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Caderno Seminal Digital – Vol. 16 – Nº 16– (Jul /Dez - 2011). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011.
ISSN 1806-9142
Semestral
1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
CONSELHO CONSULTIVO
André Valente (UERJ / FACHA)
Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII)
Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA)
Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ / PUC-SP)
Edwiges Guiomar Santos Zaccur (UFF)
Eliane Meneses de Melo (UBC-SP)
Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)
Jayme Célio Furtado dos Santos (SEE-RJ / SME-
Macaé)
José Lemos Monteiro (UFC / UECE / UNIFOR)
José Luís Jobim (UERJ / UFF)
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF)
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)
Maria Suzatt Biembengut Santad (UMinho-PT /
FMPFM E FIMI -SP / UERJ)
Maria Teresa G. Pereira (UERJ)
Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)
Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)
Sílvio Santana Júnior (UNESP)
Vilson José Le a (UCPel-RS)
EDITORA
Darcilia Simões
CO-EDITOR
Flavio Garcia
ASSESSOR EXECUTIVO
Cláudio Cezar Henriques
DIAGRAMAÇÃO
Elisabete de Jesus Estumano Freire(Bolsista Proatec )
Juliana Vilarinho (Bolsista de Extensão)
PROJETO DE CAPA
Carlos Henrique de Souza Pereira (Bolsista de Extensão)
LOGOTIPO
Gisela Abad
Contato:
caderno.seminal@gmail.com
publicações.dialogarts@gmail.com
3 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de Extensão
Universitária da UERJ do qual participam o Instituto de Letras
(Campus Maracanã) e a Faculdade de Formação de Professores
(Campus São Gonçalo). O Objetivo deste projeto é promover a
circulação da produção acadêmica de qualidade, com vistas a facilitar
o relacionamento entre a Universidade e o contexto sociocultural em
que está inserida.
O projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela
DIGRAF/UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas
no momento, surgiram, com recursos e investimentos próprios dos
coordenadores do Projeto, as produções digitais com vista a recuperar
a ritmo de suas publicações e ampliar a divulgação.
Visite nossa página: http://www.dialogarts.uerj.br
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 6
Flávio Garcia
O DISCURSO DE BARACK OBAMA NO RIO: FUTEBOL,
DEMOCRACIA E DEMAGOGIA, EM CLIMA DE
“AQUARELA DO BRASIL” 8
Ana Maria Gini Madeira
Ana Lúcia M. R. Poltronieri Martins
PAULINA CHIZIANE E A HISTÓRIA DA POLIGAMIA 42
Jurema Oliveira
PELO OLHAR DA SEMIÓTICA: LEITURA E PRODUÇÃO
DE TEXTO 55
Darcilia Marindir Pinto Simões
Eliana Meneses de Melo
A ÉTICA POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA NA FICÇÃO DE
LIMA BARRETO 67
Sergio Luiz Monteiro Mesquita
A IRONIA COMO EXPEDIENTE RETÓRICO EM CONTOS
BRASILEIROS 93
Maria Geralda de Miranda
Alex Ribeiro Cerqueira
SENTIDOS DA ATIVIDADE DE AVALIAR: A FORMAÇÃO DE
PROFESSORES EM PERSPECTIVA DISCURSIVA 107
Bruno Deusdará
Maria Cristina Giorgi
5 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
A LIÇÃO DE BARTHES: A ARGUMENTAÇÃO EM
SERMÃO DA SEXAGÉSIMA: BREVE ANÁLISE. 128
Elisa Tavares Pires
NOVOS REALISMOS NA CONTEMPORANEIDADE:
A ESCRITA DE HISTÓRIA 152
Aline de Almeida Moura
A EXPERIÊNCIA DO REAL: UM LEITURA DE “OS TRÊS NOMES
DE GODOFREDO” SOB A PERSPECTIVA DO INSÓLITO
FICCIONAL 168
Luciana Morais da Silva
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE ARTHUR ENGRÁCIO,
BENJAMIN SANCHES E CARLOS GOMES 183
Kenedi Santos Azevedo
O HORROR E O FANTÁSTICO NA PROSA DE
MANUEL ANTÔNIO ÁLVARES DE AZEVEDO 198
Karla Menezes Lopes Niels
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APRESENTAÇÃO
Onze diferentes artigos, abordando questões linguísticas e
literárias, escritos por quinze autores, que, em quatro situações,
formam par, compõem este número do Caderno Seminal, referente
ao segundo semestre de 2011.
Sem descuidar da qualidade dos textos submetidos à
publicação, ponto culminante do processo seletivo, levado a cabo por
um Conselho Editorial Consultivo de alto nível acadêmico, a
organização deste número levou em conta, ainda, outras premissas
básicas que deram origem ao projeto editorial do periódico.
O Caderno Seminal, foco gerador do PublicaçõesDialogarts,
hoje, editora extensionista, nasceu como anais de um evento que
reunia, na Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo, no
início da década de 1990, pesquisadores em geral, professores de
diferentes níveis de ensino, alunos e comunidade interessada nos
estudos da linguagem.
Liberto de sua ligação umbilical com o Seminário de
Linguagens, de onde surgiu, o Caderno Seminal assumiu-se como
veículo então alternativo de divulgação da produção científico-
acadêmica que não encontrava veia de desague nas publicações da
época. Nele, publicavam-se trabalhos muito variados, sendo, não
raro, a primeira vitrina para alguns hoje reconhecidos pesquisadores.
O objetivo de manter o periódico, hoje reconhecido como B2,
em boa classificação na tabela Qualis, da CAPES, levou à necessidade
de adequações, que, a despeitoda qualidade, sempre necessária,
punha em risco seus princípios fundadores. Logo, era imperioso afinar
o processo de seleção de artigos e de composição dos números.
O resultado de tal procedimento foi admitir a submissão de
trabalho por parte de Mestrandos ou Doutorandos, em especial
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quando em coautoria com seu orientador de pesquisa. Desde o
número anterior, relativo ao primeiro semestre de 2011, o Caderno
Seminal tornou a abrigar muitos novatos na seara das publicações
acadêmicas, retornando ao seu objetivo propulsor.
Espera-se, contudo, que essa atitude não traga maus frutos, e
que a árvore continue frondosa, de ampla copa folhada, florida e
consequentemente repleta de novos frutos, sabores e cheios de
saberes, espalhando sementes pelo infinito campo dos estudos da
Letras e da Linguística, bem como de demais áreas afins.
Saboreemos com prazer o sumo desses frutos aqui à espera do
deleite leitor.
Prof. Dr. Flávio Garcia
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O DISCURSO DE BARACK OBAMA NO RIO: FUTEBOL, DEMOCRACIA E DEMAGOGIA,
EM CLIMA DE “AQUARELA DO BRASIL”
MADEIRA, Ana Maria Gini1
MARTINS, Ana Lúcia M. R. Poltronieri2
1-CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
Conforme observou a mídia brasileira, a primeira visita oficial
do presidente Barack Obama ao Brasil coincidiu com outro evento
marcante na política brasileira: a eleição de uma mulher para ocupar
o cargo de presidente do Brasil, país hoje considerado pelos analistas
políticos como a segunda maior democracia do mundo depois dos
Estados Unidos da América. Em razão disso, a imprensa brasileira viu
nesse gesto um apoio ao projeto político de Dilma Rousseff, ligada ao
PT (Partido dos Trabalhadores) e discípula do ex-presidente Luís
Inácio Lula da Silva, eleito duas vezes por vias democráticas (eleição
direta e universal).
No que diz respeito à figura do presidente norte-americano,
Barack Obama tem uma singularidade: é o primeiro presidente negro
dos Estados Unidos. No Brasil e em outros países, o fato de o povo
norte-americano ter elegido um senador negro democrata para o
cargo máximo de uma nação que, há meio século, passou por
inúmeros conflitos raciais, simbolizou uma mudança de paradigma
para o país que, desde o final da Segunda Guerra Mundial em 1945,
dita a ordem sociopolítico-econômica no mundo ocidental.
1 Mestre em Linguística (UFMG), membro do NAD-UFMG (Núcleo de Análise
do Discurso), professora aposentada da SME-BH.
2 Doutoranda em Letras (UERJ) e membro do grupo Semiótica, Leitura e
produção de textos (SELEPROT-UERJ). É bolsista da FAPERJ e, durante o período de setembro a dezembro de 2011, foi bolsista CAPES na UBI
(Universidade da Beira Interior- Portugal).
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Além de estratégias e acordos entre os governantes, Barack
Obama marcou em sua agenda de visita ao Brasil um discurso
dirigido especialmente ao povo brasileiro. Intitulado informalmente
pela imprensa de ―Discurso da Cinelândia‖, lugar no centro do Rio de
Janeiro primeiramente escolhido para o discurso em palanque aberto
ao povo. O discurso acabou acontecendo no Theatro Municipal do Rio
de Janeiro, também na Cinelândia, para um seleto grupo de
convidados, representativo, de acordo com a segurança do presidente
americano, de vários setores da sociedade brasileira (políticos,
empresários, artistas, profissionais liberais, funcionários públicos do
primeiro escalão etc). É possível, porém, constatar que o público-alvo
que discursivamente se manifesta é aquele esperado para espaço
anteriormente previsto.
Nesse sentido, a escolha do ―Discurso da Cinelândia‖ como
corpus deste artigo deve-se ao fato de que ele tem como enunciatário
o povo brasileiro. De acordo com Charaudeau (2008, p. 187) ―em
todo o ato de discurso, o propósito é aquilo de que se fala, o projeto
que se tem em mente ao tomar a palavra; o que é, afinal, proposto‖,
que , para ele , reflete a visão do enunciador em relação à realidade
que o rodeia, pois:
Por mais que se fale (ou escreva) com a finalidade essencial de
estabelecer uma relação entre si e o outro e de influenciá-lo, tentando
persuadi-lo ou seduzi-lo, essa relação seria vazia de sentido se não
tivesse por objeto certa visão que trazemos do mundo, isto é, o
conhecimento que se tem da realidade e os julgamentos que dela se
fazem. O homem é tomado tanto por um desejo de inteligibilidade do
mundo quanto de troca com o outro. (CHARAUDEAU, 2008, p. 187)
2-OS IMAGINÁRIOS SOCIODISCURSIVOS
O ―Discurso da Cinelândia‖3 é considerado um discurso político,
porque ―toca à organização da vida em sociedade e ao governo da
coisa pública‖ (CHARAUDEAU, 2008, p. 189). O macrotema
3 Seguimos a diagramação do tradutor brasileiro para o portal G1. Assim, o
texto constitui-se de 34 parágrafos, separados por um espaço de linha.
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(CHARAUDEAU, 2008, p. 188), ou campo temático, proposto pelo
enunciador, apresenta-se nos dois últimos períodos que compõem o
sexto (6º) parágrafo, que revela também a quem se dirige o
discurso:
Ontem tive um encontro com sua maravilhosa
nova presidente, Dilma Rousseff, e conversamos
sobre como fortalecer a parceria entre nossos governos. Mas hoje quero falar diretamente com o
povo brasileiro sobre como podemos fortalecer a
amizade entre nossos países. Vim aqui para compartilhar algumas ideias, pois quero falar sobre
os valores que compartilhamos, as esperanças que
temos em comum e a diferença que podemos fazer
juntos.
Repare que, no sexto (6º) parágrafo, a palavra à qual as
associações se dirigem é ―amizade‖. Evidentemente que a escolha e o
emprego desse léxico ultrapassam o uso comum, pois em se tratando
de um discurso político, a ―amizade‖ entre dois países implica um
jogo de interesses em diferentes campos da vida pública, tais como a
política, a economia, as relações internacionais etc. Desse modo,
tem- se a ―amizade‖ como ―parceria entre nossos governos‖/
―compartilhar algumas ideias‖/ ―valores que compartilhamos‖/ ―as
esperanças que temos em comum‖/ ―a diferença que podemos fazer
juntos‖.
Sempre seguindo Charaudeau (2008), pode-se dividir o
―Discurso da Cinelândia‖ em três partes. Essas partes, de acordo com
Charaudeau (2008, p. 210- 245), compõem os três grandes tipos de
―imaginários sociodiscursivos‖: o ―imaginário da tradição‖, o
―imaginário da modernidade‖ e ―o imaginário da soberania popular‖.
Mas o que são os ―imaginários sociodiscursivos‖? Conforme
Charaudeau (2008, p. 203), os ―imaginários sociodiscursivos‖ advêm
de inúmeras disciplinas (Antropologia Social, Filosofia, Sociologia etc)
que irão compor um quadro interdisciplinar, visto que nenhuma
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disciplina isolada explica os valores demarcados pelos ―imaginários
sociodiscursivos‖, pois:
À medida que esses saberes, enquanto
representações sociais, constroem o real como universo de significação, segundo o princípio de
coerência, falaremos de ―imaginários‖. E tendo em
vista que estes são identificados por enunciados
linguageiros produzidos de diferentes formas, mas semanticamente reagrupáveis, nós os chamaremos
de ―imaginários discursivos‖. Enfim, considerando
que circulam no interior de um grupo social, instituindo- se em normas de referência por seus
membros, falaremos de ―imaginários
sociodiscursivos. (CHARAUDEAU, 2008, p. 203)
É notório que o discurso proferido pelo presidente Barack
Obama foi escrito para o povo brasileiro, mesmo que, no primeiro
(1º) parágrafo, ele evoque o Rio de Janeiro e a sua antonomásia
mundialmente conhecida, ―Cidade Maravilhosa‖. Neste mesmo
parágrafo, encontra-se, em forma de cumprimento, a primeira
referência direta ao povo brasileiro- ―Boa tarde, todo o povo
brasileiro‖, no qual o uso do quantificador ―todo‖ reforça a ênfase
sobre o termo lexical ―povo‖. Outra característica marcante no
discurso é a escolha de termos lexicais de fácil compreensão para
todos os presentes. Quase não há no discurso termos advindos de
terminologias de áreas restritas ao campo político, apesar de o
―Discurso da Cinelândia‖ ser um discurso político, visto que o seu
enunciador não se despiu do seu ―ethos‖ político. Charaudeau (2008,
p. 207) enfatiza que a escolha dos termos faz parte da estratégia de
materialização do imaginário sociodiscursivo e, consequentemente,
de persuasão, pois ―esses textos, ditados, slogans, enunciados
diversos, são apresentados de maneira simples, pois devem ser
compreendidos pela maioria, e desempenham diversos papéis de
apelo, de manifesto, de acusação, de polêmica, de reivindicação‖
(ibidem, p. 207).
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Nesse sentido, encontram-se, nos quatro parágrafos seguintes,
os imaginários sociodiscursivos advindos de espaços da
intertextualidade e da interdiscursividade. Charaudeau chama a
atenção para o fato de que os ―imaginários sociodiscursivos‖ ―dão
testemunho das identidades coletivas, da percepção que os indivíduos
e os grupos têm dos acontecimentos, dos julgamentos que fazem de
suas atividades sociais‖ (CHARAUDEAU, ibidem, p.207). No segundo
(2º) parágrafo, os trechos ―o calor e a generosidade do espírito
brasileiro‖ e ―Eu sei que os brasileiros não abrem mão de seu futebol
tão facilmente‖ são percursos temáticos recorrentes no imaginário do
estrangeiro em relação ao Brasil. A figura do Brasil como ―terra de
gente simpática e hospitaleira‖ e ―país do futebol‖ já faz parte de um
estereótipo coletivo estável, reconhecido por brasileiros e
estrangeiros. O recurso à interdiscursividade continua nos quatro
parágrafos seguintes em um percurso temático que liga o Brasil à
ideia de paraíso abaixo da linha do Equador, pois, em suas palavras,
―tinha música e dança‖, ―vi essa beleza nas encostas dos morros, nas
infindáveis milhas de areia e oceano e nas vibrantes e diversificadas
multidões de brasileiros que vieram aqui hoje‖. No quarto (4º)
parágrafo, há de se ressaltar uma intertextualidade explícita, ou seja,
com a citação da fonte, com a música ―País Tropical‖, de Jorge Ben
Jor, no trecho ―um país tropical abençoado por Deus e bonito por
natureza‖.
2.1- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA “TRADIÇÃO”
De acordo com Charaudeau (2008, p. 211), a ―tradição‖
constitui-se como um imaginário que ―é sustentado por discursos que
se referem a um mundo longínquo no tempo, no qual os indivíduos
teriam conhecido um estado de pureza‖. É um discurso de ―retorno às
fontes‖, ou seja, de retorno à origem ou às raízes de um povo ou
nação. Assim, comumente, encontra-se, nos discursos dos políticos, a
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história dos seus ascendentes, de sua terra ou de sua origem
linguística. Charaudeau (2008, p. 213) enumera quatro aspectos
ligados ao discurso da ―tradição‖: a natureza, a pureza, a fidelidade e
a responsabilidade.
A ―natureza‖, que, de acordo com Charaudeau (2008),
relembra aos homens que eles são como as espécies animais e,
assim, devem ficar atentos à defesa de seu território, isto é, de sua
terra. A ―pureza‖ se insere no discurso político por meio das marcas
que reafirmam a identidade de uma comunidade ou de um país.
Talvez o caso mais conhecido da presença da ―pureza‖ no discurso
político seja o arianismo de Hitler. A ―fidelidade‖ é, como bem diz
Charaudeau (ibidem, p. 213), um ―valor moral, um dever de assumir
a origem‖ como uma herança que deve ser seguida à risca, sem que
haja mudanças desses valores. Daí advém a ―responsabilidade‖, pois,
ao se assumir a ―fidelidade‖, a comunidade se torna uma espécie de
depositário das vozes daqueles que a precederam. Caberá a cada
geração guardar essa riqueza e transmiti-la às gerações vindouras.
Todos esses quatro aspectos permeiam o ―Discurso da Cinelândia‖ e
estão presentes nos parágrafos que seguem:
Se você parar para pensar, as jornadas dos EUA e do Brasil começaram de formas parecidas. São
duas terras com abundantes recursos naturais, terras natais de povos indígenas antiquíssimos. As
Américas foram descobertas por homens que vieram do outro lado do oceano como um ―novo
mundo‖ e colonizadas pelos pioneiros que
ampliaram os territórios rumo ao Oeste
atravessando imensas fronteiras. Nos tornamos
colônias dominadas por coroas distantes, mas logo
declaramos nossa independência e em seguida
recebemos grandes quantidades de imigrantes em nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,
limpamos a mancha da escravidão de nossas
terras.
Os EUA foram a 1ª nação a reconhecer a
independência do Brasil e a 1ª a estabelecer um
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posto diplomático neste país. O primeiro líder de
um país a visitar os EUA foi Dom Pedro II. Na
Segunda Guerra Mundial nossos corajosos homens e mulheres lutaram lado a lado pela liberdade. E
depois da guerra, nossas duas nações lutaram para conseguir as bênçãos plenas da liberdade.
Nas ruas dos EUA, homens e mulheres marcharam
e sangraram e alguns até morreram para que todos os cidadãos pudessem usufruir das mesmas
liberdades e oportunidades, não importa como
fosse sua aparência, não importa de onde você viesse. No Brasil vocês lutaram contra duas
décadas de ditadura, lutando pelo mesmo direito
de serem ouvidos, o direito de serem livres, livres
do medo, livres da necessidade. E mesmo assim, durante anos, a democracia e o desenvolvimento
demoraram a se estabelecer e milhões sofreram
por causa disso.
Nesses três parágrafos, o sétimo (7º), o oitavo (8º) e o nono
(9º), apresenta-se o imaginário da ―tradição‖ dos dois países, Brasil e
Estados Unidos, naquilo que de comum os une em virtude da
―natureza‖ e da ―pureza‖: exaltação à terra de origem e às suas
riquezas, a colonização e a ideia de um ―novo mundo‖, o sacrifício
dos primeiros colonizadores, a abolição da escravatura, a
independência e a coragem dos homens e mulheres em luta pela
liberdade. A nosso ver, esse discurso da ―tradição‖ no ―Discurso da
Cinelândia‖ vem em uma forma de gradação ascendente para a
palavra que irá perpassar todo o discurso- a democracia. Todo o
discurso da ―tradição‖ justifica, de uma forma ou de outra, as razões
pelas quais norte-americanos e brasileiros são fiéis- a ―fidelidade‖- e
responsáveis- a ―responsabilidade‖, pela liberdade e,
consequentemente, pela democracia.
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2.2- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA MODERNIDADE
No subtópico anterior, vimos que o ―Discurso da Cinelândia‖
contém trechos que vão ao encontro daquilo que Charaudeau (2008)
designa como ―imaginário da Tradição‖. Agora, veremos que o
discurso do presidente Barack Obama remete também ao ―imaginário
da Modernidade‖, que, segundo Charaudeau (ibidem, p. 214- 215),
ultrapassa o conceito de modernidade como uma época que contraria
dogmas e costumes de uma época precedente, como nos
movimentos artísticos e literários. Assim, o ―imaginário da
Modernidade‖ se caracteriza por:
Um conjunto de representações que os grupos sociais constroem a propósito da maneira como percebem ou julgam seu instante presente, em
comparação com o passado, atribuindo-lhe um valor positivo, mesmo quando o criticam. Pode-se,
portanto, aventar a hipótese de que, a cada
momento presente de sua história, os grupos
sociais se dotariam de um imaginário de modernidade, sempre tomando como base a época
precedente e procurando legitimá-la: a cada vez está em jogo a legitimidade de uma maneira de
ser e de viver, uma visão nova do mundo. (CHARAUDEAU, 2008, p. 215)
No ―Discurso da Cinelândia‖, o passado, um dos traços aos
quais se opõe a modernidade, porque o tempo presente sempre será
melhor, isto é, ―o tempo presente se beneficiaria de um estado de
saber superior, primeira caução dessa modernidade‖ (CHARAUDEAU,
ibidem, p. 216), encontra-se na ideia de um ―Brasil, país do futuro‖,
difundida pelo governo militar na década de 70, época do ―milagre
econômico‖, que fracassou com a crise mundial do petróleo. Nesse
sentido, a modernidade se mostra pelo hoje, o tempo presente, como
se vê no seguinte parágrafo do discurso de Barack Obama:
Por isso pretendo voltar em 2016 para ver o que acontece. O Brasil foi durante muito tempo um
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país cheio de potencial, mas atrasado pela política,
tanto aqui quanto no exterior. Durante muito
tempo o Brasil foi o ―país do futuro‖ e disseram para que ele esperasse pelos dias melhores que
viriam em breve. Meus amigos, este dia finalmente chegou. Este não é mais o ―país do futuro‖, as
pessoas do Brasil devem saber que o futuro já
chegou e está aqui agora. É hora de tomar posse
dele.
Outro traço marcante no ―imaginário da modernidade‖ é a
desconstrução do sonho utópico, considerado um elemento de
desmobilização, pois impede a ação, ou melhor, a ―eficácia da ação‖
humana (CHARAUDEAU, 2008, p. 216). Essa ―eficácia da ação‖
humana surge por meio de uma competência e de uma vontade de
agir, as quais, juntas, sustentam a base da modernidade no discurso
político. Essas características estão presentes no discurso da
Cinelândia, pois, somente por meio da competência e da vontade, os
povos, nesse caso, o norte- americano e brasileiro, podem, segundo
Barack Obama, vencer as adversidades e alcançar o sucesso, que é o
que se mostra nos dois parágrafos, o décimo-quinto (15º) e o
décimo-sexto (16º):
Nossos países nem sempre concordaram em tudo.
E assim como ocorre com muitas nações, teremos
nossas diferenças de opinião ao avançar. Mas estou aqui para lhes dizer que o povo americano
não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós
torcemos pelo sucesso do Brasil enquanto vocês confrontam os muitos desafios que ainda
enfrentam em casa e no exterior, vamos ficar
juntos, não são como parceiros sênior e júnior, mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do
interesse comum e do respeito mútuo,
comprometidos para com o progresso que sei que podermos fazer juntos.
Tenho certeza de que podemos fazer isso. Juntos, podemos aumentar nossa prosperidade em
comum. Sendo duas das maiores economias do
mundo, trabalhamos lado a lado durante a crise
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financeira para restaurar o crescimento e
confiança. E para manter nossas economias
crescendo, sabemos do que é necessário em ambas as nações. Precisamos de uma força de
trabalho capacitada e é por isso que empresas brasileiras e americanas assumiram um
compromisso de aumentar o intercâmbio de
estudantes entre nossas nações.
Outras características presentes no ―imaginário da
modernidade‖ são a tecnologia e a economia. Esta, segundo
Charaudeau (2008, p.218), apresenta-se ―como o modo de uma
sociedade representar para si a legitimidade de gerir a vida coletiva
do ponto de vista da produção e da repartição de riquezas‖; aquela, a
tecnologia, liga-se às ―noções de eficácia, competência e vontade de
agir‖ (ibidem, p.222). Na maioria das vezes, a tecnologia desenvolve-
se no âmbito de um poder econômico, que, por sua vez, gerencia
também a eficácia e a técnica. Não se pode esquecer que, no discurso
político, a economia e a tecnologia trabalham juntas a fim de que
todos os cidadãos possam usufruir do progresso social, tal como se
vê nos parágrafos décimo-sétimo (17º), décimo-oitavo (18º) e
décimo-nono (19º) do ―Discurso da Cinelândia‖:
Precisamos de um compromisso com a inovação e a tecnologia, por isso concordamos em aumentar a
cooperação entre nossos cientistas, pesquisadores
e engenheiros. Precisamos de infra estrutura da mais alta qualidade e por isso as empresas
americanas também querem ajudá-los a construir e preparar a cidade para o sucesso olímpico. Numa
economia globalizada, os EUA e o Brasil deveriam
expandir o comércio, expandir investimentos, de
modo a criar novos empregos e novas
oportunidades em ambas nossas nações por isso
estamos trabalhando para derrubar barreiras para
fazer negócios.
Por isso estamos criando relacionamentos mais próximos entre nossos trabalhadores e nossos
empreendedores. Juntos também podemos
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trabalhar pela segurança da energia e proteger
nosso lindo planeta.
Sendo dois países comprometidos com economias
mais verdes, sabemos que a solução definitiva ao desafio da energia virá da criação de fontes de
energias limpas e renováveis. Por isso a metade
dos carros daqui pode circular com biocombustível
e a maior parte de sua eletricidade vem de hidroelétricas. E por isso também demos início a
uma nova indústria limpa de energia nos EUA. Por
isso os EUA e o Brasil estão criando novas parcerias na área de energia, para compartilhar,
criar novos empregos e deixar para nossos filhos
um mundo mais limpo e mais seguro do que
encontramos.
Charaudeau (ibidem, p.226) destaca o fato de que os discursos
da tecnologia e da economia, principalmente o primeiro, ―tendem a
celebrar os efeitos positivos e a mascarar os negativos‖, para que
haja uma legitimação de suas forças perante a sociedade.
2.3- O IMAGINÁRIO SOCIODISCURSIVO DA “SOBERANIA POPULAR”
Em linhas gerais, o conceito de ―soberania popular‖ refere-se a
um poder que provém da vontade do povo, uma ―entidade abstrata
de razão, representante de uma opinião coletiva consensual
resultante de uma deliberação ao longo da qual foram confrontados
pontos de vista diferentes e tomadas decisões contrárias‖
(CHARAUDEAU, 2008, p. 227). Isso não quer dizer que o povo será o
guia de si mesmo. Desse modo, elegem-se os políticos, que, no
sistema democrático, irão ser os mediadores sociais da vontade do
povo. É interessante notar que, no discurso político, o termo ―nação‖
é substitutivo de ―povo‖ e vice-versa. Essa troca não acontece
deliberadamente, pois, num sentido lato, ―nação‖ refere-se a um
conjunto de pessoas que se reúnem, tendo em vista interesses,
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origem e objetivos comuns, que é o que se estabelece no vigésimo
(20º) parágrafo do ―Discurso da Cinelândia‖:
Juntas, nossas duas nações também podem ajudar
a defender a segurança de nossos cidadãos. Estamos trabalhando juntos para deter o
narcotráfico que destruiu vidas demais neste
hemisfério. Buscamos o objetivo de um mundo
sem armas nucleares. Estamos trabalhando juntos para aumentar nossa segurança ente hemisférios.
Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado
para combater a fome, doença e corrupção que podem apodrecer uma sociedade e roubar seres
humanos de sua dignidade e oportunidades.
Conforme Charaudeau (2008, p. 228), o imaginário da
―soberania popular‖ engloba três tipos de discursos: o discurso do
direito à identidade, o do igualitarismo e o da solidariedade.
Para Charaudeau (ibidem) a pergunta essencial do discurso do
direito à identidade é ―de qual grupo se trata?‖. Nesse sentido,
reivindica-se a diferença entre grupos e não a integração, apesar de
ser a integração uma via ―universalista‖ e também uma forma de
―soberania popular‖. Barack Obama não segue nem uma via nem
outra, pois, é claro, no seu ―Discurso da Cinelândia‖, a escolha por
uma terceira via, denominada por Charaudeau (2008, p. 230) de
―valor de tolerância (o melting-pot americano)‖, na qual ―grupos
diferentes coexistem pacificamente em nome de princípios coletivos‖
(ibidem). Encontra-se, assim, no discurso político que segue essa via,
a palavra ―diversidade‖, que engloba um aspecto positivo que se liga
ao multiculturalismo. É o que mostra o vigésimo-quarto (24º)
parágrafo:
Vocês são a prova de que justiça social e inclusão social podem ser melhor conquistadas por meio da
liberdade e que a democracia é a maior parceira do
progresso humano. Também acreditamos que em países tão grandes e diversos quanto os nossos,
moldados por gerações de imigrantes de todas as
raças, fés e culturas, a democracia dá a maior
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esperança de que todos os cidadãos sejam
tratados com dignidade e respeito. E que podemos
resolver nossas diferenças pacificamente e encontrar força em nossa diversidade.
O ―discurso da soberania popular‖ também inclui o discurso do
igualitarismo. Para Charaudeau (2008), o igualitarismo abrange a
igualdade em diferentes instâncias: a do poder econômico, a da
identidade cidadã e a da lei.
O discurso do igualitarismo ligado ao poder econômico prega
que todos devem ter acesso à formação e, consequentemente, ao
trabalho, para que possam satisfazer as suas necessidades materiais
(bens de consumo) e, por fim, assegurem a dignidade humana. A
igualdade do ponto de vista da identidade cidadã é o princípio da não
discriminação por motivos diversos (raça, etnia, religião, idade, sexo,
política etc), que é o assunto tratado no vigésimo- sexto (26º)
parágrafo:
Mas também sabemos que existem certas aspirações compartilhadas por todo ser humano.
Todos queremos ser livres, queremos ser ouvidos, todos ansiamos por viver sem medo ou discriminação. Todos queremos escolher como
seremos governados. Todos querem moldar seu
próprio destino. Esses não são ideais americanos
ou ideais brasileiros, não são ideais ocidentais, são direitos universais. E devemos apoiá-los em toda
parte. Hoje estamos vendo a luta por esses
direitos acontecendo no Oriente Médio e no Norte da África.
Entretanto, Charaudeau (2008) ressalta que a igualdade cidadã
pode desencadear uma neutralização do indíviduo em relação ao
cidadão, na medida em que indivíduo perde a consciência de sua
unicidade diante da igualdade.
O discurso do igualitarismo mais conhecido é o da lei, visto que
é a própria lei quem diz ―Todos são iguais perante a lei‖, ou seja, a
justiça não deve ver a quem ela impõe a lei. Cabe frisar que o
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discurso do igualitarismo ligado à lei também pode promover
discursos de sanção, ou melhor, de repressão, como é o caso do
discurso da segurança, que reivindica que ―todo cidadão tem direito a
uma proteção que preserve seus bens e sua vida‖ (CHARAUDEAU,
2008, p. 236)
Por último, há o discurso da solidariedade. Conforme
Charaudeau (2008), o discurso da solidariedade está intrinsecamente
ligado ao discurso da igualdade. A solidariedade parte do princípio de
que todos têm direito à igualdade e, para isso, justificam-se atos e
engajamentos de diferentes causas por toda a parte. Em nome da
solidariedade, as nações engajam-se em guerras de libertação, fazem
acordos econômicos, promovem ações sociais etc. Em contrapartida,
Charaudeau (2008) evidencia que o discurso da solidariedade pode
também produzir movimentos de insubmissão que afrontam o
discurso da maioria, o povo, mas, por razões diversas, também
acreditam que produz o discurso da soberania popular, como bem se
nota nas guerras civis. É interessante notar que os discursos da
igualdade e da solidariedade fecham o discurso de Barack Obama no
Brasil em diferentes perspectivas: a defesa do movimento ―Primavera
Árabe‖, o ensejo de que a democracia seja um bem de todos os
povos, e que a prosperidade, os direitos humanos e a liberdade
estejam presentes em todas as nações. Os três parágrafos que
seguem são representativos das ideias contidas nesses discursos:
Vimos uma revolução nascer de um anseio por
dignidade humana básica na Tunísia e vimos
manifestantes pacíficos, homens e mulheres,
jovens e velhos, cristão e muçulmanos, ocupando
praça Tahir e vimos o povo da Líbia se defendendo
corajosamente contra um regime determinado a tratar com brutalidade seus próprios cidadãos. Em
toda parte vimos jovens se erguendo. Uma nova
geração exigindo o direito de determinar seu
próprio futuro.
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Desde o início deixamos claro que a mudança que
buscam devem ser impulsionadas pelo seu próprio
povo. Mas para nossos dois países, para os EUA e para o Brasil – duas nações que passaram muitas
gerações lutando para aperfeiçoar suas próprias democracias – os EUA e o Brasil sabem que o
futuro de nosso mundo era determinado pelo seu
povo. Ninguém pode dizer ao certo como essa
mudança terminará. Mas eu sei que mudança não é algo que devemos temer.
Quando os jovens insistem que as correntes da História estão se movendo, a carga do passado
pode ser apagada. Quando homens e mulheres
exigem pacificamente seus direitos
humanos nossa humanidade em comum é acentuada. Onde quer que a luz da liberdade seja
acesa, o mundo se torna um mais luminoso.
O ―Discurso da Cinelândia‖, proferido pelo presidente Barack
Obama, não foge à regra de um discurso político tradicional, tendo
em vista o enunciatário que compõe a sua plateia. A utilização de
diferentes ―imaginários sociodiscursivos‖ reflete o saber de crença do
enunciador num determinado aqui (lugar) e agora (tempo), visto que,
para Charaudeau (2008, p.205), ―todo imaginário é um imaginário de
verdade que essencializa a percepção do mundo em um saber
(provisoriamente) absoluto‖.
3- A IMAGEM MOSTRADA - O ETHOS
Discurso (peça de oratória), orador, público ou, neste caso,
plateia. O que concluir de uma visita oficial do atual presidente dos
Estados Unidos ao Brasil? Seria uma visita de cortesia, para
cumprimentar a primeira presidente do Brasil? Terá vindo ele tratar
de negócios, assinar acordos, propor parcerias? Ou, já com vistas às
próximas eleições nos Estados Unidos, viaja a países dos quais se diz
amigo? Seja qual tenha sido a intenção da visita, explicitada por meio
de entrevistas e matérias jornalísticas, a nós importa aqui a sua
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palavra, revelada no discurso proferido no Theatro Municipal do Rio
de Janeiro, por meio da qual buscaremos identificar o ethos, ou
imagem de si que se revela discursivamente.
Ao iniciar a nossa busca pelo estabelecimento do ethos deixado
perceber pelo presidente americano, recorremos ao que nos diz Ruth
Amossy no texto da introdução de Imagens de si no discurso: a
construção do ethos:
Todo ato de tomar a palavra implica a construção
de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu auto- retrato, detalhe suas
qualidades nem mesmo que fale explicitamente de
si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são
suficientes para construir uma representação de
sua pessoa. (AMOSSY, 2005, p.9)
Ao assumir o lugar do orador, aquele que manifesta suas ideias
e crenças por meio da palavra, Barack Obama se deixa perceber e às
suas intenções. Por retomarem conceitos propostos por Aristóteles,
os estudos atuais sobre a arte de persuadir consideram que orador
lança mão três categorias de meios discursivos para influenciar o seu
auditório: o logos, relativo ao domínio da razão e que visa convencer
por meio das estratégias discursivas escolhidas, o pathos e o ethos,
relativos ao domínio da emoção e que seriam responsáveis por
persuadir o auditório e assim favorecer ou garantir o sucesso do
orador.
Ainda que o discurso de Barack Obama se constitua numa rica
peça de análise com relação aos três aspectos citados anteriormente,
optamos por nos ocupar apenas do ethos, ou a imagem de si,
revelada pelo presidente americano ao se dirigir ao povo brasileiro.
Há duas posições distintas, assumidas pelos atuais estudiosos
da argumentação, que retomam aquelas já presentes na Antiguidade.
Para alguns estudiosos, a construção do ethos é anterior ao discurso
e depende da identidade social do orador. É o dito ethos pré-
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discursivo. Já os que se filiam a Aristóteles consideram ser o ethos
um elemento que se constrói no nível do discurso, assim considerado
ethos discursivo, dependente do exercício da palavra.
Para Charaudeau (2008, p.115), é preciso considerar esses dois
aspectos: o ethos, enquanto imagem que o auditório tem do orador e
imagem que o orador pensa que o auditório tem em relação a ele,
orador. Considera ainda o teórico francês que a imagem prévia é
construída com base em dados preexistentes. Em nosso caso
específico, o público, o povo brasileiro, desde a campanha de Barack
Obama para a presidência, foi colhendo informações sobre ele por
meio da imprensa, das reações dos seus eleitores, dos demais países
em relação à sua eleição. Isso fez com que, ao chegar ao Brasil, ele
já tivesse sua imagem social e política consolidada. Assim pensando,
consideramos necessário tratar aqui, ainda que sem muitos detalhes,
desse aspecto, ou seja, o ethos prévio ou pré-discursivo.
Quem é Barack Obama? Primeiro presidente negro dos Estados
Unidos, de origem humilde, ele se revela como uma pessoa que
preserva os valores de família, apesar da sua vida familiar
conturbada, um representante dos anseios de uma classe média em
crise, uma pessoa simples, apesar do seu status político, excelente
orador, que geralmente não se furta a tratar dos temas os mais
diversos, e comprometido em melhorar a qualidade de vida do povo
americano. De maneira geral, uma imagem positiva, o que fez com
que ele fosse aqui recebido como uma pessoa muito próxima ao povo
brasileiro.
Assim também, não veio o presidente aqui falar sem ter
conhecimento prévio do seu auditório. Já visando ao sucesso, a sua
oratória foi construída de acordo com aquilo que ele supunha que
seria agradável ao seu público. Dessa forma, há um entrecruzamento
de imagens que levam à construção do discurso.
Passamos agora a analisar a imagem que se revela por meio da
palavra, o ethos discursivo, ressaltando aqui que seguimos a versão
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traduzida do discurso, disponível no portal G1, após confrontá-la com
a versão original disponível no site da Casa Branca4.
Para Charaudeau (2008, p.118) o orador do discurso político
―precisa ser crível e suporte da identificação à sua pessoa. Crível,
porque não há político sem que se possa crer em seu poder de fazer;
suporte de identificação, porque para aderir às suas ideias é preciso
aderir a sua pessoa.‖ Daí resultariam, segundo Charaudeau (2008),
as duas figuras identitárias do discurso político, que vêm a ser duas
grandes categorias de ethos: o ethos de credibilidade e o ethos de
identificação.
3.1- A CONSTRUÇÃO DA CREDIBILIDADE
Em relação a essa primeira categoria, os ethé de credibilidade,
Charaudeau (2008, p.119-137) faz referência a uma qualidade
resultante da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito
que lhe permita ser visto como possuidor do ethos de sério, de
virtuoso e de competente.
Quanto ao ethos ―de sério‖, este seria construído, ainda
segundo Charaudeau (2008, p.120), por meio índices. Índices
corporais e mímicos, dos quais não trataremos em razão de nos
estarmos atendo à parte verbal do discurso, ainda que ele possa ser
confirmado na versão ―on-line‖, disponível para acesso. Índices
comportamentais, que denotam autocontrole emocional em relação
às críticas, não se deixando tomar por acessos de cólera; sangue-frio
diante da adversidade; ―índices que demonstram grande capacidade
de trabalho, onipresença em todas as linhas de frente da vida política
e social, particularmente diante daqueles que sofrem.‖, de acordo
com Charaudeau (ibidem). Quanto a sua vida privada, esta não deve
4Observou-se que o trecho ―that the future of the Arab World will be‖ foi
traduzido por ―o futuro do nosso mundo era‖ em lugar de ―o futuro do
Mundo Árabe será.‖
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permitir suspeita de infidelidade ou de indiferença quanto a sua
família.
O ethos ―de virtude‖, fundamental à imagem política, de um
representante do povo, exige do político a construção de uma
imagem que demonstre ser ele possuidor de características como
sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal. Essa imagem será
construída ao longo de sua vida pública e será ela que dará suporte
ao seu discurso, tornando-o crível ou não.
Quanto ao ethos ―de competência‖, Charaudeau (2008, p.125)
reconhece a necessidade de saber e habilidade por parte do político.
Segundo o teórico, ―os políticos devem, portanto, mostrar que
conhecem todas as engrenagens da vida política e que sabem agir de
maneira eficaz.‖ Assim, ao fazer uso da palavra, o político poderá dar
a perceber a sua competência ao falar sobre seus feitos, as funções
exercidas, a experiência adquirida ao longo de sua carreira política.
No discurso de Barack Obama, o ethos de ―sério‖ começa a ser
construído logo no início da sua fala, nos trechos em que cita a sua
família, mulher e filhas, que o acompanha na viagem e também
quando se refere novamente à família, mas agora na figura de sua
mãe, quando, para demonstrar a sua primeira ligação com o Brasil,
cita o filme brasileiro Orfeu negro, dizendo ―um filme que vi com
minha mãe‖ e ainda afirma que sua mãe jamais o imaginaria
visitando o Brasil como presidente da República. Há ainda presente a
preocupação demonstrada pelo presidente em relação à crise
financeira mundial, com a intenção de ―restaurar o crescimento e a
confiança [...] para manter nossas economias crescendo‖. Quanto à
preocupação com aqueles que sofrem, Barack Obama diz sobre o
Brasil e os Estados Unidos ―estamos trabalhando lado a lado para
combater a fome, doença e corrupção que podem apodrecer uma
sociedade e roubar seus seres humanos‖. É ainda citada a sua
(nossa) preocupação com o meio ambiente e com o futuro do planeta
ao falar sobre ―a criação de fontes de energia limpas e renováveis‖ e
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ainda quanto a ―deixar para os nossos filhos um mundo mais limpo e
mais seguro do que encontramos‖. Todas essas declarações a que
nos referimos podem exemplificar a seriedade do orador.
Quanto ao ethos ―de virtude‖, consideramos que já havia sido
previamente construído de maneira positiva, uma vez que os
aspectos sinceridade, fidelidade e honestidade pessoal não têm sido
questionados na mídia, nem a sua conduta tem deixado margem a
questionamentos. Assim, acreditamos que o auditório tenha recebido
a sua fala com base nesses aspectos de sua personalidade.
Quanto ao ethos ―de competência‖, a sua demonstração não
nos parece ter sido um objetivo do orador, uma vez que não faz
referência ao seu passado ou ao seu período na presidência. Isso
talvez se deva ao fato de, como foi explicitado pelo orador, estar o
Discurso da Cinelândia voltado para o povo brasileiro. O presidente
não teria vindo falar do quanto os Estados Unidos podem fazer pelo
Brasil, mas o quanto o Brasil é importante para os Estados Unidos
neste momento.
3.2- A CONSTRUÇÃO DA IDENTIFICAÇÃO
Trataremos agora da segunda das duas figuras identitárias de
que nos fala Charaudeau em relação ao discurso político: os ethé de
identificação. Se os ethé de credibilidade visam dar confiabilidade à
palavra do orador, os de identificação ligam-se ao aspecto afetivo da
relação orador/auditório. São manifestações de caráter emocional,
portanto, pessoais, que se destinam a promover a adesão do
auditório. Para Charaudeau (2008, p.137), as imagens dos ethé de
identificação ―são extraídas do afeto social: o cidadão, mediante um
processo de identificação irracional, funda sua identidade na do
político.‖ Ainda que essas imagens sejam, segundo o teórico,
―destinadas a tocar o maior número de indivíduos [...] esse maior
número é heterogêneo e vago do ponto de vista dos imaginários.‖
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(ibidem). Dessa forma, o estabelecimento ou a construção dos ethé
de identificação sempre será dependente daquilo que se supõem ou
se tem como verdade acerca do auditório. Para quem vou falar; quais
as características do meu auditório; sobre quais ―imaginários sociais‖
devo alicerçar as minhas palavras? Essas são questões que o orador
se faz ao produzir o seu discurso e não se pode deixar de perceber o
quanto o pathos, ou a mobilização do emocional, será aqui relevante.
Charaudeau (2008, p.137-166) relaciona como imagens que
caracterizam o ethos de identificação: i) o ethos de ―potência‖, ii) o
ethos de ―caráter‖ sobre o qual cita as seguintes figuras: a
vituperação, cujas variantes são a provocação e a polêmica; a força
tranquila, correlacionada ao controle de si; a coragem; o orgulho; a
firmeza e a moderação, iii) o ethos de ―inteligência‖, que se identifica
por meio de duas figuras: a do homem culto que algumas culturas
acreditam só poder ser um homem de bem e a da astúcia ou malícia,
iv) o ethos de ―humanidade‖, por meio da figuras do sentimento, da
confissão, da intimidade, v) o ethos de ―chefe‖, por meio das figuras
de guia, de soberano e de comandante vi) o ethos de ―solidariedade‖,
atitude que se caracteriza por um movimento assimétrico entre um
indivíduo que sofre e outro que, apesar de não sofrer, está, no
entanto, emocionado pelo sofrimento alheio.
No ―Discurso da Cinelândia‖, é bastante clara a opção pela
construção do ethos de identificação. Isso pode ser percebido por
meio das figuras presentes na fala do presidente norte- americano,
ainda que nem todas comprovem com exatidão as diversas
possibilidades anteriormente discriminadas. É o que se percebe
quanto ao ethos de ―potência‖ que, segundo Charaudeau (2008,
p.139), pode se manifestar por meio da figura da virilidade sexual ou
ainda do uso da violência verbal em relação aos adversários políticos.
Não são essas marcas presentes no discurso aqui analisado. Nota-se,
porém, uma forte construção de um ethos de autoridade importante,
ou de superioridade, na frase ―Eu sei que os brasileiros não abrem
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mão do seu futebol tão facilmente‖ em relação ao período anterior
―Quero agradecer a todos por estarem aqui, pois me disseram que há
um jogo do Vasco ou do Botafogo‖, pois implica a ideia de que os
brasileiros preferiram ouvir o presidente Barack Obama a assistir ao
futebol.
Relativas ao ethos de ―caráter‖, podem ser reconhecidas as
figuras força tranquila e controle de si, pois, ainda que não manifeste
verbalmente, o presidente americano conduz a sua fala de forma
assertiva ao se referir ao que já foi pensado pelo seu governo quanto
à necessidade de ampliar a parceria entre o Brasil e os Estados
Unidos. Sem imposições, em tom de conselho, ele diz, no sexto (6º)
parágrafo ―Vim aqui para compartilhar algumas ideias, pois quero
falar sobre os valores que compartilhamos, as esperanças que temos
em comum e a diferença que podemos fazer juntos.‖. Além disso,
reforçando aquilo que já pode ser considerado como uma marca
pessoal, o controle de si foi sempre uma constante, pois em nenhum
momento houve um descontrole, palavras mais carregadas de
emoção, ainda que em seu conteúdo o discurso fizesse apelo ao
emocional, o pathos, do povo brasileiro.
Presente ao longo de toda a fala está o ethos de ―inteligência‖,
por meio da figura do homem culto que se manifesta como um
profundo conhecedor não só da história do Brasil, mas também da
cultura e da política brasileira, como nos trechos que seguem,
respectivamente sétimo (7º), nono (9º), décimo (10º) e quarto (4º)
parágrafos:
São duas terras com abundantes recursos
naturais, terras natais de povos indígenas
antiqüíssimos.[...] Nos tornamos colônias dominadas por coroas distantes, mas logo
declaramos nossa independência e em seguida
recebemos grandes quantidades de imigrantes em
nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,
limpamos a mancha da escravidão de nossas
terras.
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No Brasil vocês lutaram contra duas décadas de
ditadura, lutando pelo mesmo direito de ser ouvidos, o direito de ser livres, livres do medo,
livres da necessidade.
Hoje o Brasil é uma democracia desabrochando,
um lugar onde as pessoas são livres para falar o
que pensam e escolher seus líderes e onde um garoto pobre de Pernambuco pode sair de uma
fábrica de cobre e chegar ao gabinete mais
elevado no país.
Vocês são, como cantor Jorge Benjor diz, ―um país
tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.
A referência ao escritor Paulo Coelho ―acreditamos nas palavras
de Paulo Coelho, um de seus mais famosos escritores‖ no trigésimo-
segundo (32º) parágrafo, ao encerrar o discurso, além de confirmar a
recorrente intenção do orador de apelar para imagens facilmente
identificáveis por grande parte do povo brasileiro, deixa também
entrever uma realidade irrefutável, que é a da imensa popularidade
que o citado escritor consolidou mundo afora.
O ethos de ―solidariedade‖, diz Charaudeau (2008, p.138), ―faz
do político um ser que não somente está atento às necessidades dos
outros, mas que as partilha e se torna responsável por elas.‖ Em seu
discurso, ainda que não seja uma constante, o presidente lembra
atos de solidariedade praticados pelos governos brasileiro e norte-
americano, no seguinte trecho do vigésimo (20º) parágrafo:
Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado
para combater a fome, doença e corrupção que
podem apodrecer uma sociedade e roubar seres
humanos de sua dignidade e oportunidades.
Não nos parece ter havido a intenção no discurso de Barack
Obama de deixar predominar o ethos de ―chefe‖, que lhe conferiria
uma marca de superioridade, dele como presidente, e dos Estados
Unidos, país considerado como superpotência, bem distante do Brasil,
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considerado um país emergente. Há, ao longo da fala do presidente
americano, o uso recorrente do pronome ―nós‖ em referência aos dois
países, marcando identidades históricas, políticas e de
desenvolvimento futuro, como nos trechos a seguir, respectivamente,
décimo-sexto (16º) e vigésimo-terceiro (23º) parágrafos:
Juntos, podemos aumentar nossa prosperidade em comum.
Ambos acreditamos no poder e na promessa da
democracia, acreditamos que nenhuma forma de governo é mais eficaz na promoção do crescimento
e prosperidade que alcança todo ser humano, não
apenas alguns, mas todos.
Assim, o que sobressai são as marcas de igualdade ou de
semelhança entre os dois países.
Mas é possível identificar, ainda que de forma bastante restrita,
a fala que se manifesta do lugar de chefe, daquele que está em
posição acima do outro, o auditório, o povo brasileiro, como neste
trecho do décimo-quinto (15º) parágrafo, em que o uso dos
qualificadores ―sênior‖ e ―júnior‖ e do advérbio ―como‖ revela o
reconhecimento da distância que ainda separa os dois países.
... o povo americano não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós torcemos pelo sucesso do
Brasil enquanto vocês confrontam os muitos
desafios que ainda enfrentam no Brasil e no exterior, vamos ficar juntos, não são como
parceiros sênior e júnior, mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do interesse comum e
do respeito mútuo...
Quanto ao ethos de ―humanidade‖, ele pode ser identificado por
meio das figuras da confissão, presente em ―Vocês sabem que esta
cidade não foi a minha primeira escolha para os jogos olímpicos...‖;
do sentimento, quando o presidente se refere às causas ambientais
em ―..deixar para os nossos filhos um mundo mais limpo e mais
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seguro do que encontramos‖ ou ―Os japoneses são alguns de nossos
amigos mais próximos e ficaremos ao lado deles, rezaremos com eles
e reconstruiremos com eles...‖
É ainda Charaudeau (2008, p.184) quem afirma que ―Há um
tempo para os ethé de credibilidade e outro para os de identificação.‖
Por meio da análise aqui feita, foi possível perceber que, no Discurso
da Cinelândia, um maior tempo foi dedicado aos ethé de
identificação, já que houve um predomínio de manifestações voltadas
para o aspecto afetivo da relação entre o Brasil e os Estados Unidos,
na figura do seu presidente, o orador. Por meio de repetidos elogios
ao povo brasileiro, aos seus feitos, a sua coragem, ao seu
crescimento econômico, a sua luta contra a ditadura e mesmo
atualmente contra a violência, em especial na mesma cidade do Rio
de Janeiro onde o discurso foi proferido, o auditório foi mobilizado
predominantemente pela emoção. Para Charaudeau (2008, p.180) o
ethos assim construído ―teria uma função ofuscante que oculta o
logos, a razão, por seu jeito de evidência que não se discute‖, o que
nos leva a pensar que a identidade intuída entre o ufanismo da
famosa ―Aquarela do Brasil‖, de autoria de Ari Barroso, e o discurso
de Barack Obama nada mais foi do que uma estratégia para nos fazer
tomar conhecimento de ―algumas ideias‖ que o governo americano
tem em relação ao Brasil neste momento.
CONCLUSÃO
No prólogo do seu livro Discurso Político, Charaudeau (2008,
p.8) afirma que ―toda palavra pronunciada no campo político deve ser
tomada ao mesmo tempo pelo que ela diz e não diz‖. O discurso que
Barack Obama proferiu no Theatro Municipal do Rio de Janeiro é um
exemplo dessa afirmação. Coube ao presidente dos Estados Unidos
escolher a máscara, tendo em vista a plateia presente e o interesse
de sua visita ao Brasil. Esse jogo de máscaras, como bem diz
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Charaudeau, tem o intuito de persuasão e de sedução, a partir de
inúmeras estratégias que passam pela construção de um ethos,
assim como do uso de imaginários sociodiscursivos aceitos, em geral,
pela sociedade ocidental. Desse modo, a análise do ―Discurso da
Cinelândia‖ nos permite dizer que a mobilização do auditório em seu
favor se deu por meio das inúmeras referências aos imaginários
sociodiscursivos, com base em estereótipos, por meio dos quais o
povo brasileiro é identificado, mas também por meio de estereótipos
que identificam a sociedade norte-americana, como a liberdade, a
igualdade, a tecnologia e, por fim, a democracia. A nossa proposta foi
mostrar que o ―Discurso da Cinelândia‖, um discurso político, é um
jogo de linguagem em que todo o dizer tem um objetivo e,
consequentemente, constitui um efeito de sentido.
REFERÊNCIAS:
AMOSSY, Ruth (org.). Imagens de si no discurso: a construção
do ethos. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo: Editora Contexto,
2008.
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ANEXO
Discurso de Barack Obama5
Alô, Rio de Janeiro.
Alô, Cidade Maravilhosa. Boa tarde, todo o povo brasileiro.
Desde o momento em que chegamos o povo desta
nação tem gentilmente mostrado à minha família o calor e a generosidade do espírito brasileiro,
obrigado. Quero agradecer a todos por estarem
aqui, pois me disseram que há um jogo do Vasco
ou do Botafogo... Eu sei que os brasileiros não abrem mão de seu futebol tão facilmente.
Uma das primeiras impressões que tive do Brasil veio de um filme que vi com minha mãe quando eu era muito pequeno. Um filme chamado "Orfeu
negro", que se passava nas favelas durante o carnaval. E minha adorava aquele filme, tinha
música e dança e como pano de fundo, os lindos
morros verdes. Esse filme estreou primeiramente
como uma peça bem aqui, no Theatro Municipal.
Minha mãe já faleceu, mas ela jamais imaginaria que a primeira viagem de seu filho ao Brasil seria
como presidente dos EUA. Ela jamais imaginaria isso. E eu jamais imaginaria que este país seria
ainda mais bonito do que no filme. Vocês são, como cantor Jorge Benjor diz, ―um país tropical
abençoado por Deus e bonito por natureza‖.
Vi essa beleza nas encostas dos morros, nas
infindáveis milhas de areia e oceano e nas vibrantes e diversificadas multidões de brasileiros
que vieram aqui hoje. E nós temos um grupo
maravilhosamente misturado: cariocas, paulistas,
baianos, mineiros. Temos homens e mulheres das
cidades até o interior e tanta gente jovem aqui,
que são o grande futuro desta grande nação.
5 Disponível em: <www.g1.globo.com/obama-no-brasil/noticia/2011/03/leia-integra-do-discurso-de-barack-obama-no-theatro-municipal.html.> Acesso em: 25 de outubro
de 2011. Não houve interferências das autoras do artigo em relação ao que
se denomina ―erros‖ de língua portuguesa.
35 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
Ontem tive um encontro com sua maravilhosa
nova presidente, Dilma Rousseff, e conversamos
sobre como fortalecer a parceria entre nossos governos. Mas hoje quero falar diretamente com o
povo brasileiro sobre como podemos fortalecer a amizade entre nossos países. Vim aqui para
compartilhar algumas ideias, pois quero falar sobre
os valores que compartilhamos, as esperanças que
temos em comum e a diferença que podemos fazer juntos.
Se você parar para pensar, as jornadas dos EUA e do Brasil começaram de formas parecidas. São
duas terras com abundantes recursos naturais,
terras natais de povos indígenas antiquíssimos. As
Américas foram descobertas por homens que vieram do outro lado do oceano como um ―novo
mundo‖ e colonizadas pelos pioneiros que
ampliaram os territórios rumo ao Oeste atravessando imensas fronteiras. Nos tornamos colônias dominadas por coroas distantes, mas logo
declaramos nossa independência e em seguida recebemos grandes quantidades de imigrantes em
nossas costas e mais tarde, depois de muita luta,
limpamos a mancha da escravidão de nossas terras.
Os EUA foram a 1ª nação a reconhecer a
independência do Brasil e a 1ª a estabelecer um
posto diplomático neste país. O primeiro líder de um país a visitar os EUA foi Dom Pedro II. Na
Segunda Guerra Mundial nossos corajosos homens
e mulheres lutaram lado a lado pela liberdade. E depois da guerra, nossas duas nações lutaram
para conseguir as bênçãos plenas da liberdade.
Nas ruas dos EUA, homens e mulheres marcharam
e sangraram e alguns até morreram para que
todos os cidadãos pudessem usufruir das mesmas liberdades e oportunidades, não importa como
fosse sua aparência, não importa de onde você
viesse. No Brasil vocês lutaram contra duas
décadas de ditadura, lutando pelo mesmo direito
de ser ouvidos, o direito de ser livres, livres do
medo, livres da necessidade. E mesmo assim,
durante anos, a democracia e o desenvolvimento
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demoraram a se estabelecer e milhões sofreram
por causa disso.
Mas venho aqui hoje porque esses dias passaram.
Hoje o Brasil é uma democracia desabrochando, um lugar onde as pessoas são livres para falar o
que pensam e escolher seus líderes e onde um
garoto pobre de Pernambuco pode sair de uma
fábrica de cobre e chegar ao gabinete mais elevado no país. Na última década, o progresso
feito pelo povo brasileiro inspirou o mundo.
Pois hoje metade deste país é considerado classe
média. Milhões foram retirados da pobreza. Pela
primeira vez a esperança está voltando a lugares
onde antes prevalecia o medo. Eu vi isso hoje, quando visitei a Cidade de Deus. Não se trata
apenas dos novos esforços com segurança e
programas sociais. E quero dar os parabéns ao prefeito e ao governador pelo excelente trabalho que estão fazendo. Mas também é uma mudança
de atitude.
Como um jovem morador disse, as pessoas não
devem olhar a favela com pena, mas como uma fonte de presidentes, advogados, médicos, artistas e pessoas com soluções. A cada dia que passa, o
Brasil é um país com mais soluções. Na
comunidade global vocês passaram de contar com
o ajuda de outros países a agora ajudar a lutar contra a pobreza e a doença onde quer que elas
existam.
Vocês desempenham um papel importante nas
instituições globais ao promover nossa segurança
como um todo e nossa prosperidade como um todo. E vocês receberão o mundo em seu país
quando a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos
vierem ao Rio de Janeiro. Vocês sabem que esta cidade não foi minha primeira escolha para os
jogos olímpicos, mas, se os jogos não pudessem
ser realizados em Chicago, não tem lugar em que
eu gostaria mais de vê-los do que aqui no Rio.
Por isso pretendo voltar em 2016 para ver o que
acontece. O Brasil foi durante muito tempo um país cheio de potencial, mas atrasado pela política,
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tanto aqui quanto no exterior. Durante muito
tempo o Brasil foi o ―país do futuro‖ e disseram
para que ele esperasse pelos dias melhores que viriam em breve. Meus amigos, este dia finalmente
chegou. Este não é mais o ―país do futuro‖, as pessoas do Brasil devem saber que o futuro já
chegou e está aqui agora. É hora de tomar posse
dele.
Nossos países nem sempre concordaram em tudo.
E assim como ocorre com muitas nações, teremos
nossas diferenças de opinião ao avançar. Mas estou aqui para lhes dizer que o povo americano
não apenas reconhece o sucesso do Brasil, nós
torcemos pelo sucesso do Brasil enquanto vocês
confrontam os muitos desafios que ainda enfrentam em casa e no exterior, vamos ficar
juntos, não são como parceiros sênior e júnior,
mas como parceiros iguais, unidos pelo espírito do interesse comum e do respeito mútuo, comprometidos para com o progresso que sei que
podermos fazer juntos.
Tenho certeza de que podemos fazer isso. Juntos,
podemos aumentar nossa prosperidade em comum. Sendo duas das maiores economias do mundo, trabalhamos lado a lado durante a crise
financeira para restaurar o crescimento e
confiança. E para manter nossas economias
crescendo, sabemos do que é necessário em ambas as nações. Precisamos de uma força de
trabalho capacitada e é por isso que empresas
brasileiras e americanas assumiram um compromisso de aumentar o intercâmbio de
estudantes entre nossas nações.
Precisamos de um compromisso com a inovação e
a tecnologia, por isso concordamos em aumentar a
cooperação entre nossos cientistas, pesquisadores e engenheiros. Precisamos de infra estrutura da
mais alta qualidade e por isso as empresas
americanas também querem ajudá-los a construir
e preparar a cidade para o sucesso olímpico. Numa
economia globalizada, os EUA e o Brasil deveriam
expandir o comércio, expandir investimentos, de
modo a criar novos empregos e novas oportunidades em ambas nossas nações por isso
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estamos trabalhando para derrubar barreiras para
fazer negócios.
Por isso estamos criando relacionamentos mais
próximos entre nossos trabalhadores e nossos empreendedores. Juntos também podemos
trabalhar pela segurança da energia e proteger
nosso lindo planeta.
Sendo dois países comprometidos com economias
mais verdes, sabemos que a solução definitiva ao
desafio da energia virá da criação de fontes de energias limpas e renováveis. Por isso a metade
dos carros daqui pode circular com biocombustível
e a maior parte de sua eletricidade vem de
hidroelétricas. E por isso também demos início a uma nova indústria limpa de energia nos EUA. Por
isso os EUA e o Brasil estão criando novas
parcerias na área de energia, para compartilhar, criar novos empregos e deixar para nossos filhos um mundo mais limpo e mais seguro do que
encontramos.
Juntas, nossas duas nações também podem ajudar
a defender a segurança de nossos cidadãos. Estamos trabalhando juntos para deter o narcotráfico que destruiu vidas demais neste
hemisfério. Buscamos o objetivo de um mundo
sem armas nucleares. Estamos trabalhando juntos
para aumentar nossa segurança ente hemisférios. Da África ao Haiti, estamos trabalhando lado a lado
para combater a fome, doença e corrupção que
podem apodrecer uma sociedade e roubar seres humanos de sua dignidade e oportunidades.
Sendo dois países que foram tão enriquecidos pela herança africana, é vital que trabalhemos juntos
com o continente africano para ajudá-lo a se
erguer. É algo que devemos nos comprometer a fazer, juntos. Hoje também estamos dando apoio e
ajuda ao povo japonês em sua maior hora de
necessidade. Os laços que unem nossa nação ao
Japão são fortes. O Brasil é o lar da maior
população japonesa fora do Japão. Nos EUA,
solidificamos uma aliança com eles que já tem
mais de 60 anos.
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Os japoneses são alguns de nossos amigos mais
próximos e ficaremos ao lado deles, rezaremos
com eles e reconstruiremos com eles até que essa crise esteja terminada. Nestes e em outros
esforços para promover paz e prosperidade no mundo todo, os EUA e o Brasil são parceiros não
apenas porque compartilhamos história ou por
estarmos no mesmo hemisfério, não apenas por
compartilharmos laços de comércio e cultura, mas também porque compartilhamos de valores e
ideais duradouros.
Ambos acreditamos no poder e na promessa da
democracia, acreditamos que nenhuma forma de
governo é mais eficaz na promoção de crescimento
e prosperidade que alcança todo ser humano, não apenas alguns, mas todos. E aqueles que
discordam dizendo que a democracia atrapalha o
crescimento econômico devem argumentar com o exemplo do Brasil. Com os milhões que subiram da pobreza para a classe média não o fizeram numa
economia fechada controlada pelo estado, mas o fizeram como um povo livre, com mercados livres
e um governo que responde a seus cidadãos.
Vocês são a prova de que justiça social e inclusão social podem ser melhor conquistadas por meio da
liberdade e que a democracia é a maior parceira do
progresso humano. Também acreditamos que em
países tão grandes e diversos quanto os nossos, moldados por gerações de imigrantes de todas as
raças, fés e culturas, a democracia dá a maior
esperança de que todos os cidadãos sejam tratados com dignidade e respeito. E que podemos
resolver nossas diferenças pacificamente e
encontrar força em nossa diversidade.
Nós sabemos nos EUA como é importante poder
trabalhar juntos, mesmo quando discordamos. Entendo que a forma de governo que escolhemos
pode ser lenta e confusa. Entendemos que a
democracia precisa ser fortalecida e aperfeiçoada
com o tempo. Sabemos que diferentes países
escolhem caminhos diferentes para atingir a
promessa da democracia. E entendemos que
nenhum país deve impor sua vontade sobre outro.
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Mas também sabemos que existem certas
aspirações compartilhadas por todo ser humano.
Todos queremos ser livres, queremos ser ouvidos, todos ansiamos por viver sem medo ou
discriminação. Todos queremos escolher como seremos governados. Todos querem moldar seu
próprio destino. Esses não são ideais americanos
ou ideais brasileiros, não são ideais ocidentais, são
direitos universais. E devemos apoiá-los em toda parte. Hoje estamos vendo a luta por esses
direitos acontecendo no Oriente Médio e no Norte
da África.
Vimos uma revolução nascer de um anseio por
dignidade humana básica na Tunísia e vimos
manifestantes pacíficos, homens e mulheres, jovens e velhos, cristão e muçulmanos, ocupando
praça Tahir e vimos o povo da Líbia se defendendo
corajosamente contra um regime determinado a tratar com brutalidade seus próprios cidadãos. Em toda parte vimos jovens se erguendo. Uma nova
geração exigindo o direito de determinar seu próprio futuro.
Desde o início deixamos claro que a mudança que buscam devem ser impulsionadas pelo seu próprio povo. Mas para nossos dois países, para os EUA e
para o Brasil – duas nações que passaram muitas
gerações lutando para aperfeiçoar suas próprias
democracias – os EUA e o Brasil sabem que o futuro de nosso mundo era determinado pelo seu
povo. Ninguém pode dizer ao certo como essa
mudança terminará. Mas eu sei que mudança não é algo que devemos temer.
Quando os jovens insistem que as correntes da História estão se movendo, a carga do passado
pode ser apagada. Quando homens e mulheres
exigem pacificamente seus direitos humanos nossa humanidade em comum é
acentuada. Onde quer que a luz da liberdade seja
acesa, o mundo se torna um mais luminoso.
Esse é o exemplo do Brasil. Esse é o exemplo do
Brasil. Brasil, um país que prova que uma ditadura
pode se tornar uma próspera democracia. Brasil, um país que mostra que a democracia entrega
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liberdade e oportunidade a seu povo. Brasil, um
país que mostra que um grito por mudanças vindo
das ruas pode mudar uma cidade, mudar um país, mudar o mundo. Há décadas, foi aqui fora, na
praça da Cinelândia, o grito por mudança foi ouvido aqui, estudantes e artistas e políticos de
todas as correntes ergueram faixas que diziam
―abaixo a ditadura‖, as pessoas no poder.
Suas aspirações democráticas não seriam
realizadas ainda por muito tempo. Mas um dos
jovens brasileiros envolvidos naquele movimento iria mudar para sempre a história deste país. A
filha de um imigrante. Sua participação no
movimento fez com que fosse presa e torturada
por seu próprio governo. Ela sabe o que é viver sem seus direitos mais básicos pelos quais tantos
lutam hoje. Mas ela também sabe o que é
perseverar. Ela sabe o que é triunfar. Porque hoje é ela é a presidente de seu país, Dilma Rousseff.
Nossos dois países enfrentam muitos desafios. Na estrada à nossa frente, com certeza
encontraremos muitos obstáculos. Mas no fim, é
nossa história que nos dá esperança para um amanhã melhor. É o conhecimento de que os homens e mulheres que vieram antes de nós
superaram desafios maiores que estes e que
vivemos em lugares em que pessoas comuns
fizeram coisas extraordinárias.
Esse senso de possibilidade e de otimismo que
primeiro atraiu pioneiros a este mundo. E isso une nossas nações como parceiros nesse novo século,
por isso acreditamos nas palavras de Paulo Coelho,
um de seus mais famosos escritores, que "com a força de nosso amor e nossa vontade podemos
mudar nosso destino. E também o destino de
muitos outros‖.
Muito obrigado. E que Deus abençoe nossas duas
nações.
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PAULINA CHIZIANE E A HISTÓRIA DA POLIGAMIA
OLIVEIRA, Jurema
Paulina Chiziane é autora de A balada de amor ao vento (1990),
Ventos do apocalipse (1995), O sétimo juramento (1999) e Niketche:
uma história da poligamia (2002). Estas duas últimas obras criticam
os costumes e a postura patriarcal da sociedade moçambicana, e
também a prática de se obter o poder a qualquer preço. Estas obras
distintas têm em comum a denúncia dos tortuosos meios encontrados
por um sistema social que silencia as vozes femininas em prol de
uma valoração das ações e feitos masculinos.
Em O sétimo juramento, os valores animistas constituem o foco
da narrativa, que traz à tona uma prática recusada pelo sistema
colonial, mas subentendida no comportamento sócio-cultural vigente
durante o processo revolucionário moçambicano. No dizer de Leite:
O mundo do feitiço e dos mitos esteve sempre
ligado ao comportamento sócio-cultural da maior parte dos intervenientes activos na nova política social de Moçambique, embora de forma mais ou
menos latente. O sétimo juramento, através de uma história de família, de que Vera, é uma das
protagonistas, coloca-nos perante o dilema da confrontação com esse mundo mágico-espiritual,
que questiona, entre outras coisas, a assimilação
dos costumes, a cristalização, resultados ainda do tempo colonial. Questiona ainda os primeiros anos
do pós-independência em que foram proibidas as
práticas feiticistas e religiosas. Este ―apagamento‖
das tradições religiosas animistas, e a ocidentalização dos costumes, levou, por um lado,
ao seu recrudescimento clandestino, por outro à
incapacidade de defesa, e compreensão comportamental, por desconhecimento dessas
mesmas práticas e tradições antigas (2003, p. 69).
O choque cultural presente em O sétimo juramento pode ser
percebido nesta passagem:
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- Diz-me avó, pode o meu filho estar possesso,
pode?
- Os espíritos fazem a vítima sofrer. Abrem caminhos, fecham caminhos, transtornam. Dão
cabo da cabeça, enlouquecem. (...) Estou a rever memórias do tempo antigo. (...) As almas não
morrem, Vera, encarnam-se. E este filho nunca foi
teu nunca te pertenceu. Começa por decifrar o
mistério do seu nome (...). No nome está a raiz do problema. Os antepassados sempre disseram A
VITO I MPONDO! (CHIZIANE, 1999, p.59).
Além da fragmentação conceitual acerca dos rituais do passado
– visíveis na fala da personagem que protagoniza a cena de
possessão do filho – constata-se no decorrer da leitura que ela se
torna vítima da ambição de um homem que faz uma ―viagem
iniciática ao mundo dos mortos, não olhando os meios, sacrificando
ritualmente a família para conseguir os seus almejados objetivos‖
(LEITE, 2003, p.70).
Neste cenário de poder masculino, a figura feminina encontra-
se duas vezes violentada pelos códigos sociais estabelecidos: pelo
patriarcado e pela ausência de conhecimento sobre as tradições
religiosas da comunidade a que pertence, e que a ajudariam a
compreender pelo menos os efeitos das ações daquele homem nos
membros da família, quando estabelece um pacto com os ―mundos
infernais‖ para obter rapidamente o poder desejado.
A crítica aos costumes patriarcais destoantes em o sétimo
juramento também será feita pela via da ironia em Niketche: uma
história da poligamia. Segundo Leite, esta obra se inscreve numa
linha narrativa feminina de crítica à poligamia, que se tornou
recorrente no cenário literário de mulheres africanas que buscam
denunciar por meio da paródia a ―forma perversa como a poligamia
foi adulterada na sociedade urbana, não se respeitando os direitos
que as mulheres tinham na sociedade tradicional‖ (LEITE, 2003,
p.70).
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Niketche: uma história da poligamia conta a história de Tony,
funcionário da polícia e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Em
um determinado momento, Rami descobre que seu marido é
polígamo: tem outras quatro mulheres e vários filhos com cada uma.
As esposas do Tony estão espalhadas pelo país: em Maputo, em
Inhambane, na Zambézia, em Nampula e em Cabo Delgado.
O tratamento dado aos temas sobre a mulher por escritoras
africanas na pós-revolução constitui um ponto de vista diferenciado e
crítico que contribui para a construção de projetos descoloniais. Num
cenário complexo, Paulina Chiziane explicita fundamentos de um
saber africano pautado num:
conhecimento esotérico e oculto, da tradição
religiosa e cultural: práticas de magia, feitiçaria, rituais de morte e de viuvez, rituais de iniciação
sexual, relato das normas e tabus existentes nas
relações familiares e entre homem e mulher
(LEITE, 2003, p.73).
Na qualidade de primeira esposa, Rami sente-se desprezada,
apesar de avaliar o tempo de casamento como uma conquista:
Vinte anos de casamento é um recorde nos tempos que correm. Modéstia à parte, sou a mulher mais
perfeita do mundo. Fiz dele o homem que é. Dei-lhe amor, dei-lhe filhos com que ele se afirmou
nesta vida. Sacrifiquei os meus sonhos pelos
sonhos dele. Dei-lhe a minha juventude, a minha vida. Por isso afirmo e reafirmo, mulher como eu,
na sua vida, não há nenhuma! Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde que ele subiu
de posto para comandante da polícia e o dinheiro
começou a encher as algibeiras, a infelicidade
entrou nesta casa (CHIZIANE, 2004, p.14).
O descontentamento leva Rami a buscar explicações para a
falta de afeto e descobre que sua vida:
É um rio morto. No meu rio as águas pararam no
tempo e aguardam que o destino traga a força do
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vento. No meu rio, os antepassados não dançam
batuques nas noites de lua. Sou um rio sem alma,
não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão
mortal (CHIZIANE, 2004, p.18).
As águas do rio de Rami precisam ser despertadas. Nesse
sentido, ela pede a Deus a força que no passado – anterior a
colonização - os moçambicanos encontravam nos rituais animistas
típicos da tradição:
Meu Deus ajuda-me a descobrir a alma e a força do meu rio. Para fazer as águas correr, os moinhos
girar, a natureza vibrar. Para trazer ao meu leito a
luz de todas as estrelas do firmamento e deixar o arco-íris mergulhar-me em toda a sua imensidão
(CHIZIANE, 2004, p.18).
Rami, a primeira esposa de Tony vive ao sul de Moçambique,
região que de acordo com uma das amantes teria sofrido maior
influência das práticas eurocêntricas:
- Não tens culpa – comenta a Saly. – Vocês do sul deixaram-se colonizar por essa gente da Europa e
os seus padres que combatiam as nossas práticas. Mas que valor tem esse beijo comparado com o que temos dentro de nós? Depois trouxeram a
pornografia, essa estupidez só para enganar os
incompetentes e entreter os tolos (CHIZIANE, 2004, p.181).
Diante do impasse da experiência de ser uma mulher marcada
por ausências e falta de experiências afetivas mais completas, Rami
interroga a mãe acerca de sua aparência e das lições de amor que
não recebeu:
O que acha do meu peso, mãe? Devo emagrecer
como essa Julieta? Isso também é fácil, posso
corrigir o corpo com massagens e ginástica aeróbica. Mas tenho medo de emagrecer. Os
homens pretos gostam de mulheres rechonchudas,
com almofadas para frente, almofadas para trás,
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assim como eu. É verdade, mãe, essas mulheres
todas prendem o Tony com encantos mágicos que
não tenho. Por que não me fizeste mais bonita do que elas, mãe? Por que não me deste lições de
amor para viver sem dor, minha mãe? (CHIZIANE, 2004, p.99).
A personagem Rami representa uma parcela da mulher
moçambicana sem os encantos das macuas que preparam a alma
para dançar o niketche. Um ritmo tradicional do norte de
Moçambique:
Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento
e da chuva, dança da criação. Uma dança que
mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e
missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro
toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se
viveu e se perdeu. As mulheres desamadas
reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua.
Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda sensualidade. Quando a dança termina, podem
ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem
desperta de um sonho bom (CHIZIANE, 2004,
p.160-161).
A narrativa se desenvolve num cenário repleto de contrastes e
nos leva a descobrir juntamente com Rami o desconhecido território
do norte de Moçambique:
– A nossa sociedade do norte é mais humana –
explica a Mauá. – A mulher tem direito à felicidade
e à vida. Vivemos com um homem enquanto nos
faz feliz. Se estamos aqui, é porque a harmonia
ainda existe. Se um dia o amor acabar, partimos à
busca de outros mundos, com a mesma liberdade
dos homens. (...) No sul a sociedade é habitada
por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio
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mundo, condenadas a morrer sem saber o que é
amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são
mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras. Não conhecem a alegria de viver. Não
cuidam do corpo, nem fazem massagens ou uma pintura para alegrar o rosto. Somos mais alegres,
lá no norte. Vestimos de cor, de fantasia. Pintamo-
nos, cuidamo-nos, enfeitamo-nos. Pisamos o chão
com segurança. Os homens nos oferecem prendas, ai deles se não nos dão uma prenda. Na hora do
casamento vem construir o lar na nossa casa
materna e quando o amor acaba, é ele quem parte. No norte as mulheres são mais belas
(CHIZIANE, 2004, p. 175).
Niketche: uma história da poligamia coloca o leitor diante de
uma narrativa que cenariza mundos distintos por meio de um
discurso que pontua ora um universo sulista, ora um espaço
nortenho. De um lado, detectamos as experiências de personagens
cuja memória do corpo está inserida nas práticas pregadas pela razão
imperial/colonial como bem define Mignolo em seu texto
―Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de
identidade em política‖.
Rami representa gerações de mulheres que aprenderam com
suas mães como deveriam se comportar para garantir um
casamento, o lugar de esposa. Sendo assim, conectadas aos
princípios eurocêntricos, as mulheres do sul compõem um quadro
social que remonta um patriarcalismo oriundo da ―colonialidade e da
reprodução da matriz colonial do poder‖ (MIGNOLO, 2008, p.313)
que visa inculcar no sujeito colonizado os valores universais abstratos
como os preceitos judaico-cristãos: ―no passado os homens
deixaram-se vencer pelos invasores que impuseram culturas,
religiões e sistemas a seu bel-prazer‖ (CHIZIANE, 2004, p.93).
O descompasso constitui-se na mola mestra que impulsiona a
narrativa de Niketche: uma história da poligamia. Se de um lado, o
discurso colonialista está presente nas práticas das mulheres sulistas,
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por outro lado o discurso descolonial se faz presente nas vozes de
mulheres nortenhas que não querem ser propriedade e abominam a
ideia de que ―Quem investe cobra, porque é preciso que o
investimento renda” (CHIZIANE, 2004, p.212).
Paulina Chiziane constrói uma narrativa marcada por várias
vozes que sinaliza um desvelar a tradição, a colonialidade e a
descolonialidade: De acordo com Macamo (2002), o conhecimento
social em África pode ser dividido em três momentos nomeadamente
o saber tradicional, o saber colonial e o saber africano. Cabe ressaltar
que o sentido de ―saber‖ proposto aqui está vinculado ao conceito de
discurso disseminado pela ciência da literatura.
Nesse sentido, o saber tradicional vincula-se basicamente às
práticas ritualísticas, como aquelas desenvolvidas pelas mulheres
nortenhas que dançam niketche e frequentam uma escola de amor:
Trata-se de um saber que muitas vezes não é verbalizado e encontra expressão em situações
rituais onde se produz e confirma a ordem social.
Os mitos fundadores de linhagens ou legitimidades de poder constituem momentos privilegiados deste tipo de saber (MACAMO, 2002, p. 11).
Em Niketche: uma história da poligamia, as normas e os
preceitos da poligamia tradicional são relatas no capítulo dezessete:
O ciclo do lobolos começou com a Ju. Foi com
dinheiro e não com gado. Lobolou-se a mãe, com
muito dinheiro, num lobolo-casamento. As crianças foram legalmente reconhecidas, mas não tinham
sido apresentadas aos espíritos da família. Era
preciso trazê-las do tecto da mãe para a sombra do patriarcal num acto de lobolo-perfilha, uma
forma de legitimá-las uma vez que nasceram fora
das regras de jogo de uma família polígama. Depois fez-se o lobolo da Lu e dos filhos. As
nortenhas espantaram-se. Essa história de lobolo
era nova para elas. Queriam dizer não por ser contra os seus costumes culturais. Mas envolve
dinheiro e muito dinheiro. Dinheiro para os pais,
dinheiro para elas, e para os filhos.
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– O meu Tony, ao lobolar cinco mulheres, subiu ao
cimo do monte – diz a minha sogra. – Ele é a
estrela que brilha no alto e como tal deve ser tratado. E tu, Rami, és a primeira (CHIZIANE,
2004, p. 124-125 e 126).
A narradora ao situar o leitor em relação a uma prática sulista
tradicional, alimenta um presente repleto de valores típicos, mas
adulterados pelas ações de um projeto implementado pela razão
imperial/colonial. E para ampliar nossas reflexões, recupera-se aqui
um trecho do ritual kutchinga que ocorre oito dias depois da viuvez:
Agora falam do kutchinga, purificação sexual. Os
olhos dos meus cunhados, candidatos ao sagrado
acto, brilham como cristais. Cheira a erotismo no ar. A expectativa cresce. Sobre quem cairá a bendita sorte? Quem irá herdar todas as esposas
do Tony? Fico assustada. Revoltada. Minha pele se encharca de suor e medo. Meu coração bate de
surpresa infinda. Kutchinga! Eu serei tchingada por
qualquer um. E todos aguçam os dentes para me
tchingar a mim. A parede é firme e fria. Ampara-me. O dorso do chão é duro, é seguro. Suporta-me
É tão cruel e tão malvada esta gente... Peço a qualquer Deus qualquer socorro. Ninguém me
ajuda, nem Deus, nem santos. Kutchinga é lavar o nojo com beijos de mel. É inaugurar a viúva na
nova vida, oito dias depois da fatalidade. Kutchinga é carimbo, marca de propriedade.
(CHIZIANE, 2004, p. 212).
Na construção do quadro de práticas tradicionais explicitadas
em Niketche, destaca-se aqui a história da moela na culinária
moçambicana e de quem deve comer esse ingrediente sagrado:
– Aí é que está o grande mal – diz um velho. – Falas de moelas. Eu estou a falar de uma moela. É
preciso começar a compreender a diferença entre
moelas e moela.
– Diferença?
– Moelas de aviário são uma coisa. Moela, daquela
galinha amorosamente depenada e carinhosamente assada para o marido, é outra
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coisa. É dessa moela que estamos a falar. Não
foram educadas pelas vossas mães? A senhora – o
velho dirige-se à minha mãe – não educou a sua filha. Como primeira esposa é a principal
responsável por essa anarquia. Tem que voltar a ensinar que a moela é sagrada. A moela e não as
moelas.
A minha mãe chora em silêncio. O seu choro é um
canto de ausência, de dor e saudade. Pela irmã que morreu na savana distante nas garras de um
leopardo, por causa de uma moela de galinha. Pela
humilhação que sofremos eu e ela, duas gerações distintas seguindo o mesmo trilho. Revolto-me.
Estou disposta a abrir a boca, a soltar todos os
sapos e lagartos, a incendiar tudo e vingar a honra
da minha mãe ultrajada sem sequer olharem para a sua idade. De repente li a mensagem de paz nos
olhos da minha mãe. Ela não quer que eu deixe
falar a voz do silêncio. – Esses matadouros são um atentado aos nossos costumes – vocifera uma outra velha –, a
civilização está contra a nossa cultura (CHIZIANE, 2004, p. 153 e 154).
Na visão de Amadou Hampâté Bâ,
a tradição confere a Kuma, a palavra, não apenas
poder criador, mas também a dupla função de conservar e destruir. Por isso, a palavra é por
excelência o grande agente ativo da magia africana. Mas para que a palavra produza todo o
seu efeito, é preciso que seja acompanhada
ritmicamente, porque o movimento tem necessidade de ritmo, pois ele próprio se baseia no
segredo dos números. É necessário que a palavra reproduza o vaivém que constitui a essência do
ritmo (1993, p. 17).
O ritmo estabelecido pelos rituais tradicionais em certa medida
foram rompidos no estágio de fixação do saber colonial em África.
Ainda de acordo com Macamo (2002), este saber costuma ser
conotado com a disciplina da antropologia. Nos anos setenta, com a
crescente influência da perspectiva marxista nas ciências sociais,
estabeleceu-se o hábito de criticar a antropologia pela sua
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proximidade com o sistema colonial (p. 11). Essa critica fundamenta-
se na prática, ou melhor, no método usado por alguns antropólogos
que direta ou indiretamente serviram aos propósitos dos regimes
coloniais, mas isso não é motivo para se atrelar a disciplina às
práticas coloniais.
O saber colonial consiste na invenção de valores para uma
intervenção direta nas práticas sociais, em especial na formação
familiar exposta por Paulina Chiziane em Niketche: uma história da
poligamia:
Poligamia é o destino de tantas mulheres neste
mundo desde os tempos sem memória. Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo
deixou as suas raízes e apogalimou-se por
influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-
se de imediato. Porque poligamia é poder, porque
é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo
com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos,
disse não à poligamia. Cristalizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas
mulheres para tornar-se monógamo ou celibatário. Tinha o poder e renunciou. A prática mostrou que
com uma poligamia tipo ilegal, informal sem cumprir os devidos mandamentos. Um dia dizem não aos costumes, sim ao cristianismo e à lei. No
momento seguinte, dizem não onde disseram sim, ou sim onde disseram não (CHIZIANE, 2004,
p.92).
O saber colonial produziu uma sociedade:
africana fictícia, mas real, como artefacto do poder colonial. Portanto, o interesse português pelos
usos e costumes tradicionais em Moçambique,
consubstanciado em profusos estudos realizados principalmente por administradores coloniais foi,
portanto, principalmente motivado pela
necessidade de inventar uma sociedade africana susceptível de intervenção colonial (MACAMO,
2002, p. 14).
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Em relação ao saber africano, podemos dizer que é uma
projeção para o futuro:
Este saber africano não se deve confundir com o
saber tradicional. O que se tem em mente é um tipo de saber que consiste na projecção duma ideia
de África no futuro a partir da confrontação entre o
indivíduo e as condições objectivas da sua
existência no momento actual (MACAMO, 2002, p.15).
A projeção de um saber africano nasce com as ideias
disseminadas por Senghor, Aimé Cesaire, Du bois, dentre outros
pensadores de movimentos como o pan-africanismo e a negritude,
que ao definir a África como uma comunidade de saberes e valores
distintos daqueles pregados pelo ocidente idealizaram um futuro
resultante das experiências cotidianas.
No livro Para quando a África? (2006), Ki-Zerbo faz a seguinte
reflexão:
A história anda sobre dois pés: o da liberdade e o da necessidade. Se considerarmos a história na
sua duração e na sua totalidade, compreenderemos que há, simultaneamente, continuidade e ruptura. Há períodos em que as
invenções se atropelam: são as fases da liberdade
criativa. E há momentos em que, porque as
contradições não foram resolvidas, as rupturas se impõem: são as fases da necessidade. Na minha
compreensão da história, os dois aspectos estão
ligados. A liberdade representa a capacidade do ser humano para inventar, para se projetar para
diante rumo a novas opções, adições, descobertas.
E a necessidade representa as estruturas sociais, econômicas e culturais que, pouco a pouco, vão se
instalando, por vezes de forma subterrânea, até se
imporem, desembocando à luz do dia numa configuração nova. De uma certa maneira, a parte
da necessidade da história escapa-nos, mas pode-
se dizer que, mais cedo ou mais tarde, ela há de se impor por si própria (2006, p. 17).
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A ideia de a história caminhar sobre dois pés fortalece
significativamente os preceitos dos sistemas comunitários de ruptura
com um conhecimento construído a partir do ―conhecimento ocidental
e razão imperial/colonial‖ que neutralizou as experiências de povos
fora do eixo eurocêntrico. O despertar desses grupos toma força à
medida que novas estratégias de ruptura são valorizadas. Sendo
assim, quando Ki-Zerbo (2006) diz que ―não podemos separar os dois
pés da história – a historia-necessidade e a historia-invenção‖ (p.
17), porque no momento preciso a primeira se impõe para que o
sujeito invente novos caminhos para romper com um projeto
saturado e excludente como o imperial/colonial, aonde ―as
identidades construídas pelos discursos europeus modernos eram
raciais (isto é, a matriz racial colonial) e patriarcais‖ (MIGNOLO,
2008, 290). Num segundo estágio do processo em que a história-
invenção fixou-se, a projeção do futuro encontra respaldo naquilo
silenciado pelo discurso eurocêntrico, as práticas comunitaristas que
podem e devem ser fortalecidas pela ―identidade em política‖
(MIGNOLO, 2008, p. 290).
REFERÊNCIAS :
ABDALA JUNIOR, Benjamin. De vôos e ilhas: literatura e
comunitarismos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história da poligamia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
HAMPÂTÉ – BÁ, Amadou. ―Palavra africana‖. In: O correio da Unesco. Ano 21, número 11, Paris; Rio de Janeiro, novembro de
1993.
KI – ZERBO, Joseph. Para quando a África? Rio de Janeiro, 2006.
LEITE, Ana Mafalda. Literaturas africanas e formações pós-
coloniais. Maputo: Imprensa Universitária, 2003.
MACAMO, Elísio. A constituição de uma sociologia das sociedades africanas. Estudos Moçambicanos, 19: s.l: s.n, 2002,
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pp. 5-26. In: http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/468250.pdf.
Acesso em 23/05/2011.
MIGNOLO, Walter D. ―Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política‖. Cadernos de Letras.
Niterói – RJ, número 34, p. 287-325, 2008.
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PELO OLHAR DA SEMIÓTICA: LEITURA E
PRODUÇÃO DE TEXTO
SIMÕES, Darcilia Marindir Pinto
MELO, Eliana Meneses de
INTRODUÇÃO
Voltado para o amplo universo da linguagem, este artigo visa
apresentar reflexões em torno dos diferentes olhares que as teorias
da Semiótica e lingüísticas emprestam ao pesquisador cuja
intencionalidade se direciona à análise e interpretação das produções
discursivas engendradas pela sociedade. O mundo das práticas de
vida é o mundo das linguagens, dos muitos discursos que percorrem
as múltiplas ações e reações na vida cotidiana.
Livres e ao mesmo tempo presos nos constantes diálogos
realizados em diferentes esferas da existência social, as linguagens
são reveladoras de marcas culturais e das mudanças empreendidas
no eixo da história. Mergulhada em mudanças originárias nos fatores
tecnológicos e econômicos, esta sociedade tem em seu cerne a
comunicação e o consumo a transitarem o cotidiano, ao mesmo que
abarcam o homem: sujeito e objeto de um percurso que impõe e
sobrepõe valores. São os efeitos das sociedades complexas, nas
quais, em linhas irregulares, produzem e se fazem circular múltiplos
discursos.
Nas dimensões da complexidade contemporânea encontra-se a
uma gama enorme de percursos revestidos por signos em múltiplas
significações. São as linguagens em criação e recriação a percorrerem
os espaços do contraditório. É o verbo e as imagens que se associam
em torno da metrópole em suas variadas formas de consumo cultural
e entretenimento e que ao mesmo tempo em que integram diferentes
sujeitos do corpo social, espelham as diferenças entre o imaginário e
o lúdico a partir do espaço geográfico de residência e circulação. (
MELO: 2008, p. 8)
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Sendo os diferentes diálogos sociais dinâmicos, os enunciados
que os materializam são igualmente dinâmicos e passam, no mínimo,
por uma leitura para cada sujeito envolvido no ato de comunicação.
Trata-se de leituras realizadas pelos sujeitos e de suas
multiplicidades, como afirma Bakhtin (1988), ao tratar do aspecto
responsivo do ouvinte. Qual seja, o sujeito que recebe o enunciado,
ao compreendê-lo na prática do discurso, está em colóquio com as
suas experiências. Neste sentido, é um sujeito plural que dialoga com
o autor.
A capacidade e habilidades de leitura constituem elementos
essenciais para o desenvolvimento do intelecto. Através das ações
circunscritas à leitura, o sujeito realiza uma atividade de
interpretação que lhe leva a elaborar concordâncias ou refutações,
incorporando , ou não, novas idéias em suas práticas cotidianas.
Por este entendimento, um dos pontos principais em torno do
qual repousa a questão do entendimento e interpretabilidade se
localiza na escrita, no registro efetivo das linguagens. Segundo
TODOROV (1982), qualquer sistema semiótico visual espacial pode
ser considerado um sistema de notação de linguagem: mitografia,
logografia, morfemografia.
O homem tem registrado seus comunicados, suas
intencionalidades discursivas através dos tempos, estabelecendo um
diálogo entre um povo buscando ao outro: informa, comunica,
tornam comum diferentes níveis de necessidades. Da sintaxe
construída por imagens, representações de objetos, até chegar ao
registro dos signos verbais, à semiótica complexa como hoje, a
compreensão dessas sintaxes pressupõe o conhecimento do sujeito
sobre a forma de representação utilizada, ou o desejo de entendê-las,
de decifrá-las. (MELO: 2008. p.19)
Por certo que compreender enunciações, implica no
reconhecimento das formas utilizadas para a comunicação, da cultura
e dos valores que a gerou. A afirmação nos remete às práticas
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sociais, seus sistemas, sujeitos que apresentam diferentes níveis de
experiências culturais e leitura de seu entorno, sempre gerando
outros enunciados.
Haver humanos implica em existir discursos, sujeitos a
produzirem discursos e leituras. Em tempos de diversidades
tecnológicas, novos veículos de comunicação e maior precisão nos já
existentes, tornam-se mais perceptíveis às complexidades sociais:
dos indivíduos e dos discursos por eles produzidos. Sendo assim, a
leitura vai além da apreensão maquinal de sentidos, deve atingir ao
entendimento das situações humanas e gerar novas leituras.
De certa forma, pode-se compreender a leitura enquanto
atividade social: lê-se o que está escrito, seja qual for o sistema
representação. Reside na vida em comum a necessidade da leitura:
ler o que é comunicado. Lê-se a fala dos sujeitos-leitores dos
diferentes cenários: ler as linguagens em circulação, dentro das
possibilidades que envolvem as próprias experiências humanas. Toda
comunicação para ser apreendida, portanto, para ser lida, passa por
um saber específico em relação à modalidade da linguagem na qual
se manifeste o objeto da leitura. Assim, o nível de conhecimento
incide no nível de apreensão realizado pelo sujeito.
Em síntese, no contexto onde as linguagens circulam,
desenvolvem-se as transformações, traços de sentidos adicionados
aos já existentes constroem, nas dinâmicas das linguagens em
movimento, novos recortes e valores: cultura em movimento. Os
sistemas conceituais fornecidos pela Semiótica emprestam a este
artigo caminhos possíveis para reflexões sobre pesquisa, ensino e
práticas de leitura.
1-A LEITURA EM PERSPECTIVA ICÔNICA
Em primeiro plano, a capacidade e habilidade de leitura são
condições fundamentais para o desenvolvimento do intelecto. Pela
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convivência com textos, os sujeitos ampliam a percepção sobre a
linguagem e, em consequência, suas ideias sobre o mundo em sua
volta. Todavia, para que isso ocorra, se faz necessário um trabalho
sistemático de interação com os diferentes textos que produzimos.
Neste âmbito que estão situadas as investigações icônicas para as
práticas de leitura.
Em conformidade com a Semiótica de inspiração nos estudos
de Peirce (1839-1914), se formula a Teoria da Iconicidade Verbal
(SIMÕES, 2007-2009). Essa construção teórica se propõe a orientar a
leitura e também a produção de textos, baseando-se nas qualidades
e relações sígnicas, a partir da possibilidade em identificar ícones e
índices (função semiótica) na superfície dos textos.
Uma vez compreendidas as funções semióticas, os sujeitos
estarão preparados para enfrentar leituras de textos simples e
complexos, a partir daí poderão enfrentar os sinais que lhes dão
condições de entender a mensagem do texto.
A Teoria da Iconicidade verbal vem suprir a necessidade
crescente de uma base teórica que observasse o signo em sua
materialidade sonora e visual. O interesse pela materialidade do
signo surge ao se considerar a mediação durante a interação
comunicativa. Seja no nível da oralidade, seja no nível da escrita, a
materialidade do signo se evidencia. Nestes termos, acredita-se na
premissa de que qualquer signo é criado a partir da imagem mental
sobre algo. Essa primeira imagem é um ícone. Ela se torna conhecida
por meio de sua representação de um ícone de segunda, ou
hipoícone, o qual tenta re(a)presentar o objeto pensado a partir de
um sinal material ou gráfico.
Disso é possível deduzir que temos por premissa que o ícone é
fonte primária do signo. A prova disso é encontrada na origem da
comunicação humana, já que as primeiras linguagens humanas se
constituíram a partir das imagens.
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Segundo SIMÕES (1994i - 2009), ―O iconismo da imagem se
assenta em relações de analogia ou similaridade com seu referente
(ideia-objeto representada).‖ Conforme a Semiótica visual, a imagem
é uma manifestação auto-suficiente, une um texto porque comunica
uma mensagem (SIMÕES, id.).
Existem diversas posições teóricas sobre iconicidade. Ocupamo-
nos da iconicidade do signo verbal, na qual se destaca a iconicidade
diagramática. Diferentemente do construto de Saussure, o enfoque
paradigmático e sintagmático no plano semiótico observa as relações
simbólicas possíveis extraídas da superfície textual, as quais servem
de indutores para a interpretação.
Cumpre esclarecer que, nessa perspectiva, não são
consideradas as relações in praesentia o in absentia – tão relevantes
para o estudioso genebrino. Do ponto de vista semiótico aqui
adotado, os signos produzem sua semiose a partir da relação
imediata emergente de sua participação nos textos. Não se devem
desprezar as inferências, ilações, implicaturas etc., mas a produção
do signo interpretador do signo interpretado nasce da
contextualização do signo, já que tudo pode ser signo de tudo (cf.
SIMÕES, 2007, p.42).
Ademais, signo é tudo o que possa ser conhecido, tudo o que
possa ser reconhecido. Todavia, para que um signo potencial possa
funcionar como signo, deve estar relacionado a um objeto, deve ser
interpretado e produzir um interpretante na mente do sujeito
implicado. Este processo interpretativo é denominado semiose. E a
iconicidade focalizada neste artigo é a potencialidade de materializar
nas mentes interpretadoras signos-referência, os quais deflagrem o
processo interpretativo independentemente do código em uso
(SIMÕES ibidem).
Assim sendo, o edificio da Teoria da Iconicidade Verbal tem por
premissas:
1. O signo verbal é uma imagem. (sonora o visual);
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2. A seleção e a combinação produzem a iconicidade textual no
nível diagramático;
3. O projeto comunicativo se baseia na verossimilhança e visa à
eficácia textual;
4. O texto deve ser analisado em seus atributos plásticos;
2- ACTANTES, ENUNCIADOS E LEITURA
Nos termos apontados por Greimas (1979, p.11), um enunciado
omitido nas manifestações textuais assinala a presença de
enunciados subjacentes que aparecem como uma representação
sintático-semântica e que expressa um nível de estrutura profunda.
As estruturas de superfície manifestam textos ocorrenciais. Assim, o
enunciado elementar é concebido como função que se relaciona por
relações paradigmáticas.
No nível do esquema sintático, compete às unidades
paradigmáticas organizarem a narrativa. Para Greimas (Op cit, p.18
)―é somente o reconhecimento das projeções paradigmáticas que
permite falar da existência das estruturas narrativas‖. Ao reconhecer
as relações pragmáticas, igualmente são reconhecidas a as
sintagmáticas que também podem desempenhar o papel de eixo
condutor das emanações por onde se articulam os elementos de
expressão do sentido.
Nas dimensões do espaço destinado ao enunciado de base é
onde encontramos o sujeito com um actante definido pela função na
qual se inscreve. Nas relações sintagmáticas (presentes na estrutura
narrativa) repousa um sentido, um agente motivador. Situa-se nesse
ponto o que Greimas chamou de conceito operatório e que evidencia
o esquema narrativo, locus de articulação da atividade humana a qual
erige em significação (1979, p.14).
Desta forma, implícita ao sentido produzido nas comunicações
está a sintaxe pela qual circulam actantes de um discurso, no
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contexto da enunciação. A memória dos actantes aparece nos
discursos através do encadeamento de certos elementos que na
enunciação expressam as marcas de espaço, tempo e dos sujeitos
que se situam na enunciação. Cada discurso contém determinantes
para a sua leitura, diretamente implicados aos seus estatutos
discursivos e ao conjunto de signos através dos quais ganham
materialidade.
3 - A LEITURA E O LEITOR
Ao trazermos a este contexto os postulados da Semiótica
narrativa e discursiva, o fazemos por entender que, ao lidarmos com
o leitor contemporâneo nos cenários das práticas pedagógicas, o que
se observa na maioria dos casos, principalmente nos estudantes que
iniciam a graduação - e até mesmo nos já graduados – são relações
de leitura nas quais o sujeito leitor posiciona –se como único. Neste
caso, o diálogo entre sujeito autor e sujeito leitor deixa de existir , ou
se torna frágil.
Necessário se faz termos em mente que a negação do outro
decorre das dificuldades em compreender que ler implica em
desmanchar o percurso elaborado pelo outro, retirando o conteúdo,
o conjunto de idéias emanadas pelo texto. Os índices oficiais sobre o
desempenho de nossos alunos, assinalam o resultado de tal prática.
Por este anglo, a experiência docente nos revela que a leitura se
realiza por transferência, por um desejo de que o outro tenha querido
dizer algo que se ajusta às vivências do leitor.
Inegável é o fato de que somos frutos de nossas experiências e
que nossa visão de mundo se origina do mundo culturalmente
compartilhado. Nossa reflexão caminha para as questões que se
manifestam no cotidiano com a leitura, na percepção de papel
desempenhado pelo leitor frente ao texto acadêmico. Nesta
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modalidade textual, o sujeito –leitor é inserido nos mecanismos de
construção e comunicação do conhecimento.
O sujeito – leitor fica diante, sobretudo, de um universo lexical
e dos procedimentos normativos do grupo comunitário profissional e
científico ao qual pertence o discurso produzido, em um contexto
específico. Trata-se, em termos gerais, de reconhecermos diferenças
motivadoras que circundam a elaboração de um texto acadêmico e a
necessidade de haver uma preparação para a realização da leitura.
De maneira geral, o sujeito-leitor , no caso dos graduandos, não
dispõe de ferramentas que o auxiliem a penetrar na leitura.
Em decorrência, em termos exemplificativos, reportamo-nos
aos textos de TCC (Trabalhos de Conclusão de Curso), nos quais é
comum a presença de produção textual cuja intencionalidade seja
apresentar as idéias de determinados autores ou teorias. Muitas
vezes, o que temos é uma distância acentuada entre os conceitos, ou
proposições de pesquisadores, e o que o sujeito – leitor – aluno trás
em seu texto.
O fenômeno identificado mostra um leitor que lê a si próprio no
outro. Narra uma intencionalidade discursiva atribuída a determinado
autor, fato muita vezes cobrado em bancas examinadoras. A
problemática ganha destaque na medida em que, ao entrarmos nas
dimensões do texto científico, saímos do imaginário subjetivo,
alimentado pela poética, para atingirmos a literatura científica e seu
estatuto: comunicação da produção do conhecimento.
A aplicação de elementos da teoria greimasiana como
ferramenta na formulação de um método para as práticas de leitura
da literatura científico- acadêmica tem se revelado eficaz. Dela
destacamos alguns pontos: a concepção da narração sempre
presente nos níveis mais profundos; os papéis actanciais e o percurso
em torno do objeto- valor.
Em primeiro plano, ao se ter à compreensão segunda a qual
toda produção textual apresenta, independentemente da forma
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manifestada, tem em sua estrutura profunda a intencionalidade
narrativa, permite a formulação de uma primeira base conceitual
sobre a literatura acadêmico-científica e um instrumental para o
sujeito –leitor: o autor tem como intencionalidade contar o
pensamento dele em torno de determinada temática, narrar a idéia e
como chegou a ela e em quais pontos a fundamenta. Neste caso, o
sujeito-leitor deve identificar o caminho elaborado pelo sujeito-autor.
Com relação aos papéis actanciais, temos aí um ponto
fundamental para a leitura do texto científico: a separação entre o
sujeito-leitor e o sujeito – escritor. Separadas essas relações
actanciais, opera-se um fato importante que é a identificação dos
sujeitos com os quais o escritor dialoga para a fundamentação de
suas idéias. Quais os papéis de cada um no contexto do discurso
elaborado? Em relação ás idéias, cumprem o papel de adjuvantes ou
oponentes?
Como define Greimas, no clássico Prefácio à obra de Courtés:
o percurso narrativo de um destinador, possa aparecer não apenas como o lugar de exercício do poder estabelecido, mas também como aquele que
em que esboçam os esquemas de manipulação e
se elaboram ações narrativas auxiliares visando
levar os sujeitos a realizarem um determinado fazer desejado ( COURTES, 1979,p.33 )
Nos termos da literatura acadêmica, o autor é o destinador cujo
objeto valor reside na própria comunicação do conhecimento. Para
tal realiza programa narrativo constituído ações reflexivas e práticas
que nortearam o resultado final. Do tema à sustentação de hipóteses,
portanto, o destinador busca a sedução baseada em mecanismos
operacionais característicos do universo de discurso acadêmico. Seus
pares, referências e fontes de pesquisa, ajudam a configurar a lógica
da sedução.
A conjunção com o objeto de desejo está presente na medida
em que se realiza a leitura, a decomposição do percurso elaborado
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pelo destinador. Compete ao leitor, em seu papel a de sujeito,
caminhar pelo percurso do outro, do autor e identificar cada as
narrativas auxiliares trazidas no texto que dão forma as idéias do
outro, do destinador. Em posse do percurso realizado pelo outro pode
expressar seu saber e conhecimento e trazer o resultado desta leitura
para a elaboração de outro discurso, outro texto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A preocupação com as práticas pedagógicas voltadas à leitura
nos diferentes níveis de ensino está presente em vários seguimentos
de pesquisa. Muitos são os resultados de avaliações que ganham
espaços em diferentes veículos midiáticos revelando resultados
aquém do que se espera do estudo em habilidades de leitura.A
Sociedade do Conhecimento precisa de mais seres envolvidos no
sistema social e com o conhecimento. Na chamada massificação do
ensino superior, esse destinatário é acentuadamente marcado por
todos os fatores .
Estamos falando da comunicação do conhecimento: da leitura
difícil ou da leitura fácil. Reside nesse ponto a problemática: como
formar indivíduos socialmente responsáveis, capazes de identificar
problemas, gerar soluções e comunicá-las em um universo do saber/
conhecimento enquanto objeto de consumo? Na sociedade para a
qual ver se confunde com saber? Longe de esgotarmos a temática,
apresentamos um caminho que trilhamos em busca de instrumentais
para o trabalho com a leitura e o sujeito leitor.
A Semiótica, seja qual for a vertente, oferece base conceitual
para a realização de leituras das diferentes linguagens.Neste sentido,
ter como subsídio um diálogo entre teorias da Semiótica e da
Linguística, com vistas a orientar a análise e a interpretação das
produções discursivas — materializadas em textos na sociedade e nas
salas de aula.nos diferentes níveis de ensino tem revelado resultados
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edificantes,seja qual for a modalidade textual. Levando-se que as
dinâmicas em aulas de linguagem têm por objetivo a eficácia na
comunicação,implícito está a necessidade de dotar o sujeito de um
saber específico em relação à modalidade da linguagem na qual se
manifeste o objeto da leitura.
Por último, o nível de conhecimento remete ao nível de
apreensão realizado pelo sujeito. A partir das bases conceituais de
Peirce, nasceu a Teoria da Iconicidade Verbal, que vem subsidiando
as aulas de gramática e estilística; no mesmo caminho, a utilização
de recursos inspirados na teoria de Greimas, temos desenvolvemos
estudos dos processos de enunciação, sujeito e leitura que dão
suporte à leitura e a produção de textos acadêmicos. Além de
otimizar o ensino dos conteúdos linguístico-gramaticais
indispensáveis ao adequado desempenho verbal nas instâncias
públicas (a norma culta), estamos conseguindo formar sujeitos
leitores plurais.
REFERÊNCIAS :
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
COURTÉS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva.
Coimbra: Almedina, 1979.
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A ÉTICA POLÍTICA NA PRIMEIRA REPÚBLICA
NA FICÇÃO DE LIMA BARRETO
MESQUITA, Sergio Luiz Monteiro
Qualquer estudo sobre a obra do escritor Lima Barreto muito
dificilmente poderia deixar de tocar na questão de sua crítica social
contundente e inquietante em relação ao Brasil que conheceu em seu
tempo e que, em linhas gerais, quase não difere do Brasil deste início
do século XXI. Dentro desta crítica, muita vez efetuada sob a forma
de alegoria e sátira, comparece o comentário e a análise dos fatos
políticos contemporâneos à sua atividade literária; comentário e
análise necessariamente indissociáveis de uma avaliação ética,
manifesta ou implícita. Diversos autores têm analisado o conteúdo da
crítica barretiana, entre outras coisas, às práticas políticas brasileiras
e ao caráter dos dirigentes nacionais, incluindo as motivações
pessoais, éticas e estéticas de Lima na produção desta crítica.
Intelectual atento à vida de sua sociedade, Lima Barreto interessou-
se pelo desenrolar dos eventos políticos, no período histórico em que
viveu, a Primeira República, também conhecida como República Velha
(1889-1930). Deixou registradas as suas impressões sobre eles, em
diversas modalidades de escrita, às vezes abordando repetidamente
os mesmos fatos e situações, sob luzes diferentes.
Objetivamos no presente trabalho, a nível geral, abordar a
postura de Lima Barreto sobre a questão da ética na política oficial do
Brasil durante o primeiro período do regime republicano, lembrando
que, morto o escritor em 1922, não chegou a abranger com sua
observação todo o período. De modo específico, entre os momentos
da história dessa república inicial do Brasil, comentados ou
apresentados pela escrita de Lima Barreto, focamos o governo do
presidente Hermes da Fonseca (1910-1918). Este período é
apresentado ficcionalmente em vários escritos do autor; recordamos
principalmente as novelas ―Numa e a ninfa‖ e ―As aventuras do
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Doutor Bogóloff‖, e os ―Contos Argelinos‖. Os textos básicos sobre os
quais trabalharemos serão os chamados ―Contos Argelinos‖. A citação
que fizermos de outras obras do autor atenderá basicamente ao
objetivo de ilustrar algumas observações sobre a época, a sociedade
e o regime, que julgamos necessário fazer, a fim de uma melhor
abordagem do nosso objeto específico.
Quanto à escolha dos ―Contos Argelinos‖ para basear nossas
observações sobre esta questão ética, vale colocar algumas palavras.
Há alguns anos atrás, lendo uma coletânea de contos de autoria de
Lima Barreto, deparamo-nos com um conjunto destacado sob o título
―Contos Argelinos‖, formando uma coleção de pequenas sátiras
políticas (LIMA BARRETO: 1990, pp.231-258). Foi justamente seu
tom alegórico que nos chamou a atenção e induziu-nos a relacionar
as indicações do texto com fatos e pessoas da realidade social e
política brasileira da época do autor. Assim, fomos identificando a
cada parágrafo personagens e situações do governo conturbado do
marechal Hermes da Fonseca. Mais tarde, tivemos conhecimento do
lançamento, em 2010, de um livro do pesquisador de literatura Mauro
Rosso, apresentando de forma organizada e comentando os ―contos
argelinos‖ e outros textos recuperados de Lima Barreto, inclusive
textos de teatro (ROSSO: 2010, pp.71-118). Nessa obra, vimos que
Rosso praticou exercício semelhante de identificação de personagens
e situações, o que nos foi bastante útil para corroborar algumas
hipóteses nossas neste exercício e nos dar preciosas indicações.
Relacionando esses textos a outros do autor em que
comparecem referências a esta quadra da era republicana, tivemos o
interesse em observar e analisar como a ficção barretiana tratava
fatos da história da Primeira República deste teor, ou seja, fatos cuja
dramaticidade manifestou-se de forma mais intensa, seja pelos
episódios de violência que envolveram, seja pelos contextos de crise
política nos quais tiveram lugar. Também refletiremos sobre sua
postura em relação a este tipo de atos quando cometidos por
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governos conduzidos por mandatários militares. Lembremos os
conflitos que marcaram o governo de Floriano Peixoto, cuja violência
e os seus componentes ideológicos e sociais receberam uma
descrição magistral em Triste fim de Policarpo Quaresma, tendo como
ápice dramático a crueza dos confrontos e da repressão à Revolta da
Armada. O governo de Hermes, década e meia depois, teve em
comum com o de Floriano a passagem ao primeiro plano das ações
dos setores militares ligados a cada um desses dois presidentes.
Junto a isto, embora não se possa classificar o caráter geral das
administrações de presidentes civis da época como propriamente
pacífico, estes dois governos de presidentes militares chamam a
atenção pelo extenso recurso às armas de que lançaram mão, a fim
de tratarem de seus problemas, sem esquecer da fraude e da
intimidação, por sinal uma constante no modus operandi das práticas
institucionais do período.
Propomo-nos também a refletir sobre a intencionalidade de
Lima Barreto em relação ao efeito que ele pretendia alcançar,
mediante a narrativa em forma alegórica de algumas das peripécias
principais do governo do marechal Hermes da Fonseca; forma bem
diferente da que utilizou para relatar o calvário do patriotismo do
major Quaresma, sob o governo de Floriano. Ligados a isso, os
possíveis motivos para que acontecimentos da gestão Hermes fossem
apresentados sob forma alegórica. Uma possível explicação
consistiria em que a prudência teria pautado as páginas escritas por
Lima Barreto nos ―Contos Argelinos‖, fazendo-o evitar alusões diretas
aos principais responsáveis pelos fatos que apresentou. Eram
membros da camada dirigente, os quais, mesmo com o encerramento
do mandato em que os fatos se deram, ainda ocupavam posições de
poder dentro do sistema político, o que os tornava obviamente
elementos temíveis. Os contos em questão que tratam
especificamente destes acontecimentos foram publicados entre maio
e agosto de 1915, ano seguinte à saída de Hermes da presidência,
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formando uma série na revista Careta, quando a lembrança dos
acontecidos estava obviamente fresca, e passível de incomodar.
Acresce o fato de que, sendo os envolvidos nesses atos de desmando
e violência, na maioria, militares, alguma represália advinda deles
encontraria ainda mais vulnerável o humilde amanuense da
Secretaria da Guerra que ousava criticá-los, e suas ações. Daí, ficaria
explicado o revestimento alegórico que Lima Barreto imprimiu às
narrações desses eventos tempestuosos da presidência Hermes da
Fonseca. É uma das questões que a leitura desses contos suscita.
Outra questão, cujo caráter geral envolve as anteriores, e que
os liga a outros escritos do autor referentes à fase do mandato de
Hermes, constitui-se em torno da caracterização do tipo de regime
republicano brasileiro e do quanto à situação institucional influía nas
posturas éticas – e aéticas – dos seus cidadãos, em especial dos
dirigentes.
O panorama brasileiro do período mediado pela passagem do
século apresentava um novo regime político, cujas bases ainda eram
frágeis e que buscava se consolidar. As dificuldades dos fundadores
da República de impor a nova ordem evidenciavam-se nas lutas
acirradas entre os grupos dirigentes e nos movimentos de protesto e
contestação partidos de vários setores da sociedade, mormente os
menos favorecidos do ponto de vista social. O interrompido governo
do marechal Deodoro, a ditadura de Floriano e os primeiros mandatos
de governo civil que se lhes seguiram transcorreram num esforço de
consolidação do regime, cuja dificuldade mostra, entre outras coisas,
a carência de bases sociais fortes. A camada dirigente republicana, à
falta de mecanismos institucionais mais sólidos, apelava com
desenvoltura para recursos escusos de controle sociopolítico, como a
utilização de elementos ligados ao crime e à marginalidade,
mantendo assim a ordem com componentes da desordem. Numa tal
ambiência, os limites éticos de comportamento político afrouxavam-
se e padeciam de uma enorme imprecisão. A República não
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entusiasmava a imensa maioria da população, na qual avultavam as
classes subalternas, as quais demonstravam por suas atitudes a
contrariedade por não terem seus interesses coletivos levados em
consideração pelos governos, e revelavam a constatação, acertada,
de estarem excluídos do jogo político (CARVALHO: 1987, pp.161-
164). Foi este quadro que Lima Barreto conheceu durante sua
atividade de homem de jornal, cronista, contista e romancista.
A condução dos negócios públicos por uma elite governante
avessa aos interesses populares e composta, na quase totalidade, de
indivíduos e grupos, unidos em solidariedade de classe, apenas para
a manutenção de uma ordem que os favorecia particularmente,
tornou-se alvo da escrita questionadora do intelectual, identificado
com as classes subalternas e uma ética de viés coletivo. Através do
depoimento fictício de um de seus personagens, o Dr. Bogoloff,
golpista russo radicado no Brasil e habitué dos meios políticos
nacionais, Lima Barreto explicita em linhas gerais o teor dessa prática
de poder: ―A política, por esse tempo, mais do que nunca, constituía
um jogo de interesses estritamente pecuniários, representados pelos
proventos dos cargos e o que se arranja com auxílio deles.‖ (LIMA
BARRETO: 2001, pp.130-1). No mesmo sentido, o cronista-narrador
de ―Os Bruzundangas‖, descrevendo a discussão política na sociedade
da República da Bruzundanga (o Brasil), assevera: ―A política não é aí
uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma
vulgar especulação de cargos e propinas‖ (LIMA BARRETO: 1998,
p.72).
Manifestações análogas dessa opinião, extremamente
desfavorável sobre o regime republicano, tal como se instalara no
país, estão presentes em diversas passagens da produção do escritor,
ao longo dos anos, deixando fora de dúvida que tal ideia constituía
uma das linhas-mestras da mesma produção, e testemunhando a
constância e a solidez que ela adquirira no espírito de seu autor.
Nesse sentido, conforme frisaram diversos outros autores, o interesse
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no enriquecimento particular, a corrupção e a venalidade se encaixam
na cultura do patrimonialismo, que se caracteriza pela frouxidão de
limites entre o que seria público e aquilo que constituiria a esfera do
privado, eis que os agentes da ordem política tendem a considerar,
em última análise, o Estado como uma instância que pode ser
apropriada por particulares e utilizada para seus fins. Nesta
perspectiva entram o uso do monopólio legal da força, conferido pelo
Estado a esses agentes, e o prestígio da autoridade, para a prática de
atos duvidosos do ponto de vista ético, ainda que supostamente sob
a cobertura da lei. O desenrolar do governo Hermes, inclusive em
suas origens, forneceu fartos exemplos que Lima Barreto aproveitou
para estabelecer a confrontação entre a realidade dos fatos e valores
éticos, considerados minimamente necessários para a existência de
uma sociedade equilibrada.
A presença do marechal Hermes na sequência dos presidentes
da chamada República Velha foi um caso algo destoante, em relação
ao critérios de escolha dos candidatos à presidência, que vigoravam
nessa época. A ―política do café com leite‖, que as elites hegemônicas
de São Paulo e Minas Gerais impunham, para orientar a escolha dos
futuros presidentes da República, fazia com que se alternassem na
presidência políticos indicados por um desses estados e políticos
apontados pelo outro. É claro que este esquema, para se realizar,
necessitava do comum acordo dessas duas elites, mesmo à revelia
dos interesses das demais elites estaduais. Estas últimas, em geral
fracas e dependentes do governo federal, não podendo se opor com
eficácia aos desígnios dos estados mais poderosos, buscavam retirar
do esquema o que era possível em termos de benefícios através de
barganhas e favores.
A indicação do marechal sobrinho do ex-presidente Deodoro
resultou de um impasse entre as lideranças com poder decisório na
sucessão presidencial. O presidente Afonso Pena, mineiro, ele mesmo
eleito em função do ―café com leite‖, após tentar infringir a
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combinação dessa ―média‖ oligárquica, indicando por sua própria
conta um sucessor, entrou em séria complicação política, a qual teve,
por desfecho inesperado, a sua própria morte durante o mandato
sem que houvesse candidato oficial definido. Na crise que se seguiu à
morte do presidente, enquanto o vice Nilo Peçanha concluía o
mandato e procedia à realização da eleição para o próximo
quatriênio, os nomes sugeridos para a sucessão esbarravam em
obstáculos, inclusive o de Hermes, ex-ministro da Guerra do falecido
presidente. No entanto, ele superou os seus concorrentes à
candidatura oficial. As razões de sua vitória preliminar na posição de
candidato oficial e da posterior ascensão à cadeira presidencial
derivaram de dois fatores: a dificuldade, não vencida pelas
oligarquias estaduais mais importantes, de se compor em torno de
um nome, e a atuação do senador Pinheiro Machado e aliados. Eles
viam na entrada do poderoso militar na disputa presidencial um meio
de sacudir o esquema de controle do Executivo federal por São Paulo
e Minas, em favor de oligarquias menos poderosas, como era o caso
do Rio Grande do Sul, estado representado pelo senador. À época,
embora não participasse do esquema hegemônico a nível federal,
Pinheiro Machado era considerado como o político mais influente do
país, verdadeiro ―diretor da política nacional‖. Incapaz de obter uma
hegemonia isolada da oligarquia de seu estado, o político gaúcho
seguia a estratégia de tentar reunir em torno de si as oligarquias
descontentes com a política do ―café com leite‖, sem abrir mão de
outros apoios. Como o das lideranças do Exército, com muitas das
quais mantinha um bom relacionamento. Nisto, seguia a tendência da
oligarquia situacionista do Rio Grande do Sul à qual pertencia
chefiada por Júlio de Castilhos e em seguida Borges de Medeiros,
unindo forças com a Arma desde os tempos da ditadura de Floriano.
Desde os tempos do Império, o Exército via desenvolver-se em
suas fileiras um sentimento de classe e a vontade de participação
mais ativa na política brasileira, que se consubstanciaram em
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conflitos com autoridades civis, julgadas hostis e desrespeitosas para
com a Força. Os estimuladores e condutores desse processo de
afirmação acabaram por envolver as tropas numa atitude de
animosidade frente ao regime imperial, habilmente capitalizado pelo
movimento republicano, do que resultou a intervenção militar que
proclamou a República, como se sabe. Num clima ideológico onde
circulavam e ganhavam força as idéias do positivismo, e no qual
admirava-se o exemplo de republicanismo das nações da América,
elaborou-se a representação da ação política levada a cabo pelos
militares como a atitude do ―cidadão fardado‖, figura ideológica
justificadora da tendência intervencionista do soldado, no tocante aos
rumos da vida política nacional. Esse ―militarismo‖, concentrado nas
lideranças do Exército, ao consubstanciar-se em comando político,
atraía a simpatia de setores republicanos postos à margem do poder
pelos desígnios das oligarquias tradicionais dominantes, enquanto
estas, agrupadas mesmo desigualmente em torno da política do ―café
com leite‖ e dos conchavos das ―política dos governadores‖, tendiam
a eternizar os seus representantes no controle dos governos federal e
estaduais. O ―jacobinismo‖ de grupos e indivíduos civis,
principalmente urbanos, refletiu o entusiasmo de alguns dos setores
a que nos referimos, apoiando a intervenção militar para a
manutenção do regime, realizada pelo governo militarista de Floriano.
Todavia, desde a posse do primeiro presidente civil, a influência
militar na política sofrera um refluxo. A classe dos latifundiários,
liderada pela cafeicultura, assumia através de seus representantes o
leme do Estado. A crise sucessória do final do governo Pena
constituiu, então, uma oportunidade de recuperação desse
protagonismo do Exército.
Perante a possibilidade de surgir um governo encabeçado por
elementos do Exército, dos que cercariam o futuro presidente, houve
reação contrária nos meios oficiais. Rui Barbosa incluía-se entre os
políticos cotados para ser o candidato oficial e, participando do
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debate nas instâncias decisórias, levantou-se decidido contra o
crescimento do nome do ex-ministro da Guerra. Assumindo a função
de porta-voz dos descontentes com o advento do ―militarismo‖, o
advogado baiano não se conformou com a decisão das instâncias
federais de apoiar o sobrinho de Deodoro para a sucessão de Pena,
rebatendo com o lançamento de sua própria candidatura para a
disputa eleitoral. Mais do que uma competição renhida, diferindo da
maioria das campanhas presidenciais da época, em que o peso da
ajuda oficial, a fraude e a intimidação eram decisivas para uma
tranquila vitória dos candidatos oficiais, a disputa que definiu nas
urnas e no reconhecimento do Congresso o sucessor de Afonso Pena
foi um acontecimento sem precedentes. Foi a primeira campanha
eleitoral para a presidência digna desse nome; despertou um genuíno
interesse pela escolha do presidente e do vice-presidente, fora dos
círculos do poder, conseguindo entusiasmar multidões,
principalmente nas áreas urbanas. A ―Campanha Civilista‖, como foi
crismada, apelou à opinião pública, com manifestações voltadas para
a população e a criação de um clima de debate através do país. O
tribuno que animava a oposição, dessa vez, era uma voz autorizada e
no auge de seu prestígio. Junto com Rui, comandava a campanha
Albuquerque Lins, presidente de São Paulo e nesse momento seu
companheiro de chapa. No apoio a Rui, três estados: além do estado
bandeirante, a Bahia, área de influência do candidato oposicionista, e
o Rio de Janeiro. A população envolvida no debate nacional pôde ter
a impressão de que lhe era possível, formando maioria, escolher o
vencedor. Contudo, seguindo a praxe do sistema, venceram Hermes
da Fonseca e Venceslau Brás, tanto nas eleições quanto no
reconhecimento dos poderes. Rui ainda tentou obter a impugnação
do marechal, sem êxito. Contagiado de alguma forma pelo esforço
civilista, Lima Barreto apoiou Rui no pleito, incluindo-se entre os
muitos cidadãos que lhe declararam apoio. Apoio menos por simpatia
a Rui do que por aversão ao militarismo, que ameaçava entronizar-se
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com a chegada de Hermes ao posto de supremo mandatário
(BARBOSA: 1981, pp.187-188).
Com efeito, o temor dos civilistas e seus simpatizantes, de ver
retornar o arbítrio e a violência militar, não deixou de se materializar
na gestão do marechal Hermes. A animosidade e a agitação que
haviam caracterizado a recente campanha eleitoral tinham
contribuído para evidenciar com mais contundência a fragilidade
política da posição do marechal, tanto como candidato, quanto como
presidente. Uma providência para sanar esse problema foi a formação
de um novo partido para apoiá-lo durante a gestão, o Partido
Republicano Conservador, iniciativa de Pinheiro Machado. No entanto,
apesar de medidas nesse sentido, Hermes e seus colaboradores mais
íntimos inclinaram-se por atitudes mais drásticas para debelar as
oposições e assegurar o controle do país. Não esqueçamos que, nem
bem tomara posse, ainda no final de 1910, explodira a rebelião dos
marinheiros contra a prática dos castigos corporais na Marinha de
Guerra, conhecida como Revolta da Chibata, episódio que abalou
bastante o prestígio do governo federal. Embora a candidatura do
marechal tivesse sido apoiada por boa parte das oligarquias
dominantes nos estados do norte e nordeste, atreladas à aliança com
o bloco de Pinheiro Machado, o governo central passou a estimular ou
ao menos tolerar tentativas de substituição dessas oligarquias
promovidas por integrantes de seu círculo de colaboradores, no geral
militares. Decisivo para a adoção de tal procedimento foi o fato de
que a ascensão de Hermes representou a elevação de diversos de
seus familiares e amigos pessoais para posições políticas de relevo.
Ao mesmo tempo, excitou a cobiça de vários para a conquista de
postos ainda mais importantes. Entre estes estavam membros de seu
ministério, que se dispuseram a conquistar governos estaduais,
utilizando a simpatia e os favores do presidente. O grande
instrumento dessas tentativas de subverter o status quo dentro de
vários estados foi o Exército, em cujo interior circulava um discurso
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que conferia aos militares a missão de remover as oligarquias ineptas
e opressoras, a fim de ―salvar‖ os estados que estas dominavam
discricionariamente.
Iniciava-se sob o governo Hermes a política das ―salvações‖,
cujo método pode ser resumido no seguinte: o lançamento de uma
candidatura concorrente à da situação de cada estado, normalmente
de um oficial do Exército, em vista da eleição para presidente
(governador); processo que desencadeava durante a campanha um
clima de agitação e violência dentro do estado em questão. O
desfecho seria a deposição da oligarquia dominante, com a eleição do
candidato oposto através do simples sufrágio, ou a sua imposição ao
estado por meio da intervenção de tropas federais e seus aliados.
Essas ―salvações‖ deveriam atingir a maior parte dos estados
brasileiros, e várias só deixaram de ser levadas a cabo devido aos
esforços de Pinheiro Machado e dos grandes estados também
ameaçados. De fato, no grupo palaciano de familiares, amigos e
assessores do marechal e presidente havia interesse em combater a
proeminência do político gaúcho, cujo poder agregava o apoio
umbilical do governo do Rio Grande do Sul, a aliança com boa parte
das oligarquias nortistas e nordestinas e com outros grupos influentes
na política federal. Para evitar que várias das pretendidas
―salvações‖ se efetivassem, agravando o prejuízo que já sofria com a
queda de preciosos aliados, Pinheiro Machado teve que se empenhar
em negociações. Por seu lado, os estados mais poderosos da
federação, menos dependentes dos favores ou dos furores federais,
demoveram o governo central de seus desígnios de intervenção. São
Paulo, após dispor-se à resistência armada, obteve uma negociação e
colocou à testa de seu governo um nome respeitado nacionalmente,
Rodrigues Alves, ex-presidente da República. Já o Rio Grande do Sul
apoiou-se, como de costume, na conhecida força de suas milícias,
dado que desestimulou qualquer intervenção federal, não só naquele
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momento, como durante toda a época de predomínio oligárquico no
país.
Os acontecimentos de maior violência física e terror militar
referidos nas narrativas dos ―Contos Argelinos‖ são alegorias das
―salvações‖, promovidas, como dissemos, pelos partidários e aliados
do marechal-presidente em vários estados, objetivando remover as
situações estaduais incômodas ao governo federal, ou conquistar os
domínios que atraíam a ambição de alguns dos principais
colaboradores de Hermes. No entanto, embora tivessem ocorrido
várias, apenas duas delas são referidas, a de Pernambuco e a da
Bahia. Nos contos, o Brasil ganha o pseudônimo de Al-Patak, império
com ares de Argélia ou qualquer Estado muçulmano, governado pelo
sultão Al-Dhudut (Hermes), usurpador do trono que ocupava, e
composto de principados vassalos (os estados). Nele se sucedem
abusos de poder, traições, casos de corrupção e ações violentas. Tais
atos são praticados não apenas pelos servidores diretos do sultão, ele
mesmo perpetrador de uma sequência de desmandos e indignidades,
mas também por autoridades e elites dos principados.
Lima Barreto começa dizendo que o sultão usurpara o trono que
ocupava da maneira mais inconcebível. A respeito disto, Rosso
lembra que a crítica do autor a Hermes da Fonseca começava pela
forma como fora proclamada a República, que se revestira de um
caráter de usurpação (ROSSO: 2010, p.83). Neste caso, parece-nos
que a referência do conto volta-se mais para a própria eleição desse
marechal, após uma campanha em que a simpatia popular parecera
ter pendido para o lado de seu adversário, Rui Barbosa, sendo criada
até a expectativa de vitória da oposição. A ―Campanha Civilista‖
contara com amplas simpatias, inclusive obtendo de Lima
manifestações de apoio. A derrota do candidato civil no pleito foi alvo
de denúncias do político baiano aos já costumeiros processos viciados
de organização e contagem dos sufrágios – que ele mesmo, aliás, de
forma alguma ignorava, veterano partícipe da política oficial que era.
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Como já dissemos, os termos em que a chapa hermista venceu,
trazendo para a posse severas acusações de fraude e intimidação do
eleitorado, foi outro dos fatores de enfraquecimento da autoridade do
novo presidente, cujo alter-ego ficcional, Al-Dhudut, segundo a
narrativa, era consciente de sua impopularidade e da baixa conta em
que o povo o tinha.
O indigno sultão multiplicava os seus desatinos e crueldades, e
enquanto desdenhava a opinião popular, satisfazia-se com as
bajulações de seus servidores e as deferências dos mandatários
estrangeiros. Cumulava seus amigos e parentes de favores e os
nomeava para cargos na administração e nos principados vassalos.
Como o povo de Al-Patak não reagia contra ele, o déspota vivia
sossegado, ―tramando violências com o seu vizir Pkent-Phin, um
homem cruel e violento, que fora na sua mocidade criador e
castrador de cavalos‖ (LIMA BARRETO: 1990, p.232). Informando
que, num Estado muçulmano, a palavra vizir designa um alto
funcionário responsável pela administração política e militar, Rosso
conclui que Pkent-Phin refere-se ao ministro da Guerra do início da
gestão Hermes, general Dantas Barreto (ROSSO: 2010, p.84), mais
adiante o chefe da ―salvação‖ de Pernambuco. Todavia, observando
as características do personagem, identificamos nele o próprio
Pinheiro Machado. Sendo uma espécie de eminência parda do
governo, bem poderia ser caracterizado como ―vizir‖ de Hermes da
Fonseca, ainda mais que a parte final do nome de ―seu‖ personagem
parece insinuar ―Pinheiro‖. Acresce que o político gaúcho, que as
biografias apontam também como pecuarista no Rio Grande do Sul,
tem lugar em outros textos da ficção de Lima Barreto com
características de um homem afeito a lidar tanto com gado como com
gente, a ponto de não encontrar muita diferença entre irracionais e
seres humanos, como quando aparece como o senador Sofonias, ―o
diretor da política nacional‖, de ―Aventuras do Dr. Bogoloff‖ (LIMA
BARRETO: 2001a, pp.132-133). Já Dantas Barreto pode ser
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identificado como o ―agha‖ (comandante militar), que figura mais
adiante, no conto ―O juramento‖, fazendo sua própria usurpação do
poder de um principado vassalo de Al-Patak.
Logo que Abu-Al-Dhudut se apossou do trono de
Al-Patak, todos os seus companheiros e amigos
quiseram também fazer o mesmo nos reinos
vassalos, embora muitos dos soberanos destes tivessem ajudado Abu na sua usurpação.
O primeiro agha (ministro da Guerra) ansiava por
ocupar o governo do canato de Al Súgar, região
rica e vasta, que até ali era governada pelo Cã Ross Al-Xeiroso. Este príncipe não se incomodava
muito com a administração dos seus domínios e
vivia em passeios e festas, fora da sua capital. (LIMA BARRETO, 1990, p.237.)
Al Súgar (Pernambuco) foi alvo da ambição do General Dantas
Barreto, ministro da Guerra de Hermes, o qual logo empenhou-se em
obter o cargo de presidente desse estado. Este era governado pela
oligarquia liderada por Rosa e Silva (Ross Al-Xeiroso), chefe mais
prestigiado, não apenas de Pernambuco mas do Nordeste inteiro, ex-
vice-presidente da República, cujos hábitos correspondiam ao do
personagem que o representa nos contos. Renunciando ao cargo de
ministro, o general embarcou para o estado com uma comitiva de
correligionários. Seus atos seguiram o método já descrito das
―salvações‖, que em Pernambuco provocou uma campanha eleitoral
repleta de incidentes violentos, envolvendo autoridades estaduais,
tropas do Exército, capangas dos oligarcas e povo. Distúrbios que
terminaram pelo reconhecimento do general como novo governador,
a 18 de dezembro de 1911 (SILVA: 1998, pp.149-151).
A outra salvação narrada nos contos em questão foi a que
trouxe a Bahia para as mãos de J. J. Seabra, ministro da Viação e
Obras Públicas. O clima de tensão e ameaça sobre a capital baiana,
manifesta a vontade de Seabra de disputar o governo local, precedeu
à explosão dos ânimos, nos primeiros dias de 1912. A artilharia da
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tropa de intervenção federal atirou sobre a cidade, provocando a
renúncia do governador em exercício, que, mesmo retornando, não
logrou reassumir o controle do estado. Renunciou pela segunda vez,
e Seabra acabou por se eleger governador de seu estado natal
(SILVA: 1998, pp.153-156). Sobre o caso da conquista do canato de
Hbaya (Bahia), Lima Barreto cita, entre outros, um fato que, no
conto, identifica claramente a ―salvação‖ hermista deste estado
nordestino. Relata que o canato resistira aos desígnios de controle do
governo central, diferentemente do que se esperaria, por ser Hbaya
dividido em facções e possuir uma população menos austera e
orgulhosa que a de Al-Bandeirah (São Paulo), que se tornara o núcleo
da resistência ao ―sultão‖. Foi o que se deu realmente com a
―salvação‖ na Bahia, onde, com efeito, o governo local enfrentou
armado as forças federais. E o fato marcante e comprovador da
referência ao caso, citado com vestimentas de fábula por Lima
Barreto, é o fato do bombardeio sofrido pela cidade de Salvador neste
episódio: ―A cousa foi dolorosa e triste, pois a capital de Hbaya foi
bombardeada, as suas casas incendiadas, o príncipe reinante andou
daqui para ali, fugindo (...)‖ (LIMA BARRETO: 1990, p.244).
Malgrado os relatos da truculência militar nas conquistas dos
―canatos‖ efetuadas pelos prepostos do sultão, percebemos que não
são estes os pontos mais ressaltados pela escrita de Lima Barreto. Na
verdade, as peripécias guerreiras que representam as ―salvações‖
aparecem como mero complemento do reprovável comportamento
político dos governantes individuais e da camada dirigente que faz
sua aparição nos contos. Da mesma forma, depreende-se que um
governo militar pode ser considerado uma agravante da opressão
social da República, tal como o autor a vivenciou, tornando o
―militarismo‖ uma tendência a ser combatida na política brasileira.
Porém, esse militarismo representaria tão-somente uma faceta a
mais da estrutura sócio-política nacional, tal como se mostrava no
tempo de Lima Barreto. Estrutura cujo funcionamento aparece na
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sua literatura representado necessariamente por uma dinâmica de
menosprezo aos valores éticos.
Nos ―Contos Argelinos‖, os aspectos sobre os quais o autor-
narrador aponta com mais ênfase constituem-se de atos amorais de
diversos tipos, que geralmente deixam a própria violência do fogo e
do ferro em segundo plano. Indicação eficaz disto são os títulos dos
contos. Assim, o evento da ―salvação‖ de Pernambuco, sob o nome
de Al-Súgar, é contado sob o título ―O juramento‖, que destaca um
detalhe da história: o cã Ross Al-Xeiroso, ao perceber a insistência do
ministro da Guerra em arrebatar-lhe o seu domínio, procura o sultão
e recebe dele todas as promessas, resumidas no juramento de que
até se suicidaria, caso o cã fosse esbulhado de seu governo. Na
sequência, o cã acaba perdendo seus ricos domínios para o general.
Mas Al-Dhudut não cumpre a palavra de se matar; segue vivendo,
indiferente à expectativa de Al-Xeiroso (LIMA BARRETO: 1990,
pp.237-238).
Da mesma forma, as passagens que envolvem o canato de Al-
Bandeirah (São Paulo, terra das bandeiras, dos bandeirantes)
ilustram o comportamento deplorável de suas classes altas e até de
seu povo. Aquelas por sua mesquinhez e egoísmo, e este por seu
orgulho insensato e sua ingenuidade. Com efeito, o canato era o
centro da resistência ao despotismo do sultão não por sua coragem e
lealdade, e sim devido à capacidade de iludir aliados e corromper
adversários, em que eram hábeis suas elites. Nos contos ―A firmeza
de Al-Bandeirah‖, ―O desconto‖ e ―A solidariedade de Al-Bandeirah‖
(LIMA BARRETO: 1990, pp.239-244), são focalizadas as jogadas
políticas dos próceres paulistas diante da ameaça de intervenção
federal. Em contraponto, são ilustradas as transações políticas
vigentes no período entre o governo central e a oligarquia
bandeirante, bem como a atitude corrupta de membros do governo. A
ironia do narrador cria o contraste entre os títulos, sugestivos de
virtudes, e os verdadeiros conteúdos que nomeiam. A ―firmeza‖ de
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Al-Bandeirah se revela na história em que, antevendo a intervenção
que o governo de Al-Dhudut preparava, o canato se apresentou
unido. O povo, acostumado a confiar no discurso da elite, cerrara
fileiras com ela, sem notar que aquilo que ela defendia no canato
eram seus próprios privilégios, negócios e riquezas particulares.
Garantindo resistir até o fim, se necessário, os governantes de Al-
Bandeirah promoveram agitações, e acabaram causando o sofrimento
e até a morte dos que neles confiaram e enfrentaram a repressão do
governo central. Contudo, diante da persistência deste em atacar o
principado, aqueles governantes transigiram e negociaram com o
inimigo prestes a combater, subornando um parente do grande
soberano. Assim se livraram da ameaça de ataque. Quanto ao conto
sobre a ―solidariedade‖ do canato, é nele que Lima incluiu o relato da
―salvação‖ de Hbaya, segundo o qual este principado demonstrara
mais firmeza que Al-Bandeirah e resistira de armas na mão, com o
resultado que já sabemos. É útil lembrar que Bahia e São Paulo
haviam estado juntos no lado oposto ao da candidatura de Hermes,
nas eleições para presidente. Lima Barreto acrescenta o detalhe de
que, no mesmo dia em que a capital de Hbaya foi bombardeada, o
irmão do sultão, dignitário subornado para obter a suspensão do
ataque a Al-Bandeirah, recebia sua paga, como contara na historieta
―O desconto‖. Esta foi a solidariedade de Al-Bandeirah para com seu
aliado.
Apresentando os exemplos acima, retirados dos contos,
esperamos ter ilustrado nossa análise destes textos alegóricos sobre
o governo Hermes da Fonseca. Agora, antes de discutir porque Lima
Barreto teria lançado mão dessa forma literária para escrever sobre
os assuntos constantes nos ―Contos Argelinos‖, faremos algumas
observações acerca de aspectos do caráter da sociedade e da política
da Primeira República, os quais suscitaram nele avaliações críticas
contundentes, do ponto de vista ético.
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Sabe-se da postura atenta e crítica do escritor carioca diante
das mudanças políticas e sociais que marcaram as décadas da
passagem do século XIX para o XX no Brasil. Praticamente não se
encontra aspecto social ou político brasileiro que ele não tenha
trazido à baila em seus escritos e discutido sem rebuços. A República
como novidade política e o desenvolvimento da sociedade burguesa
estiveram constantemente sob o crivo de sua observação e de suas
opiniões pouco reverentes. As injustiças, as hipocrisias e os
desequilíbrios sociais, e os defeitos da organização política foram
apontados e costumeiramente reprovados por ele. Não é preciso
esforço para se encontrar em suas obras a crítica dos costumes e
convenções sociais, aliás a tônica de sua escrita. Os deslizes éticos de
pessoas e grupos forneceram assim bastante assunto em seus textos,
deslizes que pareciam crescer com a expansão das relações de
produção capitalistas e a intensificação de características sócio-
culturais pautadas pelo individualismo burguês.
A consciência dessas transformações, numa época em que elas
se processavam mais aceleradamente, e a opinião negativa sobre
aspectos básicos delas refletem-se na obra do escritor. Uma das
tendências do seu pensamento foi a formulação, mais ou menos
ligeira, mas repetida, de comparações entre o presente e o passado
da nação. Embora o ambiente de desenvolvimento do mercado de
trabalho livre e os discursos anunciadores de uma cidadania aberta a
todos pudessem inspirar otimismo e sensação de progresso
socioeconômico, o escritor, como qualquer observador minimamente
atento, entendia que a cidadania ampla e o progresso estavam
reservados a poucos, enquanto a marginalização e a miséria
formavam o quinhão da maioria. Ele também percebia a erosão de
valores sociais, éticos e até mesmo estéticos no seu tempo. Esta
erosão ela via mais acentuada nas elites políticas e econômicas do
país, pelas suas descrições já uma verdadeira derrocada moral. Nas
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anotações satíricas que fez acerca da Bruzundanga (outro nome para
o Brasil), ele registra no capítulo ―A sociedade‖:
É deveras difícil dizer qualquer coisa sobre a
sociedade da Bruzundanga. È difícil porque lá não há verdadeiramente sociedade estável. Em geral,
a gente da terra que forma a sociedade, só figura
e aparece nos lugares do tom, durante muito
pouco tempo. Os nomes mudam de trinta em trinta anos, no máximo.
(...)
Pode ser definida a feição geral da sociedade da Bruzundanga com a palavra – medíocre.
Vem-lhe isto não de uma incapacidade nativa, mas
do contínuo tormento de cavar dinheiro, por meio
de empregos e favores governamentais, do sentimento de insegurança de sua própria situação
(LIMA BARRETO: 1998, p.71).
Essa alta sociedade, afluente e carregada dos símbolos da
modernidade capitalista, formava a elite republicana, cada vez mais
identificada com os destinos do novo regime. Lima Barreto via nela
diferenças acentuadas em relação à antiga e dispersa elite imperial,
diferenças nos costumes, nas perspectivas de vida, nas ambições e
provavelmente nas relações com o grosso da população e com as
coisas do país. Em uma das passagens do romance ―Vida e morte de
M. J. Gonzaga de Sá‖, o protagonista leva seu amigo, o narrador da
história Augusto Machado ao Teatro Lírico, ponto de encontro da nova
elite, ―núcleo atual de tantas ilusões‖. Lá, o velho funcionário
Gonzaga passa em revista alguns importantes personagens ali
presentes, indicando-os ao amigo com comentários que denotam a
mediocridade e até a inferioridade moral de um e de outro. Trocam
impressões acerca da inquietude e desconforto aparentados pelo
distinto público presente, e Gonzaga afirma que isto se devia ao fato
de eles temerem o futuro. E acrescenta, provocando um diálogo com
Machado nestes termos:
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- Vocês, os moços, fizeram mal em destronar os
antigos. Apesar de tudo, nós nos entenderíamos
afinal. Vínhamos sofrendo juntos, vínhamos combatendo juntos, às vezes até nos amamos –
entenderíamo-nos por fim. Estes de agora... - Nada impede que nos entendamos afinal com
estes, também!
- Qual! São estrangeiros, novos no país,
ferragistas e agiotas enriquecidos, gente nova... Vocês estão separados deles por quase
quatrocentos anos de história, que eles não
conhecem nem a sentem nas suas células (...) vocês arranjaram novos dominadores, com os
quais vocês não se poderão entender nunca; e
expulsaram os antigos com os quais, certamente,
se viriam a entender um dia. Erraram, e profundamente.
Machado observa e pensa, e sente-se de repente diante de um
―mundo hostil‘. Compara a si próprio com aquela gente e considera
que a posição em que ela estava, afinal de contas, era seu prêmio.
―Tinham saltado por cima de todas as conveniências, por cima de
todos os preceitos morais – tiveram coragem (...)‖. Mais tarde,
Gonzaga volta atrás de considerar aquele público tão diverso dos
―antigos‖, embora afirme que estes ―eram mais nossos parentes‖
(LIMA BARRETO: 1961, pp.156-159).
No catálogo de defeitos dessa ―sociedade‖ que dava o tom no
país, junto àqueles propriamente éticos, análogos aos condenados no
Decálogo, Lima Barreto inclui os defeitos de gosto artístico e cultural,
e a própria falta de sensibilidade para com as belezas, os valores e as
potencialidades do país. Exemplos não faltam, nas obras do escritor.
Tais deficiências são mais ressaltadas quando são estabelecidos
pontos de comparação com os tempos da Monarquia. O autor
manifesta suas simpatias por diversos aspectos desse passado
político e social brasileiro, tomando posição favorável em relação a
tradições, costumes e atitudes que acreditava mais valorizados nessa
época anterior.
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Uma citação curiosa do autor, que embora fazendo parte de
uma coleção de textos satíricos, dá um golpe de vista sobre o assunto
aqui tratado, testemunhando ao mesmo tempo sua simpatia por um
passado possivelmente idealizado, e a ojeriza que tinha à
insensibilidade estética, e de forma mais ampla, cultural da elite de
seu tempo. Apesar da extensão, vale transcrevê-la. No capítulo ―As
letras na Bruzundanga‖, o narrador descreve como em todas as
épocas anteriores os homens dedicados às letras tinham em alta
conta o seu ofício, o qual encaravam como uma verdadeira missão
sagrada, ligada ao divino. Esses seres especiais também gozavam de
apreço e até de veneração por parte dos elementos das classes altas
nas sociedades em que viviam. O profundo senso do valor de sua
atividade os impediria de rebaixar a sua arte, a que preço fosse, a
mero passatempo dos ricos e poderosos do tempo. A tarefa de
prover esse passatempo ficaria reservada aos bobos da corte e
assemelhados. Mesmo se um nobre por acaso tivesse um poeta a seu
serviço, a este escritor estava reservada tão-somente a celebração
literária dos grandes acontecimentos da sociedade a que o seu
senhor se ligasse; função estrita que, como outras prerrogativas dos
―homens de pena‖, eram aceitas respeitosamente como decorrência
do orgulho profissional de tais criaturas. Dito isto, o narrador passa a
considerar que também no país da Bruzundanga as coisas ocorriam
assim, ―até bem pouco‖. Nas suas palavras:
A sua nobreza territorial e agrícola estimava muito,
a seu jeito, os homens de inteligência, sobremodo
os poetas, aos quais ela perdoava todos os vícios e
defeitos. Essa fidalguia à roceira daquele país era
assim semelhante aos nossos ―fazendeiros‖, antes
da lei de 13 de maio; e poeta, ou mesmo poetastro, que aportasse nas suas fazendas, que lá
são chamadas – ―ampliúdas‖ – tinha casa, comida,
roupa nova, quando dela precisasse, e lavada toda
a semana, podendo demorar-se no latifúndio o
tempo que quisesse, e fazendo o que bem lhe
parecesse, desde que nada tentasse contra a
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decência e a honra da família. Por agradecimento,
então, em dia festivo da família ou da religião, ao
jantar cerimonioso e votivo, o vate recitava uma poesia inédita, alusiva ou não ao ato, e tomava
uma grande e alegre carraspana. (LIMA BARRETO: 1998, p.116)
Depois de descrever tão idílica situação dos escritores de
outrora, incluindo os da Bruzundanga, que como é sabido é mesmo o
Brasil, o cronista apresenta uma reversão deste quadro, tão radical
quanto ainda próxima no tempo:
Recentemente, na Bruzundanga, uma revolução
social e, logo em seguida, uma política,
deslocaram essa boa gente da fortuna, e muitos deles, até, dos seus domínios, que vieram a cair
nas mãos de aventureiros recentemente chegados à terra ou, quando nascidos nela, eram de primeira
geração, descendendo diretamente de imigrantes recentes cujo único pensamento era fazer fortuna do pé para a mão, cheios de uma avidez monetária
e inescrupulosa que transmitiram decuplicada aos
filhos, e logo os lindos costumes de antiga nobreza agrária se perderam. Os poetas foram postos à
margem e não tiveram mais nem consideração nem desprezo. Era como se não existissem, como se fosse possível isso, seja em sociedade humana,
fora de qualquer grau de civilização que ela
esteja.‖ (LIMA BARRETO: 1998, pp.116-7)
Podemos identificar na ―revolução social‖ a culminância do
processo de extinção da escravatura no nosso país, e na ―revolução
política‖, tão próxima da anterior (1888-1889), a implantação do
regime republicano. Vemos que, nas considerações éticas de Lima
Barreto, a estética revestia-se de um valor decisivo.
Por conseguinte, diante de uma elite pautada pela escassa
sensibilidade ética e até estética, não seria de admirar que ela fosse
capaz de sustentar e gerir um regime político senão feito, pelo menos
adaptado à sua imagem e semelhança. A República oligárquica,
liberal no sentido de não oferecer entraves à acumulação capitalista
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de seus beneficiários e de tutelar a exploração do trabalho e
marginalização das classes subalternas, foi matéria volumosa de
muitas das críticas mais ferinas do autor.
Nas esferas da política, menosprezados os possíveis projetos
partidários para a administração do país e violadas repetidamente as
regras mínimas de lealdade e respeito à coisa pública, tudo se
resumia à luta pelo poder e a riqueza. Opinando sobre o jogo político
oficial, Lima Barreto escrevia, pela pena de Bogoloff:
Mais atroz e feroz esse jogo aparecia à vista da
temporariedade dos cargos e da falta de uma base
fixa e forte em que os detentores atuais se
apoiassem ou pela bajulação, ou pelo talento, ou pelo sangue, como aconteceria se
estivéssemos sob um Império ou numa
monarquia qualquer [grifo nosso] (LIMA BARRETO: 2001, pp.130-1).
Provavelmente o principal fator para esta sofreguidão de obter
o máximo de benefício material e de ascensão social, conforme a
opinião do escritor, seja constituído pela sensação de precariedade
trazida pelas mudanças sociais no Brasil. Vivia-se num quadro
socioeconômico e político sensivelmente móvel, cuja velocidade de
alterações induzia ao ceticismo para com a firmeza dos parâmetros
éticos, entre outros, até então encarados com mais confiança. Talvez
mais que o restante da sociedade, as elites brasileiras percebiam e
vivenciavam isto. Daí o desassossego que Lima Barreto detectava no
agir dessa gente, conforme vista por seus personagens, como no seu
conto ―Uma noite no Lírico‖:
Saímos para o saguão e eu me pus a ver todos
aqueles homens e mulheres tão maldosamente
catalogados pelo meu amigo. Notei-lhes as feições
transtornadas, o tormento do futuro, a certeza da
instabilidade de suas posições. Vi todos eles a
arrombarem portas, arcas, sôfregos, febris, preocupados por não fazer bulha, a correr à menor
que fosse... (LIMA BARRETO: 2001b, p.155)
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A respeito da intencionalidade de Lima Barreto ao utilizar a
linguagem alegórica nos ―Contos Argelinos‖, descartamos a hipótese
referida antes, segundo a qual temores reforçados pela situação
profissional do escritor teriam influído de forma decisiva na escolha
dessa forma literária. Mesmo exercendo o cargo de amanuense
justamente no Ministério da Guerra, o que o tornava alvo mais
próximo e visível para alguma represália das figuras cujos atos
condenáveis abordava, revestir a narrativa crua com as distorções da
caricatura e da alegoria não nos parece um procedimento feito com
intuito de ocultar as fontes do assunto dos contos. Duas
considerações são levadas em conta para sustentar esta opinião: as
alegorias dos contos pouco escondem da verdadeira identidade dos
personagens históricos retratados e da veracidade básica dos fatos
narrados, que podem ser percebidos sem grandes dificuldades, ainda
mais se o objetivo do autor fosse a recepção da mensagem dos
textos fossem os leitores do tempo; fatos e personagens dos ―Contos
Argelinos‖ aparecem na ficção de Lima Barreto em outras obras, na
mesma situação de fácil identificação, às vezes em referências
praticamente explícitas.
Pensamos que, diante da profusão de acontecimentos
merecedores de tratamento literário e reflexão crítica, como foram os
dos quatro anos do turbulento governo Hermes da Fonseca, o
procedimento de recorrer à alegoria e à sátira para descrevê-los terá
parecido ao escritor passível de atingir com mais profundidade o
senso crítico dos leitores. Para Lima, a utilização destas formas não
era estranha ao seu conhecimento nem à sua experiência, leitor que
era de Swift e outros mestres da sátira e da alegoria. Mesmo envolta
em circunstâncias ficcionais alteradas, a projeção de fatos verídicos
em lugares distantes e exóticos, tão distantes no espaço e na
vivência cultural que parecem ao leitor pertencer a um universo
onírico, permite criar um efeito especular. Os fatos próximos e
envolventes que parecem fugidios a um olhar atento e racional,
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quando mostrados a uma distância elaborada artificiosamente pela
ficção, podem ser vistos em uma perspectiva mais abrangente e
objetiva. Numa ponte onde se pode circular entre uma ética abstrata
e uma necessidade concreta de justiça. A busca deste efeito, no
entender de Lima Barreto, era uma tarefa a serviço da arte, cujo
objetivo seria dizer o que os simples fatos não dizem (BARBOSA:
1981, p.237).
Portanto, na falta quase institucionalizada de posturas éticas
que Lima Barreto enxergou na sociedade de seu tempo e na
orientação do regime republicano no Brasil, a eclosão de episódios de
grande violência, tal como aconteceram alguns na gestão do
presidente Hermes, não destoam do desequilíbrio e da precariedade
institucional presentes na sociedade e na política vigente. Embora
trazendo uma carga dramática forte ao ser observada, a violência
militar aparece como uma decorrência da violência congênita de um
regime pautado, entre outras coisas, pelo desrespeito aos interesses
das classes subalternas, como se poderia esperar de qualquer regime
político mantenedor do domínio de uma classe em prejuízo do
restante da sociedade; como qualquer regime sob a égide do
capitalismo. E que ainda não pudera desenvolver, até internamente,
mecanismos de limitação ou disfarce do caráter antiético de sua
dominação.
REFERÊNCIAS :
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 6ª. Ed. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1981.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. 3ª. Ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
LIMA BARRETO, A. H. Aventuras do Dr. Bogoloff. Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura, 2001a.
______. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 1998.
92 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
______. Contos reunidos. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier,
1990.
______. Histórias e sonhos. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 2001b.
______. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguim, 2011.
______. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2ª. Ed. São Paulo:
Brasiliense, 1961.
ROSSO, Mauro. Lima Barreto e a política: os “Contos argelinos” e outros textos recuperados. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São
Paulo: Ed. Loyola, 2010.
SILVA, Hélio e CARNEIRO, Maria C. R. Luta pela democracia. São Paulo: Ed. Três, 1998.
SOUZA, Maria do Carmo C. de. ―O processo político-partidário na
Primeira República‖. In: MOTA, Carlos G. (org.). Brasil em perspectiva. 8ª. Ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel, 1977.
93 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
A IRONIA COMO EXPEDIENTE RETÓRICO
EM CONTOS BRASILEIROS
MIRANDA, Maria Geralda de
CERQUEIRA, Alex Ribeiro
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RETÓRICA:
A retórica, ou arte de convencer e persuadir surgiu em Atenas,
na Grécia antiga, por volta de 427 a.C., quando os atenienses
estavam vivendo a primeira experiência de democracia de que se tem
notícia na história. Em razão disso, era muito importante que os
cidadãos conseguissem dominar a arte de bem falar e de argumentar,
nas assembleias populares e nos tribunais‖, (ABREU, 2005: 28).
A argumentação, importante não só nos primórdios do que hoje
conhecemos como democracia, vem servindo também como
instrumento de práticas libertadoras e solidificadoras das relações
humanas. Como diz Perelman (1996: 10), ―o objetivo de toda
argumentação é provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às
teses que se apresentam a seu assentimento: uma argumentação
eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade de adesão.
A leitura retórica não objetiva dizer que o texto tem razão ou
deixa de ter. Nem por isso é neutra, pois não hesita em fazer juízos
de valor, em mostrar que tal argumento é forte ou fraco, que tal
conclusão é legítima ou errônea. ―Critica e pondera, sem se abster de
admirar, tendo como postulado que o texto, tanto em sua força
quanto em suas fraquezas, pode ensinar alguma coisa. A leitura
retórica é um diálogo‖, (REBOUL, 2004:132).
O ponto de vista para o qual o orador/autor busca a adesão do
auditório pode ser dito clara e diretamente ou, frequentemente,
utilizar-se de técnicas retóricas para atingir objetivos e persuadir.
Para Reboul (2004: 141), o discurso tende a persuadir de algo, mas
esse algo pode ser múltiplo. O texto muitas vezes tem um objetivo
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imediato e outro distante. O distante quase sempre é o mais
importante, posto que é apenas sugerido, pressuposto ou
subentendido na ―capilaridade‖ do discurso.
Em textos irônicos, como os que são objetos deste estudo, o
objetivo real pode ser absolutamente oposto ao objetivo declarado.
Uma visão de mundo pode ser defendida, fundamentada, analisada,
dimensionada, avaliada, a partir da ironia e das construções cômicas.
Alguns artistas da palavra manejam com mestria as técnicas e a arte
de fazer o outro rir, desenvolvendo-as e aperfeiçoando-as através do
tempo, acompanhando as conquistas sociais e políticas da sociedade.
O riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelos quais se
exprime a verdade sobre o mundo na sua
totalidade (...) somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo. (BAKHTIN, 1993:.57).
Segundo Aristóteles, a criança começa a rir no quadragésimo dia depois do nascimento, momento
em que se torna pela primeira vez um ser humano.
Já Plínio afirmava que um único homem no mundo, Zoroastro, começara a rir assim que nascera, o que permitia augurar a respeito da sua sabedoria
divina. (BAKHTIN, 1993: 59).
Dado o objeto de análise deste estudo configurar-se como
contos brasileiros construídos sob o viés da ironia, é oportuno
observar os efeitos de sentido que a ironia produz nos textos
analisados. Mikhail Bakhtin, que investigou o riso na obra de François
Rabelais, aponta importantes facetas das manifestações da cultura
popular, que contribuíram para a visão do escritor francês, como o
riso proporcionado pelo carnaval e por obras cômicas verbais, escritas
em latim ou língua ―vulgar‖ e também pelo vocabulário familiar e
grosseiro, que continha insultos, juramentos e fanfarronices
populares.
Entre as numerosas investigações científicas
consagradas aos ritos, mitos e às obras populares
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líricas e épicas, o riso ocupa apenas um lugar
modesto. O mundo infinito das formas e
manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época... A
literatura cômica chegou à sua apoteose durante o apogeu do Renascimento, com o Elogio da loucura,
de Erasmo. (BAKHTIN, 1993:3).
Contar histórias é algo muito antigo, sendo praticamente
impossível precisar desde quando existe tal prática. Os contos
mágicos egípcios datam de 4.0000 a.C, mas sabe-se que a arte de
contar passa por fases e evoluções. As histórias sempre reuniram
pessoas que contam e que ouvem. Em sociedades tradicionais
(ágrafas ou não) sacerdotes se reuniam e ainda se reúnem com seus
discípulos para transmissão dos mitos e ritos da tribo; em nossos
tempos, em volta da mesa, à hora das refeições, pessoas trazem
notícias, trocam ideias e contam casos. (GOTLIB, 2000:.5).
As histórias, do modo com a tradição as utilizavam, para além
do exercício lúdico, sempre foram aplicadas para fazer transmitir uma
determinada ideia, a partir da qual se mantinha a própria tradição,
porque deixavam uma mensagem. Persuadia os ouvintes de alguma
coisa e para alguma coisa. Segundo Perelman (1996:16), ―quando
somos convencidos, somos vencidos apenas por nós mesmos, pelas
nossas idéias. Quando somos persuadidos, sempre o somos por
outrem‖. As histórias escritas, modernas ou não, não deixaram de
possuir esta função precípua de veicular uma mensagem, um
posicionamento. Ainda quando o autor, ou o narrador, diz não tratar-
se de posicionamento nenhum.
Aristóteles trabalha com três conceitos fundamentais a qualquer
discurso: ―pathos‖, ―ethos‖ e ―logus‖. Simplificando a teorização do
filósofo, o ―ethos‖ tem a ver com a formação da credibilidade do
orador, junto à audiência. O ―pathos‖ é designado por Aristóteles
como a forma de trabalhar as emoções do auditório, os apelos e
ferramentas das quais o orador se servirá para atingir o emocional
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dos seus ouvintes ou leitores. O ―logus‖ se relaciona ao
convencimento do auditório, neste caso o leitor, através de técnicas
que visem tratar do raciocínio lógico, da razão, de provas irrefutáveis.
Para a retórica, o discurso pode ser oral ou escrito, é com ele,
ou a partir dele, que o orador, ou emissor, deseja convencer o
auditório, ou audiência. É em função da tese, ou ponto de vista, que
o orador procura estruturar o seu discurso, ordenar seus argumentos
e elaborar suas estratégias de convencimento.
As teses, ou as idéias que se pretende que o auditório
compartilhe com o orador, precisam ser apresentadas em uma
linguagem clara e objetiva, a fim de facilitar a empatia e consequente
assimilação das propostas. É condição fundamental ao exercício bem
sucedido da condição de orador, ou contista, no caso deste trabalho,
o conhecimento prévio do auditório e o manejo das técnicas retóricas,
ou literárias, neste caso, para a ação dirigida de forma agradável,
sem as quais se torna impossível a conquista da audiência, ou dos
leitores dos contos.
Orador, auditório: é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos um acordo
prévio. De fato, não há diálogo, nem mesmo argumentação, sem um entendimento mínimo entre os interlocutores, entendimento referente
tanto aos fatos quanto aos valores. Pode-se até dizer, sem paradoxo, que o desacordo só é
possível no âmbito de um acordo comum. Nas questões em que não haja nenhum acordo inicial,
pode haver violência ou ignorância recíproca, não
controvérsia. (REBOUL, 2004:142).
Cabe ao orador conquistar o seu auditório, provando a validade
de sua proposta. Também pode, através do seu discurso, que acaba
sendo também a sua arte, fornecer e extrair dados que identifiquem
um auditório ou um perfil de auditório de seu tempo, numa relação
de contribuição com outras áreas do saber humano. Seu discurso
pode elevá-lo a uma condição de historiador de sua época,
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registrando aspectos políticos, sociais e morais que prevalecem sobre
determinado tipo de auditório.
Os contos selecionados foram produzidos em épocas diferentes.
A escolha, conforme já se disse, foi pelo fato de todos eles se
valerem da ironia como expediente retórico. Arthur Azevedo e João
do Rio utilizam a literatura e os contos de humor para estabelecerem
convencimento e persuasão ao seu auditório, seus leitores.
DESVENDANDO OS ARGUMENTOS DOS CONTOS:
O conto ―De cima para baixo‖, de Artur Azevedo, escrito em
1870, narra uma história vivenciada no Segundo reinado, época do
imperador Pedro II. Esta década dá início a questões que levarão a
profundas mudanças no Brasil. Inicia-se um período de isolamento
político do Império, até que, no final da década de 1870, diversas
forças políticas passaram a exigir, cada vez mais, o fim do
escravagismo. Nasce, nesta época, a ideia da formação de um partido
republicano, que se desembocará no fim do Império brasileiro e na
proclamação da República, em 1889.
Resumidamente, a história é a seguinte: um decreto de
nomeação é expedido sem constar o nome do beneficiado e chega à
mesa do imperador. Quem é o culpado? Tamanho erro burocrático
desencadeia uma série de reações entre chefes e subordinados nas
repartições públicas brasileiras, revelando detalhes da mecânica das
relações de poder da época.
Vê-se que o jovem país, Brasil, já sofria com a burocratização
da máquina do Estado. O contista revela a mesquinhez do homem
que se acha superior ao seu chefiado, convidando, com recursos da
retórica e da literatura, a pensar no ridículo que se estabelece quando
no lugar da competência entram a vaidade e a lisonja.
A construção de sua credibilidade de autor (o seu ―ethos‖)
perante o leitor começa a se constituir a partir da escolha de um
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narrador onipresente, cuja credibilidade inequívoca baseia-se no fato
de ele ser sabedor das ações e sentimentos das personagens,
dosando o desvendar das ações e dos sentimentos ao longo do conto,
de forma que o leitor/auditório vá tomando ciência e,
consequentemente, descobrindo a trama e suas construções
discursivas. As ações das personagens, que se alternam nas funções
de chefes e subordinados, portanto em contato com os superiores e
inferiores na hierarquização do trabalho, possibilitam o desvendar das
múltiplas relações entre eles.
O modo pelo qual o autor lida com as emoções do
auditório/leitor (o ―pathos‖) leva em conta a mescla de sentimentos e
emoções como a agressividade do superior frente ao seu inferior
hierárquico e a contrapartida da sua subserviência quando trata com
um superior na hierarquia de trabalho. O convencimento do leitor
para uma dada verdade, ou realidade, através do raciocínio lógico
(―logus‖) encontram eco na estrutura burocrática que rege o trabalho
público e, em especial, o documento de nomeação, aproveitando-se
de uma memória do leitor no que se refere às relações lógicas e
costumeiras auferidas às relações de trabalho.
Neste conto, os gêneros discursivos parecem mesclar-se, como
em grande parte das obras literárias, a partir da idade
contemporânea. A retórica clássica considerava que os discursos
estavam ligados a três situações fundamentais: quando o autor
defende ou ataca alguém, tentando provar a sua inocência ou culpa,
o usado é o gênero judiciário. O gênero epidíctico exalta os méritos
ou critica os defeitos de algo ou alguém. O gênero deliberativo, em
que o orador aconselha ou desaconselha sobre uma coisa futura tem
o discurso centrado nas categorias do útil e do nocivo, pretendendo
que o auditório tome uma decisão.
Alguns argumentos, ou lugares do discurso, precisam
convencer e muitas vezes levar a agir. Os lugares firmam a
hierarquização de valores, reforçando a adesão à tese principal. Na
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utilização dos argumentos, o autor utiliza-se do argumento de
autoridade, aquele em que é citado alguém de reconhecida
importância e, portanto, inquestionável em seus saberes e em suas
ações. Veja um exemplo do início do conto: ―– Estou furioso! –
Exclamou o conselheiro. – Por sua causa passei por uma vergonha
diante de Sua Majestade o Imperador!‖ (AZEVEDO, 2001: 293).
Algumas técnicas conhecidas desde a Antigüidade
recebiam o nome de lugares da argumentação.
São premissas de ordem geral utilizadas para reforçar a adesão a determinados valores. O nome
lugares era utilizado pelos gregos, para denominar
locais virtuais facilmente acessíveis, onde o orador
pudesse ter argumentos à disposição, em momento de necessidade. (ABREU, 2006:.80).
O Imperador do Brasil reclama do Ministro, sem narração direta
no conto, mas desencadeia atos seguintes para o conserto de uma
nomeação. A tarefa é narrada, com recursos da tautologia,
mostrando uma sequência de ordens recebidas e emitidas por alguns
chefes. Por analogia, os subalternos vão repetindo as ações,
prestando aos seus subordinados o mesmo tratamento e
posicionamentos que receberam dos seus superiores. Os
subordinados, quando no papel de chefes reproduzem as ações
sofridas. ―E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os
superiores, quão arrogante e autoritário com os subalternos‖.
(AZEVEDO, 2001: 294).
O argumento do ridículo sobrepõe-se ao argumento de justiça,
uma vez que tratamentos idênticos para ações semelhantes são
verificados no intuito de condenar pelo riso, inclusive com o uso da
tautologia. A superioridade do anterior sobre o posterior, presentes
em toda a narrativa reforça o argumento de ordem, assim como o
argumento de qualidade, tratando do melhor sobre o pior. O chefe,
que se acha superior ao chefiado, é o mesmo que acabara de ser
muito humilde com o seu chefe, como os exemplos:
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a) Me considera muito e sabe que a um ministro
ocupado como eu, é fácil escapar um decreto mal
copiado; b) O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; c) Havia tanto
serviço... E todo tão urgente!...; d) Se o Senhor Diretor geral me não tratasse com tanto respeito e
consideração! (AZEVEDO, 2001: 294).
O mesmo personagem que é cordial, gentil e humilde com seu
chefe, é extremamente agressivo com seu subordinado. Os valores
da mesma personagem mudam com a mudança de situação
hierárquica. Sugere-se que há um consenso em que o mais elevado
posto também representa que quem está acima, sempre tem razão,
como vemos:
Apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara;
– É imperdoável esta falta de cuidado!; E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu; O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros,
dizendo: – Bom! Mande reformar essa porcaria! E
atirou-lhe o papel, que caiu no chão; – Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se
e mande reformar essa porcaria!; O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível!; – Cale-se, já lhe disse, e trate de
reformar essa porcaria! (AZEVEDO, 2001: 294).
Os valores não mudam, os personagens, sim. O mais graduado
não admite seu erro e a consequente incompetência. Afirma-se um
ser raro e querido pelo superior, de quem goza de estima e apreço, o
que lhe dá prestígio frente ao subordinado. Prevalecem os valores
hierarquizados do chefe e, na mesma proporção, dos subordinados.
O conto ―O homem da cabeça de papelão”, de João do Rio,
escrito em 1921, narra uma história já temporalmente situada na
República, cujo presidente era Epitácio Pessoa. Após significativas
mudanças, com o fim da primeira Guerra Mundial, o país entra em
um pequeno surto de industrialização. A classe operária cresce em
número e força política, o que resulta na criação do PCB, em 1922. A
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classe média passa a reivindicar mais espaço na sociedade brasileira,
exigindo eleições limpas e o fim da corrupção. Tempos que se
caracterizam por crescimento industrial, greves operárias, motins
militares (Revolta do Forte de Copacabana), e movimentos culturais,
tais como a Semana de Arte Moderna em 1922 e exigências de
reformas na educação brasileira.
O resumo do conto é o seguinte: a história se passa em um
país fictício, chamado país do Sol, onde existe uma personagem,
chamada Antenor, cuja cabeça ―não regulava‘, isto é, seus atos não
eram considerados normais pela sociedade ―solense‖. Em razão disso,
ele, Antenor, recebe o desprezo e a ira dos seus parentes, amigos e
de muitos habitantes etc. Convencido pela sociedade de que o seu
modo de agir não era correto, devido à cabeça que ―não regulava‖,
resolve consertá-la. Entra em uma relojoaria e troca a sua cabeça por
uma de papelão. Com a nova cabeça, muda de comportamento,
passa a falsificar, explorar, mentir e adular. Recebe a admiração de
todos que antes o maldiziam. Ao receber de volta a velha cabeça,
decide guardá-la por achar que a de papelão melhor combina com o
seu país.
Neste conto, João do Rio envolve seu auditório nos seguintes
questionamentos, enquanto expõe de maneira irônica as mazelas do
―pais do Sol‖, que, o leitor, imediatamente, passa a correlacionar com
o Brasil: O que é certo para nós tem que ser certo para os que nos
cercam? Fazer o que achamos errado é certo, para conquistarmos
sucesso, fama, bens materiais e admiração dos que dizem gostar de
nós?
A construção da credibilidade do orador/autor se dá,
inicialmente, na descrição do ambiente em que se passa a narração,
os juízos de valor e seleções lexicais encaminham esta construção e
alternam-se, durante o conto, com a fala de personagens secundários
e do próprio protagonista. O narrador onipresente atua
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significativamente na construção do seu próprio ―ethos‖, sendo,
inclusive, capaz de criticar as ações dos personagens.
À medida que vão sendo narradas as desventuras do
protagonista, o auditório, ou leitor, se identifica com ele (pathos),
com a sua dor de ―desajustado social‖. O mundo que o execra
enquanto portador da cabeça original e o mundo que o idolatra, após
a adoção da cabeça de papelão, são estampados aos leitores e,
obviamente, objetos de crítica destes. Situações concretas de vida
levam, também, o leitor a possíveis identificações vividas pelo
protagonista, configurando a simpatia destes com ele.
Os argumentos atuam no convencimento do auditório, que
passa a concordar com a ideia do orador. Já os lugares são fontes
onde os oradores bebem, a fim de reforçar e tornar mais viva,
prazerosa e persuasiva a sua tese. Trata-se de um conjunto de
valores estabelecidos na sociedade, espécies de acordos coletivos,
construídos culturalmente e que funcionam como ―base ideológica‖ na
formulação de argumentos, visando à adesão do auditório.
João do Rio utiliza, como Arthur Azevedo, o argumento do
ridículo quase na totalidade da narrativa, descrevendo situações do
cotidiano do protagonista Antenor e suas relações com figuras
diversas do ―país do Sol‖, lido como Brasil república, o que convida
sobremaneira ao riso. Logo no primeiro parágrafo, o protagonista é
apresentado: Antenor ―não era nem deputado, nem rico, nem
jornalista, portanto sem importância social‖, pois no país do Sol
‖falava-se francês com convicção, mesmo falando mal‖. (RIO, 1970:
196). ―Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos... Ficou
provado que era doido‖. Dizia o tio de Antenor: ‖vagabundo é um
sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição.
Desde que você não as tem, mesmo trabalhando, é vagabundo.‖
(RIO, 1970: 198).
A importância de figurões, comerciantes, políticos e pessoas de
caráter duvidoso no país do Sol, leva o autor a lançar mão do
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argumento do ridículo, no momento em que confronta as atitudes
consideradas honestas de Antenor com as desonestidades dos
representantes e pessoas influentes daquela sociedade.
Presente, também, em todo conto, o argumento de qualidade,
tratando do melhor sobre o pior. Quando Antenor porta sua cabeça
original, é sempre tido como o pior, pois não pode ser honesto e ter
suas próprias idéias; ao receber a cabeça de papelão, passa,
ironicamente, a ser considerado um dos melhores, senão o melhor, e
convidado ao senado da república do País do Sol. A ―cabeça de
papelão‖, que pode ser lida, como cabeça vazia, destituída de valores
e princípios como honestidade, ética, compromisso com a verdade
etc, permite que Antenor conquiste vários pilares sociais.
Argumentos de causa e efeito para acontecimentos sucessivos,
como mentir, fazer mal, trapacear, explorar, adular e falsificar e, com
isso, enriquecer, ter muitos amigos, ser estimado e ver crescer a
fama, também povoam a narrativa. Um dado fundamental é que os
mesmos valores não são impostos a todo mundo. ―Eles estão ligados
à multiplicidade de grupos e de emoções. Aquele que quer persuadir
deve saber previamente quais são os verdadeiros valores de seu
interlocutor ou do grupo que constitui o seu auditório. (ABREU, 2006:
74).
Pontos de vista antagônicos e valores opostos permeiam todo o
texto. A ironia e os recursos literários humorísticos se contrapõem a
pensamentos lógicos e aparentemente racionais. No primeiro caso,
vejamos alguns exemplos: ―Desde menino, a sua respeitável
progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a
verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade
verdadeira‖; (RIO, 1970: 198). ―A faca serve para cortar o que é
nosso para nós e o que é dos outros também para nós‖; ―sabendo
lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro‖. (RIO, 1970: 199). No
segundo caso, atentamos para o parágrafo, onde o relojoeiro
comenta a cabeça de Antenor:
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Senhor, na minha longa vida profissional jamais
encontrei um aparelho igual, como perfeição, como
acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa
sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça
qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma
cabeça de gênio, hors-concours. (RIO, 1970: 201).
O protagonista rende-se ao fato de precisar ser igual aos
outros, diga-se igual à ―elite política‖ do país do Sol, para ser aceito
naquele espaço, em que a competência e a visão de futuro não são
atributos válidos. A verdade é a da classe dominante, como é citado
no penúltimo parágrafo: ―a verdade é a dos outros‖. E a fina ironia
das últimas palavras da obra de João do Rio: ―conseguiu tudo com
uma cabeça de papelão‖.
CONCLUSÃO:
Ensina-nos Perelman (1996: 85) que os valores universais são
meios de persuasão, espécie de ferramentas espirituais totalmente
separáveis da matéria que permitem moldar, anteriores ao momento
de serem utilizadas e que permanecem intactas depois de serem
utilizadas, disponíveis, como antes, para outras ocasiões. Essa
concepção evidencia admiravelmente o papel argumentativo dos
valores, ou lugares, conforme já se disse atrás.
Como diz Abreu (2006: 99), as palavras são como fios, com os
quais tecemos ideias, em forma de texto. Quando usamos uma
palavra, estamos fazendo uma escolha de como representar nossas
ideias, nossos valores. As palavras que escolhemos têm enorme
influência em nossa argumentação.
Se, na antiguidade, o orador precisava dispor de certas técnicas
oratórias para convencer os ouvintes ou cidadãos presentes nas
assembleias da ágora grega, artistas da palavra, como Arthur
Azevedo e João do Rio, não têm tarefa menos ―engenhosa‖. Expor, a
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partir do expediente da ironia, as feridas do Brasil e suas
contradições históricas exige maestria no trato com as palavras.
A habilidade de analisar uma situação sob diferentes pontos de
vista, é importante em qualquer área, pois está ligada ao exercício da
criatividade e, obviamente, da argumentação. Valores como o
verdadeiro, o bem, o justo, o absoluto, o certo, o normal dependem
do que é aceito em uma determinada sociedade, ou em uma
determinada época, ou cultura. O modo como a sociedade ―solense‖
julgava Antenor demonstra o que se está querendo dizer. Os valores
considerados aceitos por tal sociedade são risíveis quando
defrontados com a ―honestidade‖ anterior de Antenor, que acabou
―capitulando‖ diante da pressão social.
No conto de Arthur Azevedo, o mesmo personagem que é
terno, cortês e humilde com seu chefe, é extremamente hostil com
seu subalterno. Os valores da personagem mudam de acordo com a
variação hierárquica. O que provoca o riso no leitor é o fato da
pessoa de posto mais elevado sempre ter razão, mesmo sendo um
comprovado incompetente.
REFERÊNCIAS :
AZEVEDO, Arthur. De cima para baixo. In COSTA, Fábio Moreira da.
Os 100 melhores contos de humor da literatura universal. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001, pp. 293-95.
ABREU, Antônio Suarez. A arte de argumentar – Gerenciando
Razão e Emoção. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006
ARISTÓTELES. Arte poética e arte retórica. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1969.
BAKHTIN, M.M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. DF,
Universidade de Brasília, 1993.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2000.
PERELMAN, Chaïm. Tratado da argumentação. São Paulo: Martins
Fontes, 2002;
106 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
RIO, João do. O homem da cabeça de papelão. In: MAGLHÃES JUNIOR. R. Antologia de Humorismo e Sátira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970, pp. 196-201.
107 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
SENTIDOS DA ATIVIDADE DE AVALIAR:
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM
PERSPECTIVA DISCURSIVA
DEUSDARÁ, Bruno
GIORGI, Maria Cristina
INTRODUÇÃO
Os temas da Educação têm ganhado relevo considerável na
atualidade. O tratamento conferido a esses temas vem colocando em
destaque políticas públicas que, pretensamente, procurariam
favorecer a ―mobilização social‖ em torno da ―melhoria da qualidade‖.
Atravessando desde decretos presidenciais a spots publicitários da
grande imprensa e grupos empresariais, a cena consolidada levaria a
crer que a solução estaria em alcançar ―índices de qualidade‖
desejáveis.
Encontramo-nos diante de um impasse: a mobilização social em
torno da qualidade, segundo indicada nos decretos do Plano de
Desenvolvimento da Educação (PDE), dá-se nos marcos de metas já
elaboradas. Uma vez colocados os patamares a serem alcançados, o
foco recai sobre o trabalho do professor como aquele que agencia
―com sucesso‖ saberes repetidos nas provas com objetivo de aferir
―índices de qualidade‖. Já há expectativas de que aluno se deseja ver
formado, que conteúdos são valorizados, circulando nas avaliações
nacionais.
Bons professores, nesse quadro, são aqueles que multiplicam
as tarefas dos alunos, investem nos reforços e nas listas de repetição
dos conteúdos. Bom aprendiz é aquele que se aplica em repetir e
acertar tudo. O certo é apenas o que corresponde ao esperado nas
avaliações nacionais. Pensar de outra maneira torna-se perda de
tempo e... ousadia frente aos dispositivos de controle!
A temática da formação de professores ganha contornos
rígidos. Segundo esse imperativo do cumprimento das metas, espera-
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se do professor agilidade com cronogramas, identificação de possíveis
deficiências, aplicação de tarefas de reforço. Fala-se muito em cursos
de formação continuada, capacitação para agilizar a aquisição de
conteúdos e identificar mais facilmente o que destoa ao ritmo dos
cronogramas. Enfatiza-se uma dimensão de execução no cotidiano do
trabalho do professor, em detrimento de interrogar a eficácia dos
índices, a precariedade de infraestrutura, a desvalorização salarial
grave. O cotidiano passa a ser apenas o momento de cumprir um já
pensado, sem condições para fazer da própria prática profissional
fonte de saberes para o professor.
No entanto, sabemos que tais propostas não são inovações das
políticas públicas atuais, tais dispositivos de controle compõem a
tradição escolar. Há uma parte disso tudo que atravessa nossas
práticas cotidianas. É essa a contribuição pretendida por este artigo,
quando analisamos dois materiais em que o professor é avaliado /
convocado a avaliar: prova de concurso de seleção de professores
para rede pública de ensino e um formulário-ata de Conselho de
Classe, utilizado em uma escola da rede pública estadual do Rio de
Janeiro.
As ferramentas conceituais provêm da articulação entre a
reflexão acerca dos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000) e a
compreensão do cotidiano como produção permanente, configurando-
se de relações de poder que geram saberes (FOUCAULT, 2004).
Nosso intuito residiria em inverter o fluxo tradicional dos saberes
como unicamente aprendidos antes ou fora da prática profissional,
restringindo-a à sua aplicação.
AS PRÁTICAS DE AVALIAÇÃO EM DISCUSSÃO: CONSTRUINDO EXPECTATIVAS SOBRE O TRABALHO DOCENTE
Ao propor a discussão em torno de dois materiais a partir dos
quais o professor é avaliado / convocado a avaliar, consideramos
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necessário refletir acerca dos sentidos de avaliar. Os sentidos
possivelmente atribuídos ao verbo avaliar, em língua portuguesa,
deslocam-se entre ―determinar o valor de algo‖, ―reconhecer seus
méritos‖, ―calcular sua força, intensidade‖. O ato de avaliar, ou
melhor, de determinar, reconhecer ou calcular o valor, os méritos ou
a intensidade de algo ou alguém, parece estar presente em diversos
momentos de nossas vidas.
Quando assistimos à emergência de avaliações nacionais,
observa-se a apropriação de dispositivos pertencentes aos rituais e às
tradições escolares acentuando concorrências e acelerações próprias
a políticas neoliberalizantes. A esse respeito, Deise Mancebo e Marisa
Rocha (2002) destacam que as práticas de avaliação vêm sendo
reforçadas no Brasil, a partir dos anos oitenta, no Ensino Superior,
atendendo a anseios contraditórios. No entanto, é a dimensão
empresarial que dá o tom das práticas de avaliação nas políticas
públicas.
Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabemos que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou
menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia
e ocupar as pessoas, até a instalação das novas
forças que se anunciam (DELEUZE, 2006, p. 220).
―É preciso salvar a escola‖, dizem os burocratas de plantão! A
―solução‖ oferecida vem sendo experimentada há mais de duas
décadas pelas Universidades brasileiras, cuja insistência favorece o
aparecimento de uma ―cultura da avaliação‖:
A cultura da avaliação na realidade da
universidade brasileira está no bojo das políticas
neoliberais que se farão sentir a partir da década de 90 do último século, constituindo-se em
aprimoramento do racionalismo cientificista
consolidado ao longo da era moderna: conhecimento técnico, objetividade, princípios
ligados a leis naturais, parâmetros neutros e
universais. Tais políticas não estão desvinculadas
110 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
das estratégias governamentais constituídas para
lidar com a crise mundial do capitalismo que, entre
nós, agravará a precariedade de funcionamento das instituições sociais (ROCHA, M.; ROCHA, D.,
2004, p. 20).
A ―solução‖ apontada sustenta-se em uma técnica bastante
enraizada na tradição escolar. Trata-se do exame, que combina
hierarquia e sanção normalizadora, que permite qualificar, classificar
e punir, ou seja, distinguir e sancionar (FOUCAULT, 2005).
Na história dessas instituições, ganha força um ritual em torno
dos dispositivos de avaliação que ―colam‖ os resultados alcançados
aos corpos de cada um. Os alunos designam-se uns aos outros e a si
próprios da seguinte maneira: ―eu sou um aluno sete em Matemática‖
ou ―eu sou cinco em Português‖. Quando se diz ―eu sou sete‖, o
resultado obtido passar a revelar algo que supõe ser sua capacidade,
tomada independente das condições de realização, da parcialidade
dos conteúdos exigidos nessas aferições. Quem é visível então não é
o poder, e sim o sujeito vigiado. Para que o indivíduo seja controlado,
é preciso conhecer seus traços particulares. Cria-se um sistema
comparativo que possibilita a aferição de fenômenos globais. O
observado é induzido a um estado consciente e permanente de
visibilidade, que permite e proporciona o funcionamento do poder.
Colocar em tensionamento as ―avaliações de desempenho‖ que
têm sustentado as políticas públicas para a Educação significa apostar
numa discussão sobre as práticas de avaliação e seus efeitos em nós.
Dessa forma, caberia destacar os seguintes questionamentos:
Para disciplinar e controlar, a escola faz uso do
mecanismo da avaliação, também recoberto de mil
argumentos didático-pedagógicos, mas outra
marca indelével do poder e do controle. Ora, dirão
alguns, como educar se não tivermos um feedback
dos alunos, só possível através dos mais diversos mecanismos de avaliação, para reorganizar
continuamente o processo pedagógico? (GALLO,
2008, p. 82-83).
111 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
O mesmo dirão os administradores públicos: é preciso conhecer
as escolas para administrá-las melhor. As críticas ao fortalecimento
dos dispositivos de avaliação como estratégias de controle do
trabalho do professor, produzindo como efeitos a perda de sentido
dos vínculos e a desvalorização dos encontros sempre únicos que
acontecem nas salas de aula entre professor, aluno e conhecimento,
não pode, por outro lado, deixar de considerar que tais dispositivos
compõem a tradição e os rituais das instituições de formação.
Nessa discussão privilegiamos a constituição de saberes e de
imagens discursivas de trabalhador docente a partir da análise de
textos que remetem à atividade de avaliar, por compreendermos que
esta é constitutiva do trabalho docente, quer quando aplicamos
provas ou nos submetemos a elas, quer quando, em sentido mais
amplo, analisamos percursos e, a partir deles, elaboramos
alternativas.
Para desnaturalização das próprias práticas que lhes dão
sustentação, buscamos associar a proposta de relação poder-saber de
Foucault com as estratégias de exercício de poder observadas nos
textos aqui analisados, visando a colocar em relevo os saberes da
atividade docente que não apenas os da sala de aula.
GÊNEROS DO DISCURSO EM DEBATE: APREENDENDO MANEIRAS DE AGIR ATRAVÉS DA PRODUÇÃO VERBAL
A noção de gênero do discurso em Bakhtin articula as
realizações da língua e as esferas da atividade às quais estão
vinculadas, observando a elaboração de ―tipos relativamente estáveis
de enunciados‖ (BAKHTIN, 2000, p. 280). A relativa estabilidade das
realizações linguísticas é fenômeno situado indissociavelmente às
diversas esferas da atividade humana. ―A utilização da língua efetua-
se em forma de enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos,
112 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade
humana‖ (BAKHTIN, 2000, p. 280).
O referido autor oferece ainda três componentes do todo de um
gênero do discurso: o conteúdo temático, o estilo e a construção
composicional. Para Bakhtin, esses tipos relativamente estáveis – os
gêneros do discurso – permitem ao interlocutor assumir posição ativa
na interação. A compreensão do gênero a que pertencem os
enunciados confere às produções de linguagem um acabamento, que
possibilita a troca na interação verbal.
É necessário o acabamento para tornar possível
uma reação ao enunciado. Não basta que o enunciado seja inteligível no nível da língua. Uma
oração totalmente inteligível e acabada, se for uma
oração e não um enunciado – constituído de uma única oração – não poderá suscitar uma reação de
resposta: é inteligível, está certo, mas ainda não é
um todo (BAKHTIN, 2000, p. 299).
O interlocutor, para Bakhtin, assume uma postura de
compreensão responsiva ativa. A compreensão possui uma dimensão
de resposta. Ao concordar, discordar, completar, interromper, retirar-
se, o coenunciador manifesta-se ativamente.
Ressignifica-se a relação entre os interlocutores nas trocas
verbais:
o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que
rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só a existência do
sistema da língua que utiliza, mas também a
existência dos enunciados anteriores – emanantes
dele mesmo ou do outro – aos quais seu próprio
enunciado está vinculado por algum tipo de relação
(...) (BAKHTIN, 2000, p. 291).
Motivado por insuficiências da oposição entre as tipologias
enunciativas – que não levam em conta a inscrição social da atividade
verbal – as tipologias comunicacionais / situacionais – que não
113 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
consideram o funcionamento linguístico dos textos, Maingueneau
(2001) propõe cinco critérios para conceber um gênero:
uma finalidade reconhecida;
o estatuto de parceiros legítimos;
o lugar e o momento legítimos;
um suporte material;
uma organização textual.
A noção de gênero de discurso assim compreendida possibilita a
apreensão do encontro indissolúvel dos enunciados e de seu contexto
dialógico, superando o problema clássico da relação entre a
linguagem e seu entorno a partir da dicotomia lingüístico /
extralinguístico.
Por contexto dialógico, Bakhtin entende não apenas a situação
concreta imediata, como também o contexto sócio-histórico mais
geral. A título de exemplo, diríamos que, através de um texto
produzido em situação de interação professor-aluno em sala de aula,
apresentam-se conteúdos, explicitam-se suas relações com outros
conceitos, explicam-se possíveis operações em jogo com ele, propõe-
se um exercício de aplicação / utilização desses conteúdos. Isso não
se realiza sem que uma dada qualidade de relação se estabeleça
entre os participantes dessa situação de troca verbal. Já assistimos a
muitas aulas, já sabemos como nos colocar nelas, mas há ainda uma
parte dessas relações que está em jogo cada vez que entramos em
sala, sua condução está em disputa e o texto produzido em aula é
uma das dimensões em que tal disputa ganha materialidade.
Entende-se assim que
(...) a relação dialógica é uma relação (de sentido)
que se estabelece entre enunciados na
comunicação verbal. Dois enunciados quaisquer, se
justapostos no plano do sentido (não como objeto
ou exemplo lingüístico), entabularão uma relação
dialógica (BAKHTIN, 2000, p.346).
114 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
Aqui, evidenciamos como as ferramentas de Bakhtin podem ser
úteis na análise de uma dimensão micropolítica das trocas verbais.
Apenas em aparência uma avaliação poria em cena alguém
responsável pela elaboração das perguntas e outro que teria a tarefa
de respondê-las. Entendemos que a análise dos gêneros do discurso
constitutivos do fazer docente é, portanto, uma possibilidade de
apreensão das diversas atividades que atravessam esse fazer. A
partir dos gêneros, podemos indicar os diferentes lugares
institucionalizados previstos para o trabalhador-professor e um
conjunto de expectativas.
Neste artigo, os textos selecionados para análise remetem a
uma esfera da atividade tão marcada como integrante do trabalho
docente: a atividade de avaliar. Passemos à descrição do material
analisado, para, no próximo item, proceder a um levantamento de
pontos de contato e de afastamento entre eles.
a prova de seleção 6,
As provas de seleção indicam, no contexto atual de nossa
realidade educacional, aquilo que os profissionais precisam saber.
Acabam por funcionar como referencial a ser seguido por aqueles que
pretendem ingressar na rede pública de ensino, podendo, inclusive,
influenciar cursos de formação. São, portanto, uma dupla memória
que remete ao passado – reproduzindo e mantendo o que vem ou
não sendo privilegiado – e aponta para o futuro – prescrevendo o que
deve ou não continuar sendo considerado importante, o que é
esperado por um determinado grupo para a prática desse trabalho.
Uma vez que, de acordo com Bakhtin (1929), cada um de nós orienta
suas ações a partir de uma visão de futuro, os conteúdos repetidos
nas provas também indicam uma possibilidade de futuro, pois
refletem o que é, e deverá continuar sendo considerado importante
6 As provas em cujas análises baseamos esse artigo constituem o processo
de seleção realizado em 2004 para provimento de vaga de professor
docente I de Língua Espanhola da rede pública estadual do Rio de Janeiro.
115 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
no contexto da educação. As provas de seleção transformam certas
expectativas sobre o que o professor deveria saber em conteúdos
necessários à sua aprovação na seleção, produzindo uma imagem
daquele com quem se fala – nesse caso, o professor.
Ao refletirem saberes acumulados ao longo do tempo,
apoiando-se em uma memória compartilhada, as provas prescrevem
ainda visões de língua e de ensino valorizadas por determinados
grupos. Os saberes não possuem em si mesmos uma essência que
faça deles elementos fundamentais de figurarem em provas de
seleção, ao contrário, é o próprio fato de figurarem em provas de
seleção que os legitima como inerentes e necessários de serem
―dominados‖ pelos candidatos.
b- o formulário-ata7
Embora este gênero tenha aparentemente finalidade
semelhante à de uma ata, seu funcionamento enunciativo se
distingue do que correntemente se conhece com tal. Pretende-se que,
terminado o preenchimento do formulário, ele se torne o registro de
síntese das discussões travadas em reunião, tal qual uma ata do
conselho de classe.
Habitualmente, uma ata requer de um único participante da
reunião a responsabilidade por redigi-la integralmente. Este deve
formalmente lavrá-la, ao final, com sua assinatura, contando ainda
com a ratificação dos presentes. Devem constar nela a data, o local e
os presentes à reunião. Além disso, o relato das discussões pode vir
registrado atribuindo explicitamente cada uma das falas a seus
enunciadores ou apenas anotando impessoalmente o conteúdo das
discussões.
Em contraposição aos modelos habituais, o formulário-ata aqui
analisado tem sua enunciação desmembrada em dois momentos
7 Trata-se de documento utilizando frequentemente em uma escola da rede
pública estadual do Rio de Janeiro, que se constituiu como cenário de
pesquisa desenvolvida por Deusdará (2006).
116 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
distintos. O primeiro deles caracteriza-se pela confecção de uma
pauta inicial da reunião, seguida de perguntas com espaços
determinados para as respostas. Esse texto, cuja elaboração atribui-
se à direção geral, apresenta-se digitado. É distribuído em todas as
salas em que ocorrem reuniões de conselho de classe. O segundo
momento configura-se durante a própria reunião do conselho de
classe, em que se espera que os professores sigam o roteiro e
respondam ao que se propõe. Esse momento exige de um dos
participantes da reunião o registro de síntese da discussão.
A partir dos gêneros descritos acima, podemos dizer que
captamos espaços em que o professor é avaliado, na situação de
candidato a uma vaga em concurso público, e outro em que ele passa
a avaliador, na situação de membro de uma reunião de conselho de
classe. Ou seja, quando a avaliação não é um poder do professor,
pois incide sobre ele.
São esses os gêneros que constituem o material de base para
reflexão por nós empreendida no presente artigo. Sua seleção deveu-
se ao fato de que ambos remetem a atividades que não se vinculam
diretamente ao contexto de sala de aula, embora façam menção a
ele. Nesse sentido, acreditamos que tal opção apontará para um
conjunto de saberes que se pressupõem necessários à prática
docente e as relações de poder que os constituem, emergindo de
outras coordenadas de espaço-tempo do trabalho do professor.
ATIVIDADE DE AVALIAR E OS SABERES PRESSUPOSTOS
O paradoxo da avaliação residiria em considerá-la como
processo contínuo, articulando temporalidades no espaço escolar,
mas também legitimando certos saberes como válidos e necessários.
Põe em funcionamento toda uma maquinaria que associa práticas
discursivas (a partir de estratégias de fazer dizer) a regimes de
117 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
visibilidade (que fazem ver os resultados produzidos por essa
maquinaria disciplinar).
Iniciamos nossas observações tratando da prova. Ressalte-se
que os documentos que normalizam a seleção abrangem, além da
prova, o edital e o manual do candidato. Não obstante as menções
eventuais aos três documentos, neste artigo, centramos nossas
análises nas provas de seleção.
Conforme Vivoni (2003), nos concursos realizados pela SEE/RJ,
a elaboração das provas insere-se em um processo de diálogo entre
essa Secretaria e a FESP – fundação responsável pelo referido
concurso. Em um primeiro momento, a secretaria fornece o perfil de
docente que deseja selecionar e outras informações relativas ao tipo
de prova e ao grau de dificuldade. O tipo de prova e o grau de
dificuldade, de alguma maneira, têm de prever uma hierarquização,
permitindo dividir os candidatos em aprovados ou eliminados, em
classificados ou não classificados.
É de responsabilidade da banca também confeccionar o
gabarito de respostas e avaliar seu grau de dificuldade no momento
da elaboração. ―O perfil do candidato é delineado, num primeiro
momento, pela SEE e transmitido à FESP, que o repassa à
coordenação acadêmica, que, por sua vez, entra em contato com a
banca‖ (VIVONI, 2003, p. 26).
Na enunciação de uma prova, legitima-se daquele que pode
perguntar e prever as respostas esperadas e de outro que deve
inserir-se nas previsões de respostas. A prova também se apresenta
como dispositivo de fazer ver graus variados de ―domínios‖ dos
conhecimentos requeridos. Trata-se, portanto, de “um saber sobre os
indivíduos que nasce da observação dos indivíduos, da sua
classificação, do registro e da análise dos seus comportamentos, da
sua comparação, etc” (FOUCAULT, 2005, p.121).
Desse modo, indicamos marcas linguístico-discursivas de certos
perfis de candidatos construídos, bem como uma hierarquização dos
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saberes que se julgam necessários à aprovação e classificação do
candidato.
Reproduzimos a seguir uma das questões constante na prova
analisada:
Pregunta 35
―…vendrán ochenta o noventa a cenar, …‖:
(L.12) – ochenta y noventa es la forma escrita de
los numerales 80 y 90. Señale la de los numerales
16 y 28:
a) dieceséis y veinteocho
b) diez y seis y veinte y ocho
c) dieciséis y veintiocho
d) deciséis y ventiocho
Apesar de haver um fragmento de texto no comando da
questão, verificamos que a presença desse enunciado é
completamente desnecessária, uma vez que a questão trata apenas
da identificação da correta ortografia dos números 16 e 28.
Para cada questão há apenas uma única resposta verdadeira,
as outras três são falsas. Tem-se que os saberes necessários à
prática docente já estariam dados previamente, prontos em algum
lugar e a tarefa do candidato nessa prova é identificá-los. Aqueles
que melhor conhecerem o gênero discursivo em questão e forem
capazes de ―encontrar‖ o maior número de ―verdades‖, ou seja, que
demonstrarem não só conhecer, mas saber desviar de ―ciladas‖,
respostas falsas, mostram-se aptos a tornarem-se professores da
rede pública estadual. Esses modos de enunciação próprios às
questões de múltipla escolha aproximam-se de um aperfeiçoamento
autoritário. O que importa não é compreender a injunção, mas
perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou
119 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
menos artificial, estabelecido previamente, que se traduz na própria
opção pela prova de múltipla escolha (FOUCAULT, 2004).
As provas legitimam o controle, dizem quem pode ou não pode
continuar na escola, quem pode ou não ―passar de ano‖, quem pode
ou não ser professor da rede pública estadual. Punem e
recompensam, levam a ―autorizações‖, como poder entrar de férias,
passar de ano, exercer a profissão etc.
Outrossim, a presença de saberes acadêmicos, sobretudo
gramaticais, em uma prova de seleção constitui movimento circular
de interlegitimação: ao pôr em cena questões de gramática, a prova
atende a uma expectativa prévia, que circula no social, de que um
bom professor de língua (materna ou estrangeira) deve demonstrar
habilidades com saberes gramaticais. Assim sendo, legitima não só
essa expectativa, como esse campo de saberes, ao mesmo tempo em
que também se coloca como instrumento de avaliação. A avaliação
apenas reforça o que já se encontra cristalizado.
As ―luzes‖ que iluminam conhecimentos gramaticais ocultariam
quais outros saberes não enunciados? Que questões do cotidiano
docente deixam de ser problematizadas? Que tensões são ocultadas?
Ainda que não tenhamos respostas para estas questões, se
retomamos a proposta de Foucault, que os campos poder / saber
devem ser compreendidos como resultados de embates políticos e
jogos de força, a análise de tais resultados, é relevante. É possível
destacar algumas concepções de ensino representantes de crenças,
que, dessa forma, se perpetuam no âmbito do ensino de língua em
nosso estado: basta conhecer a gramática da língua ensinada para
que se tenha sucesso em sala de aula.
Em suma, a naturalização do processo seletivo, aqui
representado pelas provas, já é, por si só, um exemplo do vigiar
típico da sociedade disciplinar. A vigilância é fundamental, no sentido
de comprovar se os futuros professores estão se comportando dentro
do esperado para fazer com que o sistema funcione.
120 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
No que se refere ao formulário-ata, observa-se encenação de
um diálogo entre a Coordenação da escola e os professores reunidos
em conselho de classe. Além da pauta da reunião, as perguntas
constituem-se em uma expectativa, ou seja, são uma previsão do
que os professores devem discutir. Uma orientação que torna mais
útil o aproveitamento do tempo. Evita desperdícios.
Não só as perguntas, mas o espaço reservado e limitado,
apresentado em seguida de cada uma das perguntas, também parece
funcionar como mecanismo de controle do tempo. A despeito do que
habitualmente se conhece por ata de reunião, esta não permite o
registro das discussões; anotam-se apenas os resultados,
objetivando-os nas linhas destinadas a cada uma das questões.
Além disso, perguntas como ―11. Alunos que se destacaram
pela participação, independente da nota‖ pressupõem um professor
que vigia e controla a produção de seus alunos, durante todo o
tempo, possui formas de observação e registro situados para além
dos resultados das provas. Com isso, institucionalizam-se práticas de
controle individualizantes mantendo os alunos em constante
vigilância. É preciso identificar, anotar, distinguir, julgar todo o
tempo. A observação não deve cessar. Em relação ao trabalho
docente, é necessário extrair dele o máximo de utilidade. Quanto
mais observa, mais se torna útil, tanto mais é produtor de saberes de
vigilância.
Essa dinâmica de vigilância contínua esperada do professor
pressupõe uma dada organização do seu trabalho. Vejamos as
questões de número 5 e 6:
5. A turma está correspondendo ao que você, professor,
planejou para o 2º bimestre?
6. Há falta de interesse por parte de alguns alunos, ou de
algum grupo em especial?
Haveria assim, em primeiro lugar, um planejamento de suas
ações anterior à interlocução com os alunos e sua execução em sala
121 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
de aula. Nesse modelo, o diálogo que os alunos mantêm com as
expectativas elaboradas pelo professor é interpretado como respostas
deles ao seu planejamento. Na execução do planejamento, a
interlocução dos alunos é compreendida como um ―comportamento‖
que manifestaria interesse ou falta dele em relação ao proposto.
Instituem-se lugares bem definidos, com expectativas bastante
nítidas, para o diálogo professor-aluno: ao professor cabe, na solidão
da elaboração do planejamento, prever e determinar o que será
proposto, aos alunos cabe interessar-se por isso8.
Emerge desse tipo de expectativa um conjunto de saberes
sobre a aprendizagem, o comportamento, sobre os indivíduos. Se o
interesse é observado continuamente no comportamento de cada um
dos alunos, os supostos ―problemas‖ são, portanto, individualizados.
O que se espera do professor é exatamente saber fazer esse tipo de
recorte, ou seja, saber indicar a cada lugar um indivíduo e a cada
indivíduo seu problema.
O formulário-ata, com seu resultado ―objetivado‖ no
funcionamento de perguntas e respostas, garante o aumento do
controle. Não é mais preciso ler atas detalhadas da discussão
realizada na reunião de Conselho de Classe. Este funcionamento
discursivo produz duas imagens do trabalho docente que,
aparentemente, se contradizem, mas que se complementam.
De um lado, uma imagem de professor-detento, que tem o
tempo de sua atividade controlado. Este controle não se exerce por
8 Como observou Rocha (2001), nas escolas ―a luta dos educadores está
prioritariamente situada nas turmas, com cada aluno, buscando
compreender suas faltas ou estabelecer novos dispositivos de contenção‖ (ROCHA, 2001, p. 219). Segundo a autora, esse modo de funcionamento do
cotidiano gera desgaste físico e psíquico nos profissionais, ao passo que as
condições de realização e os modos de gestão do trabalho escolar não
ganham visibilidade. Desse modo, o projeto educacional se institui a partir
de uma visão clínico-assistencial, em que crianças e adolescentes são observados isolados do contexto. Nesse modelo, individualizam-se os
conflitos, atribuindo-se ao profissional a função de diagnosticá-los e propor
tratamentos.
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um poder que impeça a discussão, mas por inúmeras perguntas que
orientam e procuram extrair o máximo de utilidade da reunião.
Além disso, essa detenção do professor se manifesta também
no fato de haver, ao mesmo tempo, nove reuniões de Conselho de
Classe sendo realizadas: para cada um dos três turnos (manhã, tarde
e noite), há uma reunião para cada uma das séries (1ª, 2ª e 3ª do
Ensino Médio). Assim sendo, nenhum dos professores em cada uma
das reuniões sabe do que está sendo discutido nas demais salas. Essa
―não visibilidade‖ mútua entre os professores aproxima-se da
arquitetura do panóptico, cujos detentos não se vêem mutuamente,
nem mesmo àquele que teria como função vigiá-los. Contudo, todos
sabem que estão (ou podem estar) sendo vigiados. Não há
necessidade da presença da Orientação pedagógica ou da
Coordenação da escola, todos preenchem os formulários como se
todos eles viessem a ser lidos por quem os elaborou.
Mesmo que esta leitura não se realize, a vigilância se mantém,
afinal, ―o Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto‖
(FOUCAULT, 2004b, p. 167). A vigilância, portanto, deve sempre
funcionar. A sujeição independe da existência de alguém no anel
central.
―Há uma maquinaria que assegura a dissimetria, o
desequilíbrio, a diferença. Pouco importa, conseqüentemente, quem
exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase tomado ao acaso, pode
fazer funcionar a máquina‖ (FOUCAULT, 2004b, p. 167).
De outro lado, constitui-se a imagem do professor-carcereiro,
aquele que produz um enraizamento do poder. Leva-o ao detalhe, à
observação minuciosa, capaz de anotar cada alteração. Conhece os
alunos pela série, em cada série, sua turma, em cada turma seu
número, a cada número a presença diária, o rendimento nos testes e
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provas, o comportamento cotidiano. Todas essas informações estão
detalhadamente registradas em seu diário de classe9.
Ao professor-carcereiro, é dada a possibilidade de reconhecer
um bom rendimento atribuindo pontos por comportamento, por
exemplo, bem como punir, com retiradas de sala, advertências. É ele
quem registra indisciplinas (cf. com o item ―8 Há problemas de
indisciplina que mereçam ser registrados?‖). Mais do que a punição
propriamente, sua presença deve explicitar toda a maquinaria de
vigilância que controla o movimento mais sutil dos corpos. Individua
comportamentos e rendimentos, gratifica-os e os pune.
Assim, a produção de saberes de vigilância está vinculada a
uma dupla estratégia: o professor exerce a vigilância e,
simultaneamente, funciona como uma engrenagem das técnicas de
disciplinarização.
No formulário-ata, há duas perguntas propondo uma análise da
turma. Vejamos:
4. Conceituação da turma em relação ao 1º. bimestre:
Quanto ao rendimento:
Quanto à freqüência:
Quanto à disciplina:
O que se espera do professor na conceituação da turma quanto
ao rendimento? Habitualmente, o rendimento de que trata a escola se
extrai de avaliações de conteúdo ou de certas habilidades necessárias
ao desenvolvimento de uma tarefa. Codifica-se tal rendimento em
números ou letras. Desse modo, ao solicitar o rendimento da turma,
é provável que se tenha como resposta algo que tome por base a
média dos rendimentos individuais dos alunos da referida turma. Da
9 Aparentemente instrumento de vigilância dos alunos, o diário de classe representa também uma vigilância de si por parte do professor. Assegura,
com registro da presença do aluno, a sua própria permanência em sala no
horário previsto.
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mesma maneira, a frequência controlada no diário refere-se à
presença individual na escola. Uma frequência oscilante ou estável de
uma determinada turma, nos termos propostos, verifica-se pela
média de presenças dos alunos averiguadas em um período
determinado. Isso nos leva a perceber que a noção de turma parece
funcionar habitualmente como sinônimo de somatório de indivíduos.
É preciso ver no grupo o movimento de cada um, vigiá-lo, agir sobre
ele, controlando-o.
Desse modo, os saberes necessários à prática docente que
atravessam tanto as provas como o formulário-ata restringem-se à
vigilância, propõem um profissional que faz ver em cada indivíduo
corpos dóceis, ou problemáticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sobrevalorização dos instrumentos de avaliação na atualidade
moveu-nos a produzir esse encontro entre reflexões sobre prova de
seleção ao magistério e formulário-ata de conselho de classe. Trata-
se de materiais aparentemente muito distintos, no entanto, integram
uma maquinaria que põe em funcionamento controles e distinções no
cotidiano escolar.
A partir do encontro entre os referenciais de autores como
Bakhtin e Foucault, percorremos algumas pistas para a construção de
imagens de professor e observação de um exercício de poder que age
por recompensa e sanção. Uma pista dessa convergência é o
privilégio aos saberes enciclopédicos. No caso dos formulários, esses
saberes não são explicitados, mas é possível pressupor a importância
conferida a eles através do destaque dado aos resultados obtidos
pelos alunos. Outro aspecto importante desse privilégio aos saberes
enciclopédicos é a dinâmica que impõe às experiências concretas. Nas
provas, há um silenciamento de tais experiências. Já no formulário-
ata, estas aparecem secundarizadas, quando se refere aos alunos que
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teriam se destacado ―pela participação, independente da nota‖. A
participação aparece como concessão àqueles que não atenderam à
performance esperada.
Outra questão instigante nas análises refere-se às imagens de
trabalhador-docente que se produzem a partir das relações de poder-
saber que atravessam tais discursos. As imagens de professor-
detento e professor-carcereiro pretendem dar visibilidade a um modo
de operar da disciplina, que nos fala de uma complexa economia de
exercício do poder. Não há como exercer poder sem se submeter às
suas amarras.
Que resposta poderíamos oferecer à sobrevalorização dos
instrumentos de avaliação como ―solução‖ para a melhoria da
qualidade da Educação? Indicamos que a excessiva valorização dos
conhecimentos formais e enciclopédicos dá visibilidade à escola como
instituição de seleção e hierarquização de saberes. Apaga-se a
ancoragem sócio-histórica e o caráter circunstancial próprio a todos
os saberes.
No modelo de educação assentado na performance do aluno (e
do professor), o destaque conferido aos resultados, medidos a partir
de instrumentos que avaliariam o grau de saberes acumulados por
cada um evidencia a aprendizagem como atividade individual,
fazendo das experiências coletivas, inscritas em situações concretas,
realidades descartáveis. Ou seja, o sentido de qualidade assumido
por tais propostas apenas reforça o que já se sabe há muito na
escola. Trata-se de consideração a relação com o conhecimento como
mera transmissão/aquisição de informação. Os índices alcançados
apenas indicam maior quantidade de informações adquiridas,
atingem-se os patamares previstos pelas próprias avaliações. O
movimento gerado é fundamentalmente o de controle e o de
interlegitimação, como vimos sustentando ao longo do artigo.
Nesse cenário, quais seriam os desafios colocados para a
formação de professores? Enfatiza-se a procura por cursos de
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formação continuada, por metodologias de reforço das informações a
serem adquiridas por cada série. Se não é a legitimidade desses
cursos que colocamos em questão, o que nos interessa interrogar é a
compreensão do cotidiano como mero espaço-tempo de aplicação
desses saberes. A nosso ver, trata-se, antes, de confronto,
readequação, criação de outros modos de lidar com esses saberes,
valorizando a prática profissional como momento de
elaboração/criação de um caminho singular com o saber, em vez de
tratar-se apenas de reprodução de um ―já aprendido‖. Desse modo,
nossas reflexões poderiam indicar elementos para formação de
professores priorizando o cotidiano da prática profissional como fonte
de saberes. Se o que ganha destaque com as políticas públicas em
vigor é um concepção de cotidiano como espaço-tempo de execução
de metas e aplicação de conteúdos aprendidos fora dele, o que
pretendemos é ressignificar as fronteiras entre o que precede a
prática profissional e o que se realiza no cotidiano de trabalho.
Apenas cumprir metas pode nos impor uma dinâmica arriscada de
aprisionamento aos dispositivos de controle, em que o que se perde é
exatamente um caminho singular com o conhecimento. A ênfase
conferida às avaliações acaba por desqualificar os saberes oriundos
das experiências concretas, uma vez que, como vimos indicando,
restringe os sentidos de ―qualidade‖ a alcançar os patamares
propostos por esses próprios instrumentos. Pensar a formação de
professores na atualidade passa por questionar a limitação do tom
atribuído às avaliações de desempenho.
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128 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
A LIÇÃO DE BARTHES: A ARGUMENTAÇÃO
EM SERMÃO DA SEXAGÉSIMA:
BREVE ANÁLISE.
PIRES, Elisa Tavares 10
INTRODUÇÃO
Um sermão é um texto em prosa, um discurso importante,
objetivando a propaganda e a edificação religiosa e, exatamente por
isso, elaborado de maneira demorada. Conforme Almeida, essa
modalidade literária faz parte da oratória, isto é, a arte do bem dizer
―empreendendo os recursos verbais com o objetivo de ensinar,
persuadir e comover.‖ (ALMEIDA, 2008, p.9)
Alguns teóricos classificam as peças de oratória em quatro
tipos: (1) acadêmico, constituído por agrados ou homenagens,
também chamado de panegírico; (2) judiciário, aquele que acusa ou
defende; (3) político, que trata de questões públicas; e (4) religioso,
cuja função é discutir dogmas com vistas a suscitar nos ouvintes
devoção a estes mesmos dogmas. A oratória de caráter religioso
compõe-se de textos que podem ser subclassificados e acordo com
sua função: a homilia, que é a explicação de um tema ou de uma
passagem evangélica; o panegírico, que é uma oração de louvor; a
oração fúnebre; e, por fim, nosso objeto do estudo, o sermão,
também chamado de prédica. Geralmente o discurso oratório
composto pelas seguintes partes: a) exórdio ou princípio; b)
desenvolvimento; c) peroração; d) conclusão ou epílogo.
Sermão vem do latim, sermone, e originariamente significa
conversação. O significado do termo evoluiu para um discurso
religioso, pregado geralmente no púlpito. Chama-se prédica porque
se desenvolve a partir de um conceito predicável, ou seja, que é
10 Especialista em Língua Portuguesa, formada pela UERJ. Mestranda em
Língua Portuguesa, na UERJ, sob a orientação da professora doutora Vania
Dutra - (UFF-UERJ). Membro do Grupo de Pesquisa SELEPROT.
129 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
possível de ser pregado. Esse conceito predicável é um texto bíblico
que o orador comenta de acordo com o tema e as teses que se
propõe a desenvolver. Ainda de acordo com Almeida,
O discurso de Vieira, normalmente proferido do
púlpito, a partir do texto bíblico, pretende conter a
verdade de uma tradição compartilhada. Exemplo
de sedução e argumentação, de um árduo e incessante trabalho com a linguagem, o sermão -
veículo dotado de regras próprias, com
reconhecida tradição - dirige-se a um auditório
particular, numa circunstância conjuntural precisa, em determinada situação. (ALMEIDA 2009, p.9).
Sob esse ângulo, pautamo-nos na premissa de que é
simplesmente impossível entender a ação de Padre Antonio Vieira se
não estivermos ambientados em seu contexto histórico. Assim, é
preciso estabelecer os vínculos necessários entre o momento em que
o texto foi produzido e a construção de seus sentidos. A escolha d‘Os
Sermões – especificamente o da Sexagésima - se deve ao fato destes
serem considerados as obras primas do estilo de Vieira, além de
serem o melhor exemplo do barroco conceptista, nos quais o autor
trabalha diferentes ideias e conceitos, produzindo uma prosa com
períodos construídos de uma maneira extremamente trabalhada,
como é possível perceber mesmo em uma breve leitura do sermão. É
preciso notar que Vieira era muito seguro de seu discurso e que o
tecia utilizando outros textos - bíblicos e teológicos - para legitimar
sua fala, mesclando-os, em alguns momentos pertinentes, para
validar seus argumentos e garantir que sua intenção fosse cumprida.
Vejamos, então, quem foi Padre Antonio Vieira. Nascido em
Lisboa em 1608, Vieira veio para o Brasil ainda criança, em 1615,
instalando-se com a família em Salvador. Seu destino na Bahia foi o
Colégio dos Padres Jesuítas. De acordo com Clóvis Bulcão em seu
livro Padre Antônio Vieira – um esboço biográfico, nos primeiros anos,
por mais que se dedicasse, era um aluno apenas mediano, sem
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conseguir um bom rendimento (BULCÃO, 2008, p.27). Em
determinado momento, porém, ainda de acordo com o historiador,
após um estalo, seguido de uma forte dor de cabeça, Vieira tornou-se
um dos estudantes mais capazes do colégio. Com o sucesso
acadêmico, veio a vontade de entrar para a Companhia de Jesus.
Toda a obra de Vieira, seus planos e sua visão política se
baseavam na Bíblia. Ainda de acordo com Bulcão, na época da
restauração portuguesa com D. João IV, em 1640, partiu da Bahia
para Portugal e durante 13 anos atuou como uma espécie de ministro
de extrema confiança junto a El-Rei, tendo desempenhado diversas
funções políticas e diplomáticas na Europa.
Quando vai morar em Portugal, em 1641, Vieira torna-se
extremamente popular. As igrejas em que pregava ficavam lotadas, e
as pessoas extasiavam-se com seus sermões. Porém, desgostoso do
rumo político que Portugal havia tomado regressa ao Brasil alguns
anos mais tarde.
O Sermão da Sexagésima, portanto, foi pregado na Capela Real
de Lisboa, em 1655, a um auditório constituído em sua maioria por
pregadores dominicanos, adversários filosóficos dos pregadores
jesuítas. O objetivo principal do sermão era, portanto, atingir os
provisores do Santo Ofício, que tanto perseguiam o próprio Vieira, e
eram pregadores de estilo rebuscado complexo, o que dificultava o
entendimento por parte dos ouvintes.
A referência procede. Sabe-se que o Barroco tinha como missão
expandir a fé cristã católica e repreender todo tipo de heresia. Dessa
forma, esperava-se que os pregadores fossem capazes de ensinar e
converter as pessoas. Entretanto, o que estava acontecendo não era
isso. A verdadeira finalidade a que se destinava a pregação, isto é,
admoestar, ensinar e converter as pessoas, vinha desvirtuando-se do
púlpito para uma manifestação exterior e mais festiva de culto.
É preciso perceber que, na época, em Portugal, em pleno
apogeu do Barroco, o sermão religioso se havia tornado um dos
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maiores espetáculos artísticos e literários, constituindo-se ―uma
atividade especial no quadro das atividades religiosas‖ (CARVALHO,
2000, p.18)
Convivendo com a cultura artística do Barroco, o trabalho de
Vieira não poderia deixar de apresentar marcas deste estilo de época,
embora com traços bastante peculiares. O que é necessário perceber
é que, no Sermão da Sexagésima, Vieira critica os exageros do
Barroco e os culpa pelo insucesso das prédicas, afirmando que a
responsabilidade pela não frutificação da palavra de Deus está
também nos pregadores presos à forma e ao estilo rebuscado e de
difícil compreensão; nos que não pregam com o uso da razão e dos
exemplos; e nos que privilegiam a vaidade ao arrazoamento no uso
da palavra.
Partindo desse fato, objetivamos abordar as questões
argumentativas nos sermões de Padre Antonio Vieira, em específico
no Sermão da Sexagésima, os quais, mais que textos pertencentes à
literatura, têm caráter explicitamente argumentativo, com objetivos
claros de convencimento de seus interlocutores. A motivação inicial
deste trabalho foi um estudo inicial da produção verbal de Vieira, que
permitiu perceber em suas escolhas gramaticais, não apenas
objetivos claros, mas também abundância de estratégias
argumentativas destinadas ao convencimento de seu interlocutor (ou
se seus auditórios). Além disso, intencionamos fazer do texto literário
um objeto de análise linguística na escola. Pensamos ser útil analisar
trechos juntamente aos alunos, para mostrar-lhes como estão
dispostas algumas marcas linguísticas da argumentação e ensinar-
lhes a utilizá-las em seus próprios textos.
Percebendo a riqueza de sua obra e o campo fértil para
estudarmos as premissas da argumentação, analisaremos, pois,
neste trabalho, a prédica de Antonio Vieira pelo esquema proposto
por Ingedore Koch, presente no livro Argumentação e Linguagem
(2002), tendo como objetivo principal o estudo do sermão fora do
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contexto das aulas de literatura, mostrando que um texto – mesmo
literário – com estrutura argumentativa plena, clara, de fácil
decomposição em seus elementos formantes, serve como exemplar
de estratégias de persuasão para os alunos do Ensino Médio.
2. QUADRO TEÓRICO
Trabalhar com a linguagem, cujo estudo exige um horizonte
capaz de produzir sentido e não somente uma simples descrição de
um fenômeno empírico é considerar que essa não é transparente.
Mais que significados, as palavras têm utilizações. O significado de
um signo ―depende das relações entre as diferentes partes dos
enunciados e essas relações são determinadas pela estrutura do
sistema da Língua‖ (Collado 1980: 70).
O texto argumentativo, pela natureza dos fins a que serve, tem
como objetivo conseguir a adesão do enunciatário à tese do
enunciador. A sua eficácia, consequentemente, depende da adoção,
por parte do enunciador, de uma estratégia argumentativa adequada
ao conteúdo selecionado e às características biopsicossociais do
enunciatário.
De acordo com Koch (2002, p.19), ―o ato de argumentar, isto
é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer
discurso subjaz uma ideologia‖. A neutralidade não existe de fato,
pois mesmo aquele discurso que se pretende neutro já contém a sua
ideologia.
Assim, conforme Orlandi, compreender um texto não é
simplesmente decodificar frases: é passar de uma sucessividade a
um todo de sentido, coesivo e coerente (1996).
A interação social por intermédio da língua caracteriza-se pela
argumentatividade. Koch, (2002ª, p.10) defende a proposta de
Perelman (1970) de que o ato linguístico fundamental é o ato de
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argumentar. Para a autora, ―o ato de argumentar é visto como o ato
de persuadir que procura atingir a vontade, envolvendo a
subjetividade, os sentimentos, (...) buscando adesão e não criando
certezas‖ (grifo da autora). De acordo com Perelman, enquanto o ato
de convencer se dirige somente à razão por meio de provas
objetivas, o ato de persuadir procura atingir a vontade dos
interlocutores, por meio de argumentos plausíveis, e tem caráter
―ideológico, subjetivo, temporal, dirigindo-se, pois, a um ‗auditório
particular‘‖(KOCH 2002ª, p.20). Enquanto o primeiro leva a certezas,
o segundo conduz o auditório à adesão dos argumentos a partir das
inferências.
2.1 ARGUMENTAÇÃO
A argumentação se desenvolve em função de um destinatário,
que influencia direta ou indiretamente a forma como evoluem os
argumentos propostos. Argumentamos para persuadir alguém que, à
partida, não partilha os mesmos pontos de vista ou as mesmas
convicções que nós possuímos. Sem ferir a atenção do destinatário
da argumentação, isto é, sem fazer com que o interlocutor tenha a
sua atenção voltada para o assunto tratado, a persuasão jamais
poderá ser efetiva.
Segundo Koch, a enunciação faz-se presente no enunciado por
diversas marcas; e seria por meio delas que se chegaria ao alvo para
o qual esse enunciado aponta. Não bastaria conhecer o significado
literal das palavras: seria preciso reconhecer os seus empregos
possíveis, que podem variar de acordo com as intenções do falante e
as condições em que o discurso foi produzido.
A ideologia transita entre os espaços da enunciação e da
interação de modo que, no momento da enunciação, serão impressos
na mensagem os princípios ideológicos que regem determinado
veículo, e, no momento que o interlocutor receber a mensagem, ela
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será interpretada segundo os preceitos por ele aceitos. Assim, ―por
meio do discurso – ação verbal dotada de intencionalidade – tenta
influir sobre o comportamento do outro ou fazer com que compartilhe
determinadas opiniões‖ (KOCH, 2002, p.19).
Partindo então, do postulado de que a argumentação é inerente
ao uso da linguagem, pode-se adotar as ideias de que argumentar
constitui a atividade que estrutura todo e qualquer discurso e de que
toda a atividade de interpretação presente no cotidiano da linguagem
fundamentar-se-ia na suposição de que quem fala tem determinadas
intenções ao comunicar-se (KOCH, 2002ª, p.24). Ora, se está
presente em ―todo e qualquer discurso‖, pode também ser
encontrada em um texto que é supostamente apenas literário.
Entendendo que os sermões do padre Antonio Vieira possuem
objetivos claros de convencimento de um auditório, tomamos como
base para o Sermão da Sexagésima o esquema de análise de textos
também proposto por Koch em seu livro ―Argumentação e
Linguagem‖, no qual a autora faz um sumário das categorias
analíticas utilizadas nas análises textuais. São duas: recursos
argumentativos presentes no nível linguístico fundamental e recursos
retóricos ou estilísticos de segundo nível.
Ao observarmos o Sermão da Sexagésima, pudemos perceber
que este poderia ser analisado por todas as categorias descritas por
Koch, todavia recortamos nossa análise fixando-nos nos operadores
argumentativos. Os operadores argumentativos são, de acordo com
Koch, certos elementos da língua, explícitos na própria estrutura
gramatical da frase, cuja finalidade é a de indicar a
argumentatividade dos enunciados. Introduzem variados tipos de
argumentos. As palavras que funcionam como operadores
argumentativos são os conectivos, os advérbios e outras palavras
que, dependendo do contexto, não se enquadram em nenhuma das
dez categorias conhecidas pela tradição gramatical.
135 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
Ocorre que o estudo da obra de Vieira acabou restrito ao
universo acadêmico e, mesmo assim, de forma fragmentada. Seus
textos ficaram aprisionados nos altos estudos de literatura e filosofia,
e nos colégios pouco se explora tão vasto acervo. Quando Pe. Antonio
Vieira é apresentado aos estudantes do Ensino Médio, normalmente
mostram-se um ou dois trechos do Sermão da Sexagésima para
ilustrar a prosa barroca.
Se, porém, por um lado nos é claro que esse Sermão é um
excelente exemplo do conceptismo barroco, por outro, é um grave
reducionismo reduzi-lo a apenas isso. Apesar de ser um texto
analisado apenas literariamente pelas escolas, pode e deve ser
explorado pelo viés das estratégias argumentativas. O tratamento
literário exclusivo dado aos textos parece buscar uma autonomia para
a literatura a qual dispensaria o conhecimento da língua, não se
recordando de que a matéria-prima da literatura é a língua e de que
textos como o de Vieira podem ser fontes de ricos estudos da
potencialidade expressiva do Português. Embora seja necessário
distinguir a estrutura de uma peça oratória, destinada a ser falada,
de um texto argumentativo escrito para ser lido quase sempre
silenciosamente, há uma estrutura de base que se mantém,
organizada dialeticamente em três componentes fundamentais: tese,
antítese e síntese.
No plano geral, de acordo com Guimarães, a argumentação é
vista como a busca da persuasão de um auditório pelo locutor. Ou
seja, o texto é ―um efeito ideológico da posição do autor‖
(GUIMARÃES, 2007, p.14).
Segundo Ducrot, (GUIMARÃES 2007, p.25) os textos são
orientados argumentativamente. Isso quer dizer que orientar
argumentativamente com um enunciado X é apresentar seu conteúdo
A como devendo conduzir o interlocutor a concluir C. Ou seja, é
apresentar A como uma razão para se crer em C. Tal esquema fica
claro se observarmos como são construídas as estratégias
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argumentativas que conduzem o leitor à conclusão esperada por
Vieira no sermão da Sexagésima.
De acordo com Guaranha (2003), Vieira acredita que o texto
bíblico, por ter sido inspirado por Deus, é a prefiguração de todas as
verdades. Para ele, cada fragmento da Bíblia contém um mistério a
ser decifrado. Para isso, o orador desenvolve procedimentos de
análise textual. Por meio desses procedimentos, o orador deveria
levantar os mistérios contidos nessas particularidades com engenho,
partindo dos pressupostos de que há uma relação não convencional
entre a palavra e a coisa significada e que ela contém um mistério
que precisa ser decifrado; a essência de todas as coisas está contida
em sua definição e a reflexão consiste em tornar explícitos os
atributos contidos nessa definição.
Apesar de ser um texto explorado – ainda assim aquém das
possibilidades que oferece – apenas nas aulas de literatura, está claro
que o Sermão da Sexagésima tem como objetivo convencer um
público específico de que a palavra de Deus não frutifica por culpa
dos pregadores. É a partir dessa premissa que pensamos ser profícuo
o trabalho de análise de algumas de suas partes em sala de aula. Ao
explorar o texto, percebendo como foi trilhado o caminho do autor
em direção ao interlocutor por meio das relações linguísticas, o aluno
poderá ver, com mais clareza, como se constrói um texto
argumentativo e, a partir disso, estar mais consciente das estratégias
que ele mesmo utilizará quando for escrever o seu próprio texto.
3. O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
Qualquer ato de enunciação ocorre dentro de um quadro de
condições, tais como: a) é realizado por um enunciador, condicionado
biopsicossocialmente, movido por uma ou mais intenções; b)
acontece em um contexto histórico definido e em determinado lugar;
c) refere-se a um mundo (ou a aspectos do mundo) objetivo ou
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subjetivo, representado por uma língua e pelos elementos da
situação em que se realiza a enunciação; d) dirige-se a um ou mais
enunciatários, igualmente condicionados às condições de produção do
discurso.
A habilidade que um enunciador tiver para explorar as
virtualidades argumentativas desses constituintes da enunciação,
certamente contribuirá para a eficácia de sua produção textual. Ao
lermos os sermões, percebemos que Vieira era exímio conhecedor de
sua língua. Parte disso se deve a sua formação intelectual jesuítica, a
qual fez com que ele percebesse que a palavra pode proporcionar e
conter muito mais do que aquilo que ela expõe. Por meio desse
conhecimento, Vieira tecia seus textos de uma forma magistral,
conduzindo seus ouvintes às conclusões a que queria que chegassem.
O sermão, como texto argumentativo, tem como objetivo levar
seus interlocutores a determinados tipos de comportamento, atuando
sobre eles de maneira incisiva no que concerne à fecundidade das
palavras proferidas. Para tanto, como visto, serve-se o orador da
estrutura da argumentação formal, composta basicamente de quatro
partes: proposição (parte I); análise da proposição (partes II, III,
IV); formulação dos argumentos, ou seja, a evidência (partes V, VI,
VII, VIII); e conclusão (partes IX e X).
Está claro, então, que o Sermão da Sexagésima tem como
objetivo convencer um público específico de que a palavra de Deus
não frutifica por culpa dos pregadores, além de levar seus
interlocutores a determinados tipos de comportamento, atuando
sobre eles de maneira incisiva no que concerne à fecundidade das
palavras proferidas. Nele, o Padre Vieira apresenta sua visão da
pregação religiosa, adaptando a seus propósitos muitas das doutrinas
dos grandes retóricos da Antiguidade Clássica, como Aristóteles e
Cícero, bem como da retórica medieval. A sua concepção de pregação
religiosa está nele articulada com detalhes.
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Sexagésima é considerado seu mais importante sermão: uma
crítica monumental ao estilo barroco, sobretudo ao Cultismo. Como
foi pregado na Capela Real, em Portugal, podemos concluir que, o
auditório era particular, composto por católicos da nobreza
portuguesa da época. Vieira procura se aproximar do auditório
dirigindo-lhe perguntas que ele mesmo, o autor, responde. O autor
procurou no sermão a adesão do auditório à sua tese principal de
que, se não havia conversões em massa ao catolicismo na sua época,
isso ocorria por culpa dos pregadores de então. Após a apresentação
da primeira parte do sermão, o exórdio, tem-se o significado do título
e a contextualização da Sexagésima: o domingo no qual foi pregado
era, segundo o calendário litúrgico católico em vigor até o Concílio
Vaticano II, o penúltimo domingo antes da quaresma ou,
aproximadamente, o sexagésimo dia antes da Páscoa.
Ao analisarmos o Sermão da Sexagésima, percebemos Vieira
como grande usuário de seu aparato linguístico, em prol da
conversão, não só dos gentios, mas também dos próprios pregadores
de seu tempo. Ao proferir um sermão metalinguístico, Vieira propõe
que a arte de pregar deve ter como objetivo principal a semeadura e
a colheita, a persuasão, o convencimento, a salvação das almas. A
escolha cuidadosa de termos e a explicação minuciosa de tais
escolhas nos apresentam um exímio orador, de linguagem clara,
porém extremamente fervoroso, que tinha na palavra de Deus sua
matéria prima. Nele, o projeto político não era dissociado do religioso,
e a palavra era o principal instrumento para a concretização desse
propósito. ―A palavra é divina e Deus está na palavra‖ (CARVALHO
2000, p.131).
Vieira serve-se da estrutura da argumentação formal, composta
basicamente de quatro partes: proposição; análise da proposição;
formulação dos argumentos, ou seja, evidência; e conclusão.
Estrutura essa que deve estar presente em todo texto argumentativo,
inclusive nos textos dos alunos, os quais, muitas vezes, não a
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utilizam de maneira correta, muito provavelmente porque não se
familializaram com ela.
O tema do Sermão da Sexagésima é a ―Parábola do
semeador‖, tirada do Evangelho segundo São Lucas: Semen est
verbum Dei. Neste sermão, o Padre Vieira usa de uma metáfora:
pregar é como semear. Traçando paralelos entre a parábola bíblica
sobre o semeador que semeou nas pedras, nos espinhos (onde o
trigo frutificou e morreu), na estrada (onde não frutificou) e na terra
(que deu frutos), Vieira critica o estilo de outros pregadores
contemporâneos seus, que pregavam mal, sobre vários assuntos ao
mesmo tempo (o que, para ele, resultava em pregar sobre nenhum),
ineficazmente e agradavam aos homens ao invés de pregar servindo
a Deus.
Assim se apresenta a parábola do semeador, com suas divisões
em forma de alegorias, conforme foi reproduzido por Vieira no
Sermão:
Lugar onde
caiu a
semente
Tipos de corações Destino da palavra
Pedras Duros, obstinados Seca por não ter raízes
Caminho Inquietos, ansiosos,
perturbados
É pisada, desprezada, não
lhe dão atenção
Espinhos Embaraçados com os
cuidados e os
prazeres do mundo,
riquezas
É sufocada pelos espinhos
Terra boa Bons Frutifica
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Vieira estava interessando em saber o motivo de a pregação
católica estar surtindo pouco efeito entre os cristãos. Sendo a palavra
de Deus tão eficaz e tão poderosa, pergunta ele, como vemos tão
pouco fruto da palavra de Deus? Depois de muito argumentar, conclui
que a culpa é dos próprios padres. Eles pregam palavras de Deus,
mas não pregam a palavra de Deus, afirma.
Ao observarmos mais atentamente, iremos perceber a
existência de uma interlocução inerente ao sermão; isso está ligado
ao fato de que ele – como todo texto argumentativo – visa a uma
mudança, aspira a criar ou a aumentar o assentimento da plateia à
tese proposta. O persuadido, ao dar seu assentimento, muda de
atitude, modifica seus valores. E essa mudança está diretamente
relacionada à ação. Todo o discurso do jesuíta português está
centrado no leitor e no auditório e, em última instância, volta-se para
o exercício de convencer o ouvinte a adotar a doutrina pregada. Não
por acaso, o interlocutor é aquele que deve captar uma verdade
absoluta, impessoal, universal, acima de quaisquer circunstâncias. E
mais: para conhecer o mundo, é preciso conhecer o texto divino
porque o mundo profano é um conjunto enigmático e duro. A chave
para a correta decifração do mundo, para ele, está na leitura da
Bíblia, e esta só pode ser efetuada de maneira clara e certeira pelo
sacerdote, apoiado no Magistério da Igreja.
Cabe aqui voltarmos ao objetivo principal: mostrar ao aluno
que um texto literário pode ser argumentativo e, por meio dessa
análise ensiná-lo a construir o seu próprio texto, tomando como
exemplo as estruturas argumentativas utilizadas nos textos
estudados. Dessa forma, a análise de trechos do sermão em sala de
aula seria extremamente proveitosa.
Citemos, por exemplo, o trecho em que Padre Antônio Vieira,
ensina que ―o sermão há de ser duma só cor, há de ter um só objeto,
um só assunto, uma só matéria‖.
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Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de
defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la,
para que se distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão; há-de
confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as
circunstâncias, com as conveniências que se hão-
de seguir, com os inconvenientes que se devem
evitar; há-de responder às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e
refutar com toda a força da eloquência os
argumentos contrários; e depois disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de
persuadir, há-de acabar. Isto é sermão, isto é
pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto.
(VIEIRA, 2008, p.15)
É a regra da unidade do discurso persuasivo, presente em todo
texto argumentativo eficaz. Ao fazermos com que nosso aluno
perceba que também o texto dele deve versar um só assunto, o qual
deve ser fundamentado em argumentos consistentes, a coerência de
sua redação teria uma considerável melhora.
4. ANÁLISE DE TRECHOS
No Exórdio (parte I), apoiado em uma proposição bíblica, tida
como inquestionável, o pregador compara o seu trabalho ao do
semeador bíblico, utilizando a metáfora de que a semente lançada é a
palavra de Deus. Ressalte-se aqui que Vieira parte do pressuposto de
que seu auditório compartilha com ele a crença de que a Bíblia é a
Palavra Divina, sendo, portanto, não passível de ser posta em dúvida.
É por isso que o sermão pode ser nela fundamentado:
“Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que «saiu o
pregador evangélico a semear» a palavra divina. Bem parece este
texto dos livros de Deus.‖ (p.1)
A seguir, ele analisa a proposição. Ele deixa claro que, para
Cristo, tão importante quanto o ato de semear era o ato de sair e que
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os pregadores serão julgados tanto pelos passos que deram quanto
pela semeadura. Observe:
―Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo
que o semeador do Evangelho saiu, porém não diz que tornou porque
os pregadores evangélicos, os homens que professam pregar e
propagar a Fé, é bem que saiam, mas não é bem que tornem.‖ (p.2)
Nesse momento, o padre começa a formular a argumentação,
apoiado nos dois verbos – sair e semear – citados na Bíblia. A partir
de então, o orador passa a estabelecer vínculo direto do texto bíblico
com a realidade, por meio de comparações.
―Entre os semeadores do Evangelho, há uns que saem a
semear, há outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear são
os que vão pregar à Índia, à China, ao Japão; os que semeiam sem
sair são os que se contentam com pregar na pátria.‖
Servindo-se de um fato de seu tempo, Vieira consegue mostrar
ao seu auditório as palavras de Cristo. Diz ainda que todas as
criaturas se armaram contra a empreitada do semeador – as pedras,
os espinhos, as árvores e os homens – e que ele próprio havia
encontrado a mesma resistência. Entenda-se aqui ―resistência‖ como
a Inquisição e os colonos do Maranhão, tendo Vieira empreendido
uma luta contra ambos. Mais uma vez, ele atesta a validade da
parábola servindo-se de um exemplo concreto, mas que fica
subentendido no sermão. Vieira não explicita sua própria luta, parte
do pressuposto de que seu auditório sabe o que ele enfrentou. E
confirma sua tese utilizando um fato real, acontecido com ele mesmo.
Na primeira parte do sermão, Vieira (2008) compara o pregar
dos dominicanos que ―semeiam sem sair (...) com mais paço‖ com o
dos jesuítas que ―saem a semear (...) com mais passos‖. A utilização
das palavras homófonas ―paço‖ e ―passo‖ cria um efeito estilístico
que deixa clara a opinião do autor sobre os pregadores do estilo
rebuscado. Lembremo-nos aqui que este sermão foi proferido
oralmente, o que deu mais vivacidade ao jogo de palavras. Enquanto
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os dominicanos se fechavam no palácio, os jesuítas saiam pelo
mundo a pregar a palavra, o que condizia com o que Cristo pregou:
―ide e pregai a toda a criatura‖.
Na sentença ―Os (pregadores) de cá (Portugal), achar-vos-ei
com mais passos; os de lá, com mais paços: Exiit seminare‖, além do
conteúdo explícito, os pressupostos são: os Jesuítas se dispunham a
sair de seu país e pregar o evangelho ―a toda criatura‖, e aqueles
que ficavam, os dominicanos, não seriam merecedores, como os
Jesuítas, de maior recompensa por parte de Deus. Note que, no
final, o orador resume a proposição aos dois verbos: sair e semear.
Como verbo indica ação, fica patente o pragmatismo contido no
ideário de Vieira: a maior recompensa caberá a quem praticar mais
ações.
É preciso notar o uso frequente das perguntas retóricas, as
quais encaminham o leitor para a resposta pretendida pelo autor.
Resposta essa que pode ser completamente diferente da expectativa
criada no auditório pelas perguntas do orador. O sermão da
sexagésima questiona o porquê de as palavras dos pregadores não
frutificarem. Ele pergunta ―por que hoje não se converte ninguém‖
(p.19). A pergunta não abre espaço para respostas negativas: é o
pressuposto da afirmação. Poderia ser convertida em ―hoje não se
converte ninguém‖. Parte-se então da afirmação de que a palavra
não frutifica por três possíveis causas, indicadas na terceira parte do
sermão: Deus, o ouvinte e os próprios pregadores. Ao fazer
perguntas supondo que as causas da falha seriam Deus e os
ouvintes, o pregador conduz seu público a uma conclusão, fazendo
com que pensem ser esses verdadeiramente os fatores responsáveis
pela falha dos sermões. Entretanto, ele mesmo prova que tais causas
não seriam os motivadores do não frutificar.
A partir daí, ele trabalha pela exclusão. Deus não falha, isso é
um dogma de fé, uma proposição inquestionável, que tanto ele
quanto seus interlocutores partilham. ―Primeiramente, por parte de
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Deus, não falta nem pode faltar‖. Afirmando isso, passa para a
próxima proposição, dizendo que os pregadores deitam a culpa nos
ouvintes. Vieira contra-argumenta e prova seu ponto de vista, mais
uma vez, tomando como base o Evangelho. O trigo caiu entre
espinhos, pedras e no meio do caminho. Nos espinhos, afogou-se;
nas pedras, secou-se; à beira do caminho, foi pisado. ―Isto é o que
diz Cristo; mas notai o que não diz‖. Ao chamar atenção dos ouvintes
para aquilo que Cristo não disse, mas está implícito em sua fala,
Vieira utiliza um recurso argumentativo (manobra argumentativa)
que apresenta como se fosse pressuposto justamente aquilo que se
está querendo veicular como informação nova. Essa informação seria
que o trigo nunca deixou de frutificar por falta de sol ou chuva, ou
seja, por culpa do céu. O trigo não frutifica pela dureza do caminho
ou pela frieza das pedras. Mesmo assim, ele nota que o trigo, apesar
de não frutificar, nasceu. ―Nasceu até nos espinhos (...); nasceu até
nas pedras.‖ Analogamente, a palavra também nascerá em qualquer
coração em que cair. Infere-se, então, que a culpa não pode ser dos
ouvintes, mesmo daqueles que possuem um coração infértil. Perceba-
se aqui o ―até‖, um operador discursivo que seleciona o argumento
mais forte da escala orientada para a conclusão. No caso, para Vieira,
o fato de a palavra nascer sempre, comprovando que a culpa não
pode ser nem do ouvinte nem de Deus.
É interessante notar que, neste ponto do sermão, os ouvintes
chegam à mesma conclusão que Vieira, de forma bastante natural,
consequência da construção primorosa dos argumentos do locutor.
Eliminando Deus e os ouvintes como os responsáveis por essa
falha, o padre conclui que a culpa é, então, dos pregadores e disso,
ele não se exime.
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E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra
de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios
hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por
indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto
que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus,
nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por
parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a
palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não
faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa. (p.19)
Como já apontou Fiorin , o uso do nós faz com que o eu se
dilua, evitando o realce da subjetividade do enunciador. A escolha do
pronome seria uma posição ―coletiva e assumida por alguém que se
coloca como seu porta-voz, mas também como seu participante‖.
(FIORIN, 1996, p.97)
O se é um operador de coordenação semântica, que introduz
um novo ato de enunciação. A utilização do ―se‖, em ―se a palavra de
Deus‖, faz com que a proposição possua valor concessivo. Pode-se
entender se é verdade que NEM Deus NEM os ouvintes têm culpa,
então a culpa SÓ pode ser dos pregadores. No caso, o ―se‖ aponta
para a falsidade da proposição antes apresentada, que dizia ser a
culpa dos ouvintes ou de Deus. Note-se no trecho acima a utilização
do ―nem‖, um operador argumentativo que soma argumentos a favor
de uma mesma conclusão. Nesse caso, o fato de que Deus é infalível
e de que não são os ouvintes os culpados. Ao dizer que é uma
―consequência clara‖, e afirmando categoricamente que ―assim é‖,
Vieira não abre espaço para deduções do público, validando de
antemão a conclusão a que chegará o orador.
Concluindo que a culpa é do pregador, em certo ponto de sua
análise, Vieira passa a argumentar tentando encontrar a melhor
resposta para o questionamento sobre o porquê isso aconteceria, pois
os pregadores estavam falando palavras de Deus. Começa então a
examinar as causas dessa culpa, sempre terminando suas indagações
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com a estrutura ―boa razão é também esta‖. Interessante perceber
que a repetição dessa estrutura ao final de cada proposição mostra
que a ineficiência está para além das questões elencadas. Essas
parecem ser uma boa razão, mas não são suficientes para a
conclusão. Mais uma vez o pregador conduz seus ouvintes a
conclusões que serão desmentidas por ele ao longo do texto.
Finalmente, ele conclui: ―Sabeis cristãos, a causa porque se faz
hoje tão pouco fruto das pregações? É porque as palavras dos
pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. (...) Esse é
o mal. Pregam palavras de Deus, não a palavra de Deus‖. Moura
Neves (2000) considera que o uso do artigo definido em sintagmas
nominais pode denotar que a informação tratada é de conhecimento
tanto do falante como do ouvinte. No enunciado do sermão, ―o artigo
tem muito mais importância do que a preposição e, conforme
sabemos pelo próprio aparelho formal da língua, serve para
determinar um sentido‖ (CARVALHO 2000 p.23). Assim, no caso de
Vieira, a palavra de Deus seria aquilo que tem significação maior e
deveria servir de base e tema para o discurso, não sendo passível de
equívocos de sentido. Palavras de Deus, no plural, seriam
interpretações, muitas vezes tendenciosas, da palavra primeira,
aquela que sempre frutifica, segundo o autor. De acordo com o
próprio Vieira, ―as palavras de Deus pregadas no sentido em que
Deus as disse, são palavras de Deus, mas pregadas no sentido que
nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavra
do demônio.‖ (VIEIRA, 2008, p.28).
Em certo ponto, Vieira diz: ―saiu quem semeia a semear‖. Note
aqui que a escolha do verbo pelo substantivo não se dá ao acaso. É,
pois, o próprio Vieira (2008) que explica:
―Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma
coisa é o soldado, outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador
e outra, o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador
e outra, o que semeia; uma coisa é o pregador e outra, o que prega.
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O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é
ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de
pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a
vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo.‖ (p.19)
O que vale aqui é a ação e não o sujeito. De acordo com Julio
Carvalho (2000), o pregar se assemelha ao semear. ―O semeador é,
ao mesmo tempo, palavra e ação (fala e faz), donde se deduz ser
possível pregar falando e pregar agindo‖ (p.20). O nome, por si só,
nem sempre designa uma atividade e, como exemplo disso (exemplo
irônico, é preciso notar), diz que nem sempre o governador é quem
governa. Quando se diz ―quem semeia‖ sempre se terá uma ação. No
entanto, para que alguém se torne verdadeiro semeador, é preciso
que realmente pratique a ação designada pelo verbo.
―Oh que grandes esperanças me dá esta sementeira! Oh que
grande exemplo me dá este semeador!‖
Sobre o ponto de exclamação, Dahlet (2006, p.193) afirma ser
este usado com o objetivo de afetar diretamente o interlocutor, pois
cria ―uma força de interpelação, logo, o impacto almejado por ele
reage no sentido previsto pelo escritor‖. Os dois períodos com valor
interjetivo apresentam-se como uma espécie de franca expansão de
sentimentos e pensamentos íntimos do autor, como se tivessem sido
arrancados do locutor pela situação, como uma espécie de grito. Tais
períodos corroboram a tentativa de convencer seus interlocutores da
importância da semeadura.
Já os marcadores da interrogação colocam o leitor na posição
de interlocutor direto daquilo que o autor pretende como resposta, já
que são interativos por natureza. No entanto, devemos notar que,
nesse sermão, o uso recorrente de perguntas não lança para o leitor
a dúvida suscitada. Observe o trecho abaixo:
―E que faria neste caso, ou devia fazer o semeador evangélico,
vendo tão mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura?
Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, só porque
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tinha lá ido? Parece que não. Mas se tornasse muito depressa à casa
buscar alguns instrumentos com o que alimpar a terra das pedras e
dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrás? Não por
certo.‖ (p.15)
As perguntas feitas são imediatamente respondidas pelo próprio
Vieira. Ou seja, ele pretende que seu interlocutor formule respostas
para as interrogações propostas e sim, que suas respostas sejam
orientadas pela maneira com que ele mesmo as responde. Desse
modo, a relação estabelecida entre pregador e público torna-se mais
persuasiva e o sermão passa a suscitar uma resposta nos ouvintes, a
partir de uma compreensão ativa de concordância e compromisso.
Vieira também diz que o pregador deve pregar a toda criatura,
pedras, árvores, animais. E que, da mesma maneira que os
apóstolos, aqueles que falam sobre a palavra de Deus haveriam de
achar toda a espécie de homens:
―... homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam
de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras.‖ (p.15).
Nesse ponto, a união de dois substantivos em homens troncos
e homens pedras, dando uma ideia de adjetivação, cria uma metáfora
que retoma o conceito explicitado na parábola do semeador. A
palavra de Deus há de cair em todos esses lugares e, se for
realmente utilizada em seu verdadeiro sentido, há de frutificar.
Ao observarmos mais atentamente o Sermão da Sexagésima,
podemos perceber que o poder expressivo do estilo de Vieira é
manifestado, principalmente, pelas metáforas construídas em seus
apólogos e da seleção lexical clara, mas nem por isso menos
contundente e eficaz. As interrogações e exclamações são outras
marcas importantes do discurso vieiriano.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar um texto literário de estrutura argumentativa pelo viés
da argumentação é fundamental não apenas para que o aluno
perceba as nuances do texto, mas também para que ele entenda
como as ideias devem ser organizadas com vistas a persuadir o leitor,
transmitindo um ponto de vista.
Isso fará com que ele perceba que, independentemente do
assunto que se está abordando ou do século em que se encontra, a
todo discurso subjaz uma ideologia e uma estrutura argumentativa
que possibilita a veiculação dessa ideologia através de uma
mensagem composta de forma eficientemente clara.
Segundo Guaranha,
toda leitura proposta em sala de aula precisa dar oportunidade ao aluno de criar, dialogar com o
autor. É bom que todo exercício de leitura seja
direcionado para o ato criador. Quando o aluno
descobre que é capaz de interagir com alguém que viveu séculos antes dele, quando percebe que é
possível vincular a realidade da obra com a sua realidade, então ele se interessa pelo texto. Para
isso, é necessário que o professor trabalhe variedade e qualidade, propiciando o acesso a um
repertório tão vasto quanto possível. (GUARANHA, 2003, p.20)
Em sala de aula, tais estratégias podem ser discutidas
juntamente aos alunos, enfatizando que eles também podem utilizá-
las em seus próprios textos. Entendendo que a argumentação é fator
primordial em todas as línguas, um estudo esquematizado pode ser
construído em conjunto, para que a turma retire do sermão os pontos
principais. Além disso, os alunos poderiam pesquisar o momento em
que o sermão foi proferido para entenderem que não se deve
desvincular o texto de sua condição de produção. Dessa forma,
passariam a pensar melhor sobre o que iriam escrever, valendo-se da
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utilização de alguns operadores discursivos, por exemplo, de maneira
mais consciente para a construção de sua própria argumentação.
Não há como esgotar um trabalho com os sermões, visto a
vastidão interpretativa que esses nos oferecem. Nosso objetivo foi
elencar alguns exemplos que demonstrassem a habilidade desse
arguto pregador e os efeitos que essas escolhas produziram no texto.
O que podemos dizer, além de tudo isso, é que Vieira fez um grande
bem à língua portuguesa, deixando como herança uma profícua
produção textual, tanto de caráter retórico quanto religioso, profético,
literário e político, produzindo na nossa língua como se essa fosse a
língua na qual Deus desejava ouvir sua Palavra e ver ação desta
Palavra nos homens.
REFERÊNCIAS
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BULCÃO, C. Padre Antônio Vieira: um esboço biográfico. Rio de
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CARVALHO, J. O tecelão e o tecido. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000.
COLLADO, J.A. Fundamentos de lingüística geral, tradução de
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DAHLET, V. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo: Humanitas. 2006.
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1996
GUARANHA, Manoel Francisco. O Sermão da Sexagésima e o
processo argumentativo: estratégias de trabalho em classe.
[s.l.]:[s.n.],s/d.
151 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. 7ª. ed. São Paulo:
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MOURA NEVES, M.H. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000.
ORLANDI, E. Análise do discurso: princípios e procedimentos. São Paulo: Pontes, 1996.
VIEIRA. A. Sermões I. Direção: Pe. Gabriel C. Galanche, SJ e Pe.
Danilo Mondoni. São Paulo: Edições Loyola, 2008
152 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
NOVOS REALISMOS NA CONTEMPORANEIDADE:
A ESCRITA DE HISTÓRIA
MOURA, Aline de Almeida11
―Devemos fazer a história de que o
presente tem necessidade‖
(Le Goff& Nora, 1988)
―Detesto os mortos que voltam.
São tão mais nossas as imagens!‖
(Mário de Andrade, 1924)
1. INTRODUÇÃO:
―Não tente ―começar do começo‖, pois este livro não tem
começo, no sentido em que têm as narrativas e discussões‖
(GUMBRECHT, 1999, p. 9). É assim que Gumbrecht inicia seu texto
Em 1926. Vivendo no limite do tempo (1999), que diferentemente
dos outros textos historiográficos, não quer instruir seus leitores ou
organizar experiências de realidades passadas. Sua intenção é ―fazer
pelo menos alguns leitores esquecerem, durante o processo de
leitura, que eles não estão vivendo em 1926. Em outras palavras:
evocar alguns dos mundos de 1926, re-presentá-los, no sentido de
torná-los novamente presentes‖ (GUMBRECHT, 1999, p. 10).
Sua proposta se insere em um amplo debate sobre o que
também poderia ser chamado de escrita realista da realidade: a
escrita historiográfica. Como afirma Kramer (2001), a História
enquanto disciplina que pretende re-apresentar as realidades
passadas, lida com determinadas convenções de escrita e de
metodologia, mesmo que essas estejam fragilizadas por pressupostos
contemporâneos. As questões sobre o produto final, isto é, a escrita
dos resultados obtidos após o levantamento, seleção, análise de
fontes, têm sido amplamente discutidas e alternativas de escritas
11 Mestranda no programa de Literatura, cultura e contemporaneidade na
Pontifícia Universidade Católica do estado do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
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vêm sendo propostas, enfatizando essa ―grafia‖ da historiografia
como parte integrante e relevante também dessa disciplina. Nesse
sentido, a escrita historiográfica se liga ao realismo seguindo a
proposição de Hamon (1984), que afirma que o foco do realismo está
na forma pela qual se faz crer que um texto copia o real através da
linguagem. A questão sobre a possibilidade ou não de se atingir
proposições verídicas sobre o real 12 é vista como um debate
desgastado. No texto de Gumbrecht, a preocupação sobre a forma
com que o texto será escrito para que atinja o seu objetivo torna a
ideia de realismo conceito chave para se pensar na proposta de uma
reconfiguração do trabalho historiográfico.
No presente artigo, pretendo analisar a escrita de Gumbrecht
como proposta que foge à convencional escrita narrativa da História
como disciplina. Sabendo que sua intenção é enfatizar o aspecto
sensual 13 de re-presentificação do passado, refletindo como essa
nova escrita estaria ligada a uma nova função da História na
sociedade, enfatizando seu aspecto político assim como o aspecto
estético da escrita. Para alcançar tal objetivo, tenho como base as
análises do filósofo francês Jacques Rancière sobre a relação entre
estética e política, assim como suas posições sobre arte e a História.
Como questão tangente, reflito de forma breve a relação entre
literatura e História.
12 ―Já não se trata, portanto, de responder a uma questão do gênero:
como é que a literatura copia a realidade?, questão hoje em dia
desinteressante, e sim de considerar o realismo como e fosse uma espécie
de speech-act (Austin, Searle) definido por uma postura e uma situação especifica de comunicação, é,assim, responder a uma questão do tipo:
como é que a literatura nos faz crer que copia a realidade?, quais são os
meios estilísticos que – conscientemente ou não – utiliza para criar este
estatuto especial de leitor. (HAMON, 1984, p. 143).
13 ―Como um ‗ensaio sobre a simultaneidade histórica, meu livro é uma resposta prática à questão de saber até onde um texto pode ir no sentido
de proporcionar uma ilusão de uma experiência direta do passado‖
(GUMBRECHT, 1999, p. 474).
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Ressalto que a preocupação com a escrita do historiador
permite o uso de teorias ligadas aos estudos de textos ficcionais
literários. Contudo, a História não deve ser tratada como ficção no
mesmo sentido da ficção literária, pois embora a escrita tenha papel
primordial, a metodologia da operação historiográfica faz com que a
relação estabelecida pela escrita seja diferente. A proposta não é
ressaltar a dicotomia entre literatura e História, pois esse debate
esmaece a reflexão sobre a necessidade de uma revisão das formas
de se escrever na disciplina História e sua função no contexto
contemporâneo, conforme aponta Rancière 14 . Assim, na primeira
sessão será abordada a relação entre escrita de História e realismo.
Na parte subsequente serão apresentadas algumas ideias de Rancière
e a sua relação com a escrita de História. Em seguida será analisada
a proposta de Gumbrecht levando em consideração a definição de
regime estético de Rancière. Pretendo, a partir dessas análises,
entender a necessidade de se propor novas formas de escrita
historiográfica como fez Gumbrecht no livro Em 1926.
2. A HISTÓRIA COMO REALISMO:
Ao se pensar na escrita de História, logo poderíamos nos
remeter ao acalorado debate sobre a relação entre História e
literatura. No meu caso em questão, com minha formação como
historiadora, fazia parte do grupo dos que defendem a História como
ciência e que por conta disso concebia as ideias de Hayden White –
14 ―O real precisa ser ficcionado para ser pensado. Essa posição deve ser
distinguida de todo discurso – positivo ou negativo – segundo o qual tudo será ―narrativa‖, com alternância entre ―grandes‖ e ―pequenas‖ narrativas.
A noção de ―narrativa‖ nos aprisiona nas oposições de real e do artifício em
que se perdem igualmente positivistas e desconstrucionistas. Não se trata
de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar que a ficção da era
estética definiu modelos de conexão entre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e
da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados pelos
historiadores e analistas da realidade social‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 58).
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um dos teóricos fundamentais para se pensar a escrita na História –
como, no mínimo, questionáveis. Mas é preciso relativizar. Em seu
conhecido texto Meta-história (1992), White propõe, tendo por corpus
a produção de alguns historiadores e filósofos da história do século
XIX, analisar a História através de seu produto final, da escrita legada
pelos historiadores 15 . Para White, a História é um exercício de
retórica, sendo essa afirmação facilmente questionada por
historiadores como Carlo Ginzburg. A História, para esse pesquisador,
trata-se mais do que retórica, trata-se de um esforço metodológico
que controla o que será apresentado como dado. Como afirma
Ginzburg, a ligação entre história e narrativa vem de indivíduos que
não conhecem a prática historiográfica, ―criando abismo entre essa
prática e a reflexão metodológica‖ (2002, p. 14). No esforço de ser
uma ciência, a História se baseia em todo um aparato metodológico
que busca garantir a veracidade e fidedignidade do que está sendo
narrado.
De certa forma, a escrita em si só torna uma preocupação nas
ultimas décadas, quando o historiador se dá conta que também é um
produtor de texto, além de um pesquisador que se baseia em teorias
e metodologias de pesquisa. Ou seja, essa certeza cientificista que o
historiador tinha a partir de sua metodologia científica vem sendo
posta em questão 16 . A escrita passa a ser uma preocupação por
definir como as conclusões obtidas a partir da pesquisa serão
transmitidas.
A proposição de Rancière sobre a escrita da História é bastante
interessante. Ele afirma não estar interessado na questão da
15 ―Nessa teoria trato o trabalho histórico como o que ele manifestamente
é: uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa‖
(WHITE, 1992, p. 11).
16―os historiadores perderam muito de sua ingenuidade e de sua ilusão. Agora sabem que o respeito às regras e às operações próprias à sua
disciplina é uma condição necessária, mas não suficiente, para estabelecer
a história como um saber específico‖ (CHARTIER, 2002, p. 17).
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instituição histórica, pois essa tarefa já foi feita por Michel de Certeau
ao definir a ―operação historiográfica‖ 17. Ele enfatiza que ―a questão
política do conhecimento histórico passa pela análise de uma relação
específica: a relação entre o discurso que discute a história e as
palavras nas quais ela se escreve‖ (RANCIÉRE, 2010b, p. 36). E nisso
Rancière é mais coerente que White. A questão da operação
historiográfica não é omitida no sentido de parecer não haver
relevância para o que está sendo escrito, mas é preciso ressaltar que
a relação com as palavras também faz parte dessa operação.
Rancière reafirma que seu interesse nessa questão se dá pela relação
que o discurso histórico passa a ter com o discurso ficcional18, nas
discussões suscitadas a partir do momento que a ―grafia‖ torna-se
importante no fazer historiográfico.
O que proponho é que o discurso histórico está entrelaçado com
o modo de pesquisa e a visão de História que o historiador tem.
Nesse sentido, se é utilizado o método quantitativo, com a seleção de
inúmeras fontes que serão quantificadas e classificadas, a
historiografia será mais ligada ao tipo descritivo, com a inserção de
inúmeras tabelas, estatísticas e dados que busquem a comprovar
determinada hipótese. Se, por outro lado, o historiador busca a
análise de um determinado elemento que julgue relevante para
relacionar com o contexto de tal elemento, a escrita será mais ligada
à narração do modo como é feito na micro-história. Assim, o modo
como o texto é escrita está intimamente ligado ao modo como o
17 ―um discurso de poder sobre o qual Michel de Certeau disse tudo o que
havia de interessante para dizer‖ (RANCIÈRE, 2010b, p. 35). Michel de Certeau, no capítulo ―A operação historiográfica‖, discute, a produção da
história como resultado de um processo de pesquisa, análise e escrita. A
sua questão é pensar em ―O que fabrica o historiador quando ‗faz história‘‖
(cf.: CERTEAU, 1988).
18 ―O que me interessa é a relação entre essa apreensão do ser falante e a questão das fronteiras entre os modos do discurso: o que significa quando
dizemos que determinado discurso provem da ciência, e não à literatura, ou
o contrário?‖ (RANCIÈRE, 2010b, p. 35).
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historiador lida com as fontes, a sua visão de História. A partir daí
que se dá a escrita, e não o contrário, o modo de escrita não é a
parte racionalizada anteriormente no trabalho do historiador, como
propôs White.
Entender a História como um discurso realista se deve à ideia
de que 1) o discurso tem extrema relevância para a operação
historiográfica; 2) o realismo é concebido em um sentido amplo de
relação que determinado discurso tem com os fatos e, no caso da
História, por mais que haja discussões sobre métodos de pesquisa,
sobre a possibilidade ou não de se atingir proposições verídicas sobre
a realidade, o fato é que as fontes tem o ―poder de veto‖. Não é
possível afirmar qualquer coisa sobre qualquer período.
Rancière afirma que o modo de fazer História que se pauta
apenas na busca por fontes e dados está condenada a um empirismo,
―renunciando questionar os modos de escrita que dão às palavras da
história e às palavras do historiador a aparência de uma verdade‖
(RANCIÉRE, 2010b, p. 37). Fica-se preso tal como Funes, o
memorioso no conto de Jorge L. Borges, sem capacidade de
abstração. É preciso ter consciência que a História enquanto ciência
transmite suas pesquisas por meia da linguagem escrita, fazendo que
ela também seja parte do trabalho historiográfico. Para Rancière, a
representação ―não é o acto de produzir uma forma visível, é sim o
acto de dar um equivalente (...) É a voz de um corpo que transforma
um acontecimento sensível num outro, esforçando-se por nos fazer
―ver‖ o que esse corpo viu, por nos fazer ver o que ele nos diz‖
(RANCIÈRE, 2010c, p. 139). Nesse trecho, o autor trata da relação
entre palavra e fotografia, como ambas são figuras que substituem o
sensível. E é nesse sentido que a escrita de História deve ser
entendida, como uma construção de imagens que nos possibilita dar
voz aos mortos através de pesquisa e metodologia sim, mas também
através das imagens evocadas pelas palavras.
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3. A PARTILHA DO SENSÍVEL E A ESCRITA DE HISTÓRIA
Jacques Rancière propõe em A partilha do sensível (2005) a
existência de três regimes de identificação da arte, tendo por base a
relação entre referência e signo – a saber, o regime ético, o regime
representativo e o regime estético. Para o autor, essa ―partilha do
sensível‖ se relaciona com a possibilidade de se tomar parte da
palavra comum, havendo um aspecto político dentro da estética, uma
vez que está ligada às formas definidas a priori para se expressar, e
quem pode se expressar dentro dessas formas. No regime ético, a
arte se encontra identificada com as imagens, questionadas sobre o
ponto de vista de sua origem (e, consequentemente, seu teor de
verdade) e o seu destino. Nesse regime, seguindo as proposições de
Platão, ―a arte não existe, apenas existem artes, maneiras de fazer‖
(RANCIÈRE, 2005, p. 28). É o objeto que determina o tipo de
expressão. O segundo regime é o poético ou representativo, em que
a arte se identifica como par poiesis/ mimesis, pois são esses
conceitos que organizam a maneira de fazer, ver e julgar a
visibilidade das artes (cf.: RANCIÈRE, 2005, p. 31). Esse regime se
pauta por mostrar modelos de narratividade, hierarquizando as
formas de se partilhar o sensível, tendo por base as proposições de
Aristóteles. Já o regime estético não está mais ligado às formas de
fazer, ―mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos
produtos de arte‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 32). Assim, a arte faz parte
de um tipo específico de partilha do sensível. Nesse regime não há
mais o domínio da noção mimética na arte, em que predomina a
necessidade de representação da realidade. Pode-se afirmar, nessa
conjuntura, que essa noção de representação não deve mais ser
entendida como categoria chave para se compreender a produção
artística contemporânea, fundando uma autonomia das artes e a
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identificação da arte com a vida em si mesma19. Esse regime estaria
ligado a uma democratização dentro dessa partilha do sensível ao
implodir as regras e hierarquizações do regime representativo.
Rancière também trata de uma interessante discussão sobre os
modos de se escrever na ficção ―modernista‖, propondo um novo
olhar para questões que pareciam básicas e inquestionáveis. Por
exemplo, é clássico o texto de Roland Barthes, ―O efeito de
realidade‖, no qual ele argumenta que a descrição presente na obra
realista, embora pareça desnecessária, tem por utilidade transmitir
um efeito de real para o texto literário. Rancière (2010) argumenta
que na verdade essas descrições têm por sentido não dar realidade à
obra, mas sim dar vida20. Assim, a descrição existente, em vez de
―parar‖ a ação da narrativa, a enche de vida, pois é isso que se faz
cotidianamente, observa-se ao redor. E esse ―cotidiano ocioso‖ de
apreciação da vida presente na descrição pode fazer parte da
narrativa através dessa nova distribuição do sensível21.
As proposições de Rancière têm interessante relevância para se
pensar sobre a alternativa de escrita de Gumbrecht, entendida como
já inserida no que é o regime estético da arte. Sobre a escolha
estilística, no texto de Gumbrecht há, conscientemente, uma
predominância do aspecto descritivo, com claro intuito de se
presentificar o passado, dando mais vida ao que está sendo narrado.
Assim, tanto Rancière por sua exposição teórica, quanto Gumbrecht,
19 ―Funda a uma só vez, a autonomia da arte e a identificação de suas
formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma‖ (RANCIÈRE,
2005, p. 34).
20―O barômetro não está lá para comprovar que o real é o real. A questão
não é o real, é a vida, é o momento quando a ‗vida nua‘ – a vida
normalmente devotada a olhar, dia após dia, se o tempo será bom ou ruim
– assume a temporalidade de uma cadeia de eventos sensorialmente
apreciáveis para serem relatados. O ocioso barômetro expressa uma poética da vida ainda desconhecida (...)‖ (RANCIÉRE, 2010, p.79).
21 Para mais explicitações sobre o argumento de Rancière, consultar o
texto ―O efeito de realidade e a política da ficção‖ (2010).
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pela forma escolhida para escrever sua História, tratam da forma
descritiva com essa mesma função.
Gumbrecht ressalta ainda que seja uma pretensão acreditar
que escrever História significa ―fazer História‖, uma vez que na
escrita dessa disciplina as fontes têm ―direito ao veto‖. Logo, não se
pode afirmar qualquer coisa sob a pena de ser acusado de
falsificação. Para ele, a questão é como tornar a História real, como
fundir escrita historiográfica com a vida que fora vivida para causar o
efeito de re-presentificação. Rancière assevera que ―os enunciados
literários ou políticos fazem efeito no real‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 59),
afirmação que corresponde à proposição de Gumbrecht. E pensando
em um momento de crise, como é descrito por Rancière, em que o
terreno estético tem posição fundamental para se pensar na
democratização e na relação com os referentes 22 , a proposta de
Gumbrecht se torna uma alternativa no mínimo coerente no atual
estado de debate e reconfiguração da arte e da História.
Em suma, pensando na variação dos regimes de arte, como
proposto por Rancière, assim como as mudanças de perspectiva
sobra a escrita modernista, percebe-se que o trabalho de Gumbrecht
se insere nesse campo de reconfiguração e questionamento dos
pressupostos da historiográfica através da proposta de uma
alternativa para a História, para que a disciplina tenha um novo valor
e função dentro desse contexto de questionamentos. Conforme o
autor afirma, a tese ―de que ―se pode aprender com a História‖
perdeu o seu poder de persuasão‖ (GUMBRECHT, 1999, p. 460), as
escritas de História até então canonizadas devem sim ser
questionadas para que consiga corresponder às necessidades
contemporâneas.
22 ―A multiplicação dos discursos denunciando a crise da arte ou sua
captação fatal pelo discurso, a generalização do espetáculo ou a morte da imagem são indicações de que, hoje em dia, é no terreno estético que
prossegue uma batalha ontem centrada nas promessas da emancipação e
nas ilusões e desilusões da história‖ (RANCIÈRE, 2005, p. 11-12).
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4. GUMBRECHT E O REGIME ESTÉTICO
Rancière (2005b) propõe o entrelaçamento entre política e
estética23, segundo o qual há uma dimensão estética na experiência
política, hipótese já presente em sua tese de doutorado La Nuit des
prolétaire. Nesse trabalho, ―showed that the core of the emancipation
of the workers was an aesthetic revolution‖ (RANCIÈRE, 2005b, p.
14), ou seja, demonstra que as mudanças ocorridas no século XIX
também são mudanças de valores poéticos e de partição da esfera da
experiência. A segunda forma de ligação entre as revoluções políticas
e estéticas está na discussão sobre escrita de História, quando os
historiadores da História das mentalidades passam a dar voz àqueles
que eram esquecidos em sua escrita, passando a não se preocupar
apenas com os grandes personagens, mas também com as pessoas
comuns, que podem se apropriar da linguagem. Essa apropriação
teve consequências na metodologia das ciências sociais – que se
postulava como escrita desmistificadora das ilusões presentes na
literatura. Assim, as ciências sociais também fazem parte dessa
revolução estética de tomada da escrita, de possibilidade de se
partilhar o sensível. Rancière ainda define a literariedade como: ―the
power that tears bodies away from their natural destination‖
(RANCIÈRE, 2005b, p. 16). Nessa proposta de entrelaçamento entre
política e estético, a alternativa de escrita de faz parte de uma
tentativa de se conceber a História como fazendo parte tanto de um
questionamento estético quanto político, no sentido de ter efeito nas
sociedades.
Logo, acredito que é profícuo pensar a proposta de Gumbrecht
sobre a História e sua função na contemporaneidade levando em
consideração a reconfiguração na arte tal como é proposto por
23 Rancière analisa estética no sentido kantiano, de formas de
sensibilidade, como matéria de tempo e espaço e não na sua ligação pura e
simples com a arte (RANCIÈRE, 2005b, p. 13).
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Rancière. Se a arte muda a sua perspectiva e busca uma relação
mais viva com o real, a disciplina História também deve refletir sobre
novos métodos e escritas passíveis de dar mais vida a sua produção.
Essa disciplina ao ficar restrita ao seu caráter científico acabou por
simplificar as realidades passadas. Além disso, em um contexto em
que, como afirma Gumbrecht, a História já não tem mais aquela
tarefa pedagógica, entender a História e sua reconfiguração no
contexto contemporâneo exigem novas formas de a disciplina se
relacionar coma produção do conhecimento das realidades passadas.
Rancière se refere, a partir da sua análise dos regimes, pensar
sobre conceitos como modernidade, pós-modernidade e vanguarda.
Sobre a modernidade, ele afirma que opera um recorte equívoco no
regime estético da arte, fazendo com que haja um sentido único de
temporalidade em um período que é heterogêneo 24 . Perspectiva
interessante, pois a proposta de Gumbrecht se insere na sua
proposta de simultaneidade do tempo, ou seja, essa heterogeneidade
de que Rancière trata. Gumbrecht acredita que a relação temporal
vem mudando através de uma expansão do presente, tornando
necessária essa experiência direta do passado.
De qualquer forma, Rancière afirma que o ―regime estético de
arte que faz da arte uma forma autônoma de vida‖ (RANCIÈRE, 2005,
p. 37) e é essa a sugestão de Gumbrecht. Uma vez que ―o modelo
teleológico da modernidade tornou-se insustentável‖ (RANCIÈRE,
2005, p. 47), a História, tal como vista por Gumbrecht, tem que levar
os seus leitores a experimentar outras vivências a partir de seus
textos. É interessante que, para Gumbrecht, é o fato de ser um texto
historiográfico que vai fazer com que essa vivência seja mais bem
24 ―A ideia de modernidade é uma noção equivoca que gostaria de produzir
um corte na configuração complexa do regime estético das artes, reter as
formas de ruptura, os gestos iconoclastas etc, separando-os do contexto
que os autoriza: a reprodução generalizada, a interpretação, a história, o museu, o patrimônio... Ela gostaria que houvesse um sentido único, quando
a temporalidade própria do regime estético das artes é o da co-presença de
temporalidades heterogêneas‖ (2005, p. 37).
163 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
sentida 25 . Subvertendo a proposta de Aristóteles sobre a
superioridade da ficção sobre a História26. Seu intuito não é organizar
o caos que a realidade apresenta, ou interpretá-la. Com a nova
função para a História conforme postulado por Gumbrecht, essa
hierarquização é irrelevante, por mais que o trabalho historiográfico
tenha um sentido de alcançar o seu objetivo de presentificação. E o
trabalho se torna historiográfico porque houve uma pesquisa anterior
a elaboração do livro, sendo que tal pesquisa é que definiu o que
pode ou não ser dito sobre o que ocorreu e o que se vivenciou em
1926.
Gumbrecht propõe essa nova escrita por acreditar em uma
nova função da História: satisfazer a necessidade de se viajar para o
passado (cf.: GUMBRECHT, 1999). Para isso, fora necessária
desenvolver essa diversa forma de escrita, mais ligado ao descrever
as realidades passadas. Em seu texto, há51 verbetes que descrevem
a vivência em 1926, sendo que a parte metodológica é escrita apenas
no final do livro, com a explicitação das fontes, seleções e
pressupostos utilizados da elaboração de seu texto. Por exemplo, no
verbete ―Jazz‖, ele descreve através de verbos no presente, falando
do agora como se fosse 1926, das sensações que esse novo ritmo
suscitou no ano de 1926. São usados como referência que
comprovam as suas afirmações outros verbetes, fazendo com que
essa comprovação seja o mergulho cada vez maior nesse ano. Faz-
25―Embora o autor tenha inventado uma forma textual especifica para cada
verbete,sucesso deste livro como um todo depende da afirmação de que ele
não foi ―inventado‖ (isto é, da afirmação de que o seu conteúdo é
totalmente referencial). O efeito de evocar o passado se baseia nessa implicação mais ou menos ―ontológica‖. Um romance histórico (se o autor
fosse capaz de escrever ficção) não teria o mesmo trabalho‖ (GUMBRECHT,
1999, p. 10).
26 ―A soberania da literatura [sobre a história em Aristóteles] não é,
portanto, o reino da ficção. É, ao contrario, um regime de indistinção entre a razão das ordenações descritivas e narrativas da ficção e as ordenações
da descrição e interpretação dos fenômenos do mundo histórico e social‖
(RANCIÈRE, 2005, p. 55).
164 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
se, com isso, uma leitura fragmentada, que não precisa
necessariamente a ordem de início, meio e fim, sendo que olhar cada
aspecto desse ano leva o leitor para outros aspectos desse mesmo
período.
Percebe-se que no texto em si não há uma explicitação das
fontes usadas para propor tais afirmações sobre o ano de 1926. Caso
o leitor não leia a parte final – que Gumbrecht explicita como leitura
dispensável – não saberá quais as fontes, os critérios de seleção, os
métodos empregados para a escrita desse livro. O olhar do
historiador, que já é treinado muitas vezes a procurar esses
elementos do empírico que comprovam o que este sendo afirmado,
surpreende-se com essa proposta de Gumbrecht. Parece, no primeiro
momento, que ele tirou essas afirmações da cabeça, que sonhou que
estava em 1926 e escreveu. Contudo, o autor garante e demonstra
de sua maneira (na parte final do livro) que houve uma pesquisa e
que é essa pesquisa que garantiria o sucesso de seu objetivo de re-
presentificação.
Em suma, insere-se a escrita de Gumbrecht nesse contexto de
ruína da representação como conceito chave até mesmo para se
pensar a História. Tanto que seu intuito não é representar, no sentido
de mimetizar pura e simplesmente as realidades. O autor, a partir de
seu texto que se tornar novamente presente, se possível, as
vivências de 1926. Mais uma vez, seu projeto se insere nessa
reconfiguração das artes proposta por Rancière27. Faz-se necessária
essa reconfiguração para que a História faça sentido nos estudos
atuais e não garanta sua importância pela sua tradicionalidade no
pensamento ocidental.
27 ―O regime estético da arte é, antes de tudo, a ruína do sistema de representação, isto é, de um sistema em que a dignidade dos temas
comandava a hierarquia dos gêneros de representação‖ (RANCIÈRE, 2005,
p. 47).
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5. CONCLUSÃO:
Gumbrecht, diferentemente do discurso cientificista da História,
não faz referência em seu texto aos arquivos consultados,
aproximando-se de uma escrita realista sobre as realidades
passadas28. A sua forma de escrita se deve a sua perspectiva de que
a História tem uma nova função dentro da sociedade frente às
mudanças ocorridas e aos longos questionamentos. Procurei ressaltar
nesse trabalho a profícua relação que pode ser estabelecida entre as
proposições de Rancière e a alternativa historiográfica de Gumbrecht.
Acredito que a História deve sim ter mais vida, e a preocupação
cientificista da História acabou por encobrir esse aspecto,
simplificando as vivências das realidades passadas. Mais uma vez,
não se trata de igualar a História à literatura, pois esse debate não é
o foco. Mas pensar sobre a História enquanto uma escrita que possui
efeitos sobre o real, assim como a literatura, mas esse efeito é
diverso e alcançado a partir de outras estratégias de leitura.
Gumbrecht afirma que Em 1926 o efeito de presença se dará de
forma mais adequada por ser um trabalho historiográfico. E por
trabalho historiográfico subentende-se a pesquisa pela qual
Gumbrecht submeteu a sua escrita, assim como a estrutura de
escrita em si escolhida para se legar as conclusões de sua pesquisa. A
escrita faz parte desse trabalho do historiador. A escrita que deve ser
revista no regime estético das artes, sem ficar restringido apenas à
velha forma representacional que já nem faz tanto sentido nos
debates contemporâneos.
28 ―Contrariamente ao discurso cientifico, que muitas vezes coloca, em
notas de pé de página, em bibliografia no fim do volume, em citações explicitas, referencias destinadas a autenticar o seu dizer, o texto realista
integra-as no seu próprio corpo sob a forma de cenários e de personagens-
tipo‖ (HAMON, 153).
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Minha preocupação não foi saber se Gumbrecht alcança ou não
o seu objetivo de re-presentificação dos mundos de 1926, mas
refletir, a partir das referências de Rancière sobre a escrita de
História, tal como proposta por esse teórico. Trata-se de um exercício
estimulante e que supera a discussão que é quase ―chover no
molhado‖ entre literatura e História. É necessário um sopro de vida
na História e se não é possível mais aprender com a História, que os
historiadores não se fechem em suas fontes primárias e que se
arrisquem. Não para serem todos literatos, mas para refletir sobre a
real função de sua disciplina.
6. REFERÊNCIAS:
CHARTIER, Roger. A beira da falésia. A história entre certezas e
inquietudes. Porto Alegre: Editora Universidade/ UFRGS, 2002.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926. Vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2010.
HAMON, Philippe. ―Um discurso determinado‖. In: BARTHES, Roland.
Literatura e realidade. Lisboa: Dom Quixote, 1984, p. 129-193.
KRAMER, Lloyd S. ―Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio
literário de Hayden White e Dominick La Capra‖. In: HUNT, Lynn. A
nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 131-
173.
RANCIÉRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: EXO
experimental, 2005.
______. ―From politics to aesthetics?‖. In: Paragraph. Vol. 28. N. 1. Março de 2005b, p. 13-25.
______. ―O efeito de realidade e a política da ficção‖. In: Novos estudos. Número 86, março de 2010, p. 75-90.
______.―A poética do saber: sobre os nomes da história‖ In:
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas/Universidade
167 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Florianópolis: UDESC/CEART.Vol1, n.15,Out 2010b, p. 33-43.
______. ―A imagem intolerável‖. In: O espectador emancipado. Trad. José Miranda Justo. Lisboa: Orfeu Negro, 2010c, p. 123-153.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
168 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
A EXPERIÊNCIA DO REAL: UM LEITURA DE
“OS TRÊS NOMES DE GODOFREDO” SOB A PERSPECTIVA DO
INSÓLITO FICCIONAL
SILVA, Luciana Morais da29
Desaparecendo os limites do mundo
ficcional, necessário à ilusão realista, há uma mudança do estatuto da
representação: mais importante do
que narrar alguma coisa é o próprio processo de narrar.
(BELLA JOZEF, 2006, p. 176)
O presente trabalho tem por objeto o conto ―Os três nomes de
Godofredo‖, de Murilo Rubião, texto em que o ―insólito se apresenta
sob as mais diversas formas‖ (COVIZZI, 1978, p. 29). O autor
elabora uma narrativa que se passa em um lugar comum, um espaço
qualquer nas ruas e na vida de uma grande cidade. Entretanto, as
relações que permeiam sua ficção ultrapassam o sólito, com homens
e mulheres aparentemente desconhecidos, mas que interagem por
uma relação conjugal.
A narrativa rubiana apresenta um narrador autodiegético, ou
seja, um edifício de palavras (Cf. BRAIT, 1985, p. 10), que relata
suas próprias experiências, contando-as como personagem central da
narrativa, uma vez que este estrutura o tempo, a distância e a
própria constituição da diégese (Cf. REIS, 2000, p. 259). Consoante
Carlos Reis (2000, p. 257), o narrador, diferente do autor, uma
entidade empírica, é uma entidade fictícia, a quem, cabe a tarefa de
enunciar o discurso, no cenário da ficção.
29Mestranda em Letras – Literatura Portuguesa – pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Flavio García, e em Letras Vernáculas - Literaturas Africanas d Língua Portuguesa - pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria
Teresa Salgado.
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A ficção se desenvolve em torno de um narrador-personagem
denominado Godofredo, esse delineado como um homem que casa
diversas vezes. Tais casamentos são pouco proveitosos,
principalmente quando se observa a forma prematura como
ocorreram seus desfechos, pois o homem após casar logo ceifa as
vidas de suas esposas.A morte talvez seja uma saída para a
infelicidade proveniente de um quotidiano monótono, já que há
sempre uma novidade em suas relações. Todavia, a narrativa não
apresenta indícios da uniformidade da convivência, pois o
esquecimento e a renovação de suas relações tornam o tempo fugidio
e a vida ―alucinada‖.
Cada mínimo elemento desenvolvido na narrativa envolve uma
apropriação do evento insólito e seu aproveitamento, porque a
personagem mesmo que aparentemente transtornada pelas
―novidades‖, que, em geral, fogem as expectativas quotidianas, as
aceita e até mesmo se beneficia delas. Assim, ―não somos lançados
ao caos mas a uma especial ordenação do caos‖ (COVIZZI, 1978, p.
31), com uma história marcado por eventos que transtornam a
realidadeintradiegética.
O insólito, que serve de móvel para o desenvolvimento da
narrativa, carrega uma ―carga de indefinição própria de seu
significado‖ (COVIZZI, 1978, p. 26). A acepção mais comum do
termo refere-se ao ―sentimento do inverossímil, incômodo, infame,
incongruente, impossível, infinito (...), inaudito...‖ (COVIZZI, 1978,
p. 26), ou seja, aquilo que ultrapassa o limite do natural e ordinário.
De acordo com o próprio Rubião, a partir da reprodução de suas
palavras por Sandra Nunes, ―é mais fácil aceitar o onírico que os
absurdos do real, pois o irreal e a fantasia parecem ser mais
verdadeiros que o cotidiano‖ (NUNES,s.n).
O conto apresenta uma diversidade de elementos insólitos, mas
um dos principais acontecimentos que fogem ao natural, ao ordinário,
ao esperado, ocorre no segundo parágrafo, visto que não é comum
170 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
um homem sentar-se por quinze anos em um mesmo lugar para
jantar, e, repentinamente, se dar conta que, a partir de um tempo
indeterminado (não-definido, vago),uma desconhecida tenha se
sentado a sua frente sem que ele nem ao menos tomasse
conhecimento:
De uma data que não poderia precisar, todos os dias, ao jantar e ao almoço, ela sentava-se à
minha frente na mesa onde por quinze anos
seguidos fui o único ocupante.
Ao me certificar da sua constante presença, considerei o fato perfeitamente natural. (RUBIÃO,
2005, p. 87, negritos nossos)
Nota-se uma falta de preocupação da personagem, que
aproveita a companhia da mulher a sua frente sem se incomodar com
esta presença, a qual, em um primeiro momento, parece não ter sido
convidada;porém, posteriormente, ele mostra um interesse
relacionado ao bem estar de sua ―vizinha‖ (RUBIÃO, 2005, p. 87). A
moça poderia se incomodar com o constante comparecimento do
homem e, por isso, ele decide procurar uma nova mesa, declarando:
―notei serem numerosos os lugares vagos‖ (RUBIÃO, 2005, p. 87).
Tanto o não reconhecimento da companheira de refeições quanto
ainusitada vontade de prevenir estar incomodando são marcas do
insólito, pois as reflexões do narrador ocorrem de repente, sem aviso,
instaurando uma aura meta-empírica.
A personagem também de modo ―inverossímil‖ não se preocupa
com a ausência de pessoas, ou o com o número reduzido, sendo
explicada depois, ao contrário, ela apenas se apropria do observado e
se revolta por ter que deixar seu lugar por uma estranha. A moça,
causando um estranhamento na personagem-narrador, o segue até
sua nova mesa e ele enfocando seu ―incômodo‖ a questiona sobre o
convite para o jantar:
― Claro! E não havia necessidade de um convite
formal para me trazer aqui.
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― Como?
― Bolas, desde quando tornou-se obrigatório ao
marido convidar a esposa para as refeições? ― Você é minha mulher?
― Sim, a segunda. (RUBIÃO, 2005, p. 89)
A conversa remete ao caráter insólito da narrativa, pois ela ser
a esposa dele claramente o assusta, visto que ele não a reconhece
como tal, afinal, nem sabe quem ela é. Os elementos se conjugam e
indicam uma narrativa pautada pela irrupção do insólito ficcional.Os
estranhamentos e a denúncia dos eventos inauditos são possibilitados
pela dúvida do narrador, que clareia as irrupções do incomum por
meio de um constante esquecimento, já que se impressiona com a
companheira de refeições, mas sem reconhecê-la como cônjuge.
A mulher, ao invés de reivindicar seu papel de esposa, entra no
diálogo insólito, permitindo uma visualização da misteriosa relação.No
decorrer do conto a companheira de mesa, que é a segunda esposa,
banaliza o assassinato da primeira, tornando o homicídio (fomentado
pelo ciúme, pela busca da fidelidade) – que ele faz questão de não
querer ouvir: ―― Não me fale do crime‖ (RUBIÃO, 2005, p. 89) –,
algo comum, corriqueiro.
Godofredo, já bastante, confuso por não se lembrar nem ao
menos de ser casado, ou que dorme com ela em um mesmo
apartamento e cama, desconhece a companheira, preferindo não
tomar nem consciência do crime que esta descreve o isentando. O
narrador só se apropria de sua relação com a mulher, e da situação,
para poder ter sensações a respeito da nova mulher, de quem nem
ao menos se lembrava:
Já deitado, sentindo o calor daquele corpo, veio-me intensa sensação de posse, de posse definitiva.
Não mais podia duvidar de que ela fora minha.
Baixinho, quase sussurrando, lhe falei longamente, os seus cabelos roçando no meu rosto. (RUBIÃO,
2005, p. 91)
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O desejo ―confirma‖ o casamento e a insegurança inicial se
dissipa diante dos prazeres da morada e da esposa, assim, a curta
passagem de tempo – ―os meses se aligeiravam‖ (RUBIÃO, 2005, p.
92) – indica que, a personagem até mesmo reconhece que sabia o
nome de sua mulher Geralda, desvendando sua casa como um
ambiente acolhedor e aconchegante para viver suas intimidades, isso
ao observar na estranha uma companheira com a qual troca carícias
e divide o leito.
O narrador, aparentemente cheio de cuidados para com seu
cônjuge, percebe a passagem dos dias, e sente a força
desestruturadora da rotina, do tédio e, até mesmo, da
impossibilidade de estar só, acarretando em um ser torturado que
acaba por considerar a saída derradeira. A convivência com a esposa
que inicialmente não conhecia, mas que agora o sacia, é ao mesmo
tempo prazerosa e rotineira, dessa forma, a saída possível é o
assassinato da companheira, uma liberdade possível em uma relação
que estranhamente o angustia.
A personagem Godofredo, ou João de Deus, como é chamado
por Geralda, é um ente insólito, visto que não se lembrava de sua
esposa, e repentinamente se relaciona com ela, sabendo até mesmo
seu nome. O homem, aparentemente feliz por tê-la ali para satisfazer
seus impulsos sexuais, é o que almeja matá-la por se sentir sufocado
pela presença da esposa. Ao perceber a insatisfação do esposo e a
vontade deste de enforcá-la, a estranha esposa, nada objeta, senão
que lhe dá seu pescoço em uma apatia insólito, como se nota:
Enxerguei uma corda dependurada num prego.
Agarrei e disse para Geralda, que se mantinha
abstrata, distante: ― Ela lhe servirá de colar.
Nada objetou (...) Em seguida puxei as pontas (...)
como se estivesse recebendo uma carícia. Apertei
com força o nó e a vi tombar no assoalho.
(RUBIÃO, 2005, p. 92-93)
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O desfecho da relação de João de Deus e Geralda apresenta
traços cruéis, os quais caracterizam a submissão da mulher ao
homem por um viés de insólita impassibilidade. O narrador planeja
um assassinato, vestindo-a antes mesmo do efetivo enforcamento
por um manto soturno de morte e aridez de sentimentos, já que cria
a imagem da corda que ceifaria sua vida como um colar, um
presente.
Há na narrativa o maquinal desejo do narrador em exterminar a
companheira que de certa forma o fazia mal, porém não se sabe a
natureza de tal privação de liberdade, que o levasse a tirar a vida de
outra pessoa. O homem só comete o crime para retroceder ao estado
livre de outrora. Aparentemente culpada por privá-lo da liberdade de
solteiro, a esposa Geralda não discute ser assassinada, aceitamorrer.
E ele, por sua vez, não sente nenhum remorso por colocar a corda no
pescoço da mulher, sendo esta a esposa descoberta e cobiçada de
antes.Aliás, o homem preocupa-se basicamente em rumar para sua
habitual refeição no restaurante quotidiano, pois almejava retornar à
liberdade, buscando a mesa usual.
Pensando-se a respeito da composição do insólito, observa-se
que não é normal ou lógico a ausência de sentimentos de quem
morre e de quem mata, pois tanto o algoz quanto a vítima estão ou
são envolvidos pelo crime, mas na narrativa as mulheres se entregam
irremediavelmente. Ao confrontar os limites entre o sólito e o insólito,
as personagens, principalmente, as esposas serviram como
entrelaçamento entre o passado esquecido e o presente incomum,
visto que o narrador aceita recordações, mas despreza ficar preso em
―casamentos‖.
Outro elemento inaudito na narrativa é o nome João de Deus,
dado ao narrador por sua insólita segunda esposa, que,
posteriormente, se verificará como insólito, pois a personagem afirma
se chamar Godofredo.O homem declara-se como Godofredo frente a
sua primeira esposa Joana, descrita como morta, que volta
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insolitamente, e lhe chama Robério, nome pelo qual ele não se
reconhece e ainda questiona: ― Robério?! (Em tempo algum me
conheceram por esse nome. Havia um erro, um tremendo engano em
tudo aquilo.) (RUBIÃO, 2005, p. 93).
Nem como Robério, nem João de Deus, a personagem deseja
ser reconhecida como Godofredo, pois, é alguém que se apropria dos
acontecimentos insólitos de seu quotidiano, descartando-os diante do
menor infortúnio. O narrador-personagem revela os acontecimentos
narrativos a partir de seu olhar sobre os ―fatos‖, descrevendo seu
quotidiano a partir de sua apropriação ou não das esposas que o
circundam, usando-as como objetos quando necessário.
Estranhamente o encontro com as esposas é tão insólito como a
forma pela qual elas saem de sua vida, já que ele não se incomoda
com suas companheiras desde que não o privem de sua ―liberdade‖
de permanecer em uma mesma mesa, no restaurante de sempre.
O leitor hesita diante de uma ―morta‖ em franco diálogo com
seu marido, o qual não há reconhece, ainda que esta aparentemente
saiba quem ele é, mesmo que o chamando por um nome
desconhecido. Entretanto, o narrador só almeja se livrar da situação,
sem nenhuma reflexão mais detida a respeito do acontecimento, uma
vez que para ele seu nome não é Robério, mas Godofredo. Observa-
se, assim, uma ruptura da lógica, com personagens que demonstram
saber quem é o narrador, porém o reconhecem não como o homem
que tem em sua frente, mas como outro.
Dessa maneira, as relações indicam uma transitoriedade do
mundo reconhecido pelo senso comum como normal, haja vista, a
banalização da morte, dada como um presente, e não percebida pela
cessação da experiência do viver. Os elementos narrativos se
conjugam, indicando o mundo não sólito, em que as relações são
efêmeras e provenientes do esquecimento e do desejo. O narrador
lembra-se das esposas por desejá-las, mas retira-lhes a vida por
considerá-las um empecilho para o pleno gozo da liberdade.
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Todavia, não existe no texto uma explicação natural ou
sobrenatural para a reaparição da primeira esposa, sabidamente
morta, ou para a efetiva causa do assassinato da segunda. O
narrador apenas relata seus encontros, sem nem ao menos identificar
como as esposas sabem dos assassinatos cometidos. A primeira
esposa, então, que retorna após a morte da segunda, é ainda mais
misteriosa, uma vez que aparentemente morta, sabe do
enforcamento de Geralda. A narrativa apresenta a morte como saída
para a privação da liberdade e as personagens que convivem com o
narrador como elementos coadjuvantes para a realização de suas
pulsões, tendo uma condição insólita.
Não há, assim, na narrativa uma referência, coerente e real, do
local por onde a primeira esposa esteve, de quanto tempo se passou,
de onde ela veio, de como chegou àquele restaurante e de como tem
tanto acesso a vida de um marido que nem a reconhece. A ficção se
elabora pelas lacunas deixadas pelo escritor, que tornam o narrador
uma personagem insólita, já que presente na vida das mulheres as
confunde perdido em um tempo também incomum, afinal, as idas e
vindas ocorrem sem noção de tempo, ou espaço. Os reencontros têm
como plano de fundo o restaurante, os encontros e o esquecimento,
que se bifurcam por uma efemeridade das relações.
Os crimes, presentes na narrativa, mantêm um padrão no que
diz respeito à motivação. Eles oferecem uma explicação com base no
ciúme desmedido e sem razão, passional ou coerente, sendo
justificados e apoiados pelas mulheres, as quais, ao invés de
temerem, aceitam e confortam o seu possível algoz. As esposas não
se importam com o assassinato por enforcamento, apenas o
constatam, de modo irreal, e se apropriam do ocorrido para
convencer a personagem, dizendo que é o cônjuge delas. Assim, até
mesmo o assassinato é apropriado para se garantir a posse do outro.
O homem atende as esposas pelo desejo despertado e as mulheres
pela sublimação dos aparentes problemas conjugais.
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A falta de respeitoàs relações humanas e ao prematuro
―esquecimento‖ de um assassinato, relatado de forma trivial, enfatiza
um questionamento acerca dos limites entre osólito e o insólito, uma
vez que: ―sentimos que as sólidas formações sociais à nossa volta se
diluíram.‖ (BERMAN, 1987, p. 90). Dessa forma, nota-se que as
formações sociais na maioria das vezes tendem a punir os
criminosos, apesar disso, a morte prematura de uma jovem, ou de
duas, não tem a menor importância, já que a ―narrativa continua‖.
Mostra-se, então, uma dissolução das relações, sem questionamento
o homem almeja liberdade e as esposas apenas tê-lo, seja morrendo,
seja vivendo.
Sendo assim, nota-se uma estruturação do insólito focado na
apropriação da presença feminina por parte do narrador e um
desprezo ao lógico, ao esperado. Afinal, a personagem se deleita com
o carinho dado pela dita ―segunda esposa‖, sem respeitá-la, pois ao
sentir-se entediado, a enforca sem o menor remorso e volta a sua
vida quotidiana. ―Godofredo‖ demonstra se incomodar apenas com
aparência de suas esposas:
Na cadeira defronte à minha acabava de assentar-
se uma jovem senhora que, não fossem os cabelos
louros, juraria ser minha esposa. A semelhança entre elas me assombrava. Os mesmos lábios,
nariz, olhos, o modo de franzir a testa. (RUBIÃO,
2005, p. 93)
Em vista dos comentários elaborados e dos questionamentos
estruturados até aqui, observa-se os pontos de aproximação e
distanciamento da narrativa se comparada às pertencentes aos
diferentes gêneros literários. A curta memória da personagem, que
tem três nomes, ―três vidas‖, remete ao modo como esta diégese se
constrói em torno de eventos insólito, móveis da narrativa, contudo,
é necessário o questionamento a respeito do gênero ao qual o conto
poderia se filiar?
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O fantástico, ou seja, a ―ruptura da ordem reconhecida,
irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade quotidiana‖
(CAILLOIS – apud FURTADO, 1980, p. 19), é um gênero ao qual
Rubião costuma ser vinculado, porém, apesar do traço do narrador
autodiegético, as personagens não hesitam entre a realidade e sonho,
ou entre verdade e ilusão (Cf. TODOROV, 1992, p. 30), os eventos
incomuns ocorrem e não há questionamento sobre sua natureza.
Outro gênero é o Maravilhoso, o qual remete a mirabilia, ou
seja, coisas admiráveis, isto é, que fogem ao curso natural das coisas
e do mundo (Cf. CHIAMPI, 1980, p. 48), no qual fica claro que a
narrativa não pertence, pois apesar de ocorrer um evento insólito,
como não lembrar que cometeu um assassinato, é evidente nesta
criação literária que não há a intervenção de seres sobrenaturais, os
quais interfiram de forma a causar no ouvinte ou leitor surpresa,
arrebatamento, admiração etc. (Cf. CHIAMPI, 1980, p. 49). O insólito
é claramente apropriado e a personagem não se admira, apenas o
aceita, já que também é um ente incomum devido ao seu continuo
esquecimento.
Segundo Todorov (1992), o gênero fantástico está no limite
entre o maravilhoso e o estranho, porém o que ele considera como
estranho, seria uma composição narrativa marcada pelo desfecho
empírico, em que há a ocorrência de um evento insólito, mas tende-
se para uma explicação racional, que consideraria o evento como
estranho, mas perfeitamente normal. A narrativa, ao contrário,
apresenta um leque de eventos insólitos, porém nem se busca
explicações para o inusitado, nem se hesita diante de sua irrupção,
há apenas sua denúncia e, posterior, acomodação.
A forma com que os eventos insólitos pululam na narrativa
remete, ainda, ao gênero do realismo maravilhoso, porém não
existem duas realidades conflitantes, apenas uma, parasitária do
mundo real, rompida por um evento insólito. À semelhança da
realidade empírica, os eventos inauditos, a começar pelo narrador,
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podem ser observados como elementos de uma sociedade em crise,
já que a própria personagem, ao não se lembrar de nada, aproveita-
se da apatia das estranhas esposas para se transformar em vários,
fragmentos de um homem também incompleto.
A irrupção do insólitona narrativa aponta para a constituição de
um texto híbrido, em que o narrador autodiegético constantemente
se apresenta em um enfrentamento com o quotidiano. João de Deus,
Robério e, finalmente, Godofredo, constituem um homem que
encontra o benefício de desconhecer seu passado, além das delícias
de se descobrir ―cercado‖ ou ao menos sempre acompanhado de
belas esposas, isto é, mulheres que o aceitam e o reconhecem como
seu, enquanto ele se aproveita das circunstâncias, sem dar real valor
aos desdobramentos de suas ―decisões‖.
O narrador-personagem mata sem se lembrar, a mulher volta
após o assassinato de uma outra, todas se intitulando esposas, e,
ainda assim, ele se apropria do casamento, aproveitando suas
delícias e desprezando o homicídio. Da mesma maneira que as
demais personagens, ele não se importa, nada acontece, ninguém se
desespera, ou se emociona.
O narrador ainda encontra uma moça, sua suposta ―noiva‖,
começa tendo um pequeno estranhamento, mas, logo, ele se apropria
da ideia de uma nova companhia; afinal, ele poderia descobrir um
novo passado em sua mente, como já ocorrera,isso escolhesse o
caminho das indagações. Então, o homem reflete:
Ocorreu-me formular algumas perguntas,
possivelmente as mesmas que fizera a minha
segunda mulher, naquela noite, no restaurante. Desisti, preocupado em redescobrir uma cidade
que se perdera na minha memória. (RUBIÃO,
2005, p. 95)
Há no conto a consolidação das constantes insólitas, que
confrontam o esperado, e sua acomodação, pois ―Godofredo‖ não tem
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reais lembranças e quando as têm, sabe que matou, torna isso algo
comum, incorporando o fato, assim como a mulher, ao quotidiano.
O insólito, ou meta-empírico, como afirma Furtado (s.a.), em
verbete sobre o fantástico modal, é um traço comum a diversos
gêneros canônicos; porém, é a resposta a irrupção do evento
incomum, que define a pertença ou não de uma narrativa a dado
gênero. O surgimento de um evento insólito e sua aparente
banalização pelas personagens, as quais estranham que algo tenha
acontecido, mas se apropriam dos elementos incomuns, acarreta na
percepção da hibridez narrativa, composta por traços diversos.
Nesse sentido, o homicídio e o adultério não são
problematizados pelas personagens como um elemento conflituoso.
Na atualidade, os atos cruéis, que põe em jogo o direito de ir e vir de
qualquer humano, podem, também, ser considerados insólitos, pois
colidem com os valores sociais. Ainda que a maldade seja
comumente veiculada, é sabido que o assassinato e o adultério são
desvios, rupturas, próprios de uma sociedade em crise. Lenira
Marques Covizzi, ao delimitarnuances da significação do insólito,
declara:
Um mundo em crise é um mundo não sólito (...). Crise de valores porque a realidade
convencionada, seus conceitos e representações não são mais aceitos sem dúvida. Se essa
realidade é transfigurada artisticamente numa irrealidade que a contém, e se as produções
artísticas contemporâneas enfatizam esta última
escamoteando aquela, nada mais necessário que
fazer o estudo da dosagem de ambas para
apreender a significação do objeto analisado.
(COVIZZI, 1978, p. 26-27)
A narrativa escrita numa época de crise de valores reflete o
pensamento a respeito do fazer narrativo, que enfoca tanto os
dilemas sociais quanto a constituição de um texto híbrido e
consciente de seu estatuto questionador.
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Segundo Berman (1987), os cenários mundiais sofrem
metamorfose e seus atores observam uma desintegração de seus
papéis com o poder de interferirem apenas por meio da
transcendência (Cf. BERMAN, 1987). No entanto, alguns desejam
como Godofredo, ser ele mesmo, mas as constantes aparições
femininas corroboram para uma perturbação, em que a personagem
se alimenta dos momentos de deleite amoroso e se livra da mulher
ao primeiro sinal de rotina. Assim, percebe-se que a personagem
fragmentada ―alimenta-se‖ do prazer momentâneo, vivendo pelos
instantes da efêmera felicidade encontrada no prazer.
O narrador teme a rotina, matando frente ao menor vestígio de
privação da liberdade, mas suas refeições, no restaurante habitual,
não o deixam entediado?A cada nova ida ao restaurante, ou a cada
refeição, Godofredo tornava-se o marido João de Deus de Geralda,
Robério de Joana, que achava chamar-se Godofredo, e finalmente, já
em sua ―casa‖ o noivo João de Deus. Estranho, insólito, meta-
empírico? A cada novo nome o narrador recebe uma nova
personalidade, mas o restaurante ―habitual‖ não o incomodava, como
se a ida ao restaurante fosse o estopim para sua renovação. Assim, o
sujeito fragmentado, e em crise, ao ir jantar, ou almoçar, tornava-se
outro menos culpado, portanto, livre.
Godofredo como um ser comum convive com uma diversidade
de sentimentos próprios das pessoas, sobrevivendo a sensações
humanas, passando por momentos relativos ao amor, à morte, à
liberdade, ao tédio.Ele evoca a concretização da estruturação dos
diversos episódios insólitos por todo o conto, mas não pretende
encontrar respostas apenas se encontrar, enfocando sua busca no
retorno ao restaurante. A personagemnem questiona, nem tenta
esclarecer os acontecimentos, apenas os aceita de forma cômoda, os
utiliza proveitosamente, tendo oportunidade e quando o aborrece o
despreza e ―naturaliza‖. Dessa forma, o narrador demonstra-se como
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um ser partido infeliz em viver com o outro, mas incompleto na
solidão.
Os eventos insólitos, que irrompem no decorrer da narrativa,
não apresentam provas palpáveis e muito menos que possam ser
esclarecidas com base na razão, ou na lógica. Não há, também,
explicações para a realidade, na qual a personagem se encontra
mergulhada, pois nem o plano ordinário, nem o extraordinário são
capazes de caracterizar o mundo caótico, em que sobrevive a
personagem. O insólito irrompe amenizando a solidão, porém a
personagem inconformada com a convivência prefere o prazer da
efemeridade, aproveitando ao máximo e desprezando depois,
aparentemente, usando a morte como saída, mas nem sobre isso há
certeza, já que a primeira esposa retorna.
Em suma, os eventos insólitos, apesar de denunciados e
percebidos como meta-empíricos, acabam incorporados ao quotidiano
da personagem, sem que realmente necessitem de uma explicação
ou mudança. Uma espécie de neutralização banaliza-os e os faz
parecer próprios, apropriados, ainda que estranhos, àquele universo
constituído no interior da diegese.
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Ática, 1985.
BELLA JOZEF. A Máscara e o Enigma – A modernidade: da
representação à transgressão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006.
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aventura da modernidade. São Paulo: Cia. das letras, 1987.
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COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e
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182 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
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NUNES, Sandra. Biografia – Vida. Online: disponível na internet via http://www.murilorubiao.com.br. Arquivo consultado em 06 de junho
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REIS, Carlos& LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2000.
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Paulo: Perspectiva, 1992.
183 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE ARTHUR ENGRÁCIO,
BENJAMIN SANCHES E CARLOS GOMES
AZEVEDO, Kenedi Santos30
1. INTRODUÇÃO
A Literatura escrita no Amazonas é conhecida por ter como
pano de fundo, na maioria dos casos, marcas regionalistas: a
floresta, o caboclo, o rio, as lendas, etc. O objetivo deste trabalho é
fazer uma abordagem onde colocar-se-á a contística amazonense, em
especial as obras A Vingança do Boto, Contos, de 1995, , o outro e
outros contos, de 1998, Mundo mundo vasto mundo, de 1996, de
Arthur Engrácio, Benjamin Sanches e Carlos Gomes respectivamente
em uma perspectiva do Fantástico, sem deixar de lado os topoi
citados anteriormente.
A escolha das obras acima referenciadas deu-se por conterem
em suas narrativas cenas entendidas como insólitas, fora do comum
e às vezes inverossímeis para a realidade humana, fazendo perguntar
o porquê de tais eventos, nascendo uma perturbação no leitor ante
esses acontecimentos considerados absurdos. É o que Todorov chama
de hesitação.
A primeira condição para o Fantástico segundo o teórico, como
ficou dito, é a hesitação, porque ―o fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural‖ (TODOROV, 2010, p.
31). Irlemar Chiampi complementa essa idéia dizendo que o
Fantástico é:
A vacilação do leitor entre uma explicação racional
dos fatos narrados (o fantasma como alucinação, por exemplo) e uma explicação sobrenatural (os
fantasmas existem), a impossibilidade de optar por
30 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras: Literatura
Portuguesa – UERJ.
184 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
qualquer das alternativas, constitui o dado objetivo
que se projeta no discurso como questionamento
das duas ordens que o leitor conhece: a natural e a sobrenatural. Os limites de ambas as normas, de
ambos os códigos, são relativizados, pela irreconciliação dos fatos narrados, seja com a
razão, seja com a não-razão (CHIAMPI, 1980, p.
55).
E continua:
O Fantástico contenta-se em fabricar hipóteses
falsas (o seu ‗possível‘ é improvável), em desenhar
a arbitrariedade da razão, em sacudir as convenções culturais, mas sem oferecer ao leitor,
nada além da incerteza. A falácia das
probabilidades externas e inadequadas, as explicações impossíveis – tanto no âmbito do mítico – se constroem sobre o artifício lúdico do
verossímil textual, cujo projeto é evitar toda asserção, todo significado fixo (idem. p. 56)
[negrito nosso].
Essa hesitação para Todorov e vacilação para Chiampi, será
comum entre a personagem e o leitor que serão conduzidas pelo
narrador a decidir no final da história narrada, se o fato por eles
experimentado é ou não real, prevalecendo assim, do começo ao fim
do relato, uma ambiguidade, que logo será um dos traços que levam
ao Fantástico. No entanto, se a personagem e/ou o leitor escolherem
uma possibilidade de solução, a empírica ou a sobrenatural, haverá
uma saída do Fantástico, entrando para um dos outros gêneros muito
próximos: o Estranho ou o Maravilhoso. Se optar pela solução
empírica tem-se então um acontecimento Estranho. Agora, se
escolher uma solução em que as leis naturais são deixadas de lado,
estará diante do Maravilhoso, viu-se deste modo que o Fantástico
vive um constante risco de deixar de ser.
Portanto para que um acontecimento possa ser considerado
Fantástico é necessário que o leitor fique sem solução em relação ao
evento insólito, com incerteza em todo o fato narrado. Como diz
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Vânia Pimentel (2002), ―[...] tudo que escapa à compreensão
comum, lógica racional, ou, ainda, o que gera hesitação, medo
angústia, conservando-se a dúvida até o final, [é] condição
indispensável ao gênero‖ (p. 20).
Adentrando um pouco mais nesses gêneros, veremos que há
uma relação íntima entre eles, sendo assim, não há como separar o
Fantástico dos demais. Dessa relação passam a existir então, os
subgêneros transitórios: Fantástico-estranho e Fantástico-
maravilhoso. Ambos surgem de um longo tempo de hesitação diante
do sobrenatural por parte do narrador e do leitor no decorrer do
relato, mas se em algum momento esse fenômeno for explicado de
forma natural, chamar-se-á deste modo, Fantástico-estranho; se
houver a hesitação por demorado tempo e o evento sobrenatural for
aceito por parte do narrador e do leitor, dir-se-á que é Fantástico-
maravilhoso. Todos eles serão bem entendidos na análise dos contos
a seguir. Começaremos pelo Fantástico puro, em seguida
abordaremos uma narrativa com tendência ao Fantástico-maravilhoso
e por fim analisaremos um conto considerado Fantástico-estranho.
2. O FANTÁSTICO NO CONTO O ESTROPIADO, DE BENJAMIN SANCHES
Antes de qualquer coisa, algumas considerações sobre o
escritor.
Benjamin Sanches (1915-1978) estreou sua vida literária
escrevendo poemas para o ―Jornal do Comércio‖ com o pseudônimo
Azziz. É um dos participantes ativos do Clube da Madrugada ao lado
de outros nomes da Literatura escrita no Amazonas. Publica seu
primeiro e único livro de poesias pela editora Sergio Cardoso & Cia.
Ltda. no ano de 1957 com o título Argila. A orelha do livro traz a
seguinte declaração, feita pelos editores, sobre a estréia do, então,
poeta:
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Benjamin Sanches: é o novo poeta que surge
aproveitando, assim, as vantagens de um
movimento literário cujos elevados propósitos já começam a modificar a fisionomia até pouco
tempo carrancuda – e sem o menor arejamento – das letras amazonenses. Perguntais quem é ele?
Na verdade leitor, temos diante de nós um nome
completamente desconhecido nas rodas
intelectuais da província, e que, pela primeira vez, aparece no frontispício de um livro de versos, se
bem que tenha publicado na imprensa de Manaus
(EDITORES, 1957).
Seis anos depois lança mais um livro, agora de contos,
intitulado o outro e outros contos. O ano é 1963. Foram suas únicas
obras. Faleceu em 1978 e ―Mal passada a primeira década de sua
morte, ninguém mais lhe lembrava sequer o nome. Dificilmente
alguém sabe quem ele foi de fato, onde nasceu e morreu ou como
viveu‖ (GRAÇA, 1998, p. 13). Ironia ou não, a passagem anterior e
as palavras de Antônio Paulo Graça têm algo em comum, sobretudo
se levarmos em consideração duas palavras: desconhecimento e
esquecimento; exatamente isso, Benjamin Sanches ficou por anos
esquecido do mundo das letras amazonenses, e deve-se ressaltar que
ele não foi o único. Benjamin Sanches destaca-se por seus escritos
com tendência modernista, exemplo disso são seus contos, todos
escritos com letras minúsculas e alinhados à direita, sobre isso Nícia
Zucolo discorre:
Benjamin Sanches pode ser lido como um daqueles
que se preocupou em realizar sua obra através da
ficção, ali efetuando a pesquisa formal, voltando-se para o seu ―instrumento de trabalho‖, isto é, a
própria linguagem. O estilo peculiar, alinhando os
parágrafos pela direita, desconsiderando iniciais maiúsculas, por certo causou estranheza na
ocasião de sua publicação, sem mencionar os
contos: um inseto consciente, viagens insólitas, linguagem alegórica, presença do maravilhoso, da
loucura sob diversos aspectos (ZUCOLO, 2005, p.
82).
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E tece considerações desse esquecimento pelo qual o escritor e
suas obras passaram:
Ao se considerar a fase heróica do Modernismo,
deixam-se de fora os estados periféricos ao eixo Rio–São Paulo, por terem-no como centro de
efervescência cultural do país, e até manifestações
que possam ser enquadradas como ―condizentes‖
ao ideal de renovação estética passam despercebidas pelo grande público, muitas vezes
por desconhecimento ou descaso. Com isso,
cometem-se injustiças, deixando de lado obras consideráveis referentes ao projeto modernista, no
sentido de não apenas conferir uma identidade
cultural ao país, mas quanto ao projeto
experimentalista e renovador das letras brasileiras mesmo, caso em que se insere a contística de
Benjamin Sanches (idem.).
A partir do começo do século XXI, surgiu o interesse em
pesquisar as obras desses grandes homens, desde então, surgiram
artigos, ensaios e até dissertações, fazendo justiça a tais escritores.
Apesar de tudo, os intelectuais da região não têm reconhecimento e
prestígio fora do âmbito regional, nem mesmo nas academias das
faculdades de Letras; poucos são os que têm esse privilégio.
Depois dessa apresentação vamos à leitura do conto em
questão.
No conto o estropiado conhecemos Jerônimo, ―um matador de
peixe‖, que diferentemente dos demais pescadores não utilizava as
redes para pescar, dava preferência à bomba ―com ela conseguia
melhor pesca com menos tempo de trabalho‖ (SANCHES, 1998, p.
25). Em umas dessas aventuras pesqueiras acabou perdendo a mão,
contudo, ―apesar de ter perdido as mãos, não abandonaria a pesca
fácil da bomba, pois, habilmente arremessava-a do ângulo formado
pelo braço e antebraço e, disso, se vangloriava constantemente‖
(idem.). Temos até aqui a construção da figura de Jerônimo feita pelo
narrador, a diferença entre ele e os outros homens daquelas
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redondezas. Em primeiro lugar, ele não é chamado de pescador, mas
sim de ―matador de peixe‖, isso mesmo um ―matador‖. Outra
curiosidade é a perda de seus membros. A partir deste ponto, o
estropiado é transformado em um monstrengo, um ser que é
admirado e ao mesmo tempo transmite medo a certas pessoas. A
teimosia, a impaciência e a ira são algumas de suas características.
No entanto na voz da negra Isaura ele era: um pobre-diabo!
Além da figura assustadora em que Jerônimo se tornou com a
perda dos membros, há no conto o espaço que o narrador cria no
decorrer da narrativa, principalmente quando o homem vai à pesca:
remara mais de trinta quilômetros ao longo daquela noite branca de luar, e, no momento,
deveria levar ao máximo a sua faculdade atenção,
no entanto, a lembrança daquelas imprecações traziam-no nervoso. parecia-lhe que aquelas palavras retornavam em forma de unhas desfiando
os seus nervos, enquanto a neblina da madrugada gelava a sua pele (SANCHES, 1998,
p. 26) [negrito nosso].
O narrador constrói uma atmosfera sombria e assustadora,
preparando o leitor para os acontecimentos vindouros; e é nesse
ambiente soturno que Jerônimo e um menino que o acompanha vão a
mais uma caçada aos peixes. Tenta atirar a primeira bomba, mas ela
não funciona, causando assim um início de cólera, o menino
escondido no jereré – espécie de abrigo feito de palha e armado na
canoa em forma arqueada –, fez o sinal-da-cruz, enquanto o matador
de peixes, impaciente, prepara-se para atirar a próxima bomba.
[...] encostou-o na brasa do cigarro que esmagava
entre os lábios, mas antes de arremessá-la, o
petardo, na violência do seu furor cego, espedaça-lhe a cabeça e atira o seu corpo na água, que
depois de mostrar o seu sangue, julgara tê-lo
escondido para sempre. o estampido depois de haver rolado pelo verde da folhagem, espantando
as aves, perdeu-se na crista daquela região quase
deserta (p. 27).
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E a narrativa prossegue:
o imaterial de jerônimo acaçapou-se na proa envolto em maciça fumaça que foi crescendo para
os lados e para cima até se tornar transparente,
tirando-o daquele esconderijo sem o deixar sentir
que não era alguém. mesmo desagregado do corpo
não perdera a sua inatividade. no pensar existir
passou a existir no pensar (idem.).
Está-se neste momento diante de um acontecimento que não é
normal em sua naturalidade, a partir deste ponto surge a dúvida,
aquilo que Todorov chama de hesitação e Chiampi denomina
vacilação: Por que depois de ter a cabeça despedaçada com a
explosão da bomba, Jerônimo, ainda assim não perdera sua
inatividade? Até o momento pode-se dizer que o evento em questão
é Fantástico, já que em nenhum momento há uma explicação para
esse ocorrido com o matador de peixes.
O menino conseguiu salvar-se nadando até a margem do lago,
em seguida foi até as outras pessoas contar o que havia acontecido,
a morte de Jerônimo pela bomba. Muitos já sabiam que isso poderia
acontecer e lembraram-se da teimosia do homem. A negra Isaura
acrescenta ―era o último da família dos martins e nunca quis se
casar. teve uma vida cheia de nada e uma morte que ninguém
perdeu ou tirou proveito dela‖ (p. 27), mais uma vez a descrição do
homem é de alguém fora do normal. Voltando ao local do acidente,
presenciamos o momento em que ―saiu daquele fulcro de trevas,
onde agonizou o seu corpo [...]‖. Aqui, destaca-se mais uma vez o
ambiente que tende para o fantasmagórico, ou seja, um ambiente
das narrativas do Fantástico.
O conto chega a seu final e continua-se sem saber a resposta
para a pergunta feita logo acima, o porquê de tal fenômeno, a
ambigüidade ante o natural e o sobrenatural prevalece sem pender
para uma aceitação ou explicação.
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a frágil embarcação levada pela correnteza, descia
desgovernada. as pesadas gotas da chuva,
acumulando-se em seu bojo, ameaçavam-na soçobrar. jerônimo, não encontrando a cuia
encuiou a mão e esgotou-a. na ilusão do ainda sou, toma o remo e passa a navegar sem cabeça e
sem os braços. acompanha-o agudo assobio de
uma brasa sonora que tenta escapar do seu
pescoço decepado (p. 28).
Portanto, no conto o estropiado há sim um evento Fantástico, e
Fantástico puro, já que em nenhum momento houve uma explicação
empírica ou sobrenatural para tal fato, além dos topoi que ajudam a
classificá-lo como conto Fantástico: noite branca de luar, neblina da
madrugada, região quase deserta, as pesadas gotas de chuva no
final, navegar sem cabeça, o assobio agudo entre outros. O ar
fantasmagórico fica claro no final quando nos deparamos com a cena
em que Jerônimo ―toma o remo e passa a navegar sem cabeça e sem
os braços‖. Sem explicação natural ou sobrenatural, estamos diante
de um conto, afinal, Fantástico. No outro tópico conheceremos um
dos seus subgêneros.
3. O FANTÁSTICO-MARAVILHOSO NO CONTO DO FUNDÃO DAS ÁGUAS: O CASTIGO, DE ARTHUR ENGRÁCIO
Assim como Sanches, Arthur Engrácio também fez parte de um
dos mais atuantes grupos de escritores do Estado do Amazonas, O
Clube da Madrugada. Nasceu em Manicoré no dia 16 de abril de
1927. Começou a vida literária a partir dos anos sessenta, sua estreia
fora com a publicação do livro Histórias do Submundo. Seguido de
outras obras de ficção, entre elas o livro A Vingança do Boto, objeto
de nossa pesquisa, que fora lançado em 1995 pela Rio Fundo Editora,
fazendo parte da Coleção Literatura Regional Brasileira.
O conto em questão começa com o diálogo entre alguns
pescadores em um lago. Os pescadores querem deixar esse lago,
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porque ―os peixes estavam ficando vasqueiros, difíceis‖. Nesse
momento começa a inquietação do leitor em saber o motivo de os
peixes estarem sendo difíceis de caçar. Um deles, por nome
Argemiro, sugeriu o uso da bomba, os outros não gostaram da ideia,
e um deles disse: ―Mas o patrão já proibiu, Argemiro. Dizque a
bomba acaba com os peixes duma vez, e é uma malvadeza!‖
(ENGRÁCIO, 1995, p. 07), mas Argemiro ―lhes ponderou não fossem
na conversa do patrão. Se não pegassem os peixes, não comeriam
nem pagariam o que deviam no barracão. Não viviam daquilo?‖
(idem.). Como os outros não estavam conseguindo persuadi-lo a não
usar a bomba por saberem que ele era ―um cabra ladino e estúrdio,
tem boa conversa e etcétera e tal‖ (p. 08), tentaram outro motivo:
Dizer que o lago era encantado e havia no fundo das águas o rei dos
peixes.
-Tu pode não acreditar, mas nós já vimos ele várias vezes quando vamos pescar no lago. É um
tucunaré disconforme de grande, paidegão, e suas
escamas amarelas, de tão lisas, rebrilham ao reflexo da lua como lâminas de ouro. Em noites enluaradas ele bóia e fica contemplando o céu
talequal um boêmio apaixonado. Vem fardado de
tenente, o bichão e fuma um baita charuto. Nos
seus olhos a gente percebe só bondade e ternura. Pelo visto, não é um peixe mau e a gente não deve
instigar ele (ENGRÁCIO, 1995, p. 08).
Na passagem tem-se a descrição do que seria o monstro do
lago, o protetor desse lugar, apesar de tudo isso, o personagem
principal não acredita na história contada pelos pescadores, fazendo
com que o leitor também deixe de acreditar, se há ou não esse
monstro no lago. O ceticismo é um dos aspectos que mantêm os
fatos no âmbito do Fantástico: ―- Já vi caboco arara, mas como vocês
inda tou por ver! – debochou‖.
Depois de todas essas declarações e ponderações por parte dos
companheiros, Argemiro decidiu ir à sua casa pegar as bombas para
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caçar os peixes, não estava preocupado com aquilo que os colegas
haviam falado nem com a ordem do patrão. No caminho de sua casa,
resmungou: ―Peixe quando está com manha de não morder o anzol
ou cair na tarrafa, só tem mesmo aquele remédio‖ (idem.). Chegou
ao barracão pegou todo material de pesca e voltou.
No meio do lago, parou. Na brasa o cigarro acendeu o primeiro petardo e atirou-o nágua. Não
lhe ouvindo o estampido característico,
arremessou o segundo. Esperou desta vez o tempo
necessário para que produzisse efeito e, não obtendo-o, preparava-se para lançar o terceiro,
quando uma onda gigantesca de peixes estrondou
ao redor da canoa. Sem dar tempo ao caboclo de esboçar qualquer reação, foram saltando dentro da
montaria. Sardinhas, aracu, matrinchão, pacu,
jaraqui, aruanã, curimatá, tambaqui, canela-de-velha, mapará, traíra, branquinha, pescada,
pirapitinga, por fim, foram chegando os maiores,
os surubins, os pirarucus, os capararis e os
dourados. Com o salto de uma pirarara, a canoa começou a afundar (ENGRÁCIO, 1995, p. 09-10).
Nesse momento entramos em contato com um evento insólito.
Isso começa quando as primeiras bombas jogadas por Argemiro não
estouram, seguido pela presença da onda gigantesca de peixes que
saltaram para dentro da canoa do homem. Até aqui há um
acontecimento que pode ser considerado Fantástico, já que em
nenhum momento o personagem acha uma explicação para o
ocorrido. E o conto continua descrevendo o ataque dos peixes ao
caboclo, para além dos saltos e batidas: ―Agora executavam uma
espécie de balé ao som de estranha música cujos acordes emergiam
do âmago escuro das águas‖ (p. 10), nesta passagem confirmamos
nossa hipótese de que o fato pode ser considerado Fantástico. Depois
de tudo isso, Argemiro acorda ás margens do lago, na areia, nu,
pensando que havia tido um pesadelo: ―mas ali não havia casa nem
rede, só rio, os pássaros, a terra, as árvores‖ (idem.). Em seguida
surge o que já fora definido com primordial para que haja o
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Fantástico: a hesitação por parte da personagem, ―Onde estava sua
canoa? E aquelas escamas colada em sua pele? E aquele pitiú
intragável que lhe desprendia do corpo?‖ (ibidem.).Sua hesitação é
acompanhada pela do leitor.
No final do conto há a seguinte passagem, importante para
classificação da narrativa na perspectiva do Fantástico: ―Não, não
fora sonho. Longe, no fim do estirão, comandado pelo tucunaré
fardado de tenente, viu ainda o imenso cardume rebrilhando ao sol as
escamas prateadas‖ (p. 11).
Diferentemente do conto o estropiado em que não há uma
explicação para o insólito, neste o personagem aceita a explicação
sobrenatural que fora dita anteriormente pelos seus companheiros.
Filipe Furtado diz:
Mediante esses processos, para além de declarar
admissível a incredulidade perante o teor insólito
da história e de representar o papel de céptico convencido, o narrador [e o personagem] deixa,
expressa ou implicitamente, ao leitor a incumbência de avaliar por si próprio a veracidade
da história (FURTADO, 2011) [negrito nosso].
Argemiro torna-se o cético, convencido segundo Furtado pela
aceitação, no final do conto, daquele fato como a história contada
pelos outros pescadores. Como ficou declarado acima, quando o
personagem e o leitor optam por uma explicação, deixando de lado a
ambigüidade criada pelo natural/ sobrenatural, foge-se do Fantástico.
No entanto, neste conto de Arthur Engrácio, há um personagem que
aceita o fenômeno como sobrenatural, levando-nos a concluir que Do
Fundão das Águas: o Castigo pode ser classificado como Fantástico-
maravilhoso. Se ele tivesse aceitado os fatos como pesadelo ou
sonho seria outra classificação que é o que propomos fazer no conto
seguinte.
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4. O FANTÁSTICO-ESTRANHO NO CONTO PRETO E BRANCO, DE CARLOS GOMES
Nasce em Manaus no dia 15 de junho de 1936, o escritor Carlos
Gomes, fez parte do grupo de artistas amazonenses que compunham
o Clube da Madrugada, lança pela União Brasileira de Escritores a
primeira edição de seu livro de contos Mundo mundo vasto mundo
em 1967, obra envolta por narrativas que fogem, muitas vezes, das
estruturas comuns dos contos. Temas como o folclore, a vida
provinciana, as mazelas do povo, permeiam os relatos que compõem
Mundo mundo vasto mundo, sem falar naquelas narrativas em que o
insólito é o assunto prevalecente. E é um desses contos, Preto e
Branco, que tomaremos como objeto de nossa pesquisa, sobretudo,
no que se refere à realização de eventos sobrenaturais em seu
enredo.
A construção do fantástico está mais estruturada no conto de
Carlos Gomes. Desde o primeiro contato com a narrativa no
parágrafo inicial tomamos conhecimento de que estamos em
presença de um acontecimento fora do comum. Há um narrador que
convida o leitor para adentrar nesse ambiente obscuro onde se passa
a ação que começa assim:
Abriu os olhos na meia escuridão. Não os esfregou, mas foi como se o tivesse feito. Tudo esfumado,
qual filme velho em preto e branco. Vultos
atormentados se movimentam. O homem, mesmo jazendo, bracejava, queria desembaraçar-se da
trama, me larguem. Inútil. Os vultos estavam
entranhados nele e o mais estranho é que o homem não era senão um deles (GOMES, 1996, p.
41.
O ar sombrio é apresentado desde o início. O espaço é descrito
como ―esfumado, qual filme velho em preto branco‖ e com seres que
provocam medo ao personagem, tidos como ―vultos‖, surgem como
entidades fantasmáticas que estão ali para atormentá-lo. Até agora
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esses seres são vistos como vultos, a primeira personagem que surge
é chamada de ―A mulher feia‖.
A mulher feia fazia trejeitos aliciadores. Ela se
chegara imperceptível como a velhice. Escorrera, licorosa, até o homem. Silenciosa, qual um réptil.
E agora, com aquela sua maleabilidade de fêmea,
procurava acomodar-se ao seu lado. Suas mãos
apascentavam os cabelos dele, o homem via que as extremidades dos dedos se alongavam que nem
garras. Dava medo (idem.) [grifo nosso].
Essa mulher é a verdadeira representação de uma personagem
pertencente ao gênero Fantástico. Neste momento temos uma das
características que fazem deste conto uma narrativa desse gênero, a
hesitação e o medo que aqui são sentidos pelo narrador e
transmitidos ao leitor que pode ou não aceitar. E o relato continua
com a perseguição da mulher feia ao personagem que, até agora,
não fora descrito. Sabemos apenas que é um homem. Outra figura do
conto é ―um menino de feições desconhecidas‖ que aparece catando
arroz e depois desaparece sem mais nem menos. A mulher aproxima-
se mais ainda, entretanto, o homem não conseguia ver-lhe o rosto.
Eles tiveram certo contato, trocaram beijos: ―Quando os corpos
estertoraram, o homem [perguntou] cadê a mulher? Desaparecera‖.
Mais uma vez a hesitação perante a ação desses seres que aparecem
e desparecem diante da personagem. Percebe-se que até agora não
há uma explicação para os fatos, ninguém sabe de onde a mulher e o
menino surgiram nem para onde foram. O que se sabe é que ele
abriu os olhos no meio da noite e começou a ver seres em forma de
vultos e em seguida a mulher feia e o menino. Fatos irreais, cenas
incomuns, principalmente quando surge outro menino, só que agora,
é um menino moreno que fala grosso e que tem a fisionomia da
mulher feia. Em dado momento lembra-se do jornal onde leu sobre
uma vigarista que fora presa no dia anterior, de início pensou não
conhecê-la: ―Mas o close-up retificava, conheces sim. Os olhos de
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retina escorrida borrando a íris, a fisionomia tosca da mulher ridícula,
não havia tergiversar. Eram as mesmas!‖(GOMES, 1996, p. 44).
Ficou com raiva da mulher e tentou esbofeteá-la. Nesse trecho
pensa-se que a personagem consegue resolver todo o mistério dos
acontecimentos estranhos, até então narrados,quando na verdade,
tudo será esclarecido no trecho a seguinte: ―Bem que tudo não
passara de um mau sonho‖ (idem. p. 45).
O personagem descobriu que os eventos sobrenaturais que
aconteciam era apenas um sonho, ou seja, há uma explicação
racional para todos os fatos, fazendo com que aquilo que poderia ser
chamado de fantástico passe a ser considerado Fantástico-estranho.
Tudo isso nos faz concluir que o conto Preto e Branco, para além de
ser uma narrativa do Fantástico, é uma narrativa situada na transição
com o estranho, já que desde o início dos relatos a hesitação e a
ambigüidade são mantidas até a personagem e, logo, o leitor
aceitarem a explicação empírica: o sonho.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há outros contos que compõem as obras desses autores que
podem ser considerados Fantásticos, contudo optamos por trabalhar
com os três por terem maior relevância em relação àquilo que fora
proposto no início.
Por isso, os contos dos três escritores amazonenses, Benjamin
Sanches, Arthur Engrácio e Carlos Gomes podem ser enquadrados no
âmbito da Literatura Fantástica, o primeiro como Fantástico-puro, o
segundo como Fantástico-maravilhoso e o último como Fantástico-
estranho.
Claro está que a tentativa de leitura desses escritores não se
restringe apenas a temas regionalistas, nem mesmo do Fantástico
como fizemos, mas a temas que vão além dessas perspectivas,
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passando por assuntos que podem ser entendidos como universais
como a política, o existencialismo, a vida urbana, entre outros.
Fazer o resgate dessas obras é valorizar o que temos de melhor
no cenário literário, não só regional, mas nacional e universal.
REFERÊNCIAS:
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo:
Perspectiva, 1980.
ENGRÁCIO, Arthur. A Vingança do Boto, Contos. Rio de Janeiro:
Rio Fundo Editora, 1995.
FURTADO, Filipe. Fantástico (Gênero). Disponível em: http://www.edtl.com.pt. Acesso: 21/03/2011.
GRAÇA, Antônio Paulo. ―Os mistérios de Benjamin Sanches‖ In:
SANCHES, Benjamin. o outro e outros contos. Organização: Tenório Telles. 2. Ed. rev. Manaus: Editora Valer, 1998.
GOMES, Carlos. Mundo mundo vasto mundo. 2. Ed. rev. aum. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas, 1996.
PIMENTEL, Vânia. Narrativas do além-real. Manaus: Editora Valer, 2002.
SANCHES, Benjamin. o outro e outros contos. Organização: Tenório Telles. 2. Ed. rev. Manaus: Editora Valer, 1998.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.
ZUCOLO, Nícia Petreceli. O ignorado Benjamin Sanches e o
Modernismo: uma leitura inicial de sua obra no contexto brasileiro ancorada no conto ―A Gravata‖ In: Somanlu: Revista de Estudos
Amazônicos do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 5, n. 2.
Manaus: Edua/Ufam, 2005.
198 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
O HORROR E O FANTÁSTICO NA PROSA DE MANUEL ANTÔNIO
ÁLVARES DE AZEVEDO
NIELS, Karla Menezes Lopes 31
INTRODUÇÃO
Em artigo recente, Maria Cristina Batalha traça um percurso de
uma possível literatura fantástica brasileira, em que Manuel Antônio
Álvares de Álvares de Azevedo figura como o primeiro e mais
representativo autor desta vertente literária nacional ainda pouco
estudada. Para a autora ―os contos encadeados de Noite na taverna e
a peça Macário, ambos (…) publicados postumamente, em 1855,
inauguram uma estética da incerteza na ficção brasileira‖ (2010, p.
4).
Afrânio Peixoto parece ter sido o primeiro a claramente afiliar a
prosa alvarozevediana ao gênero fantástico e de horror, ao afirmar
que ―A Noite na Taverna é um conto fantástico e um conto
perverso, gótico‖ e, que ―pode estar e estaria bem, entre as obras
peregrinas desse gênero terrifico, perverso e cruel‖ (PEIXOTO, 1932,
p. 340-5).
Entretanto, embora a crítica e a historiografia literária tenham
nos legado a categorização de narrativa de gênero fantástico para
Noite na Taverna, seus contos não correspondem plenamente à
concepção desenvolvida por Tzvetan Todorov, exposta na sua
Introdução à literatura fantástica. É justamente o que postula
Roberto de Souza Causo ao afirmar que a obra não se encaixaria
estruturalmente neste modelo teórico. Para o autor, ela se amoldaria
melhor ao entendimento de H. P. Lovecraft, para quem a atmosfera,
o medo e a ―intensidade emocional‖ (CAUSO, 2005, p.105)
provocadas são fatores essenciais ao fantástico. Causo argumenta
31 Karla Menezes Lopes Niels, mestranda de literatura brasileira.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Campus Maracanã.
Bolsista CAPES karla.niels@gmail.com
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que ―apenas (...) ―Solfieri‖, apresenta essa ambiguidade, ou seja, a
―hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural‖
(CAUSO, 2003, p.104).
O que nos intriga, então, é se as narrativas de Noite na taverna
apresentam ao menos a principal condição necessária à concepção do
fantástico – a hesitação diante de um acontecimento aparentemente
sobrenatural –, levando também em conta que o ―fantástico implica
(...) não apenas a existência de um acontecimento estranho, que
provoca hesitação no leitor e no herói; mas também uma maneira de
ler‖. (TODOROV, 2007, p. 38).
Refletindo sobre tal possibilidade, avaliamos sua adequação à
concepção todoroviana. Num segundo momento, consideramos a
pertinência de classificar as narrativas de Azevedo sob uma outra
perspectiva: como uma narrativa de horror, já que este tem sido por
muito considerado um subgênero do fantástico. Para tal, utilizamos
as reflexões críticas de ficcionistas como Horace Walpole, Edgar Allan
Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King, reflexões que têm concebido a
literatura de horror como ―um artefato produtor de uma emoção
específica: o medo e suas variações‖ (FRANÇA, 2008, p. 1).
UMA BREVE INCURSÃO PELO FANTÁSTICO E GÊNEROS VIZINHOS
Segundo o dicionário Caldas Aulete, ―Fantástico‖, no âmbito
literário, refere-se à ―modalidade de narrativa (romance, conto etc.)
em que elementos sobrenaturais se misturam à realidade" (AULETE,
2008). Mas, mesmo dentro dos Estudos Literários, a definição de
literatura fantástica e de horror tem-se mostrado um conceito
inequívoco.
Para Todorov, o fantástico implica a existência de
acontecimentos inexplicáveis, imprecisos; e a ―possibilidade de
fornecer duas explicações ao acontecimento sobrenatural e, em
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consequência, o fato de que alguém devesse escolher entre ambas‖
(idem, p.32). Observa-se, portanto, que o leitor implícito deve
integrar-se à narração, e hesitar junto com o personagem diante de
um fato aparentemente sobrenatural.
A hesitação, portanto, é a essência do fantástico na narrativa
ficcional, e surge como um efeito decorrente de:
(...) um acontecimento que não pode ser explicado
pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele
que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos
sentidos, de um produto da imaginação e nesse
caso as leis do mundo continuam a ser o que são;
ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta
realidade é regida por leis desconhecidas para nós.
(TODOROV, 2007, p.30)
O fantástico ocorre nesse momento de hesitação do
personagem e do leitor em relação ao caráter ―sólito‖ ou ―insólito‖
daquilo que é narrado. Em outras palavras, mais do que a
sobrenaturalidade misturada à realidade, é necessária a dúvida.
O gênero, portanto, só se concretiza se tal hesitação não tiver
solução; se a ambiguidade causada se mantiver até o final da
narrativa. Se produzida somente ―durante uma parte da leitura‖,
temos ―o efeito fantástico‖ (TODOROV, 2007, p. 48), e não a
configuração completa do gênero. A presença desse efeito em partes
da narrativa funciona como um fator que nos leva a considerá-la
como de estatuto oscilante, transitando entre o estranho e o
maravilho.
O estranho, se mais próximo ao fantástico, apresenta
acontecimentos aparentemente sobrenaturais que ao final da
narrativa recebem uma explicação natural, ainda que tenham um
―caráter insólito‖ (TODOROV, 2007, p. 51). Quando puramente
estranho, temos o real colocado sob um espectro que provoca uma
reação de estranhamento ou de repugnância, tanto aos personagens
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quanto aos leitores. No maravilhoso, diferentemente, os
acontecimentos apresentam uma explicação propriamente
sobrenatural, isto é, não podem ser entendidos a partir de leis físico-
naturais, e ainda ―não provocam qualquer reação particular nem nas
personagens, nem no leitor implícito‖ (ibid, p. 60).
Quando, diante da incerteza, personagem ou leitor optam por
uma das duas explicações possíveis, natural ou sobrenatural,
estaremos no âmbito desses dois gêneros vizinhos ao fantástico.
O gênero, portanto, só se concretiza se a hesitação não tiver
solução, se a anfibologia causada por determinado acontecimento se
mantiver até o final; e citando Louiz Vax Todorov ressalta que ―a arte
fantástica ideal sabe se manter na indecisão‖ (TODOROV, 2007,
p.50). Felipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa
(1980) enfatiza que:
Só o fantástico confere sempre uma extrema duplicidade à ocorrência meta-empírica (...). A
ambiguidade resultante de elementos
reciprocamente exclusivos nunca pode ser desfeita até ao termo da intriga, pois, se tal vem a acontecer, o discurso fugirá ao gênero mesmo que
a narração use de todos os artifícios para nele a
conservar (FURTADO, 1980, p. 35-36).
A hesitação ou a ambiguidade, portanto, não é apenas uma
característica desse tipo de literatura, mas sua principal condição.
A NOITE NA TAVERNA SOB O PRISMA TODOROVIANO
Constituída por sete contos correlacionados, como uma
narrativa em moldura, a obra apresenta um ambiência lúgubre e
noturna. O primeiro e o último contos desenrolam-se na própria
taverna onde acontece uma orgia, de que participam os personagens
e os narradores dos outros contos, criando-se assim a atmosfera
ideal para o que virá a seguir: seis homens bêbados relatando
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histórias recheadas de promiscuidade, sexo ilícito, antropofagia,
necrofilia, sequestro, assassinatos bárbaros. Diferentemente dos
demais contos, estes são narrados por um narrador onisciente e
marcados pelo diálogo entre seis personagens: os cinco narradores,
Archibald, que aparece somente no primeiro conto, e Artur, que narra
a conclusão da história de Johann no penúltimo conto.
Mas é sobretudo o primeiro que parece preparar o ambiente
sombrio dos contos subsequentes, quando Archibald sugere aos
convivas que narrem contos fantásticos e sanguinolentos, ―como
Hoffmann os delirava ao clarão dourado de Johannisberg‖ (AZEVEDO,
2000, p. 567).
Cada um dos convivas conta a sua história. Verdade, sonho ou
alucinação, as ações narradas não apresentam quaisquer
acontecimentos inexplicáveis, e os poucos que aparecem são
facilmente naturalizados ao fim de cada narrativa. Por isso, propomos
que somente os contos ―Solfieire‖ e ―Gennaro‖ apresentam um
possível efeito fantástico advindos da ideia de morte e sobrevida.
Em ―Solfieire‖, o narrador relata que, numa noite escura e
chuvosa em Roma, vê uma sombra de mulher, ouve-a chorar e
segue-a pelo
labirinto das ruas (...) Aqui, ali, além eram cruzes
que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-
se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite. Não sei se adormeci, sei apenas que
quando amanheceu achei-me a sós no
cemitério. (AZEVEDO, 2000, p. 568 – o grifo é meu).
Nesse ponto começa a ser criada a atmosfera ideal do
fantástico: a suspeita, a hesitação. O cemitério é um lugar sombrio
que remete à morte. Achar-se a sós e à noite em um lugar como esse
gera desconforto não só ao narrador, mas também aos que o ouvem.
Na sequência de sua narrativa, Solfieire conta que, após uma
orgia, um ano depois do acontecimento supracitado, fora de si
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caminhou pelas ruas até o mesmo cemitério, ao encontro de um
caixão entreaberto. Ao ver a mulher adormecida, retira-a de dentro
do caixão, beija-a, despe-a. Ressalta que ela era como uma estátua.
O que se segue parece uma relação necrófila. A partir desse
momento, o leitor, bem como os ouvintes de Solfieire, têm a
impressão de que a morta revive a partir da volúpia causada pela
―paixão‖ do protagonista.
A cena fantástica é naturalizada quando retoricamente o
protagonista pergunta aos amigos boêmios: ―Nunca ouvistes falar em
catalepsia?‖ (AZEVEDO, 2000, p. 569) 32. É resolvida, portanto, a
questão da hesitação, ao se apresentar uma solução natural para o
fato. E, ao mesmo tempo, a escolha dessa solução ameniza a questão
moral e social da necrofilia. Assinale-se que o trabalho com temas
ligados à morte e à necrofilia são patentes na literatura de caráter
fantástico, pois a ―necrofilia toma pelo general a forma de um amor
com vampiros ou com mortos que voltaram a habitar entre os vivos‖
(TODOROV, 2007, p. 72)
No quarto conto, Gennaro engravida a filha do seu senhorio e
mestre, Godofredo Walsh. Ao se ver grávida, desamparada e não
correspondida por Gennaro, a menina provoca um aborto e adoece
profundamente. Em delírios, no seu leito de morte a jovem confessa
que matou o filho ainda por nascer: ―(...) Fui uma louca... Morrerei...
por tua causa... teu filho... o meu...vou vê-lo ainda... mas no céu...
Meu filho que matei... antes de nascer...‖ (AZEVEDO, 2000, p. 584)
Os dias após a morte de Laura são marcados pela traição de
Gennaro e Nauza, esposa do Walsh, e pela dor e loucura do pai da
moça, até o momento clímax:
(...) um tremor, um calafrio se apoderou de mim.
Ajoelhei-me, e chorei lágrimas ardentes. Confessei
32Essa pergunta subentende o horror que o relato deve ter causado aos
interlocutores de Solfieire, como também demonstra o conhecimento do
autor sobre o impacto que a cena poderia suscitar no seu público alvo.
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tudo: parecia-me que era ela que o mandava,
que era Laura que se erguia de entre os
lençóis de seu leito, e me acendia o remorso, e no remorso me rasgava o peito (ibid, p. 585- o
grifo meu).
Como vemos, há apenas uma sugestão de sobrenatural, ao se
insinuar a influência de Laura sobre seu pai após seu falecimento,
quando o protagonista diz que parecia ―que era ela que o mandava,
que era Laura que se erguia de entre os lençóis de seu leito” para lhe
acender o remorso (ibid, p.585)
O uso do verbo ―parecer‖ no pretérito imperfeito do indicativo
subentende um aspecto indutivo e ―introduz uma distância entre a
personagem e o narrador‖ (TODOROV, 2007, p. 44), mesmo se
tratando de um narrador-personagem. Portanto, a modalização
propicia a sugestão do sobrenatural, constituindo uma modalização
verbal que pede a intervenção do leitor para que preencha a lacuna
ali deixada. O verbo, portanto, introduz uma sugestão que não se
aprofunda no decorrer do conto, fazendo-se necessário que o sujeito
participe na construção do sentido do que é sugerido. Para um leitor
cético a sugestão passa por alto e a leitura encaminha-se para a
solução natural. Já um leitor com determinadas crenças religiosas
direcionaria provavelmente sua leitura para uma solução
sobrenatural. Caberá, portanto, ao leitor preencher esse vazio do
texto como lhe aprouver.
Os acontecimentos subsequentes conduzem o velho ao crime
passional. Tenta assassinar Gennaro e em seguida mata Nauza, sua
esposa, e se suicida; desfecho passional que se repetirá no conto
―Claudius Herman‖. Claudius ministra drogas à Duquesa Eleonora,
por quem se apaixonara, e mantém, noite seguidas, relações sexuais
com ela, até que resolve sequestrá-la. Quando Eleonora acorda num
quarto de estalagem, perplexa e sem saber o que acontecia, Claudius
lhe conta tudo o que havia feito e lhe propõe que abandone seu
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marido. Ela aceita a proposta, o que conduz a narrativa a um duplo
crime passional. O protagonista encontra
o leito ensopado de sangue e num recanto escuro
da alcova um doido abraçado com um cadáver. O cadáver era o de Eleonora, o doido (...) Era o
Duque Maffio (AZEVEDO, p. 600).
A tematização de situações moralmente condenáveis, como
estupro, sequestro e crime passional, configuram aspectos do campo
real, sem nenhuma presença de fatores que provoquem hesitação e
consequentemente o surgimento do efeito fantástico, o mesmo se
constatando nos demais contos; ―Bertram‖ e ―Johann‖.
No conto ―Johann‖, um jogo de bilhar faz com que o narrador e
seu adversário, Artur, se desentendam. É proposto um duelo armado.
Artur é atingido e, ao cair moribundo, aponta para seu bolso, de onde
Joahnn tira dois bilhetes e um anel. No segundo bilhete, havia a hora
e o endereço de um encontro: ―uma hora da noite na rua de... nº 60,
1º andar; acharás a porta abertas. Tua G.‖ (ibid, p. 604). O narrador,
então, resolve se passar pelo ―morto‖ e vai encontrar-se com a noiva
de Artur, passando com ela uma noite de amor. Ao sair do quarto da
moça, envolve-se numa briga e mata um homem, que depois
descobrirá ser seu irmão, o que o faz perceber que acabara de
cometer incesto seguido de fratricídio. A descoberta assombra o
narrador:
aquele homem (...) era do sangue do meu sangue – era filho das entranhas de minha mãe como eu –
era meu irmão: uma idéia passou ante meus olhos
como um anátema (...) abri a janela, levei-a até ali
(...) Era minha irmã! (ibid, p. 605)
As ações deste conto encaminham-nos ao conto final, intitulado
―Último beijo de amor‖. De volta à taverna, onde todos os convivas
estão caídos praticamente em coma alcoólico, uma mulher vestida de
negro adentra o recinto, procurando por um dos presentes. Diante de
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Artur, o reconhece como o seu amado, que acreditava estar morto.
Mas, ao ver Johann, seu rosto torna-se mais sombrio. Ela então o
mata. Nesse momento, o leitor descobre que se trata da mesma
mulher do conto anterior – a irmã violada se vinga. Volta-se para
Artur e se despede. Na sequência, Giorgia morre de forma
inexplicada, e Arthur suicida-se, cravando um punhal no peito.
Incesto, fratricídio, vingança, assassinato, suicídio, ações
moralmente condenáveis, mas que se dão no âmbito do mundo
natural. Apesar do estranhamento suscitado pela leitura dessas
narrativas, não há sobrenaturalidade misturada à realidade, e nem
mesmo hesitação diante de um acontecimento aparentemente
inexplicável.
A NOITE NA TAVERNA - FICÇÃO DE HORROR?
Como vimos, no estranho o real é colocado sob um prima que
provoca uma reação de estranhamento ou de repugnância, tanto nos
personagens quanto nos leitores. As obras pertencentes a esse
gênero costumam apresentar acontecimentos puramente explicados
pelas leis naturais, mas que de certa maneira causam impacto
semelhante ao de um texto fantástico. Isso ocorre também com a
literatura de horror, e segundo o próprio Todorov a pura literatura de
horror pertence a esse gênero:
O estranho realiza (...) uma só das condições do
fantástico: a descrição de certas reações, em particular o medo; está ligado unicamente aos
sentimentos das personagens e não a um
acontecimento material que desafie a razão. (TODOROV, 2007, p. 53).
Tendo em vista esse fato, é pertinente a relação estabelecida
entre o estranho e o horror, e assim vale considerar os aspectos de
recepção citados pelo ensaísta: ―(...) as cenas de crueldade, o gozo
no mal, o assassinato (...) provocam o mesmo efeito. O sentimento
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de estranheza parte, pois, dos temas evocados, os quais se ligam a
tabus mais ou menos antigos.‖ (ibid, p. 55). Observamos, com efeito,
que o ―sentimento de estranheza‖ por ele mencionado é o que
justamente parece acontecer em Noite na taverna.
A ―estranheza‖ que emana das narrativas de Noite na taverna é
comparável à dos acontecimentos de ―A queda da casa de Usher‖, de
Edgar Allan Poe. Murilo Gabrielli afirma:
Os acontecimentos narrados por Solfieri, Bertram,
Gennaro, Claudius Herman e Johann (...) são tão racionalmente explicáveis quanto a ressurreição de
Madelaine ou o desmoronamento da mansão
Usher. Contudo tamanhas e tão bizarras são as concidências que, como acontece em Poe, a
impressão resultante é a de um mundo
improvável, regido por uma casualidade estranhamente caprichosa (2004, p.68)
Esse sentimento de estranheza foi posto em evidência por
Antonio Candido, ao afirmar que a atmosfera criada pelo jovem autor
teria conseguido produzir ―(...) um mundo artificial e coerente, um
jogo estranho, mas fascinador, cujas regras aceitamos‖ (CANDIDO,
1981, v2, p. 189). Tal estranheza provoca um desconforto no leitor
que o atrai à leitura, um desconforto que se aproxima do medo, se
visto como um efeito de leitura.
Walpole inaugura uma tradição reflexiva sobre os efeitos
receptivos da literatura de horror, por levar em consideração o medo
como um efeito de leitura. Allan Poe, por sua vez, explicita que a
primeira consideração a ser feita antes da elaboração de uma obra de
tal gênero deve referir-se ao efeito que se deseja produzir no leitor.
Ambos os autores estavam menos preocupados com o enredo ou
outros elementos estruturais da narrativa, e muito mais em entender
como alguns fatores poderiam mobilizar o público alvo,
encaminhando-o a um clímax emocional, chocante ou apavorante.
208 Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 16, V. 16 (Jul.- Dez/2011) – ISSN 1806 -9142
Davi Roas, teórico contemporâneo do fantástico, vê o medo
como fator essencial aos gêneros que se desdobraram do gótico do
século XVIII, a saber, o fantástico romântico e as posteriores as
narrativas de horror . Diz ele:
El lector, como los personajes de la novela, es
enfrentado a unos fenómenos cuya presencia
excede toda capacidad de comprensión, y ante los cuales no cabe otra reacción que la sorpresa, la
duda y el temor. Y así, todo aquello que
representaban esos seres sobrenaturales (que podemos resumir en el miedo a la muerte ya lo
desconocido) se trasladará al mundo de la ficción ,
para seguir aterrorizando al hombre. Peró éste ya
no será un terror creído, sino un terror, como dije antes, gozado.
Lovecraft, por outro lado, fala-nos do medo do desconhecido
como algo inerente à constituição humana. As ―literaturas de horror‖
estão justamente relacionadas a esse sentimento de medo físico ou
psicológico e ao, desconforto que determinados temas podem
despertar no leitor – o medo do desconhecido ou a ocorrência de
eventos sobrenaturais que chamados pelo ensaísta de ―medo
cósmico‖33.
Quando consideramos Noite na Taverna a partir das premissas
de Lovecraft, observamos que a obra de Azevedo privilegia o que o
ensaísta chama ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖ 34 (LOVECRAFT,
2007, p. 16), uma produção superficial e inferior à primeira, ou seja,
33 É aquele que está relacionado com os resquícios da primitiva consciência
humana, suscetível a crenças em realidades obscuras e desconhecidas e à
margem do que se entende por natural. Neste, a incerteza e o perigo
seriam os catalisadores do medo e suas variações. ―Uma certa atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas do homem precisa
estar presente‖; ―atmosfera é a coisa mais importante, pois o critério final
de autenticidade não é a harmonização de um enredo, mas a criação de
uma determinada reação.‖ (LOVECRAFT: 2007, p. 17). King, por outro lado,
argumenta que ―o enredo sempre foi a virtude da história de horror‖ (KING: 2003, p. 197-8)
34 O simples assassinato ou apelos violentos em que o maior medo gerado
não é o medo do desconhecido ou do obscuro, mas da morte e da dor física.
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o ―medo cósmico‖, pois valoriza aspectos físicos e não sobrenaturais.
No entanto, o ensaísta afirma haver a possibilidade de somente parte
de uma obra ser capaz de produzir tal tipo elevado de medo:
(...) boa parte da obra fantástica mais seleta é
inconsciente, aparecendo em fragmentos
memoráveis espalhados por material cujo efeito
geral pode ser de molde muito diferente. (ibid, p. 17)
Em consonância com isso, encontramos na obra
alvarozevediana alguns pontos de incerteza em que possivelmente
haveria o dito ―medo cósmico‖. Por exemplo, em ―Solfieiri‖, quando a
jovem, que o leitor supunha morta, desperta, tem-se essa sensação
de sobrenatural, um leve medo cósmico – a incerteza que Todorov
chama ―efeito fantástico‖ (TODOROV, 2007, p. 48), até que o fato é
explicado natural e cientificamente como catalepsia.
Outro conto que suscita a mesma sensação é ―Gennaro‖,
quando o sobrenatural é apenas sugerido ao se insinuar a influência
de Laura sobre seu pai após seu falecimento.
Mas o que dizer dos contos que parecem privilegiar o que o
Lovecraft chama ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖? Stephen King
apresenta para as narrativas de horror três níveis de medo, ―em
função do caráter mais implícito ou explícito dos elementos que
utilizam para produzir o medo.‖ (FRANÇA, 2008, P.6), a saber:
―terror‖, horror‖ e ―repulsa‖. Este último conceito, que é mais
evidente em Noite na taverna, para nós, se aproxima do que
Lovecraft postulou como ―medo físico‖ ou ―horrível vulgar‖.
Mais do que o trabalho com monstruosidades e anormalidades,
a repulsa refere-se às sensações produzidas por cenas ou aspectos
repugnantes, cujas causas podem ser encontradas em coisas que não
são por convenção entendidas como tal. Trata-se de um nível mais
explícito de medo, que procura provocar no leitor algum tipo de mal-
estar físico ou de indignação moral. Em Noite na taverna, a repulsa
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não é física, mas sobretudo moral. A transgressão da moralidade é
evidente através dos temas tabus com os quais trabalha –
Antropofagia, necrofilia, incesto, fratricídio, crimes passionais, etc. –
que são apresentados sob uma perspectiva social de anormalidade.
Primeiro comentamos aqueles relacionados à morte a
decomposição humana. Para King ―a morte e a decomposição‖
tornam-se inevitavelmente horríveis e inevitavelmente um tabu‖
(KING, 2003, p. 111). Como para a grande maioria da humanidade a
morte é um mistério, constitui-se assim como o perfeito ponto de
pressão ―psicológica‖ (ibid, p. 64).
O trabalho com a ―morte e a decomposição‖ é evidenciado em
―Solfieiri" através da violação sexual do cadáver da moça.
Entretanto, o tema é abordado sob uma ótica romântica. A cena,
ambientada dentro de uma igreja, cria a imagem da donzela
adormecida, da virgem intocada e idealizada:
Preguei-lhe mil beijos nos lábios. Ela era bela
assim: rasguei-lhe o sudário, despi-lhe o véu e a capela como o noivo os despe a noiva. Era uma
forma puríssima; meus sonhos nunca tinham evocado uma estátua tão perfeita. Era mesmo uma
estátua: tão branca ela era. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de âmbar que lustra os mármores antigos. (AZEVEDO, 2000, p. 569)
O autor não só propõe uma brincadeira com ―a morte e a
decomposição‖, através da necrofilia, mas o faz com certo erotismo.
Um erotismo que permite que a cena não chegue a chocar tanto
quanto chocaria se o corpo já estivesse em estado de putrefação e se
não fosse amenizado pela catalepsia da moça, fatores que, no
entanto, não suavizam a tendência necrófila do protagonista, posta
em evidência quando ele a enterra sob seu leito.
Em ―Bertram‖ o medo da morte, o instinto de sobrevivência,
traz à tona outro tema controvertido que surge na última aventura
narrada pelo conviva – a antropofagia. Quando, após um naufrágio,
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restam em uma jangada somente três pessoas – o narrador, o
comandante e a mulher do comandante e amante do protagonista –
sem terem o que comer, decidem que um deles deve morrer: o
comandante. O narrador explica a sua atitude aos seus ouvintes,
alegando ser ―um fato velho e batido, uma prática do mar, uma lei do
naufrágio‖ (AZEVEDO, 2000, p.580), no intuito de justificar a prática
pela necessidade de sobrevivência. No entanto, em uma cena
posterior relata que, depois de alguns dias, as aves baixavam para
partilhar sua ―presa‖ (ibid, p. 581). Ao se referir ao corpo do
comandante como uma presa, o narrador alude à ferocidade humana
diante de situações extremas, ressaltando muito mais a
monstruosidade do ato do que a necessidade da sobrevivência.
Entretanto, o que pode ser considerado tabu: somente os
temas relacionados à ―morte e à decomposição‖? King faz um
comentário que nos permite ampliar as fronteiras das interdições
sociais de Noite na taverna:
Todo escritor de horror tem uma concepção clara – talvez até mesmo morbidamente hipertrofiada – de onde termina o país do socialmente (ou
moralmente, ou psicologicamente) aceitável e
começa o grande vazio demográfico do tabu.
(KING, 2003, p. 216)
Os temas ligados à sexualidade também estão presentes em
muitas questões que envolvem tabus, principalmente quando levam a
comportamentos passionais. Os contos ―Betram‖, ―Claudius Herman‖
e ―Johann‖, comentados anteriormente, exemplificam o trabalho com
o tema do tabu sexual.
Com exemplo vale citar a história de amor entre Bertram e
Ângela, primeira aventura do terceiro conto, por exemplo, expõe com
franqueza a temática passional. Para conseguir ficar junto ao amante,
Ângela mata o marido e o filho cruelmente. O impacto da cena do
assassinato é tão forte que leva o narrador a descrever o
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impressionante caráter frio, sanguinário e monstruoso do ato de uma
maneira que também impressiona o leitor. Vejamos:
Ela foi buscar uma luz, e deixou-me no escuro.
Procurei, tateando, um lugar para assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe a mão senti-
a banhada de umidade: além senti uma cabeça fria
como a neve e molhada de um líquido espesso e
meio coagulado. Era sangue... Quando Ângela veio com a luz, eu vi... era
horrível!...O marido estava degolado.
Era uma estátua de gesso lavada de sangue... Sobre o peito do assassinado estava uma criança
de bruços. Ela ergueu-a pelos cabelos... Estava
morta também: o sangue que corria das veias
rotas de seu peito se misturava com o do pai! (AZEVEDO, 2000, p. 573)
A atitude dessa mulher transgride não só o sexto mandamento
bíblico – ―não matarás‖ –, como adentra os limites do socialmente
considerado monstruoso, ao matar o próprio filho para a obtenção do
prazer sexual. Presenteia o seu amante com o crime, com a morte e
o sangue daqueles que constituíam o principal obstáculo à plenitude
daquele amor, antes ―apenas‖ imoral e proibido, e agora,
monstruoso. As reticências entre as frases demonstram a hesitação
do narrador em continuar a narração por não crer no que via, até
que, finalmente, conclui com o detalhe mais horrível da cena: ―o
sangue que corria das veias rotas de seu peito se misturava com o do
pai!‖ (AZEVEDO, 2000, p. 573).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Qual a relação, portanto, que encontramos entre o efeito
fantástico, o medo cósmico e o terror em Noite na taverna? O gênero
fantástico, segundo Todorov, está atrelado à incerteza dos
acontecimentos. Se o narrador opta por uma saída natural ou
sobrenatural para explicar os fenômenos descritos, entramos em
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outros dois gêneros, o estranho ou o maravilho. São gêneros que se
sobrepõem, além de apresentarem estreita relação estrutural no que
tange ao seu caráter insólito, e às diferenças entre ambos só se
configuram mediante a apresentação da explicação dos
acontecimentos.
A hesitação momentânea – o efeito fantástico – não
configuram o gênero, mas constituem um elemento que nos leva a
considerar o fantástico de Noite na Taverna como de existência
oscilante, transitando entre o maravilhoso e o estranho. Todorov
argumenta que poucas são as obras que conseguem manter a
incerteza, como A volta do parafuso, de Henry James (TODOROV,
2007, p. 48-50). No entanto, um grande número de obras consegue
manter essa ambiguidade durante um trecho ou mais do enredo. O
ensaísta cita, por exemplo, os contos ―A queda da casa de Usher‖ e
―O Anjo Bizarro‖, de Edgar Allan Poe, e o romance O caso dos dez
negrinhos, de Agatha Chistie, os quais considera como obras ―metas-
estranhas‖ (ibid, p. 54), em que
(...) as cenas de crueldade, o gozo no mal, o assassinato que provocam o mesmo efeito. O
sentimento de estranheza parte, pois dos temas evocados, os quais se ligam a tabus mais ou menos antigos. (ibid, 2007, p. 55)
A Noite na taverna como um todo se ajusta mais plenamente
ao estranho do que ao fantástico, tendo em vista que somente os
contos ―Solfieiri‖ e ―Gennaro‖ apresentam um possível efeito
fantástico. A ausência de hesitação nos demais contos exclui a
possibilidade de classificar a obra no seu conjunto como uma
narrativa fantástica segundo a visão todoroviana.
Mas se levarmos em conta o fato de que a obra mobiliza o leitor
através de questões sociais, causando-lhe uma sensação de
estranheza e desconforto, que entendemos como repulsa moral,
confirmamos a hipótese levantada no início deste artigo: Noite na
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Taverna pode ser considerada como uma narrativa de horror segundo
as premissas de Stephen King. Assim, concordamos com Cilaine
Alves, umas das maiores estudiosas de Álvares de Azevedo na
atualidade, quando afirma que a obra ―foi a precursora, no Brasil, da
narrativa de horror, ambientada em lugares sombrios.‖ (ALVES,
2004, p. 119).
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