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BARTHES E O ENSINO
Mariana Killner Orientadora: Profª. MS. Laura Taddei Brandini
RESUMO
A presente comunicação se insere no projeto “A recepção à obra de
Roland Barthes no Brasil”, de responsabilidade da profa. Me. Laura Taddei Brandini e tem como objetivo desenvolver um breve estudo sobre a recepção da obra do autor francês. Dentro do projeto, após discussões e resenhas de textos de Barthes, os orientandos têm como tarefa analisar um texto crítico sobre o escritor Francês, que integra a coletânea de ensaios Viver com Barthes. Nesta comunicação, apresentarei minhas primeiras reflexões acerca dos temas literatura e poder e explicitarei minhas análises sobre como estes dois temas e alguns outros que permeiam a obra de Roland Barthes podem contribuir para se pensar o ensino e a prática de aula de forma reflexiva. Palavras chave: Roland Barthes; crítica literária; estudos de recepção; pensamento crítico.
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Introdução
Além de perceber a importância das ideias do escritor francês
Roland Barthes para a atualidade e para os estudos acadêmicos, o que nos
motivou a escrever este texto foram as discussões de conceitos propostos por
ele sobre ensino, leitura, leitor, autor e construção do sentido do texto.
Barthes acrescentou muito à teoria literária e suas ideias estão
enraizadas em nosso modo de pensar. Estudando sua obra, constatamos que
suas ideias foram significativas para construir nosso pensamento sobre o papel
do leitor na compreensão dos sentidos do texto (pensamento, este, inovador,
visto com maus olhos na década de 1960). Além disso, seus estudos
contribuíram para consolidar os estudos de várias áreas do conhecimento,
como Tradução (O prazer do texto), Jornalismo e Filosofia (O óbvio e o
obtuso), Fotografia (A câmara clara), e até mesmo a Moda (O sistema da
moda), tamanha a pluralidade de suas contribuições enquanto estudioso.
Outro aspecto motivador e de admiração foi seu perfil visionário.
Barthes enxergava além de seu tempo, propondo várias teorias que geraram
polêmica na época em que escrevia, mas que hoje são aceitas e estudadas no
Ensino Médio. Podemos perceber um exemplo disso ao analisarmos obras
literárias de diferentes maneiras, ou seja: hoje, sabemos que cada um pode
contribuir com sua leitura na interpretação do texto, o que é enriquecedor. E
que o texto só existe, acontece, com o leitor. Mas, antes das contribuições de
Barthes e de outros, por exemplo, Umberto Eco, não se enxergava, no ensino
regular, a possibilidade de pluralidade de sentidos do texto.
Nos anos 50, o autor propôs uma mudança na maneira com a
qual a sociedade via a linguagem. Até o século XVIII, a sociedade
clássicoburguesa da época via na palavra um instrumento de adorno. No
século XIX, a linguagem era expressão. Barthes, por outro lado, vê a
linguagem como signo e verdade. Assim, ele propõe que pensemos a
linguagem em seus múltiplos sentidos, já que “tudo o que é tocado pela
linguagem é questionado: a filosofia, as ciências humanas, a literatura”.
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(BARTHES, 2007, p. 211). Além disso, Barthes propõe que consideremos
todas as possibilidades de interpretação de um texto, para que este esteja
aberto às contribuições de sentido do leitor.
Desenvolvimento
O estudo das obras de Barthes tem ampliado nossa visão de
mundo e a percepção do todo que envolve a educação, que é um de nossos
objetos de estudo. Este estudo acrescentou e acrescentará muito às nossas
reflexões sobre a prática de aula, mas não somente com novas teorias e
saberes, mas propondo um questionamento acerca da imposição do status
quo, da importância de se estar aberto a ideias inovadoras e da quebra de
paradigmas.
Acreditamos que, mais ainda, como estamos imbuídos no meio
acadêmico e porque seguiremos esta carreira, devemos contribuir com nossos
estudos e constatações para influenciar novas gerações a pensar o ensino de
forma reflexiva, dividindo nosso saber e crenças com os alunos em formação.
Assim, concordamos com o autor em vários aspectos, e
principalmente quando pontua que “uma obra é eterna não porque impõe um
sentido único a homens diferentes, mas porque sugere sentidos diferentes a
um homem único, que fala sempre a mesma língua simbólica através dos
tempos múltiplos: a obra propõe, o homem dispõe." (Ibidem, p. 212)
Entre tantos conceitos-chave que encontramos nas obras lidas
(Roland Barthes: o saber com sabor, de Leyla Perrone-Moisés, Roland
Barthes: uma biografia, de Louis-Jean Calvet, O prazer do texto, Aula e Crítica
e Verdade, os três últimos de Roland Barthes), há outro que merece destaque:
a definição de Barthes sobre o conceito de poder.
Segundo o autor, “as relações de poder acontecem em qualquer
âmbito, são intrínsecas ao homem, mesmo onde parecem não existir”. Isso se
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deve porque o poder é intrínseco à língua, já que a língua que permeia o
ensino não é livre, “pura” de poder. (BARTHES, 1992, p. 10)
Quando utilizamos a língua, devemos fazer escolhas a todo o
momento. Devemos escolher, por exemplo, se usamos masculino ou feminino,
singular ou plural, não podendo optar pelo neutro. Assim, concordo com
Barthes quando diz que utilizar a língua, falar, é sujeitar-se.
Acreditamos que, com relação ao ensino, o poder não é
somente político, mas ideológico. E está presente nos diferentes níveis de
intercâmbio social, desde relações mais simples e inimagináveis, como nos
esportes, nas relações familiares, até contextos mais eruditos, como nos
espetáculos, nas informações. Ou seja, devemos refletir que o poder está
presente em todas as relações. Essa imposição acontece em todos os
ambientes, nas falas ou ações de representantes (professores) que impõem
sua ideologia, seu credo, em nome do poder que exercem sobre outrem.
Podemos também pensar em outras imposições, como as de líderes religiosos,
políticos etc.
Assim, refletir sobre essa relação entre língua e poder nas
leituras das obras de Barthes é frutífero para que enxerguemos o mundo de
maneira crítica e encontremos alternativas para combater a imposição do
poder.
Em seu livro Aula, Barthes mostra, contudo, que o combate a
esse poder não é simples e pontual, já que as relações de poder são plurais, e,
por isso, resistentes. Isso acontece porque o poder está em toda parte, e,
principalmente, porque está ligado à história do mundo, à história da palavra.
Assim, o uso da linguagem institui uma relação de sujeição. Para o autor, o
professor não deve se sujeitar a um saber pronto, dirigido, pois, como vimos,
por trás da língua e da linguagem está o poder. Ou seja, o poder plural e
onipotente de que se fala é a língua e está na linguagem.
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Nesse sentido, para combater este poder imposto pela língua e
pela linguagem, promovendo a liberdade no ensino, essencial na relação com o
saber, Barthes propõe uma discussão acerca da importância da Literatura. Ele
acredita que ela é a única alternativa para esquivar-se do poder da língua, pois
“Nela” a língua encontra-se despida de poder.
Assim:
“[...] só resta [a nós], por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”. (BARTHES, 1992, p. 16).
A partir da constatação de sua concepção de linguagem, que
permeia toda a sua obra, podemos refletir sobre o trabalho do professor, sujeito
crítico e ativo no mundo, que tem a linguagem como instrumento de trabalho.
Por meio da linguagem, que o professor utiliza dia a dia, ele
pode motivar os alunos a questionarem a ordem imposta, ou seja, a hierarquia
por trás das relações de poder no âmbito escolar e também em outros meios
pelos quais circula, para que possam, também, os alunos, perceber a relação
de poder e linguagem e, assim, agir criticamente.
Quando Barthes compara, ainda em seu livro Aula, a excursão
como resposta para a imposição do ensino, ele diz que é o processo o que
realmente importa no ensino, ou seja, o “desenrolar das idas e vindas de um
desejo”, que o aluno apresenta e representa sem fim. (Ibidem, p. 44). E este
pensamento deve ser direcionado pelo professor, principalmente por meio de
suas ações em sala.
Para Barthes, no texto “Au seminaire”, a educação tem três
práticas. A primeira é o ensino, transmitido pelo discurso (oral ou escrito). A
segunda, o aprendizado, a transmissão de uma competência em que o
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aprendiz se introduz e o mestre não tem discurso, só mostra ou se vale de
dêiticos. E a terceira, a maternagem, a sustentação, o desejo de fazer que o
outro atinja seu objetivo. Essa prática envolve a afetividade.
Quando o professor mostra algo a seus alunos, não pode evitar
certa superioridade. De todo jeito, essa oportunidade de ser “superior” vira
autoridade. Assim, uma forma de parar este movimento, essa dominação, é o
estudo da Literatura.
Segundo o autor, a Literatura também tem três características:
uma delas é que ela assume muitos saberes. Em uma mesma obra, podem ser
encontrados conhecimentos diversos (histórico, geográfico, social, político etc.).
Pode-se ter como exemplo a obra Grande Sertão: Veredas, de João
Guimarães Rosa. Quando lemos obras literárias como essa, apreendemos o
saber em seu sentido plural, e não só linguístico. Aprendemos, inclusive, sobre
Geografia (quando o autor descreve o sertão), História (ao entendermos as
guerras e conflitos na região), sociologia (a relação dos homem entre si e com
a natureza). Assim, a Literatura contempla, ao mesmo tempo, variados campos
do conhecimento. Ela amplia nossa visão de mundo e nosso conhecimento em
diversas áreas do saber.
Para Barthes, todas as ciências estão presentes na obra
literária. E ainda: “a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre
atrasada ou adiantada com relação a esta [...]. A ciência é grosseira, a vida é
sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa”. (Idem, p. 19)
Assim, podemos pensar que há obras que preveem o que pode
acontecer na realidade. Um exemplo a ser citado é a obra Futility or The Wreck
of The Titan (Futilidades, tradução nossa), escrita em 1898 por Morgan
Robertson, que conta a história de um grande navio que se chocou a um
iceberg. Esta história literária conta a história real do Titanic, acontecida em
1912, e que conhecemos tão bem.
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Conclusão
Em nossas leituras sobre o livro Aula, obra que norteia estas
reflexões, e em outras obras do autor, que estão citadas nas referências
bibliográficas deste trabalho, constatamos que ele põe a Literatura, ainda, em
vantagem perante a ciência e a vida. Ele pontua sua importância em nossas
relações, de onde apreendemos o quanto ela é essencial para o ensino. Por
isso acreditamos que, como professores, seu estudo pode contribuir para um
ensino reflexivo e não alienado às imposições da linguagem.
O autor não entende por Literatura apenas um “pacote de obras
literárias” e/ou os estudos de suas vertentes ou escolas (Romantismo,
Parnasianismo etc.), nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas sim
a prática da escritura, ou seja, a prática da escrita literária, intransitiva. (Ibidem,
p. 21).
Barthes escreve também que o gosto pela escritura e pela
análise do texto promove a “verdade do desejo”, que está inteiramente
relacionada à liberdade. Para ele, não existe só uma língua ou linguagem, mas
várias. Assim, Machado de Assis não é mais importante do que Guimarães
Rosa e não há comparação entre as obras, pois todas nos acrescentam algo
novo. Seguindo a liberdade ou a verdade do desejo para a linguagem
acontecer, uma linguagem não reprime a outra, mas elas coexistem.
Para ilustrar este exemplo, citarei um trecho da obra Pantagruel,
de François Rabelais, mais precisamente o capítulo IX, que discorre sobre a
“impossibilidade” de comunicação entre as pessoas. Neste livro, um dos
personagens, Panurge, utiliza-se de várias línguas, estrangeiras ou inventadas,
que não o francês, para se dirigir ao gigante Pantagruel, personagem principal
da narrativa.
Após inúmeras súplicas de Panurge (em línguas estrangeiras)
por comida, Pantagruel pergunta a ele “Meu amigo, eu não duvido que você
saiba falar diversas línguas. Mas diga-nos o que deseja em uma língua que
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possamos compreender.” (RABELAIS, 1997, p. 101, tradução nossa). Ao que o
personagem ainda insiste em responder em outras línguas. Assim, o gigante
lhe diz “Ei, meu amigo, você não sabe falar o francês?” (Idem, p. 103). E
responde Panurge, “Sim, muito bem. Graças a Deus! É minha língua de origem
e materna, porque nasci e fui criado em minha juventude no jardim da França”.
(Ibidem, p. 103)
Ao lado desta situação um tanto cômica descrita nos trechos
citados, há uma crítica ao uso exagerado da aprendizagem e conhecimento
das línguas para não se chegar a lugar algum. Ou seja, não há utilidade em se
empregar ou falar línguas distintas da língua comum entre as pessoas. No
romance de Rabelais, a língua materna de Panurge é a mesma de Pantagruel.
Assim, para o autor Michel Viegnes, “o cômico rabelaisiano é
ligado a uma utilização extremamente original e eficaz da língua”. (2003, p. 61) 1. Portanto, Rabelais se utiliza da metalinguagem para falar da língua, não
subvertendo ao poder da língua, mas, ao contrário, buscando uma forma de
ironizá-lo por meio da própria linguagem em sua obra literária.
Para Jean-Charles Monferran, o autor de Pantagruel é “Criador
de uma língua original e de um francês ‘ilustre’, Rabelais é também de maneira
quase natural, intrínseca, um autor que reflete sem cessar em suas aberturas à
linguagem”. (2011, p. 70) 2. E ainda, “É que o romance de Rabelais constitui
um vasto laboratório linguístico que unifica tudo, que procura, sem
exclusividade, e de todas as maneiras, testar a linguagem. Ao lado daquilo que
é propriamente criação verbal e invenção, Rabelais recupera também as
palavras raras e perdidas, as palavras dialetais ou técnicas”. (Idem, p. 71) 3.
1 Le comique rabelaisien est d’abord lié à un usage extrêmement original et puissant de la langue.”. (p. 61) 2 “Créateur d’une langue originale et d’un français ‘illustre’, Rabelais est aussi de façon presque naturelle un auteur qui réflichit sans cesse dans ses ouvrages au langage.”. (p.70) 3 “ C’est que le roman rabelaisien constitue um vaste laboratoire lingusitique qui prend son bien partout, qui cherche, sans exclusive et par tous les moyens, à essayer le langage. À côté de ce qui est proprement création verbale et invention, Rabelais recense aussi les mots rares ou perdus, les mots dialectaux ou techniques. ”. (p. 71)
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Para Barthes, a pluralidade de linguagens enriquece a visão de
mundo de uma sociedade, mesmo que utópica. Portanto, língua e linguagem
são indivisas, já que deslizam segundo o mesmo eixo de poder. Elas persistem
uma sob a outra, ou seja, uma não acontece sem a outra.
Para nós, professores e alunos, é importante pensar a aula, o
ensino, como uma forma de apresentar um discurso sem se impor, para não
sucumbirmos a esse poder da língua, já que são as “formas discursivas através
das quais o ensino é proposto” que podem ser extremamente opressivas no
ensino. (BARTHES, 1992, p. 43).
Para mudar a ordem do ensino, o professor deve, no momento
de decidir sobre o sentido de sua viagem (sua aula), desviar do lugar que os
alunos, a sociedade o esperam, para dar lugar à compreensão, à construção
de seu pensamento. Para Barthes, o professor deve figurar um pensamento
livre das sujeições e imposições sob a forma de uma linguagem que só
obedece a seus desejos. Pois é através de um saber reflexivo, com base na
autonomia do aluno (e nunca pronto, dirigido) que o ensino deve acontecer.
A prática de aula, para Barthes, reflete um saber guiado pelo
desejo do professor, que incita a liberdade dos alunos pela prática de sua
própria prática de ensino.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1992. ______. A câmara clara. Tradução de Júlio Catanon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. ______. Crítica e Verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, 1973. ______. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Tradução de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. ______. O prazer do texto. Tradução de Jaco Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. ______. “Au seminaire”. In: O rumor da Língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1998. ______. O sistema da moda. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2009. CALVET, Louis-Jean. Roland Barthes: uma biografia. Tradução de Maria Ângela Villela da Costa. São Paulo: Siciliano, 1993. CASANOVA, Vera; GLENADEL, Paula (org). Viver com Barthes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. MONFERRAN, Jean-Charles. “Un ouvroir de langues potentielles”. In: Magazine Littéraire. Paris, Sep. 2011. n. 511. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes: o saber com sabor. São Paulo: Brasiliense, 1983. RABELAIS, François. Pantagruel. Tradução de Marie-Madaleine Fragonard. Paris: Pocket, 1997. ROBERTSON, Morgan. Futility or The Wreck of The Titan. La Vergne: Lightning Source, 2007. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. VIEGNES, Michel. Pantagruel, Gargantua. Paris: Hatier, 2003.
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