linguagens híbridas e as formas diabólicas
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ARTES E EXPERIMENTAÇÕES NA HIPERMODERNIDADE: relações sociais, linguagem digital e intercâmbios digitais
Alexandre Torresani de Lara (Org.)Hertz Wendel de Camargo (Org.)
Londrina, Syntagma Editores, 2015ISBN: 978-85-62592-21-8
3º Capítulo
AS LINGUAGENS HÍBRIDAS E SUAS FORMAS DIABÓLICASMarcos H. Camargo1
As ‘linguagens conceituais’ (verbal e matemática) são assim denominadas por
comunicarem, principalmente, conceitos gerais acerca de seus referentes. Melhor
dizendo, as mensagens comunicadas pelas linguagens verbal e matemática se utilizam
de letras e números, respectivamente, como suportes sensíveis para evocação de ideias
abstratas (conceitos) que habitam a memória de seus leitores.
Com a invenção dos registros escritos alfanuméricos há milhares de anos,
passando pela tipografia de Gutenberg, na Renascença, até o século XIX desta era, as
linguagens verbal e matemática mantiveram sua hegemonia, como as principais mídias
do conhecimento organizado, únicas autorizadas a comunicar os conceitos da filosofia e
da ciência. Até então, as demais linguagens da cultura, baseadas na imagem, som,
movimento e tato, eram meras ilustrações à margem dos textos verbais e matemáticos,
pelo que sequer mereciam a atenção do pensador ou do pesquisador.
Mas, então, desde o século XIX, quando inventou-se a fotografia, fonografia,
telefonia, cinematografia e a radiofonia, ganhamos a capacidade de registrar e transmitir
tecnologicamente as imagens, sons e movimentos. A essas conquistas tecnológicas
somou-se tudo o que o século XX nos forneceu, como a televisão, videografia, internet
e demais mídias digitais.
11 Marcos H. Camargo. Doutor pelo Instituto de Artes da UNICAMP, professor adjunto da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR, Campus Curitiba II. marcoshcamargo@yahoo.com.br
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Por assim dizer, até bem pouco tempo o conhecimento organizado estava
baseado exclusivamente nas duas linguagens conceituais (verbal e matemática), cada
qual em seus campos de atuação, comunicando conceitos como tradução semiótica do
conhecimento do real. Contudo, o advento dos meios de comunicação
cineaudiotactuvisuais2 acima mencionados, vem elevando a participação das demais
linguagens da cultura (imagética, musical, cinética e táctil) no desenvolvimento, registro
e comunicação de conhecimentos não-verbais e não-matemáticos, tanto por meio de
novos conceitos, como por meio de mensagens inconcebíveis (não-conceituais),
metafóricas e analógicas. Além do mais, as mídias contemporâneas têm revelado seu
caráter mestiço, cuja capacidade de comunicar simultaneamente vários tipos de
linguagens produz mensagens com textos e discursos híbridos, em que palavras,
imagens, sons, movimentos e tatilidade se apresentam todos juntos e misturados.
Neste momento, portanto, a cultura contemporânea se debate com o
enfrentamento de duas matrizes da cognição. O conhecimento conceitual, baseado
preferencialmente nas linguagens verbal e matemática, luta pela manutenção de sua
hegemonia que já dura alguns milênios. Enquanto isso, recepcionamos na atualidade
outras formas de conhecimento baseadas na cineaudiotactuvisualidade, que rapidamente
vêm construindo sua própria epistemologia, apontando para tremendas transformações
cognitivas logo à frente.
Assim, o objetivo desta reflexão, por certo, é entender melhor as semelhanças e
diferenças entre o conhecimento conceitual e o conhecimento perceptivo, neste
ambiente contemporâneo, em que as mensagens se apresentam muitas vezes misturadas
e confundidas em linguagens hibridizadas pelas características tecnológicas das mídias
atuais.
O conhecimento conceitual, também conhecido como ‘inteligível’, é derivado da
leitura e interpretação de formas simbólicas que compõem os sistemas de signos
(linguagens) da cultura. Atualmente, ao invés de ‘forma simbólica’, o termo técnico
comumente empregado é ‘signo’. Portanto, os signos – isto é, as formas simbólicas –
são representações que comunicam conceitos abstratos sobre as coisas, por meio de
22 O neologismo “cineaudiotactuvisual” tem o objetivo de adjetivar as mídias contemporâneas que têm a capacidade de comunicar mensagens imagéticas, sonoras, cinéticas e tácteis, por vezes ao mesmo tempo, trazendo ao perceptor a impressão de uma realidade virtual e/ou o que vem sendo chamado de “realidade expandida”. A “cineaudiotactuvisualidade” é produto do hibridismo das linguagens comunicadas pelas mídias digitais.
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formas específicas, cujas interpretações são culturalmente codificadas em um sistema
simbólico.
Ao sensibilizarem os nossos órgãos dos sentidos com suas formas regulares,
esses códigos funcionam como gatilhos que acionam nossa memória (lógica, inteligível)
de significados, gerando imagens convencionais que visam representar coisas, eventos e
ideias que já circulam na cultura. As formas codificadas e seus significados ordinários
geram os símbolos (signos) que, por sua vez, são ordenados em sintaxes que os
relacionam a outros signos (símbolos), formando sintagmas capazes de registrar em
suportes externos à memória humana (mídias), os conceitos que fazemos do real e do
imaginário.
Boa parte da ciência conhecida como ‘Lógica’ consiste em observar e estudar as
regras de combinação, relacionamento e subordinação dos símbolos (signos) entre si, de
modo que da leitura de qualquer formação simbólica, sintaticamente ordenada, seja
possível interpretar ideias convencionais.
Quando a sintaxe de uma forma simbólica produz ideias conformes e adequadas
ao real e/ou ao próprio sistema simbólico, essa relação de representação denomina-se
‘verdade’. Por sua vez, a busca pela verdade ou sua posse transformou-se, em muitos
casos, nas disputas mais ferozes pelos mais diversos interesses. Assim, toda opinião ou
interpretação que diverge da verdade estabelecida torna-se falsidade.
Para os antigos gregos, a oposição entre o verdadeiro e o falso funcionava a
partir do processo denominado aletheia, que se traduz por desvelamento. “‘Ser-falso’,
pseudesthai, significa enganar no sentido de recobrir: pôr na frente de alguma coisa
outra coisa que se faz ver, e desse modo fazer passar a coisa recoberta pelo que ela não
é”. (CASSIN, p. 141, 1999)
Isso implica dizer que, para o antigo grego, o papel da verdade era desvelar as
entranhas do real, mas nunca re-velar alguma coisa, já que tal manobra resultaria num
outro velamento, acobertamento, fazendo passar a representação da forma simbólica
pelo próprio real, situação em que o duplo semiótico usurpa o lugar do mundo –
quando, por exemplo, as palavras e os números são entendidos como substitutos das
coisas.
Contudo, a sina de se passar por outra coisa, figurar-se no lugar dela, é a função
precípua do signo – este é o principal papel do símbolo: estar no lugar de algo. De modo
que, longe de desvelar o real para conhecimento do homem, o símbolo o re-vela e se
torna o pseudesthai do real. Assim, a verdade como adequação de um símbolo a uma
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manifestação do real se torna um paradoxo lógico, já que ao se projetar em direção do
mundo ao mesmo tempo o re-vela, isto é, o recobre novamente.
No entanto, mesmo em face de sua maldição cognitiva, parte importante dos
conhecimentos auferidos pelo ser humano provém de formas simbólicas
intercambiáveis, que comunicam as ciências das quais a humanidade se utiliza para
viver e prosperar. Desse modo, embora a comunicação simbólica produzida pela cultura
mantenha com o real uma relação esquizofrênica, as linguagens conceituais são
imprescindíveis para o sucesso civilizatório do ser humano. Logo, o que fazer para
minimizar a re-velação do real empreendida pelas interpretações verdadeiras e falsas?
O ser humano é, antes de tudo, um corpo concreto que habita o mundo das
coisas reais. Com a realidade do mundo nosso corpo mantém relações intensas, amplas
e vitais (no duplo sentido), de modo que há, sim, um vínculo poderoso entre nossos
processos cognitivos e a parcela do real que nossa biologia nos permite conhecer.
Enquanto as formas simbólicas duplicam o real por meio de representações
inteligíveis das coisas do mundo e do imaginário, nossa percepção nos permite
experimentar o mundo sem conceituá-lo, gerando por meio dessa relação patêmica todo
um conhecimento estético capaz de atuar como um contraponto cognitivo ao duplo das
linguagens, enquanto desvela a esquizofrenia da representação simbólica e oferece
limites à interpretação da verdade.
A palavra ‘símbolo’, proveniente do grego symbolon, significa ‘signo’,
‘convenção’, ‘acordo’, ‘pacto’. Composta pela partícula syn (junto, com), e a raiz ballo,
ballein (projetar, lançar, colocar), sua semântica literal indica a ideia de “colocar junto”,
“levar junto”. No caso em que se refere à linguagem, a palavra ‘símbolo’ representa a
associação de uma forma sensível (das letras e da voz) a seu significado inteligível,
gerando um signo verbal. O ‘símbolo’ é aquilo que une, integra e associa, sendo tal
qualidade aplicável a outros símbolos não-verbais, como imagens, bandeiras, brasões,
totens, músicas, danças, dentre outras, cujas formas ganham significados exclusivos
para a comunidade que os adota. Assim, em resumo, desde Platão e Aristóteles,
utilizamos o vocábulo ‘símbolo’ para designar o signo verbal que une, integra e associa
uma palavra a seus significados.
Por outro lado, a palavra ‘símbolo’ mantém relações semânticas com seu
antônimo, igualmente importante para pensar a comunicação do conhecimento. Ou seja,
enquanto a palavra ‘símbolo’ designa associação, união e unidade, seu oposto, a palavra
‘diabo’, que provém do grego diabollos, significa: “aquilo que separa e desune”. Do
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prefixo dia (colocar-se entre, separar, bifurcar), e ballo, ballein (projetar, lançar,
colocar), quer dizer literalmente “colocar-se entre”, isto é, aquilo ou aquele que mantém
duas coisas separadas, impede sua união, isola ou promove a disfunção entre as partes.
Por conta de seus significados originais, a palavra ‘diabo’ foi empregada pela
religião judaico-cristã para designar todas as coisas, situações e pessoas que promovem
a discórdia, ou seja, a separação, a desunião entre o cristão e seu destino divino.
Obviamente, entre os cristãos primitivos, o termo ‘diabo’ não representava um
personagem, mas uma ideia, um gesto que dificultava ou impedia a reaproximação entre
os cristãos e sua religião. Porém, como é comum na cultura, o acúmulo do tempo fez
surgir as personificações das qualidades negativas da palavra ‘diabo’, na forma de seres
fantásticos como o satanás, o demônio, inclusive emprestando-lhes nomes próprios,
como Lúcifer, Belfagor ou Asmodeus.
Contudo, se abrirmos mão das conotações religiosas que saturam de sentidos
negativos o vocábulo ‘diabo’, lembrando-nos de que esta palavra é mais antiga no
léxico greco-romano do que o significado tardio atribuído pelos cristãos – talvez por
traduções desviantes do aramaico –, poderemos utilizá-la etimologicamente para
significar uma relação de diferença para com as formas simbólicas das linguagens.
Porém, de modo a não confundir o campo desta pesquisa com a hermenêutica religiosa,
prefiro realizar mais uma manobra neologística para evitar o uso da palavra ‘diabo’ e
toda a carga semântica pejorativa que o senso comum lhe atribuiu. Desse modo,
convido o leitor a utilizarmos a neopalavra ‘diábolo’, inexistente na língua portuguesa
contemporânea, embora compreensível e mais simetricamente proporcional à palavra
‘símbolo’.
Assim, enquanto o ‘símbolo’ é uma forma convencional que ganha sentido e
significado coletivo, de modo a designar um conceito, o ‘diábolo’ é uma forma que não
tem sentido nem significado coletivo (apenas, singular e subjetivo), de modo que não
pode ser empregada para designar um conceito, pois sempre se apresenta como se fosse
pela primeira vez – trata-se de algo novo, original ou estranho.
Porém, se prestarmos atenção aos processos gradativos da cultura, perceberemos
que uma forma sensível se torna símbolo, na medida em que deixa de ser diábolo e vice-
versa. Ou seja, enquanto as qualidades simbólicas das formas (materiais e/ou abstratas)
lhes permitem constituir-se em elementos da cultura, suas qualidades diabólicas lhes
embaraçam ou mesmo impedem sua inclusão nos sistemas culturais, devido a seus
confusos e obscuros processos de evocação, equivocidade e evasão. Mas, quando
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percebidas e/ou inventadas pela sensibilidade/criatividade humana, parte das formas
diabólicas sofrem um processo de semantização, ganhando sentido e significado,
transformando-se, desse modo, em formas simbólicas.
Por outro lado, quando as formas simbólicas perdem sentido e significado,
tornando-se insignificantes para as definições lógicas e perdendo valor nas trocas
culturais, elas deslizam para o campo das formas diabólicas e são expulsas da
semiosfera (conjunto de todas as formas simbólicas da cultura). Contudo, praticamente
todas as coisas, eventos e ideias que existem dentro e fora da semiosfera partilham de
qualidades simbólicas (lógicas) e qualidades diabólicas (estéticas).
Do ponto de vista da cognição humana, as formas simbólicas são vetores de
conhecimentos compulsórios, ordinários e longamente definidos pela comunidade de
usuários das linguagens (consciência coletiva), submetendo todos os indivíduos,
independentemente de suas oposições ou adesões. As formas diabólicas, por seu turno,
oferecem sempre uma cognição individual e subjetiva, já que não há nelas qualquer
possibilidade de impor um modo generalizado e objetivo de interpretação. As formas
diabólicas não estão sujeitas a sistemas de signos, não se submetem a qualquer lógica,
como também não estão a serviço de qualquer verdade.
As formas diabólicas não participam dos processos conscientes produzidos pela
semiótica das linguagens, pois sua singularidade repele qualquer identificação
conceitual, enquanto a mantém livre e diversificada – abaixo ou acima, aquém ou além
de qualquer referência que possa fixá-la em um código. “Para além do Bem e do Mal, e
não encarnação deste último, o Diabo [diábolo] diz os possíveis libertários. Devolve aos
homens seu poder sobre si mesmos e sobre o mundo, livra de toda tutela”. (ONFRAY,
2009, p. 81)
Por este ângulo, o símbolo, isto é, o conceito que persegue a verdade, não
liberta, mas pelo contrário, constrange – porque é uma representação de regularidade
que impede uma real criatividade em suas possíveis interpretações. Por seu turno, o
diábolo abre para o ser humano todas as perspectivas cognitivas experimentais e
imagináveis, pois sempre nos leva a uma exploração mais criativa do mundo. Por isso, é
o diábolo que oferece ao homem a dimensão de sua liberdade, fazendo avançar o
conhecimento, por meio da experiência do estranhamento, da originalidade e da
criatividade.
O diábolo, como explica sua etimologia, é aquilo que mantém separada uma
forma qualquer de um ou mais eventuais sentidos/significados gerais. Ou seja, o diábolo
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é tudo aquilo que não é comum (do ponto de vista da comunicação social das
linguagens), porém faz parte das coisas, sensações, ideias e eventos originais e radicais.
O diábolo é sempre produto de uma novidade real – algo que nunca existiu até o seu
primeiro surgimento ou uma revolucionária interpretação sobre algo já existente.
Em vista disso, é compreensível o sentimento de medo que o diábolo causa ao
senso comum e ao status quo, que se serve do poder. Enquanto o símbolo é sinônimo de
consenso, pacificação e segurança, o diábolo causa desequilíbrio, inquietação e estupor.
Enquanto o símbolo é uma codificação lógica, o diábolo é uma comunicação estética.
Portanto, o conhecimento estético não tem como se constituir a partir de
interpretações codificadas de formas simbólicas, pois a cognição estética compõe-se das
sensações provocadas pelas formas diabólicas, das quais os órgãos dos sentidos nos
fazem cientes, a partir da afecção provocada pela manifestação sensível das formas que
habitam o real e o imaginário. Desse modo, o que se entende por formas não-
simbólicas, ou seja, formas diabólicas, são aquelas aparições e fenômenos que não
suscitam, nem geram em nós a lembrança de um código, regra, lei ou ordem – não
significam ideias definidas.
As formas se tornam simbólicas quando, tanto seu formato material, quanto seu
sentido abstrato, são organizadas em um sistema de representação de ideias; por isso as
formas simbólicas são inteligíveis; elas implicam significados e servem como
dispositivos de conceituação de pensamentos. Pelo contrário, as formas diabólicas
compõem-se de “sinais (sensíveis, inconcebíveis e insignificantes) [que] manifestam a
sensibilidade, indefinibilidade e insignificância [insensatez] da região estética dos textos
culturais, como também das manifestações naturais”. (CAMARGO, p. 153, 2013)
As formas diabólicas são percebidas (lidas) pelos órgãos dos sentidos, a partir da
manifestação espontânea de sinais estéticos que alcançam nossa sensibilidade,
provocando em nossos sentidos uma urgência cognitiva – intuitivamente sabemos que é
preciso conhecer o que tais fenômenos têm para nos expor. Os sinais estéticos tornam
perceptíveis as formas diabólicas, por serem lidos por nossa sensibilidade a partir de
suas inumeráveis qualidades típicas (que diferem gradualmente das qualidades lógicas
das formas simbólicas).
No entanto, as formas simbólicas, assim como as formas diabólicas, não são
manifestações exclusivas de qualidades lógicas e estéticas, respectivamente. Sempre
haverá algo de diabólico nos símbolos (signos), assim como sempre existirá algo de
simbolizável nos diábolos (formas estéticas). Por conta disso, o modo mais adequado de
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construir conhecimento deve considerar a graduação existente entre as manifestações
lógicas e estéticas da cultura e da natureza. Aqui não existem oposições irredutíveis, na
medida em que se pode relacionar, por exemplo, a inteligibilidade do significado
conceitual de um símbolo, com a afetividade provocada por sua imagem, som ou
movimento. Pode-se, também, inferir algum tipo de ordem (teoria do caos) a partir da
percepção da superfície sensível de uma forma diabólica.
No entanto, uma das importantes funções das formas diabólicas é circunscrever
e encontrar a fronteira além da qual a forma simbólica perde o sentido que a define.
Porém, é exatamente essa fronteira (confusa, obscura, mas permeável) que delimita a
importância da forma simbólica para a comunicação do conhecimento humano.
Ao contrapor, por exemplo, a racionalidade à passionalidade, o símbolo e o
diábolo passeiam entre a abstração de uma medida exata e a experiência sentimental de
um desejo. Ao postarem-se entre a exatidão e a vagueza, o símbolo e o diábolo figuram
entre as coisas que parecem definíveis, ao largo das outras coisas miscigenadas que
circulam no mundo. Assim, o diábolo transita entre a cultura e o fluxo do real,
intrometendo diversidade onde julgam haver identidade; quebrando o ritmo da
redundância com seus sinais de originalidade; obscurecendo, com a história do
movimento, aquilo que se pretendia sempre claro e distinto; calando o discurso com a
inefabilidade de um gesto; desestabilizando uma verdade outrora eterna, com as brisas
efêmeras do riso sardônico; ou, então, pulverizando o mais garantido dos sentidos, com
a insensatez de uma estranha evidência.
Eis aí, bem maior do que Platão (o adversário do diábolo), o reino da estética,
que se apresenta a nós sempre fustigando a verdade, torcendo a lógica em seu limite e
negando sentido escatológico para as certezas de nossa humanidade.
Sendo a principal qualidade do conhecimento estético, o diábolo quase sempre
se apresenta como um forte sintoma insignificante, insensato e inconcebível (não-
conceitual) da presença do real em nossa carne cognoscente. Postando-se diante do
perceptor como um intrigante “monumento”, o diábolo aparenta uma forma sensível
independente e resistente às interpretações, como é o caso, por exemplo, de obras de
arte, ruinas arquitetônicas, coisas inúteis, formações naturais, dentre outros. Do mesmo
modo, pode-se “dizer que, em suma, enquanto, de maneira geral, o poema sendo
contemplado por si próprio, funciona como um monumento, um texto filosófico, sendo
lido em vista da tese que afirma funciona como um documento”. (CÍCERO, p. 35, 2012)
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Fruto de acordos semióticos produzidos no interior das linguagens humanas, o
documento ostenta um caráter coletivo que o comunica para a posteridade; mas o
documento padece de uma existência secundária, que se justifica apenas por carregar
em si outra existência mais importante: a interpretação. Por sua vez, o monumento
justifica-se a si próprio, na medida em que sua existência material supera a importância
de qualquer interpretação – nunca está ali em função de algo que lhe está além, como a
representação de um conceito. Por certo, o “que resplandece é o que vale por si: o que
merece existir” (CÍCERO, p. 15, 2012).
Por outro lado, como vimos, as formas simbólicas e as formas diabólicas não são
oposições lógicas. Elas se encontram muitas vezes entrelaçadas e mescladas em textos
das linguagens, em coisas e eventos reais. Elas convivem na cultura humana, cada qual
exercendo seu tipo exclusivo de influência na comunicação coletiva e subjetiva do
conhecimento. Enquanto as qualidades simbólicas de um texto cultural residem em sua
logicidade – em partes do fenômeno que podem ser conceituadas e significadas –, suas
qualidades diabólicas se manifestam para além do limite do conceito – em outras partes
do fenômeno que revelam sua esteticidade inefável.
Vejamos, por exemplo, a angústia teórica que ainda atormenta a tradição
filosófica em sua tentativa de definir a essência da arte. Mas, sendo a arte em si mesma
impossível de se definir, até certo ponto parece possível conceituar uma obra de arte, na
medida em que se pode compreendê-la como uma pintura, escultura, música. Além
disso, algo também pode ser dito acerca de seu estilo, escola, período, como também se
pode discursar sobre as influências estilísticas e filosóficas manifestadas por seu autor, a
angústia sofrida no ato da criação da obra – essas e outras críticas pertinentes podem ser
realizadas em textos analíticos baseados em discursos verbais.
Contudo, há um limite para a semiótica das linguagens, um fosso intransponível
para as representações simbólicas, uma parede além da qual a lógica discursiva dos
signos não tem mais como definir, conceituar ou classificar o fenômeno estético
(artístico). Não há léxico capaz de comunicar o espanto que uma pintura pode causar na
sensibilidade de um fruidor; não há conceito que generalize, resuma ou sintetize um
transe hipnótico gerado por uma música. Não há palavras que transmitam as sensações
de catarse que a tensão de um gesto teatral pode provocar na psicologia de um
indivíduo. No limite, não há qualquer linguagem capaz de dizer uma experiência dos
sentidos.
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Quando, pois, um conhecimento não pode ser traduzido em símbolos lógicos de
uma linguagem, entra em cena o caráter diabólico da cognição. Assim, o conhecimento
estético se origina em uma sensação derivada de uma experiência psicossomática que,
por sua vez, contribui para a formação da memória sensível do indivíduo. O arrombo
emocional causado pelo susto prazeroso da brusca descida de uma montanha russa, o
impacto de uma cena de desastre aéreo, a primeira visão de um filho recém-nascido ou a
presença de uma obra de arte na sensibilidade de um perceptor, não podem ser
comunicados por uma linguagem, devido ao fato dessas sensações serem particulares e
singulares.
Como o símbolo é a união entre uma forma material sensível coletivamente
partilhada e algumas interpretações abstratas objetivamente fixadas pela ordem do
discurso, as experiências pessoais não são simbolizáveis (não comportam significados
coletivos), porque a percepção de sua forma é individual e as interpretações das
sensações resultantes são subjetivas. No entanto, as experiências pessoais são fontes de
conhecimentos efetivos e muito importantes para a economia da vida. Porém, tratam-se
de conhecimentos diabólicos, porque não há como conceituar uma sensação individual
obtida de uma experiência. O diábolo é a separação ou a impossibilidade de juntar a
sensação proveniente de uma experiência pessoal com um significado comum a todos.
A arte, por esses motivos, é uma atividade humana parcialmente simbólica e
tendencialmente diabólica, por isso mesmo não pode ser completa e sistematicamente
definida. Nenhum conceito (generalização, classificação) sobre a arte pode, de fato, ser
estabelecido, porque a parte da obra artística que manifesta o caráter diabólico de sua
estética sempre há de escapar a qualquer definição semântica, por compor-se de um
fenômeno obscuro, confuso e polissêmico. Nos termos de Aristóteles, a arte é um
“quase-ser”, porque não se pode dizer exatamente o que ela “é” (ser). Nos termos de
Peirce, a arte é um “quase-signo”, porque não se pode codificar completamente seus
significados. Estes dois autores reconhecem que aquém e além do ser ou do signo, a
lógica conceitual não tem como se posicionar diante da arte, nem tão pouco em relação
às formas diabólicas da estética.
Diferentemente de coisas e eventos ordinários, que podem ser definidos com
mais facilidade, também há conhecimentos tremendamente importantes para a vida
humana, cuja definição está longe de ser possível. A ciência pode, com mais facilidade,
encontrar definições para eventos naturais, como o ‘vento’. O conceito do vento pode
ser estabelecido de maneira simples, objetiva e geral, praticamente sem controvérsia e
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de modo pacífico: vento é o ar em movimento! Mas, como definir exata e claramente o
conceito de amor?
A ciência conceituará o amor como uma reação psicobiofísica à descarga de
hormônios de vários tipos na corrente sanguínea, que causam sensações de boca seca,
mãos úmidas, tremores, pupilas dilatadas, rubores da face e atração sexual. Nenhum
poeta admitiria conceituação do amor de modo tão mecânico e objetivo. Psicanalistas
incluiriam outras qualidades nesse conceito de amor. Contudo, nenhum amante aceitaria
esgotar a descrição de seus sentimentos em um discurso de conceitos tão genéricos
acerca de seu próprio amor.
A controvérsia e a disputa sobre a verdade do amor, acerca de um conceito de
amor que seja realmente geral e coletivo, jamais terá uma conclusão. Toda poesia lírica
produzida pelos bardos e rapsodos desde os tempos mais antigos nunca foi capaz de
esgotar as qualidades existentes no sentimento do amor. Os motivos pelos quais o amor
também não pode ser completamente conceituado residem no fato inconteste de que
suas qualidades diabólicas (ser perceptível, mas não ser significável) predominam sobre
suas características simbolizáveis.
Contudo, não apenas a arte ou o amor, mas muitos outros importantes objetos de
conhecimento são indefiníveis, devido ao predomínio de qualidades diabólicas em suas
formas manifestas. A ciência contemporânea há tempos vem lidando com fenômenos
naturais reconhecidos como imprevisíveis, a exemplo do comportamento das partículas
subatômicas descritas pela teoria quântica, os elementos estudados a partir do princípio
da incerteza de Heisenberg, ou mesmo a lógica paraconsistente, que revoga o princípio
da não-contradição e admite sinais contraditórios em seus cálculos sobre um dado
sistema.
Diferentemente da acepção de caluniador e inimigo, empregada pelo senso
comum religioso para conceituar o diábolo, de fato, as qualidades diabólicas respondem
pelo imenso campo obscuro e confuso da estética, que se move insensatamente além,
aquém, abaixo, acima, por entre os vãos, pelos interstícios e indefinições da lógica
semiótica das linguagens.
O que pretendemos destacar aqui está no fato de que o mundo real em que
habitam os corpos humanos está sempre em movimento, dotado de processos
parcialmente lógicos e simbolizáveis a partir das linguagens, sempre acompanhados de
fenômenos de perfil estético, cuja ilogicidade e insensatez são diabólicas.
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As formas diabólicas
Toda ciência tem por objetivo simular o comportamento do real nos textos de
suas linguagens, de modo a capturar, registrar e comunicar o conhecimento das leis e
ordens que causam as coisas, ampliando nossa consciência acerca do ambiente que
envolve e determina a vida humana. Mas nesse trabalho de percepção, retenção e
interpretação semióticas das regularidades que processam as coisas, a ciência acaba
congelando o movimento do real em representações simbólicas, fixadas por códigos
redundantes que repetem-se a si mesmos.
Contudo, como disse Heráclito: Panta rhei! Isto é: “Tudo flui!” E quando todas
as coisas que realmente existem estão em movimento, cada qual segundo suas próprias
leis, formas, modos e meios, o vir-a-ser do mundo gera muita inconstância e
imprevisibilidade. Assim sendo, quando as representações das leis, isto é, as formas
simbólicas, são concebidas e preservadas de modo regular e previsível, acabam se
tornando anacrônicas, perdendo progressivamente o grau de adequação de suas
interpretações do real e isolando as narrativas das ciências, da realidade do mundo.
Para que possamos conhecer efetivamente o fluxo do real – o devir que
manifesta a existência do mundo –, devemos desenvolver conhecimentos que levem em
consideração a fluidez de seus objetos de pesquisa. Por isso, qualquer sistema semiótico
de comunicação que busque por uma crescente eficiência representativa deve considerar
em suas articulações sintáticas e semânticas os variados graus de mutabilidade do real.
Quando algo logicamente previsto acontece de fato em nosso campo sensorial e
inteligível, geralmente deixamos de prestar a devida atenção, pela trivialidade de sua
ocorrência. Desse modo, o acontecimento afunda sob o limiar de nossa percepção e se
conforma ao automatismo do senso comum. Porém, existe em nós um instinto que
aflora em toda ocasião de enfrentamento do imprevisível. Aquilo que ocorre como novo,
original, inesperado, acaba sempre reclamando maior esforço de entendimento, mais
atenção, justamente porque nunca esteve anteriormente presente em nossa percepção ou
intelecção.
Neste sentido, as teorias da informação desenvolveram um interessante modelo
de apreciação de novos fenômenos cognitivos: “Pois, nesta técnica dos engenheiros da
computação, a informação é medida por seu grau de imprevisibilidade, enquanto o
esperado se torna, em sua terminologia, o ‘redundante’” (GOMBRICH, 2012, p. 9). Por
assim dizer, a forma que carrega alto grau de originalidade, novidade ou criatividade é
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aquela que dificulta sobremaneira os processos de identificação e previsão instituídos
pela lógica científica ou mesmo pela linguagem de senso comum. Essas novas formas
não podem ser, portanto, simbólicas, na medida em que um processo de simbolização
(significação, sentido) demanda prévia pactuação coletiva e sua consequente
redundância dentro do sistema de informação da cultura. As formas são diabólicas,
portanto, na medida em que não pertencem a um sistema organizado de representação,
“é o insight que os antigos resumiram no provérbio variatio delectat, variedade deleita.”
(GOMBRICH, 2012, p. 8)
Enquanto as linguagens visam, como atividade precípua, a duplicação simbólica
do mundo no âmbito da cultura, como referência da ordem que desejamos perceber em
nosso ambiente, as formas diabólicas flertam com a imprevisibilidade e a desordem
reais do devir, pois ao se moverem indefinidamente não se submetem a quaisquer
ordenamentos culturais.
Porém, devido a seu narcisismo antropocêntrico, o ser humano prefere se inserir
no mundo por meio das linguagens que o protegem do atrito ruidoso com o devir, ao
invés de mergulhar descuidadamente no fluxo do real. Desse modo, o senso comum
silencia os sinais estéticos que informam as irregularidades e assimetrias do mundo,
para voltar sua atenção às interpretações das formas simbólicas, que simulam a
existência de um mundo inteligível, regular, fixo e constituído de ideias e coisas
sistematicamente organizadas.
O fato das formas simbólicas processarem relações identitárias revela seu
pertencimento à cultura. Pois a natureza comumente transborda em apostas randômicas
que resultam em fenômenos quase sempre singulares, obscuros e confusos. Enquanto
isso, a regularidade das formas simbólicas funciona como signo da ordem que se busca
encontrar no mundo real.
A conclusão a que somos levados sugere que é precisamente porque essas formas são raras na natureza que a mente humana escolheu tais manifestações de regularidades, que são, reconhecidamente, um produto de uma mente controladora e que, assim, destacam-se contra a miscelânea aleatória da natureza. (GOMBRICH, 2012, p. 7)
Por outro lado, ‘inteligência’ é um conceito que provém dos termos latinos inter
+ legere, e significa simplesmente o ato de “ler por dentro”. Inteligível, portanto, é tudo
aquilo que permite uma leitura interna, isto é, uma interpretação de significados. Mas
essa leitura interna só se efetiva a partir de um prévio entendimento coletivo, que
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oferece os limites da interpretação possível. Em contrapartida, tudo aquilo que aparece
pela primeira vez aos órgãos dos sentidos é imprevisível, não é redundante, não se
repete e nem é regular, porque não se encaixa em uma ordem anteriormente
estabelecida. Portanto, a cognição desse tipo de fenômeno não cabe à inteligência.
Uma nova forma, ou uma forma que se apresenta de modo incomum, um evento
singular, uma ideia original, habitam o reino insignificante do devir, porque não
encontram significados pré-existentes em nenhum sistema semântico estabelecido. Mas,
por isso mesmo, causam angústia e terror, exatamente porque a sensação de sua
presença incontornável tende a fragilizar a ordem estabelecida.
O novo, de qualquer forma, é o mal, pois é o que quer conquistar, derrubar os limites, destruir as antigas crenças; só o velho é o bem! Os homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o resolva. (NIETZSCHE, 1976, p. 41)
Visto inicialmente como uma malignidade insuportável, tudo o que é realmente
novo, ou seja, as formas não domesticadas pelas linguagens da cultura tendem a se
destacarem por suas qualidades diabólicas, causando abalos na cosmovisão de uma
comunidade. Antes de produzir os efeitos positivos das transformações revolucionárias,
as formas diabólicas quase sempre são recepcionadas com desconfiança pelos que
temem os perigos de qualquer nova emergência. Por isso, os conservadores de todos os
tipos se esforçam por defender as antigas crenças, reclamando a adesão popular à
segurança das formas simbólicas tradicionais, enquanto denunciam a ameaça diabólica
que acreditam acompanhar o surgimento de quaisquer novos movimentos nas cercanias
de sua cultura.
Para citar um exemplo acerca das formas diabólicas, vejamos dois tipos de
leitura que podemos obter de um bilhete manuscrito. A primeira dessas leituras decifra o
significado das palavras que comunicam as ideias de seu autor. Este tipo de captura de
informação denomina-se “intelecção”, porque interpreta os significados internos aos
símbolos verbais e as deliberações conscientes que o autor pretendeu transmitir por
meio da escrita. O outro modo de colher informações acerca do texto se processa por
meio de uma leitura estética, da qual se serve, por exemplo, o grafotécnico para analisar
as formas materiais das letras manuscritas no papel.
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A perícia grafotécnica é uma especialidade que permite formar conhecimento
sobre a autenticidade de documentos escritos, conforme o exame de traços particulares
que se insinuam no desenho das letras e sua relação morfológica com as frases. Sua
importância reside no fato de que se pode, sob determinadas condições, afirmar se a
escrita representa verdade ou falsidade, além de outras informações como o estado
emocional do redator, seus principais aspectos psicológicos e, eventualmente, suas
intenções ocultas (inconscientes).
Assim, quando temos dez bilhetes manuscritos que reproduzem literalmente o
mesmo teor, há duas possibilidades de leitura: uma delas será a inteligente, cuja
interpretação deve ser idêntica para todos os dez textos – afinal, as frases comunicam
semanticamente sempre a mesma ideia, não importando a caligrafia do redator, porque
são formas simbólicas codificadas pela linguagem. Na outra leitura, um bom
grafotécnico encontrará ao menos dez tipos diferentes de traços psicológicos,
perceptíveis a partir das particularidades personalísticas gravadas no desenho das letras
realizado por cada um dos dez redatores dos textos – as manifestações gráficas
singulares compõem as formas diabólicas dos textos, cuja leitura estética permite
conhecer facetas pessoais, subjetivas, de seu escritor, contribuindo com um
conhecimento valioso para uma eventual investigação.
O exemplo acima serve para demonstrar a existência das qualidades simbólicas e
diabólicas em todos os textos da cultura, assim como também em manifestações do
meio ambiente, oferecendo-nos níveis estéticos e lógicos de leituras possíveis em um
texto, coisa ou evento, distanciando-nos do tradicional pensamento por oposição e da
hierarquia do intelectual sobre o estético/sensível. Portanto, entre a leitura inteligente de
formas simbólicas e a leitura estética de formas diabólicas não há oposição categorial,
porém graduação cognitiva, na medida em que ambas ocorrem simultaneamente na
maioria dos fenômenos culturais e naturais.
Não se deve, então, moralizar os modos de cognição subordinando as formas
diabólicas às formas simbólicas – pois elas integram o modo como lemos o real. Assim,
enquanto as formas simbólicas são entendidas como convenções comunicativas que
‘representam’ conceitos gerais sobre o mundo, as formas diabólicas são percebidas
como emergências singulares, aparições (no sentido que a fenomenologia dá ao termo
grego phainomenon) que se ‘apresentam’ à percepção, como sensações, sentimentos,
intuições.
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Sobre a apresentação e a representação
A principal função da comunicação por formas simbólicas é evocar ideias
convencionais previamente armazenadas na memória lógica dos indivíduos, fazendo
com que eles se recordem de um valor da cultura constituído de um acordo prévio entre
os usuários do código simbólico. Por exemplo, a palavra “banana” é uma forma
simbólica que permite à memória evocar alguns de seus significados previamente
estabelecidos, tais como uma fruta tropical ou uma pessoa pusilânime. Trata-se da
evocação de uma memória construída a partir de repetidas re-apresentações da palavra
‘banana’ e seus significados.
A anterioridade do acordo comunitário é um a priori instalado no prefixo “re”,
da palavra ‘representação’. Re-presentar, então, designa toda repetição de uma ideia
para um leitor, por meio de uma mesma forma e, normalmente, com o mesmo sentido.
Assim, toda representação é uma redundância e uma re-afirmação de um sentido-
significado previamente codificado. Portanto, ao serem apresentadas várias vezes ao
indivíduo, as formas simbólicas se tornam, assim, re(a)presentações.
Por seu turno, as formas diabólicas não permitem acordos prévios, porque
surgem inesperadamente, nunca dando tempo de se convencionar um significado
coletivo para sua manifestação. O diábolo impede qualquer a priori, pelo simples fato
de sempre ocorrer ao perceptor-leitor como se fosse pela primeira vez. Por nunca
permitirem interpretações unívocas, as formas diabólicas jamais sensibilizam do mesmo
modo, nem para o mesmo perceptor que por ventura lhe acesse uma segunda vez. As
formas diabólicas não provocam o mesmo estupor em uma próxima aparição, pois seus
sinais estéticos são fruto do movimento das coisas, que sempre se apresentam como
diferença.
Enquanto a representação (as formas simbólicas) tem apenas um centro, uma
perspectiva única, uma interpretação verdadeira, dada pela convenção geral, ela não
mobiliza, nem move as coisas, mas as prende em sua relação significante-significado. A
função precípua do símbolo é fixar um entendimento coletivo, pacificar conflitos
interpretativos e eliminar o movimento criativo dos equívocos. Porém, o “movimento,
por sua vez, implica uma pluralidade de centros, uma superposição de perspectivas, uma
imbricação de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam
essencialmente a representação”. (DELEUZE, 2006, p. 93)
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As formas diabólicas, desse modo, perfazem a imagem do real em fluxo:
movem-se ao sabor das intempéries, distribuem-se heterogeneamente e se
descentralizam em vários sentidos até ultrapassarem o limite da sensatez, apresentando-
se simultaneamente em várias perspectivas possíveis, enquanto ganham existência em
qualquer ponto do círculo atemporal do devir.
As formas diabólicas aparecem para nossos sentidos emergindo do fundo
obscuro e confuso do real, quando sopram violentamente sobre as frágeis paisagens
retilíneas da razão, submetendo seu fruidor à paixão de suas curvas inconcebíveis.
Diabolicamente, sua natureza estética rasga (dia-ballo) a ordem do discurso lógico-
gramatical da semiosfera, fragmenta os significados, aparta (dia-ballo) os signos de suas
interpretações, descola as representações da redundância significativa, destitui a
hierarquia dos valores e interrompe (dia-ballo) a comunicação da consciência coletiva.
Das coisas, portanto, nós conhecemos apenas interpretações inconclusas, às
quais denominamos ‘objeto’. Nosso conhecimento objetivo das coisas é sempre parcial,
além de haver objetos que não pertencem a coisas, como mitos, ideias, conceitos etc.
Contudo, o imperativo do conhecimento é sempre avançar, tomando ciência de outras
partes anteriormente desconhecidas das coisas.
Mas o conhecimento, para ser comunicado à coletividade, precisa de certa
estabilidade semiótica, que lhe é garantida pela durabilidade dos significados das formas
simbólicas. Uma acelerada transformação dos significados das representações prejudica
a comunicação de conhecimentos entre os membros de um grupo social. Todavia, é
preciso testar constantemente a validade das interpretações permitidas pelas formas
simbólicas, já que sempre desejamos uma representação mais eficiente do real. Para
tanto é preciso pressentir o momento em que a dinâmica do devir torna a representação
inócua.
No entanto, para além das linguagens, no âmbito metassemiótico do real, existe
a possibilidade de auferir conhecimento a partir das formas diabólicas das coisas, cuja
constituição sensível impede sua redução a conceitos. Embora tenha sido desde sempre
menosprezado pelo logocentrismo ocidental, esse conhecimento inconcebível sempre
esteve ao alcance do perceptor/fruidor/leitor.
Porém, devido ao mau jeito com que a maioria de nós ainda lida com a dimensão
diabólica da cognição, é preciso retornar às distinções entre formas simbólicas e formas
diabólicas, tal como Umberto Eco nos exemplifica: quando consideramos a fumaça um
sinal de fogo surge aí um símbolo (signo) de fogo, por que decidimos que a fumaça está
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para algo mais. Mas, a “semiose perceptiva, ao contrário, não se desenvolve quando
algo está para algo mais, mas quando de algo chegamos por processo inferencial a
pronunciar um juízo perceptivo sobre aquele algo, e não sobre outra coisa.” (ECO,
1998, p. 111)
A percepção de algo, portanto, não transforma a experiência estética em um
veículo de significado que leve o perceptor em direção a outra ideia. O juízo perceptivo
advindo da experiência sensível torna o perceptor ciente apenas de sua relação sensorial
com este algo aqui. Segundo Eco, é possível gerar informação e juízo perceptivos sobre
algo, antes de (ou sem) formar interpretações que transformem a experiência relacional
em signo ou representação. O certo é que “nem todas as afecções corporais são
representativas, ou antes: nem todas são imagens (...) mentalmente correlatas a ideias
representativas, pelas quais a mente imagina as coisas.” (SÉVÉRAC, 2009, p. 26) Essas
‘afecções corporais’, ou seja, as cognições estéticas derivadas das experiências sensíveis
são provenientes da relação direta da percepção humana com as formas diabólicas do
real.
Representações são imagens mentais do referente, fornecidas por signos de
alguma linguagem da cultura. Essas imagens são interpretações das formas simbólicas
que habitam nossa memória lógica, acionada pelos textos da cultura. Desse modo,
“aprender a ler significa aprender a apagar o suporte material do escrito [do registro
físico das formas simbólicas] para internalizar e automatizar seus mecanismos
simbólicos...” (CATALÀ DOMÈNECH, p. 15, 2011). A mais sorrateira das estratégias
subliminares da linguagem é apagar o rastro material e sensível de suas formas
simbólicas para que fiquem armazenadas em nossa memória apenas as imagens
produzidas por nossas interpretações, dando-nos a falsa impressão de que produzimos
nossas ideias por nós mesmos.
Além do fato de não serem neutras quando atuam como veículos de formas
simbólicas, as linguagens da cultura criam imagens do mundo em nossa memória lógica
(consciência) e desaparecem por detrás da assimilação automática (inconsciente) dos
seus códigos. Assim sendo, quando interpretamos o mundo por intermédio das
linguagens não estamos lendo o movimento do real, mas apenas imagens do real
distorcidas pelas gramáticas das linguagens que – invisíveis aos nossos sentidos – nos
iludem com um simulacro do real.
Os preceitos da semiótica geral nos permitem entender que ao tomar o real como
‘significante’, automaticamente emerge em nós o cacoete lógico que visa impor um
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sentido ao mundo, cujo ‘significado’ é dado pela cultura, por meio de suas linguagens.
Mas, quando o ser humano suspende a mediação das linguagens da cultura, supera seu
automatismo logocêntrico e lida com o real por meio das experiências estéticas advindas
do relacionamento de sua sensibilidade com as formas diabólicas do mundo, o devir
perde sentido, enquanto deixa escapar a cognição de sua realidade.
Nesses momentos de insensatez, em que se rompe a ordem dos discursos, é que
o ser humano experimenta o encontro com a criatividade, com o frescor da originalidade
e dos pensamentos realmente novos, libertando-nos do jugo das formas simbólicas, que
nos afogam no mar da redundância, da eterna re-apresentação das mesmas imagens e da
mesmificação do pensamento.
“Como seria ela [a forma simbólica, a representação] capaz de nos arrastar para
além de nosso próprio poder de pensar, já que os signos que ela nos apresenta nada nos
diriam se já não tivéssemos em nosso íntimo sua significação?” (MERLEAU-PONTY,
2012, p. 35) Isto é, as mesmas linguagens que nos permitem comunicar os textos
comuns à cultura, também nos impedem a abertura cognitiva para estranhar a ordem
lógica, de vez que só podem nos oferecer narrativas idênticas, sentidos redundantes,
relações de identidade.
Submissas ao projeto de identificação do mundo à imagem e semelhança do
logos, as linguagens abolem o conhecimento da diferença ao cristalizar a semântica de
suas formas simbólicas. Assim, não causa espanto quando quaisquer diferenças e traços
de diversidade são encarados como impureza ou falsidade e amaldiçoados pela tradição,
que busca sanar sua equivocidade. “A partir de uma primeira impressão (a diferença é o
mal), propõe-se ‘salvar’ a diferença, representando-a e, para representá-la, relacioná-la
às exigências do conceito em geral.” (DELEUZE, 2006, p. 57)
Aqui se explica a noção de preconceito contra o diverso: a xenofobia e o horror a
tudo o que difere da identidade. Crentes na eficiência da gramática, os intelectuais
muitas vezes são os primeiros a amaldiçoarem a diversidade, pela vaidade de ter
consigo a posse da universalidade no interior do conceito.
Toda essa grande questão filosófica, que não hesito em considerar como a mais original e a mais importante do nosso século [XX], tem a ver com a noção de diferença, entendida como não-identidade, como uma dessemelhança maior do que o conceito lógico de diversidade e do conceito dialéctico de distinção. Por outras palavras, a integração da diferença na experiência assinala o abandono tanto da lógica da
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identidade aristotélica como da dialéctica hegeliana. (PERNIOLA, p. 156, 1998)
As formas simbólicas da cultura, especialmente comunicadas pelas linguagens
conceituais (verbal e matemática), não têm como, isoladamente, prover a sociedade
contemporânea dos conhecimentos necessários para entender o mundo que se descortina
à frente. Parece cada vez mais necessário o recurso a outras linguagens de caráter
híbrido, para acessar o conhecimento da diversidade incomensurável desse novo mundo.
A noção de diferença supõe toda complexidade e imprevisibilidade das formas
diabólicas do real. Sendo cada coisa e todas elas realmente diferentes em suas
existências materiais, as linguagens conceituais ficam prejudicadas ao tentar identificar
indivíduos realmente assimétricos e de exercer seu papel divinatório ao tentar prever o
comportamento de uma coisa e das relações entre as coisas. A diferença é diferença
porque não se repete. E ao não se repetir no futuro, não pode ser representada por
formas simbólicas. “Esta impossibilidade de se repetir resume, aliás, a essência do
sensível e sublinha, ao mesmo tempo, a sua finitude.” (ROSSET, p. 60, 2008) O real,
res extensa, compõe-se de coisas diversas, que intensificam sua própria diversidade
enquanto fluem rizomaticamente pelo mundo. Por isso, tudo está sempre ‘vindo-a-ser’
em pleno devir – e pelo simples fato das coisas se tornarem em outras, as que já se
foram não têm futuro, revelando assim sua finitude.
A percepção humana sempre entra em contato primeiramente com as formas
diabólicas do real. Algumas dessas se tornam formas simbólicas, na medida em que são
absorvidas e/ou desenvolvidas pelas linguagens da cultura. No entanto, o mundo real
por si mesmo é o locus privilegiado das formas diabólicas. O diábolo é a condição
original do mundo, de onde provêm os elementos extraordinários da criação, anteriores
à ordem cósmica instituída pelo homem.
As formas diabólicas são o alfa et omega da cognição humana, contudo, para
comunicar seu conhecimento é necessário recorrer a linguagens híbridas, atualmente
desenvolvidas pelas mídias digitais, que comportam em seus processos semoventes o
verbo, o número, a imagem, o som, o movimento e o tato – mesclando todas essas
formas diabólicas, enquanto produzem conhecimentos estéticos e lógicos bem mais
revolucionários que aqueles inspirados pela veneranda tipografia gutenberguiana.
Referências
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CAMARGO, M. H. Cognição estética: o complexo de Dante. São Paulo: Annablume, 2013.CASSIN, B. Aristóteles e o logos: contos da fenomenologia comum. São Paulo: Edições Loyola, 1999.CATALÀ DOMÊNECH, J. M. A forma do real. São Paulo: Summus, 2011.CÍCERO, A. Poesia e filosofia. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012.DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006.ECO, U. Kant e o ornitorrinco. Rio de Janeiro: Record, 1998.GOMBRICH, E. H. O sentido da ordem; um estudo sobre a psicologia da arte decorativa. Porto Alegre: Bookman, 2012.MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.NIETZSCHE, F. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1976.ONFRAY, M. Tratado de ateologia. São Paulo: Martins Fontes, 2009.PERNIOLA, M. A estética do século XX. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.ROSSET, C. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008. SÉVÉRAC, P. in: MARTINS, A. (org) O mais potente dos afetos: Spinoza & Nietzsche. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
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