado pela equipe da Prof. Dra. Maria de Lourdes Bandeira, a pedido da Fundação Cultural Palmares e com participação da Universidade de Cuiabá – UNIC. Alguns dos dados levantados no percurso dessa dissertação foram retirados do referido relatório, conforme as notas de rodapés. 250 Cabe aqui uma ressalva importante. De acordo com informações da Dra. Leonice Aparecida de Fátima Alves, professora da UFMT, historiadora, socióloga e advogada, à despeito da atribuição da responsabilidade da titulação de terras quilombolas ficarem à cargo do INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, como vimos neste Artigo acima referido, deve-se levar em consideração que essa condição só é possível na medida em que o imóvel cuja titulação é requerida não seja objeto de disputa litigiosa, o que em última instância caberá ao Judiciário o deslinde das pendências judiciais em trâmite. Isto significa dizer que para a questão da disputa fundiária no Mata Cavalo, provavelmente, o INCRA não estará habilitado a fornecer a titulação de suas terras enquanto perdurar o trâmite de inúmeros processos em andamento nos dias atuais.
177
sociedade, que no curso do tempo lhes foram negados a própria história, principalmente se
considerados seus Artigos 68, 215 e 216.
Gestadas no bojo das comemorações do Centenário da Abolição dos Escravos e em
função das pressões de grupos ligados aos movimentos sociais, tanto dentro como fora do
país, as políticas afirmativas empreendidas desde então tem possibilitado, pelas vias jurídicas
institucionalizadas, uma nova conformação política e social, com reflexos também na área
econômica se bem que embrionários como é o caso dos trabalhos de apoio aos pequenos
produtores rurais, para as comunidades tradicionais, como é o caso do Mata Cavalo. Antes de
discutir essa variável explicativa, retomemos a questão do protagonismo dos atores sociais
nos processos históricos do conflito fundiário no quilombo.
Todo o capítulo 2 desta dissertação foi dedicado em síntese à questão da cadeia dominial
do imóvel da [antiga] Sesmaria Boa Vida, origem do que hoje se conhece por Comunidade de
Remanescentes do Quilombo Mata Cavalo, este atualmente formado por seis associações
como vimos anteriormente. A história do conflito fundiário intrínseco à cadeia dominial
referida, ao nosso entendimento, por si só confirma o protagonismo dos sujeitos sociais
enquanto atores de uma história permeada pelo conflito e conflitividade, o que legitima,
enquanto herdeiros de fato e de direito, a propriedade daquelas terras. Essa questão fica
evidente, principalmente, quando consideramos as famílias que, desafiando toda sorte dos
reveses da fortuna, permaneceram no lugar onde nasceram, e onde também nasceram seus
ancestrais, os escravos da [antiga] Sesmaria Boa Vida, permitindo assim a própria existência
do quilombo.
Essa questão fundamental fornece consistência, no limite, à própria história dessa gente
ao longo de bem mais que um século de lutas em torno da propriedade de suas terras.
Qualquer outra vertente explicativa consiste em seu “antípoda”, pois significa sua negação,
como é o caso da recente questão quilombola, um ingrediente político que contribui para
aumentar a complexidade do caso aqui tratado. Os dois caminhos, ou, como veremos mais à
frente a convergência desses dois caminhos poderá ou não significar o deslinde de uma
questão que se arrasta pelo tempo dessa história singular. De um lado os protagonistas sociais
de uma história marcada pelos horrores do conflito, mas também pela obstinada teimosia dos
remanescentes em permanecerem nas suas terras, e de outro, não menos conflituoso, as
numerosas famílias também remanescentes legítimas do quilombo, que voltando às suas terras
178
de origem buscam pelas vias da questão quilombola, o mesmo objetivo de todos, a
propriedade das terras.
Em nossas entrevistas realizadas no bojo da pesquisa em questão, o fato do
protagonismo, o sentido de pertença às terras dos ancestrais e o alto valor simbólico da terra,
constituem, segundo constatamos, nos elementos principais que surgem à partir dos relatos de
memória, para explicar os motivos que levam os homens e mulheres do quilombo à
considerarem-se legítimos proprietários dessa área de terra. Como é o caso da resposta dada
por Gonçalina Eva de Almeida à nossa pergunta formulada nos seguintes termos: Por que
você acha que sua família tem direitos às terras no Mata Cavalo?
Porque nós recebemos de doação em 1883 essa área de terra, nunca vendemos, então a gente tem direito. Quando tem uma coisa registrada em cartório, você não desfaz dela e o pessoal toma de você, você tem o direito de retomar, né? E aqui ta nossas raízes, nossas tradições, nossos antepassados estão todos enterrados aqui. Então tudo isso é prova que realmente tudo aqui nos pertence.
Note-se que a questão quilombola nem ao menos é referida na sua resposta. Isso é
significante para a nossa análise, pois corrobora com a dualidade de possibilidades que
levantamos para o deslinde da questão fundiária estudada. Mais que isso, Gonçalina Eva de
Almeida rebusca nos escaninhos da memória assimilada pela tradição oral da comunidade, o
ponto crucial da cadeia dominial do imóvel da [antiga] Sesmaria Boa Vida. Ao dizer “quando
tem uma coisa registrada em cartório” refere-se à carta de doação da referida sesmaria, em
1883, que também entendemos como o documento referencial da legitimidade desta
propriedade. Um pensamento análogo surge, também, da fala de Ana Maria, filha de Tereza
Conceição de Arruda, presidente do quilombo, e tia de Gonçalina Eva de Almeida, em
resposta à mesma pergunta. Segundo ela, “essas terras, como diz a história, desde o começo
foi deixada pelos escravos. Com a tomada dos fazendeiros os escravos ficaram sem a terra. E
agora por direito e por lei nós relutamos por nosso direito, né? A terra sempre foi nossa.” Ana
Maria vai um pouco além ao se apoiar na história par afirmar que a terra sempre foi deles,
mas aqui também não há menção da questão quilombola.
Mesmo para as pessoas que mudaram para outras localidades em conseqüência das
ações de intimidação dos fazendeiros em meados do século XX, como já visto anteriormente,
179
o discurso é similar. Considerando-se obviamente a agravante referente à própria diáspora e
tudo que ela trás de problemas devido à mudança brusca de um modo de vida marcado pela
subsistência no campo para o meio urbano onde o dinheiro se torna essencial à própria
sobrevivência. É exatamente disso que fala Margarida Odilza da Silva, remanescente do
Mata Cavalo, que muito nova ainda foi obrigada a mudar para a localidade denominada à
época de Capão do Negro251, atual Bairro Cristo Rei, em Várzea Grande – MT. Pelas relações
de reciprocidade entre comunidades afins, os negros do Mata Cavalo foram muito bem
recepcionados pelos remanescentes do Capão do Negro. De acordo com sua fala, em
entrevista gravada na sua residência no dia 3 de Novembro de 2010, ela afirma que “não teve
problemas quando chegamos aqui, não mandaram descarrilhar noutro canto. A gente foi bem
aceito aqui no Capão do Negro”. Em resposta à nossa pergunta quanto aos motivos que os
levam a acreditar que são legítimos proprietários das terras no Mata Cavalo, ela afirma que
“nós não somos grileiros de terra. Nós somos dono e nós não queremos brigar com ninguem
pelas terras, nós queremos o que é nosso de origem, de nossos avós, entendeu?”. De certa
forma Margarida explica os motivos da diáspora de sua família rumo à cidade de Várzea
Grande ao afirmar que não quer brigar pelas terras. Ela se refere, obviamente, ao tempo em
que foram expulsos de suas terras nas décadas de 50 e 60 do século XX, quando houve um
grande movimento de migração forçada dos remanescentes para outras localidades. Mas, o
fato de terem saído não muda a sua posição frente ao conflito e à disputa das terras, trazendo
para si e sua família os argumentos do sentimento de pertença legitimados pela
ancestralidade, no caso as terras de seus avôs.
José Gregório de Almeida, cujos familiares mudaram para o local onde hoje é
conhecido como Bairro Ribeirão da Ponte, em Cuiabá, como visto anteriormente, também,
como os outros entrevistados, busca para si a questão da pertença como elo capaz de legitimar
a propriedade das terras no quilombo. Lugar para o qual há muito sonha retornar. Segundo sua
fala em entrevista gravada em 30 de Setembro de 2010, aquelas terras para ele significa
muito, “por ali que eu nasci. Ali que eu bem dizer criei, ali que vi crescer meus tios e meus
avós. [...] Não tinha discussão, não tinha briga, eu queria que tudo voltasse a ser como era”.
Essa questão do lugar de origem “imaginado” como o local ideal, um lugar para o qual
compensa voltar, trás nos seus interstícios, uma tentativa de romper com o presente opressor.
251 Para esta localidade foram remanejados os remanescentes do quilombo que havia na área onde hoje está construído o Aeroporto Internacional de Cuiabá de onde foram expropriados. Ainda hoje os remanescentes do Quilombo Capão do Negro habitam uma parte daquele bairro enquanto aguardam a esperada indenização das suas terras.
180
Para além das dificuldades enfrentadas no cotidiano existe o local da redenção252, um lugar
tornado mítico pela força do imaginário. Por analogia aos conceitos de Hall, o lugar ideal
concebido a partir do imaginário e das lembranças de vida de José Gregório de Almeida pode
não existir na realidade do vivido. Mas, essa visão idílica do passado não muda, também
como para outros entrevistados na diáspora do Mata Cavalo, o significado que a terra possui,
conforme sua resposta à pergunta formulada acerca da importância da terra. Segundo ele “a
terra pra mim significa muita coisa né? Por ali que eu nasci, ali que bem dizer criei, ali que vi
crescer meios tios”.
Utilizando-se quase dessas mesmas palavras Germano Ferreira da Silva, em entrevista
gravada em 15 de Abril de 2010, se refere às terras do Mata Cavalo como sendo o seu próprio
coração “porque aqui nasci, aqui me criei e aqui quero morrer em cima dela. Aqui ta minha
mãe, aqui ta meu pai, antepassados nossos aqui”. Não resta dúvida quanto ao valor simbólico
do sentimento de pertença, que aumenta em intensidade se considerarmos que foram também
naquelas terras que se enterraram os antepassados, numa conjunção entre passado e presente,
na intermediação dos dois mundos, há uma projeção do futuro pretendido: “e aqui quero
morrer em cima dela”. Este é um elo simbólico muito poderoso para a formação dos sentidos
de vida baseados na pertença a um território afro-referenciado pela diáspora. A mesma
preocupação, que pode entender-se como quase uma sentença, se revela com muita
propriedade na fala da Laura Ferreira da Silva quando, na ocasião da entrevista de 25 de
Janeiro de 2011 já citada, com referência à questão da ancestralidade intrínseca às noções de
pertencimento ao quilombo, afirma que:
Na verdade a área de terra que eu tenho é pertencente à minha família, que vem da minha geração, dos meus ancestrais. Dos tataravós, passando para os meus bisavós e daí passando para o s meus avós. Então essa é nossa área que nós temos aqui, que foi passada de Vicente Ferreira Mendes para Macário, assim sucessivamente até chegar na família hoje, atual. Então essa área é uma área toda coletiva, a gente tem uma escritura de [mais] de mil e novecentos hectares, então foram ‘montadas’ novas escrituras em cima desta pequena propriedade que a gente considera desde nossos ancestrais. Foi pertencente às famílias quilombolas aqui do Mutuca então é em cima delas que a gente sobrevive. Mas, especificamente, em meu nome não tenho nada, mas, coletivamente, é das famílias daqui.
252 Stuart Hall, vê isso como um problema, pois ao estar-se na diáspora perde-se a condição de retornar ao local de origem pela dinâmica própria da desterritorialização. Nascido na Jamaica e morando em Londres, cedo percebeu que não mais pertencia a nenhum desses dois lugares e segundo ele, essa é exatamente a experiência diaspórica. Para maiores detalhes vide a citação nº 20 que se encontra no capítulo 1 desta dissertação.
181
Podemos tirar algumas conclusões a partir da fala de Laura Ferreira da Silva. Uma que
sobressai de imediato é o caráter sempre frisado da propriedade coletiva, o que revela a
continuidade de uma forma ancestral de acesso a terra, uma herança que definitivamente
atravessou o Atlântico, no movimento da diáspora negra, conformando o ethos desta cultura
singular. Não obstante, e isso é fundamental para o conjunto dos debates propostos por esse
trabalho, apesar de constituir-se uma herança africana, a memória acessada pelos
remanescentes do quilombo tem sua origem a partir das senzalas onde viveram seus
ancestrais, no caso a [antiga] Sesmaria Boa Vida. Tendo como pano de fundo a discussão
teórica desenvolvida por Paul Gilroy, no seu “Atlântico negro”, como já visto no capítulo 1
desta, apesar das estruturas sociais e culturais desta comunidade terem se desenvolvido no
ambiente do terror racial da escravidão, foi nesse espaço permitido253 que se criou um modo
de vida característico e bastante recorrente em outras comunidades similares. Ali nos terreiros
das senzalas os escravos, absorvendo os elementos culturais da sociedade dominante e
incorporando-os aos seus próprios, fortemente enraizados numa cultura maturada em período
de longa data, criaram mecanismos de defesa e auto-afirmação. Essas práticas constituíram-se
em resposta às pressões do meio em que foram criadas como uma forma que ultrapassava a
simples subsistência do grupo, numa terra distante e desconhecida que precisava ser, por sua
vez, também suplantada, reterritorializada, ressignificada pelos códigos culturais adventícios.
E entre o conjunto da herança adventícia, a forma de vida comunal, constitui-se em elemento
importante para a manutenção e equidade do grupo, como dito pela entrevistada “essa área de
terra é toda coletiva”.
Quando a entrevistada afirma que “foram montadas novas escrituras” refere-se aos
recursos que foram utilizados largamente por grileiros que agiam naquela região, conforme
atesta os textos transcritos de vários entrevistados durante a nossa pesquisa de campo junto à
comunidade do Mata Cavalo. Como é o caso também do desaparecimento de um importante
documento cartorial em Livramento - MT, no contexto do conflito agrário que foi
exaustivamente debatido no capítulo precedente. O que interessa levantar neste momento é a
centralidade que a questão do pertencimento possui para justificar a propriedade das terras do
253 O conceito de “espaço permitido”, por nós elaborados, busca explicar o espaço no interior do regime da opressão onde se desenvolveu, em seu conjunto, todas as manifestações de resistência ao próprio regime que os oprimia. Para mais detalhes vide citação nº 26, no capítulo 1 desta.
182
quilombo levantadas em inúmeros exemplos citados acima o que constitui numa das vertentes
do conflito de memórias discutido neste item.
No outro lado da balança uma nova forma de luta se impõe por sua aparente força e
novidade e que, de certa forma, contribui para aumentar as expectativas de todos que sonham
com a legalização da propriedade de suas terras, a “questão quilombola”. Laura Ferreira da
Silva, nesta mesma entrevista, ao que parece, percebeu sua relevância fundamental para o
deslinde desta questão fundiária, ao menos em teoria, quando afirma, em resposta à nossa
pergunta quanto aos motivos que explicam os seus direitos à propriedade daquelas terras:
Não só acho, mas acredito que o direito é nosso pois está garantido pela Constituição Federal e porque aqui ficou provado se a gente for ver a questão dos nossos restos, as pessoas que aqui viveram e contribuíram com o conhecimento do quilombo. A gente vai ver que antes da Constituição Federal muitos habitavam aqui nesta área. Tanto é que no cemitério pode constatar pelas placas lá muito antes da Constituição Federal então tem que ver que essa propriedade já nos pertencia. E até mesmo porque foram os negros que construíram e deram contribuição nesse imenso Brasil. Então nossos negros estavam a muito mais tempo. Então por isso a terra nos pertence e nós lutamos por ela.
Essa disputa de memória entre, de um lado, a corrente explicativa que se utiliza do
protagonismo dos atores sociais no âmbito da questão fundiária e tudo que ela trouxe de
conflito e conflitividade, e de outro a que, percebendo uma nova possibilidade no percurso de
suas lutas, se apropriou com muita força da questão quilombola, nos leva a algumas
considerações. Levantada no Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988, essa questão levou os remanescentes a
moldarem-se adequadamente a uma nova configuração social, através do resgate de antigas
tradições. Antes, porém, da análise da fala da entrevistada torna-se indispensável entender o
contexto em que a questão quilombola entrou para o cenário dessas lutas. Variável dos
Movimentos Sociais254, o Movimento Quilombola no Brasil toma corpo após a aprovação da
254 Segundo Norberto Bobbbio, em sua obra “Dicionário de política”, publicada em 1993 pela Editora Universidade de Brasília, Movimentos Sociais é “tema fascinante tanto como debatido e controverso, a análise dos comportamentos coletivos e dos Movimentos Sociais ocupa um lugar central da teoria e na reflexão sociológica, quer dos contemporâneos, quer dos clássicos. [...] Esquematizando, podemos distinguir a existência de duas correntes na reflexão dos clássicos. De um lado estão os que, como Le Bon, Tarde e Ortega y Gasset, se preocupam com a irrupção das massas na cena política e vêem nos comportamentos coletivos da multidão uma manifestação de irracionalidade, um rompimento perigoso da ordem existente; antecipam assim os teóricos da sociedade de massa. De outro lado estão os que como Marx, Durkheim e Weber, se bem que com alcance e
183
nossa Carta Magna em vigência, sendo intensificada em resposta às pressões dos movimentos
negros no Brasil. Com trajetória histórica que remonta o ano de 1891, teve início o
movimento de resistência negra com a criação da Sociedade de Progresso da Raça Africana,
culminando em 7 de Julho de 1978 com o surgimento do Movimento Negro Unificado Contra
a Discriminação Racial255, que tinha como seu maior desafio acabar com o preconceito racial.
A criação deste movimento deu origem a vários grupos de combate à discriminação racial,
como terreiros de candomblé, núcleos de pesquisas, associações de bairro, blocos
carnavalescos e uma infinidade de organizações não governamentais. Destacam-se entre essas
organizações os:
a. Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra
b. Fundação Cultural Palmares
c. Instituto da Mulher Negra Geledés
d. Instituto do Negro Padre Batista
e. Projeto Geração XXI
f. Casa das Áfricas
g. Núcleo de Consciência Negra256
.
No contexto internacional, o Pan-africanismo, a nosso ver constituiu-se na gênese da
resistência à opressão, sistematizado em torno das organizações de grupos negros que, num
crescendo, avançavam rumo à uma nova consciência do ser e do estar-se em um mundo
implicações diversos, vêem nos movimentos coletivos um modo peculiar de ação social, variavelmente inserida ou capaz de se inserir na estrutura global da sua reflexão, quer eles denotem transição para formas de solidariedades mais complexas, a transição do tradicionalismo para o tipo legal-burocrático, quer o início da explosão revolucionária”. P. 787. Como contraponto aos clássicos que pensaram o conceito Movimento Social, apontamos a conceituação contemporânea utilizada por Ferreira Delson, na sua obra “Manual de sociologia: dos clássicos à sociedade de informação”, publicada em 2001, pela Editora Atlas, em São Paulo. Segundo Ferreira, “ Os conceitos definidores de movimento social referem-se à esfera das ações de grupos organizados para a conquista de determinados fins estabelecidos coletivamente, que partem de necessidades e visões específicas de mundo e de sociedade e objetivam mudar ou manter as relações sociais. Esses movimentos constituem parte integrante fundamental das sociedades, e são sufocados nas que são autoritárias e reconhecidos nas democráticas, devendo ser vistos e analisados como fenômenos internos aos constantes processos de mudança e conservação dos sistemas e estruturas sociais”. P. 146. 255 De acordo com o portal do GELEDÉS: Instituto da Mulher Negra, o Movimento Negro Unificado surgiu quando representantes de vários grupos se reuniram, em resposta à discriminação racial sofrida por quatro garotos do time infantil de voleibol do Clube de Regatas Tietê e a prisão, tortura e morte de Robison Silveira da Luz. Robison era trabalhador, pai de família, acusado de roubar frutas numa feira, foi torturado no 44º Distrito Policial de Guaianases, vindo a falecer em conseqüência às torturas. Disponível em: http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-suas-lutas/movimento-negro-unificado-04/05/2010.html acesso em 13 de Fevereiro de 2011. 256 Disponível em: http://www.klickeducacao.com.br/conteudo/pagina/0,6313,POR-2086-18399-,00.html acesso em 13 de Fevereiro de 2011.
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permeado pelos imperativos da diáspora negra e tudo que ela representava em termos de
mudanças sociais e culturais. Como uma saída para fora do senso comum erigido
politicamente pelas potências européias, que atribuíam ao negro o caráter mesmo de antítese
do próprio branco, por sua pretensa condição racial inferior marcada pela indolência,
negligência e uma profunda preguiça, o Pan-africanismo surgiu como uma resistência à essa
ideologia. Apropriando-se do conceito de raça constituiu-se no mais expressivo movimento
político pró-negro da história, unindo os negros na diáspora a despeito de suas diferenças
étnicas, religiosas e culturais. O Pan-africanismo rompe, desta forma, com o as formas
ideológicas e políticas solidamente constituídas pelas elites européias para legitimar a própria
expansão do neo-colonialismo em solo africano.
Considerado o pai do movimento pan-africanista, Du Bois, segundo Paul Gilroy, em seu
“O Atlântico negro”, após responder às motivações de Franz Boas para estudar a África no
início do século XX, reconta a narrativa da civilização ocidental de forma sistemática “que
enfatizava suas origens africanas e expressava um desengajamento mais intenso das formas
modernas de pensamento, que eram desacreditadas por sua associação com a continuidade da
prática da supremacia branca”257. Ao afastar-se da ideologia dominante, gradativamente
surgiram em todas as localidades da diáspora negra, no entorno do Atlântico, uma nova forma
de identificação centrada nos ideais da negritude e sua busca pela valorização da cultura
negra, como já vimos anteriormente.
O movimento quilombola, portanto, articulado a partir das práticas e da influência dos
movimentos negros busca uma saída que possibilita resolver graves questões ligadas,
geralmente, à propriedade das terras ocupadas por remanescentes. Ao ingressar no cenário de
lutas fundiárias no Brasil, a partir de 1988, alterou significativamente as formas políticas com
as quais os representantes dos grupos de remanescentes se apropriam no contexto de suas
reivindicações. No caso específico do Mata Cavalo, nosso tema de investigação, mudou
também o cenário do conflito na medida em que, a partir da perspectiva quilombola, passa a
tratar diretamente com os órgãos governamentais competentes, que por sua vez tornam-se
mediadores entre os remanescentes e os fazendeiros envolvidos na disputa. Essa questão
delicada propiciou, nos dias atuais, se não uma paz no sentido relativo, ao menos uma trégua
do conflito secular.
257 Gilroy. Op. Cit. p. 227.
185
Na entrevista concedida por Laura Ferreira da Silva percebe-se claramente o conflito de
memórias aqui tratado. Se por um lado ela vê a questão quilombola como ferramenta
essencial no deslinde da questão fundiária, da qual é protagonista, por outro lado busca para si
a questão da ancestralidade, do pertencimento, do local onde seus ascendentes viveram e
desenvolveram suas culturas singulares. Em sua fala quando afirma que “o direito é nosso,
pois está garantido pela Constituição Federal” ela se apóia nas estruturas políticas que
derivam da questão quilombola e que poderão, essa uma alternativa, realmente permitir a
legalização da propriedade de suas terras, ao menos em teoria. Curioso perceber essa
dualidade que consiste ao mesmo tempo em afirmação e negação da condição de atores de
suas histórias. Para Laura Ferreira da Silva, a condição quilombola, embora todos os seus
atrativos inerentes à valorização do ser-negro no mundo, do identificar-se com uma condição
social mais ampla e cheia de significados, constitui, aqui o paradoxo, na negação de sua
própria história e ela sabe muito bem disso. Quando formulamos uma pergunta diretamente
relacionada a essa ambivalência que confronta a história da cadeia dominial do imóvel objeto
da disputa com a nova perspectiva apresentada pela Constituição Federal e a sua questão
quilombola, Laura responde que essa questão veio:
Reforçar embora as pessoas não respeitem muito o que está no papel, não é? Porque se respeitassem, as terras tinham realmente sido regularizadas, já estava cada qual no seu cantinho e a gente não precisava estar labutando essa luta árdua, como a gente vem enfrentando no nosso dia a dia. Porque muitas coisas só ficam no papel e não vai na prática em si.
Sem dúvida, a entrevistada está consciente do seu papel enquanto protagonista de uma
história de conflitos e de lutas seculares, vistas pela perspectiva de sua família e de seus
ancestrais. Quando afirma que “se respeitassem, as terras tinham realmente sido
regularizadas” refere-se aos processos judiciais que tramitam na instância federal, os quais já
foram referidos anteriormente neste trabalho. Por outro lado, é sensível a confiança
depositada para o deslinde do conflito fundiário aqui referido pelas vias da questão
quilombola e, não só a Laura Ferreira da Silva, mas a maioria dos entrevistados participa
desta euforia coletiva. Talvez mesmo constitua-se uma contrapartida ao doloroso processo
que o conflito agrário e as implicações jurídicas a eles inerentes infligem a essa gente por um
186
período demasiadamente longo. Como os numerosos processos jurídicos tramitam há muito
tempo nas varas estaduais e federais, a questão quilombola possui a qualidade, por sua
novidade e frescor, de adensar novas esperanças mudando o ânimo dessa gente sofrida.
Na nossa perspectiva, porém, ao final dessa jornada de investigações e pesquisas em
torno da história dessa gente do Mata Cavalo, não encontramos muitos motivos para acreditar
na imediata resolução dos problemas cruciais dessa comunidade, como acreditam várias das
pessoas com as quais tivemos contato. Além da questão grave do tempo que processos dessa
natureza requer, visto que o prazo que o INCRA dispõe para o encerramento do processo está
marcado para o mês de Novembro de 2011, conforme informação prestada por Nelson
Juvenal, encarregado do setor que trata das questões quilombolas neste órgão público. Caso o
processo não seja regularizado neste curto espaço de tempo passará a depender da assinatura
por parte da nossa atual presidente de um novo Decreto-Lei, o que como sabemos depende de
uma série de fatores e de condicionantes, que tanto podem se resolver rapidamente, como
podem ser adiados indefinidamente. Outra questão, que acreditamos ser a mais importante, se
prende à ordem de fatores inerentes à própria dinâmica das estruturas burocráticas presas a
uma hierarquia constitucional dos meios jurídicos. Já constitui condição bem debatida nos
meios jurídicos que quando um processo tramita em qualquer instância, seja estadual ou
federal, qualquer desdobramento de ações referentes ao mesmo processo só poderá se
concretizar após o deslinde, no âmbito da lei, de suas questões pendentes. Isso equivale dizer,
que para o processo do conflito fundiário que investigamos ao longo dessa dissertação chegar
a seu término dependerá, antes de qualquer outra coisa, da resolução no âmbito do judiciário
seja ele em qualquer instância em que estiver tramitando.
Como já o provamos existe em andamento uma infinidade de processos jurídicos nas
instâncias tanto estaduais quanto federais relativas à questão fundiária no Mata Cavalo. Se
considerarmos, por exemplo, a hipótese do processo no âmbito do seu trâmite no INCRA ser
concluída satisfatoriamente a favor dos remanescentes, em função do Artigo 68 da
Constituição Federal de 1988, pelas vias, portanto, da questão quilombola, o referido órgão
não disporá dos instrumentos legais necessários à titulação daquelas terras sem que,
necessariamente, tenham sido dirimidas todas as questões jurídicas pendentes. Essa questão
de ordem técnica coloca as duas vias de acesso à memória no Mata Cavalo em condição de
entrelaçamento, estando uma atrelada à resolução da outra. Ou seja, para que as terras sejam
regularizadas a partir dos processos judiciais que tratam do conflito fundiário, e que se
187
arrastam por longo tempo, toda a esperança é depositada nas novas configurações legais da
questão quilombola que por sua vez, ironicamente, depende do deslinde no âmbito jurídico
das questões pendentes, em trâmite nas instâncias estaduais e federais.
188
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar a história da Comunidade de remanescentes do Quilombo Mata Cavalo é
pensar a terra, centro dinâmico de suas próprias vidas, origens, trajetória e perspectivas
futuras, território ressignificado constantemente pelas vias do imaginário, e do pertencimento
através de sucessivas (re)invenções da tradição negra. A identidade afro-referenciada, tão cara
aos movimentos negros, neste caso particular não passa de coadjuvante na sensível questão da
terra e tudo que representa para os remanescentes na atualidade. Nos caminhos percorridos ao
longo dessa dissertação procuramos os sentidos mais profundos dos valores da terra para os
destinos dessa comunidade, conjugando os elementos sócio-culturais de sua sobrevivência em
um palco de lutas que ora convergia para a estagnação e mesmo retrocesso, ora deslanchava
rumo à emancipação e independência, mesmo que relativas. Descendentes dos ex-cativos da
[antiga] Sesmaria Boa Vida, origem da comunidade, coube, no percurso da história, aos seus
remanescentes a tarefa maior de libertar as suas terras. Uma jornada que ultrapassa as
barreiras do tempo e que em pleno século XXI ainda aguarda seu desiderato.
Em diálogo profícuo com alguns pensadores pós-modernistas que se debruçaram sobre
a temática negra no Ocidente, descortinamos o terreno fecundo que permitiu localizar o Mata
Cavalo no interior do “Atlântico negro”, um mundo irredutivelmente moderno, conceito
utilizado por Paul Gilroy. Numa correlação subjetiva foi possível colocar em simetria os
ritmos sincopados da música negra, que a partir da Jamaica cruzou o oceano para aportar nas
incontáveis comunidades negras no entorno do Atlântico, permitindo assim os elos de ligação
que as conectavam pelas vias do lúdico e das expressões artísticas. Em terras mato-
grossenses, bem como na maioria das zonas rurais brasileiras, os ritmos africanos se
mesclaram à tradição ameríndia e européia dando origem a um universo cultural riquíssimo
que se manifesta tanto nas violas de cocho, como nos tambores e nas danças miscigenadas,
um caldo de cultura depurado em período de longa data no panelão que a metrópole ofereceu
às colônias do Novo Mundo. A comunidade do Mata Cavalo se conecta, pelas vias culturais
segundo nossas perspectivas, ao mundo do “Atlântico negro” através da Dança do Congo, do
Siriri, do Cururu e do vasto repertório do patrimônio material e imaterial fornecido pela
tradição escrava.
189
Procurando entender quem são os homens, mulheres e crianças que constituem, nos
dias atuais, o Mata Cavalo, analisamos os processos que levou o africano na diáspora a se
apropriar dos mecanismos de defesa visando sua sobrevivência dentro do universo turbulento
marcado pelas relações senhor/escravo. Através dos conceitos inovadores de alguns
historiadores contemporâneos que trabalham o tema da escravidão apontamos uma nova
interpretação do africano escravizado em terras estrangeiras, onde com imaginação e coragem
criou mecanismos próprios de negociação visando viver para além de o “simples subsistir”.
Desta forma conceitual, deixou de ser um simples objeto do sistema, um feixe de músculos
pronto a impulsionar, de forma passiva e amorfa, as engrenagens do próprio sistema
capitalista que o explorava em boa parte do ocidente. Como dissemos no capítulo primeiro
desta dissertação, colocados no limite da tensão, os africanos na diáspora negociaram o seus
modos de vida, o cotidiano, da forma que lhes foram possíveis, um caminho impressionante
de resgate da condição de sujeitos de suas próprias histórias.
Para os remanescentes do Mata Cavalo, pressionados duplamente pelo sistema que os
oprimiam, e ainda oprime, através das lutas contra o preconceito e pelo acesso às terras,
tornou-se imperioso libertarem-se dos pesados grilhões das reminiscências dos tempos da
senzala, através das fainas diárias pela libertação de suas terras e a conseqüente independência
definitiva do próprio quilombo. Neste contexto de lutas criaram, com imaginação, as formas
do seu viver tornando-se senhores de si mesmo, na medida do possível. Neste processo de
recuperação histórica tornou-se possível e necessário edificar uma identidade singular através
dos significados mais profundos da herança ancestral africana, entrelaçando passado e
presente, tradição e modernidade, com objetivo de recriar na diáspora o espaço de terra onde
pudessem viver a sonhada liberdade. Foi através destas lutas que entenderam o sentido
primordial da terra à própria sobrevivência do grupo, território sagrado da manifestação de
liberdade e fé, esperança sempre renovada no sentido de união e solidariedade.
Gênese do próprio Mata Cavalo, as terras que foram doadas por D. Anna da Silva
Tavares, em 1883, constituíram para aqueles escravos e ex-escravos a “fundação de seu
mundo”. Singular pela própria história, a comunidade aqui estudada formou-se a partir do
recebimento das terras, estabelecendo seus vínculos sociais através da rede de reciprocidades
entre as numerosas famílias permitindo, desta forma, a perpetuação de um modo de vida
característico marcado pelas relações coletivas e formas comunais de acesso a elas.
Reterritorializada na diáspora, as terras do Mata Cavalo, para além do simples lugar do viver,
190
constituiu-se no espaço de formação de um grupo específico conformado pela herança
escrava, que por sua vez permitiu aos seus moradores a condição essencial do ser-no-mundo.
Ali, nos limites internos das fronteiras que os separam dos “outros” foi possível experimentar
a condição plena de liberdade de expressão, do ser e do estar. Ser negro, e ser negro do Mata
Cavalo só foi possível através da ressignifcação de suas próprias terras, fazendo delas, pelas
vias culturais, uma pequena porção da África que fora herdada pelo intercâmbio das
memórias transmitidas pelas gerações. Da senzala ao espaço pleno de liberdade, mesmo que
relativa, no interior de uma sociedade de predominância branca marcada pelo estereótipo do
preconceito racial, eis o primado do sonho.
Na conflituosa e violenta trajetória de lutas da cadeia dominial do imóvel da [antiga]
Sesmaria Boa Vida ficou evidente o caráter legítimo da propriedade das terras em favor dos
remanescentes do quilombo, como desvela a nossa narrativa do conflito e da conflitividade
em torno da questão fundiária extensamente trabalhada no segundo capítulo desta dissertação.
A proposta inicial de identificação dos elementos que permitem, pelas vias jurídicas, situar a
legitimidade da propriedade daquelas terras foi satisfatoriamente cumprida. Cabe agora ao
devir histórico revelar o deslinde dessa delicada questão nas escolhas possíveis entre os dois
caminhos apontados pela nossa pesquisa. De um lado o protagonismo de quem não se furtou à
luta defendendo à custa de suas próprias vidas as terras de seus ancestrais, e de outro a
questão quilombola que consiste, também, em possibilidades no desfecho da longa trajetória
de lutas.
Ao final da nossa narrativa em torno da história dessa gente singular sobraram mais
perguntas que respostas o que, por outro lado, abre perspectivas instigantes no campo da
investigação acadêmica. Nos caminhos trilhados, nada simples nem muito menos óbvios, a
única certeza que encontramos foi a de que a história dos africanos na diáspora ainda é tema a
ser explorado em suas infinitas possibilidades. Ao rebuscar nos escaninhos das múltiplas
memórias e em antigos documentos nos diversos arquivos que visitamos, os homens e
mulheres do Mata Cavalo nos mostraram bem mais que a simples aparência dos fatos. Para
além da conformada subserviência exemplificada por “Pai João”, encontramos a capacidade
natural do ser humano em vencer suas próprias limitações, em transformar as dificuldades e
os desafios cotidianos em elementos culturais poderosos capazes de manter coeso o espírito
da liberdade sonhado pelos escravos da [antiga] Sesmaria Boa Vida.
191
Como havíamos apontado, a questão quilombola surge, a partir da Constituição
Federal de 1988, como um elemento promissor capaz de resolver, em teoria, a delicada
questão fundiária do Mata Cavalo. Assim, compreendemos a constante preocupação por parte
dos remanescentes na manutenção de uma identidade singular que os caracterize como
pertencentes a uma comunidade tradicional quilombola. Nesta condicionante histórica, o
“chão” constitui-se no fator primordial da própria manutenção da identidade, que
possivelmente permitirá no âmbito da Justiça a legalização de sua propriedade.
Paradoxalmente, essa questão poderá decidir o futuro da comunidade enquanto grupo
coeso, com seus ideais recíprocos de solidariedade baseados na vida comunal, como sempre o
fora. Foi exatamente na conjunção desses interesses que percebemos, no decorrer de nossas
pesquisas, o conflito de memória trabalhado no último capítulo desta dissertação. De um lado
os protagonistas de uma história permeada pela dor, sofrimento, esperança e lutas, que no
decorrer do tempo fizeram do espaço de terra onde vivem, e viveram seus ancestrais, o
território sagrado de suas vidas, o local onde manifestam livremente a condição de ser-no-
mundo. E, de outro os “retornados”, herdeiros também dos antigos escravos da Boa Vida, que
sonham com o direito de permanência nas terras de seus antepassados. Ostentando a bandeira
da causa quilombola como instrumento de luta pelas terras, os remanescentes que retornaram
sonham com o desfecho dessa longa história de lutas. Foi neste contexto delicado que
percebemos a fragilidade da condição de existência do Quilombo Mata Cavalo. De acordo
com nossas deduções ao longo dessas pesquisas, desvelamos os dois caminhos possíveis aos
remanescentes do quilombo, tornando-se ambos o epicentro do conflito de memórias que
poderá decidir na linha do tempo o futuro desta comunidade.
Impossível, pois, determinar aqui os possíveis desfechos dessa história peculiar.
Certamente o devir constituir-se-á nas malhas do tempo em testemunho fiel dos destinos
dessa gente que leva consigo o espírito da alegria contagiante e de um modo de vida especial.
Enquanto aguardam o renascimento da “fênix negra”, representando os ideais mais profundos
da comunidade do Mata Cavalo, fica como grande lição a disposição de luta e a esperança
deste grupo de africanos que busca na diáspora o seu desiderato, uma nova ordem que deverá
suplantar os horrores do caos histórico oriundo dos processos nefastos da escravidão racial da
era moderna.
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196
Anexos documentais
A) Apólice de seguro de vida dos escravos
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B) Estatutos da apólice de seguro
198
C) Transcrição paleográfica da Carta de Sesmaria de 1751
"Dom Antônio Rolim de Moura, senhor das vilas da Azambuja e Montargil, comendador da
comenda da [...] do conselho de sua Majestade, veador da casa da rainha, governador e
capitão general da capitania de Mato Grosso et. Faço saber aos que esta minha carta de
sesmaria virem que atendendo a me representar por sua petição José Paes Falcão, morador no
Cocaz, termo e distrito d'esta vila, que ele se achava com cento e trinta bocas de escravos e
brancos para sustentar, lhe precisava fazer cada ano copiosa lavoura para tanta família e que
no bairro a onde assiste não tinha matos gerais e somente capões espalhados pelos campos nos
quais necessariamente havia de fazer roça e lavouras e muitas vezes em um ano plantar em
dois, porque um só não mantinha capacidade para a lavoura necessária a além disto serem
matos que plantados um ano ficam tão débeis as terras que era preciso estarem devolutas
alguns anos para adquirirem virtude e entretanto era necessário plantar nos outros. E sobre
tudo isto acrescia que o bairro onde o suplicante vive e se achavam os ditos campos será
sertão remoto da vizinhança d'esta vila que [d]istavam d'ela o sítio do suplicante seis léguas
ainda daí até a referida paragem onde a plantação vão quatro léguas por cujo motivos me
pedia que em nome de sua majestade lhe concedesse por sesmaria duas léguas em quadra das
referidas terras para nesta extensão poder apanhar dentro capões bastantes que pudesse
plantar, visto serem terras de sertão remoto e não matos gerais e contíguos que possa
satisfazer-se com meia légua em quadra. As quais duas léguas faziam pião no meio de uma
roça que ele suplicante tinha em um capão chamado o da boa vida, demarcando-se-Ihe daí
para todos os quatro ventos, com uma légua para o Sul, outra para o Norte, outra para o
nascente outra para o Poente que vinha a fazer as duas léguas um quadro, ficando-lhe
compreendido na mesma sesmaria os campos e terras [...] que medeam entre os capões para
poder manter neles o seu gado sem inquietação dos mais vizinhos, ativa e passiva. E sendo
visto seu requerimento em que foi ouvida a Câmara desta capitania e o provedor da fazenda
real e do procurador dela hei por bem dar sesmaria em nome de sua majestade em virtude das
ordens do dito Senhor em que me dá faculdade para poder conceder sesmaria ao dito José
Paes Falcão, como por esta lhe concedo duas légua em quadra na parte acima declarada e
com as confrontações expressadas sem prejuízo de terceiro ou do direito que alguma pessoa
tenha à elas, com a declaração que as cultivará e confirmar[á] esta minha carta por sua
Majestade, dentro de dois anos e nãoo fazendo se lhe denegarão mais tempo, e antes de tomar
posse delas as farão medir e demarcar judicialmente e será obrigado a fazer os caminhos de
sua testada com pontes e estivas onde necessário for e descobrindo nelas rio caudaloso que
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permita de barca para se atravessar ficará reservada de uma das margens s ele a terra que baste
para a serventia pública e nesta data não poderá ceder em tempo algum pessoa eclesiástica ou
religião e sucedendo será com o encargo de pagar dízimos e outra qualquer que sua Majestade
lhe impuser de novo e não os pagando se poderá dar a quem a denunciar como também sendo
o dito Senhor servido mandar fundar no distrito dela alguma vila e poderá fazer, ficando livre
e sem encargo algum ou pensão para o sesmeiro e não empreenderá esta data [....] ou minas de
qualquer gênero de metal que nela se descobrir reservando também as jóias reais e faltando a
qualquer das ditas clausulas por serem conforme as ordens de Sua Majestade e as que dispõe
as leis foral das sesmarias ficará privado desta pelo que mando a quem o conhecimento desta
pertencer de posse ao dito José Paes Falcão das referidas terras na forma acima declarada e
por firmeza de tudo lhe mandei passar a presente por mim assinada e selada com o sinete das
minhas armas que se cumpra como nela se contem, registrando-se nesta Secretaria de governo
e na[s] demais partes a que tocar, dada nesta Vila Real Do Senhor Bom Jesus de Cuiabá,
Alexandre Barbosa Faleiro, a fez em primeiro de abril de mil setecentos e cinquenta e um. O
Secretário Bartolomeu Des calus Barros a fez escrever - Dom Antônio Rolim de Moura -
lugar dos selos das armas - Carta de Sesmaria porque Vossa Excelência há por bem fazer
mercê a José Paes Falcão de lhe conceder em nome de sua Majestade as terras acima
declaradas para Vossa Excelência ver. Segunda via registrada a folhas oito do livro primeiro
do registro que serve nesta Secretaria do governo. Cuiabá, primeiro de abril de mil setecentos
e cinqüenta e um – Bartolomeu Descalças e Barros - cumpra-se e registre-se. Vila Real do
Senhor Bom Jesus de Cuiabá em [...camara...?] de vinte e seis de abril de mil setecentos e
cinqüenta e um - Reis-Silva-Lisboa-Botelho. Registrado no livro sexto do registro da Câmara
de Cuiabá a folha sessenta e quatro verso, aos vinte e oito de abril de mil setecentos e
cinqüenta e um ano - José da Cruz Almeida.
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D) Trecho da transcrição do Auto de Medição e posse da Sesmaria Boa Vida.
“[...Segundo o que tudo melhor se via e mostrava do referido termo de continuação da
medição e de metimento do quarto e último marco, nada mais se não continha do que aqui
fica escrito conteúdo e declarado, depois de cujo termo se via seguir um termo de conclusão
que depois do dito termo se via seguir a sentença, cujo seu teor de verbo ad verbum é da
maneira seguinte - Hei por boa, firme e valiosa a demarcação as folhas que julgo por sentença
em que para sua maior validade entreponho minha autoridade com direito judicial e mando se
cumpra e guarde como nela se contém e que ceda ao sesmeiro demarcante sua sentença de
processo, querendo, e pague o mesmo as custas dos autos e demarcações em que o
condeno.Boa Vida Caracará, dez de dezembro de mil setecentos e oitenta e oito - Joaquim da
Costa Siqueira - Cujos ditos autos com a referida sentença por mim assinado assim proferida
e que nada mais continha do que aqui fica dito, escrito e declarado, do que mandou se cumprir
e guardasse como nele se contém, foram por mim mesmo dado ao escrivão de meu cargo que
esta escrevesse, nos quais lavrasse um termo de data, em o mesmo dia que proferi a sobredita
sentença aos dez de dezembro de mil setecentos e oitenta e oito anos em que acima declaro, e
sendo me finalmente requerido pelo dito demarcante o Alferes Antônio Xavier de Siqueira em
voz a que lhe mandasse extrair sua sentença de processo da medição e demarcação das ditas
terras para a todo tempo servir. É de seu legítimo título e poder como ele requerer a posse
judicial das mesmas terras medidas e demarcadas e de efeito mandei com efeito extrair e dar a
este a presente, pelo qual peço e rogo a todos os Senhores Ministros de Justiça no princípio
desta mencionados e a todas as mais justiças e oficiais delas a quem verdadeiro conhecimento
e execução tenha e deva da parte de sua Majestade Fidelíssima a quem Deus guarde e da
minha lhes peço, de maneira que sendo lhes a mesma apresentada, indo por mim assinado e
selada com o selo que este estiverem e neste meu juízo das medições e demarcações das
sesmarias corre e serve que lhe o valha seu selo ex causa e cumpram e guardem e façam
mutuamente cumprir e guardar, na forma que nela se contem, e em seu cumprimento sendo-
lhes por parte do dito sesmeiro demarcante com ele requerida a posse judicial vossas mercês
lhes mandassem dar pelo oficiais de seus cargos que forem competentes e poder para o fazer,
tenham porquanto o mesmo se acha até o presente unicamente como atual as ditas terras estão
medidas e demarcadas, sem oposição, objeção, contradição de pessoa alguma e na forma de
direito e é na verdade o demarcante seu legítimo senhor e dono, dado e passado neste sítio da
Boa Vida aos dez de dezembro de mil setecentos e oitenta e oito anos, pagou-se de feitio desta
minha carta de sentença civil de medição e demarcação, por parte do suplicante demarcante o
Alferes Antônio Xavier de Siqueira, que a pediu e requereu e se lhe deu a [posse?] na forma
201
do requerimento que se observa neste juízo feita a conta pelo contador, a quantia de oito mil
trezentos e vinte réis. E de assinatura, conta e selo, mil seiscentos e cinqüenta réis, e eu
Manoel José Pinto, escrivão, nomeado no impedimento do atual tabelião Jacintho Gomes da
Costa, escrevi e assinei= Joaquim da Costa e Siqueira= ex causa Siqueira= Diz o Alferes
Antônio Xavier de Siqueira que ele oferece a senhora junta de sua medição e demarcação das
terras que consta da mesma sesmaria e para dele suplicante poder tomar posse judicial carece
que mande se sirva nomear o mesmo escrivão das demarcações para o referido efeito por não
haver na paragem e ficar a villa muito distante= P. manda seja servido deferir ao suplicante na
forma que requer. ERMc. Desse lhe a posse requerida pelo escrivão que serviu na demarcação
João Manoel de Oliveira e Andrade e sirva de meirinho debaixo de juramento que já prestou
para outras semelhantes diligências=Siqueira= Auto de posse judicial dada ao Alferes
Antônio Xavier de Siqueira das terras medidas e demarcadas em virtude de sentença e
despacho retro do Juiz das demarcações da Villa de Cuiabá e seu distrito Joaquim da Costa e
Siqueira que nos foi apresentado=Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil
setecentos oitenta e oito anos, aos onze dias do mês de dezembro do dito ano, nesta paragem e
terras demarcadas da Boa-Vida que é do distrito da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá
onde escrivão das demarcações adiante nomeado por legítimo impedimento do atual tabelião
e escrivão das demarcações Jacintho Gomes da Costa, com meirinho nomeado João Manoel
de Oliveira e Andrade fomos vindo para efeito de dar posse judicial ao Alferes Antônio
Xavier de Siqueira das terras medidas e demarcadas e sendo ai pelo dito Alferes Antônio
Xavier de Siqueira nos foi apresentado uma carta de sentença civil, de medição e demarcação
de terras lavradias com a petição retro, despachada pelo juiz das demarcações da Vila Real de
Cuiabá e seu distrito Joaquim da Costa e Siqueira para o referido efeito, em virtude do que
logo lhes demos posse das referidas terras demarcadas, a qual mesmo andando por elas cortou
ramos de árvores silvestres que nela se achava, lançando terra para o ar, dizendo em alta e
inteligível voz, há quem a ela se oponha ou contradiga, sendo feitas todas as cerimônias da lei
e costume praticado, demos com efeito ao dito Alferes Antônio Xavier de Siqueira por
empossado das ditas terras demarcadas, com posse judicial, atual, civil, natural e real, na
forma do direito para que conste a referida, fiz este auto de posse judicial e assinou o dito
empossado, meirinho e testemunhas que presentes se achavam Thomé Alves da Silva=
Thomás Rodrigues da Costa, e por não saber escrever o fez com uma cruz, todos moradores
nesta mesma paragem e reconhecidos os próprios por mim Manoel José Pinto, escrivão
nomeado por impedimento do atual Tabelião e escrivão das demarcações Jacintho Gomes da
Costa que o escrevi e assinei= Manoel José Pinto=Antônio Xavier de Siqueira=João Manoel
202
de Oliveira e Andrade= Thomé Alves da Silva= cruz de Thomás =Rodrigues da
Costa=escrivão quatrocentos e oitenta réis, meirinho seiscentso réis, soma mil e oitenta réis.
Nada mais se continha nos ditos autos de medição e demarcação que para aqui bem e
fielmente foi traslado em pública forma e para que sem coisa dúvida faça, por ver, ler, correr,
conferi com o próprio original a que me reporto e dou fé, em mão e poder do apresentante
Jorge de [...]Campos.
203
E) Carta de doação da Sesmaria Boa Vida em 1883
204
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206
207
F) A doação do Ribeirão Mutuca
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209
G) Averbação da área de terra comprada por Manoel Monteiro da Silva
210
H) Transcrição Inventário de D. Custódia de Arruda e Silva
1849
JUIZADO D’ÓRFÃOS DA CIDADE DE CUYABÁ
INVENTÁRIO DOS BENS
Que ficarão por falecimento de Dona Custódia d’Arruda e Silva de quem ficou viúva cabeça
de casal José Vieira de Azevedo, mandado proceder pelo Meritíssimo Senhor Juiz Municipal
e d’Órfãos o cidadão José Joaquim Graciano de Pina, a requerimento da mesma viúva.
Defunta
Custódia de Arruda e Silva
Viúvo Inventariante
José Vieira de Azevedo
29-01-1847
27-05-1852
O Escrivão
Amarante
Anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos quarenta e nove,
vigésimo oitavo da Independência e do Império, aos vinte e nove dias do mês de Janeiro do
dito anno, nesta cidade de Cuyabá, em o escritório de mim Escrivão assistente nomeado e
assignado [ilegível] ahí compareceu José Vieira d’Azevedo, viúvo de Dona Custódia
d’Arruda e Silva, reconhecido por mim Escrivão de que dou fé, e por ele me foi entregue uma
rica
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Petição despachada pelo meritíssimo Senhor Juiz de Órfãos supplente o cidadão José Joaquim
Graciano de Pina, em que pede a factum do inventário dos bens que ficarão por falecimento
de sua mulher D. Custória d’Aruda e Silva, pedindo-me que para efeito de prosseguir nos
termos a houvesse de aceitá-la, o que eu Escrivão em razão do meu ofício direito das partes, e
em cumprimento ao dito despacho a aceitei e autuei tanto quanto posso e sou obrigado; cuja
petição a adiante se segue. De que poderá a todo tempo constar fiz este termo [falta pedaço do
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papel] a petição. Eu Antonio José [falta pedaço do papel] Amarante, Escrivão do Juízo de
[falta pedaço do papel] ficam que o escrevi, e assignei.
Antonio José Zeferino Amarante.
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Ilustríssimo Senhor Juiz Municipal, [ilegível]
Diz José Vieira de Azevedo, que no dia 8 do corrente mês falecia [...] D. Custódia de Arruda e
Silva, mulher do suplicante, e deixou [ilegível] filhos do primeiro matrimônio com José de
Arruda de Oliveira. Quais são D. Anna Maria, casada com Antonio da Costa Marques, D.
Custódia de Arruda, casada com Manuel da Cunha e Silva, Francisca de menor idade que
representa por seu [ilegível] o Doutor José da Costa Leite; deve por tanto proceder-se a
inventário neste Juízo, razão por que requer a V. Sa. Se sirva mandar notificar os ditos
herdeiros
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