natureza, poíesis e rito em michelangelo frammartino

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Natureza, poìesis e rito em Michelangelo Frammartino

Juliana Alvarenga Freitas

Palavras chave: natureza, poìesis, rito, arte contemporânea,

Michelangelo Frammartino

Resumo:

Os conceitos do filósofo italiano Giorgio Agamben de prâxis e poìesis

revelam a coexistência e interdependência destas duas noções

opostas. Na vida contemporânea, onde a prâxis nos é exigida como

sintoma de produção relevante, a poìesis se mostra necessária, como um

processo de conhecimento e abertura, como nos diz Agamben. A poìesis

requer um espaço para a reflexão, e para abrir este espaço,

estruturas metodológicas como ritos e mitos podem ser usadas, como

acontece na obra do artista italiano Michelangelo Frammartino. Sua

instalação audiovisual Alberi (árvores em italiano) nos apresenta uma

dimensão poética que documenta um ritual na Calábria, sul da Itália,

baseado em um mito no qual o homem se funde a terra. Neste trabalho,

fazemos uma interpretação da obra Alberi a partir da noção de poìesis e

do discurso do próprio artista. Esta abordagem se aproxima com o que

filósofo esteta americano Arthur Danto diz — que as interpretações

são descobertas e constituem a obra de arte e que o uso do discurso

do artista confirma suas intenções em seus trabalhos. Frammartino

relata que está interessado no rito e ressalta a importância de

filmar o invisível. Alberi aponta para a atual necessidade de

reinserção da natureza na cultura, da dimensão poética dos ritos, da

coexistência e interdependência do homem e da terra.

Alberi (árvores) é uma instalação audiovisual do artista italiano

Michelangelo Frammartino que nos apresenta uma dimensão poética de

um ritual na Calábria. Homens vestidos de árvores caminham pela

paisagem e chegam a uma pequena vila onde um grupo de pessoas

arrancam-lhes algumas folhas. Em festa na praça da cidade, as

mulheres passam por um corredor de homens árvores enfileirados.

Alberi (2013) tem 28 minutos de duração, e segundo o autor, não tem

fim nem começo, “é o espectador que dirige e controla o começo e

decide o qual é a versão final”. (Frammartino) 1. Frammartino

relembra que sua primeira experiência com o cinema foi na forma de

loop, entrando e saindo do cinema, sem necessariamente começar a

assitir o filme do seu início e saindo independente do momento do

seu final. As impressões de infância do autor, vivida entre a

Calábria e Milão, constituem e determinam o caminho da sua pesquisa.

O discurso do artista sobre a obra é determinante para sua

interpretação, como afirma o filósofo esteta americano Arthur Danto.

Alberi trata de uma interpretação de um mito. Danto afirma que

“interpretações são descobertas, interpretações constituem a obra de

arte” (Danto, 2014, p.59) e segundo esta perspectiva, o próprioprocesso de construção de Alberi também constitui uma obra de arte.

1 “It is the viewer that drives and controls the beginning and decides what is thefinal cut.” (Frammartino, s.d.)

Fig. 01 Frame de Alberi, Michelangelo Frammartino, 2013. Um homem árvorecaminha pela floresta.

O mito de Romito, culto de fertilidade da idade média, era

representado por um grupo de homens na pequena cidade italiana de

Satriano. Eles saíam com o corpo coberto de folhas de Hera,

segurando um bastão com ramos de plantas, batendo nas portas das

casas da vila pedindo donativos. Há muitas gerações o ritual era

esquecido. Frammartino viu uma imagem de um homem árvore e se

encantou com a beleza. O artista perguntou à população sobre o homem

árvore. Já não havia mais a tradição oral do mito, no entanto, as

pessoas se mostraram agradecidas pelo interesse do artista no antigo

rito da vila. Frammartino resolveu recriar o Romito junto com a

população.

Quando a audiência pode participar ativamente daconstrução de sua experiência visual, a conexão entre aimagem e o espectador se torna mais forte. Para isso, apessoa precisa da liberdade para interpretar e entrar naimagem à vontade, e então, quando eu comecei a trabalharem Alberi, eu comecei a procurar caminhos para fazer asimagens se tornarem interativas — tentativas de criar

uma experiência participativa que resulte em liberdadede audiência […] eu estava livre para inventar com eles,porque nós estávamos trabalhando juntos [...](Frammartino, s.d.) 2

Fig. 02 Frame de Alberi, Michelangelo Frammartino, 2013. Um grupo de homensárvores caminha na floresta.

O mito do homem árvore chamado Romito fala daquele que rejeitou a

ideia de migração e plantou raízes em sua própria terra. Frammartino

afirma que o caráter do Romito ainda continua conectado com a

identidade cultural da região, toda cercada de árvores, cujo nome,

Lucania, vem de uma árvore sagrada. Apesar do ritual não existir, o

povoado parece fundido à vegetação. Frammartino decide reinventar o

Romito não em caráter individual, mas como land art, como um grupo de

Romitos, como toda uma floresta que caminha. Sobre esta reinvenção,

ou nos termo de Danto, interpretação, o artista declara que filmando o2 “When the audience can actively participate in constructing their visual experience, the connection betweenthe image and the viewer becomes stronger. For this, one needs the freedom to interpret and enter the image atwill, and so when I started working on Alberi, I began looking for ways to make images interactive — attempts tocreate participatory experience that result in freedom of viewership. […] I was free to invent with them, becausewe were working together” (Frammartino, s.d.)

ritual altera-se também toda uma realidade.

A produção da ficção deu vida a uma nova realidade, eassim há uma estranha conexão entre nosso trabalho e atradição antiga. Eu vesti cerca de 100 pessoas comoárvores para realizar o ritual; eles decidiram fazer umaprocissão através da floresta ao redor, culminando napraça da vila, que foi literalmente transformada em umafloresta. (Frammartino, s.d.) 3

Agamben chama de espírito fantástico, algo entre as partes opostas que nos

revela o conhecimento potencial. Espírito fantástico é um “intermediário

entre o racional e o irracional, entre o corpóreo e o incorpóreo, do

qual se serve a divindade para comunicar-se com o que está afastado

dela” (AGAMBEN, apud CASTRO, 2012, p. 37), a conexão entre a natureza

e o homem, que em Alberi tem a forma de ritual.

Alberi é uma obra que tem uma evidente ideia central - a fusão do

homem com a vegetação como uma necessidade de reinserção da cultura

na natureza. Esta fusão homem vegetação revela uma tensão constituída

por estas polaridades distintas, que precisam se relacionar para

alcançarem suas próprias forças. Frammartino tem uma visão holística,

onde a potência surge da tensão do duplo oriundo do todo que foi

dividido.

Na tradição antiga e pagã existe esta divisão. Os homensfazem suas coisas e as mulheres ficam esperando epreparam a comida. O que eu gosto nessa situação é queas mulheres são os humanos, e estão esperando pelavegetação. Existe um casamento entre os humanos e avegetação. Essa foi para mim a ideia. (Frammartino,s.d.) 4

3 “Making fiction gave life to a new reality, and so there is a strange connection between our work and thatancient tradition. I dressed nearly one hundred people like trees to perform the ritual; they enacted a processionthrough the surrounding forest, culminating at the village square, which was literally turned into a forest.”Frammartino, s.d.)4 “In pagan and old tradition there is this division. The men do their thing and the women are waiting andprepare the food. What I like about this situation is, the women are human and are waiting for the vegetation.There is marriage between humans and vegetation. This was for me the idea.” (Frammartino, s.d.)

Frammartino declara que o que lhe interessa é o rito. A dualidade é

intensificada no rito, onde o real e o mágico se colocam igualmente

presentes em uma relação de coexistência e interdependência, onde

tanto o mágico potencializa o real, como o real potencializa o

mágico.

Se você entra durante a escuridão, você vê tudo, vê queé um ritual, mas se você entra quando estamos nafloresta e vê as criaturas, é mais magico, porque dealguma forma você pensa que são criaturas da fantasiaque entram na vila. Então, quando você vem na escuridão,a floresta é uma floresta real, não mágica. O que eugosto na escuridão é que você está conectado de umamaneira muito forte e eu sempre trabalho com conexão.Nos meus filmes muitas vezes existem momentos deescuridão, porque então você está conectado com outraspessoas (Frammartino, s.d. ) 5

Podemos pensar a coexistência e interdependência das polaridades a

partir das noções de prâxis e poíesis do filósofo italiano Giorgio

Agamben. Para o filósofo, a poíesis é fundamental para existência da

potência, entendida como desvelamento de um conhecimento. Atualmente,

talvez seja comumente aceite as ideias de que nem o homem e nem a

sua cultura controlem os processos naturais. A objetividade

conjuntamente com a subjetividade são necessárias para acessar o

conhecimento, já que tudo que é dito sobre o objeto parte do

sujeito. O pensamento racionalista dos séculos XVI e XVII, próprio

da modernidade e da revolução industrial, pode ser pensado na

perspectiva da redução da poíesis à prâxis 6, e na passagem do pensamento

5 “If you enter during the darkness, you see everything, that it's a ritual but if you enter when we are in theforest and see the creatures it's more magic, because in someway you think that they are fantasy creatures andthey enter a village. So when you come in the darkness, the forest is a real forest, not magic. What I like in thedarkness is that you are connected in a very strong way and I'm always working on connection. So in my moviesmany times there are darkness moments because you are connected with other people.” (Frammartino,s.d.)

6 Quando se translitera (muda para o alfabeto latino termos em alfabeto grego), nãoé obrigatório o uso de acentos, é um critério adotado por cada autor. Porquepesquiso prâxis e poíesis no autor italiano Giorgio Agamben que adota os acentos, parapadronização do texto, opto também pelo uso dos acentos, referidos também nodicionário grego: prâxis (Almeida Prado, 2010, p.119, Vol. 4) e poíesis (Almeida

holístico e sistêmico para o mecanicismo especialista. Este

pensamento mecanicista, que procurava entender como funcionava o

mundo permitindo assim dominá-lo, hoje parece insuficiente para

abordar as questões da contemporaneidade.

O estatuto da poíesis em Alberi é o processo guia do seu desenvolvimento,

que, em harmonia tênue com seu oposto, a prâxis, governa ela mesma as

próprias leis da prática artística de Frammartino. Em Alberi, não se

trata de um resgate de um mito, mas de uma recriação de um mito e de

sua poética. As analogias poéticas são estruturas metodológicas de

grande abertura que podem recorrer desde elementos mágicos, míticos e

animistas para potencializar a dissolução entre artista - obra, e

obra – espectador. Poíesis, para Agamben, reside na “produção da verdade

e na abertura, que resulta dela” (Agamben, 2012, p. 122), e é desta

maneira que Alberi se torna potente. A noção de potência está relacionada

com o devir, que para Agamben, pode-se encontrar na raiz da poìesis:

“[...] estava no interior da poíesis a pro-dução na presença, isto é, o

fato de que, nela, algo viesse do não ser ao ser, da ocultação à

plena luz da obra [...]”, ou seja, a poìesis como “um modo de verdade,

entendida como desvelamento.” (Agamben, 2012, p. 123)

Nesta reinvenção do mito de Romito não é relevante a busca de uma

pesquisa convencional de ritos e mitos. O Romito de Alberi não nasce de

resgates relativos à descrição histórica, ou busca de tradição oral,

e sim de uma interpretação de Romito. Danto nos apresenta o conceito de

interpretação como dualidades, que análoga à noção de prâxis/poíesis de

Agamben, guarda uma relação de coexistência e interdependência

dinâmica. O filósofo discute a noção de interpretação de superfície e

interpretação profunda, e mostra como a interpretação profunda depende da

interpretação de superfície. A interpretação de superfície tem caráter

descritivo, se refere a aspectos históricos e considerações meramente

formais. Ao efetuar a interpretação de superfície, começa também a

Prado, 2010, p. 101, Vol. 4).

interpretação profunda, que depende desta anterior. Por outro lado, “a

prática de superfície não sobreviveria se as razões profundas para

ela fossem conhecidas: ela não existiria se não fosse oculta.”

(Danto, 2014, p.91). Danto no diz que, “na verdade, o que a

interpretação profunda supõe é um tipo de compreensão do complexo que

consiste em representações juntamente com a conduta que elas, no

nível da superfície, nos permite compreender.” (Danto, 2014, p.88).Nesta perspectiva, deve-se subtrair o significado da interpretação. O

autor compara a arte com a filosofia, que não responde perguntas, mas

coloca outras questões, amplia as discussões, abre para outras

perspectivas. “A interpretação profunda, finalmente, admite certa

sobre determinação – a obra pode significar muitas coisas diferentes

sob a interpretação profunda, sem ser nem um pouco indeterminada sob

a interpretação de superfície.” (Danto, 2014, p.101)

A coexistência e interdependência da relação de dualidade é a

característica essencial que faz com que essa se afirme como dinâmica

e potente. As ligações entre prâxis/ poíesis, interpretação de superfície/

interpretação profunda, assim como a interligação entre a biografia do

artista e seu discurso ou o próprio trabalho, define a experiência e

a subjetividade como guia do processo criativo. Como nos diz Danto, o

discurso do artista é o mais próximo da interpretação, interpretação está que

é indissociável da obra de arte e que a constitui. De maneira análoga

a estas relações de dualidade, podemos pensar também a relação homem/

natureza.

As dualidades aqui consideradas são parte de um sistema dinâmico cuja

expressão é a potência. Danto nos diz que a obra “deve consistir

parcialmente em sentir as tensões filosóficas que elas devem

ocasionar” (Danto, 2014, p.67). Podemos pensar que a natureza da obra

de arte é “uma ocasião para a invenção crítica que não conhece

limites.” (Danto, 2014, p.102).

Alberi aponta para uma reconexão do homem com o kosmos7. A obra pode

ser interpretada como um processo de incorporação do todo no

individual, de toda a floresta de homens árvores em cada um dos

Romitos, a conexão de cada um com seu entorno. Para que esta conexão

aconteça, é necessária a inclusão do mágico e do rito para que se

crie um espaço para a reflexão. Essa condição poética e estrutural do

rito em Alberi permite soluções geradas através dos processos de

transformação de que nos relata Frammartino. Os homens árvores

transformam sua própria natureza ao transformar a natureza ao redor

com o rito da floresta que caminha. Ao imprimir a si próprios homens

árvores outro ritmo, o ritmo do rito, eles se conectam com outras

realidades, que mesmo ligadas ao mágico, de alguma maneira se tornam

evidentemente reais. A palavra ritmo vem do grego rythmós que, entre

outros, têm os significados de: “1. movimento regrado e medido;

ritmo; tempo; cadência [...] 3. maneira de ser; condição (de homem);

natureza; temperamento, 4. figura; disposição; forma” (Almeida Prado,

2010, p. 189, vol.4). Podemos dizer que o ritmo é a natureza do rito

em Alberi, natureza esta que inclui também o homem e sua cultura.

Cada vez que revisitamos a possibilidade de uma arte mágica ou

mitológica, agregamos outras reflexões importantes e necessárias para

que possamos, espectadores e criadores da obra, acessar o

conhecimento latente presente nas obras, nos artistas e também nos

espectadores. Seria necessidade contemporânea a reintegração da

cultura com a natureza se pensarmos que o mito pressupõe um espaço

para devoção vinculado a uma poìesis que abre para novas perspectivas. É

fundamental para o acesso ao conhecimento escolhas de soluções para

7 Do grego kósmos, têm, entre outros, os significados de: “3. Boa ordem; disciplina; regra; medida 5. Ordem do universo; cosmo; mundo; universo” (Almeida Prado, p. 88, vol.2).

além das já dadas anteriormente. Adotar uma premissa mágica ou mítica

é criar de início situações controversas que não aceitam soluções

dadas a priori. E a adoção do rito em Alberi nos apresenta uma natureza

humana que ao se travestir de árvore se conecta de uma forma nova com

seu próprio entorno.

Referencias bibliográficas

Agamben, Giorgio. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: AutênticaEditora, 2012.

Almeida Prado, Ana Lia Amaral de. Dicionário Grego-Português. SãoPaulo: Ateliê Editorial, 2006-2010.

Castro, Edgardo. Introdução a Giorgio Agamben, uma arqueologia dapotência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

Danto, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. BeloHorizonte: Autêntica Editora, 2014.

Frammartino, Michelangelo. Forest of ideas: Michelangelo Frammartinotalks about his installation Alberi (entrevistado por Anne-KatrinTitze, s.d.) Disponível em:http://www.eyeforfilm.co.uk/feature/2013-05-03-michelangelo-frammartino-conversation-on-cinematic-installation-alberi-feature-story-by-anne-katrin-titze

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