cibertextualidades03 -...
Post on 09-Nov-2018
213 Views
Preview:
TRANSCRIPT
CIBERTEXTUALIDADES03Conhecimento�e(m)�Hipermédia
Publicação do CECLICO - Centro de Estudos Culturais, da Linguagem e do Comportamento
Universidade�Fernando�Pessoa�
DIRECTOR
Rui Torres
DIRECTORADJUNTO
Pedro Reis
CONSELHO DE REDACÇÃO
Rui Torres, Pedro Reis, Pedro Barbosa, Jorge Luiz Antonio,
Luis Carlos Petry e Sérgio Bairon
COMISSÃO DE HONRA
Maria Augusta Babo
Universidade�Nova�de�Lisboa,�Portugal
Jean-Pierre Balpe
Université�de�Paris�VIII,�França
Jay David Bolter
Georgia�Tech,�Atlanta,�E.U.A.
Phillipe Bootz
Université�de�Paris�VIII,�França
Claus Clüver
Indiana�University,�Bloomington,�E.U.A.
José Augusto Mourão
Universidade�Nova�de�Lisboa
Winfried Nöth
Universität�Kassel,�Alemanha
Manuel Portela
Universidade�de�Coimbra,�Portugal
Lúcia Santaella
PUC-São�Paulo,�Brasil
Alckmar Luiz dos Santos
Universidade�Federal�de�Santa�Catarina,�Brasil
Alain Vuillemin
Université�d’Artois,�França
TÍTULO
Revista Cibertextualidades 03 (anual) - 2009
© Universidade Fernando Pessoa
EDIÇÃO
edições UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA
Praça 9 de Abril, 349 | 4249-004 Porto
edicoes@ufp.pt | www.ufp.pt
DESIGN E IMPRESSÃO
O�cina Grá�ca da UFP
ACABAMENTOS
Grá�cos Reunidos
DEPÓSITO LEGAL
241 161/06
ISSN
1646-4435
Reservados todos os direitos. Toda a reprodução ou transmissão, por qualquer forma, seja esta
mecânica, electrónica, fotocópia, gravação ou qualquer outra, sem a prévia autorização escrita
do autor e editor é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor.
CIBERTEXTUALIDADES03Conhecimento�e(m)�Hipermédia
Publicação do CECLICO - Centro de Estudos Culturais, da Linguagem e do Comportamento
Universidade�Fernando�Pessoa�
http://cibertextualidades.ufp.pt
org. Rui Torres e Sérgio Bairon
PORTO�UNIVERSIDADE FERNANDO PESSOA�2009
9Revista Cibertextualidades n.3 [2009] - ISSN: 1646-4435 pp . 9 - 27
Produção de conhecimento em meios digitaisRui�Torres1�e�Sérgio�Bairon2
1 Rui Torres é Doutorado em Literatura luso-brasileira (UNC-CH, E.U.A.) e Professor Associado da Faculdade de Ciências Huma-
nas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa-Porto, Portugal. Contacto: rtorres@ufp.edu.pt
2 Sérgio Bairon é Doutorado em História Social (USP, Brasil) e Professor com Livre Docência da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, Brasil. Contacto: sbairon@gmail.com
1. Apresentação
Os�artigos�seleccionados�para�este�tercei-
ro�número�da�Revista�Cibertextualidades�
respondem�a�um�apelo�lançado�para�uma�re-
�exão�acerca�das�condições�de�produção�do�
conhecimento�em�meio�digital.�As�respostas�
que�recebemos�articulam,�como�esperáva-
mos,�posições�teóricas�distintas,�negociando�a�
aplicação�de�modelos�de�leitura�da�hipermé-
dia�em�contextos�diversos.�No�meio�dessa�
diversidade,�porém,�os�editores�encontra(ra)m�
um�trânsito�entre�as�ciências�humanas�e�
sociais�e�as�tecnologias�da�comunicação�e�da�
informação�passível�de�uma�unidade�que�ten-
taremos�aqui�enquadrar.�De�facto,�as�diversas�
abordagens�dos�artigos�aqui�publicados�rela-
cionam�a�literatura,�a�comunicação�e�a�cultura�
com�os�meios�digitais�em�que�se�articulam�
cada�vez�mais,�demonstrando�uma�preocupa-
ção�comum�com�a�criação�de�metodologias�
que�denunciem�o�percurso�dialógico�pelo�
qual�o�conhecimento�se�vai�apropriando�da�
hipermédia�como�ferramenta�e�como�suporte�
para�criação�e�para�a�comunicação�de�ciência.
Neste�sentido,�são�relevantes�as�análises�de�
produções�hipermediáticas�realizadas�em�
contexto�académico,�questionando�frequen-
temente�as�modalidades�de�representação�
do�pensamento�analítico�e�re�exivo,��propon-
do�dessa�forma�desa�os�à�própria�expressivi-
dade�da�comunicação�cientí�ca.�Uma�análise�
das�possíveis�relações�entre�os�processos�de�
investigação�em�ciências�humanas�e�sociais�
e�suas�possibilidades�de�representação�em�
plataformas�digitais�abre,�conforme�se�tenta�
provar�com�esta�publicação,�perspectivas�
de�trabalho�que�se�sustentam�em�redes�de�
conhecimento,�na�inteligência�colectiva�e�
conectiva,�nas�tendências�expressivas�dos�
multimeios.�Ora,�é�em�resposta�a�este�estado
de sítio�que�devemos�discutir�tipologias�e�ta-
xonomias�destas�cibertextualidades�líquidas,�
compreendendo�o�estatuto�da�escrita�e�da�
leitura�no�novo�contexto�da�comunicação�di-
gital�no�âmbito�de�uma�construção�histórica�
do�próprio�conceito�de�conhecimento.
Assim,�antes�de�apresentarmos�os�artigos�
sobre�produção�de�conhecimento�em�meios�
10 Rui Torres e Sergio Bairon
Na�fase�em�que�se�situa�o�momento�inau-
gual�da�ciência�moderna,�no�entanto,�quase�
toda�a�descrição�passou�a�evitar�estas��guras�
de�linguagem,�já�que�enquanto�somente
descrições�elas�interferiam�na�transparência�
da�compreensão.�Esse�é�o�contexto�iluminista�
que�Gadamer�analisa�em�Verdade e método,�
quando�se�passou�a�condenar�tudo�o�que�se�
assemelhasse�ao�“subjectivismo”�da�lingua-
gem�religiosa.�Para�o�hermeneuta,�teriam�sido�
de�nitivamente�condenados�para�fora�do�
mundo�da�racionalidade,�a�metáfora,�a�arte�e�
o�quotidiano,�tornando�Vico,�nesse�contexto,�
uma�voz�quase�isolada�(Gadamer,�1988).�
A�forma�mais�representativa�da�força�revelado-
ra�da�Natureza�passou�entretanto�a�ser�a�escri-
ta.�A�leitura,�ou�a�escrita�do�livro�da�Natureza,�
assumia�assim�a�categoria�de�Ciência.�A�forma,�
por�exemplo,�como�o�trabalho�Il Seicento (co-
ordenado�por�Umberto�Eco) apresenta�William�
Harvey,�já�nos�mostrava�que�o�médico�inglês,�
além�de�trabalhar�para�a�compreensão�da�cir-
culação�sanguínea,�tinha,�sobretudo,�ajudado�
a�desenvolver�o�método�(de�in�uências�protes-
tantes)�de�interpretação�da�Natureza�nas�suas�
relações�com�a�acção�interpretativa�na�escrita�
(Eco,�1995).�Nesse�momento,�a�Natureza,�com�
todo�o�seu�espectáculo�inexplicável,�passou�
a�ser�considerada�o�grande�livro�das�criaturas�
de�Deus.�Qualquer�texto�deveria�ter�o�seu�
signi�cado�explícito�por�qualquer�leitura�que�
recorresse�à�compreensão�existente�a�partir�
do�modelo�da�leitura�do�Livro�da�Natureza.�Era�
como�se�estivéssemos�a�transpor�a�concepção�
luterana�de�livre�interpretação�da�Bíblia�para�o�
acto�de�observar�a�Natureza�(Olson,�1998).�
digitais�seleccionados�para�esta�publicação,�
propomos�uma�re�exão�acerca�do�percurso�
que�nos�trouxe�a�este�lugar,�tornando�explí-
cito�que�é�todo�um�percurso�histórico�do�co-
nhecimento�cientí�co�que�nos�pode�melhor�
ajudar�a�compreender�a�actual�condição�epis-
temológica�da�linguagem�hipermediática.
2. Conhecimento e(m) hipermédia
2.1. Escrita, ciência e verdade: Re�exões
sobre a construção epistemológica da
linguagem hipermediática
A�trajectória�do�nascimento�da�compreensão�
moderna,�enquanto�fruto�de�uma�relação�acirra-
damente�dialógica�com�a�escrita,�deve�ser�pro-
curada�nos�séculos�XV-XVII,�que�parecem�conter�
o�cerne�fático�das�questões�que�aqui�tentamos�
colocar.�O�“círculo�hermenêutico”�apresenta-se�
como�a�melhor�referência��losó�ca�para�a�reve-
lação�de�tal�trajectória.�É�assim�que�entedemos�
Frye,�por�exemplo,�e�a�sua�leitura�das�fases�
de�evolução�da�linguagem,�que�muito�bem�
apontadas�por�Olson�lembram�as�preocupa-
ções�de�Vico�(v.�Gadamer,�1988).�Quando�Frye�
analisa�a�conjuntura�da�produção�e�da�recepção�
de�Homero,�destaca�o�facto�de�a�sua�lingua-
gem,�pelo�menos�para�nós,�contemporâneos�
deste�início�de�século�XXI,�ser�profundamente�
metafórica.�No�entanto,�salienta�o�autor,�não�era�
essa�a�experiência�que�a�sua�poesia�oferecia�no�
momento�da�sua�criação,�pois,�nela,�a�distinção�
moderna�entre�linguagem��gurada�e�literal�era�
praticamente�inexistente�(Frye,�1990).�Somente�
numa�fase�posterior�é�que�a�metáfora�se�trans-
formaria�numa��gura�de�linguagem.�
11Producao de conhecimento em meios digitais
de�séculos�com�a�escritura�(écriture)�(De�
Certeau,�1998).�A�verdade�é�que�esse�tipo�de�
compreensão�parece�não�só�ter�de�nido�a�
escrita�metodológica�como�o�caminho�mais�
�dedigno�do�conhecimento,�como,�até�mes-
mo,�a�única�forma�de�compreensão�con�ável,�
como�a�rmava�Bacon�(apud Olson, 1998,
p.179).�Na�contramão�da�linguagem�ordinária�
(antecipatio),�“experiência�bruta�do�cotidiano”,�
Bacon�propõe�a�interpretatio nature,�que�seria�
a�explicação�especializada�do�verdadeiro�ser�
da�Natureza.�No�tocante�à�invenção,�Bacon�
acirra�a�dicotomia�iluminista�entre�alegoria�e�
metodologia�escrita:�“Como�W.�Harvey,�Bacon�
via�a�descoberta�cientí�ca�como�a�leitura�
correta�do�Livro�da�Natureza.”�(Olson,�1998,�
p.180)�A�concepção�básica�em�Bacon�estaria�
no�acto�de�pensar�o�mundo�como�um�grande�
sistema�alfabético�para�ser�decifrado.�Assim,�
“livro�da�Natureza”,�“livro�de�Deus”,�“obra�divi-
na”�ou�“obra�natural”,�são�expressões�comuns�
na�Idade�Média,�como�lembra�o�historiador�
Jacques�Le�Go��(1987),�que�parecem�ter�sido�
incorporadas�pela�semântica�moderna�de�
leitura�dos�fenómenos�da�Natureza.�Mesmo�
Bacon�entrelaça�conceitos�como�“livro�da�
obra�divina”�e�da�“palavra�divina”.
A�este�nível,�interessa�lembrar�que�Walter�
Benjamin�explica�que�a�condenação�iluminis-
ta�da�metonímia�adamítica,�presente�no�acto�
de�identi�cação�de�cada�objecto�com�o�seu�
nome�ou�a�sua�imagem�—�e�que�colocava�no�
mesmo�patamar�a�degradação�do�objecto�
e�a�degradação�da�palavra�—,�signi�cou�o�
momento�inaugural�da�moderna�visão�de�
relacionar�palavras,�prioritariamente,�com�
Os�séculos�XVI�e�XVII�oferecem�uma�longa�
lista�de�temas�que�foram�aprofundados�e�que�
participaram�assiduamente�na�construção�
desta�concepção�do�“Livro�da�Natureza”.�René�
Descartes,�Paracelso,�Locke,�Harvey,�Berkeley,�
Hume,�Jerome�Bock,�Leonhard�Fuchs,�William�
Gilbert,�Johannes�Kepler,�Galileu�Galilei,�Isaac�
Newton,�entre�outros,�acreditavam�estar a ler
o�Livro�da�Natureza�escrito�por�Deus.�Aqui�
localiza-se�a�in�uência�da�tradição�da�leitura�
da�Bíblia:�“Podemos�dizer�que�Paracelso�lia�
o�Livro�da�Natureza�da�mesma�forma�como�
muitos�dos�seus�contemporâneos�(na�verda-
de�a�maioria�deles)�liam�o�Livro�da�Escritura.”
(Olson,�1998,�p.178)�Um�dos�contributos�mais�
interessantes�nessa�direcção�encontra-se�em�
Galileu�Galilei,�que�desenvolveu�a�possibi-
lidade�de�compreensão�das�propriedades�
espaciais�da�Natureza�pela�representação�
geométrica.�A�Natureza,�para�ele,�seria�um�
grande�sistema�matemático�que�precisa�de�
ser�decifrado.�No�caminho�da�valorização�
máxima�da�experimentação,�Galileu�inaugura�
uma�modernidade�que�entende�que�toda�a�
teoria,�todo�o�conceito,�devem�ser�testados�
por�um�método�rigorosamente�experimental:�
“A�estratégia�de�Galileu�consistia�em�utilizar�
as��propriedades�dedutivas�da�geometria�
para�derivar�predições�que,�havendo�possibi-
lidade,�seriam�con�rmadas�pelos�experimen-
tos.”�(Olson,�1998,�p.178)
Michel�De�Certeau�também�identi�ca�o�
caminho�da�in�uência�da�leitura�do�livro�da�
Natureza�nos�inícios�da�chamada�História�
Moderna,�como�a�maturidade�de�uma�tra-
jectória�do�exercício�semântico�de�centenas�
12 Rui Torres e Sergio Bairon
por�estabelecer�os�critérios�mais�con�áveis�
de�aproximação�com�a�realidade�(Foucault,�
1971,�p.34).��nesse�sentido�que�se�direcciona�
um�dos�grandes�contributos�de�Michel�Fou-
cault,�pois�através�de�obras�como�As palavras
e as coisas,�História da loucura,�História da se-
xualidade e�A ordem do discurso percebemos�
a�ascensão,�a�partir�do�século�XVII,�de�uma�
racionalidade�discursiva�que�assume�uma�
tarefa�essencialmente�contraditória:�por�um�
lado,�elege�para�si�a�responsabilidade-mor�
de�interpretação�da�realidade;�mas,�por�outro�
lado,�reduz�tal�responsabilidade�ao�controlo�
da�retórica�do�discurso,�enquanto�elemento�
primordial�da�sua�identidade:�“O�discurso�não�
é�simplesmente�o�que�manifesta�(ou�enco-
bre)�o�desejo;�é�também�o�que�é�o�objeto�do�
desejo;�(...)�não�é�simplesmente�aquilo�que�
traduz�as�lutas�ou�os�sistemas�de�dominação,�
mas�aquilo�pelo�qual�e�por�meio�do�qual�se�
luta,�aquele�poder�de�que�todos�querem�se�
assenhorear.”�(Foucault,�1971,�p.94)�
A�partir�deste�momento,�o�controlo�da�pro-
dução�discursiva,�bem�como�a�sua�selecção�
e�redistribuição,�apesar�de�ter�rompido�
com�o�relato�bíblico,�persiste�numa�relação�
de�cuidado�extremo�com�a�materialidade.�
Os�procedimentos�lógicos�que�surgem�do�
discurso�“têm�por�função�conjurar-lhe�os�po-
deres�e�os�perigos,�dirigir�seu�acontecimento�
aleatório,�livrá-lo�de�sua�pesada,�temível�
materialidade” (Foucault,�1971,�p.104).�A�
compreensão�e,�não,�com�os�objectos�do�
mundo3.�A�barroca�linguagem�de�fragmentar�
e�mutilar�o�sentido�tornou-se�trivial�e�con-
denada,�mesmo�tendo�criado�uma�das�artes�
mais�expressivas�da�nossa�história�ocidental�
(devemos�lembrar�que�a�arte�barroca,�até�
Wöl�in,�era�considerada�‘arte�decadente’).�
No�entanto,�a�reacção�iluminista�frente�à�ain-
da�considerada�desideração�barroca�foi�cruel:�
estabeleceram�a�convenção,�a�correcção�e�a�
propriedade�dos�direitos�de�autor.�
A�verdade�deixa�de�ser�a�revelação,�passan-
do�a�ser�antes�comprovação�metodológica�
(Foucault,�1988),�signi�cando�uma�vitória�da�
apologia�da�convenção.�Foucault�também�
identi�cou�tal�trajectória�em�obras�como�
As palavras e as coisas e�História da loucura,�
ao�apontar�que�somente�nos�Seiscentos
passou�a�existir�uma�de�nição�do�conceito�
de�representação�mais�próximo�da�moder-
nidade�(Foucault,�1988).�Ao�contrário�do�
intrincamento�medieval�entre�palavra�e�
coisa,�o�caminho�cienti�cista�de�agrado�nos�
Seiscentos passou�a�ver�representações�nos�
signos.�A�distância�entre�a�representação�e�os�
objectos�do�mundo,�a�partir�desse�momento,�
passou�a�depender�da�mediação�do�olhar�do�
observador.�A�emergente�lógica�iluminista�da�
interpretação�reconhece,�assim,�o�distancia-
mento�epistemológico�do�mundo,�ao�mesmo�
tempo�que�elege�a�linguagem�cientí�ca�
como�“nomeação�do�visível”,�responsável�
3 Ver a este propósito o texto de Benjamin, “Sur le langage en général et sur le langage des hommes”, escrito em 1916; e “La
tache du tratucteur”, de 1923, e que são reproduzidos em Benjamin (2000).
13Producao de conhecimento em meios digitais
nário,�De�Certeau�dá�o�nome�de�“polemologia�
do�‘fraco’”,�compreensão�que�teria�por�função�
não�esquecer�os�mecanismos�tácticos�presen-
tes�em�tais�discursos:�“ao�‘esquecer’�o�trabalho�
coletivo�no�qual�se�inscreve,�ao�isolar�de�sua�
gênese�histórica�o�objeto�de�seu�discurso,�um�
‘autor’�pratica�portanto�a�denegação�de�sua�
situação�real” (Foucault,�1989).�Desta�trajetó-
ria,�o�sujeito�da�escrita�pensante,�antítese�da�
“polemologia�do�fraco”,�sai�forti�cado:�dono�
da�ciência�e�da�autoria�da�escrita.
O�sujeito,�que�inaugura�um�tema,�a�sua�
experiência�originária�e�a�sua�importância�
como�mediador�universal,�tornou-se�assim�
o�grande�mentor�do�conceito�de�“verdade”,�
que�durante�o�Iluminismo�perdeu�quase�que�
totalmente�o�vínculo�com�as�questões�da�
materialidade,�tanto�no�nível�social�quanto�
no�artístico.�Criou-se�desse�modo�uma�rede�
de�interdições�que�revelava�a�necessidade�de�
submeter�todo�o�discurso�que�não�se�enqua-
drasse�na�potência�crítica�do�racionalismo�
metodológico,�às�raias�da�padronização�da�
“busca�pela�verdade”.�
Defendendo�uma�nova�forma�de�ler�a�Natureza�
e�a�Escritura,�o�sujeito�metodológico�aprimorou�
a�tendência�de�aceitar�como�evidente�o�que�
estava�disponível�aos�sentidos;�ou�seja,�tudo�
aquilo�que�se�encontrasse�revelado�no�texto�
e�na�Natureza�poderia�ser�sinestesicamente�
percebido�por�todos�os�que�fossem�cúmplices:�
“A�questão�é�que�o�método�para�ler�a�Escritura�
passou�a�ser�usado�para�a�leitura�de�tudo�o�
mais;�os�resultados�foram�o�protestantismo�e�a�
ciência�moderna.” (Olson,�1998,�p.192)
�nalidade�desse�discurso�estaria�em,�jogando�
com�“exclusões�e�limitações”,�apontar�os�
conteúdos�que�deveriam�ser�privilegiados�
nos�espaços�institucionais�resultantes�dessa�
nova�conjuntura.�O�quotidiano�foi�abando-
nado�quase�por�extremo�no�interior�deste�
processo.�Michel�De�Certeau,�trabalhando�
próximo�de�Foucault,�parece�perceber�o�âm-
bito�das�resistências�com�muita�precisão:�“(...)�
as�estratégias�apontam�para�as�resistências�
que�o�estabelecimento�de�um�lugar�oferece�
ao�gasto�do�tempo;�as�táticas�apontam�para�
uma�hábil�utilização�do�tempo,�das�ocasiões�
que�apresenta�e�também�dos�jogos�que�
introduz�nas�fundações�de�um�poder.”�(De�
Certeau,�1998)�
O�que�começou�a�entrar�em�jogo�no�cami-
nho�pós-iluminista�foi�exactamente�o�tema�
do�não�esquecimento�da�colectividade.�
Nos�aspectos�sociais,�políticos�e�até�mesmo�
éticos,�tais�questões�foram�profundamente�
desenvolvidas.�No�entanto,�no�que�tange�
ao�domínio�do�discurso,�principalmente�em�
suas�manifestações�culturais�e�quotidianas,�
o�esquecimento�da�colectividade�parece�ter�
sido�recalcado.�Foucault,�tanto�em�As Palavras
e as Coisas como�em�Vigiar e Punir,�desenvolve�
a�hipótese�da�existência�de�um�traço�unitário�
(uma�espécie�de�“tecnologia�do�poder”),�que�
se�presenti�cou�nas�premissas�das�ciências�
modernas-iluministas,�inclusive,�no�direito�
penal,�que�frequentemente�se�negou�a�
revelar�o�corpo�social�que�se�manifesta�pelas�
prácticas�cientí�cas�(Foucault,�1971,�p.67).�No�
caminho�da�lembrança�de�Foucault�a�esse�
mecanismo�táctico�de�diferenciação�do�ordi-
14 Rui Torres e Sergio Bairon
XVII,�na�contramão�do�que�fazia�um�Velás-
quez�em�Las niñas,�ressurge,�como�nunca�
dantes,�com�a�prepotência�da�pretensão�de�
que�só�podemos�seguir�os�nossos�sentidos�
se�esses�forem�dominados�e�nominados�por�
uma�lógica�que�se�manifeste�a�cada�passo�da�
compreensão.�É�o�caso�da�metáfora:�
A história da escrita é em parte o aprendizado da
construção de documentos que possam incorpo-
rar o sentido e servir-lhe de árbitros. Os textos só
podem ter essa função se há alguma indicação
clara de como devem ser interpretados: ‘para falar
precisamente’, ‘falando de um modo geral ...’ etc.,
se constituem expressão literal ou metafórica. Em
outras palavras, eles exigem um certo tratamento
explícito da força ilocucionária. (Gadamer, 1996)
Cabe�mais�uma�vez�lembrar�que�Aristóteles�
já�identi�cava�a�articulação�metafórica�como�
uma�espécie�de�mediação�entre�os�campos�
da�poética�e�da�retórica.�Apesar�de�tanto�a�
retórica�quanto�a�poética�se�utilizarem,�na�
visão�aristotélica,�da�metáfora,�o�reforço,�a�
partir�do�século�XVII,�é�dado�à�retórica�(Ga-
damer,�1996).�Na�contrapartida�da�tradição�
que�dissocia�verdade�de�metáfora,�Gadamer�
realça�que�só�quando�a�palavra�se��xa�no�seu�
uso�metafórico�é�que�perde�o�seu�carácter�
de�recepção�e�de�tranferência,�assumindo�
um�sentido�próprio.�Gadamer�lembra�que,�
embora�Platão��zesse�referência�ao�conceito�
de�semelhança,�o�que�já�estaria�a�caminho�
de�uma�de�nição�de�metáfora,�foi�só�com�
Aristóteles�que�se�criou�a�diferenciação�entre�
sentido�estrito�e�amplo.�Na�busca�do�conheci-
mento�lógico,�Aristóteles�vê�na�metáfora�uma�
A�escrita�metodológica�e�a�própria�lógica�ma-
temática�encontram-se�desta�forma�no�poder�
maior�de�representação�da�verdade.�Nesse�
sentido,�uma�representação�do�mundo,�ao�
contrário�do�que�já�nos�trouxe�a�interpre-
tação�de�Las niñas de�Velásquez,�poderia�
representar�sua�própria�verdade�(Foucault,�
1989;�Kant,�1986).�Desde�então,�no�interior�da�
escrita�cientí�ca,�raramente�objectividade�e�
escrita�se�separaram.�Tal�objectividade,�fruto�
do�desdobramento�de�várias�in�uências�e�
tradições,�delega�até�hoje�para�um�segundo�
plano�de�importância�as�“subjectividades”�
estéticas�que�são�cúmplices�no�processo�de�
produção�do�conhecimento�(Olson,�1998,�
p.189).�Entendendo�a�estética�como�a�ética�
da�existência�do�saber,�somos�levados�a�
acreditar�que�todo�o�pensamento�cientí�co,�
quando�posto�sensivelmente,�deve�tornar-se�
outra�coisa�sem�perder�o�seu�próprio�cami-
nho.�Parece�ser�tal�empreitada�que�Thomas�
Kuhn�procura�desenvolver�em�algumas�das�
suas�obras.�Ao�analisar�a�descoberta�do�que�
intitula�de�“anomalia”,�o�historiador�da�ciência�
veri�ca�que�o�investigador,�mais�não�tem�
do�que�aquilo�que�detém�o�domínio�do�seu�
“objeto�de�pesquisa”�(Kuhn,�1989).�No�seu�
texto�A tensão essencial,�Kuhn�desenvolve�
esta�questão�teórica�nas�suas�relações�com�o�
acto�de�produzir�pensamento�cientí�co,�até�
mesmo�enquanto�expressividade�de�uma�
determinada�escrita�(Kuhn,�1989,�p.203).�
No�entanto,�apesar�de�tais�questões�terem�
sido�apontadas�e�analisadas�durante�todo�o�
século�XX,�ao�que�tudo�indica�ainda�estamos�
longe�de�nos�livrar�de�tais�referências.�Essa�
nova�maneira�de�ler�inaugurada�no�século�
15Producao de conhecimento em meios digitais
Portanto,�uma�nova�visão�de�mundo�provoca�
o�desenvolvimento�e�o�aprimoramento�de�no-
vas�tecnologias,�cujo�uso,�por�sua�vez,�depen-
de�de�novos�desenvolvimentos�conceituais.�
2.2. Linguagem hipermediática como
metodologia
As�possibilidades�de�a�produção�do�conheci-
mento�cientí�co�ocorrer�através�da�hipermédia�
traz-nos�um�número�de�elementos�verdadeira-
mente�novos,�no�que�concerne�ao�encontro�do�
modo�de�ser�da�comunicação�com�o�desenvol-
vimento�das�tecnologias�digitais.�
O�que�entendemos�aqui�por�técnica�como�
horizonte�sustenta-se�na�criação�e�produ-
ção,�nos�média�digitais,�de�um�mundo�de�
expressividades�interactivas�que,�de�alguma�
forma,�contemplem�o�universo�das�mani-
festações�reticulares-conceituais�através�
da�produção�do�conhecimento�cientí�co.�
Metáfora,�metonímia,�repetição,�jogo,�lingua-
gem,�quotidianidade,�horizonte,�espumas,�
mundo,�inconsciente�e�imaginário�são�alguns�
dos�conceitos,�devidamente�situados,�que�
acompanham�essa�empreitada.�No�entanto,�
por�um�lado,�não�podemos�simplesmente�
seguir�as�orientações�de�McLuhan,�pois�
para�compreender�as�extensões�humanas�
devemos�interessar-nos,�primordialmente,�
por�conhecer�as�características�básicas�do�
modo�de�ser�da�compreensão.�De�uma�certa�
forma,�o�desa�o�que�nos�interstícios�das�
tecnologias�digitais�se�está�adesenvolver,�
apela�à�mescla�de�mundos�de�teorias,�que�se�
relacionam�com�princípios�revolucionários�
inovadores�como�a�navegação�não-linear�e,�
expressão�do�perigo�da�dispersão�da�lógica�
linear.�Comentando�um��lósofo�anterior,�que�
dizia�ser�a�água�dos�oceanos�a�transpiração�
da�Terra,�Aristóteles�diz�ter�tal�a�rmação�
somente�função�metafórica�(poética),�mas�
como�instrumento�para�o�conhecimento�da�
lógica�da�Natureza�de�nada�adianta.�Como�
vimos,�essa�concepção�emergiu�com�toda�a�
força�do�mundo�moderno,�durante�o�século�
XVII,�procurando�diferenciar,�com�a�maior�
clareza�possível,�o�conhecimento�que�se�
torna�presente�num�texto�daquele�conheci-
mento�que�simplesmente�pode�ser�“alucina-
do”�pela�leitura.�Por�outro�lado,�não�podemos�
esquecer�que�foi�exactamente�a�propagação�
de�mapas,�livros�e�esquemas�astronómicos�
que�tornou�possível�a�grande�expansão�do�
conhecimento�no�Ocidente�durante�os�sécu-
los�XVI�e�XVII.��aquilo�a�que��Kuhn�chama�de�
“revolução copernicana” (Kuhn,�1982,�p.100),�
Koyré�de�“passagem do mundo fechado ao
universo in�nito” (Koyré,�1978),�Popper�de�
“mundo três” (Popper,�1975),�Le�Go��de�
“tempo do mercador” (Le�Go�,�1983),�Braudel�
de�“geogra�a do imaginário”�(Braudel,�1989).�
Como�explica�Olson:�
A ‘visão organizada’ que gerou as viagens de
descobrimentos foi uma concepção teórica do
mundo conforme é representado pelos mapas. Os
mapas que tanto podiam atender as necessidades
da navegação como fornecer uma visão compre-
ensível do planeta constituíam os exemplos mais
conspícuos da tentativa de pôr o mundo no papel
e de pensar sobre ele em termos de tal representa-
ção. (Olson, 1998, p.220)
16 Rui Torres e Sergio Bairon
mesma�forma�com�que�pode�produzir�outras�
coisas�que�estão�no�mundo.�
Devemos�estar�atentos�a�esta�delimitação�do�
saber�técnico,�uma�vez�que�o�objecto�desse�
saber�não�pode�ser�compreendido�somente�
a�partir�de�si�mesmo.�O�saber�técnico�nunca�
poderá�ser�encarado�como�algo�que,�generi-
camente,�sempre�é�como�é;�mas,�antes,�como�
um�saber�que�sempre�poderá�ser�visto�de�
maneira�totalmente�diferente.�A�tecnologia�
digital�que�sustenta�a�linguagem�hiperme-
diática,�como�comunicação�integrada,�deve�
desmanchar�em�vista�da�relação�dialética�
entre�a�necessidade�de�sua�aplicação�e�a�
condição�sine qua non de�existência�do�con-
ceitual�que�a�direcciona.�Nesse�contexto,�uso�
e�conceito�encontram-se.�Todo�aquele�que�
possui�um�projecto�técnico-conceitual�não�
está�livre�de�se�adaptar�a�situações�absolu-
tamente�circunstanciais�que�o�obrigam,�fre-
quentemente,�a�reavaliar�o�seu�projecto.�Se�
quando�construímos�um�texto�agimos�dessa�
forma,�imagine-se�a�importância�da�relativi-
zação�da�técnica�no�âmbito�da�criação�hiper-
mediática.�Téchne�(técnica)�é,�portanto,�obra�
(Gadamer,�1988),�criação,�produção,�um�saber�
que�dirige�o�fazer�algo.��nesse�sentido�que�
na�hipermédia�como�comunicação�integrada�
estamos�em�frente�a�um�obrar�artesanal.�A�
união�da�téchne com�a�arte�não�se�evidencia�
fundamentalmente,�a�produção�conceitual�
de�ambientes�nos�quais�devemos�imergir�e�
recriar�sentidos�para�a�própria�pesquisa4.�
Um�resgate�da�crítica�ao�conceito�de�técnica�
é�importantíssimo�para�re�ectirmos�sobre�
a�possibilidade�do�encontro�entre�a�própria�
técnica�e�a�reticularidade�da�compreensão�
cientí�ca.�Sócrates�e�Platão�aplicaram�o�
conceito�de�téchne às�acções�humanas,�no�
sentido�de�situá-las�no�âmbito�político.�Tais�
�lósofos�já�apontaram�a�existência�de�uma�
grande�diferença�entre�a�téchne que�se�ensina�
e�a�que�se�aprende�empiricamente.�Aristóte-
les�a�rmava�que�a�téchne ama�a�tykhe,�e�que�
a�tykhe ama�a�téchne.�Gadamer�lembra-nos�
que�essa�visão�evidencia,�não�somente�que�
o�êxito�da�relação�com�a�técnica�geralmente�
acompanha�aquele�que�aprende�o�seu�ofício,�
mas�também�que�o�que�se�aprende�a priori
com�a�utilização�e�o�desenvolvimento�da�
téchne,�é�uma�soberana�superioridade�sobre�
a�coisa,�que�deve�representar�um�modelo�
para�todo�o�saber�moral�(Gadamer,�1988).�
No�entanto,�apesar�de�haver�uma�correspon-
dência�entre�saber�moral�e�téchne,�esses�co-
nhecimentos�não�são�a�mesma�coisa.�Numa�
inspiração�psicanalítica,�Gadamer�lembra-nos�
que�o�homem�não�dispõe�de�si�mesmo,�como�
o�artesão�dispõe�da�matéria,�não�podendo�
por�isso�produzir�a�sua�compreensão�da�
4 Encontramos o protótipo da imersão tecnológica nas concepções de realidade virtual: “A imagem na qual somos imersos é,
portanto, uma imagem de síntese, e o que está em jogo, primeiramente, é a síntese da imagem. Abandonemos, por instantes,
o capacete de visão para compreender o mais importante da síntese da imagem por computador” (Cadoz, 1997, p.12). O
conceito de imersão está actualizado nas obras de Mark Hansen (2000 e 2004).
17Producao de conhecimento em meios digitais
pelo�método�cientí�co�cartesiano-iluminista�
da�linearidade.�Para�Heidegger,�podemos�ver�
no�quadro�de�Van�Gogh�Os sapatos todas�as�
características�acima�anunciadas.�Ou�seja,�
o�cóisico�da�coisa,�o�útil�do�útil�e�a�obra�da�
obra.:�“A�obra�de�arte�nos�fez�saber�o�que�é�
em�verdade�o�sapato.” (Heidegger,�1952,�p.89)�
A�experiência�estética�tem�o�poder�de�revelar�
a�aletheia,�a�desocultação�do�ser.�Na�busca�
da�realidade�da�experiência�estética,�e�no�seu�
encontro�com�o�seu�elemento�cóisico,�inver-
tendo�o�caminho�clássico�de�interpretação�
da�arte,�devemos�ir�da�obra�à�coisa.�Nosso�
compartilhamento�ontológico�com�a�obra�de�
arte�está�situado�essencialmente�no�facto�de�
pertencermos�ao�mesmo�mundo5.�
Devemos�evitar�aquela�visão�reducionista�
da�técnica�que,�por�causa�da�instrumen-
talização�do�objecto�que�está�no�mundo,�
acaba�por�identi�car�um�sentido�em�si�para�
toda�a�acção�produtiva.�O�cálculo,�a�escrita,�
a�medição,�en�m�toda�a�acção�“puramente�
técnica”,�nunca�está�no�mundo�por�acaso�ou�
por�obviedade.�Nenhuma�técnica�é�natural-
mente�limitante�ou�limitada,�pois�sempre�se�
encontra�no�interior�de�um�contexto,�assim�
como�os�objectos,�que�nunca�estão�no�mun-
do�por�acaso.�
No�meio�cientí�co,�nunca�devemos�deixar�
de�nos�envolver�com�uma�questão�central�
indicada�por�Heidegger:�o�que�é�a�verdade?�
mais�pela�contemplação,�mas,�sim,�pelo�seu�
uso.�Daí�termos�a�possibilidade�de,�no�interior�
da�margem�digital,�traçarmos�um�caminho�
de�exploração�da�hipermédia�que�parta�da�
compreensão�que�a�experiência�com�a�arte�
oferece.�Aqui,�Heidegger,�para�quem�qual-
quer�compreensão�sobre�a�essência�da�obra�
de�arte�deve�começar�pelo�questionamento�
do�próprio�da�obra,�tem�algo�a�dizer:�
A pedra está na arquitetura. A madeira na obra ta-
lhada. O colorido no quadro. A voz na obra falada.
O som está na música. O cóisico está tão imóvel
na obra de arte que deveríamos dizer o contrário:
a arquitetura está na pedra. A obra talhada está
na madeira. O quadro está na cor. A obra musical
está no som. Alguém responderá que isso é óbvio.
Certo. Mas o que é esse cóisico óbvio que há na
obra de arte? (Heidegger, 1952, p.89)
O�Heidegger�de�Der Ursprung des Kunstwerkes
apresenta-nos�a�ideia�de�Dinghaft (o�que�tem�
de�coisa�a�coisa),�que�optamos�traduzir�aqui�
por�“cóisico”.�O�cóisico,�na�trajetória�de�Heide-
gger,�segue�a�tradição�que�busca�questionar�
a�soberania�do�esquema�forma/conteúdo�
e�da�utilidade�da�coisa�ou�da�obra�de�arte�
enquanto�ilustração.�Tais�concepções�são�co-
locadas�em�causa,�ao�resgatarmos�a�pergunta�
sobre�o�que�há�de�cóisico�na�coisa,�de�útil�no�
útil�e�o�que�tem�de�obra�a�obra,�ou�de�técnica�
a�técnica.�Essa�seria�uma�óptima�forma�de�co-
meçarmos�a�suspender�os�prejuízos�viciados�
5 O conceito de mundo como sendo não-linear, reticular e profundamente interactivo.
18 Rui Torres e Sergio Bairon
encontrar�hoje�uma�vívida�recuperação�do�
elaborado�pelas�técnicas�dentro�da�pergunta:�
em�que�sentido�e�de�que�modo�se�pode�recu-
perar�o�saber�elaborado�por�elas?�Há�sentido�
nisso�ou�tal�tentativa�se�coloca�como�algo�
ilógico?�Trata-se�de�um�questionamento�que�
se�abre�como�uma�necessidade�face�a�todo�
um�universo�digital�em�questão.�
Contudo,�a�pretensão�da�técnica�tem�sido�de�
superar�o�aleatório�da�experiência�subjectiva�
mediante�um�conhecimento�objectivo,�bem�
como�superar�a�linguagem�do�simbolismo�
equívoco�pela�univocidade�do�conceito�
(Lacan,�1995,�parágrafo�101).�Nessa�pretensão�
coloca-se�uma�outra�pergunta:�existe�dentro�
da�técnica�um�limite�do�objectivável�baseado�
na�essência�do�juízo�e�da�verdade�enunciativa?�
O�ideal�de�veri�cabilidade�que�experimenta-
mos�encontrar�no�seio�da�cogitação�cientí�ca�
mostra-nos�que�todos�aspiram�a�um�certo�
grau�de�veri�cabilidade�das�suas�opiniões,�
proposições,�etc.�Porém,�o�certo�é�que�esse�
mesmo�ideal�muito�poucas�vezes�pode�ser�
alcançado,�ainda�que�se�realize�um�grande�
esforço,�no�sentido�de�ampliar�a�ideia�e�a�prá-
tica�da�precisão.�Mas�o�que�isso�nos�mostra�é�
que�a�ideia�vigente�de�precisão,�responsável�
por�parte�do�que�se�pode�compreender�
como�veri�cabilidade�hoje,�deve�ser�pensada�
diferentemente�nas�ciências�empíricas�e�nas�
ciências�humanas.�Muitas�vezes,�a�leitura�de�
Desde�os�gregos,�existe�uma�conexão�muito�
estreita�entre�verdade�e�conhecimento.��
O�avanço�no�conhecimento�supõe�no�seu�
horizonte�uma�verdade.�No�contexto�da�
linguagem�hipermediática�como�produção�
de�conhecimento,�essa�questão�guarda�uma�
ligação�com�aquilo�que�pode�ser�o�mais�
importante�para�todos�nós:�o�nexo�entre�
ciência,�arte�e�verdade�(Gadamer,�1990).�
Heidegger�lembra�que�o�termo�que�os�
gregos�designaram�para�verdade�é�aletheia,�
o�que�signi�ca�que�o�ser�da�verdade�deve�
ser�arrebatado�do�seu�estado�de�ocultação�e�
encobrimento.�A�re�exão�do��lósofo�indica�
a�eterna�cumplicidade�entre�ocultação�e�
encobrimento.�O�encobrimento�pertence�
a�toda�a�acção�humana,�pois�a�linguagem�
não�expressa�somente�a�verdade,�mas�faz�
com�que�esta�também�se�de�na�na��cção,�
na�mentira�e�no�engano:�“Existe,�pois,�uma�
relação�originária�entre�o�ser�verdadeiro�e�o�
discurso�verdadeiro.�A�des-ocultação�[que�
é�revelação]�do�ente�se�produz�na�sinceri-
dade�da�linguagem”6.�Dado�que�verdade�é�
desocultação�-�tirar�o�que�nos�impede�de�ver�
algo�-�esse�discurso�mostrativo�tende�a�deixar�
que�se�manifeste�livremente�aquilo�que�foi�
des-ocultado�(o�ente).�
A��loso�a�não�se�pode�colocar�na�posição�de�
recusa�de�enfrentar�os�problemas�coloca-
dos�pela�técnica.�Pelo�contrário,�podemos�
6 Ver Aronowitz (1998). Há uma bibliografia significativa sobre essas questões, tal como: Heller (1991), Herkenhoff (1999),
Izquierdo (1999), Eulate (1998), Pereira (1998), Ruivo (1997), Santos (1993), Strosberg (1999), Williams (1994).
19Producao de conhecimento em meios digitais
origem�na�especulação�de�uma�mente��losó-
�ca�(como,�por�exemplo,�a�de�Frege,�Russell�
e�Gödel),�que�tinha�o�coração�no�platonismo.�
Nesse�contexto,�a�técnica�jamais�pode�ser�
encarada�de�forma�aleatória,�em�si.�
Dessa�forma,�neste�contexto��losó�co,�no�
âmbito�das�possibilidades�dos�média�digi-
tais,�o�leitor/utilizador,�longe�de�se�prender�
na�dimensão�de�uma�suposta�apreensão�de�
uma�verdade�qualquer,�situa-se�muito�mais�
no�interior�da�pergunta�do�que�da�resposta.�
A�angústia�da�pergunta,�pela�sua�incessante�
localização,�causada�pela�possibilidade�radical�
da�interactividade,�coloca-o�diante�de�uma�
rede�de�possibilidades,�que�nada�mais�pode�
ser�do�que�a�abertura�de�caminhos�para�novas�
perguntas�(v.�Darley,�2000).�Fracasso�e�sucesso�
da�interpretação�são�consequências�ao�mesmo�
tempo�possíveis�e,�de�certa�forma,�esperadas.�
Dessa�maneira,�a�linguagem,�longe�de�querer�
construir�um�aspirador�de�pó�das�ruínas�-�con-
ceitos�não�suturados�-�é�compreendida�aqui�
como�o�elemento�de�síntese�dos�horizontes�do�
passado�e�do�futuro.�A�linguagem�na�rede�di-
gital�possui�sua�própria�historicidade;�é�o�topos
em�que�a�historicidade�se�manifesta.�Esse�é�o�
sentido�do�termo�cronotopos cujo�fundamento�
se�estabelece�no�que�poderíamos�chamar�de�
topo�loso�a�(v.�Joyce,�1998;�Petry,�2006).
Ou�seja,�resta�a�pergunta�como�a�última�forma�
lógica.�Não�pode�existir�nenhum�enunciado�
um�livro,�no�caminho�da�investigação�de�um�
�lósofo,�produz�muito�mais�do�que�todas�
as�investidas�anteriores.�Trata-se�de�uma�
diferença�entre�o�conhecimento�da�verdade�e�
a�enunciabilidade�possível�que�não�pode�ser�
relacionada�biunivocamente�com�a�veri�-
cabilidade�dos�enunciados.�Muitas�das�conse-
quências�da�lógica�moderna�da�Matemática,�
como,�por�exemplo,�o�teorema�de�Gödel,�têm�
a�sua�raiz�numa�cogitação��losó�ca�do�génio,�
e�não�na�busca�de�uma�veri�cabilidade�radi-
cal�e�empírica�das�proposições�lógicas�que�
analisa.�Trata-se,�pois,�de�colocar�a�consistên-
cia�e�a�veri�cabilidade�como�questões�que�
nos�remetam�a�perguntas,�alcançando-se�
assim�formulações�paradoxais7.�Sob�o�solo�de�
um�pensamento�fértil�pode��orescer�a�ideia�
de�uma�ciência�fundamental�que�combine�
elementos�da�matemática,�da�metodologia�
cientí�ca�e�das�artes.�Se,�por�um�lado,�talvez�
seja�essa�uma�das�bases�que�conduz�Badiou�à�
sua�re�exão�acerca�das�condições�da��loso�a,�
por�outro�lado,�de�uma�maneira�estética�e�ao�
mesmo�tempo�prática,�é�nesse�campo�de�in-
terstícios�(Gadamer,�1988,�p.53)�que�devemos�
explorar�os�média�digitais.
Se,�por�um�lado,�os�resultados�das�investi-
gações�nas�ciências�humanas��caram�muito�
aquém�dos�encontrados�no�ideal�quantitativo�
de�veri�cabilidade,�por�outro�lado,�podemos�
aceitar�que�muitos�dos�avanços�signi�cativos�
nas�áreas�da�cibernética�encontraram�a�sua�
7 Questão muito bem analisada por Casti (1997).
20 Rui Torres e Sergio Bairon
conceito�de�verdade�existencial�[fenomeno-
lógica].�É�o�que�se�pode�encaminhar�a�partir�
da�pergunta�que�faz�Heidegger�sobre�a�es-
sência�da�verdade,�que�transcende�o�âmbito�
da�subjectividade�e,�logo,�da�modernidade,�
na�qual�se�funda�a�técnica�que�pretende�
apresentar-se�por�si.�Trata-se�do�esquecimen-
to�de�que�a�historicidade�do�ser�segue�pre-
sente�quando�o�estar-aí�se�expressa�a�partir�
da�sua�incompletude�(v.�Bairon,�2000).�
O�encontro�da�linguagem�hipermidiática�
com�o�domínio�da�técnica�deve�dar-se�na�jus-
taposição�da�incompletude�do�mundo�com�
toda�a�compreensão.�A�abertura�de�horizon-
tes�grá�cos�que,�sobretudo,�são�conceitos,�
deve�libertar-nos�da�tradição�linear�da�escrita,�
que�nos�força�à�próxima�página.�O�problema�
está�localizado�na�existência�do�texto�escrito?�
Sob�hipótese�alguma.�Localiza-se,�
sim,�na�impossibilidade�de�encontrarmos�
outro�caminho�naquele�exacto�momento.�A�
�nitude�do�vídeo�extrapola-se�por�meio,�ou�
da�multiplicação�de��nitudes�ou�pela�ruptura�
de�nitiva�com�a�concepção.�Perdemos�por�
completo�a��nitude?�Perdemos�ontologi-
camente�o��m?�Onde�radicaria,�então,�essa�
�nitude?�A�linguagem�é�a�questão:�a�historici-
dade�própria�de�todas�as�nossas�proposições�
(linguagem)�radica�na��nitude�do�nosso�ser.�
O�horizonte�situacional�e�a�função�interpela-
tiva�dos�enunciados�mostram-nos�que�eles�
(enunciados)�pertencem�ao�conjunto�da�exis-
tência�histórica.�Daí�o�perder-se�num�sistema�
hipermediático�não�estar�à�mercê�da�mera�e�
simples�actualização�histórica;�muito�menos�
é�a�compreensão�mera�reconstrução�de�
que�possa�ser�entendido�unicamente�pelo�
conteúdo�que�propõe,�se�quisermos�compre-
endê-lo�na�sua�verdade.�E�aquilo�sobre�o�qual�
não�se�pode�falar�recai�sobre�a�momentanei-
dade�histórica�de�um�dasein.�O�futuro�do�dizer�
constrói-se�na�perspectiva�de�um�caminho.�É�
assim�que�a�pergunta�encaminha�a�sua�força�
para�o�futuro�da�compreensão.�Cada�enuncia-
do�provoca�reacções�que�jamais�são�especí�-
cas�e�possui�pressupostos�que�ele�não�enuncia�
ou�não�pode�enunciar:�ao�enunciar�algo,�algo�
tem�de�deixar�de�ser�enunciado.�Somente�a�
expressividade�estética�desses�pressupostos�
pode�avaliar�realmente�a�verdade�de�um�
enunciado:�sempre�dizendo�para�mais�além�e�
também�para�mais�aquém�do�nosso�próprio�
dizer.�Dessa�forma,�não�é�o�juízo�que�possui�
a�prioridade�na�lógica,�mas�a�pergunta.�A�
pergunta�resta,�então,�como�a�última�forma�
lógica�de�toda�e�qualquer�motivação�de�
um�enunciado.�O�enunciado�passa�a��gurar�
como�uma�forma�aproximada,�uma�tentativa�
de�resposta�à�pergunta�que�revoluciona�a�si�
própria.�A�ciência�possui�o�carácter�decisivo�de�
trabalhar�na�busca�de�ver�as�perguntas:
Porém ver as perguntas é poder abrir o que domina
todo nosso pensar e conhecer como uma capa
fechada e opaca de prejuízos assimilados. O que
constitui o investigador como tal é a capacidade de
abertura para ver novas perguntas e possibilitar no-
vas respostas. Um enunciado encontra seu horizonte
de sentido na situação interrogativa, aquela da qual
procede (Gadamer, 1998).
Perante�o�conceito�de�verdade�cientí�ca,�
Gadamer�contrapõe,�na�raiz�de�Heidegger,�o�
21Producao de conhecimento em meios digitais
ser�a�obra�de�arte�o�caminho�mais�propício�à�
verdade.�No�resgate�simbólico-sacramental�
das�coisas,�a�arte�capta�a�luminosidade�do�
ser�que�pode�revelar-se�poeticamente�como�
verdade.�Arte�e�verdade�são�inseparáveis�
(Gadamer,�1988,�p.60).�A�compreensão�que�a�
obra�de�arte�possibilita�não�está�restringida�
ao�estabelecimento�de�uma�distinção�estéti-
ca,�mas�às�manifestações�de�seu�mundo�e,�é�
evidente,�aquele�mundo�que�pode�ser�com-
preendido�a�partir�da�nossa�historicidade.�
Encontramos�na�técnica,�como�horizonte,�a�
maneira�de�tratar�a�compreensão�como�um�
ambiente�de�manifestação�à�pergunta.�Não�
se�trata�de�buscarmos�generalizações�de�sen-
tido�histórico.�A�totalidade�de�sentido�defen-
dida�aqui�é�a�que�está�presente,�explícita�ou�
implicitamente,�em�toda�a�compreensão,�mas�
jamais�aquela�que�se�apresenta�num�possível�
sentido�de�totalidade�histórica.�
Passado,�presente�e�futuro�estão�delimita-
dos�pela�tradição�histórica,�que,�por�sua�vez,�
age�como�o�acontecer�da�expressividade�
do�próprio�sujeito�que�busca�conhecer�o�
mundo.�A�evidência�da�pergunta,�portanto,�
não�pretende�nenhum�senhorio�sobre�o�ser,�
mas�denota�que�a�experiência�do�ser�está�jus-
tamente�onde�há�possibilidade�histórica�de�
compreensão.�Inserida�nesse�último�contexto,�
a�historicidade�linear�não�pode�pretender,�
em�momento�algum,�neste�início�de�século,�
instaurar�o�estudo�de�um�fenómeno�concreto�
como�fundamento�de�regra�geral.�A�histori-
cidade�da�não-linearidade�remete�sempre�
para�a�instabilidade�da�tradição,�presente�nas�
sentido�ou,�mesmo,�interpretação�consciente�
de�alguma�produção�inconsciente.�O�que�
parece�às�vezes�tão�simples�funde-se�com�o�
que�nos�lança�directamente�no�caminho�do�
alhures�(Gadamer,�1988,�p.59).�O�primado�
da�pergunta�frente�a�qualquer�proposição�
signi�ca�que�cada�pergunta�que�é�compre-
endida�torna�a�ressurgir.�Jamais�a�resposta�à�
pergunta�garantirá�o�corolário�da�consistên-
cia�última:�as�soluções�de�nitivas�abrem,�por�
sua�vez,�novas�frentes�de�problemas�a�serem�
investigados.�A�linguagem�possui�a�sua�pró-
pria�historicidade,�pois�a�sua�actualização�não�
é�monolítica,�assim�como�qualquer�resgate�
do�sentido�da�sua�compreeensão�jamais�será�
uma�simples�reedição.
A�palavra�que�não�é�dirigida�ao�Outro/outro�
é�vazia.�Toda�palavra�é�vector�de�direcção�de�
um�outro�(#)�para�um�Outro�(A)�em�última�
instância.�Trata-se�da�linguagem�enquanto�
linguagem.�Somente�nesse�círculo�da�lingua-
gem�é�que�a�verdade�pode�ter�lugar,�porque�
é�ele�que�roça�o�real,�sempre�construindo�
para�mais�além�no�futuro�a�verdade�possível�
que�não�pode�se�pôr�como�ponto��nal�(sem-
pre�laçada�ao�seu�in�nitesimal).�
A�construção�grá�ca�para�a�acção�de�uma�
técnica�como�horizonte�é�o�grande�recurso�
imagético�à�imersão�de�toda�a�pergunta.�Esse�
horizonte�marca-nos�como�presença�na��ni-
tude�do�quotidiano.�Portanto,�a�fundamental�
relação�da�técnica�na�estrutura�hipermedi-
ática�é�com�a�dimensão�dos�horizontes�que�
se�nos�apresentam.��neste�sentido�que�situ-
amos�a�técnica�como�horizonte�que�delata�
22 Rui Torres e Sergio Bairon
que�as�manifestações�de�um�grande�sistema�
hipermediático�trarão�novas�respostas�(v.�
Bairon,�2000),�da�mesma�forma�que�espera-
mos�poder�responder,�com�esta�publicação,�a�
uma�análise�dos�sistemas�semióticos�em�que�
estamos�cada�vez�mais�implicados.
3. Cibertextualidades:
Conhecimento e(m) Hipermédia
Atendendo�ao�questionamento�histórico�
acima�proposto,�torna-se�agora�necessário�
enquadrar�os�conteúdos�desta�revista,�a�partir�
do�modo�como�eles�traduzem�perspectivas�
críticas�acerca�da�utilização�de�hipermédia�em�
literatura,�na�comunicação�e�na�cultura,�dando�
dessa�forma�corpo�fundamentado�às�necessá-
rias�aproximações�teórico-críticas�da�produção�
do�conhecimento�nos�novos�meios�digitais.
A�primeira�parte�da�secção�“Ensaios”�da�
revista�dedica-se�ao�estudo�do�estatuto�da�
literatura�em�plataformas�hipermédia,�por�
ser�este�o�nível�da�articulação�e�da�expres-
são�do�discurso�que�mais�profundamente�
tem�envolvido�questões�de�subjectividade�
face�à�produção�de�conhecimento.�O�texto�
inaugural,�da�autoria�de�Débora�Silva,�aborda�
as�possibilidades�de�transformação�do�verbo�
em�pixel�atravás�de�uma�análise�das�altera-
ções�do�poético�em�hipermédia.�Partindo�de�
análises�de�trabalhos�de�Arnaldo�Antunes,�a�
autora�avalia�a�função�da�leitura�dentro�dos�
tentativas�de�compreender�todo�o�processo�
de�comunicação,�ou�seja,�de�dever�sempre�
remeter�à�sua�própria�negação.�Portanto,�não�
devemos�tentar�uma�ampliação�das�gene-
ralizações,�no�escopo�de�se�conhecer�as�leis�
cientí�cas�que�podem�explicar�os�caminhos�
de�um�pensamento�linear;�mas�procuremos,�
num�primeiro�momento,�valorizar�todas�as�
descrições�narrativas�que�se�apresentem�
descomprometidas�com�a�busca�da�verdade�
da�lei�iluminista8.�Gadamer�faz�uma�pergunta�
que�sintetiza�as�nossas�preocupações:�“Que�
classe�de�conhecimento�é�essa�que�com-
preende�que�algo�seja�como�é�justamente�
porque�assim�já�vem�sendo?”�Só�pode�ser�
um�tipo�de�conhecimento�que�deve�partir,�
prioritariamente,�do�ocultamento�de�seu�
próprio�ser,�responderíamos.�É�exactamente�
o�que�ocorre�quando�estamos�localizados�no�
interior�do�pensamento�da�escrita�metodoló-
gica,�a�partir�do�momento�em�que�passamos�
a�eleger�como�“subjectivo”�todo�o�conheci-
mento�que�não�seja�produzido�pelo�método�
por�ele�empregado.�Mas�como,�ao�mesmo�
tempo,�manter-se�aberto�ao�outro�e�a�pontos�
de�vista�diversos�e�direccionar-se�por�meio�da�
valorização�do�próprio�horizonte?�Como�po-
deríamos,�sem�romper�de�nitivamente�com�a�
re�exão,�valorizar�os�tópicos�“subjectivos”�que�
tanto�temos�esquecido?�Como�evitar�nessa�
empreitada�que�passemos�a�julgar�o�geral�ex-
clusivamente�pelas�nossas�particularidades?�
Para�essas�velhas�perguntas,�acreditamos�
8 Não há compreensão que não seja definida pelo o que já é nunca dado. Especificamente quanto ao mundo digital, ver Sicko
(1999).
23Producao de conhecimento em meios digitais
A�terminar�a�primeira�parte�desta�secção,��
Fabiano�Correa�da�Silva�propõe�estratégias�
para�a�educação�e�para�a�leitura�em�hiper-
média,�apontando�alguns�desa�os�metodo-
lógicos�colocados�a�professores�e�alunos�em�
face�das�novas�tecnologias�da�informação�
e�da�comunicação.�O�autor�conclui�que�a�
função�do�educador�sai,�com�estas�mudan-
ças,�fortalecido,�rea�rmando�o�seu�lugar�de�
mediador�do�conhecimento�numa�sociedade�
em�profunda�transição.
A�segunda�parte�da�secção�Ensaios�é�dedi-
cada�a�estudos�de�comunicação,�abrindo�
com�um�texto�de�David�Parra�Valcarce�sobre�
aquilo�que�vem�apelidando�de�“zoon�tec-
nologi.com”,�entidade�emergente�na�actual�
ciberestrutura�da�informação.�A�partir�de�
uma�revisão�histórica�das�mudanças�visíveis�
nos�padrões�da�aprendizagem,�comenta�a�
transformação�da�informação�e�da�comuni-
cação,�vertendo�numa�análise�detalhada�o�
modo�como�a�evolução�do�ciberjornalismo�
representa�um�caso�de�transformação�e�
adaptação�rápida�e�e�caz�aos�novos�meios.
Em�diálogo�com�artigos�publicados�anterior-
mente�nesta�Revista�(v.�Barbosa,�2006),�Luís�
Carlos�Petry�considera�os�aspectos�quânticos�
da�imagem�cibernética,�através�daquilo�que�
nomeia�de�“im@gem�[que]�pensa”.�Indagan-
do�acerca�dos�fundamentos�do�estatuto�da�
imagem�de�síntese�no�ciberespaço,�Petry�
encara�a�imagem�como�conceito,�sustentan-
do�os�seus�argumentos�na�fenomenologia�
e�traduzindo-os�em�análises�concretas�de�
produções�digitais�topo�losó�cas.
novos�espaços�da�escrita�digital,�con�gu-
rando�um�modelo�de�avaliação�da�palavra-
imagem�no�ciberespaço.�
Em�“Flash�script�poex:�A�recodi�cação�digital�
do�poema�experimental”,�Manuel�Portela�
analisa�as�releituras�digitais�dos�poemas�
experimentais�contidas�no�arquivo�digital�
PO-EX: Poesia Experimental Portuguesa -
Cadernos e Catálogos�(projecto�desenvolvido�
pelo�CETIC�da�Universidade�Fernando�Pessoa�
com��nanciamento�da�FCT/POCI),�avalian-
do�o�modo�como�a�poética�experimental�
é�aplicada�e�transformada�na�remediação�
electrónica�de�textos�concretos�e�visuais�de�
poetas�experimentalistas�portugueses�dos�
anos�1960.�Segundo�o�autor,�estas�recriações�
digitais,�embora�recon�gurem�os�textos�ex-
perimentais�através�de�códigos�de�programa-
ção�especí�cos,�tornam�também�explícita�a�
complexa�codi�cação�linguística�e�grá�ca�da�
página�impressa,�desse�modo�propondo�uma�
linha�de�continuidade�entre�os�novos�meios�e�
as�poéticas�experimentalistas.�
De�revisão�e�remediação�trata�também�o�
artigo�de�Maria�Alice�Amorim,�indagando�
acerca�da�possibilidade�de�uma�nova�litera-
tura�de�cordel,�adaptada�aos�procedimentos�
conectivos�e�colaborativos�da�cibercultura�
e�do�ciberespaço.�Na�perspectiva�da�autora,�
o�texto�múltiplo�e�variável�dos�cordelistas�
emula�no�ciberespaço�novas�estratégias�de�
comunicação,�levando-a�a�averiguar�a�relação�
entre�a�cibercultura�e�a�tradição,�temática�
e�estrutural,�do�verso,�do�imaginário�e�do�
pensamento�poético.
24 Rui Torres e Sergio Bairon
nessa�taxonomia,�apresentam-nos�também�
exemplos�da�sua�aplicação.
Fábio�Oliveira�Nunes�e�Edgar�Franco�relatam�
por�sua�vez�o�quotidiano das�emergentes�
redes�sociais�colaborativas,�re�ectindo�acerca�
dos�constrangimentos�à�liberdade�de�expres-
são�em�ferramentas�cada�vez�mais�usadas�no�
domínio�da�Web 2.0.�Tomando�como�ponto�
de�partida�a�enciclopédia�Wikipédia,�Nunes�
e�Franco�explicam�como�o�seu�projecto�enci-
clopédico-irónico-colaborativo,�“Freakpedia”,�
contribui�para�uma�política�e�uma�economia�
de�trocas�do�social�e�do�comunitário�que�
nem�sempre�é�fácil�de�monitorizar.�
O�ensaio�de�Fabrizio�Augusto�Poltronieri�
fecha�a�parte�de�estudos�de�cultura�digital�
contextualizando�o�lugar�do�acaso�na�criação�
de�estruturas�reticulares�digitais.�Partindo�
da�semiótica�peirciana,�Poltronieri�avalia�
ainda�o�lugar�do�jogo�na�criação�hipermédia,�
apresentando�e�analisando�um�software�
de�autoria�que�torna�evidentes�as�ligações�
conceituais�sugeridas�no�artigo.
Na�secção�“Teses”,�publicamos�excertos�de�
dois�trabalhos�de�Mestrado�recentemen-
te�defendidos.�So�a�Gonçalves�estuda�a�
recon�guração�do�design�de�comunicação�
na�cultura�digital.�O�seu�projecto�“Página”�sis-
tematiza�o�trânsito�processado�na�passagem�
de�objecto�a�sistema,�propondo�ainda�uma�
análise�acerca�das�transformações�formais�e�
substanciais�operadas�no�livro�e�na�página,�
que�considera�exemplares�modelos�das�
alterações�ocorridas�nesta�mudança�de�pa-
O�texto�de�Lawrence�Shum�resume�as�prin-
cipais�concepções�e�con�gurações�do�meio�
digital.�Partindo�da�conceituação�peirceana,�o�
autor�traça�as�diferenças�entre�meio�analógi-
co�e�meio�digital,�deduzindo�as�implicações�
desta�diferença�para�o�armazenamento,�
a�transmissão�e�a�edição�de�informação.�
Finalmente,�e�em�sintonia�com�outros�textos�
desta�publicação,�sugere�a�necessidade�de�
se�vincular�teoria�e�prática,�com�vista�a�um�
efectivo�diálogo�entre�o�saber�pensar�e�o�
saber�fazer.
Arlete�dos�Santos�Petry�contribui�com�uma�
análise�de�várias�produções�académicas�em�
hipermédia,�apresentando�uma�re�exão�
crítica�acerca�das�possibilidades�metodológi-
cas�para�a�análise�das�mesmas.�Apoiada�em�
conceitos�actuais,�a�autora�discute�ainda�as�
possibilidades�de�aplicação�dessas�metodo-
logias�em�futuros�trabalhos.�
A�terceira�e�última�parte�desta�secção�é�
dedicada�à�cultura�e�suas�interfaces em�meio�
digital.�Inicia-se�com�a�publicação�de�um�
relatório�do�projecto�levado�a�cabo�por�uma�
equipa�de�investigadores�do�Brasil:�Sergio�
Roclaw�Basbaum,�Ilana�Setzer�Goldstein,�
Lucas�Meneguette�e�Dino�de�Lucca�Vicente.�
A�partir�da�discussão�de�alguns�dos�resulta-
dos�desse�projecto�(TECNOMPB)�e�tendo�em�
especial�atenção�a�relação�entre�tecnolo-
gia�e�formas�musicais�na�música�popular�
brasileira�do�século�XX,�esta�equipa��propõe�
uma�taxonomia�conceitual�para�abordagem�
das�mais�variadas�formas�culturais.�Além�
de�uma�descrição�das�categorias�utilizadas�
25Producao de conhecimento em meios digitais
BAIRON, S.,�ed.�(2000).�Hipermídia, Psicanálise
e História da Cultura. São�Paulo,�EDUCS,�Ed.�
Mackenzie.
BARRETO, L. F. (1983).�Descobrimentos e
Renascimento. Formas de Ser e Pensar bos
Séculos XV e XVI.�Lisboa,�Imprensa�Nacional/
Casa�da�Moeda.
-----.�(1986).�Caminhos do saber no Renasci-
mento português. Lisboa,�Imprensa�Nacional/
Casa�da�Moeda.�
BENJAMIN, W.�(2000).�Oeuvres. Vol.�I,�Paris,�
Gallimard.
BRAUDEL, F.�(1989).�O Mediterrâneo. São�
Paulo,�Martins�Fontes.�2�vols.
CADOZ, C. (1997).�Realidade virtual.�São�
Paulo,�Ática.�
CASTI, J. L. (1997).�Would-be worlds. Nova�
York,�John�Willey�&�Sons.
DARLEY, A. (2000).�Visual digital culture.�Nova�
Iorque,�Routledge.
DE CERTEAU, M.�(1998).�A invenção do coti-
diano.�São�Paulo,�Vozes.
ECO, U.,�ed.�(1995).�Il Seicento-�Ópera multime-
dia.�Roma,�Enciclomedia.
EISENSTEIN, E.�(1979).�The printing press as
an agent of change. Cambridge,�Cambridge�
University�Press.
EULATE, P. Á. De,�ed.�(1998).�Las sociedades
ibéricas Y el mar Lisboa,�Ediciones�El�Viso.
FOUCAULT, M.�(1971).�L’ordre du discours.�
Paris,�Gallimard.
-----. (1988).�História da loucura. São�Paulo,�
Perspectiva.
-----.�(1989).�As palavra e as coisas.�São�Paulo,�
Martins�Fontes.
FRYE, N. (1990).�Myth and metaphor.�New�
York,�Ed.�Robert�Denham.
radigma.�A�autora�propõe�ainda�que�há�uma�
“continuidade�negociada”�nestes�processos�
de�transição,�em�sintonia�com�outras�posi-
ções�teóricas�adoptadas�em�artigos�anterior-
mente�apresentados.
Por��m,�Rodrigo�de�Sales�e�Lígia�Café�apre-
sentam�as�diferenças�entre�tesauros�e�ontolo-
gias,�ambos�instrumentos�de�representação�
do�conhecimento�especializado,�propondo�
um�excerto�do�seu�trabalho�de�investigação�
que�torna�evidentes�as�diferenças,�mas�no�
qual�também�são�abordadas�as�proximidades�
e�as�aproximações�possíveis�entre�estes�siste-
mas�de�representação�de�informação.
A�produção�do�conhecimento�em�meios�
digitais�deve�representar�uma�matéria�de�
re�exão,�teórica�e�aplicada,�se�queremos�
que�a�literatura,�a�comunicação�e�a�cultura�
acompanhem�as�profundas�transformações�
operadas�na�informação�e�na�comunicação�
da�ciência.�Com�este�número�da�Cibertextu-
alidades�tentamos�contribuir�para�o�diálogo�
académico�acerca�das�metodologias�usadas�/�
a�usar,�através�de�uma�aproximação�interdis-
ciplinar�entre�hipermédia�e�conhecimento.
Referências
ARONOWITZ, S.; MARTINSONS, B. &
MENSER, M.�(1998).�Tecnociencia y cibercultu-
ra. La interrelación entre cultura, tecnologia y
ciencia. Madrid,�Paidós.�
BACON, F.�[1605]�(1998).�“The�advancement�
of�learning”.�in: OLSON,�D.�O mundo no papel.
São�Paulo,�Ática.
26 Rui Torres e Sergio Bairon
Idade Média.�Lisboa,�Edições�70.
OLSON, D.�(1998).�O mundo no papel. São�
Paulo,�Ática.
PEREIRA, F. A. B.; COUTINHO, M. I. P. &
FIGUEIREDO, M. R.,�eds.�(1998).�A arte e o mar.�
Lisboa,�Fundação�Calouste�Gulbenkian.
POPPER, K.�(1975).�Conhecimento objetivo.�
São�Paulo,�Edusp/Itatiaia.
RUIVO, M. da C.,�ed.�(1997).�O engenho e
a arte.�Coimbra,�Fundação�Calouste�Gul-
benkian.
SANTOS, A. M. N. Dos,�ed.�(1993).�Arte e tecno-
logia. Lisboa,�Fundação�Calouste�Gulbenkian.
SARTON, G.�(1955).�The appreciation of ancient
and medieval science during the Renaissance
(1450-1600). Philadelphia,�U�of�Pennsylvania�P.
SICKO, D. (1999).�Techno Rebels.�Nova�York,�
Billboard�Books.
STROSBERG, E.�(1999).�Art and Science. Paris,�
UNESCO.
WILLIAMS, R. (1994).�Sociologia de la cultura.�
Barcelona,�Paidós.
GADAMER, H. G.�(1988).�Wahrheit und metho-
de, Tübingen,�J.C.B.�Mohr.�2�vols.
-----.�(1990).�Gedicht und Gespäch. Frankfurt,�
Insel�Verlag�Frankfurt�Main.
-----.�(1996).�Estética y hermenéutica. Madrid,�
Tecnos.
-----.�(1998).�Arte y verdad de la palavra.�Bar-
celona,�Paidós.
HANSEN, M.�(2000).�Embodying Technesis.�
Michigan,�Michigan�U�P.
-----.�(2004).�New philosophy for new media.�
Cambridge/London,�MIT�Press.
HEIDEGGER, M. (1952).�Der Ursprung des Kuns-
twerkes.�Vittorio�Frankfurt,�Klostermann�GmbH.
-----.�(1987).�Die Frage nach dem Ding.�Tübin-
gen,�Max�Niemeyer�Verlag.
HELLER, Á. (1991).�Historia y futuro.�Sobrevivirá
la modernidad? Barcelona,�Ediciones�Península.
HERKENHOFF, P.,�ed.�(1999).�O Brasil e os holan-
deses 1630-1654.�Rio�de�Janeiro,�Sextante�Artes.
IZQUIERDO, R. Á.�(1999).�Gaudí.�Madrid,�
Ediciones�Palabra.�
JOYCE, M. (1998).�Of two minds: hypertext, pe-
dagogy and poetics. Michigan,�Michigan�U�P.
JURANVILLE, A.�(1989).�Lacan e a Filoso�a.�Rio�
de�Janeiro,�Jorge�Zahar.
KANT, I. (1986).�Crítica da razão pura. Lisboa,�
Fundação�Gulbenkian.
KOYRÉ, A.�(1978).�Do mundo fechado ao
universo in�nito.�Lisboa,�Gradiva.
KUHN, T. (1982).�La revolución copernicana.
Madrid,�Siglo�XXI.
-----.�(1989).�A tensão essencial. Lisboa,�Edições�
70.
LACAN, J. (1995).�Le Identi�cación - Sem�09.�
Edición�AFP�-�Paris.�
LE GOFF, J.�(1983).�Para um novo conceito de
top related