anais do 2º cha - 2012
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ANAIS DO 2º COLÓQUIO DE HISTÓRIA E ARTE – 2012 – UFRPE - ISBN: 978-85-7946-128-6 2
2º Colóquio de História e Arte
História, arte e religiosidade nos
caminhos da educação
REALIZAÇÃO:
DEHIST / UFRPE GEHA
APOIO:
ANAIS DO 2º COLÓQUIO DE HISTÓRIA E ARTE – 2012 – UFRPE - ISBN: 978-85-7946-128-6 3
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
Reitora: Maria José de Sena
Vice-reitor: Marcelo Carneiro Leão
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
Diretor: Paulo Donizéti Siepierski
Vice-diretor: Marcília Gama
CORDENAÇÃO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA
Coordenador: Tiago de Melo Gomes
GEHA – GRUPO DE ESTUDO EM HISTÓRIA DA ARTE
Coordenador: Paulo Donizéti Siepierski
Site: www.ufrpe.br
Blog do evento: www.2coloquiodehistoriaearte.blogspot.com.br
2º COLÓQUIO DE HISTÓRIA E ARTE – 2012
Coordenador Geral: Paulo Donizéti Siepierski
COMISSÃO ORGANIZADORA:
Mayara Tiné da Silva
Pallomma Darmmenie Melo
Hélder Isidio
Lindembergue F. Santos (Coordenador Geral da
C.O)
Marcílio Tenório
EDITORAÇÃO:
Lindembergue Francisco dos Santos
SECRETARIA:
Hélder Isidio
TESOURARIA:
Lindembergue F. Santos
Mayara Tiné da Silva
ANAIS DO 2º COLÓQUIO DE HISTÓRIA E ARTE – 2012 – UFRPE - ISBN: 978-85-7946-128-6 2
COMISSÃO CIENTÍFICA:
Paulo Donizéti Siepierski - UFRPE
Suely Cristina Albuquerque de Luna - UFRPE
Wellington Barbosa da Silva - UFRPE
COORDENAÇÃO DE MONITORIA:
Marcílio Tenório
Mayara Tiné da Silva
COORDENAÇÃO DA I MAP
Pallomma Darmmenie Melo
MONITORES DA UFRPE
Alexandre Jorge Gomes da Silva
Artur Filipe da Silva Barros
Déborah Roberta Santiago Chaves
Diogo Xavier Gonçalves
Felipe de Souza Henning
Gabriela Borba de Lima
Geandro Soares Barbosa
Ingrid Danubia Silveira França
Jacqueline Santos Valença
Jéssica Rocha de Sousa
Karla Fernanda Falcão Rodrigues de Fraga
Maria Girlane Negreiros
Olívia Tereza Pinheiro de Siqueira
Polliana de Morais Mariano
Priscyla Pereira de Souza Leal
Richardison Guedes Pereira
Romero Santos Cândido da Silva
Sílvio Ricardo Gouveia Cadena
Vaneska Ferreira de Azevedo
Vanessa de Melo Sousa
ANAIS DO 2º COLÓQUIO DE HISTÓRIA E ARTE – 2012 – UFRPE - ISBN: 978-85-7946-128-6 3
Anais do
2º Colóquio de História e Arte
História, arte e religiosidade nos caminhos da educação
Recife – PE
2012
4
Copyright © 2012 - GEHA - UFRPE
ISBN: 978-85-7946-128-6
Projeto Gráfico e Ilustração: Lindembergue F. Santos
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
É proibida a reprodução total ou parcial,
de qualquer forma ou por qualquer meio.
A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998)
é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal.
Dados de Catalogação na Publicação
Biblioteca Central - UFRPE - Universidade Federal Rural de Pernambuco
O CONTEÚDO E REDAÇÃO DOS RESUMOS AQUI REUNIDOS
É DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES.
C713a II Colóquio de História e Arte (2012: Recife, PE).
Anais [do] II Colóquio de História e Arte, Recife, PE, 21 a 25
de maio de 2012. -- Recife: EDUFRPE, 2012.
1 CD-ROM
ISBN: 978-85-7946-128-6
455 p.
1. História 2. Arte 3. Interdisciplinaridade I. Título
CDD 901
5
SUMÁRIO
Apresentação 06
Artigos completos 07
I MAR – Resumos 241
Resumo de Mini-cursos 329
Resumo de Simpósios 334
Mesas Redondas 345
6
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Estudo em História da Arte da Universidade Federal Rural de
Pernambuco - UFRPE, juntamente com o Departamento de História da Universidade Federal
Rural de Pernambuco - UFRPE, pessando na contrução de uma história com outros olhares,
nessa 2ª edição do evento resolvemos trabalhar, após seleção pública, as questões
relacionadas a arte e a religiosidade, tendo como pano de fundo a educação, motivo pelo qual
estamos na construção de mundo diferente e melhor.
História, arte religiosidade nos caminhos da educação, esse foi o pricipal viés para
nosso trabalho. Com muita felicidade recebemos grande número de pesquisadores,
graduandos, mestres e mestrando, doutores e doutorando e pos doutores para assim construir
algo novo.
Para tanto deixamos nosso abraço e parabéns a todos que aqui passaram.
Recife, maio de 2012
Comissão Organizadora
8
SIMPÓSIO:
Literatura, música e cinema: Novos objetos e
novas fontes da pesquisa histórica
Coordenador:
ALBERON DE LEMOS GOMES – Doutorando - UFPE
JOSÉ RODRIGO DE ARAÚJO SILVA – Mestrando - UFPB
A BALANÇA DA (IN)JUSTIÇA EM O PAÍS DE SÃO SARUÊ: ENTRE A FÉ E O
CAPITAL
André Fonseca Feitosa*
Palavras-chave: cinema, história, Vladimir Carvalho, Cinema Novo, documentário.
INTRODUÇÃO
Este artigo analisa a representação do conflito de classe entre plantadores de algodão
e donos de terra, em uma sequência do documentário O País de São Saruê (1971) do cineasta
paraibano Vladimir Carvalho. Nela se opõe uma imagem de São Miguel Arcanjo a uma
balança rústica utilizada para medir a produção desses trabalhadores. Discutiremos como
essas imagens articulam discursos sobre a desigualdade social no sertão, pela ressignificação
de um símbolo cristão, para criticar a exploração do homem pelo homem.
Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha foi um marco importante da construção do
imaginário sobre o sertão. No livro o sertanejo aparece como uma figura de cunho forte,
místico e primitivo, inserida em um ambiente inóspito, devendo ser buscado nele um símbolo
da essência nacional. Essas imagens perpassaram pela literatura e pelo pensamento intelectual
brasileiro chegando às décadas de 1960 e 1970. Elas encontraram grande adesão por diversos
*Licenciado e mestrando em história pela UFPB.
9
artistas e intelectuais desse período dotados de uma posição política que Ridenti chamou de
―romantismo revolucionário‖1.
No pensamento intelectual – no qual se atribui lugar, também a obra de Euclides da
Cunha –, teremos expoentes como Djacir Menezes, Outro Nordeste (1937) que se diferencia
da visão do Nordeste açucareiro descrito por Freyre ao abordar a área semiárida, Bastide,
Brasil de Contrastes (1957) e Celso Furtado, Operação Nordeste (1959). Embora haja
sensíveis diferenças entre esses autores, temos elementos comuns que pretendem caracterizar
o sertão pela questão físico-geográfica (clima, solo), o misticismo religioso, o atraso da região
e distribuição desigual de riquezas. Bastide (1978) escreve sobre um Brasil de contrastes que
se mostra, dentre outras formas, pela diferença entre o Nordeste açucareiro e o Nordeste seco:
Não se pode imaginar contraste mais violento do que o existente entre as
duas regiões. De um lado, a terra escura, pegajosa, úmida, cavada de
sulcos embebida de água, com árvores frutíferas, mangueiras, laranjeiras,
canaviais, rios limosos. De outro lado, um caos de pedras cinzentas
cravadas em desordem no chão de argila seca, rachado pelo sol, e vastas
extensões de areia ardente.2
Já Celso Furtado, ao construir um projeto de modernização para o país, vê uma rede
econômica que desprivilegia o Nordeste em favorecimento do Sul3. Nesses autores, aquelas
características de um Nordeste euclidiano permanecem. É nesse contexto de permanências e
de discussões que se insere o filme, porém agora dialogando com o projeto e ideias do Partido
Comunista Brasileiro4 que circulavam nos meios intelectuais e artísticos do período.
Por fim, cabe ressaltar as contribuições de Oliveira, Silveira e Albuquerque Jr. para
esse debate. Nos dois primeiros, a abordagem acerca da desigualdade regional nordestina é
colocada como fruto do próprio desenvolvimento capitalista brasileiro5. Já Albuquerque Jr,
em outra perspectiva, discute como se formaram as matrizes de discursos sobre o Nordeste,
dentre as quais identifica uma visão da região que chama de território da revolta: um
1 RIDENTI, M. Em Busca do Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p.24. 2 BASTIDE, Roger. Brasil, Terra de Contrastes. 8ª ed. Rio de Janeiro: Difel, 1978, p.86.
3 FURTADO, Celso. ―Operação Nordeste‖. In: FURTADO, Celso. A Saga da Sudene: (1958-1964). Rio de
Janeiro: Contraponto, 2009. (original de 1959). (Arquivos Celso Furtado; v3), p.47. 4 RIDENTI, M. Em Busca do Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro:
Record, 2000. p.66; p.72. Ridenti chega a falar em hegemonia cultural de esquerda. 5 PENNA, Maura. O que faz ser Nordestino: identidades sociais, interesses e o "escândalo” Erundina. São
Paulo: Cortez, 1992, p.28.
10
Nordeste de miséria e injustiça social, mas também de utopias; ideário elaborado sob forte
influência do pensamento marxista6.
Esses discursos articulavam ideias de um Nordeste atrasado que era obstáculo para a
modernização e desenvolvimento brasileiros. Se Celso Furtado pretendia resolver essa
questão pelas reformas do estado – elaborando seu plano de ação para o desenvolvimento do
Nordeste –, já no pensamento pecebista essa modernização levaria à proletarização do campo,
permitindo a revolução social. Assim, embora houvesse proximidades em seus discursos do
atraso e da modernização, também havia diferenças quanto ao tipo de processos políticos e
sociais que queriam para o país. Tais discursos eram parte daquela cultura histórica, tornando
possível a construção de O País de São Saruê, pela apropriação de discursos sobre os
conflitos de classe e de modernização da região sertaneja.
MATERIAL E MÉTODOS
Para Chartier, trabalhar com representação é buscar entender ―matrizes de discursos
e práticas diferenciadas (…) que têm por objetivo a construção do mundo social, e como tal a
definição contraditória das identidades – tanto a dos outros como a sua‖7. Já o conceito de
apropriação visa uma ―história social das interpretações, remetidas para as suas determinações
fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que
as produzem‖8. Através desses conceitos discutimos como o filme mobiliza discursos
(apropriação) e produz um olhar sobre a realidade (representação).
Outro conceito que utilizamos é o de cultura histórica. Élio Flores define assim:
Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar
historicamente que estão aquém e além do campo da historiografia e do
cânone historiográfico. Trata-se da intersecção entre a história
científica, habilitada no mundo dos profissionais como historiografia,
dado que se trata de um saber profissionalmente adquirido, e a história
sem historiadores, feita, apropriada e difundida por uma plêiade de
intelectuais, ativistas, editores, cineastas, documentaristas, produtores
6 ALBUQUERQUE, Jr., D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 5.ed. São Paulo: Cortez, 2011, p. 237.
7 CHARTIER, R. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro:
Bertrand, 1990, p. 18. 8 Idem. 1990, p. 26-27
11
culturais, memorialistas e artistas que disponibilizam um saber histórico
difuso através de suportes impressos, audiovisuais e orais.9
Esse conceito nos permite pensar o O País de São Saruê enquanto uma fonte que,
apesar de se constituir fora do campo historiográfico, também elabora um discurso que
dialoga com a historiografia e contribui para a constituição da cultura histórica sobre a região.
Segundo Marc Ferro, o cinema tem um caráter de agente histórico, sendo utilizado
para intervir na História desde que se tornou arte. Os cineastas, conscientes ou não, estão ―a
serviço de uma causa, de uma ideologia‖, mesmo reconhecendo que ―isso não exclui o fato de
que haja entre eles existência e duros combates em defesa de suas próprias idéias‖10
. `Para ele
a linguagem cinematográfica não é inocente e deve ser analisada pelo historiador, a fim de
trazer significados do uso dessa linguagem: a escolha de um plano, a montagem e outros
aspectos estéticos, fornecem informações importantes sobre a construção discursiva fílmica.
Em síntese, Ferro identifica que o cinema participa dos conflitos sociais, através de uma
análise social que cria e autoriza.
O País de São Saruê é um documentário. Tal gênero goza de um status de
objetividade, servindo-se mais que a ficção da credibilidade oriunda do efeito de real11
da
linguagem cinematográfica. Bill Nichols afirma que, como outros discursos, o documentário:
reivindica uma abordagem do mundo histórico e a capacidade de
intervenção nele, moldando a maneira pela qual o vemos. Embora o
cinema documentário não possa ser aceito como um igual da
investigação científica (…) esse gênero ainda preserva uma tradição de
sobriedade em sua determinação de influenciar a maneira pela qual
vemos o mundo e procedemos nele12
Nichols pode ser articulado com o conceito de cultura histórica ao reconhecer uma
abordagem do mundo histórico através do documentário e sua diferença da investigação
9 FLORES, H. C. “Dos feitos e dos ditos: História e Cultura Histórica”. Saeculum – Revista de
História, João Pessoa, PPGH-UFPB, n.16 jan./jun. 2007, p. 83-102. p. 95. 10
FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p.16. 11 Rossini indica o efeito de real advindo da ―coincidência entre objeto representado (referente) e a sua
representação‖ característicos da linguagem cinematográfica. ROSSINI, Miriam de Souza. O lugar do
audiovisual no fazer histórico: uma discussão sobre outras possibilidades do fazer histórico. (p. 113-120) In:
LOPES, H; VELLOSO, M. P; PESAVENTO, S. J. História e Linguagens: texto, imagem, oralidade e
representações. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006. p.117. 12
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005, p.69.
12
―científica‖. Permite-nos diferenciar o caráter social atribuído à ficção e ao documentário: a
intenção de documentaristas13
, os quais, em geral, buscam representar ―fielmente‖ uma
realidade, para intervir nela; seu caráter ―objetivo‖ é também esperado pelos espectadores.
Tendo em vista estes autores, pensamos O País de São Saruê, a partir de uma
intencionalidade de intervenção no mundo social. Nele foi elaborado um discurso que se
baseou em ideias disponíveis no seu tempo. Apropriou-se, assim, de diversos discursos e
elaborou uma representação própria, em uma linguagem cinematográfica.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A sequência que nos interessa aborda a sobrevivência do plantador de algodão. Ela é,
inicialmente, narrada em voz over14
por um poeta cujo texto foi encomendado por Carvalho
para o filme. Ele descreve o duro trabalho do plantador de algodão, um ―labor infeliz‖. Evoca
―lutas de lusos‖ e ―massacres cariris‖, opondo as violências nessa terra às ―plumas
branquinhas, cor de giz‖, que ela devolve ao ar. Imagens mostram o branco algodão e a
colheita realizada por um casal. Nessa sequência, o homem está maltrapilho – com as roupas
rasgadas – enquanto colhe o algodão. Essa imagem reforça um efeito contraditório entre
produção (algodão) e consumo (as roupas velhas).
Em seguida, há um plano do casal chegando e entrando na sua casa de taipa. A
mulher carrega consigo uma gaiola com um pássaro. Diferentes planos mostram a casa,
chegando a um plano detalhe do pássaro inquieto dentro da gaiola: sugere-se a ideia de prisão.
O homem pega uma espingarda e vai à caça, conseguindo um minúscula presa. Uma narração
em voz over, agora grave, descreve as relações de trabalho e dificuldades desses lavradores:
Com a meação, contrato em que o lavrador planta, cultiva e colhe para
dividir meio a meio com o dono da terra o fruto de um ano de trabalho,
não sobra terra, tempo, nem dinheiro para se cuidar da lavoura de
subsistência. Por isso, nos meses secos, quando escasseiam por
completo os poucos víveres acumulados durante a safra, os caboclos
13 Admite-se, usualmente, as dificuldades em estabelecer as fronteiras entre ficção e documentário. Guy Gathier
(2011) discute essa questão, apontando a tendência do documental ao ficcional e vice-versa. Ainda assim, busca
definir o campo dessa categoria, alertando o documentário é um ―termo inapropriado e, no entanto,
incontornável‖. GATHIER, Guy. O documentário: um outro cinema. Tradução: Eloísa Araújo Ribeiro –
Campinas - SP: Papirus, 2011 – (Coleção Campo Imagético). (p.12-17) 14
O termo se refere a uma ―voz‖, usualmente utilizada em documentários clássicos, que narra sem mostrar
aquele que é dono da voz. Temos duas vozes em O País de São Saruê que não apresentam dono: a do poeta que
narra o filme em poesia e outra, grave, que traz informações sobre a realidade histórica do filme.
13
que não bateram em retirada apelam desesperadamente para a caça das
ariscas e raras aves que ainda não emigraram, fugindo da seca
Outra sequência mostra a mulher cozinhando a magra caça. O narrador poeta retorna:
―Asse-o na trempe, depois / Dê ao menino um pedaço / a sobra dá pra nós dois / Amanhã vou
para a rua / vender plumas de algodão / Volto de noite com a lua e rapaduras na mão‖. O
filme articula a poesia com as imagens que mostram a pequenez da caça, a rusticidade da casa
e a roupa maltrapilha. Esses elementos compõe um quadro de miserabilidade, adquirindo
grande efeito dramático. Somos informados da luta pela sobrevivência desses pequenos
agricultores: a plantação de subsistência, a caça para complementação da alimentação e a
venda da produção do algodão em terras alheias. Essas informações são trazidas por uma
estética que causa forte impressão sobre o drama desses trabalhadores. Ela almeja conseguir a
simpatia do espectador e denunciar essa realidade. Esse é o tom geral do filme.
A BALANÇA QUE PESA OS HOMENS.
A quem, entre aqueles que hoje cruzam a Place Saint-Michel, as figuras
da fonte de mesmo nome, cercada de garrafas de cerveja e de Coca-
Cola, tem ainda algo a dizer? Quem seria capaz de decifrar
historicamente aquela alegoria para turistas, de reconhecer que o
arcanjo de espada em punho, nos ombros de Satanás, devia representar
na época a vitória da ordem imperial e burguesa sobre a revolução, o
triunfo do bem sobre o povo mau de junho de 1848? (Dolf Oehler)15
Nenhum símbolo tem significação por si mesmo, mas oferecemos-lhe sentido a partir
do contexto cultural que nos inserimos. Alguns significados tem construção longa,
construídos em décadas ou séculos, sob diversas camadas de cultura.
O signo da balança pode ser remontado aos gregos pelo culto a Témis, deusa da
justiça representada ―com uma espada e uma balança nas mãos e, muitas vezes, com os olhos
vendados (símbolo da imparcialidade e não da cegueira)‖16
. A semelhança dessa descrição à
figura de São Miguel Arcanjo é evidente. No entanto, há uma grande diferença: apesar de
15
OEHLER, Dolf. O Velho Mundo Desce aos Infernos: Autoanálise da Modernidade após o Trauma de
1848 em Paris. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 16
HACQUARD, Georges. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Tradução de Maria Helena Trindade
Lopes. Lisboa: Asa, 1996.
14
ambos possuírem uma espada na mão e na outra uma balança, há ausência da venda, símbolo
da imparcialidade, na representação do arcanjo. No pensamento cristão essa construção se
encontra diversa: há uma ordem divina a ser seguida e aplicada, a ordem de Deus. Não há,
assim, necessidade de se vendar, mas de enxergar muito bem a lei divina.
Voltemos a O País de São Saruê. Nossa sequência analisada agora exibe planos de
pés andando sobre chão pedregoso. É a dureza da vida sertaneja. A poesia anuncia:
Nem me incomodo com a sede / que vai me dar também, não ; Faço fé que, na
parede, / quando eu pesar o algodão / São Miguel se compadeça / e mate mesmo
o dragão. / E dê um jeito que desça / aqui pra junto da gente / aquela outra
balança / que ele sustenta na mão / pra pesar com segurança / minhas plumas de
algodão. / São Miguel está na sala / lancetando um dragão... / e a balança não
resvala para quem dá duro não. / Uma sagrada balança / ele sustenta na mão /
Na outra mão uma balança / lancetando um dragão / Ele vai fazer mais justos /
os preços que as plumas dão. / Afinal custaram custos / minhas ramas de
algodão / E ele sabe é dura a lida / para quem vive no sertão.
O narrador poeta menciona a balança de São Miguel Arcanjo e roga-lhe que seja
aplicada na pesagem do algodão, ou seja, pede por justiça. Afirma que essa balança pesará
com segurança seu algodão, ou seja, o poeta sugere a existência de uma ameaça: a injustiça,
aquela representada por aquele em que São Miguel Arcanjo pisa. Por isso, pede que São
Miguel Arcanjo ―mate mesmo o dragão‖. O filme apropria-se, assim, de um signo religioso,
para construir uma metáfora das ideias de justiça e do conflito da luta do bem contra o mal.
Relaciona a injustiça da pesagem do algodão à própria figura de Satanás. Essa tensão, embora
não se diga com tais palavras, pode ser entendida como a sugestão da luta de classes17
. Essa
relação se torna mais evidente durante o filme, especialmente na conclusão. Por isso, nessa
sequência são mostradas cenas de trabalhadores que andam por caminho pedregoso, levando
na mão, não apenas o algodão, mas uma foice e uma espingarda. Não seria uma alusão a
espada de São Miguel Arcanjo e a quem caberia solucionar aquela situação? Naquele contexto
17
A luta de classes se mostra configurada como sugere o Manifesto do CPC: ―Em nosso país, as contradições
cada vez mais agudas entre as forças produtivas em avanço e as relações de produção em atraso, entre as classes
vivendo de seu trabalho e as classes apropriando do trabalho alheio, entre a nação despertando para a conquista
de seu futuro histórico e o imperialismo desejando para si o império da história, são as contradições que não
podem deixar de se refletir em cada um dos aspectos da vida nacional e acentuar cada vez mais sua presença
tanto no nível da infra-estrutura quanto no da superestrutura ideológica‖ MARTINS, Carlos Estevam.
Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, Março de 1962. In: Hollanda, H. B. Impressões de
Viagem : CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004, (135-168), p.141-142.
15
de Guerra Fria, a imagem de populares com armas – ainda mais associada a foice ou ao
martelo – poderia ser facilmente relacionada a revoluções comunistas.
Segue-se, novamente, uma narração grave em voz over que informa sobre a produção
de algodão. Descreve sua intensificação no século XIX, com a Guerra Civil nos Estados
Unidos, e a inserção econômica dessa cultura no mercado internacional. Aborda a
concentração de renda na figura do dono de terras, afirmando que são eles, usualmente, os
mesmos que ―detém posse da terra (…) é também o dono da usina‖. Aponta os altos juros
cobrados por eles aos moradores que faz com que os plantadores, endividados, permaneçam
―sujeitos à obrigação de seguirem plantando, indefinidamente, sem nunca usufruírem o
resultado de seu trabalho‖. Através dessas informações podemos identificar como se articula
no filme esses elementos de uma cultura histórica que, como vimos, encarava o Brasil como
um país da coexistência do moderno e do atrasado, como indicam os exemplos da teoria do
desenvolvimento furtadiana ou do Brasil de contrastes de Bastide. Seu subdesenvolvimento
regional (o atraso nordestino) e a questão agrária (a concentração fundiária) eram vistos por
setores progressistas e de esquerda como obstáculos para o desenvolvimento e modernização
do país, embora diferissem pelo desejo de evitar/realizar uma revolução social. Porém,
Carvalho mesmo inserindo os conflitos da região em um contexto global como vários
intelectuais fizeram sob um caráter científico na sua época, realiza sua crítica pela arte. Sua
narrativa busca mostrar o ponto de vista do plantador de algodão (ou seja, uma perspectiva
―de baixo‖), ressaltando a sua situação de sujeição e miséria, o que o aproxima mais de um
ideário de intelectuais e artistas influenciados pelo pensamento pecebista.
Enquanto a narração em voz over oferece essas informações, na mesma sequência,
mostra-se a imagem de uma balança rústica de corda e madeira que mede com pedras o peso
do algodão produzido. Um popular observa, pensativo, tenso, a balança que pesa o algodão. A
imagem de São Miguel Arcanjo aparece intercalada: hora na totalidade, hora repartida em
planos detalhes da lança, da balança, do dragão/demônio que tem a seus pés. Sobreposição
insistente, fica alguns segundos em total silêncio. Oferece-se um tom sério a alusão entre a
luta do bem contra o mal de São Miguel Arcanjo e o conflito de classes.
Nas cenas seguintes, Carvalho entrevista um dono de terras chamado Gadelha. A voz
over traz informações sobre os prejuízos à região, de donos de terras e trabalhadores, pela
inserção de empresas estrangeiras no país. Apesar de estarmos no início de 1970, parece ser
uma posição ainda referente ao ideário do início de 1960 de uma possível aliança entre a
burguesia local e trabalhadores para a revolução. Relativiza-se, assim, um pouco o conflito
interno, pela inserção de outro conflito, agora externo. Ainda assim, as imagens que
16
introduzem Gadelha ao espectador mostram seu avião, seu carro, símbolos de conforto e luxo,
gerando um contraste com as imagens exibidas, alternadamente, de trabalhadores se
esforçando sob o sol, na indústria do algodão. A montagem insiste, assim, na tensão básica da
desigualdade social, a desigualdade interna: sugere-se o dragão contra o qual pede ajuda o
poeta que roga a São Miguel Arcanjo. Essa ideia é reforçada na conclusão do filme.
A imagem da balança rústica que pesa a produção do trabalhador, dividindo-a com o
dono das terras, representa uma síntese de aspectos discursivos sobre esse conflito agrário.
Como vimos, ela pode ser relacionada à injustiça na região, pela apropriação do trabalho de
uns por outros, mas também sugere um caráter primitivo e a necessidade de modernizar a
região (ela é rústica e antiquada). Assim, ela é um símbolo que, no contexto do filme,
consegue articular um discurso sobre a região sertaneja nordestina enquanto um local do
atraso e de desigualdade social (injustiça).
A imagem de São Miguel Arcanjo também pode ser articulada a diversos discursos
sobre a região: um lugar de religiosidade e primitivismo de religião. Eles foram apropriados e
reproduzidos por artistas engajados do início de 1960-1970. Esses artistas buscavam a
autenticidade nacional no povo e o ―camponês‖ era um desses representantes dessa essência
nacional. Não à toa, importantes filmes do Cinema Novo remetem a esse tema: Aruanda
(1960), Vidas Secas (1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), etc.
Maria Lúcia Montes afirma que a balança de São Miguel Arcanjo, em uma visão
barroca, é uma balança que pesa a virtude e o pecado18
. Se articularmos essas duas visões,
poderíamos identificar uma transposição de significados: a balança terrena pesa a virtude
(produção) e o pecado (apropriação pela burguesia). A narrativa consegue articular as
oposições cristã (Deus e Diabo) e marxista (latifúndio e camponês), pela semelhança
dicotômica em sua estrutura. Aproxima-as e cria um novo significado: combater o inimigo
para obter justiça. Usa-se uma imagem sacra, para pautar uma justiça agora, subvertida, pois
não é transcendente, mas terrena.
As balanças articulam discursos diversos (religiosos, econômicos e sociais) para
construir uma representação ―de baixo‖, a partir dos conflitos da exploração do homem pelo
homem e da desigualdade econômica. Uma leitura que podemos relacionar as ideias marxistas
em circulação no período e, ao mesmo tempo, de uma apropriação de um símbolo cristão que
remete a discursos de dicotomias do bem contra o mal e da justiça e injustiça. A partir deles,
18
MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: História da vida privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
17
podemos identificar elementos de uma visão dessa região como local do atraso, de
religiosidade e de desigualdade social.
Na sequência do filme sobre o cultivo do algodão por pequenos agricultores em
relações econômicas desiguais no sertão – na qual grandes proprietários lucram em cima
desse trabalho –, a imagem de São Miguel Arcanjo aparece, em um momento que não se
discute religião. Assim, foram criados, na montagem, novos significados pela relação
estabelecida entre as imagens de camponeses, da pesagem do algodão e do arcanjo, através de
suas referências culturais. Ferro indica como essas significações devem ser entendidas no
tempo e na cultura que se inserem19
. Assim, para a compreensão do lugar dessa imagem de
São Miguel Arcanjo no documentário, faz-se necessário compreender quais discursos ela traz
à tona e como através da montagem Carvalho consegue reelaborar sua significação.
Por fim, quando Oehler fala sobre a praça Place Saint-Michel cujo nome identifica o
arcanjo que pisa o Satanás, provoca-nos ao afirmar que tais sacros e virtuosos símbolos,
relacionam-se com uma ordem contra um povo mau. Em tempos de dita democracia, articular
as palavras povo e mau, surge estranha e incômoda. Mas, não nos parecerá tão estranha, ao
lembrarmos que bem e mau, afinal, não são entes transcendentais e a-históricos, mas
localizados em contextos específicos. Embora, curiosamente, não haja a presença da balança,
nas mãos desse arcanjo.
Referências
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Rio de Janeiro: Record, 2000.
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outras possibilidades do fazer histórico‖. (p. 113-120) In: LOPES, H; VELLOSO, M. P;
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Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.
FILME: O País de São Saruê (1971) de Vladimir Carvalho.
A TRAGÉDIA GREGA ERA UMA INSTITUIÇÃO IDEOLÓGICA DA
DEMOCRACIA ANTENIENSE? NOTAS SOBRE O DEBATE DA FUNÇÃO SOCIAL
DO DRAMA GREGO
Félix Jácome Neto20
20
Mestre em Estudos Clássicos – Mundo Antigo pela Universidade de Coimbra. E-mail:
felixjacome@hotmail.com
19
Este trabalho visa apresentar o Estado da Arte referente ao debate sobre a função
social da tragédia grega, especificamente da tragédia ateniense. O referido debate, que veio à
luz principalmente a partir de 1990, consiste basicamente em duas questões que dividem os
especialistas: 1) o drama ateniense configurava-se como uma instituição ideológica da polis,
nomeadamente da democracia ateniense do século V a.C21
? 2) A tragédia ateniense tinha
como função afirmar os valores cívicos da democracia ateniense, ou questioná-los? Ou
ambos? Ou tinha uma relação insignificante com esta ideologia cívica e democrática?
Para cumprir com este objetivo, a exposição está dividida em três partes: na primeira, é
apresentada a interpretação hoje hegemônica acerca da função social da tragédia, que enfatiza
o caráter institucional e político do festival da ―Grande Dionísiaca‖, onde eram encenadas as
peças de Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Em um segundo momento, é exposta uma
interpretação distinta, que tende a negligenciar o aspecto político da tragédia, destacando, a
partir de Aristóteles, a relação entre a perfomance dramática e a audiênca como mero ―prazer
trágico‖. Por fim, a terceira parte do artigo consiste de breves comentários teórico-
metodológicos sobre a forma pela qual esse debate tem sido conduzido por alguns dos seus
principais expoentes.
I
A posição hoje hegemônica em relação ao debate da função social da tragédia grega
começou a ser sistematizada a partir da coletânea de artigos organizadas por Winkler; Zeitlin
(1990). Na introdução deste livro estão expostas as duas contribuições fundamentais que
estes artigos trazem para o entendimento da relação entre o teatro grego e seu contexto
histórico: a primeira, a superação de abordagens ―puramente‖ literárias que concentram-se em
peças específicas, ou mesmo uma delas, sem fazer a inter-relação entre as peças (tragédia e
comédia), bem como negligenciam o contexto social em que as peças estavam inseridas,
especialmente no tocante ao festival da Grande Dionísiaca e as similaridades entre as
representações teatrais e outros tipos de perfomances públicas, sejam militares, políticas ou
jurídicas. A segunda contribuição destes artigos refere-se ao especial interesse nos aspectos
extra-textuais da perfomance teatral, precisamente do que acontece antes e depois da
encenação, dentro do contexto dos rituais do festival da Grande Dionísiaca.
2 Todas as datas de períodos históricos citados neste trabalho são anteriores a Cristo.
20
Assim, as perfomances musicais (ditirambos, tragédias, comédias) faziam parte do
programa do festival ateniense em honra ao deus Dioniso, que acontecia anualmente durante
alguns dias. Este festival, a Grande Dionísiaca, era promovido e parcialmente financiado pela
cidade de Atenas. Um funcionário do Estado, o archon, era o principal responsável por
organizar o evento: selecionando os poetas que iam competir, escolhendo atores, elegendo os
choregoi, cidadãos abastados que pagavam o treinamento e o equipamento do coro das peças.
Muitos rituais tradicionais, com conotações cívicas, eram incluídos na programação do
festival, sob a forma de processões, sacrifícios e celebrações. Mais significativamente para o
escopo deste trabalho, existiam rituais fixos que eram celebrados, antes de iniciar a encenação
das peças, pela polis no Teatro de Dioniso diante do público, denotando o caráter político e
religioso destas cerimônias. É pertinente destacar quatro destas cerimônias: 1) generais
(strategoi) faziam libações para os deuses antes das peças22
; 2) os tributos dos aliados de
Atenas eram recolhidos no Teatro diante do público23
; 3) Nomes de cidadãos que fizeram
benefícios para Atenas eram entoados no Teatro24
; 4) jovens órfãos de pais mortos em guerra
eram apresentados ao público sob uniformes militares25
.
Essas cerimônias promovidas pelo Estado eram vistas por um público bem distinto da
nossa audiência do teatro enquanto mero entretenimento, marcadamente individual e
impessoal. A audiência do teatro ateniense era formada pela comunidade de cidadãos com
ativa vida política: os próprios assentos no teatro eram divididos pelas dez tribos que
albergavam os cidadãos de Atenas, como em outros locais públicos de exercício da cidadania;
na audiência estava uma grande proporção de cidadãos que deliberava questões fundamentais
sobre a cidade nas assembleias e nos tribunais.
Tal como apresentada, o caráter político do teatro grego começa pelo sentido
etimológico da palavra política, ou seja, aquilo que se refere a polis. As cerimônias que
antecediam a encenação do drama e o caráter coletivo da audiência são, então, interpretados
como evidências de que o teatro grego não era um mero local de entretenimento, mas antes
uma instituição da polis que funcionava como um espaço de veiculação de ideias cívicas de
construção de identidade e coesão social da comunidade de cidadãos, ao passo que forjava a
própria identidade da cidade-estado. Seguindo essas linhas, um dos principais defensores da
vertente política do teatro grego assim condensa esta abordagem:
22
Segundo Plutarco (Kim. 8. 7-9). 23
As fontes principais para esta informação são um escoliasta da peça Os Acarnianos de Aristófanes (verso 504)
e Isócrates, um orador do século IV. 24
Segundo os oradores Demóstenes (De Corona 120) e Ésquines (Contra Ctesifon 41-56), ambos do século IV. 25
As fontes são: Isócrates (De pace 82) e Ésquines (Contra Ctesifon 154).
21
That the event of the fifth-century drama festival in Athens is political (on
the broadest understanding of that term) and that its specific rituals and
language are integrally democratic is a starting point of much recent writing
on tragedy. This does not mean that plays follow some naively conceived
democratic party line, but rather that the festival itself, in organization and
structure, despite earlier origins and later development, is in the fifth century
fully an institution of the democratic polis, and that the plays constantly
reflect their genesis in a fifth-century Athenian political environment. The
pre-play rituals, the funding and administration of the festival, the
establishment and even seating of the audience, are fully representative of
the ideals and practice of democracy, and constitute the theatre as an
analogous institution to the law-court and assembly-the three great
institutions for the display of logoi in the city of words (Goldhill 2000, p.35)
Como se pode perceber pela citação, o aspecto político do teatro da Grande Dionísiaca,
consoante a explicação hegemônica, é intimamente relacionada com o sistema político
vigente no século quinto ateniense, isto é, a democracia, de forma que, em outro texto,
Goldhill (1990, p.114) pôde afirmar que a Grande Dionísiaca é ―fundamentally and
essentially a festival of democratic polis‖. Sendo assim, os valores cívicos veiculados durante
o festival seriam então marcadamente democráticos, alçando a cidade de Atenas e seu regime
como a principal referência civilizatória dentre gregos e bárbaros.
II
A contra-argumentação a esta leitura predominante da relação entre a tragédia e sua
adiência desenvolveu-se a partir de dois eixos: 1) A ideia de que as peças devem promover
coesão social e valores cívicos na audiência seria apenas uma suposição a priori e baseada em
elementos extra-textuais, e não se verificaria em uma análise interna aos textos do teatro; 2) A
relação tragédia e audiência seria marcada, a partir de Aristóteles, como o ―prazer trágico‖ (as
confrontações dramáticas, as grandes tentações, os crimes horríveis, tornados magnifícos e
comoventes por serem praticados por seres advindos dos mitos e que são experenciados
emotivamente pelo espectador) e não segundo modelos sociológicos dos estudiosos
contemporâneos.
22
Relativamente ao primeiro tipo de argumento levantado acima, Taplin (2003, 119), em
uma obra originalmente de 1978, era categórico ao afirmar que os elementos ritualísticos do
festival em nada afetavam o conteúdo das peças e a recepção delas pela audiência:
But the fact is that these circumstances [as variadas cerimônias do
festival] have left no trace whatsoever on the tragedies themselves, no
trace of the Dionysiac occasion, the time of year, the priests, the
surrounding rituals, nothing. We could not tell one single thing about
the Festival from the internal evidence of the plays; it is all supplied
by external evidence.
Sendo assim, Taplin recupera uma frase de alguns gregos que diziam que a tragédia não
tinha nada a ver com Dioniso (―nothing to do with Dionysus‖),26
a fim de destacar que o
festival não condicionava as peças e não afetava o entretenimento, principal função da
tragédia para os gregos, segundo Taplin.
Depois da publicação de Winkler; Zeitlin (1990), surgiram, no decorrer da década de 90,
livros e artigos que consolidaram a leitura da tragédia ateniese como uma instituição política
da polis democrática. Em 1998, um influente artigo foi publicado com o objetivo de
questionar certas hipóteses centrais deste emergente modelo de explicação. Trata-se de Griffin
(1998) que, seguindo o caminho aberto 20 anos por Taplin, sustenta que tanto as personagens,
compostas, dentre outras, por mulheres, escravos, estrangeiros, como os temas trabalhados
nas peças, que remetem a incestos, matricídios, infatícidios, traições, desobediência a dadas
leis da cidade, são suficientemente excêntricos, marginais, desafiantes e dissonantes da
realidade da Atenas democrática do século V para fazer sentido o objetivo a defesa do teatro
enquanto promovedor de coesão social e identidade cívica. Mesmo sobre o coro, que Longo
(1990, 17) pensa ser o ―representatives of the collective citizen body‖, Griffin pensa que o
cárater exótico ou extraordinário dos seus membros o exclui de ser uma referência de
autoridade (representativo do coletivo de cidadãos) da polis democrática:
26
Para estes gregos, a tragédia não tinha nada a ver com Dioniso porque a incorporação crescente de
perfomances e cerimônias já não pareciam ter nada a ver com o mito do deus Dioniso. Para Taplin, a tragédia
não tem a ver com Dioniso porque ela não sofre influência das cerimônias do festival da Grande Dionísiaca. Por
questionar esta leitura de Taplin, os organizadores do livro Winkler; Zeitlin (1990) colocaram como título da
obra: ―Nothing to do with Dionysus?‖, com uma significativa interrogação.
23
(…) most plays have choruses that consist of women- mostly foreign
women, sometimes not even Greek, sometimes not even human-or
very old men, or Persians, or female avenging demons, or the nymphs,
daughters of Ocean, who sing and dance in Prometheus. Perhaps two
of the thirty-three surviving tragedies have choruses composed of
Attic citizens: Sophocles' Oedipus at Colonus, and Euripides'
Heraclidae (Griffin, 1998, p.43).
Essa aparente disjuntiva entre a natureza democrática do festival da Grande Dionísiaca e
o conteúdo não democrático de certos temas ou personagens das peças, já tinha sido levantada
por Goldhill, no artigo inserido no livro de Winkler; Zeitlin (1990), representante da
interpretação hegemônica da função social da tragédia. Assim, Goldhill (1990, 14-5) pensa
que os textos nunca desafiam seriamente a polis enquanto o local civilizatório por excelência,
nem Atenas como a referência dentre as polis, porém, continua o autor, os textos trágicos
muitas vezes questionam, examinam e mesmo subvertem a linguagem da ordem da cidade.
Desse modo, Goldhill (idem, 115) localiza uma tensão entre ―the festival of drama as a civil
institution and a reading of the texts of that institution‖.
Em um artigo mais recente, feito em parte como resposta ao artigo de Jasper Griffin,
Goldhill nomeia esta relação crítica entre o festival e as peças como o debate sobre ―a
ideologia cívica e o problema da diferença‖, que problematiza como o festival da Grande
Dionisíaca se relacionava com as estruturas ideológicas dominantes da democracia? Qual o
nível que a democracia antiga reservava para críticas e que espaço ela permitia para pontos de
vista alternativos ou opostos?27
. Como podem ser interpretados os aspectos diferentes da
ideologia democrática presentes nos textos do teatro?
III
À guisa de conclusão deste artigo, é sugestivo evidenciar alguns critérios teóricos-
metodológicos utilizados por estes autores que debatem a função social da tragédia grega. De
início, o texto de Griffin (1998) faz uma caricatura, logo distorcida, da tese da leitura política
das tragédias apresentada na primeira parte deste trabalho. Griffin expõe o que chama de
visão ortodoxa emergente sobre a relação entre o teatro e o séc. V como sendo a doutrinação
27
Cf. Goldhill (2000, p.34).
24
dos cidadãos, a partir de uma resenha crítica dos artigos de Longo, Winckler, Zeitlin e
Goldhill presentes em Winckler; Zeitlin (1990). Recai sobre o artigo de Longo, contudo, as
citações mais expressivas coletadas por Griffin para definir o que ele chama de leitura
―coletivista‖ da função social da tragédia (historicizing and collectivist scholars, p.55).
Sendo que o artigo de Longo é curto e bem menos sofisticado e nuançado do que o texto de
Goldhill, apesar disso, a caracterização de Griffin é uma versão simplista e distorcida de
Longo: ela fala em ―straightforward quasi-facist hymns to the state [citando G. Cerri] and to
solidarity of citizens. That is why Attic tragedy is free from dissent or subversion or difficulty‖
(p.41), coesão social como o ―simple purpose‖ da polis (p.42), ―the city had as its
unambiguous purpose to foster civic consciousness‖ (p.42). Mesmo depois de discutir
Goldhill e o reconhecimento deste do caráter ambiguo e contraditório da relação entre as
peças e a ideologia cívica, Griffin conclui a primeira parte do seu artigo afirmando que
―Athens‘ purpose with tragedy as the indoctrination of citizens‖(p.50).
Esses termos de Griffin selecionados acima, como observa Seaford (2000), apenas
servem para simplificar a tese oposta de modo a torná-la mais fácil de ser rejeitada. No
entanto, os principais defensores da leitura política das tragédias, como Goldhill e o próprio
Seaford, nunca disseram que o festival da Grande Dionisíaca era uma ferramenta ideológica
da polis que não trazia consigo ambiguidades, que apenas teria como função inculcar uma
suposta ideologia monolítica na passiva audiência, que absorveria de forma uniforme a
ideologia democrática.
Esta significativa simplificação feita por Griffin, com seu constante questionamento
sobre se a polis tinha como (único) objetivo com o festival doutrinar os cidadãos, revela,
como advoga Goldhill (2000, p.38), uma confusão acerca da distinção entre intenção e função
do festival diante da polis e de seus valores democráticos. A questão fulcral não é se a cidade
de Atenas tinha como intenção transmitir certos valores ou ideologias através do festival e de
seu teatro, mas sim se o festival e seu drama funcionavam ou atuavam (com ou sem propósito
deliberado da polis) como propagadores destes valores, em outras palavras, se o festival pode
ser compreendido como uma materialização da ideologia dominante da cidade-Estado28
.
Relativamente a questão se a análise textual das peças sustenta as inferências
democráticas e ―imperialistas‖ das cerimônias da Grande Dionisíaca, é fácil notar que a
28
Como sustenta Althusser (1974), a ideologia não tem uma mera existência ideal ou espiritual, mas tem uma
existência material, prática, monumental, institucional, ritualística, que pode ser sentida, visualizada, pelos
sujeitos sociais e que é, em última análise, graças a esta materialização e realização constante que alguma
ideologia converte-se em hegemônica, apesar das ideologias conflitantes e dissidentes que não cessam de existir
e de almejarem a sua realização material.
25
depender das peças que selecionamos ou que enfatizamos como corpus documental a resposta
surge distinta. Poucos autores negam o caráter laudatório com que Atenas e seus costumes são
apresentados29
em peças como os Heraclidas e as Suplicantes, ambas de Eurípides, a trilogia
Oresteia e os Persas, de Ésquilo, Édipo em Colono, de Sófocles. No entanto, se pensarmos
que personagens importantes das tragedias continham escravos, mulheres e estrangeiros, ou se
observarmos certas passagens das peças em que há um considerável questionamento, por
exemplo, do estatuto social do escravo (como em algumas peças de Eurípides) ou da mulher
(como em Medeia de Eurípides), ou ainda, se levarmos em consideração a crítica aos
demagogos exemplificada nas últimas peças de Eurípides (como Orestes e Efigênia em Áulis),
que revela uma reflexão aguda sobre o papel desempenhado pelos líderes contemporâneos da
política ateniense, nós notamos que a ideologia democrática está sendo, de certo modo,
negada.
Diante deste cenário, alguns autores têm focalizado o texto da tragédia como negociando
conflitos e interesses de classes e grupos sociais distintos, de modo que essas obras tanto
afirmam como questionam a cultura e ideologia democrática30
. Esses interesses distintos e,
por vezes, antagônicos, expressam-se no texto através da heteroglossia de pontos de vista na
narrativa que denotam a polifonia da obra literária como inicialmente trabalhada por Mikhail
Bakhtin. Nesse sentido, perceber que o texto da tragédia não é o mero pôr palavras da
ideologia dominante ateniense, mas antes é, como sustenta Macherey;Balibar (1976) acerca
da relação entre literatura e ideologia, a encenação das ideologias, isto é, a tensão entre os
discursos que simbolizam o real na suas tentativas de se materializarem enquanto ideologia
hegemônica, seja como literatura ou como festival.
Referências
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GOLDHILL, Simon. Civic Ideology and the problem of difference: The politics of
Aeschylean tragedy, once again. Journal of Hellenic Studies, 120, p.34-56, 2000
29
Isso inclui, como notam alguns estudiosos (cf. Hall 1997) , a caracterização dos ―vícios‖ ou ―falhas‖ do outro
(bárbaro, outras polis gregas, por exemplo) como forma de auto-definição, por contraste, da cidade de Atenas e
de idealização de suas ―virtudes‖ democráticas. 30
Por exemplo a interpretação das ideologias e representações das classes sociais na Oresteia de Ésquilo feita
por Griffith (1995).
26
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27
BRASIL NUNCA MAIS X BRASIL SEMPRE: VERDADE, MEMÓRIA E CULTURA
HISTÓRICA
José Rodrigo de Araújo Silva *
―Eu sei de muita coisa que eu não vi. E vocês também eu sei. Não se
pode dar provas da existência daquilo que é mais verdadeiro. O único
jeito é acreditar‖ [...]
(Clarice Lispector)
Introdução
Ao refletirmos sobre o período correspondente a Ditadura civil-militar no Brasil
(1964-1985), observamos nas produções da Cultura Histórica um esforço para construção de
uma memória coletiva que vai desde o discurso dos militares, até o discurso da esquerda e de
todos aqueles que de alguma forma atuaram como ―resistência‖ ao regime. Esta produção
pode ser percebida nas obras cinematográficas, músicas, romances e livros de memórias. Para
este trabalho, utilizaremos como exemplo os livros Brasil Nunca Mais, fruto de um trabalho
coletivo com denuncias de torturas e abusos cometidos pelos militares nos anos que
compreendem o governo ditatorial, e o antagônico Brasil Sempre, com a versão dos militares
sobre as denuncias encontradas nas memórias da esquerda. Como aporte teórico para o debate
sobre os conceitos de verdade; narrativa e discurso, utilizaremos autores como José Carlos
Reis (2000); Michel Foucault (2000); Roland Barthes (1988); Hayden White (2006) e Carlo
Ginzburg (2006). Além de autores que abarcam em suas analises o período estudado.
A Verdade na História
Teorizar sobre a ―verdade‖ e suas implicações no âmbito da História e da
Historiografia é algo que os historiadores tem se debruçado nos últimos anos, e mais
particularmente ao longo do século XX. Com a publicação da revista Annales d´historie
économique et sociale, tendo como fundadores Marc Bloch e Lucien Febvre, a historiografia
passou a se inserir em um campo de possibilidades múltiplas de construção e os historiadores
– simpatizantes ou não – passaram a questionar temas, documentos e narrativas.
* Mestrando em História pela UFPB. Pesquisador do GEHSCAL. Bolsista CAPES. E-mail:
rodrigope81@hotmail.com
28
Dentre as análises feitas ao longo deste debate, destacamos o conceito de verdade,
levando em consideração as problemáticas levantadas por diversos autores e escolas
pertencentes. Partiremos a princípio, dos pressupostos de Kant, tendo em vista que para este, a
verdade é aquilo que um sujeito humano, em linguagem humana, pode formular com alguma
segurança sobre objetos bem delimitados. A verdade é o conhecimento que pode ser
estabelecido de forma comunicável e controlável em uma relação cognitiva entre um sujeito e
seu objeto. [REIS, 2000, p. 328]
Nessa perspectiva, alguns sujeitos ao se debruçarem sobre seus objetos, estabeleceram
relações diferenciadas com o conceito de verdade em suas analises. Com a finalidade de
facilitar nosso entendimento, tal como o fez José Carlos Reis (2000) em seu artigo sobre a
relação entre História e Verdade, dividiremos em dois grupos de autores com
posicionamentos que partem do mesmo princípio. Ao primeiro grupo chamaremos de
Realistas tendo em vista que estes – ainda que de modo distinto – acreditaram em um real
universal e que se pode de alguma forma conhecer. Já o segundo grupo, que chamaremos de
Nominalistas, acreditam – de forma genérica- em um relativismo e não se referem a um real
em si.
Entre os teóricos Realistas destacamos os escritos de Karl Marx, visto que este autor
direciona seu pensamento à objetividade do pensar historicamente, levando em consideração
uma tendência das influências que as relações e lutas sociais exercem nos indivíduos. Para o
autor, seria indissociável o sujeito e o objeto. Há que se afirmar com toda força que Marx fala
em verdade objetiva, isto é, uma verdade que pertence ao objeto, à matéria; não lhe é
atribuída pelo sujeito. Em resumo, a verdade desvendada pela razão é propriedade do objeto e
não do sujeito. [CARLI, 2011, p. 53]. Ao estabelecer relações com o objeto, o sujeito tenderia
a uma parcialidade, não podendo, portanto, produzir discursos universais, tendo em vista que
nesses discursos teriam interesses particulares.
Ao contrário dos Realistas, os Nominalistas não partem do princípio de uma realidade
concreta. Para Michel Foucault, por exemplo, a verdade tem uma construção histórica e
relativa em cada sociedade. É preciso levar em consideração as relações de poder que são
estabelecidas dentro de uma sociedade e os discursos para afirmação do que é considerado
verdadeiro ou não, que para Foucault são legitimados através dos discursos científicos e
institucionais.
Desta forma, a verdade para o autor seria resultado de um discurso, sendo este
relacionado ao poder e teria uma finalidade de produzir nos indivíduos ―efeitos de realidade‖.
Na aula inaugural do Collège de France, Foucault provocou uma reflexão sobre como a
29
vontade de verdade foi cada vez mais sendo incorporada em nossa sociedade ocidental.
Partindo de reflexões sobre o discurso desde o século VI na Grécia, passando pela Idade
Média até as teorias sobre o Direito e a Sociologia, o autor sinaliza como a relação entre a
verdade – institucionalizada - esteve presente em diversas manifestações.
Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão,
apóia-se sobre um suporte institucional [...] ela é também
reconduzida, mas profundamente sem dúvida, pelo modo como um
saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído,
repartido e de certo modo atribuído [...] Enfim, creio que essa
vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma
distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos –
estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e
como que um poder de coerção. [FOUCAULT, 2000, p. 17-18]
Roland Barthes (1988) ao escrever sobre o Discurso da História ressalta os princípios
de composição básica da narrativa. Seriam estas: Enunciação; enunciado e a significação.
Sendo assim, não se pode atribuir o ‗real‘ ao texto, pois haveria uma limitação daquele que
escreve. Essa limitação esta associada ao fato de o historiador, por exemplo, não poder se
apropriar do real, mesmo tendo este como referência. Esta ―realidade‖ estaria, portanto, fora
da construção narrativa. Aquilo que temos como verdadeiro, segundo Barthes, ficaria a cargo
da criação do seu autor.
Barthes ainda destaca mais dois pontos que merecem ser ressaltados. O primeiro seria
o sentido que o historiador dá voluntariamente aos relatos com o intuito de ―preencher o
vazio‖ para dar sentido aos fatos. Haveria desta forma uma parcialidade tendenciosa àquilo
que o autor considera ter acontecido. A forma como este relato será escrito; a sucessão dos
fatos; a organização das fontes e o texto propriamente dito estariam a cargo das impressões
pessoais do historiador e não de uma convicção precisa do que ―realmente aconteceu‖.
O segundo ponto seria a composição dos elementos textuais que transcendem o
discurso. Os detalhes e as figuras de linguagem que muitas vezes são utilizadas para provocar
um ―efeito de realidade‖ no leitor. Barthes atribui, por exemplo, os objetos descritos; os
detalhes minuciosos dos fatos e o significado atribuído aos mesmos. Para o autor, estes
elementos ―ficcionais‖ seriam recursos do historiador – ou daqueles que se propõem a
escrever história – para dar uma coerência maior ao texto, não sendo necessariamente fruto do
que é real.
30
Diante de todo este debate, dois autores explicitaram suas colocações a respeito de um
tema bastante discutido no âmbito da historiografia. Hayden White e Carlo Ginzburg,
partindo de analises antagônicas, escreveram sobre o Holocausto. White em seu artigo Enredo
e verdade na escrita da história (2006) ressalta que existe uma ―forma‖ consagrada de escrita
na historiografia, que é bastante peculiar aos eventos considerados sérios. Para o autor, a
narrativa para estes eventos estaria próxima dos escritos das tragédias gregas, por exemplo, e
qualquer forma de narrativa que eventualmente venha a ―fugir a regra‖ passaria a ser
condenado e hostilizado.
Para explicitar a afirmação, White lembra a questão colocada por Maus: o conto de um
sobrevivente, de Art Spiegelman, que apresenta os eventos do Holocausto por meio da escrita
em quadrinhos (preto e branco) e em uma forma de sátira amarga, com alemães colocados
como gatos, judeus como ratos e polacos como porcos. [WHITE, 2006, p.195-196]. O autor
considera pertinente a narrativa de Maus, mesmo não se enquadrando nos princípios da
―forma‖ que se tem como correta para escrever sobre este evento.
O extermínio dos judeus e o principio da realidade, de Carlo Ginzburg traz uma das
principais críticas ao argumento de White e o conceito de verdade e história. Ginzburg cita a
teoria do professor Robert Faurisson 31
e as contradições existentes na argumentação de
White. A principal crítica versa sobre a eficácia de um texto como o pré-requisito para ser
atestado como verdadeiro.
Os trabalhos de White e Ginzburg referentes ao Holocausto e a verdade sobre os fatos,
nos levam a uma reflexão particular no caso do Brasil. Durante o período da Ditadura civil-
militar brasileira (1964-1985), o país passou por processos de cassações de mandatos;
aposentadorias forçadas; prisões; torturas; exílios e um saldo ainda impreciso de mortos e
desaparecidos políticos. Os debates sobre os motivos que levaram os militares a dar o Golpe;
a existência de algozes nos porões do DOI-CODI e as versões conflitantes entre os militares e
os membros da esquerda, provocam debates entre acadêmicos, jornalistas, representantes de
entidades ligadas aos direitos humanos e uma parcela da sociedade civil sobre as ―verdades‖ e
―versões‖ dos fatos.
Nossa análise estará centrada em dois livros frutos da cultura histórica,
compreendendo este conceito como produções em que grupos e/ou indivíduos pensam
31 O ex-professor de linguística da Universidade de Lyon, Robert Faurisson, ficou conhecido pelo grande
público ao publicar – dentre outras coisas- o artigo no Le Monde intitulado O Problema das Câmaras de Gás e o
Rumor de Auschwitz (1978) em que o mesmo nega a existência das Câmaras de Gás e consequentemente do
Holocausto.
31
historicamente e estas produções não estariam necessariamente ligadas a historiadores, como
nos relata Elio Chaves Flores:
Entendo por cultura histórica os enraizamentos do pensar
historicamente que estão aquém e além do campo da historiografia e
do cânone historiográfico. Trata-se da intersecção entre a história
científica, habilitada no mundo dos profissionais como historiografia,
dado que se trata de um saber profissionalmente adquirido, e a
história sem historiadores, feita, apropriada e difundida por uma
plêiade de intelectuais, ativistas, editores, cineastas, documentaristas,
produtores culturais, memorialistas e artistas que disponibilizam um
saber histórico difuso através de suportes impressos, audiovisuais e
orais. [FLORES, 2007, p. 95]
Sendo assim, analisaremos os posicionamentos e a disputa pela memória e a ―verdade‖
dos fatos nos livros Um relato para História - Brasil: Nunca Mais, e o livro Brasil: Sempre,
escrito pelo tenente Marco Pollo Giordani, da 2° Seção (serviço secreto) do comando militar
do Sul, tendo sua primeira edição um ano após o Brasil: Nunca Mais com o intuito de se
contrapor as versões reveladas pela esquerda no livro.
Cultura histórica e as memórias da Ditadura civil-militar
A história já é bem conhecida. Em 31 de março de 1964 os militares apoiados por
setores da sociedade civil deram um golpe de estado e como forma de manutenção do poder
implantaram um regime ditatorial no país entre 1964-1985. Durante este período havia
rumores referentes a torturas que estavam sendo efetuadas no ato das prisões. Nada
―comprovado‖ através de documentos. As informações eram obtidas através dos relatos dos
ex-presos que conseguiam liberdade ou através de depoimentos a terceiros dos que ainda
estavam presos.
Em agosto de 1979, com o início do processo de abertura política, alguns advogados
de presos políticos passaram a ter acesso a documentos do Tribunal Superior Militar (TSM).
Ao se depararem com a documentação, os advogados perceberam que aquelas informações
seriam primordiais para comprovação da existência de mortos; desaparecidos e das torturas
realizadas durante os anos de 1964 a 1979. A preocupação e o cuidado com a memória
32
fizeram com que este grupo procurasse o reverendo Jaime Wright – irmão do desaparecido
político Paulo Stuart Wright - e o Frade Franciscano D. Paulo Evaristo Arns.
A empreitada audaciosa logo ganhou corpo e uma equipe que se revezava em um
galpão 24 horas, copiando todos os documentos que o grupo de 12 advogados retirava do
STM para ‗estudo de caso‘. Com o nome provisório de Testemunhos Pró-Paz, o projeto
contou com o apoio do conselho mundial de igrejas, sediado em Genebra na Suíça, de onde
partia boa parte das verbas que financiariam o projeto. Em 1985 o grupo havia reunido cópias
de 707 processos do Superior Tribunal Militar, (cerca de um milhão de páginas), além de
10.000 documentos dos réus como panfletos, cartas, bilhetes, jornais e outros documentos que
corroborariam as denunciam.
O projeto maior, contendo 12 tomos e 25 cópias distribuídas no Brasil e no exterior,
ficou conhecido como Projeto A - Brasil: Nunca Mais. Entretanto, a inviabilidade do acesso a
todo esse material, (6.891 páginas) fez com que a equipe elaborasse uma edição compilada
em forma de livro, que recebeu o nome de Um Relato Para a História – Brasil: Nunca Mais.
Além do próprio Evaristo Arns, mais duas pessoas ficaram encarregadas de ler todo material e
transformar a dimensão do projeto em um único livro: O jornalista Ricardo Kotscho e o ex-
militante da ALN e ex-preso político Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto.
O livro foi dividido em seis partes contento a versão da esquerda para as origens do
regime militar; a montagem do aparelho repressivo; os partidos e grupos que foram
perseguidos e as denuncias de abusos e torturas durante o período. Segundo o BNM, a partir
dos depoimentos foi possível identificar a prática de 285 modalidades de tortura –físicas e
psicológicas – com homens, mulheres, idosos e até crianças.
O livro está repleto de discursos que ficariam consagrados como sendo a verdade dos
fatos, ou pelo menos a verdade daqueles que viveram nos porões do DOI-CODI e de outras
unidades do Exército. Já na apresentação, os autores se referem ao livro como fruto de uma
reflexão sobre o passado recente, ressaltando a importância do relato como uma ―lição da
história‖.
Para tanto, é indispensável aprender as lições que emanam de nosso
passado recente. As lições da história. Este livro é a reportagem sobre
uma investigação no campo dos Direitos Humanos. É uma
radiografia inédita da repressão política que se abateu sobre milhares
de brasileiros considerados pelos militares como adversários do
33
regime inaugurado em abril de 1964. É também a anatomia da
resistência. [BRASIL NUNCA MAIS, 1986, p. 21]
O que os escritores do Brasil: Nunca Mais chamava de ―resistência‖ era visto pelos
militares da direita como ―subversão‖. E foi nestes termos que um ano após a publicação do
BNM, o tenente Marco Pollo Giordani, da 2° Seção do comando militar do Sul escreveu o
livro que relataria a versão dos Militares para as acusações de torturas e denuncias de outras
ordens. Tratava-se do Brasil: Sempre. 32
Minha decisão em escrever este livro – dentre outros motivos-
decorreu essencialmente da edição de Brasil: Nunca Mais – faccioso
relato de um pretenso grupo de especialistas, tendo à testa o
Arcebispo metropolitano de São Paulo – Dom Paulo Evariso Arns, e
―outros‖... Não possuo 300.000 dólares [...] nem os computadores,
aparelhos de microfilmagem, ou funcionários assalariados – usados
na confecção do mesmo. [...] Possuo, no entanto a coragem, a
determinação e a integridade de um homem de informações, com
vários anos de DOI-CODI – anos esses, de sacrifícios imensos, de
renuncias silenciosas dedicadas exclusivamente ao Brasil – no mais
completo anonimato, na mais completa abnegação. [GIORDANI,
1986, p. 7]
Brasil Sempre é dividido em partes pontuais como forma de esclarecimentos a respeito
dos relatos do BNM. A primeira parte do livro contém uma analise sobre a implantação do
Partido Comunista no país, além de uma ‗sinopse histórica da Revolução de 31 de março de
1964‘ e uma relação dos militares mortos pelos ‗subversivos‘. Muito embora o seu autor
ressalte em uma passagem que ―ninguém é dono da verdade‖ e que ―escreve sobre a sua
32
Destacamos, entretanto, a existência de outro livro produzido pelos militares. O projeto conhecido como Orvil
(livro ao contrário) foi elaborado com base nos testemunhos e documentos dos militares com o mesmo intuito do
livro Brasil: Sempre. O projeto, porém, foi abortado devido a fortes contradições e provas que incriminavam os
próprios militares. Seus originais foram mantidos em sigilo até abril de 2007 quando o jornalista Lucas
Figueiredo teve acesso a uma de suas cópias. Cf. FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho: Os livros secretos da
Ditadura. Rio de Janeiro: Record, 2009.
34
verdade e a realidade que dimensiona‖, no trecho referente aos esclarecimentos sobre a
tortura, Giordani ao se referir aos membros da igreja e o envolvimento com o projeto Brasil:
Nunca Mais, utiliza uma passagem da bíblia de forma irônica: ―Será que eles ainda não
conheceram a ‗verdade‘ – ou a ‗verdade‘ não os libertou?‖.
Brasil: Nunca Mais, recheado de lamentos, de desesperos e de
depoimentos espalhafatosos [Grifo meu], retrata a poltronice dos
componentes da esquerda revolucionária: na hora dos assaltos, dos
seqüestros, das explosões de bombas, dos assassinatos, não faz
diferença se as vitimas são mulheres grávidas, crianças ou pessoas
completamente neutras em questões políticas. Quando chamados à
responsabilidade, transformam-se de imediato em estandartes e porta
vozes dos direitos humanos! [GIORDANI, 1986, p. 97]
Os relatos sobre as torturas fundamentam uma questão que não pode fugir ao debate.
O levantamento da comissão de mortos e desaparecidos políticos atualizada em 2007, revela
um saldo de 426 mortos, dentre os quais muitos ainda não tiveram seus corpos localizados. A
existência de torturas nas prisões seria um dos fatores que possivelmente teria levado muitos
desses desaparecidos a óbito sendo enterrados em valas clandestinas a exemplo da vala de
Perus no cemitério Dom Bosco em São Paulo. 33
Durante os anos subsequentes a abertura política, tanto os militares quanto os
membros da esquerda e entidades ligadas aos Direitos Humanos passaram a ‗disputar‘ os
espaços da memória e da ‗verdade‘ na história recente. O discurso da esquerda, sempre
enfático quanto aos abusos dos militares, procura legitimar esta memória sinalizando os atos
de bravura e resistência pela democracia no país. Basta observar livros como O que é isso
companheiro? do Fernando Gabeira e o próprio Brasil: Nunca Mais que acabaram se
tornando best sellers.
Já o discurso dos militares procura se posicionar no lugar de defensores do país no que
diz respeito à desordem materializada nos comunistas e esquerdistas. Os acalorados debates
sobre ambos os lados, ainda produz discussões que perpetuam até os dias atuais. Como
33
A vala de Perus é um marco da luta pela localização dos desaparecidos políticos brasileiros. Em setembro de
1990 foi aberta a vala e encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vitimas dos esquadrões da
morte. Cf. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985). Impressão Oficial: São
Paulo, 2009.
35
exemplo, citamos a criação do grupo TERNUMA - Terrorismo Nunca Mais, que
disponibilizam um site na internet com artigos relacionados aos temas levantados pela
esquerda e ressaltam a importância para a memória do país com os relatos e a ‗verdade‘ dos
militares.
As lutas travadas através dos discursos e narrativas sobre o golpe e os anos da
Ditadura civil-militar, são os reflexos da pluralidade dos fatos e das múltiplas verdades sobre
o tema. De tal sorte que a busca incessante de ambos os lados para legitimar um discurso
como verdadeiro, nos mostra o peso do quanto este debate ainda se faz presente seja por
questões políticas, institucionais ou de ordem pessoal.
O debate inicial sobre os teóricos que discutiram – e discutem- a existência da verdade
dos fatos na história e na historiografia, nos leva à reflexão da complexidade em definirmos a
existência ou não da ―verdade dos fatos‖. Como bem nos definiu a Clarice Lispector na
epígrafe que inicia este artigo: Em muitos casos, ―não se pode dar provas da existência
daquilo que é mais verdadeiro. O único jeito é acreditar.‖ [LISPECTOR, 1998, p. 10].
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www. ternuma.com.br
www. torturanuncamais-rj.org.br
MODERNIDADE E TRADIÇÃO NOS AFRO-SAMBAS DE BADEN POWELL E
VINÍCIUS DE MORAES – 1960/1966
Miller Augusto de Souza Campos*
Palavras chave:
* Mestrando em História pela UFSJ, bolsista da agência financiadora de pesquisa UFSJ. E-mail:
milleraugusto@hotmail.com
38
Baden Powell, Vinícius de Moraes, afro-sambas, música popular brasileira, musicologia.
Introdução:
No Brasil, a tradição cultural no campo da música popular consagrou-se junto à
audiência popular, à critica e à grande parte da intelectualidade letrada, num processo de
invenção e consolidação da tradição que se deu, necessariamente, a partir de conflitos,
contradições e mediações que perpassam questões referentes à construção de nossa cultura
moderna.
De uma forma artística considerada menor, propagada pelo rádio e pelos discos e, em
muito, depositária da cultura popular oral, a música popular brasileira, desde fins da década de
1950, acabou por tornar-se um dos eixos de nossa vida cultural moderna. A partir da bossa
nova, a música popular obtém o reconhecimento como campo de expressão e como produto
cultural mais sério do que se pensava antes, inclusive consagrando-se em âmbito
internacional. Mas, nossa música popular já havia trilhado um rico percurso, permeado de
cruzamentos culturais, com a cristalização de gêneros centrais, aglutinadores dessa herança
cultural.
Boa parte dos pesquisadores da música popular brasileira concorda que, com o
impacto da bossa nova no fim dos anos 1950, houve uma revalorização do material musical
popular, porém, esse material foi re-elaborado a partir da assimilação de elementos do jazz
como nas harmonias mais complexas, e também a partir da performance mais intimista que se
reflete, por exemplo, na valorização do violão e na forma mais delicada de cantar.
O desenvolvimento da bossa nova foi dinamizado por Tom Jobim e João Gilberto.
Além deles, esse significativo movimento musical brasileiro já contava, desde o início, com a
figura de Vinicius de Morais como letrista, o poeta e diplomata que se tornara compositor de
música popular. Nesse período, Vinicius fazia parceria com Tom Jobim, e dessa união
resultaram verdadeiros clássicos da bossa nova como Eu sei que vou te amar, Garota de
Ipanema, Chega de saudade entre outras.
Talvez a grande ruptura proporcionada pelo surgimento da bossa nova no plano sócio-
cultural foi, a partir de 1959, ter articulado a inserção de um novo estrato social no panorama
musical, sobretudo no plano da criação e no consumo de música popular34
. Tomadas no seu
conjunto, amplos setores da classe média mais abastados e com trânsito universitário
34
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-
1969). São Paulo, Anna Blume / FAPESP, 2001. p. 67.
39
passaram a considerar a música popular como um campo respeitável de criação, expressão e
comunicação.
Com o impacto da bossa nova, são potencializados um conjunto de tensões culturais e
debates estéticos anteriores, que ganharam outro alento devido à incorporação de novos
segmentos sociais no panorama musical, num momento em que o país rediscutia sua forma de
inserção na modernidade.
Nesse momento, muitos artistas como Tom Jobim e o próprio Vinícius de Morais já
assumiam conscientemente esse desejo de modernidade. Dentro desse espírito, um long play
(LP) lançado em 1959 causou grande impacto no cenário da música popular brasileira e
mundial. Trata-se do inovador Chega de saudade, álbum seminal do movimento bossa-
novista em que João Gilberto consegue articular modernidade e ruptura com o adensamento
da tradição.
A partir da bossa nova, o passado já não era mais folclorizado, mas reapropriado como
material estético da modernidade. O movimento funcionou como um filtro através do qual
antigos paradigmas de composição e interpretação foram assimilados pelo mercado musical
renovado dos anos 6035
. Portanto, não apagou do cenário musical os sambas tradicionais e
demais gêneros populares. Na MPB, ao longo dos anos 60, através dos procedimentos
modernos da bossa nova, esses e outros estilos serão atualizados.
Jovens músicos, grande parte oriunda do movimento bossa-novista, e com uma
orientação política de tendência esquerdista, começaram a buscar o reencontro com a tradição
na tentativa de superar os impasses estéticos e ideológicos decorrentes, principalmente, da
dificuldade de ampliar os materiais sonoros da moderna música popular, consolidando o
público bossa-novista, jovem e sofisticado, além de conquistar novos estratos, mais amplos,
de público.
Havia a intenção de incorporar, a partir das novas e mais sofisticadas possibilidades de
expressão da música popular alcançadas com a bossa nova, outras matrizes musicais e líricas,
identificadas com as idéias de resgate do nacional e do popular.
Em 1962, num momento em que o governo João Goulart assumia o compromisso com
a realização de reformas de base, é lançado o Manifesto do CPC, Centro Popular de Cultura,
órgão ligado à UNE. O documento escrito por Carlos Estevam Martins, basicamente, traçava
diretrizes para a criação de uma arte engajada e era direcionado principalmente aos jovens
artistas ligados ao movimento político-cultural estudantil.
35
Idem. p. 70
40
O manifesto atacava o artista ―alienado‖, despolitizado, romântico, ou seja, alheio aos
problemas sociais vivenciados pela população brasileira. De acordo o manifesto, o artista
deveria assumir o papel de um militante político capaz de interferir na História em prol da
libertação material e cultural do nosso povo36
. O CPC propunha a redução da busca formal em
função da transmissão ideológica, valorizando o aspecto comunicacional da música: ―nossa
arte só irá onde o povo consiga acompanhá-la, entendê-la e servir-se dela.‖37
Nessa
concepção, o processo de elaboração formal do artista consistiria no trabalho constante de
aferir sua técnica composicional a fim de atingir uma receptividade cada vez maior entre as
massas.
É provável que os jovens artistas militantes ligados à ideologia do CPC encarassem
com seriedade essa tarefa de produzir uma canção participante e de conscientização política
voltada para um público massivo. Mas em relação a abrir mão dos recursos musicais mais
sofisticados, herdados da bossa nova, em função da popularização da arte, é óbvio o
desacordo entre a proposta do manifesto e a análise da obra dos principais compositores dessa
corrente. A representação do popular nas obras ―engajadas‖ não se traduzia, mecanicamente,
numa estética reducionista e de fácil assimilação. Artistas como Carlos Lyra, Sérgio Ricardo,
Edu Lobo e o próprio Vinícius de Moraes buscavam uma canção moderna e sofisticada, capaz
de reeducar a elite, e de elevar o gosto das massas ao mesmo tempo em que transmitia a
mensagem política38
.
Por volta de 1962, o legado da bossa nova já havia sido reprocessado na forma de um
samba ―moderno e participante‖, base de uma canção nacionalista e engajada. Esse tipo de
música, muito marcada pela romantização da solidariedade popular, pela crença no poder da
canção e no ato de cantar para mudar a sociedade e na esperança de um futuro libertador, será
o arquétipo ideal de canção que vai predominar no cenário brasileiro, nos discos, rádio e
festivais televisivos, pelo menos até a virada tropicalista no final da década de 1960.39
De maneira mais ampla, o disco ―afro-sambas‖ faz parte de um momento da música
popular brasileira em que vários artistas profundamente influenciados pela bossa nova como
Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Geraldo Vandré, Nara Leão, o próprio Vinicius de
Morais e Baden Powell inauguravam um período muito marcado pela pesquisa de raízes
folclóricas e de formas musicais regionais. Foi se construindo uma cena musical no Brasil em
36
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde. São Paulo:
brasiliense, 1981. p. 138 37
Idem p. 161 38
NAPOLITANO, Marcos. Op cit. p. 77 39
NAPOLITANO, Marcos. Op cit. p. 35
41
que as canções que buscavam tematizar experiências populares, seja nas letras como na
composição das músicas (ritmo, melodia e harmonia) se tornaram muito valorizadas.
Os afro-sambas foram compostos ao longo da primeira metade da década de 1960. De
modo geral, o período de produção de música popular brasileira que se estende a partir da
eclosão do movimento bossanovista (fins da década de 1950) até o surgimento do
tropicalismo (fins da década de 1960), muitas vezes é evocado em nossa memória sob o signo
genérico das canções de protesto, da participação política e das relações dos artistas com o
CPC (Centro Popular de Cultura-UNE), ou em função dos lendários festivais televisivos de
música popular. Essa é uma das razões que confere relevância à proposta de pesquisa, ou seja,
destacar a obra de Baden Powell e Vinicius de Moraes, singularizando a atuação desses
artistas em meio a um cenário complexo em que se cruzavam diferentes correntes estéticas e
ideológicas.
Arnaldo Contier no artigo ―O nacional e o popular na canção de protesto – os anos
60‖ faz um estudo partindo de dois artistas que atuaram de forma contemporânea a Vinícius e
Baden, Edu Lobo e Carlos Lyra. O autor relaciona o trabalho desses músicos com a canção de
protesto, para tanto estabelece conexões entre suas músicas e os discursos do CPC durante os
anos 1960. Nesse movimento, os temas amorosos presentes nas canções bossanovistas
transfiguraram-se na canção de combate social. Para o autor, artistas como Edu Lobo, Carlos
Lyra e tantos outros internalizaram, consciente ou inconscientemente, determinadas re-leituras
sobre uma possível revolução social no Brasil ou o surgimento de uma determinada fase ou
etapa da História (conforme o marxismo-lininismo), de movimentos capazes de transformar a
sociedade.40
Vinicius de Moraes é citado por Arnaldo Contier como um artista que trabalhava
dentro dessa ideologia. É verdade que foi ele quem escreveu, por exemplo, o Hino da UNE e
o musical Pobre menina Rica ou Marcha da 4ª Feira de Cinzas em parceria com Carlos Lyra,
ou a canção Arrastão em parceria com Edu Lobo e interpretada por Elis Regina que foi
vencedora do I Festival de Música Popular Brasileira de 1965 realizado pela TV Excelsior,
tais musicas possuem elementos que as relacionam com o movimento de engajamento
político. Contudo, pretende-se nesse trabalho, investigar outra faceta da obra musical do poeta
que, ao lado de Baden Powell, fará o resgate de temas inspirados no folclore a partir de uma
elaboração semi-erudita em confluência com os paradigmas elaborados pelo modernista
Mário de Andrade.
40
CONTIER, Arnaldo Daraya. O Nacional e o Popular na Canção de Protesto – Os anos 60. Revista Brasileira
de História. Vol. 18 n. 35. São Paulo, 1998.
42
Mário de Andrade, profundo conhecedor de música, apesar de não ser músico ou
compositor de profissão, tornou-se uma das principais referências do nacionalismo musical
brasileiro. O texto de maior impacto neste sentido foi o livro Ensaio sobre a música
brasileira,41
publicado em 1928. Nesta obra o autor procurou influenciar o trabalho dos
compositores direcionando-os para o seu projeto, que consistia na criação de uma música
erudita nacional.
As ideias de Mário de Andrade para ao desenvolvimento de um projeto nacional-
erudito-popular para a música colocam a intenção nacionalista e o uso sistemático da música
folclórica como condição indispensável para a realização de uma música capaz de acrescentar
valor à cultura brasileira. A hipótese é que seu pensamento seja fundamental, não apenas para
a geração de seus contemporâneos como Villa-Lobos ou Luciano Gallet, que atuavam
essencialmente no âmbito da música erudita, mas será uma influência central para uma
geração de compositores de música popular no início da década de 1960, como Edu Lobo,
Baden Powell e Vinícius de Moraes.
O texto de maior impacto neste sentido foi o livro Ensaio sobre a música brasileira42
,
publicado em 1928. Nesta obra o autor procurou influenciar o trabalho dos compositores
direcionando-os para o seu projeto, que consistia na criação de uma música erudita nacional.
O autor critica a opção por um nacionalismo fácil, recheado de exotismos, voltado para gosto
europeu e caracterizado por uma utilização apressada dos elementos da cultura popular:
Nós, modernos, manifestamos dois defeitos grandes: bastante
ignorância e leviandade sistematizada. (...) É que os modernos, ciosos da
curiosidade exterior de muitos documentos populares nossos, confundem o
destino dessa coisa séria que é a Música Brasileira com o prazer deles,
coisa diletante, individualista e sem importância nacional nenhuma. O que
deveras eles gostam no brasileirismo que exigem a golpes duma crítica
aparentemente defensora do patrimônio nacional, não é a expressão natural
e necessária duma nacionalidade não, em vez é o exotismo, o jamais
escutado em música artística, sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-
régia. Mas um elemento importante coincide com essa falsificação da
entidade brasileira: opinião de europeu. O diletantismo que pede música só
nossa está fortificado pelo que é bem nosso e consegue o aplauso
41
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1972. 42
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo/Brasília: Martins/INL, 1972.
43
estrangeiro. (...) A Europa completada e organizada num estágio de
civilização, campeia elementos estranhos pra se libertar de si mesma.
Como a gente não tem grandeza social nenhuma que nos imponha ao
Velho Mundo, nem filosófica que nem a Ásia, nem econômica que nem a
América do Norte, o que a Europa tira da gente são elementos de
exposição universal: exotismo divertido.
Mário demonstra preocupação com os exotismos folclóricos presentes na música que
de nada serviriam para a elaboração da arte nacional. As manifestações populares, sobretudo
as folclóricas, deveriam ser tomadas como matrizes para composições de obras eruditas,
artisticamente elaboradas.
Toda a diversidade musical do ―populário‖ deveria concorrer para a formação de
nossa musicalidade étnica pois:
Uma arte nacional não se faz com a escolha discricionária e
diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do
povo. O artista tem só que dar pros elementos já existentes uma
transposição erudita que faça da música popular, música artística, isto é -
imediatamente desinteressada43
.
A música, folclórica e popular, é interessada na medida em que se vincula a
determinados aspectos da vida cotidiana ou a rituais coletivos, como a canção de ninar, a
canção religiosa, o canto de trabalho ou de recreação, o ritmo marcial, etc. A música
desinteressada, ou erudita, feita para se ouvir, visa o puro deleite, é isenta de qualquer critério
de funcionalidade.
Como Vinicius de Moraes e Baden Powell, nos afro-sambas, enquanto compositores e
intérpretes de música popular, contribuíram com modificações no cenário artístico, na medida
em que captaram diferentes aspectos, tanto dos processos de modernização técnica como das
tentativas de revitalizar certas tradições? Pretende-se desenvolver o tema a partir de suas
articulações com alguns movimentos artístico culturais, principalmente no que diz respeito a
ruptura moderna proporcionada pela bossa nova e seu desdobramento, ao longo dos anos
43
Idem. p. 15
44
1960, que resultou na MPB. Também de que forma os ideais do modernismo musical
nacionalista, que remete aos trabalhos de Mário de Andrade, no final da década de 1920.
O objetivo desse trabalho é, a partir dos afro-sambas compostos por Baden Powell e
Vinícius de Morais entre os anos de 1962 e 1965, discutir a tradição musical popular
brasileira, principalmente a partir da ruptura moderna proporcionada pela bossa nova. E de
que forma os ideais do modernismo musical nacionalista, proposto por Mário de Andrade no
final da década de 1920, ressurgem nos anos 60 como referência no trabalho de compositores
ligados à MPB.
Material e métodos:
Em janeiro de 1966, Baden Powell (1937-2000) e Vinicius de Moraes (1913-1980)
gravaram pelo selo Forma44
o LP ―afro-sambas‖ contendo oito faixas compostas pela parceria
entre 1962 e 1965. Nesse disco, considerado por muitos críticos e músicos uma obra seminal
da MPB,45
os artistas trouxeram a público uma série de sambas que, através de uma
elaboração erudita, tematizam elementos da cultura popular afro-brasileira. Na contra-capa do
LP é Vinícius quem diz:
Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última
instância, para a África, permitiram-lhe realizar um novo
sincretismo: carioquizar, dentro do espírito do samba moderno,
o candomblé afro-brasileiro, dando-lhe ao mesmo tempo uma
dimensão mais universal. [...] É esta, sem dúvida, a nova
música brasileira e a última resposta que dá o Brasil –
44
Gravadora ―independente‖ de música popular de Roberto Quartin, herdeira da bossa nova, que teve uma curta
existência, mas, ao longo dos anos 1960, foi responsável pela gravação e lançamento de outros discos relevantes
como ―Inútil paisagem‖ (1964), primeiro disco de Eumir Deodato; ―Quarteto em Cy‖ (1964) e ―Som definitivo‖
(1965), os dois primeiros discos do grupo; ―Coisas‖ (1965), de Moacir Santos; ―Desenhos‖ (1966), primeiro
disco de Victor Assis Brasil; ―Chico Fim de Noite apresenta Chico Feitosa‖ (1966); ―Tempo feliz‖ (1966) de
Baden Powell e Maurício Einhorn; ―Dulce‖ (1966), de Dulce Nunes; ―Luis Eça e Cordas‖; Trilhas sonoras da
peça ―Liberdade, liberdade‖, do show ―ViniciusPoesia e Canção‖ e dos filmes ―Deus e o diabo na Terra do Sol‖,
de Glauber Rocha, e ―Esse mundo é meu‖, de Sérgio Ricardo. Com o encerramento das suas atividades, o
catálogo da gravadora foi vendido para a Polygram (hoje Universal Music). 45
Tomamos aqui a terminologia ―MPB‖ como um estilo de canção popular moderna, surgida no início da década
de 60, que se situa num ponto médio entre uma tradição ―folclorizada‖ ancorada numa ideologia nacional-
popular, ligada a estética do ―morro‖ e do ―sertão‖, e as conquistas técnico-estéticas cosmopolitas da bossa-nova.
45
esmagadora – à mediocridade musical em que se atola o
mundo.46
Nesse texto Vinícius apresenta os afro-sambas como sendo o resultado de um
sincretismo, o produto do cruzamento de séries culturais distintas. Nesse processo a música
sacra do candomblé afro-baiano teria atingido, a partir de uma recriação do samba moderno
carioca, uma dimensão artística universal.
Esse procedimento artístico nos remete à definição de ―processos de hibridação‖
elaborada por Néstor García Canclini, e tomado como referencial na pesquisa, segundo o qual
podemos nomear de híbridos todos os processos socioculturais nos quais estruturas ou
práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas
estruturas, objetos e práticas.47
Aqui, o termo hibridação não é empregado como sinônimo de
fusão sem contradições, mas como suporte para pensar conflitos, ligados a elaboração de
formas artísticas particulares, gerados no campo da música popular na década de 1960.
De acordo com Canclini, em um mundo tão fluidamente interconectado, as
sedimentações identitárias organizadas em conjuntos históricos mais ou menos estáveis
(etnias, nações, classes), se reestruturam em meio a conjuntos interétnicos, transclassistas e
transnacionais. As diversas formas em que os membros de cada grupo se apropriam dos
repertórios heterogêneos de bens e mensagens disponíveis nos circuitos transnacionais geram
novos modos de segmentação.48
Uma questão metodológica central que emerge nesse trabalho é problematizar a
música sob várias perspectivas de maneira a analisar como se articulam nos ―afro-sambas‖,
tanto em seus aspectos musicais como poéticos, as tradições, identidades e ideologias que os
constituem, para além de implicações puramente estéticas, como um objeto sociocultural
complexo e multifacetado.
O principal desafio de se trabalhar com música popular é o de mapear as camadas de
sentido embutidas numa obra, bem como suas formas de inserção na sociedade e na história,
evitando, ao mesmo tempo, as simplificações e mecanismos analíticos que podem deturpar a
natureza polissêmica e complexa do documento musical.
46
POWELL, B & MORAES, V. Os afro-sambas. Forma, FM16, 1966. 47
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2003. 48
Ibidem.
46
Portanto, mesmo sem se tratar de um trabalho de musicologia, e fundamental para
quem se propõe a trabalhar com música, mesmo que seja numa perspectiva histórica, que se
enfrente o problema da linguagem musical.
A análise do documento musical parte da percepção da ―dupla natureza‖ da canção:
seus aspectos musicas e verbais. Levando-se em conta que a apropriação do ouvinte não se da
só pela letra ou só pela música, mas no encontro, tenso e harmônico a um só tempo dos dois
parâmetros básicos e de todos os demais elementos que formam a canção. Esses dois
parâmetros, letra e música, podem ser separados somente para fins didáticos já que na
experiência estética da canção eles formam uma unidade.
Temos de um lado os parâmetros verbo-poéticos: os motivos, as categorias simbólicas,
as figuras de linguagem, os procedimentos poéticos. E de outro os parâmetros musicais de
criação (harmonia, melodia e ritmo), interpretação (arranjo, timbres, vocalização, etc.). Numa
perspectiva histórica, toda essa estrutura que compõe uma canção é perpassada por tensões
internas, na medida em que a obra de arte é produto do encontro de diversas influências,
tradições históricas e culturais e que constituem sempre uma solução provisória na forma de
gêneros, estilos ou linguagens.
Para fins práticos de realização de um trabalho dessa natureza, o ponto de partida para
qualquer análise é o resultado final de uma estrutura poético-musical, no caso a canção, que
chega aos nossos ouvidos pronta e acabada, articulada em suas diversas partes.
Além da análise do material musical, num trabalho de historiografia torna-se
importante o uso de outras fontes escritas. Crônicas de época, memórias, biografias,
entrevistas, artigos de critica musical, matérias de imprensa utilizados como fontes cotejadas
com o registro fonográfico das canções.
Resultados e discussão:
Nos ―afro-sambas‖, a partir da música de Baden, Vinicius de Morais desenvolve sua
poesia concentrando-se na relação entre temas vitais como o amor, o sofrimento, a paz, a
coragem e a luta. Onde o indivíduo, inserido no universo mítico dos Orixás do Candomblé, se
afirma na resistência, pela vontade de amar, apesar dos desencontros da vida e das desilusões
do amor.
Do ponto de vista musical, os ―afro-sambas‖ consistem na criação de uma célula
harmônico-percutiva, propícia à execução no violão, que sustenta um ritmo vigoroso,
acentuado, com inspiração direta nos ritmos da Bahia. Se, por um lado, os ritmos são
baseados na música folclórica afro, no plano harmônico, são utilizadas, muitas vezes,
47
intricadas seqüências harmônicas com a ocorrência de cromatismos49
e dissonâncias,50
procedimento de inspiração nitidamente jazzística. Aqui encontramos um forte indício de
aproximação entre o ideal modernista de Mário de Andrade e a prática composicional dos
artistas estudados pois, no modelo proposto por Andrade, a pesquisa musical folclórica
deveria ser desenvolvida harmonicamente com base nas técnicas modernas disponíveis.
Além dessa estilização do material dos batuques do Candomblé, da Umbanda e das
rodas de capoeira, no plano melódico, temos a ocorrência de frases curtas que se desenvolvem
em cadências recorrentes como num mantra ritual, essa é uma influência marcante dos ―afro-
sambas‖, e que lhe possibilita recriar a atmosfera místico-religiosa dos cultos afro-brasileiros.
Os padrões rítmicos utilizados nos toques de berimbau na capoeira e no trabalho com
os Orixás e entidades do Candomblé e da Umbanda foram uma referência musical básica na
criação dos afro-sambas. Outra referência, como já foi dito, foram os padrões melódicos, de
origem gregoriana, mas presentes no canto ritualístico afro-brasileiro desde o início do
processo de colonização.
No plano harmônico, as canções são tratadas a partir de uma concepção de alto nível
técnico, característica básica da moderna música popular brasileira desde a bossa nova. Como
afirma na entrevista,51
Baden utilizou-se da linguagem harmônica moderna, como era
concebida no seu tempo, processo em que os jazzistas norte-americanos foram pioneiros, mas
que, a partir da bossa nova, desenvolveu-se por aqui.
Sobre o aspecto técnico, esse LP é o primeiro a integrar, numa produção de música
popular, instrumentos como o agogô, o afoché, o atabaque e o bongô, importados do
candomblé, ao lado de instrumentos modernos como sax, flauta, violão, contra-baixo e
bateria.
Além de Baden Powell no violão e de Vinicius no vocal, o disco conta ainda com
arranjos de Guerra Peixe e da produção de Roberto Quartim, dono da Forma. Participam
também o recém criado Quarteto em Cy, e a cantora Dulce Nunes, também é registrada a
participação de um ―coro‖ não profissional composto pelos amigos Otto Gonçalves Filho,
49
Cromatismo é a utilização das notas da escala cromática (composta de 12 semitons) no contexto de uma
composição tonal com a intenção de gerar tensão melódica ou harmônica, prolongando o desenvolvimento tonal
e adiando a resolução melódica. Em geral, o cromatismo está associado à utilização de alguma forma de
dissonância. Além da música erudita, o cromatismo também é utilizado frequentemente no jazz, blues, choro,
entre outros. 50
Dissonância, em música, é a qualidade dos sons parecerem "instáveis" e de terem uma necessidade aural de
serem resolvidos para uma consonância estável. A construção e alívio de uma tensão na música (dissonância e
resolução), que pode ocorrer em todos os níveis, do sútil ao mais denso é , em grande escala, a principal
responsável pelo que se percebe como beleza, emoção e expressão. 51
Filme “Saravah” de Pierre Barouh. 1969.
48
Betty Faria, César Augusto Parga Rodrigues, Eliana Sabino, Nelita de Abreu e Tereza
Drummond.
Nas letras, o amor e suas consequências surgem como uma espécie de fatalidade da
vida, revestida pela aura mística afro-brasileira. Portanto no processo de estilização
desenvolvido por Vinícius, as lendas e os nomes dos Orixás são incorporados a partir da
perspectiva paradoxal da realização do amor carnal em paz. Nessa fórmula, a paz existencial é
uma possibilidade vislumbrada na relação amorosa, mas, a possibilidade do fim do amor e a
perspectivada solidão, perda da paz, devolvem o amor à condição de problema, mesmo
quando parecia ser a solução.
No afro-samba ―Tempo de amor‖, por exemplo, Vinícius aprofunda o tema do amor-
problema. O amor aparece como um problema individual e inescapável do ser que, inserido
num ―mundo enganador‖ em que amor e paz não são compatíveis, reafirma seu compromisso
com a vida e sua dinâmica própria:
Tempo de amor
Bm7 E7/9
Bm7 Em7 A7
D6 C#m7(b5)
Ah, bem melhor seria poder viver em
paz
Bm7 Bb°
Sem ter que sofrer
Bm/A G#m7(b5)
Sem ter que chorar
G6 F#7
Sem ter que querer
49
Bm7 E7/9 Bm7 E7/9
Sem ter que se dar
C#m7(b5) C7M
Mas tem que sofrer
Bm7 E7 Bm7
Mas tem que chorar
C#m7(b5)
Mas tem querer
F#7
Pra poder amar
Em7 A7 D6
Ah! mundo enganador
G#m7 C#7 F#7
Paz não quer mais dizer amor
Ah, não existe coisa mais triste que
ter paz
E se arrepender
E se conformar
E se proteger
De um amor a mais
50
O tempo de amor
É tempo de dor
O tempo de paz
Não faz nem desfaz
Ah, que não seja meu
O mundo onde o amor morreu
Essa letra já começa com uma interjeição que indica lamento. Na primeira parte o
indivíduo se queixa da falta de paz, e ao longo das primeiras sete estrofes, expõe as
desvantagens do amor: sofrimento, choro, necessidade da força de vontade, necessidade do
risco.
Na segunda parte da música a mesma interjeição é retomada para, dessa vez, o
indivíduo se queixar do estado oposto, de paz, em que, arrependido, conformado, e por medo,
se protege de um novo amor, mas é alcançado um estado estéril. Nessa canção, a tristeza
maior deriva-se do estado de 'paz' sem amor. Mas essa paz seria uma negação da própria vida,
lançando o indivíduo a um estado de inércia existencial.
Musicalmente, essa faixa se aproxima do formato tradicional do samba, com exceção
do tratamento harmônico sofisticado dado por Baden, por exemplo, nas longas sequências
cromáticas jazzísticas e na instrumentação exótica, com destaque para o agogô que aparece ao
longo de toda a duração da música. Nessa faixa é Vinícius quem canta, apresentando o tema
na primeira vez e fazendo solo no refrão. E depois, acompanhado do coro na reapresentação
do tema. A performance vocal de Vinícius remete à dicção moderna fixada por João Gilberto
na bossa nova, com baixa potência e sem vibratos ou ornamentações excessivas.
Num texto publicado na capa do LP o próprio Viniciusde Morais diz que esse disco
―transparece uma grande liberdade criativa e um mínimo de interesse comercial‖. Isso reflete
o alto grau de autenticidade e de despojamento, marcas centrais nos ―afro-sambas‖.
As inovações propostas por esses artistas são vistas, antes de tudo, como uma
interpretação, capaz de conferir novos significados para a música popular brasileira, tanto
51
para o samba urbano como para as tradições folclóricas incorporadas, do que o simples
reflexo das transformações da sociedade.
Ao longo da pesquisa, fica evidente que o disco ―afro-sambas‖ é um trabalho de
música popular moderna, na medida em que surge como um dos desdobramentos da bossa
nova, mas, ao mesmo tempo, significa um retorno a formas arcaicas, primitivas, que remetem
a uma idéia de brasilidade ancorada em nossa ancestralidade atávica e negra. Essa operação
não se dá apenas na música composta por Baden Powell, mas também nas letras de Vinícius
de Moraes, que, a partir de seu lirismo sofisticado, consegue transitar pelo universo cultural-
religioso afro-brasileiro, explorando seu tema poético favorito, o amor e suas conseqüências.
Agradecimentos:
Agradeço a Deus e a meus familiares.
Agradeço a Universidade Federal de Viçosa e a todos os professores do
Departamento de História que fizeram parte de minha graduação. Em especial a professora
Joelma Santana Siqueira, do Departamento de Letras da mesma instituição.
Sou também grato a Universidade Federal de São João Del Rei à qual estou
vinculado através do programa de mestrado em história. Agradeço também à agencia de
bolsas da Instituição UFSJ pelo financiamento do meu trabalho de pesquisa.
Referências
ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo/Brasília: Martins/INL,
1972.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
CONTIER, Arnaldo Daraya. O Nacional e o Popular na Canção de Protesto – Os anos 60.
Revista Brasileira de História. Vol. 18 n. 35. São Paulo, 1998.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde.
São Paulo: brasiliense, 1981
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na
MPB (1959-1969). São Paulo, Annablume / FAPESP, 2001.
52
“NÓS SOMOS AS COBAIAS DE DEUS”: O MEDO DA AIDS E AS
REPRESENTAÇÕES DA MORTE NA OBRA DE CAZUZA E RENATO RUSSO
Roberto Diego de Lima*
Co-autor: José Rodrigo de Araújo Silva**
Oi, eu sou Renato. Signo de Áries, mais ou menos 30 anos. Gosto de
Billie Holiday e Rolling Stones. Gosto de beber pra caramba. De vez
em quando um milk-shake. Gosto de meninas, mas também gosto de
meninos. Todos dizem que sou meio louco sou roqueiro, um letrista,
mas alguns dizem que sou poeta. [...] Ele, signo de Áries, mais ou
menos 30 anos. Ele gosta de Billie Holiday e Rolling Stones. Ele é
meio louco, gosta de beber pra caramba. Cantor e um grande letrista.
Eu digo: ele é um poeta. Todos da legião gostariam de dedicar o show
ao Cazuza. [Discurso de Renato Russo na abertura do show da Legião
Urbana em 7 de julho de 1990. Dia da morte de Cazuza. In:
DAPIEVE, 2006, p. 119]
Introdução
A sociedade brasileira percebeu o aparecimento da AIDS no Brasil como algo restrito
a um grupo de risco que acontecia no exterior, visto que os primeiros casos começaram a ser
estudados nos EUA. A mídia brasileira teve um papel fundamental na construção do
imaginário sobre a doença e o vírus. Com chamadas de capa sensacionalistas e reproduções de
* Aluno da Pós-Graduação em História do Nordeste na UNICAP. Graduado em História pela UPE. E-mail:
rdiegolima@hotmail.com **
Mestrando em História pela UFPB. Pesquisador do GEHSCAL. Bolsista CAPES. E-mail:
rodrigope81@hotmail.com
53
um discurso moral limitado pela falta de informações sobre a síndrome, os meios midiáticos
contribuíram consideravelmente para a construção social de uma visão estigmatizada.
Nesta perspectiva, este trabalho tem como objetivo central de analise a obra de Cazuza
e Renato Russo, tendo em vista que estes dois artistas foram portadores do vírus durante as
décadas de 80 e 90, respectivamente. As atitudes, o rock and roll e o vírus são pontos em
comum entre os dois artistas, porém eles apresentaram relações distintas de como viver
sabendo que a morte estava a sua espreita, nas décadas em que a maior parte da população
relacionava diretamente o diagnóstico soropositivo à sentença de morte. Feito este panorama,
pretendemos analisar mais precisamente o período entre 1987 e 1996, que abrange o espaço
de tempo entre a descoberta do vírus por Cazuza e o falecimento de Renato Russo.
Ressaltaremos como a doença afetou diretamente a produção musical dos mesmos, analisando
alguns sentimentos transpostos nas letras como medo, solidão e dor, além das diferentes
representações da morte em suas obras.
A “peste gay” chega ao Brasil.
―Câncer em homossexuais é pesquisado nos EUA‖. Este é o título da primeira matéria
encontrada sobre a AIDS no Brasil, noticiada em 3 de setembro de 1981. A matéria era uma
tradução do Jornal do Brasil de um texto publicado no exterior que fazia referência a um
câncer que estava sendo identificados em homossexuais acima dos 50 anos, mas que já estava
sendo encontrado em jovens. Como os primeiros casos foram identificados nesse grupo
restrito, ―a relação entre a doença e os gays é rapidamente construída, relação esta, que será
abordada na maioria das matérias de jornais do Brasil e do mundo.‖ [VITIELLO, 2009, p. 36]
Desta forma, antes mesmo de serem noticiados os primeiros casos da doença no
Brasil, a população brasileira já havia tido contado com a doença através da imprensa e este
primeiro contado foi impactante visto que era uma doença até então desconhecida e que
estava sendo identificada em homossexuais. Ao ter contato com as matérias sobre o ―câncer
misterioso‖, os brasileiros passaram a enxergar a doença como algo distante, pois estava
acontecendo em um grupo específico e fora do país. O Brasil estaria (aparentemente) a salvo
da doença, mas a sociedade já identificava o ―portador do mal‖: os homossexuais.
Segundo Vitiello (2009) o Brasil tem a ‗primeira onda de pânico‘ com a morte do
estilista brasileiro Marcos Vinícius Gonçalves (o Markito) em 1983. Entretanto, a morte de
Markito reforçava a ideia de que a chamada ―peste gay‖ (como se referiam os jornais) estava
associada ao exterior. Para a população, só os gays que estiveram fora do país estariam
54
propensos à contaminação. As matérias publicadas neste ano mostram como a construção do
imaginário sobre a doença começa a ser associada ao universo dos homossexuais.
O dr. Nélson Figueiredo Mendes informa que a doença surge
sobretudo entre os homossexuais devido à promiscuidade sexual. (...)
A incidência maior entre homens sobre as mulheres é explicada pelos
médicos como sendo ‗um vírus que tem preferência pelo sexo
masculino‘. Fatores como este, no entanto, somente poderão ser
esclarecidos com o aprofundamento das pesquisas em torno da
doença. [Folha de São Paulo, 1983, p.15].
As especulações eram muitas e o teor preconceituoso das matérias era ainda maior e
acentuava cada vez mais a hostilidade com relação aos homossexuais. Todavia, nessa
primeira onda de pânico, o portador da doença desconhecida ainda era visto como vítima. As
coisas só mudam de configuração com a segunda onda de pânico a partir de 1985. Nesta fase,
o país acompanhou o caso da doença e morte do ator, diretor e professor Roberto Galízia que
diferentemente de Markito, não havia estado no exterior. Uma matéria publicada no início de
1985 na Revista Istoé afirmava que já existiam cerca de 200 casos da doença no eixo Rio-São
Paulo, o que alarmou ainda mais a população.
Nesta segunda fase percebemos na mídia uma mudança dos discursos. Se antes os
homossexuais eram vistos como vítimas do desconhecido, agora estes indivíduos passavam a
apresentar uma ameaça ao bem estar da população, tendo em vista o alto índice da doença no
país. Os discursos começam a ganhar proporções maiores e diversas vertentes tentavam
explicar e/ou justificar tal epidemia. O discurso religioso foi uma delas. Como a chamada
―peste gay‖ já estava fazendo parte do imaginário da população sobre a síndrome, os
religiosos justificavam o aparecimento da doença como um castigo divino pelas ―práticas
pecaminosas‖ dos homossexuais (algo próximo ao discurso em torno da peste negra durante o
período da Idade Média).
O discurso moral também estava bastante presente, já que as pessoas passaram a
associar a promiscuidade e as relações poligâmicas ao fator de risco. O discurso médico e
científico por sua vez também contribuiu para aumentar o medo da doença. Como podemos
observar anteriormente na matéria da Folha de São Paulo, muitos médicos pela falta de
conhecimento da síndrome começaram a incorporar aos seus discursos o posicionamento
moral e segregativo com relação aos homossexuais, o que intensificou ainda mais a aversão
aos gays no país.
55
Com os casos de morte e as explicações sobre a síndrome ainda no campo das
especulações, ter AIDS passou a ser sinônimo de ser gay e estar com a sentença de morte.
Muitos portadores de hemofilia que contraíram o vírus passaram a ter medo de assumir
publicamente serem portadores da síndrome, com medo de serem taxados como gays. ―O
preconceito com os homossexuais passou a ser tão grande, que as famílias desses gays
também tiveram que lidar com o preconceito da sociedade, e muitos familiares chegaram até a
perder o emprego e as pessoas se afastaram cada vez mais deles.‖ [VITIELLO, 2009, p. 57].
Com o passar dos anos, a síndrome foi se tornando cada vez mais discutida, mas sem
grandes confirmações sobre suas causas, efeitos e tratamento. A falta de informação acentuou
ainda mais a discriminação com portadores do vírus. As poucas informações que circulavam
nos meios acadêmicos, revistas e jornais só eram acessíveis a pequenos grupos. A maior parte
da população brasileira passa a ter mais contato com os efeitos da AIDS quando o cantor e
compositor Cazuza declara abertamente ser portador do vírus. Rapidamente, os jornais,
revistas e principalmente a televisão passaram a divulgar e acompanhar de perto as mudanças
físicas e comportamentais do cantor, aumentando consideravelmente os debates sobre o
assunto.
“Seu filho foi tocado pela AIDS!”
Estas foram as palavras ditas pelo médico Abdon Issa para Lucinha e João Araujo,
pais de Cazuza, na manhã do dia 26 de abril de 1987. Cazuza só tomaria conhecimento da
doença três dias depois. O impacto com a notícia deixou atônito o cantor e compositor, na
época com 29 anos. Cazuza já havia se queixado outras vezes de mal estar e fez um exame
anteriormente, mas o resultado naquela ocasião havia sido negativo. A questão que
pretendemos ressaltar é a mudança na obra do cantor após o impacto da doença em sua vida.
No ano de 1987, quando recebeu a noticia, Cazuza havia lançado o álbum Só se for a dois,
talvez um dos mais românticos de sua carreira solo.
Rapidamente o medo do desconhecido toma conta do artista e no ano seguinte o tom
romântico e as palavras doces sobre o amor foram substituídos pela incerteza da vida, pela
agressividade da revolta e pela busca incessante de alguma ideologia para viver. O peso da
guitarra que abre o disco no ano de 1988 anuncia um Cazuza que estava disposto a partir para
uma guerra sem estratégias, pois neste caso pouco se conhecia sobre o seu adversário. O
álbum Ideologia está carregado de símbolos que nos ajudam a compreender o momento de
dúvida, fragilidade e medo.
56
Meu partido é um coração partido / E as ilusões estão todas perdidas /
Os meus sonhos foram todos vendidos, tão barato que eu nem acredito
(...) E aquele garoto que ia mudar o mundo, agora assiste a tudo em
cima do muro (...) Ideologia eu quero uma pra viver.
Em outro trecho da música Cazuza adverte sinalizando através da frase ―o meu prazer
agora é risco de vida‖, ainda a ideia muito forte da relação estabelecida entre o sexo e o
vírus. Em outra passagem, o compositor relata a mudança em seus hábitos cotidianos após a
notícia e relata sua tentativa de fuga da realidade quando afirma: ―eu vou pagar a conta do
analista pra nunca mais ter que saber quem eu sou‖. Tomar consciência de ser portador do
vírus em um momento em que não se tinha muita expectativa de vida para o portador da
síndrome provocava uma tentativa constante de fuga através de analises e outros tipos de
terapias. 52
A segunda faixa do disco também carrega um teor forte em seu conteúdo. Agora
Cazuza busca a ironia para se referir ao fato de ser soro positivo. Na letra de Boas Novas o
prenuncio de esperança é rapidamente confundido com a possibilidade de morte. ―Senhoras e
senhores/ Trago boas novas/ Eu vi a cara da morte e ela estava viva‖, cantava Cazuza. O
confronto entre as imagens de vida e morte podem ser interpretadas como a tenuidade e
fraqueza diante desses dois temas. A morte começa a aparecer nas letras do cantor como algo
presente, constante e, portanto, vivo.
Rapidamente as pessoas e a imprensa começaram a especular sobre sua aparência e a
possibilidade de estar com o vírus. A letra de Blues da Piedade demonstra sua indignação e
aversão às pessoas que falavam e especulavam sobre ele. ―Vamos pedir piedade/ Senhor,
piedade!/ Pra essa gente careta e covarde‖, repetia Cazuza. O disco também tem um pouco
de romantismo e músicas voltadas aos aspectos políticos, como é o caso de Brasil faixa que
ganhou projeção nacional com a interpretação de Gal Costa sendo tema de abertura da novela
Vale Tudo de Gilberto Braga.
O ano de 1988 foi o ano de ‗urgência‘ para o cantor. Muitas parcerias foram
estabelecidas e Cazuza tinha rapidez nas composições. Começou uma verdadeira corrida
contra o tempo para escrever o maior número de canções o mais rápido possível. Muitas
dessas letras entraram no disco seguinte Burguesia. A velocidade da escrita e o
52
No caso do Cazuza, além das análises o cantor buscou alternativas como o ‗Santo Daime‘. Cf: ARAUJO;
ECHEVERRIA. Cazuza: Só as mães são felizes. 2º ed. São Paulo: Globo, 2004.
57
estabelecimento de parcerias naquele ano mostram como o jovem passou a temer o futuro e
todos os esforços de escrever e registrar sua voz afirma o momento de conflito vivenciado em
seus últimos anos.
Quando finalmente Cazuza resolve abrir sua vida e declarar ao grande público como
estava sendo os anos de luta com a síndrome, o cantor recebe em sua casa a revista Veja.
Cazuza foi honesto. Contou sobre sua doença, fez declarações sobre sua relação com a família
entre outras coisas. Ao escrever e editar o texto os jornalistas da revista, segundo o próprio
Cazuza, foram oportunistas. A matéria de capa ilustrava o cantor de braços cruzados e uma
chamada sensacionalista com o seguinte título: ―CAZUZA: Uma vítima da Aids agoniza em
praça pública‖. Segundo Lucinha Araujo, quando leu a notícia seu filho passou mal e foi
socorrido às pressas na Clínica São Vicente.
A repercussão negativa desta matéria levou inúmeros fãs, artistas e pessoas
sensibilizadas com o artista a enviarem cartas à redação da revista criticando a postura da
matéria. O próprio Cazuza escreveu uma carta resposta que foi veiculada em diversos meios
de comunicação. Nesta, o cantor afirma: ―Não estou em agonia, não estou morrendo. Posso
morrer a qualquer momento como qualquer pessoa viva. Afinal, quem sabe com certeza o
quanto ainda vai durar?‖ [ARAUJO; ECHEVERRIA, 2004, p. 284].
O disco Burguesia de 1989 foi a compilação da pressa e os últimos registros do
Cazuza. Um disco que mostra toda garra e esforço para deixar sua marca e suas ideias. Neste
álbum encontramos músicas como Nabucodonosor, uma homenagem ao seu avô. Nesta
música percebemos os fios de esperança ao tocar no tema da morte quando afirma: ―Agora eu
acredito em reencarnação/ e que a morte baby, não é tão ruim assim, não‖. O momento de
desespero logo cria uma zona de conforto na esperança do apego em algo divino, em uma
possibilidade do retorno.
Este álbum, porém é o que mais se aproxima da revolta. Em diversas músicas
podemos notar o tema da morte e da Aids presentes nas letras. Na música Eu agradeço, o
tema religioso ganha uma conotação revoltosa. Como nos versos: ―Agradeço por ter
desobedecido/ Por ter cuspido no teu altar sagrado/ E por saber que nunca vou ter fé/ E vou
sorrir só com um canto da boca‖. Na letra de Azul e Amarelo mais uma vez o tema religioso
associado a não aceitação: ―Senhores deuses me protejam/ De tanta mágoa/ Estou pronto
para ir ao teu encontro/ Mas não quero, não vou, não quero‖.
Entre todas as musicas do disco, a mais significativa em termos de imagens sobre a
síndrome e a morte é Cobaias de Deus, composição do Cazuza e da Angela Rorô. Nesta faixa
o cantor explicitou todo sentimento de dúvidas e incertezas que marcaram as décadas iniciais
58
da chegada do vírus no país. Cazuza faz um convite à reflexão já em seus versos iniciais: ―Se
você quer saber como eu me sinto/ Vá a um laboratório ou labirinto/ Seja atropelado por esse
trem da morte/ Vá ver as cobaias de Deus andando na rua, pedindo perdão/ Vá a uma igreja
qualquer/ Pois lá se desfazem em sermão.‖
Em outro momento Cazuza continua ―Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco/
Desse hospital maquiavélico/ Meu pai e minha mãe, eu estou com medo Porque eles vão
deixar a sorte me levar.‖ A ideia de estar preso está muito forte no sentido de estar preso à
doença, aos limites da medicina que na ocasião ainda não possuía o conhecimento necessário
para conter os avanços da doença e neste caso, a única alternativa seria ―deixar a sorte o
levar‖. O medo da morte é compartilhado com as figuras mais próximas que naquele
momento servem de conforto. Os pais de Cazuza estiveram presentes e acompanharam de
perto toda luta do cantor, por isso a referência àqueles que certamente não o abandonariam no
momento de sua partida.
A solidão também é relatada pelo artista quando afirma: ―Nós as cobaias, vivemos
muito sós‖. A solidão de quem prefere se ausentar do convívio social, de quem se sente
hostilizado pelas pessoas, de quem prefere não estender a dor aos familiares e amigos. A
última faixa do disco, intitulada Quando eu estiver cantando, também toca no tema da
solidão. ―Quando eu estiver cantando/Não se aproxime/ Quando eu estiver cantando/ Fique
em silêncio/ Quando eu estiver cantando/ Não cante comigo‖, advertia Cazuza. O cantor
morre no dia 7 de julho de 1990. Algum tempo depois outro cantor que também havia sido
―tocado pela Aids‖ regravou esta última música em um tributo. Renato Russo assume uma
postura diferente do amigo e os sinais de reclusão, solidão e nostalgia estarão bem mais
presentes em suas letras, como veremos a seguir.
“É tão estranho, os bons morrem jovens.”
―Ao nascer o homem está mais perto da morte‖. Essa é uma ideia que povoa a mente
humana, pois a morte é comum a todos os seres. Entretanto, o pensamento e os
questionamentos sobre ela estão presentes nas mais diversas culturas durante toda história da
humanidade. Por inúmeros motivos, algumas pessoas intensificam e canalizam suas atenções
para este tema. É o que acontece, por exemplo, com pessoas que são diagnosticadas com
doenças incuráveis ou de grande risco de morte. Com Renato Russo não foi diferente.
Em dezembro de 1990 Renato recebe o exame com resultado positivo para o vírus
HIV, notícia essa que só confirmava as suas suspeitas, pois o mesmo tinha se envolvido em
59
um relacionamento intenso com um americano, mesmo sabendo que esse possuía um ex-
namorado portador da síndrome. ―De qualquer forma parecia-lhe uma condenação, muito
cruel, que sua procura por Eros tivesse trombado daquele jeito com Thanatos‖. [DAPIEVE,
2006, p. 118]
Do momento em que recebe a notícia até sua morte em 1996, quase seis anos depois
do diagnóstico, o assunto foi mantido em sigilo tanto para mídia quanto para sua família e
companheiros de banda. Renato não queria repetir o martírio público vivido por Cazuza
falecido no mesmo ano por complicações causadas pela AIDS. Assim suas letras seriam a
única forma de expressar seus sentimentos sobre esse problema que estava vivendo em
segredo, o que nos leva a um trabalho de investigação nas entrelinhas da obra de Renato
Russo em seus últimos anos de vida, período de extrema produtividade musical.
O primeiro disco de músicas inéditas da Legião Urbana após Renato tomar
conhecimento da síndrome foi o álbum intitulado V, lançado no final de 1991. O trabalho é
fruto das reflexões vigentes no país (como o caso Fernando Collor), por isso o conteúdo forte
de contestação politica, das músicas ―Metal contra as Nuvens‖ e ―Teatro dos Vampiros‖. O
Descobrimento do Brasil lançado em novembro de 1993 seria o primeiro disco fruto do novo
momento que vivia Remato Russo, nesse álbum podemos ver claramente um sentimento
nostálgico com letras que remetem há tempos passados, mas na grande maioria essa retomada
do passado acontece de forma saudosa, de lembranças boas como as brincadeiras de infância
citadas nas letras de Giz e O Descobrimento do Brasil: ―Desenho toda a calçada / Acaba o
giz, tem tijolo de construção / Eu rabisco o sol que a chuva apagou‖.
É costumeiro do homem ao estar em situações que o aproximam da morte desenvolver
lembranças de coisas boas que viveu, e a infância para a maior parte das pessoas é o período
de maior felicidade por ser um momento de inocência sem grandes preocupações. Em O
Descobrimento do Brasil, Renato tem seu primeiro contato artístico com a morte. Na musica
Vinte e Nove Renato faz uma espécie de retrospectiva de sua vida. O título da faixa nos sugere
alguma relação com a doença, já que foi por volta dos 29 anos que Renato contraiu o vírus.
Ainda nesse disco, Renato Russo nos traz a música Love In The Afternoon, uma
espécie de carta de despedida escrita para Luís, um amigo de Renato que morreu baleado na
saída de uma boate e no álbum foi dedicada a Tavinho Fialho (ex-baixista da banda na turnê
do V e pai do filho da cantora e amiga Cássia Eller). A música ganha uma conotação especial
tendo em vista a relação do cantor com a morte naquele momento. ―É tão estranho / Os bons
morrem antes / Me lembro de você / E de tanta gente que se foi / Cedo demais (...)‖. Sobre
essa mistura de sentimentos presentes no disco, Arthur Dapieve escreveu: ―Era seu auto-
60
retrato daquele momento. O disco era esperançoso mas pragmático, nascido da constatação
de que a gente aprende a sobreviver e conviver, dia após dia, com coisas imagináveis‖.
[DAPIEVE, 2006, p. 140]
Nesse primeiro momento de convivência com a doença, Renato demostra um
sentimento de otimismo, procura fazer o tratamento de controle da síndrome e se apoia no
trabalho para manter-se ―sóbrio‖ diante da situação vivida. Assim, no ano de 1994 lança seu
primeiro álbum solo The Stonewall Celebration Concert, disco em que homenageia o
aniversário de 25 anos do levante gay contra a repressão policial no bar Stonewall em Nova
York. Partes dos royalties do disco foram repassados para a organização de combate a miséria
de Betinho, também soropositivo. O disco trazia também em seu encarte inúmeras
organizações de apoio a pessoas portadoras do vírus HIV (entre estas a Sociedade Viva a
Cazuza), grupos de apoio aos homossexuais, mulheres etc.
Entre o período que vai da descoberta do vírus até o lançamento do último álbum da
banda em 1996, Renato vive um turbilhão de emoções diferentes como já era de se esperar de
uma pessoa ―emocionalmente instável‖ como classificaria sua amiga Denise Bandeira no livro
do Dapieve (2006). Renato transitava seus sentimentos entre o céu e o inferno, oscilando em
fases serenas como quando trabalhou nos seus álbuns solos, e os períodos depressivos em que
os sintomas da doença juntamente com a recaída na bebida e as especulações na mídia sobre
seu estado de saúde acentuavam seu estado depressivo.
É dessa fase mais melancólica que brotam as últimas composições de Renato Russo,
que fariam parte do último disco da banda A Tempestade ou O Livros dos Dias (1996) e do
álbum póstumo Uma Outra Estação (1997). Na fase de produção desses trabalhos Renato
estava cada vez mais debilitado e mais recluso, sendo ―diagnosticado‖ pela mídia, que não
sabia do verdadeiro quadro clínico, como estando com síndrome do pânico. As gravações da
voz de Renato nas músicas foram feitas quase todas em uma única tomada, sem repetições -
exceto no caso de Via Láctea, deixando o resto do trabalho para Dado e Marcelo, pelas
complicações em seu estado de saúde.
O disco A Tempestade ou O Livro dos Dias poderia ser resumido em palavras como
melancolia, dor e despedida. Renato pressentia que eram seus últimos registros como o poeta
da Legião Urbana. Àquela altura a morte estava cada vez mais próxima.como podemos
observar na epígrafe que abre o disco: ―O Brasil é uma república federativa cheia de árvores
e gente dizendo adeus‖, parafraseada de Oswald de Andrade. O disco começa com Natalia,
nesta letra Renato deixa nas entrelinhas pistas de sua doença e da falta de esperança: ―Vamos
falar de pesticida / E de tragédias radioativas / De doenças incuráveis / vamos falar de sua
61
vida / Preste atenção ao que eles dizem / Ter esperança é hipocrisia‖. A música retrato do
estado clínico do músico, Via Láctea fala da febre constante que atingia Renato nos últimos
anos de vida: ―Hoje a tristeza não é passageira / Hoje fiquei com febre a tarde inteira‖. Esse
disco era um livro sem final feliz. A maior parte das letras tratavam de decepções amorosas
como Mil Pedaços e L‘avventura, e solidão como Esperando Por Mim, música em que
Renato profere a seguinte frase: ―Digam o que disserem / O mal do século é a solidão‖.
No dia 11 de outubro de 1996 Renato Manfredini Jr. deixa o país de luto. O Brasil e a
mídia tomam conhecimento do sofrimento ao qual o artista passava através das músicas.
Logo, temas como AIDS, solidão e depressão são rapidamente associados à obra. Muito desse
sofrimento pode ser percebido na faixa Clarisse que a princípio fazia parte do disco A
Tempestade, mas só foi lançado após sua morte no póstumo Uma Outra Estação: ―Quem diz
que me entende nunca quis saber / Aquele menino foi internado numa clínica / Dizem que por
falta de atenção dos amigos, das lembranças / Dos sonhos que se configuram tristes e inertes
/ Como uma ampulheta imóvel, não se mexe, não se move, não trabalha./ E Clarisse está
trancada no banheiro / E faz marcas no seu corpo com seu pequeno canivete / Deitada no
canto, seus tornozelos sangram / E a dor é menor do que parece / Quando ela se corta ela se
esquece / Que é impossível ter da vida calma e força / Viver em dor, o que ninguém entende‖.
Referências Bibliográficas
ARAUJO, Lucinha; ECHEVERRIA, Regina. Cazuza: Só as mães são felizes. 2º ed. São
Paulo: Globo, 2004.
CAPUTO, Rodrigo Feliciano. O homem e suas representações sobre a morte e o morrer: um
percurso histórico. Revista multidisciplinar da UNIESP – Saber Acadêmico. nº 06. dez. 1998.
p. 73-80.
CHARTIER, Roger. El Mundo como Representación. Historia Cultural: entre práctica y
representación. Barcelona: Editorial Gedisa, 1992.
DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
MARCELO, Carlos. Renato Russo: o filho da revolução. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
62
MELLER, Lauro. Cobaia de Deus: os estágios de aceitação da morte nas canções de Cazuza.
Revista Brasileira de Estudos da Canção. N.1 v. 1 jan-jun 2012. p. 1-24.
MENEGHIN, Paolo. Entre o medo da contaminação pelo HIV e as representações simbólicas
da AIDS: o espectro do desespero contemporâneo. Rev.Esc.Enf.USP, v. 30, n. 3. p. 399-415,
dez. 1996.
VITIELLO, Gabriel. A AIDS em cena: os primeiros protagonistas da maior epidemia no final
do século XX. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz. Rio de Janeiro, 2009.
SIMPÓSIO:
PERSPECTIVAS DA PINTURA BARROCA: TEORIA, ICONOGRAFIA E
ICONOLOGIA
Coordenadores:
ANDRÉ CABRAL HONOR – Doutorando - UFMG
MATEUS ALVES SILVA – Mestrando - UFMG
O ARREBATAMENTO DO PROFETA ELIAS: AS PINTURAS DE TETO DAS IGREJAS
DA ORDEM PRIMEIRA DO CARMO DO RECIFE/PE E DA ORDEM TERCEIRA DE
DIAMANTINA/MG
André Cabral Honor
Doutorando UFMG/CAPES/Reuni
cabral.historia@gmail.com
Mateus Alves Lima
Mestrando UFMG/CAPES
mateus.silva@gmail.com
63
Palavras-chave: pintura; barroco; carmelitas; terceiros
1) Introdução:
Estudar a arte desenvolvida na América Portuguesa implica analisar uma pluralidade
de expressões que convivem num mesmo período histórico e que adquirem características que
variam de acordo com o contexto local. O termo barroco, mais comumente usado para
designar estas manifestações artísticas nos trópicos, tem sido objeto de incessante discussão
entre os ditos historiadores da cultura e da arte.
O termo tem sido empurrado, espremido, espancado e pulverizado em
submissão a qualquer desejo dos críticos. De um termo limitado às
artes plásticas do século XVII, ele tem sido transformado num curinga
de proporções superversáteis, sem restrições de consideração com
tempo, lugar, ou sujeito. (MENASHE, 2006, p. 339)53
Neste artigo, busca-se trabalhar a ideia da imagem barroca como síntese de uma
sociedade cuja cultura católica tornou-se o fio conector entre Portugal e o seu império
ultramarino. Foi sob a égide do cristianismo que se buscou criar os laços de identificação
entre lugares tão longínquos e distintos. A representação barroca, com sua conceituação
persuasiva-narrativa, se encaixava perfeitamente neste propósito: mais do que figurar, a
imagem deveria convencer. Como já colocava o estudioso italiano Giulio Carlo Argan:
Toda ou quase toda a arte do século XVII, em planos e em direções
diversas, é animada por um espírito de propaganda, pelo menos no
sentido de que suas imagens agem precisamente como imagens, e não
por hipotéticos ou implícitos significados conceituais. É verdade que o
século XVII é o século das grandes alegorias, mas as alegorias não são
imagens reduzidas a conceitos, e sim conceitos reduzidos a imagens:
em outras palavras, não se quer conceitualizar a imagem, mas dar ao
conceito, transformado em imagem, uma força que deixa de ser
53
Texto original: ―Put all theses views together and add any number of derivates and whatever clear concept one
may have had of the barroque recedes further and further into a dense thicket of contraditions. (…) The term
has been pulled, squeezed, beaten and pulverized into whatever submission a critic desires. From a term
limited to the plastic arts of the seventeenth century it has been transformed into a catch-all of superversatile
proportions untrammeled by considerations of time, place, or subject‖.
64
demonstrativa para se tornar a solicitação prática que é a própria
imagem. (ARGAN, 2004, p. 60)
No século VII, o Papa Gregório Magno, o mesmo que criou o canto gregoriano, já
afirmava que a pintura deveria ser utilizada na conversão dos infiéis da mesma maneira que a
escrita servia para o conhecimento da religião entre os clérigos. Esta escrita alegórica, que se
adaptava aos contextos locais no intuito de atingir o seu expectador com maior eficácia,
buscava atingir a todos, especialmente os iletrados. Todavia, não se tratava apenas de
representar o divino, mas de conduzir o fiel a acreditar no mesmo.
Se dirigida para o bem, a função da imagem é prática, educativa,
didática; mas essa função não se explica apenas pelo ato de transmitir,
por meio de imagens, exortações morais, ou exemplos edificantes. A
Igreja quer manifestar na arte a origem e a extensão universal da
própria autoridade; porém, já que esta tende sobretudo a influir
concretamente sobre o comportamento humano, em vez de enunciar e
impor verdade da fé, deve poder condicionar todas as ações dos
homens, qualquer que seja sua posição social. (ARGAN, 2004, p. 57)
Ao estudar as pinturas de tetos em perspectiva no Portugal de D. João V, Magno
Moraes Mello percebe esta necessidade de persuasão, base da arte barroca, e sua presença na
América Portuguesa por intermédio da conquista ultramarina.
O discurso demonstrativo instituído pela arte barroca em todas as suas
representações articula-se em função de uma necessidade de
persuadir. Nesta persuasão não conta um apurado sentido técnico e
não existe uma postura a priori que o discurso retórico queira
demonstrar. Todo o discurso deve-se aplicar a qualquer sujeito e o que
passa a ser importante é nada mais que a acção de persuadir quem
quer que seja. (MELLO, 1998, p. 100)
É importante trabalhar com as especificidades das expressões artísticas que se
manifestam em toda a América Portuguesa, contudo, se ater apenas à localidade pode
ocasionar a perda da visão de um sentido geral desta arte, que apesar de transformada no
território luso no continente americano, possui origens que remontam à Europa do século
65
XVI. Perder de foco este laço que une essas obras no território português significa incorrer em
interpretações equivocadas sobre o seu uso e significado. A persuasão e a teatralidade, peças
chaves para compreensão das manifestações artísticas barrocas, foram ressignificadas no
território lusitano das Américas, porém sem perder de vista a necessidade de conversão por
intermédio da narrativa católica, com destaque para a hagiografia.
Os tetos das igrejas da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Diamantina e
Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo do Recife trazem no centro de suas pinturas a
iconografia de Elias em sua carruagem de fogo. Figura importantíssima dentro do
cristianismo, a fundação da Ordem de Nossa Senhora do Carmo era atribuída ao profeta.
Fig. 1 – Arrebatamento de Elias – Igreja da Ordem Terceira Carmelita – Diamantina –
MG
Na figura 1 reproduz-se a visão central do teto do templo carmelita da ordem terceira54
de Diamantina. Nunca é demais lembrar que as ordens primeiras eram proibidas de se
estabelecerem na Capitania das Minas Gerais. A imagem mostra a passagem bíblica (2 REIS,
2: 11-13) em que Elias é arrebatado aos céus. De pé, o profeta Eliseu recebe de seu mentor o
manto que significa a passagem do seu dom profético. Ao seu redor uma falsa arquitetura
adorna o teto da igreja, apresentando quatro importantes santos carmelitas em seu vértice,
personagens estes que remetem à origem da ordem monástica.55
54
Algumas ordens religiosas são divididas em três: ordem primeira, que agrega os frades; a ordem segunda,
composta por monjas; e a ordem terceira, formada por homens e mulheres leigos que decidem se submeter a um
código de normas escritas no intuito de estarem mais próximos da religião, não faziam voto de castidade, nem de
pobreza. 55
São eles: São Bertoldo, São Brocardo, Santo Alberto e Santo André Corsino.
66
Fig. 2 – Arrebatamento de Elias – Igreja da Ordem Primeira de Nossa Srª do Carmo –
Recife – PE. Autor: desconhecido.
A figura 2 faz parte da composição iconográfica do teto da igreja da Ordem Primeira
de Nossa Senhora do Carmo da cidade do Recife que traz uma narrativa da vida do profeta
Elias. À primeira vista, aparenta tratar-se da mesma cena, porém por meio de um exame um
pouco mais apurado, percebe-se a existência de diferenças iconográficas cruciais que
modificam o conteúdo alegórico do conjunto no templo.
2) Material e métodos:
O presente artigo busca discutir a relação que há entre a iconografia barroca do
arrebatamento do profeta Elias nas Igrejas da Ordem Terceira do Carmo de Diamantina e na
Igreja da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo do Recife. Inserindo-as dentro do
contexto histórico da presença religiosa dentro das capitanias de Minas Gerais e Pernambuco,
a análise busca comparar as iconografias estabelecendo uma relação entre seus aspectos
pictóricos e representativos e as conjunturas sociais em que estas pinturas estão inseridas.
Para isso, utilizar-se-á o método iconológico proposto por Erwin Panofsky (1991) entendendo
o mesmo como um estudo interpretativo que busca entender os significados intrínsecos de
uma iconografia dentro de um determinado contexto histórico.
3) Resultados e discussão:
Através de um estudo comparativo é possível compreender melhor algumas diferenças
singulares que existem entre as duas cenas representadas nos tetos das respectivas igrejas
considerando o contexto em que a edificação encontrava-se inserida.
67
Os primeiros frades carmelitas a chegarem à América Portuguesa, aportaram em
Olinda, Capitania de Pernambuco, junto com a armada de Frutuoso Barbosa no ano de 1580.
Quase cem anos depois, na segunda metade do século XVII, alguns membros da ordem
montaram um convento no povoado do Recife, iniciando assim uma história de vitupérios
entre os carmelitas de Olinda e Recife, que se aliaram as respectivas elites locais participando
da disputa de poder que havia entre elas. Juntamente com a fundação do convento no Recife,
iniciaram-se as obras de seu templo primeiro, que foi constantemente reformado e
descaracterizado até o seu tombamento pelo IPHAN.
O teto da igreja sofreu uma nova pintura no início do século XX. Uma base branca e
algumas rocalhas adornando lustres afixados no teto cobriram toda a pintura dedicada ao
profeta Elias. A restauração na década de setenta redescobriu a imagem original, porém
deixou a pintura num estado bastante alarmante. A falsa arquitetura que adorna todo o teto
encontra-se extremamente esmaecida.
Acompanhada de perto pelos frades carmelitas, a pintura do forro central da igreja
esboça passagens da hagiografia do profeta Elias, algumas delas apócrifas, que fogem ao
narrado no ciclo bíblico de Elias. Ao centro, o profeta sobe aos céus numa carruagem de fogo.
Mesmo com o estado de degradação da camada pictórica da quadratura, a sensação que se tem
é que a arquitetura pintada oblitera os nichos que contém as passagens hagiográficas de Elias.
Constam apenas seis pequenos painéis que se perdem em meio às colunas e balcões do
trompel‘oeil.
Já na composição central, a falsa arquitetura eleva o olho do espectador diretamente
para o centro do painel que passa a dominar toda a composição iconográfica do teto. Nesta
passagem o profeta não se encontra na passagem do arrebatamento, mas num momento
posterior. Seu sucessor, Eliseu já não se encontra mais em cena e o profeta Elias abre os
braços, aceitando o destino e a glória que lhe foi imposta: a de subir aos céus com o corpo
sem passar pela morte física. As aberturas que há na arquitetura pintada ressaltam a ideia do
espaço aberto, fundamental para a iconografia do profeta Elias já arrebatado.
Fugindo do padrão iconográfico de representação do profeta a Ordem Carmelita, o teto
expõe a história do seu fundador relacionando o próprio papel da ordem dentro da Capitania
de Pernambuco. Ao se esmerar em catequizar e formar novos frades carmelitas e converter a
população ordinária — fatos representados nas passagens iconográficas do profeta nos nichos
da falsa arquitetura em que o mesmo aparece com um livro na mão doutrinando os membros
da ordem e a população leiga — os frades da ordem primeira se encontram com sua salvação
garantida acompanhando Elias em seu encontro com Deus. O profeta em sua carruagem
68
enfatiza a importância de cumprimento das atribuições dos carmelitas na América Portuguesa
para que a salvação lhe seja garantida. Relembra que o papel individual de cada frade é finito,
porém que a ordem é perene, pois ao morrer, o frade delega seus frutos e trabalho a outro,
num moto perpétuo.
O arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, tem sua origem nas primeiras
entradas dos bandeirantes rumo ao norte da capitania mineira, em 1713. Nos anos seguintes,
com a descoberta dos diamantes (1719-22) e a extração ainda não regulamentada permitiu-se
uma investida maior da coroa portuguesa estabelecendo, em 1730, a demarcação do Distrito
Diamantino. Durante todo o século XVIII o arraial esteve subordinado à Vila do Príncipe
(centro da Comarca do Serro Frio e atual cidade do Serro), tornando-se vila - e cidade,
posteriormente - apenas no século XIX (1831 e 1838).
Em 1759 foi fundada a Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do
Carmo do Arraial do Tijuco, subordinada à Ordem Terceira instalada em Vila Rica (Ouro
Preto), devido à grande quantidade de fiéis existente naquela localidade e a grande distância
entre essas duas localidades. Com o objetivo de difusão do culto mariano e a santificação dos
membros, foi permitida à Ordem a sua instalação na antiga capela de São Francisco de Paula,
por doação do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira56
. No ano de 1765 foram
iniciadas as obras de construção do novo templo e grande parte da decoração interior,
sobretudo no que diz respeito à pintura, ficaram ao encargo de José Soares de Araújo (1723-
1799)57
.
José Soares de Araújo, natural da freguesia de São Vitor em Braga, norte de Portugal,
surge primeiramente na documentação no Tijuco ao apresentar a sua patente de irmão da
Ordem 3a do Carmo. Sua função como guarda-mor na capitania foi estabelecida no ano de
1766. Na igreja daquela ordem José Soares apresentou grande perícia técnica na execução das
pinturas da capela-mor e da nave e a consideração por parte dos contratantes revela essa
mesma habilidade:
foi chamado Jozé Soares de Araújo, que hé o mais perito na dita Arte,
que há neste continente, e com elle se ajustou fazer a dita obra, do
arco da capella mor para dentro e feito pello preço de um conto e
coatrocentos mil reis (apud SANTOS, 2002, p. 72).
56
O importante contratador passaria à história não só por seus feitos na extração de diamantes mas
principalmente por seu relacionamento com a escrava alforriada Chica da Silva. Para mais ver: (FURTADO,
2003). 57
Sobre o pintor José Soares de Araújo ver: (SANTOS, 2002).
69
Em 1766, José Soares executou o forro da capela-mor, e doze anos mais tarde (1778)
retornaria à igreja para executar a grande obra da nave que ainda estava por fazer, como figura
na documentação: ―o tetto do corpo da igreja todo fixado de Alquitetura com prespectiva com
ornatos e figuras em os lugares competentes‖ (apud SANTOS, 2002, p. 83).
Nota-se que não há explicitamente documentada qualquer intenção na execução do
quadro ou visão central, desde que esse estivesse relacionado à pintura de falsa arquitetura
bem executada (arte da qual José Soares era considerado o perito).
No forro da nave Jozé Soares de Araújo, graças à sensibilidade de sua
alma barroca, executa uma obra em que o ilusionismo e a
espacialidade são representados de forma magistral, conseguindo um
maior efeito de profundidade ao prolongar as paredes além do espaço
real da cimalha da nave. Colunas e fustes retos convergem
paralelamente para pontos de fuga alinhados ao centro do forro,
sustentando possante entablamento de linhas retas que emoldura a
visão celestial e sustentam as duas torres fingidas das laterais, cenas
de representação do divino. O desenho destas torres segue o mesmo
esquema empregado pelo artista, de linhas paralelas que convergem
para pontos alinhados ao centro. A visão central representa Santo
Elias arrebatado aos céus em um carro de fogo, entregando o manto a
Santo Eliseu e se desenvolve de maneira frontal horizontalmente à
área da ‗envazadura‘ (SANTOS, 2002, p. 85).
Naquele templo vê-se, portanto, um jogo relacional entre a temática histórica do
quadro central e a estruturação arquitetônica que valoriza este mesmo quadro. Os espaços que
poderiam ser abertos ao exterior (com exceção das duas aberturas na parte central, povoadas
de anjos) são fechados, impedindo uma orientação do olhar que fuja àquele do quadro central.
Toda a perspectiva é orientada para o centro do forro, evidenciando ainda mais a cena
historiada. Apesar de ocupar a maioria do espaço do teto, a arquitetura se submete ao quadro
central, valorizado pelo fundo avermelhado do céu sobre o qual avança Elias, em distinto
contraste com o plano terreno azul-esverdeado em que se encontra Eliseu. Como grande
construção, a arquitetura chega a se perder em meio à evidência do quadro central. A
discrição apresentada como solução dos cantos da estrutura arquitetônica (em que figuram os
santos ligados à Ordem Carmelita) não deixa de evidenciá-los, desenvolvendo-se em uma
longa cena historiada que abarca não apenas os elementos mais tradicionais da ordem como
70
também os seus principais membros. A ordem terceira parece, com a inserção de sua história
na pintura do forro da nave, realizar o convite à participação de um público leigo que
necessita ser persuadido e compreender os benefícios da associação junto aos carmelitas, ao
passo que contribui para o culto mariano com a pintura realizada na capela-mor. Os dois
objetivos descritos anteriormente com a instalação da ordem são assim contemplados nas
pinturas que decoram o interior do templo.
Enquanto no Recife enfatiza-se a ideia do arrebatamento do profeta aos céus após ter
cumprido sua missão terrena, em Diamantina, o teto busca ressaltar a passagem do dom
profético de Elias para Eliseu, inserindo no contexto das Minas a ordem primeira carmelita,
através da exposição de sua origem, numa região em que os frades eram proibidos de
estabelecer conventos. Neste sentido, enquanto a falsa arquitetura da Igreja do Carmo do
antigo Arraial do Tijuco busca adornar o evento bíblico, o trompe l‘oeil da Basílica do Carmo
de Pernambuco, puxa a visão do fiel para o céu aberto, abrindo espaço no teto para o
arrebatamento, a recompensa divina após uma vida de fidelidade a Cristo.
4) Agradecimentos:
Agradecemos ao professor Magno Moraes Mello por ceder o seu acervo fotográfico da
igreja do Carmo de Diamantina; a Maria Cláudia Magnani pela hospitalidade em nos receber
nesta cidade dos diamantes; a Província Carmelita Calçada do Recife pela permissão em
fotografar a basílica de Nossa Senhora do Carmo; a Ludmila Porto e Iá Viana pela
hospedagem e carinho. Também agradecemos a Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Minas Gerais pela ajuda de custo e as bolsas de fomentos à pesquisa
CAPES/Reuni e CAPES.
5) Referências:
2 REIS. In: BÍBLIA de Jerusalém. 4 reimp. São Paulo: Paulus, 2006. p. 507-545.
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Trad. Maurício
Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004
FURTADO, Júnia Ferreira.: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das letras, 2003.
FURTADO, Júnia Ferreira. O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito diamantino
no período da Real Extração. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte, PPGH/UFMG, 2008.
71
MELLO, Magno Moraes. A pintura de tectos em perspectiva no Portugal de D. João V.
Lisboa: estampa, 1998
MENASHE, Louis. Historians define the barroque: notes on a problem of art and social
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Disponível em: <http://www.jstor.org/>. Acesso em: 12 mar. 2006.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
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Diamantina e as pinturas ilusionistas de Jozé Soares de Araújo: identificação e
caracterização. 2002. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Escola de Belas Artes,
Universidade Federal de Minas Gerais. 2002.
SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro Frio
(província de Minas Gerais). 4a ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUsp, 1976.
WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da História da Arte: o problema da evolução
dos estilos na arte mais recente. Trad. João Azenha Junior. São Paulo: Martins Fontes, 1984
[1915].
A ARTE DA PRUDÊNCIA: A CULTURALIDADE BARROCA E A CIVILIDADE
COMO ARTE NO SÉCULO DE OURO DA ESPANHA
Gabriel Valença Rios58
Tiago Licarião de Mello59
Resumo: este artigo tem por objetivo analisar a obra A Arte da Prudência de Baltasar
Gracián no contexto do Século de Ouro da Espanha, período aqui compreendido como o
momento de maior esplendor artístico entre os séculos XVI-XVII, tanto da literatura quanto
das artes em geral. Essas artes produzidas no Século de Ouro espanhol também são
caracterizadas pelo estilo artístico denominado de Barroco. Este por sua vez é aqui trabalhado
a partir da concepção de José Antonio Maravall que o entende não apenas enquanto noção
58
Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. Bolsista PIBIC/CNPq
2011-2012. Pesquisador do GEHSCAL (UPE) – Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina.
E-mail: gvalenarios@gmail.com 59
Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. . Pesquisador do GEHSCAL
(UPE) – Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina. E-mail: tiagolicariao@hotmail.com
72
artística, mas como um conceito de época, onde as desordens do período produziram uma
mentalidade mais pragmática para com o mundo. Trata-se de ideais que procuraram
apresentar a noção de ―ordem‖ e ―unidade‖ em todos os âmbitos da vida social, inclusive
fazendo da arte seu veiculo de expressão. Foi o momento em que a cultura espanhola,
também, foi marcada pelo enrijecimento das diferenças sociais baseadas nos estamentos da
sociedade do Antigo Regime, que visava separa os nobres das classes menos abastadas. Nesse
sentido, as artes procuraram retratar essa realidade, sobretudo a literatura que nessa época
produziu manuais de comportamento que enunciam modos de agir a luz da ideologia barroca.
A Arte da Prudência constitui uma das obras mais importantes do gênero, onde a civilidade
estabelece códigos sociais que asseguram exercícios de sociabilidade para com o meio
público. Nesse sentido, este artigo se propõe a estudar a obra de Baltasar Gracián se articula
nessa temporalidade.
Palavras-chaves: Barroco – civilidade – representação – códigos sociais –– século de ouro.
INTRODUÇÃO
Objetivamos com esse trabalho apresentar as características da cultura barroca, partindo
da obra A Arte da Prudência de Baltasar Gracián, localizando os elementos da ideologia
comportamental da época em seus aforismos, e contextualizando com os acontecimentos
políticos, econômicos, sociais e culturais que marcaram o advento da modernidade nos
séculos XVI-XVII.
Utilizamos como referencial teórico as perspectivas acerca da noção de barroco de José
Maravall e Eduardo D‘Oliveira França, assim como as perspectivas históricas do período de
autores como Lewis Munford, Carlos Fuentes, H. R. Trevor-Hoper, Michael Mullett, assim
como as noções de comportamente e civilidade de Nobert Elias, Roger Chartier, Jacques
Revel. E também as concepções artisticas e de história da arte de Juan-Ramón Triadó e
Bartolomé Bennassar.
MATERIAL E METÓDOS
Partimos da confluência das ideias entre os autores para apresentar as características da
mentalidade barroca da Espanha do Século de Ouro. Estabelecemos um dialogo com a fonte,
onde pudesse tornar-se clara os fundamentos da mentalidade da época, destacada pelas ideias
de Baltasar Gracián, como também pelo significado da sua obra para a cultura barroca.
73
RESULTADOS E DISCUSSÕES
De acordo com Carlos Fuentes, A Europa no século XVII viveu, entre os reinados de
Carlos V a Felipe IV, o século espanhol em matéria de religião, vida intelectual, arte política e
costumes. 60
Pois apesar da intolerância, da corrupção, da incompetência extensão demasiada,
que se assistiu com a morte de Felipe II, a decadente monarquia espanhola do século XVII
haveria de coexistir com o maior florescimento da cultura na Espanha, o então Siglo de Oro.
Durante muito tempo a definição de ―Século de Ouro‖ era opaca e limitada. Bartolomé
Bennassar nos informa que alguns autores ao se referir à expressão, entendiam-na como o
período de maior esplendor da literatura espanhola, omitindo as outras artes e seus respectivos
artistas. Dessa forma, o autor propõe definir o Século de Ouro espanhol como uma época em
que a Espanha havia mantido um papel dominante no mundo, em matéria de política, de
armas, de diplomacia, de economia, de religião, de artes e de letras 61
. É tido como a época
gloriosa da literatura e pintura espanholas – dos dramaturgos Lope de Veja e Calderón de la
Barca, dos poetas Quevedo e Gôngora, do romancista Cervantes, e de pintores como El
Greco, Velázquez, Zurbarán e Murillo. 62
Artes que de certa forma acompanham, justifica e
propaga o desenvolvimento hegemônico espanhol entre os séculos XVI-XVII.
Desde o século XV, observa-se a formação de uma hegemonia espanhola com o advento
da modernidade para a consolidação de uma unidade absoluta. Segundo Mullett, a tradição
espanhola do catolicismo era alimentada por uma ideia de militância cristã num país onde o
catolicismo tinha de defrontar o islamismo e o judaísmo, sendo a crença na cruzada ainda
muito forte 63
, uma cruzada que no século XVI visaria que combater o protestantismo em
nome da unidade cristã, fazendo da Espanha, em consequência, terreno fértil para o
desenvolvimento da Reforma Católica, ficando assim longe dos conflitos religiosos que se
desencadearam por toda Europa. Esse ainda era assegurado, fundamentado e propagado pela
coroa espanhola, que tanto lutou pela reconquista do seu território e que não haveria de
desintegra-lo pelas ―heresias‖ do mundo afora.
Além disso, o Estado espanhol estava fortalecido economicamente com os lucros das
grandes navegações, que alimentaram o luxo e a pompa da corte espanhola e fez com que
60
FUENTES, Carlos.O Espelho Enterrado – Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001. Pag. 168. 61
BENNASSAR, Bartolomé. La España del Siglo de Oro. Barcelona: Crítica, 2001. Pag.10. 62
I FUENTES, Carlos.O Espelho Enterrado – Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.pag. 168-169. 63
MULLETT, Michael. A Contra-Reforma e a Reforma Católica nos Princípios da Idade Moderna
Européia. Lisboa: Gradativa 1985. Pag. 37.
74
cidades com Sevilha despontassem como centros comerciais, e Madrid como centro de
consumo extravagante dos monarcas, onde estabeleciam suas novas cortes, absorvendo a
riqueza de todo país, tal qual o fez Felipe II transferindo sua residência para esta cidade em
1561.
Bassannar afirma que no Estado Espanhol, sobretudo, uma grande parte dessa riqueza
proveniente do comercio e exploração de metais e pedras preciosas oriundos do Novo Mundo
suscitaram a um extraordinário desenvolvimento artístico 64
, que aumentou consideravelmente
os recursos para uma atividade de mecenato régia, assim como também das grandes famílias,
das igrejas, dos monastérios, dos grandes mercados e financeira; além disso, a ideologia
absolutista influía os soberanos a utilizar esses recursos para exaltar a monarquia e
singularmente a dinastia 65
. E a arte lhe será o melhor veiculo para essa propagação desses
valores, uma arte que deveria apresentar uma numa linguagem ortodoxa capaz de sustentar a
sua visão unitária do mundo espanhol e que fosse irrelevante e sobrevalente aos conflitos e
decadências que figuraram a desordem dentro e fora da Espanha, que se assistiram com o
advento do século XVII. 66
Nesse sentido, Carlos Fuentes enuncia que
Desse modo, o conflito espanhol do século de ouro se dá
entre a ordem oficial e a desordem extra-oficial. Entre uma e outra,
ocorreram múltiplas reações que deram ao século de ouro espanhol
seu sentimento de urgência e talvez mesmo sua beleza. Pois, nessa
prolongada tensão entre o que era permitido e o que era proibido, o
que se pode ver e o que deve permanecer invisível, ou entre o dito e o
não dito, há uma beleza pictórica, verbal e dramática mais veemente
que qualquer silêncio. Tudo isso existiu na Espanha com um sentido
de perigo, estimulação e inteligência. 67
Contudo, o que poderia parecer um impecilio para o florescimento da arte espanhola
em questão, acaba se tornando, de certa forma, uma fonte de inspiração. Pois o que se assiti
com o advento do século XVII é a ocasião de crises de varios ambitos em alguns paises
europeus, inclusive a monarquia espanhola. De acordo com o José Maravall, a crise
64
BENNASSAR, Bartolomé. La España del Siglo de Oro. Barcelona: Crítica, 2001. Pag. 227. 65
Idem. Pag. 228. 66
FUENTES, Carlos.O Espelho Enterrado – Reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2001. Pag. 172. 67
Idem.
75
econômica, causada em parte pelas extravagâncias das cortes segundo Trevor-Roper, que
resultou em alterações monetárias, na insegurança do credito, e ainda nas contestações
populares por conta do empobrecimento das massas e pelo fortalecimento da propriedade
agraria senhorial, são algumas das razões pelas quais se criou um sentimento de ameaça e de
instabilidade na vida social e pessoal dos europeus, dominadod por forças de imposição
repressora que haveriam se constituir na base da mentalidade da epoca. 68
Além disso, o Concilio de Trento fez com que Igreja reformula sua mensagem,
tornando-a mais acessível, em certa medida, preocupada com uma maneira de educar as
massas cristãs, que no passar dos tempos iniciais da sua criação, tomou uma atitude mais
pragmática, dando forma a uma instituição que procurou demonstrar e ao mesmo tempo
reafirmar a sua ideologia por meio de persuasão e propaganda. Nessa perspectiva, surge então
nas artes a expressão ínfima da legitimidade católica da época: o barroco.
De acordo com Kalina Silva e Maciel Silva, será partir desse movimento, que vai se
entender arte como instrumento de propaganda e pregação, onde a Igreja passou a exercer
maior controle sobre a produção artística, construindo uma estratégia que também foi bastante
utilizada pelo Estado absoluto como forma de glorificar o poder de seus monarcas 69
. Triadó
vai definir arte barroca como uma manifestação de um poder estabelecido e, quase sempre,
absoluto.70
. Nessa perspectiva, Maravall assegura que o barroco vai atender tanto os interesses
da Igreja como os do Estado já que utilizando meios plásticos a cultura do Século XVII
puderam alcançar seus objetivos de propaganda, contudo isto vale não apenas para a arte,
mas para todas as manifestações de cultura dirigida a um público com pretensões de
captação; portanto, para a política, a moral, a religião, etc., vale o que foi dito sobre a arte.
71
A partir dessa explanação podemos perceber que Marravall entende uma barroco não
apenas enquanto arte também é entendido em um sentido social e cultural, como uma
definição de época. Eduardo D‘Oliveira e José Maravall vão afirmar que a cultura barroca
surgiu a partir da crise econômica e dos conflitos sociais nos séculos XVI e XVII, período que
por sua vez abrange o então Siglo del Oro espanhol. Para superar esta crise o estado se tornou
mais rígido e novas formas de pensamento e de moral foram criadas.72
Além disso
68
MARAVALL, Jose Antonio. A Cultura do Barroco – Análise de Uma Estrutura Histórica. São Paulo,
Imprensa Oficial/Edusp. 1997. Pág. 45. 69
Idem. 70
TRIADÓ, Juan-Ramón. Saber Ver a Arte Barroca. São Paulo: Martins Fontes, 1991. pag.08. 71
MARAVALL, Jose Antonio. A Cultura do Barroco – Análise de Uma Estrutura Histórica. São Paulo,
Imprensa Oficial/Edusp. 1997. Pag. 390. 72
SILVA & SILVA. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2005. pag. 31.
76
Sua cultura foi marcada pelo enrijecimento das diferenças sociais
entre os estamentos da sociedade do Antigo Regime, pelo aumento
dos privilégios da nobreza, por um intenso controle da Igreja sobre a
vida cotidiana e pela criação de uma rígida etiqueta, com uma moral
dos bons costumes que visava separar o nobre educado do burguês
inculto. 73
O cultivo do ócio e a ostentação do luxo (atribuídos à corte) tornaram-se os mais
marcantes aspectos sociais do barroco, segundo Kalina Silva e Maciel Silva. Apesar disso, o
Barroco vai buscar em sua arte apresentar um caráter unitário, total. De acordo com Triadó,
isso vai ser bem observado no espaço arquitetônico que vai se transformar num teatro sacro,
em que a pintura e a escultura são elementos de representação 74
. Essa é outra característica do
barroco: a teatralidade, em que muitos espaços públicos transformam-se, de certa forma, em
palco de ostentação 75
. Para Munford, a construção de cidades barrocas, no sentido formal,
constituía uma personificação do drama e ritual predominante que tomou forma na corte:
era, com efeito, um aformoseamento coletivo dos modos e dos gostos do palácio 76
.
Uma corte que que assegurava sua repsentatividade a partir da a exuberância e da
opulência dos seus gastos, reafirmava sua condição de vida, já que, segundo Nobert Elias,
exisita nas sociedades da época uma pressão social para o consumo em função do status e a
concorrência pelo prestigio, que exige despesas financeiras como símbolo de status 77
. Nesse
sentido, Munford ressalta que a corte era um mundo em si mesmo, um mundo no qual todas
as duras realidades da vida eram mostradas numa lente de diminuição e ampliadas todas as
suas frivolidades, onde o prazer era um dever, o ócio, um serviço, e o trabalho honesto, a
mais mesquinha forma de degradação.78
Um mundo que estava inacessivel à maioria dos individuos da sociedade espanhola
barroca, até mesmo da rica classe burguesa, pois as cortes criaram outro mecanismo para
fortalecer o erijecimento social que havia entre as classes: a etiqueta. Nos trajes, na linguagem
73
Idem. 74
Idem. pag. 10 75
SILVA & SILVA. Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto, 2005. pag. 32. 76
MUNFORD, Lewis. A cidade na história: Suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo:
Martins Fontes, 2008.. Pág. 448. 77
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia da
corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor. 2001. P. 90. 78
MUNFORD, Lewis. A cidade na história: Suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo:
Martins Fontes, 2008. P. 447.
77
exercida pelo monarca e pela corte, as impressões eram extremamente calculadas. Há uma
lógica na sociedade de corte. É a da etiqueta: cada pessoa, cada classe conhece o seu lugar e
respeita o dos outros. 79
Mas mesmo a etiqueta sendo criada como um distanciamento social, nem de longe
deixou de exercer influência sobre as classes menos abastadas. Da mesma forma que a
exuberância e a opulência, a etiqueta funcionou como um mecanismo de persuasão e veículo
de promoção da vida da corte, como um modelo a ser seguido. Um modo ser, que procurou
ser representado até mesmo pelos homens comuns.
Assim, o Siglo de Oro também foi marcado pelo surgimento de um tipo de homem, um
ser que tomaria o barroco como um estilo de vida, que por meio de códigos sociais, instituídos
em parte pela etiqueta, assegurava sua representatividade na sociedade estamental
seiscentista: o fidalgo. De acordo com Eduardo D‘Oliveira França, era o ser que
fundamentava o mundo barroco, na fidalguia estava a nobreza do homem abastado, entendo-
se por fidalguia não apenas como a mais baixa qualificação de nobreza, mas também como
um complexo de atitudes éticas, que lutam para sublimar suas paixões, e sob a aparência de
uma orgulhosa serenidade, esconde seus sofrimentos e angustias. 80
Observasse a partir da afirmação acima que o homem do barroco é um ser que se projeta
para o público. Segundo Roger Chartier o advento da modernidade vai operar numa ruptura
entre o espaço público e o privado, onde o primeiro se demarcar pela civilidade. Além disso, o
autor ressalta que a partir da civilidade, o individuo deve submeter as emoções, deve submeter
as emoções, refrear os afetos, dissimular os movimentos da alma e do coração, de modo que
cada vez mais a racionalidade reja cada conduta à relação em que se inscreve e ajusta cada
comportamento ao efeito que deveria produzir. Assim, a civilidade é acima de tudo uma arte,
sempre controlada, da representação de si mesmo para os outros, um modo estritamente
regulamentado de mostrar a identidade que se deseja ver reconhecida. 81
Para Revel, a idéia de civilidade também acompanha os princípios da Reforma Católica,
já que visa criar condições de um relacionamento agradável e licito, à luz das novas
exigências da religião. comportamentos que satisfaçam as normas de uma sociabilidade cada
vez mais imperativa e insinuante, convidando cada indivíduo a separar em si mesmo o que é
mostrável (civil e, portanto, bom) do que todos — ele também — devem ignorar. Dessa
79
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no antigo regime. Do sangue è doce vida. São Paulo: Brasiliense.
1999. P. 09. 80
FRANÇA, Eduardo D‘Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Ed. Hucitec. 1997. Pag. 85. 81
CHARTIER, Roger. Formas de Privatização. In: ARRIÈS, Philippe; DUBY, Georges (dir.). CHARTIER,
Roger (org.). História da Vida Privada: da Renascença ao Século das Luzes. Vol.3. São Paulo Companhia
das Letras, 2009. Pag. 165.
78
forma, o espaço individual vê-se simultaneamente invadido pelo controle coletivo e, em parte,
rechaçado ao silêncio vergonhoso das proibições. 82
E nisso consistia o ideal de homem do barroco, um ser onde o espaço rege suas
atitudes, limita suas emoções, um espaço governado pela civilidade, pela existência coletiva,
da sociabilidade distintiva da cone e dos salões, que institui rituais sociais, cujas normas
obrigatórias devem aplicar-se a todos os indivíduos, seja qual for sua condição.83
. O fidalgo
espanhol se pautava para esse organismo social e que por sua vez será figurado nas artes
também; aparece em romance – é o Dom Quixote de Cervantes. No teatro – é o Don Juan de
Molina. Ou na doutrina cortesã – é o herói e o discreto de Gracián. 84
Explorando o sentimento humano em voga, os escritores barrocos tiveram um objetivo
claro, um problema central: a conduta. E para propagar e atrair os outros indivíduos para esse
sistema de relações, esses autores proclamam que seguindo essas normativas, assegurando
que com isso chega-se ao benefício, ao ―sucesso‖ ou êxito, à felicidade. Como, por outro
lado, o escritor barroco crê ter conseguido, ao final de seu escrutínio, meios de confrontar e
vencer ou driblar a sorte, isso significa que esse benefício que podemos chamar de vida do
homem, depende, para plena eficácia, da conduta. 85
Nesse sentido, A Arte da Prudência (Oráculo manual y a arte de prudência) de
Gracián, escrito em 1647, apresenta uma construção que foi considerada como um importante
marco artístico e social da cultura barroca. Este prosador do estilo literário concepticista na
Espanha do Séc. XVI discorre sobre como a intencionalidade pode favorecer um conjunto de
situações através de comportamentos considerados adequados e de bom grado na sociedade
espanhola. De acordo com Paula Accioly de Andrade foi recorrendo à filosofia moral da
época e ao fundamento da ordem social, que esse autor procurou identificar a moral que
organiza a conduta social no mundo barroco. Ele retrata um homem que por ser guiado pela
discrição (discernimento), se torna universal, e que seguindo esse modelo de vida capaz de se
adaptar às circunstâncias do cotidiano. Nessa perspectiva, o autor introduz um debate sobre a
filosofia moral que trata do comportamento humano e da normatização das ações livres. 86
Em
alguns dos aforismos da obra se observa essa percepção:
82
REVEL, JACQUES. Os usos da civilidade. Ibidem. Pag. 186-187. 83
CHARTIER, Roger. Formas de Privatização. Ibidem. Pag. 164 84
FRANÇA, Eduardo D‘Oliveira. Portugal na Época da Restauração. São Paulo: Ed. Hucitec. 1997. Pag. 74. 85
MARAVALL, José Antônio. A Cultura do Barroco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
Pág. 125. 86
ANDRADE, Paula Accioly de. El discreto e a arte da prudência: a contribuição de Baltasar Gracián na
formação do homem de corte. Dissertação de Mestrado. – PUC – RIO, 2006. Pag. 15-22.
79
6
Alcançar a Perfeição.
Ninguém nasce perfeito. Deve ser aperfeiçoar dia a dia, tanto
pessoal quanto profissionalmente, até se realizar por completo, repleto
de dotes e de qualidade. Será reconhecido pelo requintado gosto,
inteligência aguda, intenção clara, discernimento maduro. Alguns
nunca se realizam, falta-lhe sempre alguma coisa. Outros requerem
um longo tempo para se formar. O homem completo – sábio na
expressão, prudente nas ações – é aceito, e até desejado para privar do
seleto grupo dos discretos. 87
Ser discreto, por sua vez não significa ser necessariamente recatado, mas sim
circunspeto; dobrar suas emoções, fazer-se esmero ao espaço público: são as operações da
civilidade no cotidiano do homem barroco. Em outro aforismo se observa essas
características:
120
Viver de maneira prática.
Mesmo o saber deve estar em voga; quando o saber for desusado, finja
ignorância. Mudam-se os tempos, assim como as expressões e o gosto.
Evitemos de nos exprimir como um antigo; tenha gosto como um
moderno. O gosto da maioria impõe o comportamento social. É o que
importa em todas as coisas. Deve seguir o gosto comum e avançar
para o aperfeiçoamento, acomodando-se ao presente ainda que o
passado lhe pareça melhor, tanto nos adornos do corpo como nos da
alma. Só na bondade não vale esta regra de vida, pois sempre se deve
praticar a virtude. Muitos valores vieram a parecer antiquados: falar a
verdade, manter a palavra. Os bons parecem pertencer aos velhos bons
tempos, embora sejam sempre queridos. Se é que ainda há alguns, são
raros, e nunca são imitados. Que triste época esta, quando a virtude é
rara e a maldade está no cotidiano. Viva o discreto o melhor que
87
GRACIÁN, Baltasar. A Arte da Prudência. São Paulo: Martin Claret, 2011. Pag.26.
80
puder, embora não seja como gostaria. Valorize o que a sorte lhe
concedeu mais do que lhe recusou. 88
Nesse aforismo observamos o quanto os homens modernos estavam presos ao
regimento social, reafirmando dessa forma o triunfo das aparências, característica marcante da
cultura barroca. Tratava-se de uma cultura dirigida e ao mesmo tempo recíproca, onde
conhecer-se e conhecer os demais é conhecer dinamicamente, em seu desdobramento prático,
as possibilidades de comportamento 89
. Como ressalta Maravall
Para Gracián e para os barrocos, viver é viver cautelosamente
entre os outros, o que nos faz compreender que esse saber gracianesco
e barroco se resolve em um ajustado desenvolvimento manobreiro na
existência: ― É essencial o método para saber poder viver‖. Por isso
Gracián personifica o individuo que possui esse saber no tipo de
―negociante‖, sujeito de conduta tecnificada, representativo, por
excelência, da espécie do ―homem agível‖. 90
Assim, o livro de Gracián pode ser é considerado como um guia de conduta sobre um
novo modelo de comportamento, onde a essencialidade dessas verdades estava inserida no
cotidiano do mundo barroco, que tentava articular as atitudes do individuo de uma maneira
pela qual ele não expusesse suas imperfeições e aperfeiçoasse as virtudes, quando não o
possível, dissimulasse. A Arte da Prudência conduz o homem a um modelo de individuo, o
homem barroco, que se insere em uma estrutura de ordem externa como também interna.
Contudo, pela perspectiva de Jacques Revel deve-se frisar que a socialização dessas condutas
não pode ser lida apenas nos termos de uma submissão imposta às pessoas. Ela só poderia ter
atingido plenamente seus efeitos a partir do momento em que cada um se empenha em tornar-
se seu próprio amo, e em considerar a norma como uma segunda natureza, ou melhor, como
a verdadeira natureza por fim reencontrada. 91
88
Idem. pag. 69-70 89
MARAVALL, Jose Antonio. A Cultura do Barroco – Análise de Uma Estrutura Histórica. São Paulo,
Imprensa Oficial/Edusp. 1997. Pag. 123. 90
Idem. pag. 124. 91
REVEL, JACQUES. Os usos da civilidade. In: ARRIÈS, Philippe; DUBY, Georges (dir.). CHARTIER, Roger
(org.). História da Vida Privada: da Renascença ao Século das Luzes. Vol.3. São Paulo Companhia das
Letras, 2009. Pag. 185.
81
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à organização do II Colóquio de História e Arte da Universidade Federal
Rural de Pernambuco (UFRPE) pela oportunidade de expormos nosso trabalho no evento.
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Privada: da Renascença ao Século das Luzes. Vol.3. São Paulo Companhia das Letras,
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82
SIMPÓSIO:
Diálogos entre História e Religiosidade:
práticas, representações e relações de poder
na Colônia e no Império
Coordenador:
BRUNO KAWAI SOUTO MAIOR DE MELO – Mestrando - UFPE
GUSTAVO AUGUSTO MENDONÇA DOS SANTOS – Mestrando – UFRPE
OS JUDEUS E A PRÁTICA COTIDIANA NO BRASIL HOLANDÊS (1630-1645)
José Gustavo Wanderley Ayres92
RESUMO: Este artigo é fruto de uma revisão historiográfica realizada com base nos relatos
da presença judaica no Brasil Holandês. Por meio desta procura-se discutir a forma de
religiosidade vivenciada pelos judeus no contexto da Presença da Companhia de Comércio
Holandesa no Brasil a partir de 1630. Dessa forma, enfocamos e analisamos as práticas
cotidianas criadas com o objetivo de fixarem sua religiosidade, vivências, singularidades
históricas e socioculturais. Dentro deste contexto busca-se debater a temática da prática
cotidiana no Brasil Holandês e das vivencias judaicas, bem como as relações de poder no
mundo colonial. Para o desenvolvimento da análise, utilizamos teóricos que pensam o espaço,
como Milton Santos e as praticas cotidianas, como Erving Goffman e Agnes Heller. Desse
modo, pretendemos contribuir com as pesquisas recentes acerca do espaço, a influência
cultural da ocupação holandesa e o uso cotidiano do espaço.
Palavras-Chave: Judeus. Cotidiano. Vivências.
92
Discente do 2º ano do curso da Pós-Graduação em História Social e da Cultura do Departamento de História –
UFRPE. jogus_wa@yahoo.com.br
83
OS JUDEUS E O COTIDIANO DO AÇÚCAR
A ocupação holandesa ocorreu devido à confluência de interesses dos judeus
ashkenazim e sefaradi que atuavam na Companhia das Índias Ocidentais. A união desses
ocorre ―sob a direção dos anciãos e a solidariedade que é umas das características das
comunidades judaicas, que teriam facilitado à rápida infiltração dos elementos e do capital
dos israelitas no comércio, na corretagem e na exploração agrícola‖ 93
. Desse modo, os
judeus foram pouco a pouco se apoderando dos principais negócios da colônia: o comércio a
retalho, a venda de açúcar, os contratos para cobrança de impostos, a venda de negros, a
carretagem e o comércio do açúcar e os engenhos.
Não apenas o comércio concentrava grande número de indivíduos, os engenhos, no
início da ocupação holandesa ―eram verdadeiras zonas de concentração humana por haver,
nas sedes dos mesmos, de 20 a 30 pessoas, fora os que permaneciam afastados nas roças.‖
94A cultura da cana de açúcar, permitiu uma vida faustosa não apenas de grande número de
europeus, compreendeu também portugueses, flamengos, italianos e espanhóis que aqui
entraram com facilidade, por serem súditos do Rei da Espanha. Essa população heterogênea
fundou uma civilização eminentemente agrícola, de modo que, todos desejavam ser senhores
de vastos quinhões de terras.
Isso é evidenciado por Ferlini ao expor ―as articulações sociais, a composição étnica,
os padrões culturais, as relações de trabalho e o poder forjaram-se em torno dos engenhos e
as lavouras da cana‖ 95
no Nordeste do Brasil no início do século XVII. Embora o comércio e
a produção do ouro branco atraíssem muitos correligionários judeus asquenazitas e sefaraditas
participantes da Companhia das Índias Ocidentais (W.I.C.), os lucros e o comércio tinham
suas teias produtivas em torno do açúcar e de suas rendas. Desse modo, encontram-se judeus,
apesar de estarem em menor numero devido às restrições do período, na vida cotidiana do
Brasil Holandês como trabalhadores livres, comerciantes, rendeiros, usurários, comerciantes
mundiais do açúcar e senhores de engenhos, lavras e partidos.
O cotidiano do açúcar girava não apenas em torno dos engenhos, também das relações
familiares (familiariato), onde conviviam sob o mesmo teto; filhos, tios, tias, sobrinhos,
irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. No centro se encontrava o proprietário do
engenho que além de gerir a produção, geria também as relações familiares, determinando o
93
ANDRADE, Manuel Correia de. Economia Pernambucana do século XVI. Recife: Arquivo Público
Estadual, 1962, p. 252 94
Idem, p. 53 95
FERLINI, Vera Lucia Amaral. A civilização do açúcar (séc. XVI a XVII). São Paulo: Brasiliense, 1ed, 1984,
p.7
84
papel de cada um. Nesse mundo colonial, os judeus praticavam sua religiosidade por meio de
manifestações cotidianas de culto nos lares e casas que habitavam. Desse modo, a reunião
social era o ponto importante para a manutenção cultural na colônia para os judeus que
habitaram o Brasil durante o período holandês.
Assim, sob a produção de açúcar, as localidades foram se estabelecendo, de modo que
―os senhores de engenhos e lavradores possuíam casas nas cidades, mas delas estavam
ausentes a maior parte do ano, entregues aos trabalhos da safra‖, controlando a produção, o
plantio, o produto e sua comercialização96
. No período holandês, essa circularidade tornou-se
cada vez mais acentuada, não apenas pela produção econômica dos senhores de engenhos e
lavradores, no inicio da conquista; mas pela compra de terras e engenhos. Verificou-se um
crescimento maior da importância burocrática e financeira dos comerciantes e agentes fiscais,
entre os quais muitos eram judeus declarados.
Os judeus que adquuiriram terras no periodo holandês eram geralmente versados no
comércio e no desenvolvimento do mercado monetário se destacando nas mais diversas
habilidades da economia urbana. No período, no entanto, se caracterizam por expandirem seus
investimentos em torno do governo provincial na borda do Recife e da Ilha Antônio Vaz, das
lavras, terras e partidos. Essa prática segundo José Antônio Gonsalves de Mello facilitou a
penetração dos judeus ashkenazim, que ―começaram a afluir para a Holanda, vindos da
Polônia e Alemanha, em conseqüência da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648)‖, de modo
que, ―os seus interesses coincidiram quase sempre com os dos holandeses‖ 97
. O governo da
Companhia das Índias Ocidentais permitia assim, àqueles que quisessem residir nas terras
aonde se viesse estabelecer a presença da Cia, quer fossem espanhóis, portugueses e nativos,
católicos ou judeus, deveriam se submeter ao seu regimento e às leis estrangerias. Nesse
período veem-se assim, um maior afluxo de víveres, pessoas e principalmente de acionistas
judeus ou cripto-judeus para o Brasil, mantendo estreita conexão com o Governo, a W.I.C. e
as Companhias comerciais.
Desse modo, percebe-se que a maioria dos judeus que vinham para o Brasil apesar de
terem nacionalidade diversa, eram provenientes da Holanda. Alguns cristãos-novos de
nacionalidade portuguesa simularam a fé cristã, de modo que pudesse manter-se livre do rigor
do Tribunal da Inquisição, associam-se abertamente aos judeus e moradores locais, sob um
dominador mais indulgente. Esse fato permitiu que os eles expandissem com rapidez sua
96
Idem, p.91 97
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: influencia da ocupação holandesa na vida e na
cultura do Norte do Brasil. Recife: Coleção Pernambucana, 1978, p. 247
85
influênciano Nordeste do Brasil, formando uma das comunidades mais florescentes do
período, tornando-se o primeiro grande núcleo de população judaica das Américas (Kahal Zur
Israel), onde ―seu predomínio comercial e financeiro provocara o descontentamento de
neerlandeses e luso-brasileiros‖ 98
. 35
Assim, à medida que se consolida a conquista acentua-
se a presença de judeus na colônia e nas firmas de comércio, percebe-se que os judeus
alcançaram um nível excepcional de vida econômica, social e cultural, alcançando pela
compra o direito de habitarem uma terra.
A partir de 1635, quando da consolidação do domínio holandês com a quebra da
resistência encetada pelas tropas de Matias de Albuquerque, tornou-se cada vez maior o fluxo
de judeus que atravessavam o atlântico em busca de melhores condições sociais, econômicas
e políticas – maior abertura, aceitação e apoio em terras de Pernambuco. A busca pela terra do
açúcar, segundo Antônio Gonsalves foi baseado ―no elevado número de petições endereçadas
ao Conselho Político da Companhia das Índias‖. Percebe-se que grande parte dos solicitantes
pedia à Câmara passagem gratuita, ―havendo alguns que se comprometiam em pagar inclusive
as despesas de alimentação e translado‖, como é o caso de David Senior Coronel, grande
comerciante judeu e maior detentor de engenhos e investimentos em terras do período99
.
Isso permitiu que em Pernambuco desenvolvesse a sociabilidade judaica, por meio da
solidariedade mútua entre os seus correligionários. Essas práticas já existentes em Amsterdã
nos séculos XVII, permitiu que a disparidade entre os judeus diminuísse, minimizando as
perseguições e entraves da Companhia e da Santa Inquisição. Esse fato evidencia-se no livro
de José Antônio, ao destacar que ―a campanha antissemita não ficava só nos protestos
verbais e escritos‖, mas ―protestava-se contra a inclusão de elementos judeus na Câmara dos
Escabinos‖ 100
. Essa mesma Câmara, segundo o autor, solicitava ―ao Alto Conselho que
proibisse os judeus de manter lojas e vender retalho, bem como exercer funções de corretor‖,
pois assim, ―todos os negócios e transações iam passando para as mãos deles‖ 101
.
Esse cotidiano conflituoso, no entanto não conseguiu inibir a presença de elementos
judaicos no Brasil Holandês. À medida que se disseminava a conquista, acentuav-ase a
presença de judeus na colônia e nas firmas comerciais, infiltrando-se nos cargos da Colônia e
no comércio a retalho, alcançando um nível excepcional de vida economica, social e cultural.
98
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste. 1641-1669. 3º Ed. Rio
de Janeiro: Toppbooks, 2003, p. 78. 99
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos-novos e judeus em Pernambuco. 1542-1654
Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1989, p. 136. 100
MELLO, José Antônio Gonsalves de.Op. cit, 1978, p. 257 101
Idem, p. 255
86
VIVÊNCIAS JUDAICAS
No que se refere à vida judaica em Pernambuco, ―sabe-se que em 1630 havia
minian102
em casas particulares. Porém, só em 1636 a existência de uma sinagoga no Recife é
mencionada nos registros oficiais‖ 103
. Desse modo, percebe-se que a vivência judaica no
Brasil durante a dominação holandesa, nos primeiros seis anos da conquista foi mantida
através de reuniões particulares, privadas em casas, lavras e engenhos. Isso é destacado por
Gonsalves de Mello ao asseverar que:
Há vários depoimentos de portugueses a informar que, antes da instalação da
sinagoga no Recife em 1636, a casa de Duarte Saraiva serviu de ponto de
reunião e de culto dos judeus recém-chegados da Holanda e dos cristãos-novos
de Pernambuco convertidos ao judaísmo. Não poderia causar surpresa o fato
dessas reuniões e culto serem realizados em uma casa particular, pois que em
Amsterdam todas as primeiras sinagogas situadas em casas habitadas por
pessoas particulares.
Desse modo, as Gentes da Nação conseguiam ―se reunir nas residenciais ou nas
associações para comemorar as principais datas do judaísmo. Ainda que não possuíssem
todos os objetos litúrgicos, sincretizavam tanto as manifestações e rituais como artefatos
religiosos‖ 104
. Como não podiam transportar livros, como a Torah105
, traziam disfarçada uma
mezuzá106
, ou ainda partes e fragmentos da Torah. Desse modo, ―através das manifestações
culturais que expressavam os princípios religiosos do judaísmo, em cerimônias clandestinas
ou rituais camuflados, os judeus conseguiram manter sua identidade judaica‖ 107
, sua
religiosidade e sua forma de culto.
Isso se dava de forma a garantir não apenas a segurança dos indivíduos; também em
observância a pratica religiosa judaica que ―se desenvolvia de modo secreto, principalmente
102
Minian é o quorum mínimo de dez homens (acima de 13 anos) exigido pela lei judaica para a celebração de
um ato religioso de caráter público. Essa exigência reside no fato de que, apesar da prece individual e espontânea
também ser válida, ela é considerada imperfeita. Quando feita em conjunto, demonstra, simbolicamente, a
responsabilidade de uns para com os outros. 103
KAUFMAN, T. N. Passos Perdidos, História Recuperada. A Presença Judaica em Pernambuco. Recife:
Edição do autor, 2000, p. 24 104
Idem, p. 19 105
Torah é o livro sagrado dos judeus, onde se encontra as normas de se pratuicar a religião. 106
A mezuzá é um dos objetos rituais que marcam a presença de Deus nos lares judaicos. Trata-se de um cilindro
colocado no umbral direito das portas, contendo um pergaminho com passagens das escrituras. 107
Idem, p. 21
87
nas vilas e engenhos mais afastados das cidades‖, longe dos olhares dos católicos e dos
calvinistas holandeses. Isso se deve ao fato de ao chegarem a Pernambuco, já encontraram
uma atmosfera judaica (os judeus), embora disfarçada, resultante da presença marcante de
cristãos-novos entre a população portuguesa. Nessas brechas do cotidiano, as práticas, os
costumes, culturais e os hábitos alimentares judaicos se mantiveram sendo encobertos com
pelo tempo, ou ainda pela observância da pratica em segredo108
.
A presença desses indivíduos é percebida pela constância dos fluxos migratórios e
movimentações de judeus e judaizantes da Europa para o Brasil durante a presença holandesa,
bem como pela necessidade econômica por novas terras para se fixarem. Como sua estrutura
mental e representação coletiva estava assentada no congregacionismo e na mobilidade
espacial, aperfeiçoaram a habilidade de organizar suas riquezas em bens imóveis, de modo
que pudessem ser transferidas rapidamente, de um local para outro, em caso de perigo. Suas
práticas comerciais, seus ofícios, sua cultura e leis facilitavam sobremaneira essas operações.
Essas práticas visavam ―fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira
própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as
formas institucionalizadas e objetivadas graças às quais uns representantes‖ 109
. Dessa
forma, essas pessoas singulares procuravam perpetuar a existência do grupo, da classe e da
comunidade, em torno do qual se embasava todas as suas ações e mecanismos de
sobrevivência. Essas representações, essas formas de congregar e pensar; a mobilidade
espacial foram responsáveis assim, pela sobrevivência e continuidade da pratica religiosa
judaica nos lares e casas, bem como pela manutenção de valores sociais comunitários. Em um
contexto de perseguição religiosa católica e liberdade condicionada pelos holandeses ao lar,
os judeus tiveram que criar novas formas de sobreviver e de se manterem.
Nessas brechas, eles criaram espacialmente um aparato próprio para se constituírem e
habitarem o espaço, trazendo um novo valor de uso aos engenhos, às habitações que se
estabeleceram por meio de redes de solidariedade estabelecidas por judeus e membros
holandeses do governo. Isso permitiu não apenas a disseminação de judeus no espaço
habitado pela Companhia W.I.C., também promoveu integração junto ao governo no espaço
por meio da ocupação territorial. Mensurar as modificações do ambiente e no espaço habitado
pelos judeus atende desse modo, às necessidades de pesquisas historiográficas acerca da
intervenção humana e cultural no mesmo.
108
Idem, p. 22 109
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro. Lisboa: Bertrand/
Difel, 1990, p. 23
88
Para Certeau, esse gesto que ―liga as idéias aos lugares é, precisamente, um gesto de
historiador. Compreender, para ele, é analisar em termos de produções localizáveis o
material que cada método instaurou inicialmente segundo seus métodos de pertinência‖ 110
Pois, ―em história, todo sistema de pensamento está referido a "lugares" sociais, econômicos,
culturais‖, responsáveis por criar uma ordem social, desejos e vontades. Desse modo, encarar
a presença dos judeus nos lares e fazendas é admitir que eles construíssem, fizeram parte da
"realidade", e que essa realidade pôde ser apropriada "enquanto atividade humana", "enquanto
prática". Eles produziram um lugar social ―articulado a um lugar de produção
socioeconômica, político e cultural‖, criando uma ordem social, capaz de articular desejos e
vontades111
.
COTIDIANO DOS ESPAÇOS
O espaço nesse sentido, não era apenas compreendido como espaço social, vivido,
habitado; possuía estreita relação com a prática social, fruto de um corpo de ações de
indivíduos e de um grupo. Para Milton Santos a criação dos espaços sociais, inspirada em
Lefébvre, está associada ao conceito de formação sócio espacial, derivado do conceito de
espaço socioeconômico, onde estabelece que o indivíduo responsável por construir o espaço
necessita primeiro de aparatos econômicos para o produzi-lo. Dessa forma para o autor, não é
possível conceber uma formação socioeconômica sem entender o espaço construído pelo
individuo.
Entender uma região ou o uso que se faz por uma sociedade ou um grupo implica
adentrar-se à ―organização da cultura e do estatuto de diversidade espacial‖ 112
. É necessário
para a analise do espaço, a compreensão do espaço em sua multiplicidade, da representação
que o individuo faz da realidade à sua volta, e a representação sócio histórica do mesmo. Pois
a ―sociedade relaciona-se com o seu espaço material e todas as coisas que ele contém,
através de um permanente processo de valoração‖ 113
. O homem cria e transferem valores
culturais, sociais, políticos e religiosos para o espaço, eles são construções culturais, humanas,
sujeitas às determinações das épocas e da sociedade que o produziu.
110
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; Revisão técnica de Arno
Vogel – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 65 111
Idem, p. 66. 112
GOMES, Paulo César da Costa. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO,Iná Elias de; GOMES,
Paulo César da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. 2 ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2000, p. 52 113
MORAES, Antônio Carlos Robert; COSTA, Wanderley Messias da. Geografia Crítica: a valorização do
espaço. Editora Hucitec: São Paulo, 1993, p. 119
89
Os judeus, nesse período, graças aos lucros auferidos com o comércio do açúcar
conseguiram se estruturar não apenas em torno da Sinagoga Kahal Zur Israel, atualmente
localizada na Rua do Bom Jesus, anteriormente conhecida como Rua dos Judeus. Eles
expandiram-se, mantendo uma vida religiosa cotidiana ativa em torno de suas casas,
engenhos, lavras e partidos. Isso permite analisar não apenas a disseminação dos mesmos pelo
espaço constituído no Brasil Holandês pode-se analisar as vivencias cotidianas criadas, bem
como as redes judaicas estabelecidas.
Essa vivencia se dá no cotidiano, nas relações construídas e criadas, vivenciadas pela
geografização, por meio da espacialização e da forma onde eles se constituíram. Agnes Heller
destaca que a vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja,o homem participa da vida
cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade. ―Nela,
colocam-se ―em funcionamento‖ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades
intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias‖114
.
A vida cotidiana é em grande medida heterogênea, de modo que as relações
estabelecidas podem variar sua individualidade, as condições de manipulação do social, etc.
Desse modo, como destaca Milton Santos, a ocupação do espaço e seu entorno é construída
por fixos e fluxos; pois a relação do homem com o seu entorno é responsável por modificar o
homem e o espaço onde habita, é, pois, ―não há produção do espaço que se dê sem o
trabalho. Viver para o homem é produzir espaços‖115
. Por isso, os grupos humanos não se
organizam igualmente, nem valorizam igualmente o espaço que dispõem, não só devido às
diferenças estruturais do lugar, também devido a diferenciação regional de cada individuo.
Entender o cotidiano dos espaços ocupado pelo judeu, passa não apenas pela
compreensão dos locais e regiões onde habitavam, mas do individuo e como ele representa
papéis de acordo com o momento e cenário que se encontra. Tratar das relações dos judeus no
comércio do açúcar e na aquisição dos engenhos é tratar como a representação é socializada,
dada a ler, compreendida, moldada e modificada para se ajustar à compreensão e às
expectativas da sociedade em que é apresentada. Os atores judeus tendem a oferecer ao
público uma impressão que é idealizada de maneiras diferentes. Ao fazer uma representação,
um ator esconde prazeres e sua condição financeira.
A vida cotidiana é nesse sentido, construída com objetividade, buscando colocar em
funcionamento todos os sentidos, todas as capacidades intelectuais, suas habilidades
114
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história; tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leonardo Konder. São
Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 31 115
SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia.
3º ed. Editora Hucitec: São Paulo, 1994, p. 88
90
manipulativas, seus sentimento, paixões, idéias. Entender os judeus no cotidiano do Brasil
Holandês é entender as redes judaicas estabelecidas no período, dois indivíduos e das
famílias, pois cada indivíduo ―é parte de uma urdidura, parte de uma cadeia de tradição e,
por outro, é parte da trama, um vínculo em sua própria geração‖, com seus correligionários e
parentes116
.
O individuo é parte de uma trama, o elo entre cadeias de uma geração e o vinculo com
a próxima geração. O individuo não representa apenas os papéis dessa geração. Ele fornece
subsidio à próxima. Isso fica evidenciado na análise de Boxer, ao tratar das duas espécies de
comunidades no Brasil Holandês, ―os judeus praticantes emigrados de Amsterdam, e os
criptojudeus locais, conhecidos também por Cristãos-Novos, ou marranos, os quais já eram
bastante numerosos sob o domínio português‖117
.
Essas relações mantidas na vida cotidiana são destacadas por Erving Goffman ao
defender a relação entre o individuo com sua categoria, ocorrida pela ―identificação e
oscilação entre os iguais ocorre por meio de ciclos de incorporação do quais eles vem
aceitar as oportunidades especiais de participação intragrupal ou a rejeitá-las depois de
havê-las aceitado‖118
.
Neste sentido, pode-se inferir que as relações mantidas no Período Holandês entre
judeus, cripto-judeus, retornados, portugueses e holandeses, mediante a presença da W.I.C.
Ocorreramnão apenas trocas de cunho comercial-financeiro, também de cunho representativo,
fazendo oscilar crenças, sentimentos políticos e religiosos, construindo desse modo, dentro do
espaço, mecanismos de resistência, para a manutenção de sua memória e cultura, por meio da
luta entre os espaços na vida cotidiana.
A prática judaica, como constituição social foi articulada e mantida mediante a
capacidade humana de transmissão de geração para geração, entre os indivíduos. Por meio das
redes judaicas as relações foram vividas, testadas e revividas no cotidiano individual e
coletivo. Essas relações e esquemas criaram sentido, deram inteligibilidade ao espaço e a vida
cotidiana do Brasil Holandês.
BIBLIOGRAFIA
116
BARTH, Aron. Valores permanente do Judaísmo. Editora B‘Nai D‘Rith. Rio de Janeiro, Brasil, 1965, p.
105 117
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Pernambuco. 1542-1654 Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1989.
MORAES, Antônio Carlos Robert; COSTA, Wanderley Messias da. Geografia
Crítica: avalorização do espaço. Editora Hucitec: São Paulo, 1993.
SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço habitado: fundamentos teóricos e
metodológicos da geografia. 3º ed. Editora Hucitec: São Paulo, 1994.
CRISTÃOS NOVOS E INQUISIÇÃO NO BRASIL: DISCUSSÕES E
REPRESENTAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS.
Autor: Juarlyson Jhones S. de Souza*
1. Historiografia em perspectiva
A historiografia ―é a reflexão sobre a produção e a escrita da História‖. (SILVA &
SILVA, 2005, pág. 189) As pesquisas históricas possuem como elemento primordial para sua
validação e para sua inserção dentro das produções acerca de uma determinada temática uma
revisão dos textos já consagrados como referência para esta mesma pesquisa. Olhar para a
produção histórica nos ajuda a estabelecer parâmetros e critérios de análise para a construção
de uma pesquisa histórica prudente119
. A discussão historiográfica comum a muitos textos
históricos permite não somente sua legitimação, mas também que os autores opinem sobre o
tema desta pesquisa, mostrando caminhos a serem seguidos e alertando acerca de erros
possíveis. Além disso, ―sem conhecer sobre o que já se produziu em sua área de estudos,
*Aluno de graduação em História, UPE – Campus Mata Norte, e-mail: juarlyson_historia@hotmail.com
93
dificilmente ele [o historiador] poderá elaborar uma reflexão crítica‖. (SILVA & SILVA,
2005, pág. 192)
A ideia para este trabalho surgiu a partir do cotidiano de pesquisa que, ao visitar
algumas obras históricas clássicas sobre a temática dos cristãos novos e a inquisição no
Brasil, conduz a uma reflexão crítica para o estabelecimento e inserção do nosso trabalho na
historiografia sobre o tema já mencionado. Pois, ―pensar o estatuto do texto histórico (...) fez-
se mister no cotidiano dos profissionais da história‖. (MALERBA, 2008, pág. 11) Para tal,
houve a necessidade de se refletir além do conceito de historiografia, o conceito de
representação. E, no desenvolvimento desta dupla reflexão teórica chegar ao elemento chave
que norteia este trabalho: a representação historiográfica.
O próprio conceito de historiografia tem sido visitado nos últimos tempos por diversos
teóricos levando a reflexões importantes sobre a produção dos historiadores. Silva & Silva
sinaliza para o fato de que desde a Antiguidade e Idade Média, cronistas e historiadores tem
apresentado a preocupação em comparar seus escritos com outras obras contemporâneas ou
mais antigas, inserindo-as, portanto no conjunto da produção escrita do mesmo gênero.
(SILVA & SILVA, 2005, pág. 190). Jurandir Malerba aprofunda a questão ao afirmar que o
caráter auto reflexivo da História é o elemento mais pertinente que a faz se diferenciar do
conjunto das Ciências Humanas. Muito mais do que sinalizar a preocupação historiográfica já
presente entre os escritores antigos, Malerba afirma que ―devido a uma característica básica
do conhecimento histórico, que é a sua própria historicidade, temos de nos haver com todas
as contribuições dos que nos antecederam‖. (MALERBA, 2008, pág. 15) Esta característica –
a historicidade – do conhecimento histórico se manifesta inclusive como uma necessidade de
―retificação das versões do passado histórico, operada a cada geração‖. (MALERBA, 2008,
pág. 17) A historiografia se torna, portanto um campo de análise importante dentro do
pensamento histórico.
2. Representação e historiografia
Sendo um debate atual, o conceito de representação se constitui como a engrenagem
motora de muitos textos históricos concebidos dentro dos pressupostos da História Cultural.
Para Chartier120
, a representação é uma leitura que um indivíduo opera de si mesmo, da
realidade que o cerca e dos outros. ―A história cultural, tal como a entendemos, tem como
principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada
realidade social é construída, pensada, dada a ler‖. (CHARTIER, 2002, pág. 16-17) A
120
CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL. 2002.
94
história cultural é uma história das representações, portanto, voltada para um teor analítico
que aborde a subjetividade das estruturas sociais, políticas, econômicas, que são concebidas
como sendo também culturais. Ainda segundo Chartier, as representações só nos são
suficientemente creditadas ou relevantes para termos de análise, a partir do momento em que
estas representações comandam atos, ações. (CHATIER, 2002, pág. 19) A representação –
que em essência é cultural – gera práticas sociais, políticas e econômicas. Chartier entroniza a
questão da representação como matriz dos discursos e práticas que caracterizam o mundo
social.
Outro dado importante que Chartier nos faz referência, é o fato de que a representação da
realidade social efetuada por um determinado grupo aspira à universalidade, que podemos
considerar como uma maneira de legitimar este grupo e sua visão de mundo para outros
grupos que compõem a sociedade. Portanto, é necessário o ―relacionamento dos discursos
proferidos com a posição de quem os utiliza‖. (CHARTIER, 2002, pág. 17) Neste sentido, é
no debate amplo promovido por Chartier sobre o conceito de representação, que inserimos a
questão da alteridade121
aprofundada por François Hartog.
Em O Espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro, Hartog se pretende
analisar elementos objetivos e subjetivos dos textos de Heródoto na Antiguidade. A partir
desta análise Hartog nos leva a uma reflexão sobre o trabalho do historiador em sua tarefa de
construir ou traduzir representações. É necessário compreender que o texto se trata de uma
análise da narrativa herodotiana, destacando a maneira como Heródoto ‗representou‘ os povos
que interagiram com os gregos durante o período das Guerras Médicas. Apesar de o texto
apresentar elementos referentes há vários povos, o recorte documental que Hartog realiza
dentro das Histórias de Heródoto faz referência aos citas, povo que vivia ao norte da Grécia.
A intenção de Hartog é precisamente discorrer sobre a maneira como aquele que é
considerado tradicionalmente como o primeiro hístor122
escreveu história. O mecanismo
interno das Histórias de Heródoto serve de base para o ofício do historiador ainda nos dias
atuais. Hartog compara traços que estão presentes na construção atual dos historiadores,
traços que surgiram na Grécia Antiga, em Heródoto, e oferece novos mecanismos de operação
121
A priori não devemos perder de vista a questão da alteridade numa perspectiva etimológica: a palavra
alteridade é derivada da palavra latina alter que significa ―um de dois, o segundo, o outro, diferente‖. 122
Buscando uma definição para o hístor, Hartog afirma que, para os gregos, o hístor é uma testemunha ocular,
ele sabe por ter visto. Aprofundando a questão, Hartog referencia que o hístor é mais além do que uma
testemunha que vê, mas um árbitro, ―escolhido por suas qualidades para resolver a questão e impor respeito às
decisões tomadas. Como? Investigando‖. (HARTOG, 1999, pág. 22) Mais que uma testemunha: o hístor é um
juiz. É a partir de questões como estas que Hartog aponta para elementos que ainda dizem respeito ao ofício do
historiador presentes em Heródoto.
95
histórica pautados na questão da alteridade, pois o trabalho historiográfico também é a
materialização de uma representação, que segundo Hartog – ao percebê-lo em Heródoto – é
manifestada a partir de um saber compartilhado.
A partir do cruzamento entre as reflexões oferecidas por Chatier e Hartog chegamos à
noção de representação historiográfica. ―Não há dúvida de que a historiografia é uma
representação do passado‖. (MALERBA, 2008, pág. 19) O texto histórico é também um ato
de representação na medida em que é construído a partir da análise teórica e metodológica de
outras representações que produziram as fontes com as quais trabalha o historiador. Além
disso, para Paul Ricoeur citado por Jurandir Malerba, a própria historiografia é uma
representação que se manifesta a partir da fase da escrita sobre o passado ―já que se trata de
um modo de exposição, de demonstração da exibição da intenção historiadora inscrita na
unidade de suas fases, a saber a representação presente das coisas ausentes do passado‖.
(MALERBA, 2008, pág. 23) Considerando que as representações são relevantes para análise
histórica a partir do momento em que tais representações produzem práticas, passaremos a
construir uma análise de algumas obras que compõem o quadro historiográfico e as
representações dos cristãos novos presentes nestas obras.
3. Os cristãos novos no império português
São abundantes e significativas, no Brasil, as produções historiográficas em torno da
Inquisição e os grupos por ela perseguidos. Por influência da História Cultural e pela ampla
documentação que o Santo Ofício nos legou as minorias no Império Português tiveram suas
histórias contadas e de forma paralela, pode-se ter ideia sobre o cotidiano e as práticas que
caracterizavam o dia a dia das pessoas na época colonial. (SILVA & SILVA, 2005) Neste
sentido, vários grupos foram perseguidos pela Inquisição: cristãos novos (judaizantes ou não),
feiticeiras, homossexuais, bígamos, padres solicitadores etc. Dentre estes grupos o que nos
chama a atenção para análise de sua representação na historiografia são os cristãos novos, seja
pelas suas práticas criptojudaicas ou até mesmo pela sua posição e participação no mosaico
social que permeava o Brasil Colônia.
Os cristãos novos que viveram no Brasil são originados a partir do episódio histórico
de conversão forçada dos judeus portugueses ao Cristianismo durante o reinado de D. Manuel
em 1497. A conversão forçada é discutida pela historiografia como tendo interesses políticos
e econômicos relevantes para o contexto da época. D. Manoel estava pretendendo se casar
com Maria de Aragão, filha dos reis católicos da Espanha, mas a condição imposta seria de
que D. Manuel pusesse em prática a política de Estado vigente na Espanha de expulsão dos
96
judeus. O caso português seria ainda mais delicado, pois os judeus estavam integrados à vida
social, política e econômica do reino de forma significativa. Em Portugal havia a extrema
dependência da mão-de-obra judaica especialmente porque o contingente populacional de
Portugal era bem menor que o da Espanha. Intelectuais judeus trabalharam no
desenvolvimento técnico que seria decisivo para a expansão ultramarina efetuada por
Portugal. Além disso, o comércio exercido pelos judeus era importante para a vitalidade
econômica do reino. A expulsão significaria uma perda tanto em recursos humanos, como em
recursos financeiros. (LAVAJO, 1998) D. Manuel manobrou as estruturas sociais de modo a
ordenar a expulsão dos judeus dificultando-lhes o acesso aos portos estabelecidos para saída
do reino. Diminuindo cada vez mais o número de portos de saída até não permitir a saída de
mais nenhum judeu antes do prazo concedido, D. Manuel ordena que todos os judeus do reino
se convertam ao catolicismo, por meio do batismo forçado. Era o caminho pelo qual o
monarca português encontrou de não perder seus súditos judeus pela importância que eles
tinham para o reino e, ao mesmo tempo, de atender a determinação dos reis católicos para a
efetivação do seu casamento.
A conversão forçada gerou a figura do cristão novo dentro do império português.
Alguns adotaram o cristianismo de forma sincera e tentaram usar os mecanismos sociais
necessários para se integrarem à sociedade católica. Outros ainda o fizeram apenas para sua
segurança praticando a religião judaica no recôndito dos seus lares, fenômeno conhecido
como criptojudaísmo123
. Dessa forma, os cristãos novos foram se perpetuando, desenvolvendo
e exercendo várias atividades nas possessões do império marítimo português. A efetivação da
colonização do Brasil a partir de 1530 trouxe muitos cristãos novos, que distantes do controle
central da Igreja e do Estado praticaram com maior mobilidade costumes e hábitos da religião
judaica, que a cada geração se esvaziava pela ausência de uma formação religiosa consistente
no judaísmo. A prática de elementos do judaísmo foi tão evidente, devido à mobilidade
existente na colônia, que levou muitos colonos, cristãos velhos, a denunciarem os cristãos
novos à Inquisição, caracterizando um evidente conflito social.
4. A Inquisição
123
Segundo o historiador Charles Boxer: ―Não havia em Portugal nenhum rabino em exercício, não se permitia a
circulação de nenhum livro ou manuscrito hebraico, e, em duas ou três gerações, a grande maioria dos chamados
cristãos novos provavelmente já se constituía de genuínos católicos romanos praticantes (e não só
exteriormente). A pequena maioria que aderia secretamente ao que acreditava ser a Lei de Moisés conhecia
pouco mais do que simples práticas ritualísticas, como vestir roupas de linho limpas aos sábados, abster-se de
comer carne de porco, mariscos etc., e guardar a Páscoa dos judeus em vez da cristã‖. (BOXER, 2002, pág. 279-
280)
97
O Tribunal do Santo Ofício teve diversas versões durante a época moderna que já
eram derivadas, sob diversos aspectos, da Inquisição medieval. Muitos autores tem defendido
a tese de que a Inquisição se constituiu como um instrumento de homogeneização num
período que aspirava centralização política no bojo do processo de formação dos estados
nacionais. (LAVAJO, 1998) Sendo assim, as monarquias católicas (manifestadamente as
ibéricas) promoveram o estabelecimento do Tribunal visando eliminar todos os percalços
sociais que poderiam produzir conflitos que pusessem em xeque a estabilidade política e
social dos seus reinos. Era uma época (como em muitas outras) em que política e religião
estavam interligadas, uma época que a religião provocava conflitos sociais sangrentos, e
visando a prevenção contra este tipo de conflito era necessário um instrumento que eliminasse
as diferenças religiosas reunindo todos sob o manto da Igreja Católica ou do falso manto da
homogeneidade já que as diferenças não eram de fato eliminadas, mas subjugadas e
escondidas.
De fato, não houve o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício no Brasil. Era
particularmente o Tribunal de Lisboa que tinha domínio jurídico e religioso nas possessões
portuguesas no Atlântico, entretanto no Brasil a Inquisição utilizou-se da estrutura eclesiástica
já constituída para fazer valer sua atuação, além da atuação voluntária dos chamados
denunciantes. Um dos autores que consideramos mais significativos nesta perspectiva é Bruno
Feitler que em sua crítica à historiografia da Inquisição no Brasil, afirma que os estudos
inquisitoriais tem se especializado apenas nos grupos perseguidos pelo Santo Ofício sem levar
em consideração os aspectos estruturais de funcionamento do Tribunal no Brasil.
―Conectando a história da instituição, para não dizer a história
institucional, à história das práticas e do sentimento religioso, pretendo
mostrar que não se pode entender uma sem a outra, mesmo se aqui
privilegiamos o estudo do funcionamento local do Santo Ofício, por
muito tempo esquecido da historiografia, que privilegiou, nas poucas
obras que se interessaram pelo tema, pelos números de presos e
condenações, e pelo funcionamento interno e especificamente
processual dos tribunais.‖ (FEITLER, 2007, pág. 12-13)
Entretanto, insistimos em realizar um panorama da representação dos cristãos novos
na historiografia, pois as denúncias de judaizantes eram mais frequentes durante a Visitação
que ocorreu na Bahia e em Pernambuco a partir da década de 1590. A compreensão do
98
fenômeno cristão novo representado na historiografia se deu pelo mecanismo que gerou as
fontes documentais neste período: a denunciação.
5. Os cristãos novos e a Inquisição na historiografia
Gilberto Freyre ao analisar os aspectos referentes ao perfil da figura do colonizador
em Casa Grande & Senzala nos informa sobre a formação étnica do povo português. Freyre
afirma que o ―estoque semita‖ seria um dos elementos responsáveis pela consolidação da
colonização portuguesa em vastas regiões, como na América, África e Ásia, pois os semitas
eram ―gente de uma mobilidade, de uma plasticidade de uma adaptabilidade tanto social
como física que facilmente se surpreendem no português navegador e cosmopolita do século
XV‖. (FREYRE, 2006, pág. 69) Ao mencionar os semitas, certamente Freyre aponta para a
presença judaica e muçulmana na Península Ibérica.
Em busca de encontrar o fator primordial da colonização no Brasil, Freyre entroniza a
família de modelo patriarcal como sendo responsável pela consolidação da colonização e pela
formação da sociedade brasileira. Talvez as características de ―plasticidade‖ e de
―mobilidade‖ pelas quais Freyre definiu os de origem semita, não se encaixassem para
explicar o aspecto fixo da formação familiar. Freyre leva a questão familiar a instâncias tão
radicais que descarta outras atuações na colonização do Brasil como sendo significativas.
―A colonização por indivíduos – soldados de fortuna, aventureiros,
degredados, cristãos novos fugidos à perseguição religiosa, náufragos,
traficantes de escravos, de papagaios e de madeira – quase não deixou
traço na plástica econômica do Brasil. Ficou tão no raso, tão à
superfície e durou tão pouco que política e economicamente esse
povoamento irregular e à toa não chegou a definir-se em sistema
colonizador‖. (FREYRE, 2006, pág. 81) (grifo nosso)
Tal postura indica certo reducionismo se verificarmos a abordagem de outros autores
como José Antônio Gonsalves de Mello124
e José Alexandre Ribemboim125
. Em Gentes da
Nação Gonsalves de Mello descreve a partir de um consistente aparato documental a atuação
dos cristãos novos durante o Pernambuco colonial. Ao relacionar os cristãos novos com a
124
MELO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654.
Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990. 125
RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de Engenho: judeus em Pernambuco colonial, 1542-1654. Ed.
do Autor: Recife, 2000.
99
produção e comercialização do açúcar – principal atividade econômica da época – Gonsalves
de Mello nos informa o seguinte:
―(...) Diogo Fernandes e Pedro Álvares Madeira são os dois cristãos
novos (ambos acusados de judaizantes) que pioneiramente estão ligados
à agroindústria açucareira em Pernambuco. Depois deles outros cristãos
novos na segunda metade do século XVI foram aqui senhores de
engenho (...). No início do século seguinte esse número aumentou. (...)
Muito superior era o número dos que participavam de atividades
comerciais ligadas quase que exclusivamente ao açúcar‖. (MELLO,
1990, pág. 8-9)
Nos capítulos que compõem Gente de Nação, Gonsalves de Mello expõe a figura de
João Nunes Correa que se destacava como proprietário de terras e onzeneiro126
, sendo,
portanto dono de uma das ―maiores fortunas existentes em Pernambuco (...) nos últimos anos
do século XVI‖. (MELLO, 1990, pág. 51) Há também um capítulo dedicado à família
constituída por Branca Dias e Diogo Fernandes, donos do engenho Camaragibe, o que
confirma a atenção especial dada por Gilberto Freyre às famílias proprietárias de terras, mas
que ao mesmo tempo a rebate pelo seu reducionismo ao relegar a participação dos cristãos
novos à categoria dos ―individuais‖.
O espaço negado por Freyre aos cristãos novos na economia colonial é concedido por
outros autores além de Gonsalves de Mello. José Alexandre Ribemboim127
nos concede uma
relação de senhores de engenho de origem judaica no Pernambuco colonial além de
referenciar a atuação destes nos mais diversos setores da sociedade. (RIBEMBOIM, 2000)
Anita Novinsky em Cristãos Novos na Bahia128
também atesta a participação dos cristãos
novos nas diversas atividades desenvolvidas na época colonial destacando a Bahia como
palco desta participação. Novinsky apresenta argumentos que desconstroem a típica visão do
cristão novo apenas relacionado à prática mercantil, portando ―mobilidade‖ e ―plasticidade‖
em sua essência. Na Bahia:
―recebiam os cristãos novos terras em sesmarias, possuíam latifúndios e
numerosas propriedades. Alguns chegaram a alcançar situação
extremamente privilegiada o ponto de vista econômico: eram senhores
126
―Entendia-se por onzena o ganho excessivo tirado do dinheiro, acima do geralmente adotado‖. (MELLO,
1990, pág. 66) 127
RIBEMBOIM, José Alexandre. Op. Cit. 128
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: a Inquisição. Perspectiva: São Paulo, 1992.
100
de engenho e negociavam o açúcar que produziam. Galgaram posições
representativas na vida social e política, eram solicitados para
importantes decisões na Câmara, procurados como conselheiros e
financistas‖. (NOVINSKY, 1992, pág. 60)
Numa comparação entre os interesses e as atividades desenvolvidas pelos cristãos
novos na Bahia durante a época colonial, para Novinsky, não se diferenciava em outras
regiões, como nos confirmam Gonsalves de Mello e Ribemboim analisando os cristãos novos
em Pernambuco. Novinsky destaca principalmente a produção açucareira e seu comércio.
Essas considerações nos fizeram refletir sobre a afirmação de Gilberto Freyre na qual os
cristãos novos (dentre outros grupos) não deixaram traços na economia colonial.
Gilberto Freyre cita os cristãos novos quando faz referencia também aos conflitos
religiosos existentes na Época Moderna. Os cristãos novos são representados como uma
minoria ―acomodatícia e suave‖, portanto, não perturbadora da unidade no Império
Português e por consequência, no Brasil (FREYRE, 2006, pág. 91). Tais termos parecem
desacentuar a discriminação não somente aos cristãos novos, mas também a outros grupos,
que não se deu apenas por meio da Inquisição, mas também em termos sociais. Isso se
confirma quando Freyre menciona que ―o Brasil formou-se, despreocupados os seus
colonizadores da unidade ou pureza de raça. (...) o português esquece raça e considera seu
igual aquele que tem religião igual à que professa‖. (FREYRE, 2006, pág. 91) Entretanto,
autores como Charles Boxer129
e Anita Novinsky130
contestam esta tese ao referenciarem os
estatutos de pureza de sangue e os mecanismos jurídicos utilizados no império português com
o objetivo de discriminar não somente o cristão novo, como também outros grupos.
Contestando as afirmações de Gilberto Freyre, Boxer registra:
―Uma lei promulgada em agosto de 1671 reafirmava que indivíduos de
sangue judeu, mourisco ou mulato, ou casados com uma mulher nessas
condições, não tinham condições para ocupar nenhum posto oficial ou
cargo público; ainda ordenava que fossem reforçados os procedimentos
existentes destinados a impedir que isso acontecesse. No geral, os
negros e os criptojudeus suportaram o peso do preconceito e da
perseguição raciais no mundo português‖. (BOXER, 2002, pág. 275)
(grifo nosso)
129
BOXER, Charles. Op. Cit. 130
NOVINSKY, Anita. Op. Cit.
101
Charles Boxer aprofunda a questão ao mencionar que a discriminação racial estava
presentes em todos os setores da sociedade no Império Português. Na admissão em ordens
religiosas, ―nas forças armadas, na administração municipal, nas corporações de ofício‖
(BOXER, 2002, pág. 274). A discriminação era capitaneada inclusive pelo Estado português.
Boxer nos informa que quando Pombal em 1773 induziu D. José a promulgar dois decretos
extinguindo a exigência de ―pureza de sangue‖ para ocupação de cargos na administração e a
distinção entre cristãos novos e velhos na sociedade portuguesa, a figura dos cristãos novos
―desapareceram quase do dia para noite, como se nunca tivessem existido‖. (BOXER, 2002,
pág. 283) Para Boxer a ―implementação imediata dos decretos de 1773 mostrou que o
espectro judaico era em grande parte criação da ação repressiva da Inquisição e das leis que
discriminavam os cristãos novos‖. (BOXER, 2002, pág. 284)
Anita Novinsky também nos informa sobre a discriminação aos cristãos novos, mas a
assinala noutros termos. Novinsky confirma a afirmação de Charles Boxer ao afirmar que ―o
cristão novo herege, criptojudeu ou ‗judaizante‘ foi um mito criado pela Inquisição‖.
(NOVINSKY, 1992, pág. 5) A autora faz referências à luta de classes como engrenagem
motora de sua narrativa, elucidando o momento em que a historiografia brasileira era
influenciada pelo materialismo histórico. Anita Novisnky não compreende a perseguição aos
cristãos novos dentro de uma perspectiva apenas religiosa, mas considera que esta foi
consequência de um evidente conflito entre a efervescente burguesia mercantil, formada em
larga medida por cristãos novos, e os interesses entre a aristocracia que tinha como seu
instrumento de luta o Tribunal do Santo Ofício que tentava inibir o desenvolvimento da classe
burguesa no processo histórico lusitano. Além desses aspectos, podemos citar o caráter
psicológico da abordagem de Anita Novinsky. A autora buscou compreender o dilema vivido
por cristãos novos que não conseguiam encontrar lugar em dois mundos distintos, forjando
uma dupla identidade social, a de cristão e a de judeu: ―Vivia no primeiro sem ser aceito, era
identificado com o segundo sem o conhecer. Se era judeu para os cristãos, o que era para os
judeus?‖ (NOVINSKY, 1992, pág. 7)
A partir dessas considerações realizadas por meio de nossa reflexão historiográfica,
característica do cotidiano da pesquisa histórica, percebemos a pluralidade de abordagens
sobre a temática dos cristãos novos e Inquisição no Brasil. A produção historiográfica é
ampla, não sendo suficiente o espaço deste trabalho para conter reflexões ainda mais
pertinentes que compõem a historiografia sobre o tema. Entretanto, há a necessidade de se
revisitar textos já consagrados, aprendendo com suas contribuições e nos orientando a partir
102
de seus equívocos. Deixamos, portanto, uma contribuição no campo da reflexão
historiográfica a partir do diálogo estabelecido entre os textos analisados apontando para o
exercício de revisão historiográfica sempre praticada, mas ainda necessário como argamassa
solidificadora sobre as quais se edificam ideias e abordagens inovadoras.
REFERÊNCIAS
BOXER, Charles R.. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras.
2002.
CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa:
DIFEL. 2002.
FEITLER, Bruno. Nas malhas da Consciência: Igreja e Inquisição no Brasil (Nordeste
1640-1750). Alameda; Phoebus: São Paulo, 2007.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999.
LAVAJO, Joaquim Chorão. A expulsão dos judeus portugueses. Erro ou equívoco? In:
Anais do Colóquio Internacional Os Sefarditas entre Espanha, Portugal e Marrocos. Coord.
Carmen Ballesteros e Mary Ruah. Évora. 1998.
MALERBA, Jurandir (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia. São
Paulo: Contexto, 2008.
MELO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos novos e judeus em
Pernambuco, 1542-1654. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990.
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: a Inquisição. Perspectiva: São Paulo, 1992.
RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de Engenho: judeus em Pernambuco colonial,
1542-1654. Ed. do Autor: Recife, 2000.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos.
Contexto: Sâo Paulo, 2005.
DO PECADO A CONTRIÇÃO: O MANUAL DO DOUTOR NAVARRO E A PROSA
DOUTRINARIA NA AMÉRICA PORTUGUESA
Rafaela Franklin da Silva Lira*
103
O presente artigo visa construir um panorama sobre Portugal no século XVI. Através
dos estudos das estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais é possível compreender o
funcionamento do governo e administração como também as práticas realizadas na sociedade
do período, além disso, apresentaremos o contexto que propiciou a produção de manuais de
comportamento em especial de confessionais. Dentre esta literatura destacamos o Manual de
Confessores e Penitentes de Martín de Azpilcueta Navarro a fim de verificar sua influência
sobre os jesuítas, principalmente sobre os que estiveram na América Portuguesa e
disseminaram a prática da confissão.
Palavras-chave: Manual, Humanismo, Confessionalismo.
No final do século XV, durante o reinado de D. João II observamos a posição de
destaque que Portugal adquiri no cenário europeu diante das conquistas coloniais e do
aumento do comércio, promovendo não apenas intercambio de mercadorias mas também de
arte, este período marca o início do renascimento português que se amplia sobretudo nos
quinhentos. O sucessor da coroa portuguesa D. Manuel I, que assume em 1495, dá
continuidade ao processo de centralização e valorização do campo artístico e intelectual,
sobretudo no que tange aos estudos náuticos favorecendo as grandes navegações – um dos
fatores que explica o pioneirismo português. O monarca se mostrou mais interessado na ideia
de expandir o império e estabelecer o monopólio comercial, utilizava os recursos artísticos
como estratégia simbólica para construir uma imagem poderosa e suntuosa em torno de seu
governo e da dinastia de Avis131
.
Ainda no primeiro quartel do século XVI D. João III torna-se o rei de Portugal,
assume um governo próspero iniciado pelo seu pai D. Manuel I, afirma Borges Coelho que a
bandeira do reinado manuelino resumia-se pelos seguintes termos: navegação comércio e
conquista132
. Nesse momento o cenário social sofre algumas alterações, a nobreza rural migra
para os centros urbanos, especialmente para a Lisboa espaço onde se encontra a corte
portuguesa, surge uma grande camada de homens ricos, sobretudo com o comércio, estes
segundo Humberto Moreno transformaram-se em vassalos do rei e adquiriam o status de uma
nobreza oriunda do enrriquecimento, o clero dividia-se em secular e regular, recebiam
* Mestranda pelo programa de pós-graduação em História da UFRPE. Pesquisa financiada pela Facepe. E-mail:
rafa.franklin01@gmail.com 131
BELLINI, Lígia. Notas sobre cultura, política e sociedade no mundo português no século XVI. Revista
Tempo. v. 4, n°7, 1999. 132
COELLHO, Antônio Borges. Os argonautas portugueses e o seu velo de ouro. In José Tegarrinha (org.)
História de Portugal. São Paulo, EDUSC, 2000. p. 61
104
privilégios como isenção de impostos e prestação de serviços militares, havia ainda o clero
rural que encontrava-se em posição menos elevada devido a dependência de doações133
.
Para Ligia Belline o século XVI trata-se de uma fase de transição marcada pela
presença de elementos rurais, que descente do medievo e da antiga nobreza, e modernos que
são introduzidos pelos contatos e trocas culturais, sobre o período a autora afirma
―Portugal era, nessa época, um Estado amplamente envolvido
na empresa de conquista, com uma administração centralizada dos
negócios públicos, desde o que dizia respeito a decisões políticas e
militares até o que concernia à administração de centros intelectuais
como a universidade e o Colégio das Artes, criado em 1548 com o
objetivo de promover a educação humanista‖134
.
Foi no campo artístico e literário que se desenvolveu o renascimento ibérico, marcado
pela mistura de elementos medievais e modernos, além das influências das obras clássicas. O
humanismo, que chegou a Portugal por meio da circulação de intelectuais e textos
estrangeiros, esteve presente nas ideias e práticas desta sociedade durante os quinhetos, para
Rogéria Santos ―este humanismo baseado na experiência humana, na mudança da relação do
homem com o Mundo, não procura simplesmente a imitação dos antigos. Ao contrário, se
volta para o futuro e fundamenta o antropocentrismo típico do humanismo‖135
.
Além das letras, o humanismo se fez presente também por meio das navegações. Os
ibéricos foram precursores nas atividades marítimas e conquistas coloniais na África, Ásia e
América devido ao desenvolvimento tecnológico e cartográfico, conhecimentos náuticos
adquiridos principalmente com os italianos, astrologia e matemática, alem disso, foi notável o
interesses dos monarcas portugueses D. João II e D. Manuel na expansão territorial e
comercial propiciada pelas grandes navegações. Dentre os principais nomes em Portugal neste
período podemos destacar ―o cartógrafo e fabricante de instrumentos náuticos catalão
Jacome de Maiorca (primeira metade do século XV), o astrônomo judeu Abraão Zacuto
(ca.1452-ca.1525) e o matemático Pedro Nunes (1502-1578)‖136
Segundo Antonio Mendes dois fatores contribuíram para a entrada do humanismo em
Portugal, o primeiro está relacionado ao studia humanitatis, que se fundamentava na
133
MORENO, Humberto. O principio da época moderna. In José Tegarrinha (org.) História de Portugal. São
Paulo, EDUSC, 2000. p.55 134 BELLINI, Lígia. Notas sobre cultura, política e sociedade no mundo português no século XVI. P.1. 135 SANTOS, Rogéria. Humanismo em Portugal e sua influência na formação de Francisco de Holanda. Revista tempo de conquista. N°7 p.6 136
BELLINI, Lígia. Notas sobre cultura, política e sociedade no mundo português no século XVI. Revista
Tempo. v. 4, n°7, 1999. p. 4
105
formação de leitura com base na imitação de autores greco-romanos e o outro fator baseava-se
na relação do homem com a natureza e o cosmos137
. Além de Mendes, Américo Ramalho
também aponta outra razão, a chegada do siciliano Cataldo Parísio Sículo em Portugal que foi
responsável por ensinar a Jorge, filho bastardo de D. João II em 1485. A partir de então outros
intelectuais passaram a circular na corte portuguesa trazendo consigo os valores e concepções
humanistas138
. Os portugueses também migraram para outras universidades européias, em sua
formação aprenderam os princípios da educação humanística: valorização da retórica, poesia,
filosofia moral e sobretudo a gramática, esta segundo Mattoso foi o elemento chave para a
reforma cultural e moral do homem.139
Dentre os nomes mais expressivos do humanismo
português destacam-se Damião Goés, Diogo de Sigeu e André de Rezende.
Semelhante a Portugal, a maior influência do humanismo na Espanha foi oriunda Itália
como afirma Alejandro Coroleu,
Desde finales del siglo XIV el humanismo italiano fue llegando,
siquiera modestamente, a la Península Ibérica. Tempranos contactos
entre grupos intelectuales autóctonos y representantes de la nueva
cultura italiana, materializados en intereses de bibliófilos, amistades
personales, correspondencia epistolar o viajes, permitieron en un
principio la traducción y difusión de algunas obras clásicas y de algunos
textos de los propios humanistas italianos140
Os contatos estabelecidos entre Portugal e os reinos espanhóis se iniciaram muito antes
da união ibérica, através da circulação de estudantes e intelectuais entre as universidades de
Salamanca e Coimbra e também pelos casamentos realizados entre os membros das cortes que
proporcionaram uma relação de parentesco e solidariedade entre Madrid e Lisboa, em especial
entre a nobreza e o alto clero. Ana Paula Lourenço, em sua pesquisa sobre os matrimônios,
afirma que o casamento não promovia apenas a união dos monarcas, pois a rainha, por
exemplo, levava consigo alguns membros da corte para acompanhá-la em sua nova moradia:
eram os chamados séquitos da rainha e casas da rainha. A partir de 1560, Felipe II estende
137
Mendes, António Rosa. A vida cultural. In José Matosso (org.) História de Portugal: no alvorecer da
modernidade. Lisboa Editorial Estampa, s/d. p. 375 138
RAMALHO, Américo da Costa. Para a História do Humanismo em Portugal. Lisboa, Imprensa nacional casa
da moeda. 1998 p. 16. V. 3. 139
Mendes, António Rosa. A vida cultural. In José Matosso (org.) História de Portugal: no alvorecer da
modernidade. Lisboa Editorial Estampa, s/d. p. 376. 140
COROLEU, Alejandro. Humanismo en España. Madrid, Introducción al Humanismo del Renacimiento,
1998. p. 295.
106
seus domínios ao trono português e acentua ainda mais as trocas culturais na sociedade
peninsular.
D. João III investiu em uma educação humanista trazendo novos materiais e
professores para trabalharem na Universidade e no Colégio de Artes, criado por ele em 1948.
Para Mendes este monarca foi o maior incentivador do campo cultural e intelectual até então,
atendendo a defasagem na qual se encontravam as instituições de ensino em Portugal.
Também foi responsável pela transferência do Estudo Geral, construído no século XIII, de
Lisboa para Coimbra.
É notória a influência das obras erasmitas sobre os letrados em Portugal, nos Países
Baixos, na Alemanha, na Espanha, na França e na Italia, ―sua doutrina que associava as
técnicas e conteúdos do patrimônio humanístico - o método histótico-filosófico e a defesa das
belas-letras contra os esquemas e processos da escolástica - com as aspirações de um
cristianismo espiritual, ético e evangélico‖141
. Havia também exceções, como se percebe nos
discursos de Pedro Margalho, Diogo de Gouveia Sénior e Estêvão de Almeida que
relacionavam os estudos de Erasmo ao luteranismo, o que de fato ocorreu a partir da segunda
metade do século XVI, principalmente após do Concílio de Trento que promoveu a
substituição dos valores humanísticos pelos princípios do barroco, ―a abertura humanista
significava permitir a circulação de idéias tidas como luteranas, o que no século XVI,
português e espanhol dizia respeito aos adeptos de Eramo‖142
.
A partir desta transição o barroco foi vivenciado com mais ênfase na sociedade. Ele
abrange tanto definições artísticas quanto culturais e aproximadamente se estende da segunda
metade do século XVI até o XVIII, variando conforme a região. Alguns teóricos o interpretam
exclusivamente como estilo artístico, diferentemente dessa perspectiva, o barroco é analisado
na península ibérica como uma estrutura cultural e mental que surge no estado absoluto
espanhol e que recebe suas influências para configurar o estilo artístico contra-reformistas.
Dessa forma ele é abordado por José Antonio Maravall, que o define como um conceito
histórico e não meramente um estilo artístico que estabelecia as relações sociais entre os
indivíduos. Apesar de absorver muitas características humanísticas, como a virtude e o
141
Mendes, António Rosa. A vida cultural. In José Matosso (org.) História de Portugal: no alvorecer da
modernidade. Lisboa Editorial Estampa, s/d. p. 381. 142 ALMEIDA, Ângela Mendes. O gosto do Pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII. 2° ed. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rocco, 1993. p. 35.
107
dirigismo, o barroco também proporcionou o exercício de novos hábitos, por exemplo, a
dissimulação e o comportamento frio e teatral 143
.
É este campo cultural que nos auxilia no desenvolvimento dos estudos acerca das
produções disciplinares da época. Desde a Idade Média foram elaborados tratados
doutrinários também chamando de manuais de comportamento que se estenderam ao longo do
humanismo e do barroco.. Tratam-se de elementos importante que auxiliam no estudo sobre a
mentalidade ibérica.
Para auxiliar na manutenção do comportamento dos fiéis foram criados uma série de manuais
que serviam de guia para orientação própria como também para instrução de terceiros, no caso
dos textos destinados a educação infantil. Disseminavam a pratica de exercícios rígidos de
caráter formador, que se cumpridos, desenvolveriam uma boa moral. Se fizeram presentes em
diversos campos: social, religioso, educativo, sexual, entre outros. As atividades estabelecidas
nesses manuais eram justificadas como diretamente envolvidas com o espírito imortal de seus
praticantes, acreditava-se que ele estava dissociado da matéria corporal, portanto deveria está
protegido contra os atos imorais144
. Suas leituras sugeriam a padronização de
comportamentos, que por se vez se evidenciavam nas representações coletivas.
Dentre inúmeras produções de manuais destacamos o Manual de Confessores e
Penitentes de Martín de Azpilcueta Navarro publicado em 1560. Martín nasceu em Azpilcueta
no reino de Navarra em 1492 e descende de família nobre. Aos nove anos recebeu a primeira
tosura, a partir de então dedicou-se a construir uma vida eclesiatica, pois percebia forte
vocação para a atividades religiosas. Estudou teologia na Universidade de Alcalá e pouco
depois continuou sua formação na França, onde tornou-se doutor em Cânone, deu início ao
ensino nas universidades de Toulouse e Cahors. Pouco depois, em 1524, retorna a Espanha
onde trabalha como professor na univeridade de Salamanca. Em 1538 se transferiu para
Coimbra conviadado pelo rei D. João III para lecionar na Universidade portuguesa. Lá
exerceu o ofício até 1554, durante este período foi uma das figuras mais respeitadas e de
maior prestígio não apenas em Portugal, segundo Américo Ramanlho escandalosamente bem
pago em relação ao seus colegas. O autor também destaca o famoso discurso proferido por
João Fernandes realizado de 17 de julho de 1548,
―Este é o famoso Navarro de cujo o nome, glória, erudição está
cheio tudo quanto das letras recebeu lustre. Nem a França cuja
143
SILVA, Kalina Vanderlei Barroco Mestiço: Sistema de Valores da Sociedade Açucareira da América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Revista de Humanidades. Caicó, V. 7, n. 16. 2005. 144
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a Educação de Hum Menino Nobre.
Lisboa Occidental, Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734.
108
Tolosa de grande préstigo ele ensinou, nem Alcalá onde
aprendeu filosofia e teologia, nem Salamanca que em muitos
anos exornou de miríades de discípulos, nem finalmente
Coimbra que tem instruído durante cerca de 12 anos, nenhum
lugar, nenhum canto em que os homem deixem o seu rastro,
calará o teu nome o Navarro, glória eminente da letras e da
santidade. Não compra o silêncio, quem apresenta os livros
(libros) e filhos (líberos). Proclamam livros, proclamam filhos,
que o navarro está na terra para o bem da humanidade, não só
como cultor de estudos, mas também como mecenas de
estudiosos de tal modo tudo quanto tem, está ao dispor de todos.
Alias para dizer de ti algo de novo fazer-te o elogio, seja este o
teu título de honra mais verdadeiro: Navarro consagrou o direito
canônico‖145
Percebemos através dessas palavras a importância conferida a Navarro e seu trabalho
pelos intelectuais e autoridades portuguesas, seu reconhecimento também se dava nas
principais universidades da Europa neste período. Além dos ensinamentos sobre direito
canônico ele promoveu mudanças no sistema de eleição de professores, realizado até então
através da votação dos estudantes, pois percebeu a rejeição desse grupo aos docentes
estrangeiros.
Os manuais de confessores ganharam impulso no século XVI, isto se deve ao fato da
confissão adquirir a concepção de sacramento a partir de Concílio de Trento (1545-1563),
apesar da obrigatoriedade anual proclamada desde o IV Concílio de Latrão em 1215. A partir
de então ela passou a ser apresentada como um direito divino, há muito a Igreja buscava uma
justificativa bíblica para tornar a prática uma realidade assídua. Além disso, o padre que
anteriormente pouco contribuía nesse processo passou a ser o intermediário entre o pecador e
Deus, ganhando um papel fundamental para salvação.
Após torna-se obrigatória, a confissão ganhou espaço nos manuais com o objetivo de
instruir os padres e os fiéis com relação aos diversos tipos de pecados. Os confessionais,
também chamados os tratados com esta temática, em geral traziam descrições sobre dos sete
pecados capitais, dez mandamentos e sacramentos. Não havia ainda uma separação nítida
entre o crime e o pecado, eram colocados sobre o mesmo peso o adultério, a sodomia, o
145
RAMALHO, Américo da Costa. Para a História do Humanismo em Portugal. Lisboa, Imprensa nacional
casa da moeda. 1998. p. . V. 1.
109
estupro, entre outros, também pouco se diferenciava o pecado práticado da intenção ou
pensamento. Porém a condição social do acusado e da vítima interferia na pena que se
aplicava ao pecador, agravando-se se este estivesse em uma camada inferior.
Doutor Navrro declara no manual de confessores que sua obra se trata de ―em ho qual
breue & particular & muy verdadeyramente se decidem & declarã quasi todas as duuidas &
casos que nas confissões soe[m] occorrer acerca dos peccados, absoluições, restituyções &
censuras / compostoi por hu[m] religioso da ordem de Sam Francisco da prouincia da
piedade... Coimbra‖146
. Navarro não enfatizava a necessidade de descrição detalhada do
pecado por parte do confessor, mas a quantidade de vezes que foi realizado. Segundo ele
também há de se ter atenção no momento da elaboração da pergunta, para assim obter o relato
preciso147
,
―(...) que em os peccados da carne nam deça muyto aas
circunstancias particulares, preguntandoas meudamente. Porque nam
provoque com isso a si, & ao penitente a deleytacam. (...) Porem
quando perguntar da poluçam voluntária, & extraordinária, ou da
fornicação, nam pergunte pólo modo com que a fez. Porque basta
dizerlhe quantas vezes cometeo este pecado, & o que he necessario pêra
conhecer a casta & espécie do peccado, sem mais descender a suas
torpes circunstancias‖148
.
Inicialmente são descritas as três partes da penitência: contrição, confissão e satisfação.
A Confissão é a declaração legitima dos pecados diante de sacerdotes com esperança de
perdão. São freqüentes no texto analogias, por exemplo, a comparação do pecador a um
doente, pois alma após o pecado está em fermo, como por comer ou beber demais. Por isso a
necessidade de se confessar para despoluir o corpo e mente. O confessor, portanto teria a
função semelhante a de um médico, que se propõe a cuidar da alma. São feitas algumas
referências a passagens bíblicas que exemplificam a necessidade de se confessar, como
observamos na parábola do filho pródigo que precisou declarar seu pecado ao pai após
146
NAVARRO, Martin Azpilcueta. Manual de Confessores & Penitentes[....].Composto por ho muito
resoluto e celebrado Doutor Martin Azpilcueta Navarro. Impresso em Coimbra por João de Barreyra, 1560. 147
Segundo Ângela Almeida era comum a prática de perguntas detalhistas e francas que acabavam por excitar o
confessor oferecendo informações por vezes desconhecidas ou não praticadas por ele. Ver ALMEIDA, Ângela
Mendes. O gosto do Pecado: casamento e sexualidade nos manuais de confessores dos séculos XVI e XVII. 2°
ed. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rocco, 1993. 148
NAVARRO, Martin Azpilcueta. Manual de Confessores & Penitentes[....].Composto por ho muito resoluto
e celebrado Doutor Martin Azpilcueta Navarro. Impresso em Coimbra por João de Barreyra, 1560, cap.V.
110
arrepender-se e o ladrão crucificado ao lado de Jesus Cristo que o reconheceu como filho de
Deus. Ambos alcançaram a graça após assumirem a condição de pecador. O confessor é
obrigado a perguntar ao penitente, com autoridade deve questionar sobre o que ainda não
sabe, pois dessa maneira o penitente revelará o ato cometido contra Deus ou contra si mesmo,
como no caso do pecado da carne. Navarro aponta a existência de alguns pecados mortais
como a soberba e a vã glória, além de outros relacionados aos dez mandamentos.
Esta obra fez parte do contexto da contra-reforma, norteou os jesuítas na Península
Ibérica como também foi enviada a América Portuguesa como consta na relação do inventário
do bispo de Pernambuco D. Tomás da Encarnação Costa e Lima149
, dessa forma suas
orientações estiveram presentes nos primórdios da ação catequética e introduziram através dos
clérigos a doutrina cristã e em especial a prática da confissão. Muitos jesuítas foram seus
alunos, e se utilizaram de suas obras como um guia para auxiliar na catequese e conversão no
novo mundo150
. Dentre eles podemos destacar o Padre Manuel da Nóbrega que veio na
primeira missão jesuítica acompanhado do sobrinho de Martín, João de Azpilcueta Navarro.
Segundo Nóbrega um excelente professor conforme revelou nas cartas enviadas ao antigo
mestre que permanecera em Coimbra.
Com a utilização dos manuais de comportamento algumas características próprias da
sociedade ibérica se reproduziram no mundo colonial, com suas devidas adaptações, como as
procissões e rituais funerários, além de hábitos da etiqueta151
.
A produção de manuais de comportamento foi uma das maneiras encontradas pela Igreja
Católica, que vinha perdendo fiéis devido a Reforma Protestante na Europa no século XVI,
para evitar novas perdas e gerir com mais ênfase a sociedade. Por essa razão os manuais se
portavam com um instrumento de auxílio na manutenção da ordem. Eles foram enviados para
a América Portuguesa e se tornavam aparelhos de orientação para a elite açucareira. Dessa
forma, o imaginário barroco adquirido através das leituras permeou essa sociedade
fortalecendo o dirigismo e as representações.
149
Arquivo Histórico Ultramarino. Caixa 151, documento 10974, 1784. 150
Um dos alunos de Navarro foi o padre Manuel da Nóbrega que estudou na Universidade de Coimbra. Cf.
LEITE, Serafim. Um breve itinerário para uma biografia do padre Manuel da Nóbrega. Brotréria, 1955. p.
28. 151
SILVA, Kalina Vanderlei. Barroco Mestiço: Sistema de Valores da Sociedade Açucareira da América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Revista de Humanidades. Vol. 7, n. 16. 2005. Caicó, UFRN.
111
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Ângela Mendes. O gosto do Pecado: casamento e sexualidade nos manuais de
confessores dos séculos XVI e XVII. 2° ed. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
BELLINI, Lígia. Notas sobre cultura, política e sociedade no mundo português no século
XVI. Revista Tempo. v. 4, n°7, 1999.
COELLHO, Antônio Borges. Os argonautas portugueses e o seu velo de ouro. In José
Tegarrinha (org.) História de Portugal. São Paulo, EDUSC, 2000.
COROLEU, Alejandro. Humanismo en España. Madrid, Introducción al Humanismo del
Renacimiento, 1998.
LEITE, Serafim. Um breve itinerário para uma biografia do padre Manuel da Nóbrega.
Brotréria, 1955.
Mendes, António Rosa. A vida cultural. In José Matosso (org.) História de Portugal: no
alvorecer da modernidade. Lisboa Editorial Estampa, s/d. p. 381
NAVARRO, Martin Azpilcueta. Manual de Confessores & Penitentes[....].Composto por ho
muito resoluto e celebrado Doutor Martin Azpilcueta Navarro. Impresso em Coimbra por
João de Barreyra, 1560.
PROENÇA, Martinho de Mendonça de Pina e de. Apontamentos para a Educação de Hum
Menino Nobre. Lisboa Occidental, Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1734.
RAMALHO, Américo da Costa. Para a História do Humanismo em Portugal. Lisboa,
Imprensa nacional casa da moeda. 1998.
SANTOS, Rogéria. Humanismo em Portugal e sua influência na formação de Francisco
de Holanda. Revista tempo de conquista.
112
SILVA, Kalina Vanderlei Barroco Mestiço: Sistema de Valores da Sociedade Açucareira da
América Portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Revista de Humanidades. Caicó, V. 7, n. 16.
2005.
SIMPÓSIO:
Questões sobre a narrativa histórica no
debate contemporâneo da teoria da
história
Coordenador:
RAPHAEL GUILHERME DE CARVALHO – Mestrando - UFPR
HELDER SILVA LIMA – Mestrando - UFPR
RECONSTRUCIONISMO, CONSTRUCIONISMO E DESCONSTRUCIONISMO: A
LEGITIMAÇÂO E DESLEGITIMAÇÃO DA NARRATIVA HISTÓRICA
Bruno Heinrich Grau - UFPB152
E-mail: brunograu635@hotmail.com
RESUMO: Consideraremos a dinâmica de legitimação e deslegitimação da narrativa
histórica, partindo da divisão historiográfica de Jenkins e Munslow (2004), expondo e
problematizando questões pertinentes aos gêneros do reconstrucionismo, construcionismo e
desconstrucionismo.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Epistemologia; Narrativa Histórica
152
Graduando em História pela UFPB
113
O nosso texto visa traçar considerações sobre os processos de legitimação e
deslegitimação empregados pelos historiadores, conquanto a sua narrativa, desde a
profissionalização do ofício no século XIX até os dias atuais. A partir deste propósito,
usaremos a divisão historiográfica formulada por Jenkins e Munslow (2004) partindo dos
gêneros do reconstrucionismo, construcionismo e desconstrucionismo. Tomando tal divisão
como base, tentaremos argumentar que os dois primeiros tentam legitimar e diferenciar a
operação historiográfica (Certeau 2008) em relação a outros tipos de saberes como a memória
e a ficção. Já os desconstrucionistas negam o estatuto específico da narrativa histórica
abalando as tentativas de legitimação e diferenciação anteriores.
Começaremos examinada a divisão historiográfica proposta por Jenkins e Munslow,
colocando-a em seu contexto e explorando a sua validade. Em seguida, problematizaremos as
diferentes concepções epistemológicas presentes nos três gêneros propostos. A exposição
destas concepções irá demonstrar que a controvérsia epistemológica central se dá acerca do
estatuto da natureza da história: ciência ou ficção? Em outras palavras, os reconstrucionistas e
construcionistas tentaram legitimar o estatuto especifico da história a partir de ferramentas
científicas (método e teorias), os desconstrucionistas põem estás tentativas em questão
afirmando que a história é uma atividade literária.
Tendemos para uma defesa da perspectiva desconstrucionista considerando que a
operação historiográfica é muito mais uma elaboração literária do que científica. Esta posição
será aprofundada a partir da análise do problema fato/valor levantado por Hayden White.
Além disso, consideramos que a perspectiva desconstrucionista nos ajuda a criar uma cultura
histórica não-dogmática e democrática que esteja aberta ao pluralismo interpretativo e a não-
hierarquização atentando, entretanto, para o perigo do negacionismo.
I.
A partir da década de 1990, principalmente na historiografia anglo-saxônica, têm
aparecido alguns comentadores historiográficos que advogam por uma produção do
conhecimento histórico nos moldes pós-modernistas. Os principais nomes destas corrente são:
Keith Jenkins e Alun Munslow. Ambos possuem uma ampla bibliografia além de fazerem
parte de um dos principais espaços de discussão sobre a historiografia pós-modernista, o
jornal Rethinking History.
Jenkins e Munslow absorveram os debates filosóficos em torno do pós-estruturalismo
e neopragmatismo incorporado autores como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-
François Lyotard, Richard Rorty, entre outros. Se auto-denominam de anti-fundacionalistas e
114
anti-metafísicos. Entre suas referências historiográficas estão historiadores que foram
influenciados pela virada linguística como Hayden White, Frank Ankersmit e Douglas
Kellner.
No livro The Nature of History Reader, Jenkins e Munslow tentam aprofundar a
divisão historiográfica proposta anteriormente por Munslow no livro Desconstruindo a
História (1997). Tomando como critério posicionamentos epistemológicos é elaborada uma
divisão da historiografia partindo do século XIX até a contemporaneidade. Os autores
identificam três posicionamentos epistemológicos distintos: reconstrucionimso,
construcionismo e desconstrucionismo. Apesar de poder ser acusada como reducionista,
consideramos a divisão uma das mais adequadas quando formos observar a historiografia a
partir de sua dimensão epistemológica. Passemos, então, para a exposição dos três gêneros e a
análise das suas táticas de legitimação e deslegitimação da narrativa histórica.
II.
O século XIX ficou marcado na historiografia por ter sido aquele em que se dá a
institucionalização e profissionalização do historiador. Estas se dão principalmente a partir
dos esforços da reforma universitária implementada na Alemanha por Wilhelm von Humboldt
e o surgimento do Historismo. O último propaga a ideia de que a história seria um
conhecimento privilegiado (científico) que deveria ser praticado por especialistas imparciais,
ou seja, aqueles que dominassem o método histórico. Este ideal se alastrou por outras
historiografias ocidentais e serviu como base para a disciplina acadêmica da história
Para Leopold von Ranke, um dos principais praticantes do Historismo, o método
histórico proporcionaria objetividade e cientificidade . A partir da crítica das fontes (métodos
filológicos; crítica interna e externa) o historiador conseguiria inferir o passado ―wie es
eigentlich gewesen‖, o resultado seria a apresentação verdadeira dos acontecimentos. O
método histórico foi um mecanismo extremamente eficaz para diferenciar e legitimar a prática
e escrita do historiador. A partir dele, a narrativa acadêmica consegue se diferenciar da
especulação metafísica filosófica e da atividade ficcional literária, sendo vista a partir de
agora como um espelho do real.
Para Jenkins e Munslow (2004) a posição epistemológica inaugurada pelo Historismo
pode ser definida como realista. Ela se baseia nos conceitos de ―Referentiality, inference, the
truthful statement, and adequate and accurate representation of peoples actions and intentions
115
(...) primacy of events over social processes and structures‖ 153
. O Reconstrucionismo legitima
a sua posição epistemológica a partir da crença que o método histórico proporcione acesso
privilegiado à realidade (e consequentemente a verdade) através da observação empírica e do
rigor no trato com as fontes, além de ser avesso ao uso de teorias e preferir eventos em
detrimento de processos e estruturas. Este tipo de posição epistemológica foi muito popular
no XIX e XX, tendo forte inserção nas historiografias ocidentais.
A concepção rankeana de método histórico rapidamente se alastrou por outras
historiografias nacionais. Na historiografia francesa, obras como a de Charles Victor
Langlois e Charles Seignobos demonstram bem a influência provinda da Alemanha. Na
Inglaterra autores como Thomas Macaulay servem como exemplo.
Atualmente, ainda podemos observar alguns poucos que defendem uma abordagem
reconstrucionista. Os maiores exemplos estão presentes na historiografia britânica em obras
como a de Geoffrey Elton (1991) e Arthur Marwick (2001). A sua relutância no uso de
teorias e a crença na epistemologia realista faz estes teóricos uma ―avis rara‖ na cultura
histórica contemporânea.
Segundo Iggers (2007) na virada do século XIX para o XX o Historismo entra em
crise. Os motivos estão relacionados ao surgimento das ciências sociais positivistas e sua
crítica em relação à prática histórica. O sociólogo Emile Durkheim nega a cientificidade da
história e coloca o ofício em uma posição secundária em relação à sociologia. A partir disto,
os historiadores vêm se confrontados com a necessidade de criarem uma nova definição de
cientificidade para a história. Dentro do Historismo, Wilhelm Dilthey já havia tentado dar tal
definição partindo do ideal de uma ciência do espírito. Está, teria como tarefa a compreensão
em oposição à busca nomotética das ciências naturais. A estratégia hermenêutica de Dilthey
não considerava a influência das ciências sociais, incorporar as últimas à história acadêmica
permanecia um desafio.
Dar uma reposta satisfatória a este desafio era muito importante para a história
acadêmica na luta por espaço no campo universitário. A posição de Durkheim representava
uma importante indagação às estratégias de legitimação e diferenciação da narrativa histórica
acadêmica. O sucesso da resposta dependia da junção dos critérios de análise do método
histórico com as estratégias explicativas (teorias) das ciências sociais, gerando uma nova
concepção de cientificidade para a história acadêmica. Os pioneiros na gestação concreta
desta nova concepção foram Marc Bloch e Lucien Febvre, ou seja, a primeira geração dos
153
―Referencialidade, inferência, declaração verdadeira , representação adequada e precisa de ações e intenções
(...) primado dos eventos sobre processos sociais e estruturas‖ (Jenkins; Munslow, 2004,p.7, tradução nossa)
116
Annales.
Uma figura importante para o surgimento dos Annnales foi Henri Berr. A revista
Reuve de Synthese Historique, fundada por ele, se tronou um importante espaço de debate na
gestação de uma nova concepção de cientificidade para a história acadêmica. Bloch e Febvre
participaram nos debates propostos pela revista e foram amplamente influenciados por ela.
Em 1929, decidem fundar a revista Annales.
A primeira geração dos Annales tentou construir o seu espaço no campo acadêmico
tecendo fortes críticas ao que foi chamado de historiografia metódica. (Historismo +
Historiografia Francesa Positivista do XIX), A concepção de cientificidade dos Annales parte
do pressuposto de que o ―empiricism without concept (...) is blind, deaf and dumb‖ 154
.
Teorias, tomadas de empréstimo das ciências sociais, proporcionariam a base conceitual
necessária além de possibilitar mudanças no conteúdo da narrativa histórica que passava dos
eventos para as estruturas e os processos. Tais construções teóricas seriam a ferramenta que
faltava para uma nova concepção científica da história que não ficasse atrás das ciências
sociais.
Jenkins e Munslow definem esta posição epistemológica como construcionismo. Em
linhas gerais, ela pode ser vista como a junção do empirismo com teorias. A disciplina passa
por um ―Theory Turn‖ 155
. A epistemologia nomotética muda o objeto e a organização da
narrativa que agora fará amplo uso de conceitos.
O pioneirismo dos Annales se alastrou por várias historiografias nacionais
fortalecendo o ideal de história como ciência social. A influência desta concepção de
cientificidade irá variar nas diferentes historiografias. Na historiografia alemã houve certa
demora na inserção do construcionismo, dada a forte inserção do Historismo. Foi somente a
partir da década de 1960 que história social alemã começa a ganhar corpo a partir dos
trabalhos de Jürgen Kocka e Hans-Ulrich Wehler entre outros. Os trabalhos de Edward
Thompson demonstram a inserção do construcionismo na historiografia britânica dando corpo
ao movimento que ficou conhecido como história social britânica.
A legitimação e diferenciação da narrativa histórica dentro do construcionismo não se
baseavam mais somente no método, mas também nas teorias que eram construções
conceituais que aumentariam a busca por verdade (verossimilhança) dos historiadores. A
partir da década de 1970, o construcionismo começa a sofrer uma forte influência da
154
Empirismo sem conceitos (...) é cego, surdo e mudo‖ (Ibid.,p.9, tradução nossa)
155
Ibid., p.61
117
antropologia cultural (em detrimento da teoria social) dando margem ao surgimento, nas
décadas seguintes, ao que foi chamado de Nova História Cultural. É também na década de
1970 que o construcionismo começa ganhar um contraponto epistemológico a partir da
inserção da filosofia pós-estruturalista na historiografia.
O advento do pós-estruturalismo na cena intelectual europeia na década de 1960,
trouxe novos problemas para o campo das ciências sociais e das humanidades. Os
pensamentos de Derrida, Foucault, Lyotard, entre outros, teve um amplo impacto na produção
do conhecimento. Em linhas gerais, a filosofia pós-estruturalista colocou em questão a
metafísica e com isso abalou as meta-narrativas modernas da razão, da ciência e do progresso.
Na historiografia, esta corrente filosófica começou a ter influência na década de 1970,
principalmente a partir dos esforços de White. Um dos seus maiores feitos ao longo de sua
extensa bibliografia foi ter conseguido desnaturalizar algumas certezas tomadas como
evidentes por muitos historiadores Em Meta-História (1973), White afirma que a história não
é um conhecimento científico e sim literário. Tal afirmação deslegitima todos os esforços
iniciados no século XIX de dar um estatuto específico para a narrativa histórica a partir de um
ideal científico.
As implicações da posição de White ficam claras ao considerarmos o problema
fato/valor na historiografia, ele pode ser posto da seguinte maneira: ―The fact that something
happened does not mean that we know or can adequately describe what it means– there is no
entailment from fact(s) to value(s).‖ 156
·. Disto deriva que ‗narrativas que competem‘ podem
ser entendidas, criticadas e classificadas com base em sua fidelidade ao registro factual (...).
mas os relatos narrativos não consistem apenas em afirmações factuais‖ (WHITE, 2009,
p.193). O problema está na interpretação que se faz dos fatos e dos sentidos que se extrai
deles.
Esta argumentação lança um forte desafio aos construcionistas e sua ideia de que ―the
appropriate use of (...) theory (concept and argument) can generate truth-statements.‖ 157
. Os
historiadores não possuem uma condição interpretativa privilegiada somente por que usam
métodos e teorias supostamente científicas. Uma interpretação sobre o passado não é mais
exata ou verdadeira do que outra, a exatidão pode ser alcançada somente no nível factual. A
crítica da condição privilegiada das interpretações dos historiadores significou um forte
156
―O fato de que algo aconteceu não significa que conhecemos ou podemos descrever adequadamente o que
significa – não há vinculação entre fato(s) e valore(s)‖ (Ibid., p.12) 157
―o uso apropriado de (...) teorias (conceitos e argumentos) pode gerar afirmações verdadeiras‖ (Ibid., p.12)
118
impacto para as tentativas de legitimação da narrativa histórica acadêmica. As ferramentas
científicas (método + teorias) perdem sua legitimidade já que não garantem acesso
privilegiado ao passado.
Para Jenkins e Munslow, White faz parte do que eles chamam de desconstrucinismo,
outros autores desconstrucionistas são Ankersmit e Kellner. O conceito de história para os
descosntruconistas se baseia no fato dela ser ―as much a narrative linguistic aesthetic as it is
an empirical-analytical activity‖ 158
. A narrativa histórica não é mais vista como uma
transmissão ou construção, mas como uma criação. Nem o método empírico e nem as
construções teóricas são capazes de revelar o passado de maneira objetiva, imparcial e
verdadeira.
O impacto do desconstrucionimso na cultura histórica ocidental permanece pequeno.
Isto se deve à dificuldade dos historiadores em admitir a deslegitimação da sua condição
interpretativa privilegiada. Admitir que suas narrativas, ou seja, interpretações sobre o
passado, somente podem ser julgadas (hierarquizadas) a partir de sua veracidade factual não
parece ser satisfatório.
III.
Aceitar que não pode haver hierarquização nos sentidos extraídos do passado não
significa deslegitimar a atividade do historiador acadêmico. Este tem a importante função de
ficar vigilante em relação aos falsificadores e negacionistas. O que perdeu a legitimidade foi a
típica atitude dos reconstrucionistas e construcionistas de pensarem que a partir do uso de
métodos e construções teóricas possa-se extrair os verdadeiros sentidos do passado.
Consideramos a perspectiva desconstrucionista como sendo a mais adequada para a
construção de uma cultura histórica não-dogmática e democrática. Uma cultura histórica que
esteja aberta ao pluralismo interpretativo e a não-hierarquização dos sentidos extraídos do
passado. Os últimos são múltiplos e conflitantes, cada um tem o direito de extrair os seus,
estando sempre atento aos perigos do negacionismo e do relativismo epistemológico.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS
CERTEAU, Michel, de. A Escrita Da História, 2.ed. Rio De Janeiro: Forense Universitária,
2008.
158
―é tanto narrativa linguística e estética quanto empírica e analítica‖ (Ibid., p.12)
119
ELTON, Geofrey. Return to Essentials: Some Reflections on the Present State of Historical
Study. Cambridge: Cambridge University Press. 1991
IGGERS, Georg. Geschichtswissenschaft im 20. Jahrhundert. Ein kritischer Überblick im
internationalen Zusammenhang. Göttingen: Vandenhoek & Ruprecht. 2007.
JENKINS, Keith; MUNSLOW, Alun. The Nature of History Reader. London: Routledge.
2004.
MARWICK, Arthur. The New Nature of History: Knowledge, Evidence, Language.
Houndmills: Palgrave.2001.
WHITE, Hayden. Enredo e verdade na escrita da história. In. MALERBA, Jurandir. A
história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2009.
A NARRATIVA NA HISTÓRIA E NA ARTE POPULAR: REFLEXÕES SOBRE
DISTINTOS SABERES
Uílder do espírito Santo Celestino*
RESUMO
O presente artigo mantém um dialogo envolvendo aspectos da narrativa histórica discutida
nos ensaios de Chartier (2010) e a narrativa contida no discurso e na arte de Cícero Alves dos
Santos, o Véio, agricultor e artesão residente à Rodovia Engenheiro Jorge Neto, Km 8, no
município de Feira Nova/SE. A partir de relatos obtidos em entrevista semi-estruturada, é
possível destacar a interação entre o discurso e a arte de Véio, que constrói peças inspiradas
nas ―cousas do sertão‖. Sua matéria-prima é proveniente do contato realizado pelo artista com
pessoas idosas, os seus amigos de infância, além de sua trajetória de vida ligada às formas de
vida no sertão. Sua experiência, relatada por intermédio de um discurso e de uma arte popular,
é mobilizada na construção de uma narrativa distinta da narrativa histórica, com linguagem
igualmente distinta, pretendendo contar sobre sua vida e memórias, além da cultura,
identidade e tradição sertaneja, que também são recursos ―fiadores‖ da história. Constrói uma
representação sobre o lugar onde vive, integrados à sua trajetória de vida, a ser compartilhada
pelos sertanejos do nordeste. Assim, pelo trabalho de um artista popular que representa o
universo do sertão nordestino, delimita-se um campo a ser investigado pelo historiador da
* Licenciado e especialista em história cultural (UFS), mestre em sociologia (UFS). E-mail:
uilder.celestino@gmail.com.
120
cultura, para identificação de como a realidade sertaneja é ―construída, pensada, dada a ler.‖
(CHARTIER, 2002).
Palavras-chave: narrativa histórica; arte popular; teoria da história.
INTRODUÇÃO
Pretende-se realizar uma abordagem teórica considerando dois momentos distintos de
produções narrativas. Em primeiro lugar, a narrativa histórica e suas relações com o passado,
seguindo as reflexões teóricas dos ensaios de Roger Chartier (2010), disponibilizados em
décimo livro publicado em português ―A história ou a leitura do tempo‖, primeira edição
datada de 2007. Nesse trabalho, o historiador das representações esforça-se em clarificar as
diferenciações entre a narrativa histórica e suas ―energias fiadoras‖, como o documento e a
memória, dialogando com os trabalhos de Certeau (1982), Bourdieu (1991) e Ricoeur (2000).
Em seguida, relata a experiência da narrativa de ―Véio‖, um artista popular que
mobiliza em suas peças os conteúdos ou as representações da memória sertaneja, fazendo, em
madeira, cenários representativos do sertão nordestino. Analisando as distintas formas
narrativas, exemplificam-se tais diferenciações, corroborando com o esforço teórico de
Chartier (2010) no sentido de renovar a confiança na narrativa histórica enquanto uma
representação válida do passado, justificando semelhante incursão teórica.
Assim, o objetivo geral consiste em refletir sobre distintas formas narrativas, a da
história, de acordo com o trabalho de Chartier (2010) e a da arte, a partir da vida e obra do
agricultor e artesão Véio.
MATERIAL E MÉTODOS
No presente trabalho, juntamente com a reflexão teórica acerca da narrativa histórica,
considera-se como campo de pesquisa empírica o trabalho e a vida do artesão ―Véio‖, porque
a partir destes pode-se entender as motivações de sua arte, formativa de uma linguagem
diferenciada da narrativa histórica, todavia mobilizadora de idênticos ―fiadores‖, destacando-
se a memória, a tradição e a identidade sertaneja.
Em entrevista realizada, foi possível acompanhar os procedimentos que Véio utiliza
para traduzir as ―energias‖ da memória e da tradição associadas ao sertanejo em uma
121
linguagem artística, contando ―causos‖ populares por intermédio da escultura em madeira.
Uma narrativa com viés artístico se delineia, de forma livre e baseada apenas na inspiração do
artista, que é feita espontaneamente e sem controle, todavia buscando o verossímil com a sua
vida de sertanejo, já que desde criança procurou acumular saberes relacionados à cultura
popular do sertão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os teóricos interessados na condução das operações historiográficas, em seus
diferentes momentos dedicaram-se na obtenção de saberes objetivos. Em meio às crises da
história, particularmente coube a Chartier (2010) renovar a condição da história enquanto
disciplina produtora de saberes capazes de serem submetidos à crítica das tentativas de
falsificações. Nesse caminho, defendeu a emancipação da história da ficção e da memória,
pois estas, ao contrário daquela, não procuram uma leitura crítica e objetiva do tempo.
O conceito de representação, em sua dupla perspectiva, garantiu, em certa medida, a
oxigenação necessária ao reposicionamento das operações históricas enquanto produtoras de
saberes válidos. Abandonando o verossímil, Chartier (2010) entende a própria história como
uma representação do tempo, onde as operações históricas ocupam o lugar de elaboradoras de
uma teoria da objetividade, necessária à execução desse tipo de representação. Portanto, não
há como confundir a representação do tempo empreendida pela história com as representações
empreendidas pela memória e pela ficção.
O historiador da cultura, no seu objetivo principal de ―... identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada
a ler.‖ (CHARTIER, 2002), encontra, no espaço do sertão, condições favoráveis à execução
das mencionadas operações históricas, para entender as representações do povo sertanejo,
além de refletir mesmo sobre o fazer historiográfico, e sobre as representações produzidas
pela história em torno do sertão nordestino.
Tendo em vista as condições para a produção do saber e considerando as traduções e
negociações culturais inerentes às representações, chega-se ao trabalho de delimitação da
pesquisa que envolve a vida e o saber-fazer do agricultor Cícero Alves do Santos, o ―Véio‖,
residente à Rodovia Engenheiro Jorge Neto, Km 8, no município de Feira Nova, no sertão
sergipano.
122
No campo da investigação científica, Véio foi considerado um artista que desenvolve
uma ―literatura de cordel em madeira‖ (CARVALHO, 2002). No trabalho do professor
Fernando Lins de Carvalho, 73 peças foram catalogadas, à época expostas em seu sítio, onde
também funciona seu atelier. As peças são descritas e comentadas num esforço de
compreensão do lugar onde Véio vive e trabalha.
O ambiente estudado por Carvalho (2002) também foi explorado no segmento do
áudio visual, com os documentários ―Véio‖ com roteiro e direção de Adelina Pontual em
parceria com a Petrobrás, além de ―Nação lascada de Véio: a glória do sertão‖ dirigido por
José Ribeiro Filho e com roteiro do professor Ulisses Rafael. O último foi vencedor da
terceira edição do DOCTV/Sergipe. Nas películas, é retratado o mesmo universo simbólico
pesquisado por Carvalho (2002), disponível mediante publicação do Museu de Arqueologia
de Xingó.
Muito ainda precisa ser etnografado e registrado a respeito da vida de Cícero Alves
dos Santos. A observação data do início do ano de 2011, quando foram realizados os
primeiros encontros. Após uma série de contatos informais, uma entrevista semi-estruturada
foi realizada, no propósito de sondar sua infância, seus contatos com os idosos, pois o mesmo
declara que, desde os cinco anos de idade preferia conviver entre os velhos que entre os da
sua idade:
...até que comecei com 5 anos fazendo coisinhas de cera, de abelha...
que aqui tinha muita cera... muita abelha... e eu fazia espécie de
bonequinho... essa coisa de cavalinho... criava alguma coisa também...
aí o pessoal não gostava muito porque dizia que tava brincando com
boneca... mas eu tinha uma admiração muito grande... pelas pessoas
idosas... porque quando eles contavam aquela história... do
lobisomem, do fogo corredor, da caipora... essa história de trancoso...
aí eu passava aquela história deles pra arte... aí eu fazia... fazia o
lobisomem, aí contava a história... um monte de coisa... aí eu fazia
aquelas cena e na mesma hora tinha que desmanchar porque não era
permitido... porque eles tava cuidando de outra coisa e eu tava
brincando... eles achava que era uma brincadeira... aí foi quando eu
comecei com cinco anos eu já era conhecido como Véio por que eu
123
ficava ouvindo as histórias deles, sem saber o que era e nem porque eu
tava ouvindo... (Entrevista realizada em 10 de junho de 2011).
O discurso de Véio refere-se a uma forma de vida onde a natureza é tão venerada
quanto severa. Tal é a impressão, que vem à tona por ocasião dos primeiros contatos
realizados com o agricultor e artista, procurando retratar seu lugar e sua vida. O acesso para o
diálogo foi obtido por intermédio de um de seus sobrinhos, que leciona matemática na rede
municipal de Nossa Senhora da Glória/SE.
Nascido das mãos da parteira Madalena, em casa, a 12 de maio de 1947, na região
onde posteriormente se formaria o bairro Brasília, na cidade de Nossa Senhora da Glória/SE,
julga que teve uma infância diferente, pois ouvia as ―histórias de trancoso‖, contadas por seus
amigos mais velhos; em sua retórica, ―ouvia, sem saber o que era e sem saber o que estava
ouvindo‖. O nome ―Cícero‖ fora escolhido por seus padrinhos, seu Lacerda e dona Zilda,
pois, conta, como era do costume, os ―mais pobres‖ procuravam pessoas da ―classe média‖
para o batismo, os quais quiseram homenagear o padre Cícero de Juazeiro do Norte/CE que
havia falecido.
O nascimento era sob parteira, a parteira que tinha na região era
chamada Madalena, e quando a criatura nascia tinha que ficar dando a
bença até a morte da parteira, como uma segunda mãe. É mãe
Madalena... tinha que dar a bença... se não chingava... aí... depois
vinha o batizado é era escolhido os padrinhos... na época... pobre era a
desgraça pra escolher pessoas com condições... Era chamado Lacerda
e Zilda que eram pessoas classe média... com vida muito boas... o pai
de Elon... e tomaram pra ser padrinhos... e eles acharam por bem botar
o nome de Cícero por homenagem ao padre Cícero que tinha falecido
e na época quem nascia nesse período era em homenagem, ao padre
Cícero do Juazeiro... um dos grandes incentivador ao nome. Então
botaram esse nome (Entrevista realizada em 10 de junho de 2011).
No decorrer de sua vida, Véio mantém um obstinado interesse para com as ―cousas‖
do sertão. Sua trajetória de vida se confunde com seu interesse de contar ―como é o sertão‖,
aspecto que o faz com a fala e com a arte. Colocando-se mesmo acima dos interesses de
mercado, declara que não vende peças, que tira seu sustento da terra, não da arte. E como faz
124
peças para contar sua terra, seu discurso reclama por reconhecimento. Véio guarda em seu
discurso e arte, uma memória e uma representação sobre o lugar onde vive, integrados à sua
trajetória de vida, a ser compartilhada pelos sertanejos dos sertões do nordeste:
...eu me lembro como fosse hoje. Eu me esqueço das coisas que eu
digo agora, mas das coisas deles a gente grava e não esquece. É como
se fosse hoje. Tem vez que eu acho até que eles estão ao lado. [...]
Tinha Messias Beleza, que era o avô de Paulo Ferreira que era aí o
doutor Paulo que foi o secretário de justiça... tudo agricultor... era
Messias Beleza, era Terto, Pedro Mocó, tinha Norita, Luzia, tinha
Luíza, então eu convivia com homem com mulher, pra mim era tudo
uma coisa só. Só contando causo... e... Tânia, tinha um grupo... Zé
Bisgoro... todos já de mais de sessenta... todo mundo gostava de mim.
Eu convivia sem manifestar a minha palavra, era só ouvindo e rindo...
a minha parte era só ouvir. Porque pra pessoa falar tem que aprender
primeiro a ouvir. Eu ouvi muito as histórias deles. (Entrevista
realizada em 10 de junho de 2011).
O artista mobiliza em sua arte ―energias‖ idênticas às fiadoras da história entendida
como saber controlado (CHARTIER, 2010), destacando-se uma memória coletiva partilhada
no espaço do sertão brasileiro, acumulada por sua vivência e por seu interesse pelos ―causos‖
do sertanejo. Sua arte age sobre a matéria-prima da memória, diante da qual desenvolve uma
representação do passado, cultura e identidade sertaneja utilizando uma linguagem artística
popular.
O conceito de representação aplicado à própria escrita da história, em sua função de
―representância‖ da história ―...definida como a capacidade do discurso histórico para
representar o passado‖ (CHARTIER, 2010) possibilita a compreensão das matrizes das
operações históricas, controladoras de um saber válido. As limitações para esse saber estão na
ordem das imposições das instituições históricas, que em seu jogo normativo convencionam o
que pode e o que não pode ser tratado pela história.
Todavia, em se tratando da história cultural, as possibilidades de pesquisa ganham
novo lastro, assim como aumentam as possibilidades temáticas, teóricas e explicativas
(FALCON, 2002), o que contribui na melhoria dos condicionamentos da produção da escrita
125
histórica. Também garante definições diferenciadoras mais precisas entre a técnica do relato
da ficção e da memória e a escrita do passado pela história. Assim, conclui-se que a
experiência relatada no discurso e na arte de ―Véio‖, em referência à sua vida e trabalho, é
mobilizada na construção de uma narrativa distinta da narrativa histórica, com linguagem
igualmente distinta.
Os nexos envolvendo a narrativa de Véio e a narrativa histórica são observados no
cenário da produção da representação cultural do sertão nordestino, que é campo profícuo de
investigação histórica e cujas ―energias fiadoras‖ (CHARTIER, 2010) são as mesmas
mobilizadas no trabalho do artista, envolvendo uma identidade, as formas culturais e a
memória do sertanejo: Assim, Véio também conta sobre um cotidiano:
Isso era mais assim, porque todos trabalhavam, então no domingo que
tinha brincadeira, tinha boca da noite, essas coisas, eu sempre... nós
morava bem próximo, eu não ia sair do lado porque minha
comunidade era aquela... então esses idosos, eu convivia com eles,
porque era as mesmas coisas do outro lado, do interior tudo. Então
sempre domingo, sábado, dia santo que tinha tanto dia santo o homem
do campo que era incrível. Era o que mis tinha era dia santo. E ali
ficavam trocando a ideia deles. Eles jogavam fora a conversa... se
fosse possível passava até o dia todo. Mas tinha horários de
interromper, que fazia uma coisa, fazia outra, mas era conversa
demorada. (Entrevista realizada em 10 de junho de 2011).
Pelo trabalho de um artista popular que representa o universo do sertão nordestino,
delimita-se um campo a ser investigado pelo historiador da cultura, para identificação de
como a realidade sertaneja é ―construída, pensada, dada a ler.‖ (CHARTIER, 2002). Tal
campo oferece condições favoráveis à execução das operações históricas validadoras do
conhecimento histórico, conduzidas a partir do esforço de entendimento das representações do
povo sertanejo, seguindo-se da reflexão sobre o fazer historiográfico, tendo como contraponto
o saber mobilizado no discurso e na arte de Véio.
126
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CARVALHO, Fernando Lins de. O Universo simbólico de Véio: a vida, o cotidiano, as
histórias... uma ―literatura de cordel‖ em madeira. MAX, 2002.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Miraflores: Difel,
2002.
______. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte, Autêntica, 2010.
FALCON, Francisco José Calazans. História cultural: uma visão sobre a sociedade e a
cultura. Rio de Janeiro: Campus, 2002.
REFERÊNCIA AUDIO-VISUAL
PONTUAL, Adelina. Véio. Pernambuco: Chá cinematográfico/ REC produções, colorido, 35
min, 2005.
RIBEIRO FILHO, José. Nação lascada de Véio: a glória do sertão. Sergipe: WG Produções e
Publicidade / Fundação Aperipê, colorido, 52 min, 2007.
A NARRATIVA HISTÓRICA NO DEBATE CONTEMPORÂNEO
DA TEORIA DA HISTÓRIA
Raphael Guilherme de Carvalho159
Helder Silva Lima160
Introdução
A partir dos anos 1970, ocorreu acirrado debate em torno do conceito de ―narrativa‖,
envolvendo a teoria da história, a teoria da literatura, o estruturalismo e a linguística, o pós-
estruturalismo e a chamada pós-modernidade. Basicamente, foi Hayden White (1928 –) quem
159
Mestrando em história (PGHIS/UFPR). Bolsista CNPq. 160
Mestrando em história (PGHIS/UFPR). Bolsista CAPES.
127
o implodiu ao afirmar ser a história uma ―ficção verbal‖.161
Desde então, ele e sua proposta
tornaram-se um problema para a história.
Mas muito antes, à distância de mais de século e meio, há uma preocupação estética e
retórica na apresentação dos trabalhos de historiadores. G. G. Gervinus (1805-1871), em seu
Grundzüge der Historik (1837), preocupa-se originalmente com o estatuto das narrativas
históricas e o problema da escrita da história.162
Ele mesmo um filólogo, de início preocupou-
se em produzir uma história da literatura poética nacional alemã (Geschichte der poetischen
Nationalliteratur der Deutschen, 1835-42), bem como fundamentar, inspirado na Poética
aristotélica, um projeto de escrita da história das belas-letras.163
Ao lado de F. Schlegel (1772-
1829), foi um dos precursores da história da literatura alemã. Gervinus, convencido da
importância do conhecimento do passado para melhor apreensão da literatura, aos poucos foi
se aproximando dos estudos históricos. 164
A questão da estética da historiografia seria retomada, com semelhante importância e
competência, apenas no início dos anos 1970, com Hayden White. Antes disso, contudo, no
início do século XX haverá, da parte dos fundadores dos Annales, uma rejeição explícita ao
que chamaram ―história-narrativa‖ ou ―história historizante‖ (uma reação enfática ao
historicismo e à escola metódica, na verdade) em favor de uma ―história-problema‖.165
Nos
anos 1990, na esteira da fenda epistemológica aberta por Hayden White e pela linguistic turn,
que provocaria abalos irrestritos à história, mas estendidos às Ciências Humanas e Sociais,
alguns historiadores se referem a um suposto ―retorno da narrativa‖.166
Como se observa, a questão ―narrativa‖ trata-se de um amplo debate, em termos
temporais – atravessando diversas ―escolas‖, paradigmas e contextos diferenciados –, e que
envolve disciplinas diversas, especialmente entre a Teoria Literária e a Teoria da História. É
nessa trincheira que gostaria de me concentrar, pela pertinência e relevância de tais questões
para a prática historiográfica contemporânea. Ao defender a ideia de história como ―artefato
161
WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994. 162
GERVINUS, G. G. Fundamentos de teoria da história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. 163
JAUSS, H.R. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994, p. 10. 164
BENTIVOGLIO, J. ―Apresentação‖. In: GERVINUS, G. G. Fundamentos de teoria da história. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2010, p. 7-22. 165
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1985.
166
BURKE, P. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: Idem (org.). A escrita da
história. Novas perspectivas. São Paulo: Edunesp, 1992, p. 327-348; STONE, L. O ressurgimento da narrativa.
Reflexões sobre uma Velha História. Revista de História, Unicamp, n. 2/3, 1991, p. 13-37.
128
verbal‖, Hayden White ataca a historiografia moderna em seu aspecto central e definidor,
constitutivo do seu caráter científico, a racionalidade metódica. 167
Materiais e métodos
A posição do autor norte-americano é, para Jörn Rüsen (1938 –) – de quem aqui se
segue o raciocínio, em defesa da história como ciência –, sintomática da crítica pós-moderna
do pensamento histórico moderno. Basicamente, há duas críticas pós-modernas ao
pensamento histórico moderno: a primeira parte da ―crise da noção de progresso‖ para afirmar
a incapacidade das ―grandes narrativas‖ de fornecer a autocompreensão das sociedades
modernas; a segunda, decorrente da mesma questão, afirmaria a inexistência da própria
história como ―entidade‖ – existiriam, apenas, representações do passado, por meio de
estratégias retóricas e poéticas do discurso narrativo.168
A pós-modernidade e a pós-história
seriam, sinteticamente, a despedida dos historiadores da crença no progresso como capaz de,
pela modernização, produzir melhorias, e o deslocamento da atenção dos historiadores do
trabalho metódico de pesquisa para as estratégias retóricas e poéticas da apresentação
histórica.
O desafio, neste texto, é delinear parte deste debate – restrito às contiguidades entre
História e Teoria Literária – tão importante para o redimensionamento epistemológico que se
operou desde então na pesquisa histórica. O rigor e a consistência da reflexão teórica alemã,
produzida pela Escola de Bielefeld – capitaneada por Reinhart Koselleck e continuada por
Jörn Rüsen e outros –, cujo projeto é afirmar a ciência da história, são o guia dessa discussão.
Ela extrapola as alternativas entre ―história-narrativa‖ e ―história-problema‖, e a falsa
dicotomia entre ―verdade‖ e ―ficção‖, ao afirmar um verdadeiro ―paradigma narrativista‖, que
enxerga o ato de narrar como uma ―prática cultural de interpretação do tempo‖, constante
antropologicamente universal. 169
Sobre o historicsmo, a observação dos progressos deste campo na atualidade torna-se
mais nítida por intermédio de um contraste relacional com a teoria da história produzida desde
o século XIX, especialmente a Historik de Droysen. Para Rüsen, o historicismo constitui a
167
RÜSEN, J. Rethoric and aesthetics of history: Leopold von Ranke. History and Theory, Vol. 29, No. 2 (May,
1990), pp.190-204. 168
RÜSEN, J. Conscientização histórica frente à pós-modernidade: a história na era da nova intransparência.
História: Questões e Debates, UFPR, v. 10, n. 18/19, 1989, pp. 303-328.
169
RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília : UnB, 2001, p.
149.
129
matriz disciplinar da história enquanto ciência. O trabalho de Droysen inaugura um tipo de
reflexão – o normativismo histórico – que definiu as balizas metódicas para que a história
pudesse se definir como ciência. Não se trata, evidentemente, de uma ingênua transposição do
século XIX e sua utopia de emancipação humana pela modernização para as condições
históricas específicas dos séculos XX até hoje no início do XXI, quando se percebeu o
potencial destrutivo no bojo da experiência modernizadora. Jörn Rüsen em seu trabalho
teórico procura atualizar a ideia alemã de cultura (Bildung) levando em conta o trauma e a
crise da consciência histórica alemã (e do Ocidente) decorrentes da Segunda Guerra Mundial.
Centrada na matriz disciplinar, sua teoria da história – na verdade, uma metateoria, que
examina a pesquisa histórica e as teorias de que esta se utiliza para alcançar seus objetivos,
não necessariamente como um meio para a finalidade empírica – objetiva reconstruir as
condições de metodização e racionalização do pensamento histórico em sua versão científica.
Simplificadamente, é um saber reflexivo dos fundamentos do pensamento histórico normativo
– um reforço do projeto kantiano de esclarecimento pelo esforço de fundamentação.
Como uma referência imprescindível da formação do pensamento histórico moderno,
Rüsen renova essa tradição, incorporando e respondendo às críticas dos pós-estruturalistas e
pós-modernos, de modo que não basta mais apenas a conservação da racionalidade dos
métodos de pesquisa (heurística, crítica e hermenêutica) sem avançar na direção das técnicas
narrativas se aras (retóricas e estéticas) na historiografia. Mas somente o procedimento
metódico é capaz de preservar o risco do devaneio ficcional. Estes dois elementos, centrais na
teoria da história, estão entre o enraizamento da ciência da história no mundo da vida e a sua
função de orientação cultural que retorna à práxis como resposta às necessidades sempre
cambiantes de orientação. Portanto, não se pode pensar seu conceito de narrativa ou
―paradigma narrativista‖ isoladamente, sem remeter às outras etapas da matriz disciplinar. A
forma de apresentação da historiografia é um de seus aspectos. Temporalidade e sentido são
indissociáveis da compreensão narrativa: a narrativa é um esforço de apreensão temporal
capaz de constituir sentido no mundo e na auto-interpretação do homem. Veremos como esses
conceitos se articulam.
Rüsen ocupa um lugar proeminente na historiografia alemã, ao lado de seu mestre,
Reinhart Koselleck, no amplo debate envolvendo a epistemologia da história e a questão
filosófica da historicidade da razão contemporânea, que remonta a historiadores e filósofos da
linhagem de Ranke e Dilthey. A Alemanha, segundo o professor Estevão de Rezende Martins,
sedia ―o maior movimento de sistematização teórica da ciência histórica do século XX‖. O
―chefe‖ desse movimento seria Reinhart Koselleck, historiador associado à história
130
intelectual, à história dos conceitos e às reflexões sobre a temporalidade (Reinhart Koselleck
lecionou nas universidades de Bochum, Heidelberg e Bielefeld, e ao longo de sua trajetória
acadêmica, contribuiu de maneira significativa para estudos relacionados à teoria da história e
principalmente para a vertente historiográfica denominada história dos conceitos
(Begriffsgeschichte), da qual é fundador. 170
―Espaço de experiência‖ e ―horizonte de expectativa‖, conceitos seminais na obra
teórica de Koselleck, são categorias formais, meta-históricas, de elevado grau de
generalidade, que têm a função de estabelecer e delinear histórias possíveis (não as histórias
mesmas). Formam um par de conceitos complementares/indissociáveis (não há expectativa
sem experiência, não há experiência sem expectativa), imanentes à própria condição humana
(como um dado antropológico prévio, sem o qual a história seria impossível).171
O tempo histórico é, portanto, em Koselleck, resultante da tensão entre os modos
desiguais de ser da experiência/expectativa. Não há relação estática entre as categorias. Eles
constituem no presente uma diferença temporal, na medida em que entrelaçam passado e
futuro de maneira desigual. Na gênese da modernidade forjou-se um novo ―horizonte de
expectativa‖, que terminou ganhando a forma do conceito de progresso. O progresso, voltado
para uma transformação ativa neste mundo, e não no além, desvincula as expectativas para o
futuro de tudo quanto as antigas experiências foram capazes de oferecer. Immanuel Kant,
enquanto inventor da expressão ―progresso‖, procurava ordenar as objeções da experiência de
forma a confirmar a expectativa de progresso; para isso esteve voltado todo o seu esforço
como filósofo da história. Para Koselleck, o progresso, tal como formulado por Kant, é o
primeiro conceito histórico que apreendeu a diferença temporal entre espaço e expectativa.
Paul Ricoeur ressalta a universalidade dessas categorias, afirmando que podem ser aplicadas a
qualquer período.172
A partir da ―matriz disciplinar‖ da ciência histórica – termo de Thomas Kuhn (1922-
1996), em A estrutura das revoluções científicas (2003), de 1962 – Rüsen proporá uma
renovada, mas francamente inspirada no historicismo, compreensão dos fundamentos do
conhecimento histórico. A matriz disciplinar ou o paradigma da ciência da história, no âmbito
cultural, articulando procedimentos científicos com a vida prática, é uma inter-relação
sistemática de cinco fatores: primeiro, os interesses de conhecimento, através dos quais as
necessidades de orientação da sociedade se prolongam para dentro da disciplina científica;
170
MARTINS, E.R. Historicismo: tese, legado, fragilidade. História Revista, UFG, n. 7: 1-22, jan./dez. 2002. 171
KOSELLECK, R. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/Ed. PUC-RJ, 2006, p. 309. 172
RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Tomo III. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 369.
131
segundo, as idéias, perspectivas orientadoras da experiência sobre o passado, no presente
histórico; terceiro, as regras metódicas da pesquisa empírica; quarto, as formas de
apresentação do conhecimento histórico; quinto, as funções de orientação cultural do agir
humano no contexto existencial do próprio historiador.
A diferença de Rüsen para com a linguistic turn e a crítica pós-moderna é que aí os
procedimentos lingüísticos da representação histórica são tomados como o determinante
básico do pensamento histórico em detrimento das operações metódicas da pesquisa, ―a
qualidade estética da história [...] contraposta à racionalidade metódica de seu
conhecimento‖.173
Em última análise, sua matriz disciplinar defende que a ciência histórica
tem por função cultural a ―constituição de sentido‖ – orientação das intenções, motivções e
planos do agir racional – sem dissociar o acontecimento de suas interpretações.
Essa constituição de sentido, que se realiza na narratividade, tem repercussão prática,
como função cultural, de modo a animar a consciência histórica:
[...] o pensamento histórico é fundamental para os homens se haverem
com suas próprias vidas, na medida em que a compreensão do
presente e a projeção do futuro somente seriam possíveis com a
recuperação do passado [...]. As carências de orientação no tempo são
transformadas em interesses precisos no conhecimento histórico na
medida em que são interpretadas como necessidade de uma reflexão
específica sobre o passado. Essa reflexão específica reveste o passado
do caráter de ―história‖ [grifos meus].174
Convertido em história por representações narrativas portadoras de sentido, o passado
prolonga-se pela continuidade na direção dos projetos de futuro diretores do agir e sofrer. A
narrativa media passado e presente e realiza a consciência histórica. Ela é vista na teoria da
história de Rüsen como prática cultural de interpretação do tempo, antropologicamente
universal e, no âmbito da versão científica do pensamento histórico, é o lugar do argumento,
―um tipo de explicação que corresponde a um modo próprio de argumentação racional‖. 175
A propriedade narrativa de representar a continuidade constitutiva da identidade, a
síntese entre experiência e expectativa do tempo, reabilita, inclusive, a história como lugar do
173
Id., Ibid., p. 150. 174
Idem, p. 30-1. 175
Idem, p. 157.
132
utópico e de felicidade possível. O sentido das histórias narradas vai além da experiência e se
liga a expectativas de futuro, conciliadoras do peso da experiência com a leveza da
esperança.176
Resultados e discussão
O que aqui se estudou de forma mais modesta foi o delineamento de algumas
questões. Primeiro, discutiu-se parte da dinâmica do historicismo como matriz da reflexão
teórica alemã, mas de forma atenta aos perigos de uma simples transposição de um
historicismo ―puro‖ para os dias de hoje; em um segundo momento, como a escola histórica e
a escola metódica foram rechaçadas pela revolução secundária dos Annales a partir dos anos
1930, e com elas a narrativa foi descartada em nome de uma história-problema; em seguida,
parte das querelas entre estruturalismo e pós-estruturalismo, linguistic turn e pós-
modernismo, que vai desembocar em um ceticismo radical em relação à ciência da história;
por fim, a resposta produzida pela história conceitual de Koselleck e a teoria da história de
Rüsen em favor da história como ciência.
Procurando delinear os termos de um amplo debate que se desenvolve em ampla
temporalidade, neste trabalho correu-se o risco, sempre constante, de empobrecê-lo e reduzi-
lo. No entanto, não se almejou uma ―história‖ muito menos uma ―crítica‖ do problema – isso
nem seria possível neste espaço –, e sim a apresentação de alguns pontos de virada nos
debates sobre a narrativa na moderna ciência da história, privilegiando seu ponto alto, a partir
dos anos 1970, com o questionamento cético dos pós-modernos e a resposta em nome da
ciência histórica produzida no ambiente da escola de Bielefeld.
Não obstante, outros autores, ligados a outras tendências da historiografia, foram
deixados de lado. A micro-história italiana, por exemplo, utilizou-se dos debates acerca da
narrativa e da ―descrição densa‖ apropriada da antropologia para, em histórias de reduzida
escala de observação, produzir sentido em si mesmas. Carlo Ginzburg responde
brilhantemente o ceticismo pós-moderno em Relações de Força: história, retórica, prova.
Sentindo-se desconfortável diante daqueles termos, o autor italiano procura desmontar a
historiografia pós-moderna centrada na poética da história e conclui, analisando a Retórica
aristotélica (quando a maioria se preocupava com a Poética), que não há, absolutamente,
nenhuma incompatibilidade entre retórica e prova e que esta é, ao contrário, seu núcleo
176
RÜSEN, J. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em história. In: SALOMON, M.
(Org.) História, verdade e tempo. Chapecó, SC: Argos, 2011, p. 263.
133
fundamental. Antes dele, Roland Barthes, em O discurso da história (1967), questionava se
―essa narração [histórica] difere realmente, por algum traço específico, por uma pertinência
indubitável, da narração imaginária, tal como se pode encontrar na epopeia, no romance, no
drama?‖. Peter Gay, nos anos 1970, estudando O estilo na história (1974) seguiria um
caminho peculiar ao relacionar arte e ciência na história, afirmando que ―o estilo é a arte da
ciência do historiador. Dominick LaCapra, a princípio ao lado de Hayden White ao defender a
ênfase nas estratégias retóricas e estéticas do discurso da história, segue caminho próprio ao
refutar o ―tropos‖ de White. No Brasil, Luiz Costa Lima, da teoria literária, autor que trouxe
para o Brasil a abordagem hermenêutica literária e a estética da recepção de Jauss e Iser,
recentemente produziu uma obra monumental, História. Ficção. Literatura (2006), de porte
comparável a Tempo e Narrativa (1983) de Paul Ricoeur.
O que aqui se estudou de forma mais modesta foi o delineamento de algumas
questões. Primeiro, discutiu-se parte da dinâmica do historicismo como matriz da reflexão
teórica alemã, mas de forma atenta aos perigos de uma simples transposição de um
historicismo ―puro‖ para os dias de hoje; em um segundo momento, como a escola histórica e
a escola metódica foram rechaçadas pela revolução secundária dos Annales a partir dos anos
1930, e com elas a narrativa foi descartada em nome de uma história-problema; em seguida,
parte das querelas entre estruturalismo e pós-estruturalismo, linguistic turn e pós-
modernismo, que vai desembocar em um ceticismo radical em relação à ciência da história;
por fim, a resposta produzida pela história conceitual de Koselleck e a teoria da história de
Rüsen em favor da história como ciência.
Assim, o objetivo foi contribuir, no fundo, com o pensar sobre o ofício do historiador. Ou
melhor, sobre como esses teóricos e grandes mestres pensaram a questão. A história da história de
forma teoricamente orientada parece ser um caminho seguro para investigação da história, do
historiador e da consciência histórica que se produzem contemporaneamente. E a tradição
hermenêutica da compreensão exerce papel fundamental, por exemplo, pelo conflito mesmo de
interpretações, que possibilita a vivacidade da constante reescrita da história.
CAPÍTULO DA RECEPÇÃO DE “RAÍZES DO BRASIL”, DE SÉRGIO BUARQUE
DE HOLANDA: A LEITURA INTEGRALISTA (1936-1938).
Raphael Guilherme de Carvalho
134
Introdução
Este trabalho interessa-se por um aspecto específico da tensão de Raízes do Brasil e
das resenhas críticas observadas entre 1936-1938. Este aspecto se relaciona ao horizonte de
espera dos leitores, onde ―a literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente [...],
seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra‖². Procurei, durante este trabalho,
reconstruir o contexto de orientação (intelectual e político) e o horizonte de expectativas (a
utopia modernista da brasilidade) em que se insere o ensaio de Sérgio Buarque, como uma
resposta aos impasses da singular modernidade brasileira que abre uma via de orientação ao
constituir sentido sobre a experiência do tempo. Interessa a maneira pela qual a obra, no
momento de seu aparecimento, atende, supera ou vai de encontro às expectativas de seu
público inicial. Segundo as resenhas críticas analisadas, há duas tendências: primeiro, Raízes
do Brasil é saudado pela sua capacidade crítica e interpretativa, capaz de romper com a
glorificação patriótica dos ―heróis‖ do passado nacional; em segundo lugar, e o mais
importante, a tensão inerente ao ensaio é percebida de imediato e criticada, a ausência de um
desfecho sistemático em forma de programa político é sentida pelos leitores especializados.
Portanto, decepciona o horizonte de espera dos leitores e, em particular no caso dos
integralistas, cuja solução é enfaticamente rejeitada pelo autor, contraria suas expectativas.
Materiais e métodos
Helio Vianna, historiador, intelectual militante do Integralismo nos anos 1930 escreve
uma ―Nota sobre Raízes do Brasil‖ n‘O Jornal, de primeiro de dezembro de 1936. De início,
acusa o ensaio de Sérgio Buarque de reunir ―apreciações francamente errôneas com
facilidade‖, embora elas não necessariamente invalidem seus méritos. As apreciações
errôneas são decorrentes do fato de ser ―amigo das generalizações, a exemplo do dirigente da
coleção [Documentos Brasileiros], Sr. Gilberto Freyre‖. Helio Vianna aponta em Raízes do
Brasil a presença de ―raciocínios predeterminados e tendenciosos, que lhe restringem ou
desviam os julgamentos‖. Por exemplo, para H. Vianna, o autor apresenta ―restrito conceito
de Integralismo‖. O erro maior, contudo, estaria em sair do jogo de ideias e partir para o
ataque deliberado ao Integralismo, a Oliveira Vianna e Octavio de Faria.
Mais incisivo é Alberto B. Cotrim Neto, jurista e militante intelectual do Integralismo,
em sua leitura de Raízes do Brasil. O integralismo foi o primeiro movimento político
brasileiro a utilizar a imprensa de forma sistemática e pedagógica. A responsabilidade pela
135
difusão e penetração social do integralismo nos anos de 1930 foi a existência de uma extensa
rede de jornais e revistas que visavam a fundamentação e propagação de sua doutrina. Cotrim
Neto publica no jornal A Offensiva, importante veículo da AIB, na edição do dia 3 de
fevereiro de 1937. Dirigido por Madeira de Freitas, circulou por todos o Brasil semanalmente,
entre outubro de 1934 e dezembro de 1935, e diariamente durante 1936 e 1938, mesmo após a
dissolução da AIB., em1937 pelo Estado Novo varguista.
O jornal desempenhava a função de levar ao militante informação sobre as ações da
AIB e de popularizar a doutrina integralista. Informava sobre congressos, passeatas, cursos,
festas pelas datas comemorativas recebiam lugar de destaque nos periódicos do movimento.
Segundo Renata Duarte Simões, autora de tese sobre o jornal A Offensiva, o integralismo
concebia o jornal como
instrumento de educação para a população ―menos culta‖ [...] Aos
mais cultos, considerados mais aptos para compreensão da doutrina, a
abordagem deveria ser feita por meio dos livros. Aos intelectuais
cabia o papel de educar ―as massas‖, de preparar a doutrina e
transmiti-la ao povo. Era deles o dever de escrever para o jornal.
Causticamente, Alberto B. Cotrim Neto diz que o livro de Sérgio Buarque de Holanda
é daqueles maus livros que surgem ―estrepitosamente, sob a capa de preciosidade,
embandeirado em arcos de prefácios laudatórios e publicidade bem urdida‖. Some-se a isso
o fato de ―a crítica ‗camarada‘ tê-lo recebido em festa‖. Causa-lhe espanto a audácia de
Sérgio Buarque de contrariar teses ―há muito estabelecidas pela chancela de nossos grandes
sociólogos, principalmente Oliveira Vianna‖. Que Sérgio Buarque escreva sandices a
Constituição o autoriza. O que não pode ser permitido, segundo Alberto Cotrim, é que ele
atente contra a verdade histórica quando diz que o Integralismo é a fim à doutrina do Estado
Totalitário, tal como teorizado por Carl Schmitt. Outra advertência de Alberto Cotrim a
Sérgio é em razão ―das alfinetadas que ele, com tanta falta de oportunidade, forçando a
orientação do seu estudo, pretende dar no Integralismo‖. Cotrim diz que o Integralismo não
pode ser associado ao fascismo porque ―organizará o país diferente de como a Itália
organizou, centralizando, ao passo que nós objetivamos descentralizá-lo até os municípios‖.
Por fim, aconselha Buarque de Holanda a ―estudar um pouquinho mais‖.
A crítica buarquiana do Integralismo ridiculariza os integralistas em alguns epítetos
como ―caudilhos esclarecidos‖ ou ―intelectuais neurastênicos‖. O que incomoda a Sérgio
Buarque é o caráter conservador travestido de revolucionário, já que nem tanto a violência,
136
que coloriu o modelo alemão e italiano, não subsiste no mussolinismo indígena: ―Quem não
sente, porém. que sua reforma é, em essência, apenas uma sutil contra-reforma?‖.
Na Alemanha, em 1929, presenciou e reportou as primeiras manifestações violentas
dos nazistas, experiência que lhe mostrou in loco o que vinha a ser o fascismo, regime de
força. Raízes do Brasil tem a insígnia do tempo presente e carrega uma antevisão do futuro.
Sérgio Buarque se posiciona, a despeito do desentendimento da recepção imediata, como um
democrata, crítico do liberalismo de fachada das oligarquias, tanto quanto do comunismo e do
fascismo.³ ***************
Em 18 de junho de 1935, publicou no jornal Folha da Manhã (SP), um
artigo intitulado O Estado Totalitário, sobre ―as doutrinas que predicam a máxima sujeição
do indivíduo ao Estado‖. Sérgio Buarque comenta Carl Schmitt (Der Begriff des Politischen)
e sua análise da oposição que se delineava no mundo pós-1929 entre liberalismo (em crise) e
totalitarismo (a ―solução‖ para a crise). O artigo, por um lado, era uma crítica provocativa do
conservadorismo das elites às vésperas do Estado Novo, por outro, representava uma leitura
do que sucederia, no Brasil e no mundo†††††††††††††††
.
Resultados e discussões
Raízes do Brasil é uma obra que no transcorrer do tempo alcançou fortuna crítica
admirável, talvez mesmo inapreensível em sua totalidade. Suscitou inúmeros debates em sua
época; criou uma polêmica ardida com o escritor fascista Cassiano Ricardo em torno do
conceito de ―homem cordial‖‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
e passou por reavaliações do autor na edição
seguinte (1948); foi canonizado pelo prefácio escrito por Antonio Cândido em 1969 para a
quinta edição, junto com Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre (1933) e Formação do
Brasil econômico de Caio Prado Jr. (1942), como ―o clássico de nascença‖ entre os três livros
de ―interpretação do Brasil‖ que marcaram toda uma geração; sobreviveu a um período de
eclipse, quando se associou a ideia do homem cordial à tese de uma história do Brasil
―açucarada‖ e à visão positiva e saudosa do legado ibérico por Freyre: Ronaldo Vainfas
³ CANDIDO, A. A visão política de Sérgio Buarque de Holanda. In: EUGÊNIO, J. K.; MONTEIRO, P. M. op.
cit., p. 29-36. †††††††††††††††
HOLANDA, S. B. O Estado Totalitário. In: BARBOSA, F.A. op. cit., p. 298-301. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
A ponto de na segunda edição da obra (1948) inserir uma nota explicativa a respeito da polêmica
com Cassiano Ricardo: ―pela expressão ‗cordialidade‘, se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as
intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em ‗bondade‘ ou em
‗homem bom‘. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e
convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente sentimentos positivos e de
concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração,
procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.‖ In: HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. 26ª. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 204-5.
137
aponta, com discernimento, que ―o senso comum [...] construído no meio universitário, onde
prevalecia o esquerdismo, [...] acabou embolando os dois autores, embora Freyre tenha sido
apoiante do regime [militar] e Sérgio Buarque, crítico assumido‖§§§§§§§§§§§§§§§
; por fim, desde
os anos 1980, após a morte de Sérgio Buarque – mesmo ele tendo afirmado que ―já se tenha
gastado muita cera com este pobre defunto‖****************
–, vem sendo relido, reinterpretado
e incorporado ao debate acadêmico, assim como outros vieses de sua obra, como a atividade
de crítico literário, têm crescido em importância††††††††††††††††
.
Esse pequeno esboço da fortuna crítica e da trajetória tortuosa de Raízes do Brasil
demonstra a força do efeito produzido historicamente pelo clássico ensaio de interpretação
histórica de Sérgio Buarque de Holanda. Robert Wegner sugere que um trabalho interessante
– e, proporcionalmente, de largo fôlego – seria uma análise completa da trajetória e da
recepção da obra mais conhecida de Sérgio Buarque‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
. O contínuo da recepção e
do efeito do ensaio buarquiano no tempo são certos; contudo, de difícil apreensão, pois que
em uma abordagem internalista/externalista, necessariamente depreendem-se novas leituras e
efeitos da obra em cada mudança de horizonte da experiência histórica.
Evidente, não é este o meu objetivo neste texto de diminuta estatura. Por ora,
interessa-me a compreensão do ensaio buarquiano em sua historicidade, a partir de embates
que travou com os integralistas e suas leituras arbitrárias nos dias seguintes ao vir a público.
Seguindo e deslocando para um ―uso historiográfico‖ a estética da recepção de Hans Robert
§§§§§§§§§§§§§§§
VAINFAS, R. ―Posfácio‖. In: HOLANDA, S.B. Visão do Paraíso. São Paulo: Cia. das Letras,
2010, p. 551. ****************
Apud MONTEIRO, P. M. A Queda do Aventureiro. Campinas: Ed.Unicamp, 1999, p. 265. ††††††††††††††††
Diversos estudos têm sido dedicados àquele ―pobre defunto‖. Tentei organizá-los – antecipando as
escusas por possíveis falhas e esquecimentos – dividindo-as em a) ensaios críticos, b) coletâneas de textos do
próprio Sérgio Buarque, c) teses e dissertações acadêmicas. São elas: a) a edição especial da Revista do Brasil,
1987, por seu amigo Francisco Assis Barbosa; Sérgio Buarque de Holanda: vida e obra, por Arlinda Nogueira,
1988; Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil, 1988, por Antonio Candido; os anais do 3º. Colóquio UERJ, 1992,
dedicado a Sérgio Buarque; e, mais recentemente, uma grande obra coletiva, Sérgio Buarque de Holanda:
perspectivas, 2008, organizada por P. M. Monteiro e J. K. Eugênio; b) Sérgio Buarque de Holanda, 1985,
coletânea sob responsabilidade de Maria Odila Leite da Silva Dias; Raízes de Sérgio Buarque de Holanda, 1988,
preparada por Francisco Assis Barbosa; Capítulos de Literatura Colonial, 1990, por Antonio Candido; em 1996,
o Livro dos Prefácios e O Espírito e a Letra (2 vols.), por Antonio Arnoni Prado; mais recentemente, os Escritos
Coligidos (2 vols.), organizados por Marcos Costa; c) entre outros, Marcus Vinicius Correa Carvalho defendeu a
dissertação Raízes do Brasil, 1936: tradição, cultura e vida na Unicamp em 1997 e em 2003 a tese de doutorado
Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda: crítica literária, história e política (1920-1940); Pedro Meira
Monteiro defendeu a tese ―A Queda do Aventureiro‖ na Unicamp em 1999; Robert Wegner publicou A
conquista do oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda, em 2000, como resultante de sua tese de
doutoramento; João Kennedy Eugênio defendeu o doutorado na UFF em 2010 com a tese Um ritmo espontâneo:
o organicismo em Raízes do Brasil e Caminhos e Fronteiras; Thiago Nicodemo produziu a dissertação Urdidura
do Vivido: Sérgio Buarque de Holanda e Visão do Paraíso nos anos 1950 em 2008 e em 2011 a tese de
doutorado Alegoria Moderna: consciência histórica e figuração do passado na crítica literária de Sérgio
Buarque de Holanda. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
WEGNER, R. A conquista do oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2000, p. 28.
138
Jauss, torna-se fundamental a expressão deste autor quando diz que a intenção de seus estudos
e proposições teóricas inovadoras (para os anos 1970) era uma ―apologia da compreensão
histórica‖,§§§§§§§§§§§§§§§§
segundo a tradição hermenêutica que remonta a Dilthey, a quem
coube tornar a dimensão histórica do conhecimento um fundamento das ciências do espírito.
Cabe citar Jauss, novamente, para esclarecer o tencionamento:
A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi
criada e recebida no passado possibilita que se apresentem as questões
para as quais o texto constitui uma resposta e que se descortine, assim,
a maneira pela qual o leitor de outrora terá encarado e compreendido a
obra.*****************
Pode-se observar em toda sua obra um destaque, ou uma preocupação com a questão
da mudança histórica, considerada inerente à vida social: ―há um fulcro inspirador comum a
todos os seus trabalhos, que é a reconstituição das tensões entre as tradições e a mudança
histórica‖. †††††††††††††††††
Robert Wegner também enxerga como fio condutor da obra de
Sérgio Buarque (não apenas Raízes do Brasil) a forma como a relação entre tradição e
modernidade é mobilizada pelo autor (relação constante no ensaísmo do pensamento social
brasileiro). No fundo, Raízes do Brasil trata-se de uma obra sobre a (não) modernização
brasileira ou sobre os obstáculos à modernização e a incompatibilidade entre cordialidade e
civilidade.‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Raízes do Brasil não resolve suas tensões internas. Não há um desfecho programático
como era comum à expectativa dos autores e leitores da época. No capítulo final, ―Nossa
Revolução‖ não há um programa nem apresentação de soluções possíveis. Há, no máximo,
um conclame para que se observe ―o nosso ritmo espontâneo‖,§§§§§§§§§§§§§§§§§
isto é, a
particularidade brasileira frente ao processo amplo de modernização, lento e oscilante entre a
ruína do mundo agrário (projetado em direção ao passado) e a emergência do novo, do urbano
e das massas (projetado em direção ao futuro, antecipando possibilidades não concretizadas).
A temporalidade se apresenta, portanto, uma chave interpretativa privilegiada.
Em plena ditadura militar, no ano de 1967, dois anos antes de se aposentar, Sérgio
Buarque, em conferência na Escola Superior de Guerra (ESG), voltaria a se ocupar de Raízes
§§§§§§§§§§§§§§§§
JAUSS, H.R. idem, p. 73. *****************
Id., Ibid., p. 35. †††††††††††††††††
Id., Ibid., p. 11. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
WEGNER, R. op. cit., p. 29. §§§§§§§§§§§§§§§§§
HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. 26ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 188.
139
do Brasil. Como que em defesa de qualquer possível ―mau-uso‖ de sua obra, Sérgio Buarque
procura afastar qualquer possibilidade de apropriação indevida esclarecendo alguns pontos
obscuros. Além da advertência contra qualquer tipo de sedução pelos regimes de força (cf. a
epígrafe que abre este artigo), falando aos militares, Sérgio Buarque reafirma a questão que
estava latente em Raízes do Brasil:
estará ao alcance das atuais gerações o erradicarem em breve prazo
males que ao longo dos séculos, e não sói de quatro ou três decênios,
já puderam deitar raízes fundas em nosso solo? Quero crer que sim,
mas devo admitir que se trata de um artigo de fé, que não saberia
transmitir aos outros.******************
Sérgio Buarque ao reler Raízes do Brasil em 1967 defende a democracia e a superação
do passado defendido como relíquia pela elite autoritária. Nada mais frontalmente oposto que
qualquer doutrinação em favor de regimes de força. O rompimento de Sérgio Buarque com
todas as expectativas que se apresentavam de imediato àquele contexto provoca um efeito que
só poderá ser compreendido mais adiante, quando se confirmam as suas críticas na
experiência futura.
Deve-se levar em conta ainda a forma de ensaio do livro. Somente considerando e
ensaio como forma pode-se compreender melhor as teses de Sérgio Buarque.††††††††††††††††††
Segundo a definição do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), o ensaio ―é a forma
única e inalterável que um pensamento decisivo toma à vida interior de um homem‖.
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Em sendo um ensaio sobre a nação, ao recorrer à sua experiência particular, interior, o
sujeito, de certa forma, continua a tratar de seu tema, como se em si concentrasse as
******************
HOLANDA, S. B. Elementos básicos da nacionalidade: o homem. In: MONTEIRO, P.M.;
EUGÊNIO, J. K. op. cit., p. 634. ††††††††††††††††††
Raízes do Brasil aparece no cenário intelectual brasileiro em momento de profusão de
interpretações e projetos sobre o país. Pouco antes, em 1928, Paulo Prado publicaria o Retrato do Brasil: ensaio
sobre a tristeza brasileira, definido pelo autor como um ―quadro impressionista‖ com objetivo de se ―chegar à
essência das coisas‖. Talvez em resposta a isso Sérgio Buarque se questione a respeito da possibilidade ou não
de uma ―estrita objetividade‖ em um ―estudo compreensivo‖. De todo modo, a discussão sobre o ensaio denota
que ele é mais afeito à multiplicação de elementos subjetivos de um autor que à somatória e demonstração de
dados objetivos. Cf. PRADO, P. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 85-6.
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Apud HARTOG, F. Entrétien avec François Hartog. In: DELACROIX, C.; GARCIA, P.; DOSSE,
F. (Orgs.) Historicités. Paris: La Découverte, 2009, p. 148.
140
―essências mais íntimas‖ do caráter singular brasileiro.§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Se o ensaio não chega a
anular a diferença entre sujeito e objeto, pressupõe ao menos uma dialética entre
eles.*******************
Entre o passado e o futuro, entre o particular e o geral, imbuído de
perspectivismo e historicidade, o ensaio buarquiano é uma narrativa histórica, interpretativa,
que constitui sentido aos fatos narrados; desenvolvido cronologicamente, apresenta uma
sequência contínua e coerente (começo, meio e fim), em que o fio condutor diz respeito ao
lento, doloroso e recalcitrante, mas contínuo, processo de modernização. A historicidade
apresenta-se como um solo de visada epistemológico, que cria as condições de possibilidade
de interpretação histórica na obra: entre o reclame da experiência histórica brasileira e a
expectativa das virtualidades da modernização, oscila entre olhar para o passado (em que
critica e atualiza a tradição e a herança ibérica) e entrever o futuro (quando aponta a
possibilidade de modernização e democracia), mas não exibe nenhuma proposta enfática ou
sistemática de ação política: opta pelo movimento, pela experiência singular, pelo ―ritmo
espontâneo‖, pelo ―fluxo e refluxo‖ do tempo e da história.
Agradecimentos
Agradeço à bolsa de mestrado do CNPq, que permitiu a realização desta
pesquisa no campo da teoria da história, como parte da pesquisa de mestrado sobre
a historicidade de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936).
SIMPÓSIO:
As faces de Eva: gênero, transgressão sexual
e Igreja Católica no Brasil.
§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Cf. ARAÚJO, R. B. Deuses em miniatura. In: SOUZA, E.M.; MIRANDA, W.M (Orgs.) Navegar
é preciso, viver: escritos para Silviano Santiago. Belo Horizonte, Salvador, Niterói: Ed. UFMG, EDUFBA,
EDUFF, 1997. *******************
Theodor Adorno define o ensaio como a forma crítica por excelência: ―não segue as regras do
jogo da ciência e da teoria organizadas, [...] não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. Ele se
revolta sobretudo contra a doutrina [...] segundo a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia‖.
ADORNO, T. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 25.
141
Coordenador:
RENATA VALÉRIA DE LUCENA – Mestranda - UFRPE
A IGREJA CATÓLICA E OS SEUS RITUAIS: BATISMO, CASAMENTO E
EXTREMA UNÇÃO EM RECIFE (1860-1880).
Renata Valéria de Lucena†††††††††††††††††††
PALAVRAS-CHAVE
Igreja Católica; Normatização; Transgressão; Sacramentos; Recife
INTRODUÇÃO
O resumo apresenta uma análise comparativa da doutrina católica, estabelecida no
Concílio de Trento e compilada nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, com
alguns dos acontecimentos cotidianos da população recifense do século XIX. Essa era
detentora de um clero envolvido com o cotidiano de seus paroquianos, buscando transpor as
burocracias eclesiásticas que os impediam de alcançar os Sacramentos católicos ao mesmo
tempo em que apresenta os conflitos travados entre o clero com os seus paroquianos. Na
conjuntura social da época estudada é fundamental entender a importância dos Sacramentos,
como o Casamento, o Batismo e a Extrema Unção, na sociedade recifense, como elementos
que intermediavam o sagrado e o profano e as representações que povoavam o imaginário de
uma população que concebiam a salvação de suas almas como o único refrigério aos
sofrimentos mundanos.
Sacramentos como o Casamento, Batismo e Extrema Unção adquiriram,
paulatinamente, significativa importância na cultura católica, visto a crença popular da sua
ligação com o sobrenatural. Todavia, esses sacramentos eram alcançados de maneiras
diversas, sobretudo o casamento que, geralmente, era celebrado como uma necessidade de
salvar a alma de algum enfermo que vivia concubinado ou amasiado, tendo apenas a hora da
morte como único momento para consertar toda uma vida de desregramento moral e/ou
sexual.
†††††††††††††††††††
Aluna do Mestrado em História Social da Cultura Regional da Universidade Federal de
Pernambuco. Orientadora: Alcileide Cabral do Nascimento.
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A população menos favorecida economicamente buscou meios para alcançar os
sacramentos católicos, que se distanciavam dos fiéis mais humildes pelos elevados custos,
impostos por uma vasta burocracia que retardava as celebrações. Diante de tais entraves, os
párocos intervinham solucionando problemas engendrados por pessoas que não observara à
doutrina católica, estabelecendo relações fora do âmbito matrimonial.
Em casos extremos, em que a situação exigia uma maior brevidade na celebração do
sacramento, como diante da morte, por exemplo, o clero solicitava dispensas da
documentação necessária para a realização de casamentos, cruciais à salvação da alma de seus
paroquianos. A pressa, exigida e solicitada pelo clero, gerava inúmeros erros que, geralmente,
resultavam em penalidades e até em casos de excomunhões de vigários.
Contudo, nem sempre o clero recifense é narrado como um intermediário
comprometido com a salvação e redenção de suas ovelhas, haja vista a existência de párocos
que se desviavam das obrigações com as celebrações dos sacramentos, além de não obedecer
as Leis canônicas. Muitos deles usavam meios ilícitos na hora de prestar contas, para a
comunidade e a própria Igreja, dos seus atos.
Ausências de párocos durante matrimônios e batizados são reclamações correntes nos
livros de correspondências eclesiásticas, somados aos assentos registrados fora da data e de
denúncias de falsificação de documentos para matizar a falta de zelo na execução das
obrigações administrativas da paróquia.
As negligências de alguns párocos são panos para manga de muitas discussões que
ocupam páginas dos livros de correspondências eclesiásticas. Algumas narrativas vêm
acompanhadas de todas as divergências e pleitos existentes, internamente, entre os membros
do clero, que manipulavam os erros alheios como armas para se (re) afirmarem como
responsáveis pela paróquia local e enobrecer sua posição na sociedade eclesiástica.
Isto posto, o objetivo do resumo é entender como as Leis canônicas eram executadas
pelos párocos recifenses em uma sociedade que se distanciava do padrão social idealizado
pela Igreja Católica. A metodologia usada baseia-se na análise comparativa da doutrina das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia com as narrativas encontradas na
documentação eclesiástica
MATERIAIS E MÉTODOS
O resumo é fruto da pesquisa documental de fontes paróquias do século XIX. Temos
por base documental os Livros de correspondências do Arcebispado de Olinda e Recife que
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contêm narrativas civis, de delegados e subdelegados, e eclesiásticas, as quais narram todo o
cotidiano da sociedade recifense, entre os anos de 1830 a 1890. Tais livros nos permitem uma
análise profícua das artimanhas empregadas pela sociedade recifense no intuito de se desviar
da malha repressora da Igreja e do Estado, ao mesmo tempo em que apresentam a postura dos
párocos locais e da Arquidiocese em relação às práticas sexuais. Tais livros estão sob os
cuidados da Cúria Metropolitana de Recife.
A metodologia usada baseia-se na análise comparativa de obras de autores
consagrados, como FOUCAULT (1985), CHARTIER (2002), CAMPOS (2003); SAMARA
(2004); SILVA (2010); VAINFAS (1997), com o que foi arrolado na documentação
eclesiástica, sobretudo nos livros de correspondências eclesiásticas, como uma forma de
descortinar o modelo de sociedade criado pela Igreja no intuito de direcionar a sociedade ao
casamento cristão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
No Brasil do século XIX, as relações familiares justificavam-se por questões
sociopolíticas, visto que um bom casamento ampliaria a escala de influência e domínio das
famílias oriundas dos extratos sociais mais elevados. Portanto, entre a elite, o cerne de tais
relações não era a afetividade, por isso os casamentos eram determinados pelo patriarca que
escolhiam os cônjuges de seus filhos de acordo com os interesses da família. Contudo, ―os
matrimônios, que eram a opção de certa parcela da população, estiveram também
preferencialmente circunscritos aos grupos de origem, representando a união de interesses,
especialmente entre a elite branca.‖ (SAMARA, 2004: 42).
Às camadas menos favorecidas economicamente, na sua maioria, restringiam-se às
relações clandestinas, ou seja, fora do âmbito familiar, devido à falta de recursos necessários
para alcançar as núpcias de acordo com os dogmas católicos e as constantes lutas pela
sobrevivência que ocupavam os dias e as atenções desses grupos.
A existência de casais vivendo de ―portas adentro‖ são objetos de inúmeras narrativas
eclesiásticas no século XIX. O clero, que tinha por função combater o que a Igreja enquadrava
como pecado crime da prostituição‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
, ou seja, todas as relações fora do âmbito
matrimonial, convivia pacificamente com pessoas que viviam amasiada, batizando os seus
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Expressão usada pelos párocos recifenses nos livros de correspondências eclesiásticas.
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filhos naturais, escutando as confissões dos seus pecados, auxiliando seus enfermos na hora
da morte, etc.
Tais relações perpetuavam-se até a morte de um dos cônjuges, sendo reconhecidas não
só pela comunidade, mas também pelo próprio clero que, freqüentemente, solicitava o auxílio
dos seus superiores para facilitarem o recebimento de casais concubinados em casamento
cristão, geralmente, devido ao fato de um dos nubentes encontrar-se muito doente e não
almejar morrer em ―pecado da prostituição.‖ Nesses casos, os párocos alegavam conhecer os
nubentes e suplicavam ao Senhor Vigário da Capitania para ofertar ―as dispensa dos
proclamas de costume, a fim de que sem embaraço e com a maior brevidade possível se
realize o casamento concordado‖ §§§§§§§§§§§§§§§§§§§
entre os cônjuges, a comunidade e o pároco,
cabendo ao Vigário apenas ratificar a união que existia ―aos olhos da sociedade‖.
Desde que o matrimônio foi estabelecido como Sacramento, no Concílio de Trento, ―a
Igreja lançou larga copia de leis, emanadas do próprio Concílio e que formaram no Brasil as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.‖ (CAMPOS, 2003: 52).
o casamento foi elevado à categoria de Sacramento que deveria ser normatizado
mediante uma vasta legislação eclesiástica. A partir do sagrado Concílio tridentino, as
famílias deveriam ser fundadas sob o casamento que se tornou ―indissolúvel, firmado sobre o
consentimento mútuo dos esposos e sobre a consumação.‖ (CAMPOS, 2003: 65).
Teoricamente, o Concílio de Trento trouxe nova disciplina para matrimônio, ―proibindo os
casamentos clandestinos [...] que facilitavam os consórcios realizados por menores, sem o
consentimento de seus pais. (CAMPOS, 2003: 67). Contudo, para Vainfas ―defender o
matrimônio enquanto sacramento e instituição era assunto delicado‖ para a Igreja Católica
que o concebia apenas como uma ―união profana, o ―menor dos males‖, o remédio para os
que não conseguiam viver castos.‖ (VAINFAS, 1997: 22).
Apesar de toda normatização contida nas Constituições, no Recife o grande problema
enfrentado pelos párocos foram os casamentos entre retirantes que, de acordo com a
concepção da época, eram pessoas naturais de diferentes freguesias, províncias ou até mesmo
países. Os retirantes, arrolados na documentação, pertenciam aos extratos sociais menos
favorecidos, cujos parcos recursos os impediam de viajar ao seu local de origem em busca de
documentos que comprovassem sua naturalidade e seu estado civil. A falta de certidões de
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Informações retiradas do Livro de Correspondências Civis nº 02, página 243. Documento
pertence à biblioteca da Cúria Metropolitana do Recife. Correspondência oriunda da subdelegacia da freguesia
de Santo Antônio do Recife, datada do dia 17 de dezembro de 1878, direcionada ao Bispado de Pernambuco.
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nascimentos e de estado civil criava inúmeros estorvos na hora de estabelecer uma união
sacramentada.
De acordo com as normas contidas nas Constituições, pessoas que pretendiam ―casar
em diferentes Freguesias, ou naturais de uma, e residentes em outra por espaço de mais de
seis meses, [...] trarão certidões delas‖, cabendo aos párocos das diversas freguesias exigir as
certidões necessárias ―sob pena de se lhes derem em culpa, e serem castigados gravemente a
nosso arbítrio.‖ (VIDE, 1853: 112).
Apesar das restrições impostas ao casamento de retirantes, foram muitas as
solicitações de párocos recifenses, direcionadas ao Bispo diocesano, no intuito de transpor as
burocracias eclesiásticas, sobretudo em casos especiais, ou seja, quando o retirante tinha
raptado e/ou desonestado alguma moça da freguesia e aspirava fugir da responsabilidade de
casar com a ―pobre infeliz********************
‖ ou quando um dos nubentes estava em perigo de
morte e desejava regularizar uma união consensual aos olhos da comunidade, mas não
oficializada pela Igreja.
Esses casos, geralmente, exigiam extrema brevidade e propiciavam inúmeros erros
seguidos de penalidade e até excomunhão de alguns párocos recifenses. Um caso singular de
um padre que incorreu em equívocos, durante a celebração de um casamento, foi na Paróquia
da Várzea no ano de 1879. Na correspondência eclesiástica, direcionada ao Vigário Capitular,
o Reverendo Monsenhor Chantre José Joaquim Camello d‘Andrade, o Vigário João
Rodrigues da Costa anunciava ―definitivamente nulo o casamento de Américo Antunes
Dantas com Maria Leocádia da Silva‖, além de denunciar a não observância das ―leis de
nossa Igreja, assim como da pena de excomunhão reservada a V.E.††††††††††††††††††††
‖
A correspondência não faz referência ao pároco penalizado com a excomunhão nem
menciona qual foi o seu erro. Contudo, evidenciamos que o engano cometido pelo citado
padre foi conseqüência de uma mentira contada pelos nubentes. O Vigário João Rodrigues da
Costa afirma que anunciou apenas a moça à resolução tomada pelo Vigário Capitular a
respeito do seu matrimônio. Entretanto ficou impossibilitado de falar com o nubente, ―que
segundo consta, achava-se em companhia de seus pais que moravam em freguesia estranha.‖
********************
É corrente na documentação eclesiástica a expressão ―pobre infeliz‖ para se referir a jovem que
foi desonestada. Tal expressão vitimiza a moça e é usada como uma maneira de enfatizar a necessidade de casá-
la, de imediato, como o jovem meliante, posto que necessariamente ficaria entregue aos rigores da miséria se não
realizar o dito casamento. ††††††††††††††††††††
Informações contidas no Livro de Correspondências Eclesiásticas nº 08, página 451. Documento
pertencente à biblioteca da Cúria Metropolitana do Recife. Documento oriundo da paróquia da Várzea, em 25 de
maio de 1872, direcionado ao Vigário Capitular Monsenhor Chantre José Joaquim Camello d‘Andrade.
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‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡ Sendo assim, o pároco que realizou o casamento, não tomou conhecimento
do local de residência do nubente, logo as certidões de idade e naturalidade não foram
apresentadas durante os banhos, ou seja, durante a coleta de documentos necessários à
celebração do sacramento. Talvez esse tivesse sido o erro do referido pároco.
Um caso atípico foi relatado pelo Cônego Vigário Francisco P. Duarte, em 1874. Este
denunciava a celebração de casamento dias após o falecimento do nubente que foi acometido
por uma enfermidade. Quais estratégias usadas pelo pároco para a realização do casamento de
um nubente já falecido com uma mulher ainda na ―vida presente‖ não é informado pelo
Vigário. Todavia seria mais coerente considerarmos que esse casamento pode ter sido
realizado antes do falecimento do nubente, sendo assentado, no livro de registro de
casamento, dias depois do seu falecimento. Logo, se compararmos a data do assentamento do
registro de casamento com a data do registro do falecimento do nubente, ficava detectado que
o pároco realizou o casamento de um morto. Nesse caso, o Cônego pede que o Vigário
Capitular ―se digne aprovar casamentos celebrados, em tão difíceis circunstâncias, e
consentindo que em casos semelhantes eu assim continuarei a proceder [...].‖§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
A narração do Cônego aponta à distância da freguesia em relação à Capital como
principal entrave, o qual dificultava a resolução de situações limites do cotidiano, em que a
―salvação‖ da alma do moribundo dependia, exclusivamente, da celebração do matrimônio,
que o tiraria do pecado crime da prostituição. Em tais casos, a demora burocrática seria
deletéria não para a reputação social dos nubentes, haja vista que a maioria vivia a muitos
anos amasiados, mas para a sua vida após a morte.
O Concílio de Trento também elevou a Extrema Unção à categoria de Sacramento
católico que, sendo o quinto Sacramento, visava trazer auxílio e conforto na hora da morte
―em que as tentações de nosso comum inimigo costumam ser mais fortes, e perigosas,
sabendo que tem pouco tempo para nos tentar.‖ (VIDE, 1853: 81).
No título XLVIII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Vide (1853)
destaca o dever do clero de atender aos enfermos. Nesse título é possível apreender o papel
social da Extrema Unção, na cultura católica, como um dos Sacramentos mais importante em
uma camada social que vivia no limiar do que era cristãmente esperado e o que a realidade
socioeconômica permitia.
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Idem. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Informações contidas no Livro de Ofícios nº 12, sem paginação. Documento pertence à
biblioteca da Cúria Metropolitana do Recife.
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Era corrente a existência de pessoas vivendo de ―portas adentro‖ sem nunca receberem
as bênçãos católicas; também era comum existirem pessoas que não tinham recebido o
Batismo, muitas delas sendo batizadas às vésperas da morte; mas não receber a Extrema
Unção era inconcebível até mesmo para os párocos que, em alguns casos, desconsideravam as
ordens e as Leis eclesiásticas celebrando casamentos e absolvendo enfermos de anos de
pecados, no intuito de salvarem suas almas da mais temida penalidade: o inferno. Para essas
pessoas, está concubinado (a) ou amasiado (a) nem sempre era o fim desejado por muitos
recifenses que tinham apenas a hora da morte como único momento para consertar toda uma
vida de desregramento moral e/ou sexual. E como privá-los de tais direitos?
A justificativa das atitudes do clero, vistas por alguns Vigários como inobservância às
Leis canônicas, era cultural e não disciplinar, haja vista que, como nos mostra o Cônego
Vigário Francisco P. Duarte, mais importante do que atender as burocracias, era salvar a alma
de enfermos cujas doenças não lhes permitiam esperar que o Bispo Capitular se dignasse em
analisar e atender múltiplas solicitações de dispensas matrimoniais que chegavam todos os
dias de todos os lugares da província. Portanto, a Extrema Unção tornou-se, para a cultura
católica, um direito inalienável, uma via de acesso e integração do pecador à vida após a
morte.
Todavia, nem todo pároco buscava auxiliar os seus paroquianos, posto que são
inúmeras as narrativas sobre conflitos travados entre párocos com as autoridade civis, como
delegados e subdelegados, e com pessoas da comunidade a qual estava situada a paróquia.
Um caso singular de conflito de párocos entre si com os paroquianos é narrado, numa
longa carta, pelo Pároco Coadjutor da Vila do Cabo*********************
, Luis Ignácio de Moura,
ao Vigário Capitular do Bispado. A sua narrativa começa eivada de expressivo desafeto,
caracterizado pela sutil ironia que permeia as suas palavras utilizadas pelo suplicante, quando
esse se refere ao seu irmão em Cristo, o Padre Juvêncio. O autor da correspondência
denuncia o padre Juvêncio afirmando que ―não é possível tolerar abusos cometidos pelo
mesmo sacerdote, visto que as benévolas e doces admoestações do digno pároco [...] não tem
até agora produzido efeito algum.‖ Uma das queixas do pároco Coadjutor é não ter os seus
serviços devidamente apreciados pelo referido padre, além de ser vitima dos caprichos, dos
crimes e da falta de comprometimento na administração da paróquia e dos Sacramentos.
*********************
Apesar do documento não ser originado em uma das paróquias recifenses, ele é de grande valia
em nossa análise devido à clareza relativa à má conduta do pároco. Também devemos considerar que a paróquia
da Vila do Cabo era gerida pela Arquidiocese de Olinda e Recife, sendo assim o documento foi direcionado ao
Palácio da Soledade, recebendo o mesmo rigor de análise e penalidade dispensas aos párocos recifenses.
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O grande problema, narrado pelo Pároco Coadjutor, é o fato do Padre Juvêncio
ausentar-se durante a celebração de batizados e casamentos nos dias e horas marcados. Em
alguns momentos, o Padre Juvêncio realizou a celebração destes Sacramentos em casas
particulares sem solicitar as licenças necessárias e quando celebrava esquecia-se de registrar
os assentos nos livros de casamentos, nascimentos e óbitos, o que gerou inúmeros transtornos
quando alguns paroquianos solicitavam certidões. Por fim, o Pároco Coadjutor denuncia a
existência de uma certidão falsa de batismo, a qual afirmava que uma moça tinha cerca de 16
anos de idade, sendo descoberto, logo após, por um pároco de uma freguesia vizinha, que ela
tinha 20 anos de idade. Tal fato apresentou-se como verdadeiro estopim, causando enorme
escândalo, cujo resultado foi a carta queixosa do Pároco Coadjutor que pedia o auxílio do
Bispo Capitular do Bispado para por fim as desavenças, crimes e escândalos originados da má
conduta do Padre Juvêncio.
Outro importante Sacramento católico foi o Batismo, o qual era ―o primeiro de todos
os Sacramentos, é a porta por onde se entra na Igreja Católica‖; a maneira mais eficaz de abrir
o ―Céu aos batizados‖; o único instrumento capaz de assegurar a salvação de crianças que
eram acometidas por mortes súbitas, tão comuns em uma época em que inúmeras vidas eram
ceifadas por moléstias internas e inexplicáveis. Nesse fase da história recifense, é sabido que
pairava no imaginário popular o temor que os rebentos falecessem sem receber o Batismo,
condenando as almas de seus filhos a vagarem pela eternidade no Limbo. Logo, a cultura
católica atribuíra elevada importância ao Sacramento do Batismo que, assim como a Extrema
Unção, não deveria ser negada ou negligenciada, haja vista que as incertezas diante da vida e
da morte aterrorizavam, especialmente, as camadas populares que concebiam a salvação de
suas almas como um refrigério aos sofrimentos mundanos. Portanto, negar aos paroquianos o
direito de batizar seus filhos e consolar seus mortos, talvez, configura-se em verdadeiro crime
ou contravenção. Sendo assim, o Padre Juvêncio não só infligia as Leis católicas, mas também
as representações sociais e culturais da sua comunidade que clamava por justiça.
Não respeitar as representações sociais, talvez, fosse o erro mais grave cometido pelo
Padre Juvêncio. De acordo com Chartier (2002: P) ―as representações de mundo social assim
construída [...] são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.‖ Dentre as
suas principais funções, as representações servem para ―a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas‖ (CHARTIER, 2002: 17), criando identidades que
costuram os indivíduos ao corpo social.
Outro elemento criado pelas representações sociais são as disciplinas. Para Durval
Junior (2007), as disciplinas ―são como finas agulhas [que] penetram nossa carne sem que
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percebamos e aí inscrevem os códigos sociais, aí inscrevem de forma profunda os medos que
servirão de obstáculos para nossos desejos de sairmos da ordem.‖ (DURVAL JUNIOR, 2007:
72).
O medo institucionaliza-se mediante ―todo comportamento mais ou menos coercitivo,
apreendido. Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um
enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição.‖ (FOUCAULT, 1985: 247).
Nesse caso, o temor do sobrenatural, do inferno, de não ter o direito de batizar os filhos ou de
não conseguir se confessar antes do último suspiro. O medo de Deus e dos seus castigos eram
combustíveis suficientes para que as pessoas da comunidade se rebelassem contra um pároco
que, segundo a cultura católica oitocentista, era o intermediário entre o Criador e os homens.
Nessa perspectiva, o pároco ainda decepcionara o papel social atribuído ao clero de
controlar socialmente os seus paroquianos, evitando que esses transtornassem a ordem
pública. Para Alonso (2001), o Catolicismo no Brasil tinha a função crucial de alicerçar o
poder do monarca que, acompanhado do Liberalismo estamental e do Indianismo romântico,
compunha o cerne do consenso tácito que reunia a elite imperial ao centro do poder.
O Catolicismo, implantado no Brasil, configurava uma sociedade hierarquizada
conforme a vontade divina, apresentando a cada indivíduo o seu papel no corpo social. Como
a religião de Estado, ―a Igreja dava auxilio vital ao estado no controle social, especialmente
onde os braços estatais eram mais curtos.‖ (ALONSO, 2001: 64). Isto posto, a função do
clero, sobretudo em regiões mais afastadas do centro do poder, era manter a ordem social e
disciplinar as massas mais fanáticas, evitando que essas atentassem para as questões políticas
e econômicas. Sendo assim, cabia ao clero manter a ordem e não instigar a comunidade às
rebeliões, mesmo que locais e isoladas.
AGRADECIMENTOS
Nossos agradecimentos são direcionados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) cujo financiamento permitiu, durante dois anos de
participação no Programas Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, a catalogação de
uma vasta documentação primária, à Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) a todo apoio
ofertado durante a nossa estadia no programa e ao pesquisador Dr. Alexandre Zarias pelos
direcionamentos teórico-metodológicos, conselhos e dedicação.
150
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Munis de. História: a arte de inventar o passado. Ensaio
sobre teoria da história. São Paulo: Edusc, 2007.
ALONSO, Ângela. Idéia em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil - Império. São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
CAMPOS, A. L. A. Casamento e Família em São Paulo Colonial: Caminhos e
Descaminhos. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre praticas e representações. Tradução de Maria
Manuela Galhardo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 5º Ed. 1985.
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004 - (Coleção
tudo é história).
SILVA, Gian Carlos de Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e
mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Recife: Universitária da UFPE, 2010.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
Documentos Consultados
Livro de Correspondências Civis nº 02. Arquivo da Cúria Metropolitana de Recife.
Livro de Correspondências Eclesiásticas nº 08. Arquivo da Cúria Metropolitana de Recife.
Livro de Ofícios nº 12. Arquivo da Cúria Metropolitana de Recife.
Livro de Óbitos da Paróquia de Casa Forte – Poço da Panela (1838-1845). Arquivo da Cúria
Metropolitana de Recife.
VIDE, D. Sebastião Monteiro das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
Feitas e Ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da
151
Vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas
em Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de 1707. São
Paulo: Tipografia de Antônio Louzada Antunes, 1853.
ARREGIMENTAÇÃO FEMININA: O CONTROLE DO CORPO
INTEGRALISTA†††††††††††††††††††††
Helisangela Maria Andrade Ferreira‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Giselda Brito Silva§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
INTRODUÇÃO
O campo da política, espaço considerado masculino pela sociedade de 1930 era onde o
individuo exercia sua liberdade, sendo tais espaços negados as mulheres. Segundo
Rago**********************
―‗Mulheres Públicas‘, até então, era sinônimo de ‗mulheres alegres‘
ou de ‗mulheres da vida‘[...]‖. A Ação Integralista Brasileira††††††††††††††††††††††
permite que as
mulheres ocupem os espaços públicos desde que exaltem sua vocação ―natural‖ que seria a
maternidade e o casamento. Sabe-se que o discurso cristão afirma que o corpo feminino tinha
a obrigação de procriar, de dar luz a filhos saudáveis e com isso a mulher passa a ter seu
papel definido que seria o espaço privado. Para Plínio Salgado‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
a mulher
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A presente temática é um dos objetivos especificos da pesquisa de iniciação cientifica: “As práticas sócio-culturais das mulheres integralistas na educação e assistencialismo entre as mulheres pobres do Recife (1932-1937).” Pesquisa que tem o financiamento da Facepe/CNPq. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Graduanda do curso de História – DHIST – UFRPE. E-mail: helly_andrade@hotmail.com §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Docente/pesquisadora do Departamento de História – DHIST – UFRPE. E-mail: gibrs@uol.com.br. **********************
RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI ou carta de alforria. In_____VENTURI, Gustavo. RECAMÁN, Marisol. OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. 1º
edição – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 31. ††††††††††††††††††††††
A Ação Integralista Brasileira foi um movimento que surgiu em 1932 na cidade de São Paulo e rapidamente ganha conotação nacional. Na cidade do Recife houve muitos núcleos integralistas principalmente no interior do estado. As mulheres se dedicavam as atividades educacionais e assistencialistas e estavam respaldadas pela Secretaria de Arregimentação Feminina e Plinianos. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Plínio Salgado foi um cidadão participante da sociedade brasileira, conhecido de alguns brasileiros antes da fundação da Ação Integralista Brasileira. Ele fez parte da Semana de Arte Moderna de 1922 junto a Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo, compôs o Curupira e o Carão, livro programa da Revolução da Anta, denominação que sugerira em homenagem ao mamífero-totem dos tupis. Em fevereiro de 1928, foi eleito deputado pelo Partido Republicano Paulista, participou de um movimento ligado ao partido conhecido como Ação Renovadora Nacional, mas não se consolidou. Com a chegada das eleições de 30 apoia a candidatura de Júlio Prestes, o qual era oposicionista de Getúlio Vargas. Em uma viagem que Plínio fez percorrendo diversos países em especial a Itália foi de extrema decisão para seu futuro, já que esteve em contato com as ideias do Fascismo,
152
seria considerada um dos pilares na construção desse novo modelo de nação. A cidade do
Recife passava por mudanças estruturais e sociais sendo assim novos discursos estavam
sendo construídos para a mulher. A AIB defendia um discurso tradicionalista enquanto a
sociedade recifense estava dividida entre o tradicional e o moderno.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher, Moral e Discurso.
MATERIAIS E MÉTODOS
Em 1937 foi instaurada a ditadura Varguista no Brasil e os partidos políticos foram
fechados, nessa época a Ação Integralista Brasileira abandona a conotação de movimento
cultural e assume a identidade de partido político. O Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS) foi criada em 1924 sendo um instrumento de grande repressão durante o Estado
Novo. Sendo a AIB fechada todo o material encontrado pelos investigadores foi retido por
esse Departamento nos proporcionando uma infinidade de informações a cerca das atividades
realizadas pelos núcleos integralistas. Podemos citar: o livro de Adidos, relatório de
investigadores, informes, organização dos núcleos e principais atividades. Nos prontuários
funcionais, divididos por núcleos integralistas, de cada município tem-se acesso a nomes,
endereços, fichas de inscrições, fotografias, cartas pessoais, bilhetes, hinos, letras de músicas,
recorte de jornais, selos, documentos eleitorais e pedaços de bandeira integralista e etc.
Alguns integralistas que foram detidos pelo DOPS para averiguação têm suas fichas
individuais com informações e depoimentos dos acusados de ter alguma ligação com o
movimento.
A Escola dos Annales ampliou as fontes no tocante as pesquisas históricas, sendo
assim os jornais retratam uma dada época e seus principais acontecimentos. A análise desse
tipo de fonte nos possibilita ter uma menção do movimento integralista no estado de
Pernambuco. A imprensa é um meio de comunicação utilizado maciçamente pela AIB tanto
que havia o Sigma-Jornais Reunidos§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
. A Fundação Joaquim Nabuco
(FUNDAJ) disponibiliza os principais jornais em circulação da época, são eles: Jornal do
Commercio, Jornal Pequeno e Diário de Pernambuco. O Arquivo Público Jordão
Emerenciano (APEJE) possui uma hemeroteca com muitos exemplares de jornais que
e após se encontrar com Mussolini relata que um fogo sagrado entrara em sua vida e ao regressar ao Brasil resolve por em prática algumas das características do movimento presenciado. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
O Sigma-Jornais Reunidos, um grande consórcio jornalístico criado em 1935, subordinado a Secretaria Nacional de Propaganda, devidamente autorizado pela chefia nacional, compreendia um conjunto de 88 jornais em circulação em todo território nacional. CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e
organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 84.
153
apoiavam o movimento ou periódicos integralistas, podemos citar: A Offensiva, Diário do
Nordeste, A Cidade, Ação Integralista Brasileira, O Braço Verde, A Razão, Monitor
Integralista e A Acção. A Biblioteca Pública Estadual Presidente Castelo Branco apresenta
uma acervo de coleções especiais estando presente o periódico A Voz do Sigma.
Os programas de pós-graduação de diversas universidades apresentam diferentes
trabalhos a cerca da temática estudada em outros estados, nos possibilitando um maior
entendimento do movimento integralista e da participação feminina. Renata
Simões***********************
faz uma análise do corpo feminino no jornal A Offensiva,
periódico integralista que disciplinava os sujeitos e designava suas funções de acordo com a
construção social dita para o homem e a mulher. A Revista Brasil Feminino é destinada as
mulheres em geral e apresenta uma linguagem conservadora, mas após uma crise financeira
passa a ser uma publicação integralista, como nos aponta Mancilha†††††††††††††††††††††††
.
Daniel Henrique Lopes‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
nos apresenta a participação feminina nas fileiras
do movimento e que experiências sociais estavam destinadas as mulheres e como se
desenvolveu as relações de gênero.
A partir dos anos 70 a historiografia feminina passa a ter uma visibilidade no campo
acadêmico com a produção de trabalhos a cerca da participação feminina na história, como
assinala Perrot§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
[...] à concepção de que as mulheres têm uma história e não
são apenas destinadas à reprodução que elas são agentes históricos e possuem uma
historicidade relativa as ações cotidianas [...]. Sendo assim muitos trabalhos foram produzidos
relatando essa participação feminina, podemos apontar: Soihet************************
nos
apresenta muitas produções a cerca da condição da mulher e das relações de gênero. A
atuação das mulheres nas fábricas e como as relações entre os empregados e patronato se
***********************
SIMÕES, Renata Duarte. A Educação do corpo no jornal A Offensiva (1932-1937). Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação. 2009. †††††††††††††††††††††††
MANCILHA, Virgínia Maria Netto. Nas páginas da imprensa feminina: uma análise da revista Brasil Feminino e da participação feminina no movimento do Sigma (1932-1937). In: GONÇALVES, Leandro Pereira. SIMÕES, Renata Duarte. (Orgs.) Entre tipos e recortes: histórias da imprensa integralista. Guaíba: Sob
Medida, 2011. p.183-206. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
LOPES, Daniel Henrique. As Experiências Femininas na AIB (1932-1938) – Revendo o
passado. Gênero e Representações. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista – UNESP. Faculdade de Filosofia e Ciências. 2007. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
PERROT, Michelle. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência. Conferência proferida no Núcleo de Estudos de Gênero Pagu em 06 de maio de 1994 (UNICAMP). ************************
Ver: SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da pesquisa da História das Mulheres e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, v.27, p. 281-300, 2007. ______. História das Mulheres . In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 399-429.
______. Transgredindo e conservando, mulheres conquistam o espaço público: a contribuição de Bertha Lutz. Labrys, estudos feministas. Número 1-2, julho/dezembro 2002.
154
desenvolveu é tema da obra de Margareth Rago.††††††††††††††††††††††††
Mary Del
Priore‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
retrata a expectativa que surge sob o corpo feminino e a sua
obrigação em procriar e a culpa pelo pecado original.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O modelo que foi criado para a mulher seria o aprendizado para o casamento, a
sociedade de 30 era caracterizada pelo modelo patriarcal, onde cada sujeito ocupava sua
função dentro dos preceitos da moral e dos bons costumes. Mas este modelo vai sendo
descaracterizado pelo processo de mudança que a sociedade vem passando, pode-se ressaltar a
luta das mulheres pelo voto que, apesar de ter sido levantada essa proposta em 1919 por
Bertha Lutz§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
, o sufrágio somente foi concedido às mulheres em 1932. O
código eleitoral Decreto nº 21.076*************************
de 24 de fevereiro de 1932 trouxe uma
inovação, pela qual devemos ressaltar: para que o cidadão pudesse votar deveria ser maior de
21 anos, alfabetizado e não havia distinção quanto ao sexo. Já a constituição de 1891 nem
sequer mencionava a mulher.
Na obra ―A mulher no século XX‖†††††††††††††††††††††††††
a religião cristã não é julgada
como opressora dos direitos femininos, mas a concepção materialista da existência foi que
decaiu a mulher intelectual e moralmente. Tanto a Igreja Católica quanto Plínio Salgado
partilhavam do mesmo discurso para as mulheres, ou seja, o de mãe, dona de casa e esposa. O
corpo feminino era considerado local de procriação, Del Priore acrescenta ―apenas como mãe,
a mulher revelaria um corpo e uma alma saudáveis, sendo sua missão atender ao projeto
fisiológico-moral dos médicos e a perspectiva sacramental da Igreja‖‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
. O
movimento apresentava a divisão de cultura física§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
com a finalidade do
††††††††††††††††††††††††
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (1890-1930). Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Del Priore, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no
Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Bertha Maria Julia Lutz (1894 – 1976) foi feminista e a segunda mulher a ingressar no serviço público no país. Fundou a Federação Brasileira para o progresso feminino em 1922. Em 1934 foi eleita suplente para deputado federal, não sendo eleita em duas eleições. Em 1936 assume seu mandato o perdendo com o golpe do Estado Novo. SOIHET, Rachel. A Pedagogia da conquista do espaço público feminino pelas mulheres e a militância feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, novembro – dezembro,
número 015. São Paulo. pp. 97-117. *************************
http://www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21076-24-fevereiro-1932-507583-publicacaooriginal-1-pe.html acessado em 19/01/2012 às 14:15. †††††††††††††††††††††††††
SALGADO, Plínio. A mulher no século XX. Porto: Livraria Tavares Martins, 1947. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
PRIORE, Mary Del. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no
Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p.27. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Secretaria Nacional de Arregimentação Feminina e da Juventude – Departamento
Feminino.
155
desenvolvimento físico, eram mantidas aulas de ginástica e esportes apropriados ao sexo
feminino. Era proibido as mulheres participarem de paradas esportivas que não fossem
adequadas as mesmas, como aponta Simões:
Embora tenha conferido importância à estética da mulher,
proporcionando espaços no jornal para que alguns autores tratassem
dessa temática, a AIB parecia estar muito mais preocupada com a
questão eugênica e geracional da beleza do que com a ―satisfação‖
pessoal e a autoestima feminina. A AIB compreendia que, sendo
―bela‖ a mulher, apta estaria a gerar uma prole ―forte‖ e
―sadia**************************
.
As mulheres integralistas, através das práticas assistencialistas, difundiam o discurso
de preservação do corpo, pois o movimento era defensor dos preceitos cristãos defendendo a
moral e a ética. Silva††††††††††††††††††††††††††
nos atenta que o ―corpo integralista é o corpo
metaforicamente construído para representar o ‗brasileiro nacionalista e cristão‘, defensor de
um tipo de organização política e social‖. Havia uma cobrança pública e privada para que a
mulher se ―preservasse‖ para o casamento segundo Sueann Caulfield‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
explica a honra sexual ―representava um conjunto de normas que, estabelecidas
aparentemente com base na natureza, sustentavam a lógica da manutenção de relações
desiguais de poder nas esferas privada e pública‖. O fato de a mulher ser a guardiã da honra
trazia para ela uma série de proibições, pois os espaços públicos ofereciam perigos que
poderia aranhar a reputação feminina. Segundo Ribeiro§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
―um provérbio
compara a honra da mulher a um cristal, que, partido, não tem conserto‖ e a modernização
recifense era considerada culpada por oferecer atrativos que desvie a mulher da sua conduta
respeitável.
Havia nesse momento na cidade do Recife um choque entre o moderno e o
conservador, Rezende comenta: ―O Recife é uma dessas cidades de forte tensão entre o
**************************
SIMÕES, Renata Duarte. A Educação do Corpo no Jornal A Offensiva (1932-1938). Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. 2009. p.159-160 ††††††††††††††††††††††††††
SILVA, Giselda Brito. Corpos e Discursos: uma abordagem Histórico-discursiva do corpo
integralista como transgressor da ética e da moral cristã, 2004. p. 3. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
CAULFIELD, S. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de
Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000. Pág. 26. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no antigo Regime. São Paulo: Moderna. 1998.
156
moderno e o tradicional. A sua história está atravessada por momentos de deslumbramentos e
fantasias sobre o seu futuro possivelmente moderno [...]***************************
. E essa
modernidade esteve presente nos costumes das famílias recifenses, a mulher passa a ocupar
lugares considerados impróprios, a família dita moderna é aquela considerada nos moldes
burgueses. A família burguesa é combatida por Plínio Salgado, chefe nacional do movimento
integralista, para ele: ―a mulher perde dia-a-dia, na civilização burguesa e sem Deus, todos os
fundamentos da sua eficiência mental e da sua grandeza moral‖†††††††††††††††††††††††††††
O discurso que era difundido pela AIB para a mulher e em defesa da sua honra era
justamente que os lugares públicos não lhes era adequado, salvo algumas
condições‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
, por isso visitavam bairros humildes com a finalidade de
trazer esse publico feminino para o seio do movimento sendo instruídas através de praticas
assistencialistas a respeito da higiene e cuidado com os filhos. Tais discursos eram partilhados
pela sociedade de 1930, apesar de todo o apelo moderno. O movimento não possuía apoio
declarado da Igreja Católica, mas muitos dos seus ensinamentos e doutrinas eram
aconselhados a serem seguidos pelos militantes do sigma. Alguns clérigos deram apoio à
causa integralista.
Aconselhamos aos bons catholicos e ao clero que prestigiem ao
Integralismo, único meio de acção actualmente, capaz de impedir a
derrocada tremenda que ameaça a religião e a Pátria. Cada dia nos
convencemos mais de que a actuação do governo central da República
em relação ao que na Capital Federal se expande sem a menor
coacção, é uma manifestação patente e indiscutível da providência
divina, inspiradora desse meio poderoso e eficaz da salvação do paiz.
Se, pois, no Integralismo temos uma escola de patriotismo são e uma
ideologia muito aproximada da doutrina catholica, prestigial-o será
fazer da nossa parte para que Deus nos ajude, sobretudo, na hora
incerta e perigosa que vivemos. – Manoel, bispo de
Aterrado.§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
***************************
REZENDE, Antônio Paulo. (Des)encantos modernos: histórias da cidade do Recife na década
de XX. Recife: FUNDARPE, 1997. p. 25. †††††††††††††††††††††††††††
SALGADO, Plínio. Opus citatum., p. 55. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
A disposição feminina deveria ser utilizada na construção da nova nação, nos cuidados com o lar não nos espaços públicos. Mas tendo por necessidade a mulher que trabalhar, não deveria esquecer-se das suas virtudes, a respeito disso Salgado lembra: “É imperioso, porém, que ela se lembre de que – acima da profissional – ela é uma criatura de Deus e é mulher”. Ibidem, p. 61. §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
O Episcopado Brasileiro e o Integralismo. Prontuário Funcional Nº 1066-B
157
A AIB utilizava no regimento da Secretaria Feminina termos como
arregimentar****************************
, orientar e controlar. É sabido que características
fascistas estavam presentes no movimento e, principalmente, nos discursos de Plínio Salgado.
Observemos o juramento integralista: ―Juro por Deus e pela minha honra, trabalhar pela
Acção Integralista Brasileira, obedecer sem discutir ao chefe nacional e aos meus superiores
hierarchicos‖††††††††††††††††††††††††††††
. Tanto o homem quanto a mulher deviam obediência as
ordens e respeito à hierarquia. A mulher era considerada diferente do homem, mas não
deveria se ater das funções físicas que a distinguia do sexo oposto: a maternidade. ―Se não
fosse mãe naturalmente teria que ser mãe psicologicamente, familiarmente, socialmente,
intelectualmente e até politicamente, afirma Plínio Salgado‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
‖. O fato de
a mulher possuir instrução, mas sem formação moral e religiosa era uma ameaça tanto a ela
quanto a sociedade.
Devemos ressaltar que o integralismo foi um movimento o qual permitiu ao público
feminino ir às ruas na função de enfermeiras, professoras, auxiliares e visitadoras de bairros
humildes para prestar serviços de filantropia aos necessitados. Elas tiveram a oportunidade de
ser instruídas através da divisão de estudos que proporcionava cursos e conferências sobre
diversos assuntos. As mulheres que ingressavam no movimento eram de origens diversas,
muitas estudantes, casadas e exerciam funções remuneradas fora de casa.
A juventude esteve presente de maneira maciça no movimento e as mulheres eram
peças fundamentais, como nos apresenta Cavalari: ―por isso, o aproveitamento das energias
femininas para a divulgação da doutrina foi utilizado ordenadamente pela AIB‖
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§. As mulheres integralistas atuaram nos espaços públicos e privados
sendo suas contribuições primordiais em diversos momentos que o integralismo convocou as
forças femininas. Foi um momento da história do Brasil no qual as mulheres foram
reconhecidas como sujeitos atuantes na sociedade e que podiam e deviam contribuir nesse
novo modelo social. As ideias de Plínio Salgado foram um reflexo da sociedade de sua época,
segundo o historiador italiano Benedetto Croce ―Todo homem é filho de seu tempo‖. As
ideias da Igreja estavam muito presentes no seu pensamento, a construção da sociedade
integral, o aprimoramento cultural das massas eram ingredientes que iriam compor o cenário
da pátria desejada.
****************************
Arregimentar – alistar, convocar, reunir em regimento, em corporação militar. ††††††††††††††††††††††††††††
Prontuário Funcional Nº 1066-B. grifo nosso. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Ibidem. p. 74 §§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§ CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro, op. cit. p. 56.
158
REFERÊNCIAS
CAULFIELD, S. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas: Unicamp, 2000.
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: ideologia e organização de um partido de
massa no Brasil (1932-1937). Bauru, SP: EDUSC, 1999.
Del Priore, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil
Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
LOPES, Daniel Henrique. As Experiências Femininas na AIB (1932-1938) – Revendo o
passado. Gênero e Representações. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade
Estadual Paulista – UNESP. Faculdade de Filosofia e Ciências. 2007.
MANCILHA, Virgínia Maria Netto. Nas páginas da imprensa feminina: uma análise da
revista Brasil Feminino e da participação feminina no movimento do Sigma (1932-1937).
In:________. GONÇALVES, Leandro Pereira. SIMÕES, Renata Duarte. (Orgs.) Entre tipos
e recortes: histórias da imprensa integralista. Guaíba: Sob Medida, 2011.
RAGO, Margareth. Ser mulher no século XXI ou carta de alforria. In______. VENTURI,
Gustavo. RECAMÁN, Marisol. OLIVEIRA, Suely de. (Orgs.). A mulher brasileira nos
espaços público e privado. 1º edição – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
___________. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (1890-1930). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985.
REZENDE, Antônio Paulo. (Des)encantos modernos: histórias da cidade do Recife na
década de XX. Recife: FUNDARPE, 1997
RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no antigo Regime. São Paulo: Moderna. 1998.
SALGADO, Plínio. A mulher no século XX. Porto: Livraria Tavares Martins, 1947.
SILVA, Giselda Brito. Corpos e Discursos: uma abordagem Histórico-discursiva do corpo
integralista como transgressor da ética e da moral cristã, 2004
SIMÕES, Renata Duarte. A Educação do Corpo no Jornal A Offensiva (1932-1938). Tese
(Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. 2009.
159
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A Emergência da pesquisa da História das Mulheres
e das Relações de Gênero. Revista Brasileira de História, v.27, p. 281-300, 2007.
_______. História das Mulheres . In: CARDOSO, Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo
(orgs.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus,
1997. p. 399-429.
_______. Transgredindo e conservando, mulheres conquistam o espaço público: a
contribuição de Bertha Lutz. Labrys, estudos feministas. Número 1-2, julho/dezembro 2002.
_______. A Pedagogia da conquista do espaço público feminino pelas mulheres e a militância
feminista de Bertha Lutz. Revista Brasileira de Educação, novembro – dezembro, número
015. São Paulo. pp. 97-117.
SIMPÓSIO:
Museu, Memória e Educação
Coordenador:
VIVIANNE RIBEIRO VALENÇA – Mestranda - UFPE
ARLINDO FRANCISCO DA SILVA FILHO – Mestrando - UFPE
HISTÓRIA E ARTES: UM OLHAR TRANSDISCIPLINAR NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
Danielle da Silva Ferreira (UAG∕UFRPE)*****************************
*****************************
Pedagoga. Especialista em História de Pernambuco. Professora Substituta das disciplinas
de História na Prática Pedagógica I e II e Metodologia do Ensino de História I e II, do Curso de Pedagogia, da
Universidade Federal Rural de Pernambuco ∕ Unidade Acadêmica de Garanhuns. E-mail:
daniellesilvaferreira@hotmail.com
160
O objetivo desse trabalho foi discutir de que maneira o uso de imagens no Ensino de História,
num diálogo crítico com Arte, contribui para a aprendizagem significativa de estudantes da
Educação de Jovens e Adultos, a partir da análise de uma experiência realizada na 4ª fase (7ª e
8ª série, ou 8° e 9° ano do ensino regular) de uma escola pública municipal da cidade de
Garanhuns. Essa experiência foi organizada a partir da apresentação de fotografias referentes
a artefatos do período medieval, encontrados em um museu, a fim de possibilitar aos
estudantes remontar esse passado a partir da visualização das imagens. Entendemos que no
diálogo entre História e Arte, nasce um olhar transdisciplinar. A ação, a interação e a troca,
movem o processo de aprendizagem transdisciplinar. Tentamos, nesse sentido, fazer os
estudantes pensar uma aproximação dos conteúdos estudados e a realidade cultural em que
vivem, haja vista existir na cidade um ―castelo medieval contemporâneo‖ que não possui
nenhuma relação histórico-temporal com a cidade, mas que faz parte do cotidiano e do
imaginário local. Percebemos com esse trabalho que a aprendizagem dos educandos da EJA
acontece nas formas de se trabalhar as capacidades argumentativas, ouvir e refletir,
permitindo a sistematização e socialização do conhecimento de forma transdisciplinar.
Palavras-chave: Ensino de História, Ensino de Artes, Educação de Jovens e Adultos.
Entendemos a Educação de Jovens e Adultos como uma modalidade de ensino
destinada a atender a demanda de jovens e adultos que, por alguma razão não completou seus
estudos em idade apropriada.
São muitas as razões que levam esses jovens e adultos a voltarem a freqüentar a
escola. Muitos deles voltam para tentar conseguir uma ascensão social no que diz respeito a
melhores empregos e, consequentemente, status social diferente, ou simplesmente para
encontrar na escola um refúgio diário, onde podem encontrar colegas, conversar, distrair-se e
esquecer um pouco seus problemas cotidianos.
A Educação de Jovens e Adultos, bem como as outras modalidades da educação,
possui especificidades, conteúdos e métodos que o docente precisa conhecer para atuar de
forma significativa. Ao pensar na disciplina de História, muitos educandos a associam ao
campo do saber estático, tendo em vista que muitos foram submetidos a uma história linear,
eurocêntrica, baseada principalmente no determinismo cronológico.
161
Diante de uma perspectiva de Ensino de História já consolidada no imaginário dos
educandos da EJA, o desafio é trazer inovação no ensino, pensando em como atender às
mudanças de abordagem do saber histórico, de maneira que se configurem atitudes
propositivas diante de enfrentamentos sociais. O desafio era mostrar aos educando que estudar
História não é somente estudar o passado e se findar nele mesmo, é também contribuir para
uma análise dos temas ligados ao presente, assim como para refletir criticamente sobre
perspectivas futuras da sociedade.
No processo de construção da história ensinada, professores e alunos,
seus atores diretos, atuam e relacionam-se com uma pluralidade de
história vividas, dispersas no contexto espaço-tempo da escola que,
ao se encontrarem, adquirem uma infinidade de significados de
caráter pessoal/individual e social/coletivo. Tais histórias estão
presentes nas aprendizagens realizadas na escola, uma vez que os
seus significados são constituidores das relações que professores e
alunos constroem, no tempo vivido, com os diferentes lugares, grupos
e instituições aos quais estão diretamente ligados. (LIMA, 2009, p
01)
Numa perspectiva de uma ―Educação que visa a educação como libertação‖
(ARROYO, 2007, p 51), como propunha Paulo Freire,.Lessad e Tardif (2008, p 49),
indicando que ―ensinar é agir na classe e na escola em função da aprendizagem e a
socialização dos educandos, atuando sobre sua capacidade de aprender‖, ensinar exige uma
complexidade de saberes, presentes nas práticas cotidianas desses educandos, que se
constituem no convívio de suas relações familiares, na escola, no trabalho. Consideramos
essas práticas cotidianas como um dos caminhos para uma aprendizagem significativa.
Buscando aproximar o Ensino de História da realidade dos educandos e promover o
diálogo crítico com a disciplina de Arte, entendemos que a concepção de História faz parte de
um território muito mais abrangente que o englobado pelas datas, heróis e grandes marcos
governamentais, como os próprios educandos da Educação de Jovens e Adultos a definem. A
História faz parte de uma busca humanística, uma escolha, que envolve sujeitos múltiplos. O
objeto de estudo é o sujeito, indivíduo que se situa ao seu tempo e não aprende por
conhecimentos partidos, mas pelas relações comuns que eles estabelecem entre si.
162
No diálogo de História e Arte, nasce um olhar transdisciplinar, pois, aprendemos a
pensar junto com o outro, num grupo, aprendemos a ler, construindo hipóteses na interação
nas relações do conhecimento, criando elos e possibilidades de descobertas com o outro.
Aprendemos a refletir, estruturando as nossas histórias, na interação e na troca com o grupo.
A ação, a interação e a troca, movem o processo de aprendizagem transdisciplinar.
Portanto, nas descobertas de si e do outro, a transdisciplinaridade entra como um
convite para perceber a unidade plural da Educação. Assim, propormos um ensino
transdisciplinar em História e Arte, em que os educandos passam a serem protagonistas,
conscientes e criticamente comprometidos em transformar e serem transformados por suas
descobertas. Pois, a transdisciplinaridade vai além de disciplinas que colaboram entre si, mas
é a união dos conhecimentos comuns a elas, criando um modo de pensar organizador que
pode percorrer os caminhos de diálogos entre as disciplinas. Nesta perspectiva,
Transdisciplinaridade é uma nova atitude, uma maneira de ser diante
do saber. Etimologicamente, o sufixo trans significa aquilo que está
ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes
disciplinas e além de toda disciplina, remetendo à idéia de
transcendência. Transdisciplinaridade é a assimilação de uma
cultura, é uma Arte no sentido da capacidade de articular. Por isso
após revisitar, com grande respeito, rigor e inclusão: o
conhecimento, a noção de valor, o contexto, a estrutura, a pesquisa, a
competência, a oferta, o método e o ser humano, traz sua própria
contribuição integradora e planetarizante. (BARBOSA, 2007. p. 28)
Nesses intercruzamentos da transdisciplinaridade, compreendemos que muito mais que
desenvolver a percepção estética e a sensibilidade artística, a Arte e seu ensino podem de fato
contribuir para uma visão de identidade pessoal e/ou coletiva. Nas atuais concepções sobre o
ensino Artes encontramos a Abordagem Triangular desenvolvida pela arte/educadora Ana
Mae Barbosa que consiste em uma tríade sem ordem específica, mas que contemple a leitura
da imagem, fazer artístico e contextualização. Essa abordagem não se apresenta como uma
receita ou metodologia fechada para o ensino de Artes, pelo contrário, possibilita ao educando
experimentar Arte, se envolver, questionar e tecer um olhar acolhedor para o outro.
A Abordagem Triangular do Ensino de Artes postula que a
construção do conhecimento em arte acontece quando há a
163
interseção da experimentação, com a codificação e com a
informação. Considera como sendo seu objetivo de conhecimento, a
pesquisa e a compreensão das questões que envolvem o modo de
inter-relacionamento entre arte e público [...]. (BARBOSA, 2007, p.
45)
A compreensão crítica da Arte e da cultura, leva-nos a reconhecer o sentido de criar e
reforçar as relações que possuímos como sujeitos e como identidade coletiva. O leitor ou
participante da obra de Arte ou objeto artístico não é mais um mero contemplador, mas passa
a se envolver e relacionar suas singularidades e sua bagagem cultural para compreender e
problematizar Arte.
Desse modo, é lançado para o leitor ou participante, um convite a se envolver
possibilitando o diálogo dos sentidos – a visão, a escuta, o olfato, o paladar, e o tato - como
portas de entrada para uma compreensão mais significativa das questões sociais democráticas,
nas quais todos apresentam olhares diferentes. Essa é uma Educação sedutora que envolve o
educando ao seu contexto fazendo-o re-significar sua aprendizagem, permitindo-o ir além do
olhar, construindo pontes entre o eu e o outro, eu e o mundo.
Considerando os estudos apresentados em História e Arte, compreendemos a
possibilidade do trabalho com imagens de duas expressões diferentes. A proposta consiste em
discutir e analisar o caráter histórico e artístico que duas expressões representam a primeira a
figura do castelo no Instituto Ricardo Brennand (IRB) localizado em Recife, a segunda do
Castelo de João Capão, localizado na cidade de Garanhuns.
O Instituto Ricardo Brennand apresenta-se como um espaço museal, construído para
exposição de um acervo de artefatos do período medieval que fazem parte da coleção
particular do próprio Ricardo Brennand, bem como de obras de artes e outras peças referentes
à história do Brasil colonial, no período da permanência dos holandeses no
Nordeste†††††††††††††††††††††††††††††
.
O Castelo de João Capão foi construído por um eletricista conhecido como ―João
Capão‖, daí vem à denominação: Castelo de João Capão. O castelo foi construído tendo em
vista a realização de um antigo sonho de seu proprietário, de morar num suntuoso e
imponente castelo. Nem tão suntuoso nem tão imponente, o castelo foi construído há quase 30
†††††††††††††††††††††††††††††
Fonte: http://www.institutoricardobrennand.org.br/index2 .html
164
anos, e hoje o espaço é explorado turisticamente, sendo entendido como representação
peculiar do município.
Essa proposta pensa em quebrar os paradigmas de um ensino que reproduza o
processo histórico e artístico sob a ótica da causa/conseqüência, que apenas contempla a
figura da elite, pensamos em estabelecer um paralelo entre dois castelos contemporâneos: um,
uma cópia de um castelo medieval, reproduzido nas imagens do castelo do IRB (no Recife) e
outro como uma concretização de um desejo de um de um visionário, que apenas concretizou
um aspiração pessoal.
Nesse sentido, para possibilitar aos educandos pensarem e estabelecerem aproximação
dos conteúdos abordados nesta temática em sala de aula e o significado atribuído à construção
de um ―castelo‖ no nosso município, situado no agreste meridional pernambucano, propomos
a visualização dos dois espaços através de fotografias, de maneira que os educandos possam
tecer o seu próprio olhar. A partir das fotografias pudemos problematizar do contexto social e
histórico em que os castelos estão inseridos questionando: O que era possível destacar na
visualização das fotografias?; Por que destacaram? O que as fotos despertaram nos
educandos?; O que mais chamou a atenção dos educandos?; Quais os materiais utilizados em
cada castelo?; Onde estão inseridos?; Em que contexto foram criados? Quais os motivos para
a preservação de uma memória tão distante e sem relação direta com o que se vive no
município? Como pensar os sentidos das permanências históricas através das memórias
individuais e coletivas? Porque guardamos alguns registros (escritos, imagens, artefatos) e
esquecemos outros? O que nos faz construir monumentos com a pretensão de guardar,
cristalizar e preservar memórias? Quais imagens construímos da época conhecida como Idade
Média? Como foram construídas? Entre outras problematizações pertinentes ao momento e ao
desenvolvimento da atividade.
As fotografias não têm a pretensão de serem utilizadas como mera ilustração, o
trabalho com as fotografias busca estabelecer uma relação entre o elemento que foi
fotografado e o significado que os educandos atribuem ao mesmo.
Nesse sentido, a representação do real é em si mesma uma
transformação do próprio real. [...] Portanto, a fotografia não é apenas
uma ilustração, é um documento direcionado. Cada fotografia tem um
significado e gera significantes, cada pessoa que olha uma fotografia
ou um desenho, passa a lê-los com um determinado olhar e busca
nestas representações uma mensagem. (ZAMBONI, 1998, p 03)
165
Le Goff (1990) diz que podemos entender historicamente as representações dos
castelos de duas maneiras, como documento e o monumento. Segundo o autor ―o monumento
é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação [...] tem como característica
ligar-se ao poder de perpetuação voluntária ou involuntária‖ (LE GOFF, 1990, p 462). O
monumento seria um documento caracterizado como passível de visualização tal como ele é.
Documento: testemunho escrito; Monumento: testemunho visual.
A concepção do documento/monumento é, pois, independente da
revolução documental, entre os seus objetivos está o de evitar que
esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o
historiador do seu dever principal: a crítica do documento – qualquer
que ele seja – enquanto monumento. O documento não é qualquer
coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o
fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a
análise do documento enquanto monumento permite à memória
coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é,
com pleno conhecimento de causa. (BRASIL, p 470, 2006. grifo
nosso)
De acordo com essa perspectiva de monumento, podemos lançar a questão: que
relação entre o Castelo de João Capão e o passado da cidade pode ser estabelecida? A
problematização do presente dá margem para que o educando possa confrontar ideias,
perceber atividades, examinar argumentos, de forma que estes venham auxiliar o
entendimento e a reelaboração de pontos de vista em relação ao que foi vivido e ao que se
mostra atual, podendo auxiliar na formação de um cidadão político-social atuante e
interventor.
Ao utilizar as fotografias pensamos em apresentar para os educandos variadas fontes
históricas para que seja possível exercitar também o domínio de procedimentos de pesquisa
escolar. A intenção é promover a aprendizagem a partir do olhar de cada educando e de sua
percepção crítica, traz a compreensão prática do ensino transdisciplinar de diálogos entre
História e Arte. Essas troca de experiências, conhecimentos e saberes vem contribuir para que
166
o educando crie elos com a reflexão acerca da visão de si mesmo perante a sociedade e da sua
perspectiva diante das diferentes relações sociais.
A partir do entendimento e da leitura que esses educandos possam constituir através
das imagens, certamente ele poderá observar cada particularidade do objeto em questão. O
docente, obviamente deve tomar cuidado para que ele não venha a ter uma interpretação
equivocada.
O educador pode, junto a seus alunos, desenvolver a idéia de que as
imagens também são fontes históricas, desde as representações
visuais constantes nos manuais didáticos (as tradicionais pinturas
históricas) até os ícones que abundam no cotidiano de todas as
pessoas de hoje em dia. [...] O mais importante é fazer com que os
alunos percebam a importância de refletir o que vêem – e a partir
disto, poder criar um entendimento sobre a história e suas possíveis
reinterpretações. Muitos dos diversos estereótipos sobre o passado,
presentes no ensino, na mídia e na sociedade de consumo são
proliferados justamente por imagens... (LANGER, 2009, p 02)
A utilização de imagens abre margem para que o educando possa refletir e repensar as
imagens que ele visualiza cotidianamente, entender a sua realidade através das representações
que se apresentam. ―Hoje podemos perceber que a imagem, assim como outros textos, não
reproduz a realidade, mas a constrói a partir de uma linguagem própria‖ (BRUCE; FALCÃO;
DIDER, 2006, p 207). Segundo Bittencourt (2004, p. 193) a ―História está em todos os
lugares e não é imutável como ainda é pensado, pelo contrário, é dinâmica e que mesmo em
tempo remotos a História se faz presente adquirindo novos contextos‖. Essas considerações
nos remetem às construções e reconstruções sociais remanescentes ao longo do tempo que
permanecem como prática culturalmente estabelecida.
Ao pensar esse trabalho evidenciamos a potencialidade pedagógica do uso de imagens
na aprendizagem histórica, uma vez que motiva, enriquece e permite aos educandos múltiplas
formas de leituras. Ler imagens como documentos e transformá-las em recursos didáticos nas
aulas de história são práticas que buscam o exercício de olhar, observar, descrever, ouvir,
levantar hipóteses, argumentar, sistematizar, socializar, a fim de que os educandos
167
estabeleçam relações entre o que aprendem dentro da escola e o que vivenciam fora dela.
(Brasil, 2006)
A importância de discutir as temáticas envolvidas no trabalho permeia o debate nas
escolas principalmente para discutir o significado dos monumentos, museus, espaços de
preservação da memória social. É importante conhecer as realidades históricas de cada
elemento de comparação, a realidade histórica da idade média através dos dois castelos
contemporâneos com objetivos diferentes. Neste sentido, a partir das experiências e vivências
transdisciplinares relacionando à constituição da memória, um educando apresenta suas
considerações:
Guardamos os registros que nos parecem mais importantes, às vezes
o que é importante pra mim, pro meu colega já não é. Assim o que eu
‗guardo‘ complementa o que ele ‗guardou‘. Eu tenho a memória de
uma coisa, ele de outra. (Aluno da 4ª Fase)
Os educandos da EJA possuem atividades em sua vida particular intensas, ligadas
principalmente ao trabalho. De certo, todos possuem idéias e concepções de mundo próprias,
que constituem parte da sua bagagem cultural. Ao educador cabe possibilitar ao educando
caminhos para estimular o diálogo de forma a promover o crescimento, a formulação e a
reformulação de novos pensamentos.
São universos de aprendizagens marcados pelos desafios da diversidade e
complexidade do mundo contemporâneo, nos quais convivem o saber e a prática e onde,
cotidianamente o fazer educativo ocorre. Como nos diz Franco e Libâneo (2007, p. 79) ―O
objetivo do pedagógico se configura na relação entre elementos da prática educativa: o sujeito
que se educa, o educador, o saber e os contextos em que ocorre a educação‖.
É neste sentido também que a dialogicidade verdadeira, em que os
sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo, no
respeito a ela, é a forma de estar sendo coerentemente exigida por
seres que, inacabados, assumindo-se como tais, se tornam
radicalmente éticos. (FREIRE, 1997, p. 65)
Desse modo, ensinar e aprender transdisciplinarmente História e Artes nos possibilita
pensar o mundo em diferentes tempos e lugares, compreendendo, discutindo e construindo um
168
conjunto de práticas culturais e pedagógicas que permitam ao educando construir seus
próprios significados. Promover a compreensão das relações entre o saber e o outro numa
reflexão com as experiências vividas por cada um, individual e coletivamente era o nosso
intuito.
Aliar os conhecimentos comuns a estas disciplinas cria possibilidades para sentir e
viver o diálogo das culturas como prática social e natural à estas disciplinas. Essa inquietação
para entender e criar caminhos para transdisciplinaridade nasce da vontade de dar cor e forma
a Educação que acreditamos e queremos viver. Uma Educação que acolhe a diferença, pois
possibilita a postura crítica do sujeito diante do outro, de sua condição enquanto sujeito, a
socialização e o respeito às diferenças através do entendimento dos conhecimentos na prática
coletiva.
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. Ofício de Mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis: Vozes, 2007.
BARBOSA, Ana Amália Tavares Bastos. O ensino de Artes e de Inglês: uma experiência
interdisciplinar. São Paulo: Cortez, 2007.
BARBOSA, Ana Mae. Inquietações e mudanças no ensino de arte. São Paulo: Cortez,
2002.
BLOCH, Marc. A História, os homens e o tempo. In:__Apologia da História ou Ofício do
Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001, p 51-68.
BRASIL. Proposta Curricular da Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC, 2006.
BITTENCOURT, Circe M. Fernandes. História nas atuais propostas curriculares. In:___.
Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. Cap. 2-3, p. 164-96.
(Coleção docência em formação. Série Ensino Fundamental).
BRUCE, Fabiana, DIDIER, Maria Thereza, FALCÃO. História(s) e Ensino de História.
Caderno de Estudos Sociais da Fundação Joaquim Nabuco. Recife, vol. 22, n. 2, jul./dez.,
2006, p. 199-207.
COSTA, Rosa. Edgar Morin – Contemporâneo complexo: mestre do saber In Revista
Construir Notícias nº 53. Ano 9 – Julho/ Agosto de 2010: Recife, 2010.
FRANCO, Maria Amélia S.; LIBÂNEO, José Carlos; PIMENTA, Selma G. Elementos para
a formulação de diretrizes curriculares para cursos de Pedagogia. Cad. Pesq. s/l. v.37 n.
169
130 p. 63-97, jan/abr 2007 disponível em: www.scielo.br/pdf/cp/v37n130 /05.pdf. Acesso em:
20 out. 2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São
Paulo, Brasil: Paz e Terra (Coleção Leitura), 1997.
GOFF, Jacques Le. História e Memória. UNICAMP: Campinas, 1990.
LIMA, M. M. A. O Ensino de História Local: Potencialidades e Desafios à Prática
Pedagógica. In: SILVA, Maria Regina Batista e; AMARAL, Maria das Vitórias Negreiros do.
Arte e Mitologia na Obra de Francisco Brenannd. Recife: AAACFB, 2009. CD-ROM.
LANGUER, Johnni. O ensino de História Medieval pelos quadrinhos. História, imagem e
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.com.br/materia.cfm?tb=historiadores&id=43. Acesso em: 23 jul 2010.
LESSARD, Claude; TARDIF, Maurice. O trabalho docente: Elementos para uma teoria da
docência como profissão de interações humanas. Trad. Petrópolis: Vozes, 2008.
ZAMBONI, Ernesta. Representações e linguagens no ensino de história. In.: Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 18, n. 36, 1998. Disponível em: http://www.scielo. br
/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0102- 018819980 00200005&lng=en&nrm=isso.
Acesso em: 03 ago. 2010.
SÃO LOURENÇO DA MATA:
DA DESVALORIZAÇÃO DO LEGADO PATRIMONIAL AO
ENFRAQUECIMENTO DA MEMÓRIA HISTÓRICO/SOCIAL DO MUNICÍPIO.
Ednaldo Severino da Silva Junior*
INTRODUÇÃO
170
Este artigo terá por objetivo discursar acerca da falta de valorização do rico patrimônio
histórico/cultural e ambiental da cidade de São Lourenço da Mata, além de tratar das
conseqüências trazidas por esta desvalorização a população que, atualmente, quase
desconhece a sua própria história, seja pelos poucos registros escritos, ou pela dificuldade em
localizá-los. No que concerne à problemática tratada, três pontos nortearão a discussão. O
primeiro faz referência a identidade e como ela está ligada ao sentimento de pertencimento
de um povo; em um segundo momento, estuda-se a memória e o papel desta enquanto
fomentadora da construção de uma herança cultural; e, por fim, o último ponto de análise faz
referência à educação patrimonial/ambiental, atribuindo a este a função de perpetuar o
legado histórico/cultural. No que diz respeito à metodologia aplicada, pretende-se, não só,
criar um painel bibliográfico, como, também, analisar gráficos obtidos em pesquisa que
julgou o entendimento dos alunos do ensino fundamental I e II, deste município, com relação
às temáticas do turismo, entre elas, os conceitos de patrimônio e meio ambiente. Em vista
disso, entender a problemática, que São Lourenço possui com relação à desvalorização do
patrimônio e do enfraquecimento da memória, representa, não só, a busca de possibilidades
para a preservação, como também, introduz um valor ao resgate da herança cultural do povo.
Palavras-chaves: São Lourenço da Mata, Identidade, memória, educação
patrimonial/ambiental.
MATERIAL E MÉTODO
No que concerne a metodologia aplicada, entra-se no mérito do estudo quali-
quantitavo que tem por objetivo a criação de um painel bibliográfico ratificado pela análise de
gráficos que corroboram com as teorias aqui discutidas.
A bibliografia, em estudo, vem representada por autores de grande impacto nas
temáticas que tratam a acerca de identidade, memória e cultura, como Manuel Castells,
Foucault, Mario Chagas entre outros. Este embasamento teórico, ainda, buscará auxilio nas
análises de artigos acadêmicos, tendo em vista o papel crítico e, principalmente, específico
destes.
Por seguinte, faz-se alusão aos gráficos, aqui postos em discussão. Estes foram
obtidos, em pesquisa, com alunos do ensino fundamental I e II das escolas municipais de São
Lourenço e serviu de base para a criação do Projeto Educa Turismo, elaborado por
estudantes do Instituto Federal de Pernambuco, grupo do qual fiz parte. A idéia base deste
171
trabalho é, através do Turismo Pedagógico, aliar cultura e educação para, então, criar nas
crianças, deste município, o entendimento acerca da atividade do Turismo, da Educação
Patrimonial e da Ambiental, temáticas que são partes inerentes deste artigo.
Percebe-se, enfim, que este estudo buscará, através da crítica, mensurar as
problemáticas voltadas para o campo da cultura e conseqüentemente do patrimônio, pois estes
são fatores essenciais para a estruturação e representação de um determinado grupo, haja vista
a sua interação com o meio social.
172
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Marcada por intensas guerrilhas, como a luta contra os índios tupinambás na época da
colonização, ou ainda a guerra dos maribondos, revolta popular desencadeada no período em
que o Brasil era colônia de Portugal, São Lourenço da Mata, cidade posta em estudo, teve,
ainda, bastante representação no ciclo do açúcar, onde riquíssimos senhores de engenhos
fizeram, desta terra, um pólo econômico de referência ¹. (SENA; SILVA; SILVA, JUNIOR,
2010)
Atualmente, recebe destaque no contexto nacional, seja por ostentar o título de Capital
Nacional do Pau-Brasil - possui o maior número deste tipo de espécie em preservação - ou por
sediar a arena de realização dos jogos da copa do mundo de 2014 ². (op. cit.)
No que diz respeito à copa esta influenciará diretamente os setores político,
econômico, infra-estrutural, e com mais destaque para as áreas sociais e culturais,
repercutindo nas mudanças dos hábitos de vida e de costumes da população que, influenciada
pelo poder do novo, sentirá a necessidade de reproduzir e fixar o diferente que, em certos
casos, vem a ser considerado o melhor. Nesta perspectiva, Foucault ³ afirma que,
este poder não está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os
lugares. E ‗o‘ poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de auto-reprodutor, é
apenas efeito de conjuntos, esboçado a partir de todas essas modalidades, encadeamento que
se apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las (FOUCAULT, 1979).
Frente ao que ora foi exposto, entra-se no estudo da problemática, pois com o advento
do novo e da inserção deste no meio social existe um grande risco na perda da identidade e
conseqüentemente do patrimônio de São Lourenço da Mata, cidade rica em história e cultura
que remontam as origens do Brasil, merecendo, com isso, destaque por parte, principalmente,
dos órgãos responsáveis pela preservação e conservação dos bens patrimoniais.
¹ SENA, Barbara; SILVA, Joanna; SILVA JUNIOR, Ednaldo. Projeto Educa Turismo: Um Guia Educacional para o Turismo de São
Lourenço da Mata. Recife 2010. 108 f. (Trabalho de Conclusão de Curso – Gestão de Turismo) Instituto Federal de Pernambuco - IFPE.
Recife. 2010
² SENA, Barbara; SILVA, Joanna; SILVA JUNIOR, Ednaldo. Op cit.
³ FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra Editora. 1979. 20ª Edição.
Inicialmente, faz-se necessário o entendimento acerca do que vem a ser patrimônio,
para tanto, entra-se no conceito previsto na constituição Brasileira de 1988 no artigo 216 que
173
o designa como os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão
II – os modos de criar, fazer e viver
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas 4; (OLIVEIRA, 2010)
Percebe-se, após a análise do significado do que vem a ser patrimônio, o quanto
necessário se faz a preservação destes, pois serão eles os responsáveis pela representação de
uma determinada cultura ou sociedade frente aos processos de modernidade.
Frente a isso, entra-se no primeiro ponto ao qual se dedica este estudo, a
descaracterização e a desapropriação identitária do município frente a seu rico legado
patrimonial, representado por usinas, engenhos, igrejas (a segunda mais antiga do Brasil), que
datam do período da colonização, ou das construções que representam os processos de
modernização, como a barragem, suas reservas ecológicas ou a ponte-viaduto.
Tratar do item, mencionado, é, primeiramente, entender a necessidade de reforçar a
identidade dessa população, pois, conforme afirma Zaretsky 5, a identidade é um processo que
―deve ser situada historicamente‖, objetivando a construção ou representação do ser como
formador de conhecimento, conhecimentos esses que culminarão na representação de uma
determinada cultura (ZARETSKY apud CASTELLS, 2001).
Portanto, pode-se inferir que a fortificação da identidade, frente ao conceito trabalhado
por Zaretsky, está diretamente ligada ao ato de preservar o patrimônio, tangível ou intangível,
pois o os bens materiais ou os de tradição oral são formas de representação de uma
determinada época, ou seja, são reproduções histórias, logo situam o ser em uma determinada
época. E quanto mais à tradição perde terreno, como é o caso de São Lourenço, que,
atualmente, presencia a perda do seu legado para dar margem à modernidade, mais os
indivíduos se verão forçados a negociar por novos estilos de vida.
Para reforçar a discussão estabelecida acima, pode-se mencionar um dos gráficos
obtido através de pesquisas com alunos do município de São Lourenço da Mata.
4 OLIVEIRA, Tatiana. Memória e Esquecimento na formação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Rio de Janeiro. 2010.
5 ZARETSKY apud CASTELLS, Manuel, O poder da Identidade. São Paulo. Paz e Terra Editora. 2001. 3ª Edição.
174
Estes foram indagados acerca de seus conhecimentos da origem histórica da cidade,
como resultado, tem-se uma margem de 65% de crianças, entre as idades de 8 a 17 anos,
afirmando não possuir informações sobre esta temática (ver gráfico 1).
Frente a isso, pode-se concluir que a perca da identidade é um processo notório e
contínuo nesta cidade e que os bens culturais e/ou patrimoniais devem, essencialmente, passar
pelo meio populacional, haja vista a necessidade de se preservar o patrimônio, que é onde se
encontra a forma mais verdadeira de homenagem a etnias que habitaram as cidades, além de
ser uma forma de expressar nosso amor pelos bens culturais 6
(RIBEIRO, 2000 apud REIS
s.d.).
Outro ramo de estudo a qual a identidade e o patrimônio estão ligados é a memória,
entendida como conjunto de informações que dialogam com um determinado momento e que
por seu valor merecem ser lembradas. Portanto, relacionar memória com o patrimônio é, de
certa forma, ―preservar, cuidar e respeitar‖ os bens existentes 7 (MAIA, 2003).
Vale ressaltar que
a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si 8 (POLLAK, 1992 apud OLIVEIRA, 2010 ).
Em outras palavras, a memória é um construtor da herança cultural, pois será ela quem
criará o sentimento de identificação de continuidade e acima de tudo de pertencimento de uma
população com o meio social inserido.
Frente a isso, confrontam-se mais dois gráficos da pesquisa, veja gráfico 2 e 3, ambos
fazem referência ao conhecimento da existência de pontos turísticos na cidade, sendo o
primeiro em âmbito geral e o segundo dando nomenclatura a estes.
É perceptível que ―a celebração do passado (recente ou remoto), o culto a saudade, aos
acervos valiosos e gloriosos 9‖ (CHAGAS, s.d.) já não faz parte do cotidiano da cidade
estudada, resultando, com isso, no desconhecimento, ou melhor, a não identificação dos bens
como pontos passíveis de representação de uma história.
6 RIBEIRO apud REIS, Fabio. Patrimônio Cultural: Revitalização e utilização. 2003
7 MAIA, Felícia. Direito a memória: O patrimônio Histórico, Artístico e Cultural e o Poder Econômico. Belém. 2003
8 POLLAK apud OLIVEIRA, Tatiana. Memória e Esquecimento na formação do Patrimônio Cultural Brasileiro. Rio de Janeiro. 2010
175
A informação referenciada acima é de extrema preocupação, pois tratar do mérito de
identificação é se referir a uma vivência, que tem início na família. Logo, este processo de
desapropriação cultural é algo que já se encontra intrínseco a essa comunidade, sendo
repassado de geração a geração, o que poderá ocasionar, futuramente, uma estagnação cultural
e um choque de identidade, pois em um determinado momento a cidade se verá perdida em
um processo de esquecimento quase que irreversível.
Neste contexto, percebe-se o quão necessário se faz a pesquisa e a implementação de
projetos que visem o resgate da cultura deste povo que, por seu valor histórico-social, merece
ser lembrada, não só pelos próprios moradores, como também pela nação brasileira, haja
vista, uma das igrejas mais antigas do Brasil está lotada em São Lourenço da Mata.
Uma possível solução para as problemáticas, aqui postas em análise, é a prática da
Educação Patrimonial e Ambiental, que busca, através do fortalecimento da cultura, preservar
e re-educar a população tornando-a responsável pela tarefa de salvaguardar os bens culturais,
além de possibilitar a ―equânime repartição dos ônus sociais entre a coletividade e o
proprietário do bem tombado 10
‖ (MAIA, 2003).
Lembrando, ainda, que trabalhar os conceitos previstos na educação patrimonial e
ambiental é garantir a organização do patrimônio histórico e artístico, além de traçar a feição
da nação, suas identidades e memórias sociais 11
(OLIVEIRA, 2010).
Por fim, será através do respeito e da identificação do meio social para com os bens
culturais que se reconhecerá a vocação e se descobrirá os valores mais autênticos de uma
sociedade 12
(op. cite), sociedade essa que irá assegurar a proteção dos testemunhos da sua
cultura, marca de uma identidade que se transfigura na representação da memória de um
determinado grupo social 13
. (DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO,
ARTÍSTICO E CULTURAL DO ESTADO DO PARÁ, s.d., apud MAIA, 2003).
9 CHAGAS, Mário. Memória e Poder: contribuição para a teoria e a prática nos ecomuseus. Rio de Janeiro.
10 MAIA, Felícia. Op. cit.
11 OLIVEIRA, Tatiana. Op. cit.
12 OLIVEIRA, Tatiana. Op. cit.
13 DEPARTAMENTO DE PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARTÍSTICO E CULTURAL DO ESTADO DO PARÁ apud MAIA, Felícia.
Op. cit.
176
Gráfico 1
Grau de Conhecimento da História da Cidade
Fonte: Projeto Educa Turismo, 2010.
Gráfico 2
Existência de Pontos Turísticos
Fonte: Projeto Educa Turismo, 2010.
Gráfico 3
Existência de Pontos Turísticos
Fonte: Projeto Educa Turismo, 2010.
12%
88%
SIM
NÃO
30%
14%
18%
13%
5%
15%
5%
Igreja Matriz
Engenhos
Ponte Viaduto
Barragem do Tapacurá
Reserva Ecológica do Tapacurá
Conjunto Pau-Brasil
Não conhece
177
AGRADECIMENTOS
Ao fim deste trabalho não poderia deixar de mencionar meus sinceros agradecimentos
a todos que se fizeram presentes e, de certa forma, auxiliaram na concretização desta análise.
Pessoas estas que me mostraram que tudo é possível quando se tem um objetivo determinado.
Por isso direciono minha gratificação para:
Deus; sei que este ser onipresente, ou da fé que neste tenho
provavelmente não teria tido forças para a concretização do sonho que
já trago comigo desde minha graduação.
a minha querida Mãe, Nancilea Macedo, pois devo ao auxilio dela tudo
que hoje sou e o que ainda pretendo ser. A memória de meu pai,
Ednaldo Silva, pois, se aqui estivesse, esse passo seria comemorado
com bastante alegria
a Professora Mestra, Iraneide Pereira da Silva, pessoa na qual estive
ligado em meus estudos acadêmicos e que me auxiliou nos primeiros
passos quanto à criação deste artigo.
a Diego Philipe, que me instigou e confiou no meu potencial quando
cheguei a acreditar que não finalizaria esta análise.
a Barbara Galvão e Joanna Pessoa, amigas que, em um primeiro,
momento estiveram bastante ligadas a este estudo , pois foi da
realização do nosso Trabalho de Conclusão de Curso que se originou
este artigo.
Enfim, agradeço a todos e em especial, Carla Caroline, Elaine Barreto,
Neuza Maria, Kassandra Sá e Wandeilson Neves.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E WEBGRAFIA
178
CASTELLS, Manuel. Tradução: GERHARDT, K. O poder da Identidade. São Paulo: Paz e
Terra Editora. 2001. 3ª Edição.
CHAGAS, Mário. Memória e Poder: contribuição para a teoria e a prática nos
ecomuseus. Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.quarteirao.com.br/pdf/mchagas.pdf>.
Acesso em: 06 abril de 2012.
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2010.
HISTÓRIA NOS TRILHOS: ESTAÇÃO DE GARANHUNS
Fabiana de Souza Santos*
Orientadora: Profa Ms. Lydiane Bastista Vasconcelos**
Introdução
179
Com o desenvolvimento dos meios de transportes ferroviários na segunda
metade do século XIX, as estradas de ferro ganham um destaque no crescimento
econômico e social das cidades.
O trem trouxe mudanças em todos os aspectos daquela sociedade e são
justamente estes reflexos que busco identificar nos periódicos. Provavelmente o
comércio da cidade foi inundado por grande quantidade de utensílios, futilidades e
outros diversos produtos a preços baixos, se comparados aos anteriormente
praticados, além de radicais e sutis mudanças no comportamento das pessoas.
Após ferrovia vieram instalações de grandes investidores.
O objetivo deste artigo é investigar o modo como a ferrovia de Garanhuns é
explorado pela historiografia de nossa cidade, trazendo ao conhecimento de
nossa sociedade as marcas deixadas por ela, antes e após sua chegada à
cidade. A estrada de ferro trouxe crescimento econômico para a cidade, com a
ampliação do tipo de casas comerciais que atuavam ou vieram atuar na cidade.
Palavras-chaves: estação, ferrovia, Garanhuns, memória, patrimônio.
Garanhuns
O município de Garanhuns esta situado na região Agreste Pernambuco,
sendo 235 km de distancia da capital, Recife. De acordo com os dados levantados
pelo IBGE no censo 2000 Garanhuns possui 129.392 habitantes, possuindo uma
área territorial de 472,46 km2. A cidade tem um centro comercial diversificado no
Agreste Meridional.
A história de Garanhuns teve inicio na primeira metade do século XVII, sendo
tendo como fundo às guerrilhas dos escravos fugidos para o Quilombo dos
Palmares, dando inicio
ao surgimento de fazendas e sítios. Em 1700 foi instalada a Capitania do Ararobá e
a Freguesia de Santo Antônio do Ararobá, sendo a sede o território da fazenda do
Garcia, depois Sítio Tapera, sede da capitania - e hoje cidade de Garanhuns -, que
foi adquirida através de compra pelo Tenente-coronel Manoel Ferreira de Azevedo,
esposo da senhora Simoa Gomes, neta do sertanista Domingos Jorge Velho, que
derrotou Zumbi na guerra dos Palmares.
180
Em 1756, já viúva, Simoa Gomes realizou a doação, através de escritura
pública, de uma quadra das terras desmembrada do Sítio do Garcia, em benefício
da Confraria das Almas, existente na matriz da Freguesia de Santo Antônio de
Garanhuns, então Ararobá. Por volta de 1762, o povoado de Ararobá passou a se
chamar "Povoação de Santo Antônio de Garanhuns", onde passou a categoria de
Município, por Carta Régia, de 10 de março de 1811, instalado em 13 de dezembro
de 1813, passando então a se chamar Vila de Santo Antônio de Garanhuns.
Em 1878, em visita a Vila de Garanhuns, o deputado Provincial Silvino Guilherme de
Barros - o Barão de Nazaré -, ficou deslumbrado com as potencialidades da Vila, que ao
retornar a cidade do Recife apresentou na Assembleia Provincial, um Projeto de Lei, elevando
a Vila à categoria de cidade. Em 4 de fevereiro de 1879 foi sancionada a Lei nº 1309,
elevando a Vila de Garanhuns à categoria de cidade.
A partir de então, a recente cidade foi crescendo no ramo da agropecuária, com as
culturas de hortaliças e a pecuária leiteira e de corte. No comércio, segmentos que foram
fortalecidos com a inauguração da Estação Ferroviária, em 28 de setembro de 1887.
O primeiro governo autônomo de Garanhuns foi se instalar em 1892, tendo sido eleito
como primeiro prefeito do Município, o Major Antônio da Silva Souto. O século XX foi
marcado por períodos de profundas crises e conflitos, como em 1917, ano da histórica do
conflito trágico da "Hecatombe de Garanhuns"; além disso, a cidade viveu os tempos em que
a democracia foi corrompida pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. No entanto, o século
também foi marcado por avanços significativos, sobretudo na educação, na política, na
produção agropecuária, no comércio, no turismo, na prestação de serviços.
A memoria e o trem em Garanhuns
A memória ferroviária é fixada em minha imaginação na minha infância, onde
eu sentava na Praça Guadalajara e fica imaginado o trem que minha vó materna
tinha viajado em sua juventude ou as divertidas aventuras de meu tio materno entre
os vagões do trem. As lembranças das pessoas mais velhas despertaram minha
curiosidade na busca de narrar experiências tendo pano de fundo o trem na cidade
de Garanhuns.
181
Nas primeiras décadas do século XX o trem já havia se tornado o mais
importante meio de transporte de carga e de passageiros em Pernambuco,
ocasionando profundas alterações nas relações sociais, produtivas e comerciais no
estado, aproximando regiões e ampliando mercados. As linhas férreas e, mais
especificamente, as estações ferroviárias proporcionaram o surgimento e o
desenvolvimento de cidades e de lugarejos, alterando a paisagem da região.
A estação de Garanhuns foi inaugurada em 1887 como ponta da linha que
vinha do Recife. Mais tarde foi transformada em ramal, com a abertura da E. F. Sul
de Pernambuco, a partir de Paquevira. O prédio da estação preserva a arquitetura
inglesa do século 19 onde podemos observar hoje semelhança do prédio original da
estação. O ramal e a estação foram desativados em Novembro de 1971. Em 1979,
foi restaurada e transformada no atual Centro Cultural, que abriga o Teatro Luiz
Souto Dourado. À sua frente encontra-se a Praça Dom Moura (que no momento esta
em reforma recebendo uma arquitetura moderna), do lado esquerdo encontra-se a
Praça Tiradentes e do outro a Esplanada Guadalajara. Estas duas últimas (praça e
esplanada) foram construídas sobre o pátio ferroviário e das casas dos
trabalhadores da estação desativada em 1971.
Com o crescimento causado pela estação ferroviária no município de
Garanhuns, outras áreas foram favorecidas com esse progresso. Houve o
crescimento do comércio atraindo novos estabelecimentos, incluindo a construção
de empresas exportadoras e de escritórios; o aumento das feiras e dos produtos
ofertados por elas; fundação de hotéis que recebiam turistas de várias partes do
Estado de Pernambuco e do Nordeste, que era atraído pelo clima semelhante ao
europeu e encantado pelas belas paisagens da cidade. Para Arruda,
O processo de transformação ou de modernização não
se restringe ao Rio de Janeiro e às formas urbanas. A ideia de
progresso estava bastante generalizada no país e era anterior
à própria república. Não se limitava ao eixo Rio- São Paulo ou
à transformação urbana, mas através das construções de
novos eixos ferroviários [...] (ARRUDA, 2000:103).
O ramal Garanhuns não trouxe apenas ao município crescimento financeiro,
mas trouxe uma nova arquitetura copiada dos europeus. Nas principais ruas, as
casas de taipas recebem uma nova roupagem , assim como os numerosos terrenos
182
dão lugar a prédio de tijolos, alguns tendo suas fachadas revestidas de azulejos e
alguns com pisos de mosaicos azulejos e até com o piso de mosaicos.
Havendo algumas mudanças administrativas ocorridas nas estradas de ferro,
a Great Western foi substituída pela Rede Ferroviária do Nordeste em 1950 e
posteriormente foi substituída pela Rede Ferroviária Federal S.A. (R.F.F.S.A). Por
uma série de fatores, as estações ferroviárias passaram a ser desinteressantes
financeiramente e, aos poucos, foram sendo desativadas pelo interior do Estado.
As ideias de progresso do final do século XIX abriram caminho para o avanço
da modernidade no interior. A “crise” do transporte ferroviário trazida pela
modernidade estagnou os movimentos que animavam as vidas nas vilas e
comunidades nascidas da função de concentrarem os serviços das companhias,
com suas estações, que empregaram gerações de trabalhadores. O abandono ou
até as reformas dos prédios das estações indica o fim de uma época da história
pernambucana marcada pela exuberância e do estilo suplantado pela economia, que
no passado era encantada pela locomotiva.
A antiga estação sobreviveu com a memoria fixada nas ruas, casas e nos
traços memoráveis deixados pela estrada de ferro. A população que teve a ferrovia
como parte de suas lembranças carregam as experiências dos tempos do trem, e
veem muitas de suas práticas do passado perderem sentido e até mesmo serem
extintas. O antigo maquinista de locomotiva a vapor, o chefe de trem, o eletricista de
correr linhas e o chefe de estação desapareceram e foram substituídos pela
modernidade representada pelos carros e caminhões.
As relações ocorridas no processo de pesquisa do trabalho ferroviário do
presente tenta resgatar uma narrativa que se perdeu com o tempo. A importância da
memória dos ferroviários e seus familiares significa a preservação das experiências
de trabalho perpassadas através das gerações. Os resultados desta pesquisa
supõem que as memórias narradas revelam e torna claro o passado, as rotinas
dentro e fora do trabalho, às mudanças ocorridas no trabalho ferroviário ao longo do
tempo. Utilizando outras fontes à memória dos sujeitos é possível trazer a tona a
realidade dos trabalhadores e as características da formação da categoria ferroviária
e de suas lideranças.
183
O ferroviário acaba aparecendo como a representação da realidade das
companhias, porque o trabalho realizado no transporte ferroviário retratado nesses
estudos talvez esteja associado à grandeza das ferrovias, relacionada à da
economia capitalista brasileira: ferrovia é progresso. O trem se tornou a riqueza das
cidades e com sua pontual passagem era possível ajustar o relógio: o
comportamento do ferroviário deveria refletir responsabilidade e eficiência. O
abandono deste meio de transporte começou a ganhar destaque a partir das
reformas econômicas promovidas pelos governos.
A história nos trilhos e o método de pesquisa
O artigo tem como objetivo no sentido de resgatar narrativas através da
memória ferroviária e estabelecer uma ponte entre passado e presente, a partir de
depoimentos de antigos trabalhadores, familiares de trabalhadores, fontes
historiográficas e iconográficas, obtidos em arquivos públicos e privados.
A reconstrução histórica parte de fontes historiográficas e iconográficas,
desde o período a inauguração do ramal Garanhuns e sua influencia nos dias de
hoje. A história das estradas de ferro pernambucanas, o motivo de seu progresso e
suas limitações é analisado por meio de fontes orais obtidas de pessoas que
viveram neste momento de expansão da malha ferroviária na região. A reconstrução
histórica baseia-se nas lembranças recuperadas por meio dos relatos dos
entrevistados que preenchem alguns vazios reconstruindo suas experiências. Como
se trata de familiares de ferroviários, a memória alcança algumas passagens da
história da ferrovia do final do século XIX. Porém, a reconstrução em torno dos
temas da ferrovia baseia-se, sobretudo, em textos acadêmicos, arquivos privados e
pesquisas iconográficas.
A memória ferroviária é fundamental para a realização deste estudo, mas
necessita ser valorizada criticamente. Recuperar os fatos acontecidos, os mais
importantes e os mais efêmeros, dificilmente possibilitará compará-los ao vivido, pois
investigar a trajetória de uma categoria de trabalhadores quase em extinção requer
apelar ao incerto. O estudo sociológico da memória por meio da pesquisa que utiliza
a técnica de entrevistas e análise dos dados sobre o passado comum de um
184
determinado grupo recorre a dimensões desgastadas pelo tempo e ao que foi
selecionado pelos narradores.
A memória narrada relacionada à vida social de indivíduos de uma cultura
especifica passa por um processo de valorização e está envolvida por incertezas, já
que são depoimentos por tabela. Ela é uma reconstrução do passado no presente. A
memória passa por um processo de valorização das lembranças. Essa valorização é
determinada pelo próprio entrevistado que expõe seu ponto de vista, sua perspectiva
sobre seu passado.
No trabalho de Ecléa Bosi (2003) fica clara a ideia de que a memória é
trabalho. Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar a partir de
imagens e ideias do presente. Portanto, o ofício da memória não é lembrar,
recompor o que houve e, sim, reconstruir, relembrar segundo uma recriação. Isto
seria dizer que o vivido, o real, o acontecido, ao ser recriado pode transpor-se à
dimensão da ficção e que nunca mais pode reexistir como tal.
Considerações finais
Não pretendo com este artigo apresentar conclusões sobre o tema, mas sim
provocar um novo campo de estudo a ser aprofundado. A complexa tarefa de
descrever e analisar como os elementos dos caminhos de ferro se organizaram
espacial e operacionalmente leva necessariamente a ampliar as fronteiras do
patrimônio cultural e de sua prática de preservação. A estação e tempo estão
ligados. As estações ensinou o homem há contar o tempo em anos.
A ferrovia teve um papel preponderante no crescimento de Garanhuns e
região. Através dos trilhos, chegavam e saíam mercadorias, viajavam pessoas de
todos os lugares, de todas as idades e classes sociais. Mesmo todas as dificuldades
em infraestrutura e tecnologia, o trem era um elemento que dinamizava da economia
em toda a região. Muitas famílias começaram a depender economicamente desse
meio de transporte.
185
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ENSINO DE HISTÓRIA E PODER POLÍTICO: A INTERVENÇÃO DO
ESTADO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA DOS PROFESSORES A PARTIR DOS
CURRÍCULOS E PROGRAMAS EDUCACIONAIS*
Karla Fernanda Falcão Rodrigues de Fraga**‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
RESUMO
Avaliando as reformas educacionais como acontecimentos influenciadores da
construção do ensino de História no Brasil, este trabalho tem como objetivo analisar como o
Estado, por meio da elaboração e aplicação de currículos e programas educacionais, interferiu
e interfere na prática pedagógica relacionada a tal disciplina. Seguindo esta proposição,
procura-se aqui perceber como a participação do Poder na construção do saber histórico
escolar é mecanismo de disseminação de ideais de governo, dando ênfase à efetivação desta
* Artigo produzido a partir de discussões na Disciplina Optativa Linguagens Alternativas para
o Ensino de História em 2010.2, sob mediação da Professora Doutora Lúcia Falcão.
**Aluna do curso de Licenciatura em História pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco
187
disciplina como componente curricular nas escolas brasileiras, e perpassando pelas reformas
educacionais da Era Vargas, do Regime Militar e do período de Redemocratização que, por
sua vez, trouxe consigo os modelos curriculares hoje vigentes. Para tanto, foram consideradas
aqui algumas propostas apresentadas em documentos recentes na ordem do dia, como: os
Parâmetros Curriculares Nacionais, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio e a Base
Curricular Comum, bem como outros textos que tratam desta temática, a partir dos quais se
pretende incitar um debate sobre a construção da memória educacional brasileira e a
modificação dos discursos historiográficos vinculados ao Ensino de História em nosso país.
Palavras-chave: Reformas Educacionais, Saber Histórico Escolar, Ideologias de Governo.
―Os currículos e programas constituem o instrumento mais poderoso de intervenção do
Estado no ensino, o que significa sua interferência, em última instância, na formação da
clientela escolar para o exercício da cidadania, no sentido que interessa aos grupos
dominantes. Através dos programas divulgam-se as concepções científicas de cada disciplina,
o estado de desenvolvimento em que as ciências de referência se encontram e, ainda, que
direção devem tomar ao se transformar em saber escolar. Nesse processo, o discurso do poder
se pronuncia sobre a educação e define seu sentido, forma, finalidade e conteúdo e estabelece,
sobre cada disciplina, o controle da informação a ser transmitida e da formação pretendida.
Assim, a burocracia estatal legisla, regulamenta e transforma o trabalho pedagógico.‖
(ABUDD, 2010, p. 28).
Os currículos, na posição de documento oficial do Estado para a educação, são
construídos sobre a égide de uma escola ideal, e quase sempre, na história do Brasil, foi
formulado sem a participação dos principais sujeitos envolvidos no processo ensino-
aprendizagem: professores e alunos. No entanto, esses documentos interferiram e ainda
interferem na prática pedagógica dos docentes, apesar de desconsiderar em seu conteúdo as
dificuldades e obstáculos presentes no cotidiano das escolas. Sabendo que a educação escolar
é um fator de fundamental importância na formação sócio-política dos cidadãos, o Estado, por
meio desses textos, apresenta, além dessas perspectivas, a preocupação de disseminar suas
ideologias e delimitar os conteúdos que podem ser veiculados pelas instituições educacionais
para, com isso, construir a imagem de um Estado aceitável pela sociedade.
O ensino de História no Brasil, enquanto componente curricular das assim chamadas
escolas secundárias, foi efetivado no Colégio Dom Pedro II, em 1837, tendo com
contemporâneo o advento da História acadêmica, representado pelo Instituto Histórico e
188
Geográfico Brasileiro (IHGB). Neste contexto, a relação entre estas instituições fora
desenvolvida a partir da posição do Pedro II formar os filhos da nobreza do Rio de Janeiro, e
do IHGB construir uma identidade brasileira e ―formar através do ensino de História, uma
ciência social geral que (ensinasse) aos alunos, ao mesmo tempo, a diversidade das sociedades
do passado e o sentido de sua evolução.‖ (ABUDD apud FURRET)
O Pedro II e o IHGB representavam, neste contexto, as instâncias de produção de um
determinado contexto histórico a ser veiculado, fazendo com que proposta para a História
acadêmica e a História disciplina escolar tomasse um caminho unilateral de estruturar o Brasil
enquanto nação, visto que este país acabara de conquistar sua Independência de Portugal e
sentia a necessidade de criar uma identidade nacional. Para tanto, o Instituto concebeu, em
1843, a proposta de historiografia de Von Martius, a qual estaria voltada para explanar a
formação étnica da população brasileira, considerando linearmente e sob valoração as
contribuições do branco, do negro e do índio para o desenvolvimento do país, como também
questões concernentes às influências para o desenvolvimento econômico, político e religioso
da nação. Esta perspectiva histórica se manteve presente nos programas brasileiros de ensino
de meados do século XIX até 1931, quando houve nossa primeira grande reforma
educacional.
Ao passo que as outras reformas pretendidas pelos governos impunham as escolas a
adotar a seleção de conteúdos dispostas pelo Pedro II, cabendo-lhe apenas a elaboração de
programas próprios, foi partir dessa data, com a Reforma Francisco Campos, então Ministro
da Educação e Saúde do Brasil, que os programas e métodos de ensino foram formulados pelo
próprio Ministério e direcionados para os colégios mantidos pelos municípios, associações ou
por particulares. O conteúdo desses documentos estava organizado por série, e procurava
abranger a História Geral, do Brasil e da América, estando a História Geral e do Brasil
configuradas em uma disciplina única: a História da Civilização. Em sua proposta de prática
pedagógica, o programa deixa claro que ―é nos estudos de História que mais eficazmente se
realiza a educação política, baseada na clara compreensão das necessidades de ordem coletiva
e no conhecimento das origens (...) das atuais instituições políticas e administrativas‖
(ABUDD apud HOLLANDA), configurando a colocação do Estado em propagar seus
interesses como os interesses da nação.
Gradualmente, seguindo vários atos legais, a disciplina de História do Brasil adquiriu
autonomia, e a partir de 1942, quando a grade curricular absorveu maior carga horária e
sofreu alterações advindas do Estado durante a Era Vargas através da Reforma Gustavo
Capanema, a abordagem da História do Brasil tomou maiores proporções, trazendo consigo o
189
ideal de fortalecer uma identidade única do povo brasileiro. Neste programa, como aponta
Kátia Abud, os objetivos do ensino de História permeavam a proposta de esclarecer e
fortalecer os sentimentos de civismo, e dos direitos e dos deveres das novas gerações para
com a pátria e com a humanidade. Desse modo, mais uma vez, as orientações para esta
disciplina destacou o ideal de genealogia da nação, como também a exaltação de personagens
heróicos e marcos históricos, abarcando a História como um instrumento para o
desenvolvimento do patriotismo e do sentimento nacional uniformizado que permitisse o
ocultamento da divisão social e da direção das massas pelas elites.
Outra significativa interferência do Estado na educação brasileira, e consequentemente
no ensino de História, se apresentou em 1969 – período do Regime Militar – seguindo a
autorização da implantação de cursos superiores de curta duração. Como complemento a esta
medida, em 1971 as reformas curriculares previram a unificação dos componentes da História
e da Geografia na disciplina de Estudos Sociais – que se constituía ao lado da Educação
Moral e Cívica – a partir da Lei n. 5.692/71. Seguindo a consolidação da disciplina de
Estudos Sociais, os conteúdos de História e Geografia foram diluídos, e ganharam contornos
ideológicos de caráter nacionalista destinado a justificar o projeto nacional organizado pelo
governo militar que fora implantado no país a partir de 1964. Em 1976, o Ministério da
Educação, divulgando a portaria nº 790, determinou que as aulas de Estudos Sociais para o 1º
grau (que hoje compreendemos por ensino fundamental) só poderiam ser ministradas por
profissionais com formação em Estudos Sociais, enquanto as realizadas no 2º grau (o atual
ensino médio) poderiam ser compreendidas por professores de História e Geografia. Tendo
em vista que os professores com formação em Estudos Sociais saíam do curso com um
conhecimento essencialmente global dos conteúdos, ficam transparentes os planos do governo
em disseminar sua ideologia começando pela base da formação escolar, mantendo sob
custódia o conhecimento histórico a ser veiculado.
Inconformados com as medidas do Estado de substituir o ensino de História por
Estudos Sociais, como também revoltos com a proibição dos professores de História em
lecionar no nível de primeiro grau, os profissionais desta área passaram por um período de
resistência aos posicionamentos estatais que interferiam em sua prática de trabalho. Partindo
dessas inquietações, surgiram várias manifestações no Fórum de Debate sobre Estudos
Sociais, na USP, na Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB) e a então Associação
Nacional dos Professores Universitários de História (ANPUH), em 1973. Conseguinte a essas
organizações políticas, os profissionais de História estruturaram seus interesses e, com a
realização das greves de 1978 e 1979, fizeram suas reivindicações ao Estado que se manteve,
190
por sua vez, resistente a permanência dos Estudos Sociais na grade curricular e favorável aos
cursos de curta duração. No entanto, os professores formados em História tiveram uma
significativa conquista com a revisão do artigo 5º da Resolução nº 8 de 1971 que permitia aos
licenciados na área ensinar a matéria de Estudos sociais, e com a Resolução nº 7 de 1979 que
estabelecia a permissão destes ensinar no Ensino Fundamental.
A preocupação do Estado quanto ao saber histórico escolar se fez presente ainda em
1980, quando este difundiu uma medida em que os Estudos Sociais abarcariam as áreas de
História, Geografia, Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) de
forma unificada, estando os profissionais formados em Estudos Sociais habilitados para
ensinar em todos os níveis de ensino escolar, diminuindo o campo de atuação de todas as
áreas do conhecimento por eles subtraídas. Em resposta a esta medida, em 1982
desencadearam manifestos nas comunidades acadêmicas de História e Geografia em que
foram expedidos ao Presidente do Conselho Federal de Educação documentos contrariando o
implemento do projeto de Estudos Sociais. A partir desse momento, os docentes de História
ganharam mais espaço de atuação, buscando uma valorização da área junto ao Estado e seus
representantes.
Desde a inserção do ensino de História nas escolas brasileiras até o início da década de
1980 fora atribuído aos componentes curriculares desta disciplina a função de ocultar as
multiplicidades de experiências sociais e culturais, estabelecendo uma identidade nacional
única construída através de processos de lembrança e esquecimentos produzidos em
coletividade, sustentada sobre artefatos culturais (monumentos, nomes, festividades). Logo,
este processo de formulação de memória coletiva ponderava os acontecimentos históricos
dignos de serem registrados, desconsiderando o que não era memorável por ser irrelevante,
doloroso ou incômodo à identidade nacional (CARRETERO, ROSA E GONZÁLEZ, 2007, p.
20). A construção dessa memória coletiva não foi, no entanto, unicamente uma determinação
autoritária dos gestores do poder: foi instrumentada por meio de procedimentos de mediação
em que todos participavam em maior ou menor medida, considerando as estruturais sociais,
instituições, leis, regulamentos, símbolos e normas morais, e que se ajustou como um
mecanismo efetivo para fazer com que o Estado difundisse seus ideais, ocasionando
considerável conformação social de vontades.
A partir desses acontecimentos, percebe-se, a partir dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN‘s), a preocupação dos responsáveis pela educação escolar do Brasil em
estabelecer novos critérios de seleção de abordagem dos conteúdos, apesar de continuarem a
se basear numa escola ideal, e não na realidade vivenciada no cotidiano da educação do país.
191
Nesta circunstância, o objetivo do ensino de História deixa de ser o mero acúmulo de
informações pautado em desenvolver competências e habilidades visando à inserção do
público alvo numa sociedade competitiva, e passa a ter como meta a formação integral dos
estudantes enquanto cidadãos com uma visão crítica da sociedade em que vivem a partir do
desenvolvimento de valores éticos de solidariedade, cooperação, valorização da pluralidade
cultural e o respeito ao meio ambiente. No entanto, os documentos voltados à construção do
ensino de História no Brasil permaneceram com a proposta de constituição da noção de
identidade, como aponta o PCN de 1997:
...é primordial que o ensino de História estabeleça relações entre identidades
individuais, sociais e coletivas, entre as quais as que se constituem como
nacionais. Para a sociedade brasileira atual, a questão da identidade tem se
tornado um tema de dimensões abrangentes, uma vez que se vive um extenso
processo migratório que tem desarticulado formas tradicionais de relações
sociais e culturais. Nesse processo migratório, a perda da identidade tem
apresentado situações alarmantes, desestruturando relações historicamente
estabelecidas, desagregando valores cujo alcance ainda não se pode avaliar.
Dentro dessa perspectiva, o ensino de História tende a desempenhar um
papel mais relevante na formação da cidadania, envolvendo a reflexão sobre
a atuação do indivíduo em suas relações pessoais com o grupo de convívio,
suas afetividades e sua participação no coletivo. (BRASIL, 1997)
Esta posição do Estado foi consequência da expansão escolar para um público
culturalmente diversificado, com a intensa relação entre os estudantes com as informações
difundidas pelos meios de comunicação, como também do período de redemocratização
vivenciado pelo país, quando o direito ao voto se ampliou a uma parcela maior da população
brasileira. Logo, o ensino de História passou a considerar, por sua vez, a atuação dos diversos
grupos e classes sociais e suas diferentes formas de participação na configuração das
realidades presentes, passadas e futuras, e fora direcionado à formação cidadã dos estudantes
das escolas primárias e secundárias. Assim, esta proposta da ―pedagogia do cidadão‖ partia do
juízo de ―constituir o cidadão político para o estado democrático, então em fase de
constituição‖ (BITTENCOURT, 2010, p. 20), mas se instalou, principalmente, partindo da
―idéia de cidadania social que abarca os conceitos de igualdades, de justiça, de lutas e de
conquistas, de compromissos e de rupturas‖ (GLEZER, 1990, p. 10).
Uma proposta inovadora para o ensino de História também está nas proposições desse
documento, quando considera que no Brasil há um grande número de pessoas que não fazem
192
uso da escrita, tanto porque não tiveram acesso a processos formais de alfabetização como
porque pertencem a culturas ágrafas, como no caso de populações indígenas. Nesse sentido, o
trabalho pedagógico requer estudo de novos materiais (relatos orais, imagens, objetos, danças,
músicas, narrativas), que devem se transformar em instrumentos de construção do saber
histórico escolar. (BRASIL, 1997)
Assim, sugere-se a esta disciplina a apropriação de outros documentos além do livro didático
– que como material metodológico constitui uma forma de intervenção do Estado no processo
de educação escolar – considerando que ao se recuperar esses materiais, que são fontes
potenciais para construção de uma história local parcialmente desconhecida, desvalorizada,
esquecida ou omitida, o saber histórico escolar desempenha um outro papel na vida local, sem
significar que se pretende fazer do aluno um ―pequeno historiador‖ capaz de escrever
monografias, mas um observador atento das realidades do seu entorno, capaz de estabelecer
relações, comparações e relativizando sua atuação no tempo e espaço. (BRASIL, 1997)
Desse modo, os Parâmetros Curriculares Nacionais emitidos pelo governo federal
objetivava, também, que através dos conteúdos expostos nas aulas de História os alunos
pudessem ―questionar sua realidade, identificando alguns de seus problemas e refletindo sobre
algumas de suas possíveis soluções, reconhecendo formas de atuação políticas institucionais e
organizações coletivas da sociedade civil‖ (BRASIL, 1997). Com isso, as propostas oficiais
do Estado contemplam o aluno como um sujeito de ação, que se constrói nas relações sociais,
políticas, econômicas e culturais, travadas num determinado contexto perpassado por várias
realidades, marcado por inúmeras diferenças e, ainda, com acesso a informações sobre
acontecimentos de outras realidades e temporalidades simultâneas à sua.
Devido à necessidade de rediscutir as propostas dos PCN‘s às mudanças contextuais
das escolas brasileiras, o governo federal brasileiro lança as Orientações Curriculares para o
Ensino Médio (OCEM) em 2006. Em seu texto, a OCEM aborda questões importantes para o
ensino de História, visto que discute noções de temporalidades e sujeitos históricos, relações
de poder, cultura, memória e cidadania, considerando o aluno como agente construtor da
História. Nesta orientação, o Estado aponta como princípios estruturadores do currículo a
interdisciplinaridade, a contextualização, a definição de conceitos básicos da disciplina e a
seleção dos conteúdos no desenvolvimento das atividades escolares a partir da participação da
comunidade escolar tanto na sua construção quanto na sua efetivação prática.
193
Outro documento com propostas curriculares em vigor, também construído com a
participação de indivíduos diretamente envolvidos com o ambiente escolar, agora voltado
para as práticas de ensino do estado de Pernambuco, é a Base Curricular Comum para as
Escolas Públicas de Ensino de Pernambuco (BCC), que tal qual a OCEM explicita para o
ensino de História o direcionamento aos paradigmas da solidariedade, do vínculo social e da
cidadania, que seriam, sob sua proposta, construídos a partir de práticas contextualizadas à
realidade do alunado, defendendo que a educação deve exercer a sua parte na formação
integral do cidadão solidário, participativo criativo e aberto ao diálogo; crítico, conhecedor do
seu entorno e das dimensões nacional e global; disposto a assumir concepções éticas,
fundadas na justiça social; sensível à dimensão estética das diferentes manifestações culturais;
e empenhado em partilhar regras democráticas, construídas com base no interesse comum e
no respeito à diversidade. (PERNAMBUCO, 2006)
Analisando a proposta dos documentos que permeiam a atual prática do ensino de
História no Brasil, cabe enfatizar que a ampliação do conceito de cidadania, com a introdução
e explicação de cidadania social, confere ou deveria conferir uma outra dimensão aos
objetivos da História quanto ao seu papel na formação política dos alunos, implicando, assim,
a necessidade de uma revisão mais aprofundada dos conteúdos propostos neste âmbito. Em
meio a tantas inovações e contribuições positivas contidas em seus textos, os currículos de
História vigentes implicam para a formação de uma nova realidade de produção de saber
histórico escolar, mas que constituem um mecanismo eficiente de caráter político do Estado
em direcionar a construção da memória coletiva, ao passo determina a abordagem de
cidadania trabalhada através do ensino de História. Pode-se inferir, então, que para o contexto
político que o Brasil vivencia hoje, onde atitudes de corrupção advindas de representantes
públicos escolhidos por meio do voto são divulgadas constantemente, é interessante ao Estado
que a formação escolar maquie a relação do ensino de História com a política
institucionalizada e aborde os direitos e deveres sociais como cidadania. Então, nessa
construção de memória coletiva, vincula-se a compreensão de que ―na escola, falar em
cidadania é algo nobre, ao passo em que falar em política é sujeira‖ (CORTELLA, JANINE
RIBEIRO, 2010, p. 60).
Seguindo a intervenção do Estado na prática pedagógica dos professores a partir dos
currículos e programas educacionais, podemos perceber como o ensino de História, no tocante
a formação escolar da população brasileira, contribuiu e contribui para divulgar as intenções
dos governos. Desse modo, merece ser ressaltada a relação entre o contexto histórico com as
194
instituições que produziram esses documentos, visto que ―A instituição não dá apenas uma
estabilidade social a uma ‗doutrina‘. Ela a torna possível e sub-repticiamente, a determina‖
(CERTEAU, 2002, p.60), para com isso, conhecer como acontece o processo entre as
entidades que produzem esses textos e os indivíduos afetados por suas determinações.
REFERÊNCIAS
ABUDD, Kátia. Currículos de História e políticas públicas: os programas de História do
Brasil na escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula.
11 ed. São Paulo: Contexto, 2010.
BITTENCOURT, Circe. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de
História. In: BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 11 ed. São Paulo:
Contexto, 2010.
CARRETEIRO, Mario; ROSA, Alberto; GONZÁLEZ, María Fernandes. Ensino de História
e Memória Coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002. p. 56 – 69.
CORTELLA, M. S.; RIBEIRO, R. J.. Política para não ser idiota. 5 ed. Campinas: Papirus,
2010.
GLEZER, Raquel. Apresentação. In: BITTENCOURT, Circe. Pátria, Civilização e
Trabalho. 1 ed. São Paulo: Loyola, 1990.
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. 1997. Disponível em:
<<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf>> . Acesso em 23 de setembro de
2011 às 10h.
BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. 2006. Disponível em:
<<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf>>. Acesso em 23
de setembro de 2011 às 12h.
PERNAMBUCO. Base Curricular Comum. Secretaria de Educação. Governo do Estado
de Pernambuco. 2008.
CONTOS POPULARES DA PARAÍBA: A EXPERIÊNCIA DE REGSITRO DO
PATRIMÔNIO IMATERIAL DO NÚCLEO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DA
CULTURA POPULAR-NUPPO/UFPB
195
Lydiane Batista de Vasconcelos§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
O Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular- NUPPO é um órgão vinculado à
Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários e tem sua sede no térreo da Reitoria,
Campus I, da Universidade Federal da Paraíba na cidade de João Pessoa. Desde sua fundação
o núcleo se anuncia como um espaço que tem como finalidade promover a integração
sistemática do estudo e da pesquisa da cultura popular através de equipes multidisciplinares,
constituídas por servidores docentes e alunos da universidade. O NUPPO desenvolveu
pesquisas, documentou e divulgou a cultura popular paraibana, contribuindo para a construção
de um acervo visual e sonoro sobre o patrimônio imaterial da Paraíba. Desta forma
buscaremos analisar a produção discursiva do núcleo como produtor de conceitos sobre a
cultura popular paraibana e as metodologias usadas por seus pesquisadores nas entrevistas
realizadas por seus pesquisadores, sobretudo os métodos utilizados por Altimar Pimentel
durante o projeto Jornada de Contadores de Estória da Paraíba que se destinava à coleta,
estudo e divulgação do conto popular, reunindo 1.678 narrativas a partir de 300 narradores de
diversos municípios da Paraíba.
Palavras-chave: NUPPO, patrimônio imaterial, cultura popular.
O NUPPO foi criado durante o reitorado do professor Lynaldo Cavalcanti, o qual foi
marcado por profundas modificações no âmbito da UFPB, em diversos setores da instituição.
A gestão de Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque teve início em março de 1976 e estendeu-se
até o mesmo mês de 1980. Nesse intervalo, a instituição passou por um processo de
crescimento acelerado e projeção nacional. Durante a sua gestão Lynaldo Cavalcanti
desenvolveu seu projeto de modernização em diversas esferas, nas quais podemos destacar
quatro pontos que caracterizam sua administração: a aquisição de quadros intelectual-
técnicos, a criação de diversos cursos de pós-graduação, a incorporação de faculdades
isoladas existentes no interior do Estado aos quadros da Universidade Federal da Paraíba e a
criação de Núcleos de pesquisa, a exemplo do NUPPO.
A UFPB durante a década de 80, caracterizava-se pela criação de projetos que dessem
visibilidade e problematizassem as questões concernentes ao desenvolvimento regional, e esse
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
UPE-lydianebatista@yahoo.com.br
196
caráter configurou os objetivos dos Núcleos de pesquisa da Instituição. Nesse sentido, a
criação do NUPPO confluiu com o pensamento vigente na Universidade em fins dos anos de
1970 e início dos anos 1980, isto é, a preocupação com a realidade regional e, sobretudo, com
medidas voltadas para o estudo e preservação das manifestações populares na Paraíba.
O Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular- NUPPO surge com o
intuito de promover a integração sistemática do estudo e da pesquisa da cultura popular
através de equipes multidisciplinares, constituídas por servidores docentes e alunos da
universidade, a partir dos registros, e coleta de peças artesanais a serem organizados na forma
de museu. A produção do NUPPO foi, em sua maioria, caracterizada pela linha documental,
isto é, a preocupação com os registros orais de uma série de narradores, sobretudo os ligados
aos contos populares.
Como podemos perceber, esse interesse pela identidade local, por parte dos
pesquisadores do NUPPO e conseqüentemente pelo passado, se reflete na criação de lugares
de memória, locais de rememoração, como monumentos, museus, arquivos, que buscam
evitar o esquecimento e impor a noção de um tempo estável ao mundo atual. Esses lugares de
memória, enquanto representações de um passado, procuram enfatizar uma noção de
continuidade e pertença.
Pierre Nora caracteriza a memória como ―vida, carregada por grupos vivos e, nesse
sentido, em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, sendo
ela um fenômeno atual, um elo vivido no eterno presente‖ (NORA,1993. p. 9-10). Nesse
sentido, a criação do NUPPO enquanto um museu não pode mais ser visto como uma
instituição estável, seu espaço se ampliou e se diversificou, o público se modificou tanto nos
aspectos sociais como nos culturais. O museu do NUPPO deixa de ser uma instituição, um
local onde estão preservadas algumas coleções, para tornar-se uma atitude, a representação de
um comportamento em meio à fragmentação do mundo contemporâneo.
Desta forma, os museus parecem funcionar como caminhos que permitem uma
negociação e articulação entre o passado e o presente.Oswaldo Meira Triqueiro que atuou
como coordenador do NUPPO durante a decada de 80, ao prefaciar o livro Contos Populares
de Cabedelo descreve o processo de catalogação do conto popular na Paraiba:
A coleta, divulgação e estudo do conto popular insere-se entre as linhas de
ação do Núcleo de Pesquisa e Documentação da Cultura Popular-NUPPO
197
como um dos projetos mais ativos e abrangentes.Maior se torna a nossa
responsabilidade quando sabemos que a coleta sistemática do conto popular
que estamos envolvendo representa iniciativa pioneira no
Brasil.(TRIGUEIRO,1995.p.06)
Quando coloca a experiencia etnografica do NUPPO enquanto pioneira, Oswaldo
Meira Triqueiro não desconsidera a existência de pesquisas similares em outros estados
brasileiros ou em outros paises. O pioneirismo se daria pela grande quantidade de material
coletado, narrativas orais, imagens dos entrevistados e dados biograficos dos mesmos. No
NUPPO há poucas entrevistas que em seus roteiros busquem compreender a dinâmica do
grupo ou individuo, a maioria do material catolagado se constitui, nos próprios contos
narrados por moradores do litoral, brejo e sertão paraibano. As esquipes ao gravarem os
contos escolhiam como local as moradias dos narradores ou outros espaços que fossem
comuns que eles contassem as histórias, a justificativa para tal escolha seria uma busca quase
essencialista do conto em sua forma mais primitiva.
Um traço marcante do Nuppo é o acervo de contos populares, um dos maiores do
mundo, resultado da Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba. O acervo reuniu, desde
1977, 1600 narrativas de cerca de 300 narradores em 27 municípios do Estado. A coletânea
publicada, organizada por Altimar Pimentel e Miriam Gurgel Maia, constitui-se de dez
volumes, contendo contos e estórias de Cabedelo, Catolé do Rocha, Santa Helena, coleção
trancoso e Estórias de Luzia Tereza.
Um dos primeiros trabalhos publicados a partir da Jornada de Contadores de Estórias
da Paraíba foi o Catálogo prévio do conto popular I – Cabedelo, organizado por Altimar
Pimentel e Myriam Gurgel Maia. O município de cabedelo foi o primeiro a ter material
coletado e transcrito e a divulgação do material foi realizada no próprio município, para que
os depoentes pudessem ter acesso ao material impresso. Dessa forma quando a coleta em um
município terminava, iniciava-se o processo de transcrição das fitas, editoração e publicação
dos contos.
Com recursos próprios e da FUNARTE, o NUPPO sob a supervisão de Altimar
Pimenteu durante a Jornada de Contadores de Estórias da Paraíba documentou 1.678 contos
populares de cerca de 300 narradores em 26 municípios paraibanos. O trabalho consistia no
registro das histórias em fitas magnéticas das narrativas e registros fotográficos dos encontros,
198
ao terminar a entrevista os pesquisadores transcreviam a entrevista assim como foi cedida
pelo depoente e guardava essa versão para pesquisadores do campo da linguística. O texto
presente nas publicações do NUPPO não contém essas transcrições na integra, passando
muitos desses relatos por revisões gramaticais onde eram evitadas as repetições, erros
causados por lapsos de memória, concordância verbal. Frederico de Castro Neves, coloca que
a transposição de uma entrevista (produzida oralmente) para o texto escrito, deixa de lado
uma boa parte da experiência do narrador, expressa em sua fala, em seus gestos, em suas
expressões e entonações de voz. Experiência cuja lembrança sofre ainda a interferência da
relação entrevistador-entrevistado em que o primeiro possui o delicado papel de desperta-lo
No entanto, mesmo considerando este processo revisionista do texto, os prefácios e
introduções publicados pelos intelectuais do NUPPO acabam sempre reiterando a
preocupação com a fidelidade do texto, vocabulário do narrador para dar sentido a história
que estava sendo narrada atrelados aos elementos de composição do texto. Os textos
recolhidos foram utilizados também em sala de aula com alunos do 1º grau e MOBRAL.Além
de levar os contos até as escolas paraibanas o NUPPO realiza exposições,palestras e
minicursos oferecidos no intuito de ampliar a percepção, receptividade e pesquisa da cultura
popular com o público escolar. Os pesquisadores temos ministram oficinas em dez municípios
do Estado, com o intuito de contribuir no crescimento da mão de obra especializada em
diversas técnicas artesanais. O NUPPO divide o seu acervo por setor: Arquivo e
Documentação,Museu, Acervo da Jornada..
Os contos publicados por Altimar Pimentel a partir das pesquisas do NUPPO, narram
histórias fantásticas e lendárias envolvendo a figura do Diabo e outras entidades presentes no
imaginário popular, sobretudo de dois narradores: Atenísio da Silva e Nilo Pereira, que eram
naturais de Caicó-RN. Estes narradores se afirmavam enquanto profissionais, visto que,
percorriam fazendas do interior contando histórias mediante pagamento pelas mesmas, e que
teriam aprendido tal oficio através da leitura do livro Menino de Engenho de José Lins do
Rego. Atenísio da Silva e Nilo Pereira gesticulavam e utilizavam de onomatopeia e outros
recursos para exprimir os sons utilizados por animais ou outras coisas que se fizessem
presentes nas histórias. As expressões dos narradores, com longas pausas e em alguns
instantes com frases rápidas, demonstram sua maneira de narrar histórias populares, pois, a
entonação da voz, os silêncios e gestos podem expressar emoções e intencionalidades.
Comumente as mãos desses narradores faziam encenações que davam sustentação a narração
199
e prendiam a atenção dos ouvintes principiados pela entonação de voz: ― A arte de narrar é
uma relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida
humana‖.(BOSI,1994.p.418)
O conto popular ―Toca por pauta‖, foi publicado por Altimar Pimentel no livro
Estórias do diabo. O referido conto tem como ponto central a particularidade do diabo ser
loiro de olhos azuis, contrariando a imagem popular do ―Coisa Ruim‖: um negro chifrudo, de
nariz adunco, expelindo fogo e fumaça, pé de pato, cauda terminada com uma seta, aparência
de morcego, espeto na mão e cheirando a enxofre. Além da aparência nórdica, esse ser
sobrenatural toca um instrumento musical bem ao gosto do povo – um violão com apenas
quatro cordas. E, assim, o tal capeta encanta a todos em vez de assombrar.
A literatura oral do Brasil tem como fontes fundamentais a cultura portuguesa, as
culturas indígenas, principalmente as da família lingüística tupi-guarani, e as culturas
africanas – os povos sudaneses e os bantos. Essas fontes primárias, embora possam ser
observadas por todo o território brasileiro, permaneceram mais puras nas regiões Norte e
Nordeste, sendo que em outras regiões, como o Sul e o Sudeste, houve contribuições
suplementares provenientes das culturas alemã, italiana, sírio-libanesa, japonesa, entre outras.
Dessa forma, para melhor compreensão do legado dessas culturas, Pimentel apresenta, em seu
livro O diabo e outras entidades míticas do conto popular, a abrangência das manifestações da
literatura oral brasileira, por meio de uma divisão realizada por Edison Carneiro e outra por
Renato Almeida. A de CARNEIRO compreende a seguinte divisão: a) gesta - composição
poética, em forma de canção, que narra os feitos, reais ou lendários; b) missiva - cartas,
bilhetes; c) paremiologia – provérbios; e d) pasquins – (textos satíricos colados em público) e
literatura de cordel. Enquanto que a divisão de ALMEIDA compreende: a) Contos; b)
paremiologia - c) poesias; d) romances; e) desafios; f) cantigas infantis; g) mitos e lendas; h)
réplicas, eufemismos, ápodos (ditos irônicos) e xingamentos; i) mímica; e j) teatro de
fantoches.
Pimentel faz questão de citar essas divisões não porque conflitam entre si, mas por
serem complementares, oferecendo um panorama da literatura oral mais próximo da
realidade. Como se pode observar, o conto é um dos elementos que compõem a literatura oral
brasileira, que tem como características a antiguidade, o anonimato, a oralidade e a
persistência.
O conto ―Toca por pauta‖ tem início com a apresentação do mestre Narciso, com seus
oitenta e tantos anos, quase todos dedicados à pescaria, à luta com o rio e o oceano. Ele é
200
senhor dos segredos existentes nas rotas de sua preferência e, hoje, acha melhor trabalhar de
dia e deixar a noite para o descanso. Mas houve época em que preferia trabalhar à noite. A
escuridão da noite não só propicia colher bons frutos, como também o trânsito livre dos
fantasmas que povoam o mar, sendo, neste caso, necessário ter muito cuidado e atenção para
não provocar incidentes desagradáveis.
Durante o período em que sua atividade pesqueira era noturna, o mestre Narciso
acostumou-se a dar passagem, em seu pequeno barco, a um ―personagem estranho‖: um moço
loiro de olhos azuis, que tocava um violão com apenas quatro cordas – faltavam as notas ré e
dó. Embora a esquisitice de tal instrumento o intrigasse, não negava a condução, pois
apreciava a conduta do moço, de apenas tomar passagem na embarcação e solar seu
instrumento dolentemente. Seus dedos mágicos tiravam uma sonoridade suave, dulcíssima,
com harmonia tocante, que abrandava e enlevava todos os que estivessem perto e ainda
despertava prazer quando tocava trechos conhecidos.
Narciso não só admirava sua performance violonística fora do comum, como também
sua paciência. Estava sempre à espreita, sabia a hora e o lugar de passagem e, se houvesse
atraso, lá estava ele, cansado, mas paciente, com a cara boa e alegre. O mestre gostava mesmo
daquela companhia. Sua música ―até o distraia‖, tornando o trabalho leve e mais atrativo.
Considerava o diabo seu camarada, mesmo que nunca tivesse lhe dirigido a palavra. Durante a
viagem, cada um ficava sempre no seu canto. Mas essa separação não duraria muito.
Depois de matutar muito, mestre Narciso resolveu perguntar a razão da falta das
cordas ré e dó em seu violão. Assustou-se, pois o passageiro ficou colérico. Saíram lâminas de
fogo de seus olhos azuis. E o moço deu um basta naquela conversa, dizendo que se quisesse
ser amigo dele, não falasse naquilo. Depois do acontecido, mestre Narciso arrependeu-se de
ter se metido em negócio com fantasma. Por que não prolongou a distância que sempre
manteve daquele ser misterioso? Por que tinha que conversar com aquela visagem simpática,
que, até então, não lhe fizera nada de mal? Mas agora a situação havia mudado. Deveria haver
uma explicação plausível para a existência daquele instrumento enigmático.
Revolveu procurar um amigo professor e ex-pescador, que ficou muito espantado por
ele ainda não ter ouvido histórias sobre aquele rapaz. Era um assunto muito divulgado. Então,
o ex-pescador o orientou a fazer àquele indivíduo estranho a proposta de colocar uma letra
antes dos nomes das cordas que faltavam em seu violão. E terminou exigindo que voltasse à
casa dele para lhe contar o resultado de sua empreitada. Mestre Narciso aceitou. Queria
desvendar o mistério, mas estava com medodo fantasma reagir com violência, usando seus
poderes sobrenaturais. Hesitou, mas não tinha saída. Era um homem de palavra.
201
Anoiteceu, e mal entrou em seu barco, o rapaz loiro de olhos azuis estava lá. Tomou
seu lugar na embarcação, satisfeito e alegre. Conforme havia combinado com seu amigo,
mestre Narciso disse ao moço que ficaria bem colocar a letra C antes do ré e dó. Em seguida,
o rapaz perguntou quem havia dito aquilo. O pescador disse que tinha sido Nossa Senhora.
Neste momento, o rapaz caiu na água e ferveu. Era como se fosse aço avermelhado e
esverdeado pelo fogo entrando em águas profundas. O mestre ficou amedrontado com o
temporal que se formou. Quando tudo voltou à serenidade, sentiu muito ódio por ter perdido a
amável companhia. E finalmente foi ter com seu amigo. O ex-pescador ficou surpreso com a
confissão do mestre. Ele confessou que estava indignado com a perda de seu camarada
músico. A alegria daquele rapaz, nas horas mansas, e sua confiança ante o perigo só lhe
faziam bem ao coração. Segundo ele, o moço certamente não gostava de ouvir a palavra
Credo e nem amava Nossa Senhora, mas ―tocava por pauta - tocava esplendidamente
Segundo Michael Pollak na construção da memória existem três elementos essenciais:
a unidade física, que é a relação do eu e do mundo;o sentimento de coerência-aqueles
elementos comuns a todos os indivíduos, e também as relações entre o eu e o outro, pois se
constrói a própria imagem através das experiências próprias das observadas no
grupo.(POLLAK,1992.p.202-212) Outra série de contos importantes no processo de
catalogação realizado pelo NUPPO foram os narrados por Luzia Tereza dos Santos, reunidos
pelo folclorista Altimar Pimentel. A série de contos elaborada por Luzia foram publicadas em
três livros intitulados: Estórias de Luzia Tereza além dos contos os volumes contam com uma
entrevista cedida pela mesma durante as gravações.
Nascida na cidade de Guarabira no brejo paraibano, ou como ela mesma dizia: "nasci
nos arrabaldes de Guarabira", referindo-se que teria nascido na área rural da cidade, em 15 de
março de 1909 e faleceu em 31 de maio de 1983.
Esta contadora de estórias populares, é considerada pelo Núcleo de Pesquisa e Documentação
da Cultura Popular, da UFPB/PRAC/COEX, como uma das mais pródiga(o)s narradora(e)s de
estórias do mundo.
Só para efeitos comparativos, Luzia Tereza guardava em sua memória, 236 narrativas de
estorias populares, superando os irmãos Grimm, que juntos memorizaram aproximadamente
200 estórias.Segundo Altimar Pimentel:
Não é apenas o fenômeno da memorização que distingue Luzia Tereza, mas
o fato de concentrar no corpus constituído pelos contos por ela narrado o
202
saber, a psicologia, o modo de pensar e sentir da gente simples, iletrada, que
tem na oralidade seu meio de comunicação que, na verdade é o repositório
das tradições mais legítimas de nossa nacionalidade. Luzia Tereza não teve
propriamente o que chamamos de infância, brincadeiras, diversões, coisas
próprias da idade. Menina Rural, que com oito anos perdeu sua mãe, tendo
que criar ou cuidar dos seus irmão menores, só vindo casar-se aos vinte e
cinco anos, com um viúvo, onde viveu com este até os últimos anos de
vida.(PIMENTEL,2001.p.03)
Na memória construída pelos contadores de história paraibanos pode ser observada a
construção da identidade do grupo, pois as lembranças estão pautadas na experiência da
família, na sociedade e também por meio de uma leitura sensível da realidade. Essa leitura
aguda da vida real esta impregnada de um sentimento de empatia com as pessoas
marginalizadas. Nesse sentido, a memória histórica que permeia os contos estão contidas em
todas as publicações do NUPPO e apresenta traços que são de outras épocas,mas
que,independente dos autores e autoras ter vivenciado ou não aqueles fatos, ao tomar
conhecimento dessa realidade solidarizaram-se com as experiências dos socialmente
marginalizados e construíram suas narrativas.
Referências
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das Letras,1994.
CASCUDO, Luis da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1986. p.15 – 24; 273 – 276.
__________. Literatura oral no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1978. p. 185 –
329.
__________. Superstição no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985. p. 305
– 367.
MELO, Veríssimo de. O conto folclórico no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1976. 16p.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. Estórias do diabo. Brasília: Thesaurus, 1995. 160p.
__________. O diabo e outras entidades míticas do conto popular. Brasília: editora de
Brasília, 1969. 101p.
___________,Estórias de Luzia Teresa Vol. 2.Brasilia: Thesaurus, 2ª edição, 2001.
203
POLLAK,Michael. Memória e identidade social. In:Estudos Históricos,Rio de
Janeiro,v.5,n.10,p.200-212,1992.
NORA,Pierre. Entre memórias e histórias: a problemática dos lugares .Projeto História,
São Paulo.nº10,p.18.1993.
ARTE/EDUCAÇÃO: UM DESAFIO NA EDUCAÇÃO.
Maisa Cristina da Silva******************************
Resumo
O principal objetivo deste artigo é desmistificar a concepção de arte/educação, em
pleno século XXI, dentro de um censo comum que a estabelece como auto-expressão,
partindo do ponto de vista pedagógico de despertar o indivíduo para que este dê maior atenção
ao seu próprio processo de sentir e perceber o mundo em sua volta, ampliando, portanto, seu
modo de olhar a vida cotidiana tornando-se um cidadão fruidor e agente da cultura na qual
está inserido, haja vista que educar através da arte é dispor das argumentações que ofereçam
respeito às diferenças. A arte/educação, em plena pós-modernidade, assume novas posturas
quando nos mostra que o indivíduo deixou de ser o simples espectador da obra prima para ser
alguém que complementa a manifestação artística, ou seja, desenvolvendo a percepção e a
imaginação das apreensões nos espaços de convivência, em diferentes ambientes. A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (LDB, nº.: 9394/96), além dos Parâmetros Curriculares
Nacionais tem permitido à arte/educação, sob o regime interdisciplinar, integralizar os
diversos conhecimentos a favor da autonomia dos sujeitos, contrariando ao sentido
hierarquizante da educação.
Palavras-Chave: Arte/Educação, interdisciplinaridade.
******************************
Especialista em Arte Educação pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP
(2011), Graduada em Licenciatura em Educação Artística Habilitação Artes Plásticas pela Universidade Federal
de Pernambuco-UFPE (2009). Membro Tesoureira da Associação Nordestina de Arte/Educadores - Núcleo
Pernambuco - ANARTE-PE.
204
A arte não tem importância para o
homem somente como instrumento para
desenvolver sua criatividade, sua
percepção, etc., mas tem importância em
si mesma, como assunto, como objeto de
estudo.
Ana Mae Barbosa
Um dos desafios da arte/educação, em pleno século XXI, é desmistificar o censo
comum da concepção de arte como auto-expressão ou rigor formal e representação do natural,
para promover à compreensão do ensino de arte com função crítica e reflexiva da vida,
portanto de caráter pos-moderno.
A arte/educação deve ser uma maneira de despertar o indivíduo para que este dê maior
atenção ao seu próprio processo de sentir e perceber o mundo em sua volta ampliando seu
modo de olhar a vida cotidiana tornando-se um cidadão fruidor e agente da cultura na qual
está inserido. Educar através da arte é dispor das argumentações que ofereçam respeito às
diferenças.
Utilizar a arte na educação ―é sempre provocação da sensibilidade e da racionalidade
[...] acordando assim incessantemente os sentidos e o espírito crítico [...] esta é a arte como
possibilidade de humanização‖ (BELLO, 2001, p.15), e este espírito crítico deve conter em
qualquer ser humano e em qualquer área do conhecimento, reorganizando este ser
fragmentado que deve vir a conscientizar-se de sua função na sociedade. Desta maneira, é a
arte/educação a serviço da educação critico/reflexiva.
Na pós-modernidade, a arte/educação transpões o ensino de uma técnica e da
expressão do eu/artista. E passa a ser também a leitura de mundo do observador que, na
contemporaneidade, deixou de ser o simples espectador da obra prima e passou a ser alguém
que complementa a manifestação artística. A arte é a área de conhecimento que amplia o
universo cultural com conteúdos próprios das linguagens a serem trabalhadas, sejam elas das
artes visuais, áudiovisual, cinema, dança, literatura, música, teatro.
Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a
realidade e o meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo
205
analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que
foi analisada. (BARBOSA, 2002, p. 18)
O ensino de arte tem várias possibilidades a serem percorridas, como o fazer
artístico/poético, a apreciação ou fruição artística e a contextualização cultural, econômica,
histórica, religiosa, sociológica da arte sugeridas pela Abordagem Triangular elaborada por
Ana Mae Barbosa. Autores como Azevedo e Richter indicam alguns percursos que podem ser
percorridos na arte/educação escolar no qual deve privilegiar:
[...] tanto artistas como Picasso, Klee, Degas, quanto os nossos
modernistas, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Cícero Dias, sem
perder de vista os artistas que vêm das classes populares, como Ana
das carrancas, Vitalino, J. Borges e ainda os artistas contemporâneos,
com Nelson Leirner, Miguel Rio Branco e Leda Catunda, entre outros.
Isso para que o estudante compreenda o valor da produção artística
com a sua gama ampla de assuntos sociais na dialética da historia e
olhe sem preconceito para o que produzem artistas de diferentes
culturas. (Azevedo, 2009 p.338)
Os educadores devem criar ambientes de aprendizagem que
promovam a alfabetização cultural de seus alunos em diferentes
códigos culturais, a compreensão da existência de processos culturais
comuns às culturas, e a identificação do contexto cultural em que a
escola e a família estão imersos. (Richter 2003, p. 28).
Estas e tantas outras possibilidades da Arte/Educação promovem uma formação mais
consistente e consciente, ampliando os conhecimentos dos indivíduos e proporcionando o
desenvolvimento da percepção, da reflexão e do potencial criativo, dentro da especificidade
do pensamento visual e poético e da fruição artística.
Salientar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394, de 20
de dezembro de 1996 e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNS) de 1997 consolidam
oficialmente a arte/educação como área do conhecimento, o que ainda não é suficiente,
segundo estes documentos ―a educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento
artístico e da percepção estética, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à
experiência humana: o aluno desenvolve sua sensibilidade, percepção e imaginação, tanto ao
realizar formas artísticas quanto na ação de apreciar, conhecer e refletir sobre as formas da
206
natureza e sobre as produções artísticas individuais e coletivas de distintas culturas e épocas.‖
(PCNs/Arte, p.19)
Apesar destes documentos a Arte/Educação e do decorrer histórico do ensino de arte, a
arte/educação é muito confundida como sendo apenas interdisciplinaridade, pois escapa à
compreensão da Arte como conhecimento. Quando vemos, Por exemplo, no transito do Recife
pessoas, a serviço do Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN), utilizando de elementos
cênico/circenses para educar ou conscientizar os usuários do transito, não é arte/educação.
Neste caso utiliza-se a arte como meio, ferramenta de ensino/conscientização, a finalidade,
neste caso, é a educação/conscientização no sentido de proporcionar a fluidez do trânsito para
maior mobilidade urbana, e não consolida a arte como experiência artística, ou o acesso a
produção cultural, ou crítica reflexiva ou outra percepção cultural, não tratar em momento
algum os conteúdos de arte. Portanto não podemos considera tal artifício de
interdisciplinaridade, pois utilizasse de elementos cênicos e circenses para organiza o transito
pode ser interessante e válido, mais não se constitui como arte/educação.
Outra evidência que no imaginário coletivo não chegamos à compreensão da Arte
como área de conhecimento é ao analisar a revista Construir, que circular entre diversos
educadores como um periódico de referência pedagógica. Contudo a revista de nº62, ano 11,
destoa da função do ensino da Arte com produção de conhecimento própria da arte, em um de
seus Projetos didáticos intitulado ―NEGRITUDE‖ identificar os conteúdos curriculares
abordados no projeto, ao analisa-lo percebesse a dificuldade em compreender a Arte com
conteúdo. Nota-se nas relações dos conteúdos, dentre diversos itens: história, Arte,
Pluralidade Cultural dos quais confundem os conteúdos de Arte.
Em história consta:
Continente africano: dimensão cultural e artística.
Escravidão, abolição, abolicionistas e abolicionismo.
Danças, lendas e festas religiosas.
Algumas personalidades negras da música e da história.
Brasil: descobrimento, desenvolvimento e organização.
Em Arte consta:
Criatividade através da sucata.
Pluralidade Cultural:
207
A diversidade ética brasileira.
Linguagem.
Musica.
Vestuário
Um periódico que categorizar arte como criatividade através de sucata, evidencia que a
compreensão do ensino de arte não ultrapassou do ensino de técnicas, concepção
tradicionalista do ensino. Toda via, com uma reorganização da referida relação de conteúdos
curriculares proporcionaria uma compreensão mais adequada dos conteúdos de artes, trazendo
a concepção de ensino tradicionalista para a pós-modernidade, a sugestão reorganizada
poderia ser:
História
Continente africano:
Dimensão cultural, lendas e festas religiosas.
Escravidão, abolição, abolicionistas e abolicionismo.
Brasil; descobrimento, desenvolvimento e organização.
Arte
Música, Algumas personalidades negras da música e sua história.
Danças,
Lendas,
Vestuário,
Festas religiosas.††††††††††††††††††††††††††††††
Pluralidade Cultural:
Música,
Danças,
Lendas,
Vestuário,
Festas religiosas.
A diversidade ética brasileira.
Linguagem.
††††††††††††††††††††††††††††††
Tal conteúdo abrange a Cultura Visual inserida na disciplina de Arte.
208
É notoriamente perceptível que alguns conteúdos curriculares devem ser discutidos em
diversas disciplinas, constituindo a interdisciplinaridade.
Entendesse, portanto, interdisciplinaridade como processo que envolve a integração e
o engajamento equitativo de diversas disciplinas para olhar o mesmo objeto sob perspectivas
diferentes. Possibilitando a múltiplos conteúdos superar disciplinas como fatias. É entender
que na educação os aspectos da cultura envolvem a biologia, a alimentação, a economia, o
meio ambiente, as relações sociais, a política possam ―integrar nossos conhecimentos na
condução de nossas vidas‖. (MORIN, 2003, p.17).
Considerações Finais
Ao longo deste artigo foi analisado que a utilização da arte em instituições como a
prefeitura do Recife e a Revista Construir não ultrapassou o censo comum da concepção de
arte como auto-expressão ou rigor formal ou representação do natural, No entanto, a
arte/educação, se trabalhada com competência, desenvolve a percepção, a reflexão e o
potencial criativo, além dos conhecimentos sobre história da arte e estéticos, estando assim
referendado a sua importância na educação reflexiva e global dos indivíduos reforçando, ao
longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade, responsabilidade.
Para que a educação reflexiva ocorra é imprescindível, segundo Selma Garrido, que a
formação de professores seja de qualidade e continua configurando-se ―como uma política de
valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições
escolares, [...] em parceria com outras instituições de formação.‖ (2002, p.21).
Outro ponto importante para pensar a educação de maneira adequada é desvinculá-la
do momento em que a criança, adolescente ou adulto está no ambiente escolar. É Preciso
pensar em educação como o desenvolvimento pleno do sujeito e que acontece em todas as
redes sociais, em casa com seus parentes e familiares, nos círculos de amizade na comunidade
e nas instituições educacionais. A escola é uma pequena parte deste complexo processo, mas
é lugar que ―pode tornar o acesso á arte possível para a vasta maioria dos estudantes em nossa
nação‖. (STUART HAMPSHIRE apud BABARBOSA, 2010, p. 34)
Neste sentido a família, a escola e a comunidade são elementos indispensavelmente e
colaboradores na formação do sujeito com atitudes, ou seja, autônomo responsável e
consciente de seus direitos e deveres como participante da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
209
AZEVEDO, Fernando. A arte possibilita ao ser humano repensar suas certezas e reinventar
seu cotidiano in BARBOSA, Ana Mae. COUTINHO, Rejane (orgs.), arte/ educação como
mediação cultural e social. São Paulo: UNESP, 2009. p.338.
BARBOSA, Ana Mae (org.), Inquietações e mudanças no Ensino da Arte. São Paulo:
Cortez, 2002. p. 18.
____________ . A imagem do ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo:
Perspectiva, 2010, p. 34.
FRANGE, Lucimar Bello Pereira. Noêmia Varela e a arte. 1ª Ed. Belo Horizonte: C/ARTE,
2001. p. 15.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários á Prática Educativa.
38ªed. São Paulo: Editora paz e terra, 1996. p. 22.
____________.Extensão ou comunicação, ―O mundo hoje‖ nº 24, Rio de Janeiro: Editora
Paz e Terra, 1988. p. 28.
MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 8º Ed.
Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2003.p. 17.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCNS) de 1997. p. 19 Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro06.pdf /Acesso: 5 de agosto de 2010.
PIMENTA, Selma garrido (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente, 3º Ed. São
Paulo: Cortez editora, 2002. p. 21.
PROJETO DIDÁTICO NEGRITUDE. Revista Construir Notícias. Recife: Editora
Construir, nº62, p. 46 – 49, ano XI, Jan/fev 2012. Bimensal. ISSN 2236-3505.
RICHTER, Ivone. Interculturalidade e estética do cotidiano no ensino das artes.
Campinas, São Paulo: Mercado de letras, 2003. p. 28.
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA ARQUEOLOGIA: ABORDAGENS PRÉ-
HISTÓRICAS E HISTÓRICAS
Meyk da Silva Machado, UNICAP
Almir Amilto Alves da Silva, UNICAP
Natália Karina Almeida Silva, UNICAP
Prof.ª Dr.ª Maria do Carmo de Caldas Dias Costa, UNICAP
A) Introdução
210
O Estado de Pernambuco possui uma grande riqueza patrimonial que compreende
edificações, coleções museológicas, tradições, sítios históricos e arqueológicos, entre outros.
Embora tais patrimônios estejam perto da população, ainda existe um grande
desconhecimento por parte dos estudantes e da população em geral, o que acarreta a falta de
zelo por parte dos mesmos. (MACHADO, SILVA, COSTA, 2011). A partir dessa
constatação, a dificuldade da preservação do patrimônio cultural, histórico e arqueológico no
nosso Estado, fica nítida. A participação da população é fundamental para a conservação dos
bens patrimoniais, que aliado à intervenção do Estado teria grande êxito no trabalho de
preservação. (RAMOS, 2006).
O Laboratório e o Museu de Arqueologia da Universidade Católica de Pernambuco,
criados na década de 1980, tiveram suas origens ligadas diretamente à divulgação e
preservação do patrimônio histórico e arqueológico de Pernambuco, divulgando a pré-história
pernambucana e nordestina há mais de 20 anos. A partir de 2011, o Laboratório e o Museu de
Arqueologia passaram a desenvolver ações de divulgação do patrimônio histórico da cidade
do Recife, com a finalidade de contribuir para o conhecimento e preservação da nossa riqueza
patrimonial, principalmente pelo público estudantil que visita o Museu regularmente. Os
resultados obtidos com o desenvolvimento de tais ações têm sido bastante satisfatórios e serão
discutidos junto com a metodologia empregada para atrair um público estudantil de diferentes
faixas etárias.
B) Material e Métodos
Desde o ano de 1987 com a fundação do Museu de Arqueologia e existe por parte da
UNICAP uma preocupação com a divulgação patrimonial. Com a exposição permanente
intitulada ―Um Cemitério Indígena de 2.000 anos‖, o museu trás ao público diversos aspectos
culturais ligados a pré-história pernambucana tais como hábitos alimentares, rituais
funerários, religiosidade, uso de adornos e atividades culturais dos nossos ancestrais, a partir
da exposição do acervo arqueológico proveniente do Sítio da Furna do Estrago localizado em
Brejo da Madre de Deus, Pernambuco. (LIMA, 1985; LIMA, 2001).
A partir de pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Arqueologia visando à prática
da extensão universitária, novos métodos pedagógicos foram introduzidos no Museu, visando
atrair cada vez mais estudantes dos Ensinos Fundamental e Médio de escola públicas e
privadas do Recife e cidade vizinhas, como também atrair estudantes universitários,
professores e pesquisadores. Para tanto, a equipe do Laboratório de arqueologia, constituída
211
principalmente por alunos do curso de história da UNICAP, foi dividida, segundo temas
diversos ligados a pré-história e história, para desenvolver extensos levantamentos
bibliográficos a partir dos quais aulas temáticas foram elaboradas e passaram a ser oferecidas
antes das visitas ao Museu de Arqueologia, mediante agendamento prévio feito pelas escolas.
Estagiários e voluntários do Laboratório passaram por intenso treinamento como
finalidade de adquirirem habilidade e segurança para falar em público, bem como domínio do
conteúdo que faz parte das aulas oferecidas no Museu.
Em 2008 foi criado o portfólio de aulas do Museu de Arqueologia que se propõe a
contribuir para ampliar o conteúdo programático ministrado nos ensinos fundamental e
médio, dando aos estudantes uma visão interdisciplinar de fatos relacionados à pré-história,
abordando temas como a evolução do homem, mudanças ambientais relacionadas à extinção
da megafauna e a importância da arqueologia como área de conhecimento. Até 2011, o
portfólio de aulas abordava os seguintes temas:
Pré-História – São abordados nesta aula os conceitos de Pré-história e Arqueologia
mostrando ao aluno a importância desse período e da pesquisa arqueológica, além
de uma explanação mais aprofundada acerca do período pré-histórico
pernambucano, a partir das pesquisas arqueológicas realizadas no Sítio
Arqueológico da Furna do Estrago entre os anos de 1982 a 1994. Além desses
aspectos, os visitantes são informados acerca as linhas de pesquisa desenvolvidas
no Laboratório de Arqueologia da UNICAP;
Escavação Arqueológica – Nesta aula o aluno se familiariza com o trabalho do
arqueólogo e conhece as etapas envolvidas nas pesquisas arqueológicas, desde o
projeto a ser submetido a aprovação antes da realização de uma escavação, até a
análise e publicação dos resultados da pesquisa. São apresentados também os
diversos métodos de datação dos objetos arqueológicos resgatados em uma
escavação, bem como o cuidado, conservação e guarda dos mesmos;
Pintura Rupestre – Nesta aula os alunos são apresentados aos diversos tipos de
sítios arqueológicos com ênfase aqueles de pinturas rupestres. São trabalhados os
conceitos de grafismos, pinturas, e gravuras; as tradições tanto de pinturas: agreste
e nordeste, e das gravuras Itaquatiara. Por fim é aberta uma discussão acerca da
necessidade da preservação dos sítios de registro rupestre e demais sítios
arqueológicos;
212
Megafauna do Pleistoceno – Nesta aula são abordados aspectos relacionados todos
os movimentos executados pela terra que repercutem nas ações geológicas e
temporais influenciando diretamente no clima e no ambiente terrestre global. São
apresentados os principais representantes da megafauna do pleistoceno que
viveram no Brasil e em Pernambuco e as principais adaptações sofridas pelos seus
descendentes atuais. (COSTA, OLIVEIRA, 2010);
A Importância da Cerâmica – Nesta aula é destacado o conceito de cerâmica e as
técnicas de fabricação desse material. A importância da cerâmica é destacada
como registro histórico de várias civilizações do mundo em lugares como Brasil,
Egito, China, Japão com suas indústrias de cerâmica bastante peculiar;
Evolução do Homem – A aula retrata o processo de evolução ocorrido desde os
primeiros hominídeos até o Homo sapiens sapiens atual. São apresentadas as
principais mudanças morfológicas ocorridas no cérebro, crânio, postura e
modificações comportamentais que caracterizaram o homem moderno. O papel do
arqueólogo no resgate dos registros pré-históricos é destacado e a importância
desses registros para o nosso conhecimento atual a cerca da nossa origem. No final
há uma discussão acerca dos paradigmas da evolução, abrindo espaço para o aluno
participante expressar sua opinião quanto a esses fatos.
A partir de 2010, o Laboratório de Arqueologia passou a investir nas pesquisas
bibliográficas sobre os fatos históricos mais significativos para o Recife, visando um intenso
programa de educação patrimonial voltado para valorização do patrimônio cultural recifense.
Foram levantadas bibliografias e documentações de fatos históricos que estão representados
na forma de patrimônios tombados, porém, muitos deles, desconhecidos da comunidade
estudantil e da população em geral. Além de levantamentos bibliográficos foram realizadas
visitas a diversos bens tombados na cidade . Para maior familiarização com o tema foram
realizadas visitas ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), onde dados
coletados foram utilizados nas ilustrações das aulas criadas. (MACHADO, SILVA, COSTA,
2011). Ao fim da pesquisa que durou cerca de seis meses, foram elaborados oito módulos nos
quais o tema central ―Patrimônio Cultural do Recife‖ foi subdividido.
O primeiro módulo que trata do ―Conceito e Caracterização de Patrimônio Cultural‖,
faz uma abordagem introdutória que visa dar ao público uma visão mais aprofundada da
conceituação do patrimônio cultural, assim como dos aspectos legais relacionados a defesa
213
patrimonial, dos diferentes tipos de patrimônio e dos processo de tombamento de patrimônios
materiais , imateriais e vivos. São apresentadas nesta aula, as instituições que possuem o papel
de zelar pela proteção patrimonial nas mais diferentes instâncias e o dever do cidadão quanto
à proteção do patrimônio situado em sua cidade. O objetivo central dessa primeira aula é
despertar o senso de dever e apreço do público no que diz respeito a preservação patrimonial.
Nesta aula, todas as ilustrações e exemplos são de patrimônio da cidade do Recife, permitindo
uma maior clareza e familiarização por parte do alunado (MACHADO, SILVA, COSTA,
2011; RAMOS, 2006).
No segundo módulo, ―Patrimônios Administrativos e Comerciais do Recife‖ são
abordados aspectos curiosos relativos à história das edificações hoje utilizadas com
finalidades administrativas e comerciais, mas que são tombados pelo Patrimônio histórico,
por representarem parte do registro da história do Recife. Para elaboração desta aula foram
visitados edifícios como o Paço Alfandega, a Assembléia Legislativa, o Palácio do Campo
das Princesas, o Mercado de São José, etc. As visitas aos locais associada as pesquisas
bibliográficas em sites de Institutos de Defesa Patrimonial, contribuíram para a coleta de
dados utilizados na formulação das aulas. Para cada edificação informações importante como,
endereço, data de fundação, características da construção e arquitetura e formas de utilização
no passado e na atualidade formando um verdadeiro roteiro turístico que visa despertar o
desejo do público de conhecer mais de perto o bem tombado (MACHADO, SILVA, COSTA,
2011).
O terceiro módulo, intitulado ―Patrimônios Artísticos e Culturais do Recife‖, trata da
história dos edifícios relacionados com atividades artísticas e culturais que foram tombados
em esfera nacional e estadual. São exemplos desse patrimônio o Teatro de Santa Isabel, o
Palácio da Soledade, a Faculdade de Direito do Recife (hoje vinculada a UFPE) o Espaço
Pasárgada (Antiga Casa de Manuel Bandeira), a Casa da Cultura (Antiga Casa de Detenção do
Recife), entre muitas outras edificações. Nesta aula, o especial enfoque é dado a arquitetura e
valor cultural para nossa cidade. Mapas indicando as localizações, informações acerca da sua
origem, fundação, história, e utilização atual, também são fornecidos (MACHADO, SILVA,
COSTA, 2011).
O quarto módulo trata das edificações religiosas situadas no Recife. Intitulada
―Patrimônios Religiosos do Recife‖, a aula é composta na maior parte de igrejas católicas,
devido ao período colonial, mas contém também templos de outras matrizes religiosas
importante para nossa história. O objetivo dessa aula é mostrar a importância dos templos
religiosos desde sua construção, contribuindo para o aumento da população nos bairros onde
214
são inseridos, assim como o sincretismo religioso presente na nossa sociedade. Importantes
templos como a Sinagoga Kahal Zur Israel, o Terreiro Obá Ogunté (Sítio de Pai Adão),
Igrejas como a de São Pedro dos Clérigos, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, Capelas como a de Nossa Senhora da Conceição das Barreiras
(Capela da Jaqueira) e a Capela Dourada, fazem parte das ilustrações utilizadas neste módulo
(MACHADO, SILVA, COSTA, 2011).
No quinto módulo, são abordadas as edificações construídas para fins militares e tem
por tema, ―Patrimônios Militares do Recife‖. Na aula são mostrados ilustrações, mapas de
localização e informações históricas desses edifícios, fazendo uma interligação entre o
contexto histórico do Recife na época da sua fundação como a a forma como essas edificações
são atualmente utilizadas. Faz parte das ilustrações o Forte de São João Batista do Brum (hoje
Museu Militar do Forte do Brum), o Forte de São Tiago das Cinco Pontas (hoje Museu da
Cidade do Recife), a Torre Malakoff, entre outros edifícios (MACHADO, SILVA, COSTA,
2011).
Igualmente importantes para o crescimento da nossa ―Veneza Brasileira‖, as pontes
históricas da nossa cidade são estudadas nos mais ricos detalhes a partir das informações
pesquisadas em diversas fontes bibliográficas. Neste módulo, apresentamos ao público as
principais pontes históricas do Recife, assim como a história das pontes que antecederam a
edificação atual. São apresentadas, por exemplo, a história da Ponte Maurício de Nassau,
Ponte da Boa Vista, Ponte 22 de Setembro (Antiga Ponte Giratória) e da Ponte Duarte
Coelho. O módulo intitulado ―História das Pontes do Recife‖ enfoca além da história a
localização e curiosidades a cerca das mesmas (MACHADO, SILVA, COSTA, 2011).
Além do patrimônio material foi dada uma especial atenção ao patrimônio imaterial da
nossa cidade. Neste módulo intitulado ―Patrimônios Imateriais do Recife‖, são enfocados
expressões, conhecimentos, tradições, assim como o material a eles associados que são de
especial importância para a cultura popular. (FUNDARPE, 2009). Durante a explanação do
conteúdo, é levado ao público a história de alguns dos representantes do nosso patrimônio
imaterial tais como, o Frevo, o Bloco Carnavalesco Galo da Madrugada e o Bloco da Saudade
e a natureza intangível assegurada pelo Registro de Bens de Natureza Patrimonial Cultural
Brasileira, instituída através do Decreto 3.551 de 4 de agosto de 2000 (MACHADO, SILVA,
COSTA, 2011).
No oitavo e último módulo ―Patrimônios Vivos do Recife‖ é abordado a Lei do
Patrimônio Vivo – Nº 12.196 de 2002, regulamentada pelo Decreto Nº 27.503 de 2004, que
qualifica como Patrimônios Vivos artistas e agremiação divulgam, preservam e repassam as
215
novas gerações conhecimentos e costumes representativos da cultura pernambucana
(FUNDARPE, 2009). Entre artistas e agremiações que ilustram este módulo, destacamos o
Maestro Duda, o Maracatu Misto Leão Coroado e o Cabloquinhos Sete Flexas, que são peças-
chave para nossa representação cultural (MACHADO, SILVA, COSTA, 2011).
A avaliação da estratégia pedagógica utilizada nas aulas oferecidas pelo Museu de
Arqueologia da UNICAP é feita através de questionários respondidos por alunos e professores
que delas participam. Os seguintes parâmetros são avaliados: satisfação das expectativas a
cerca do conteúdo, duração das apresentações, adequação do conteúdo ao público, adequação
da linguagem, clareza nas apresentações, etc.
Durante a visita guiada ao Museu é feita uma contextualização da pré-história
pernambucana para relacionar a teoria trabalhada nas aulas ao acervo exposto no Museu.
Além das aulas temáticas, faz parte das atividades pedagógicas desenvolvidas pela
equipe do Laboratório, os projetos ―Arqueologia para Crianças‖, que tem por objetivo mostrar
o universo da pesquisa arqueológica em um minicurso onde são desenvolvidas oficinas de
escavação, cerâmica, pintura rupestre, megafauna e adornos (COSTA, MEDEIROS,
OLIVEIRA E, OLIVEIRA W, 2010) e ―Arqueologia em Foco‖, onde são convidados
pesquisadores para promoverem palestras sobre temas ligados a Arqueologia e de interesse
aos estudantes dos cursos superiores da UNICAP.
Também em 2010 entrou em prática o projeto intitulado ―Educação e Práticas
Pedagógicas na Arqueologia‖, com apoio financeiro do CNPq, que visava intensificar ainda
mais tais ações de divulgação do patrimônio pré-histórico e histórico. Durante a vigência do
projeto têm intensificadas as ações que favorecessem o gerenciamento da visitação ao museu,
com a criação de um sistema de agendamento de visitas online que facilitou a organização
das equipes que promovem o atendimento, bem como gera dados quantitativos e qualitativos
que permite a permanente quantificação do número de visitantes e a verificação do grau de
satisfação durante as visitas (SILVA, COSTA, 2011).
C) Resultados e Discussão
Os resultados do incremento de atividades pedagógicas no Museu de Arqueologia da
UNICAP promoveu de 2008 a 2012 uma elevação da média anual de visitantes que era da
ordem de 700 visitantes/ano, até 2008, passou a 1300 visitantes/ano até o final de 2009 e
216
subiu para 2000 visitantes/ano até o final de 2011. Esta média deverá ser mais uma vez
aumentada já que de fevereiro a maio deste ano, foram promovidos atendimentos a 1390
estudantes.
A temática das aulas oferecidas antes das vistas ao Museu e os recursos didáticos
utilizados pela equipe do Laboratório, sem dúvida contribuíram significativamente o aumento
gradativo no número de visitantes que em sua maioria retornam novamente ao museu.
Segundo dados do Sistema de Gerenciamento de visitas do Museu de Arqueologia, 51% do
público visitante estão retornando ao museu pela terceira ou mais vezes; 12% estão voltando
pela segunda vez e 37% estão visitando o museu pela primeira vez.
Além do aumento quantitativo das visitas, foi verificado através as avaliações
realizadas, um grande índice de satisfação com o atendimento no museu e com as aulas
oferecidas.
A análise qualitativa das aulas oferecidas a partir das avaliações promovidas pelos
estudantes, mostraram os seguintes resultados: 75% dos alunos responderam que o conteúdo
abordado satisfez totalmente as expectativas; 98% dos alunos consideraram os recursos
didáticos utilizados satisfatórios; 72% considerou a duração das aulas ideal; 97% dos
considerou a linguagem utilizada nas aulas compreensível e adequada; e 55% dos alunos
acharam excelente a abordagem do tema pelo monitor. Quando perguntados sobre o espaço
físico onde as aulas são oferecidas, 57% dos visitantes consideraram excelente, 42%
consideraram o espaço físico bom e 4% consideraram o espaço físico razoável. Quando
questionados sobre a intenção de indicar as aulas para outros colegas, 93% dos estudantes
disseram que pretendem indicar.
Entre os comentários dos estudantes a cerca das aulas, mereceram destaque as
seguintes : ―Adorei a aula, achei interessante! E vou indicar a meus amigos! Obrigado pela
excelente aula! Vou voltar quando possível!‖ (comentário sobre a aula de Escavação
Arqueológica);―Foi muito boa a aula, gostei muito, é muito legal aprender isso (comentário
acerca da aula de Conceito e Caracterização de Patrimônio Cultural); ―A aula foi boa para
compreensão da espécie e evolução humana, saber a maneira de vida e como os ancestrais
viviam, a evolução e adaptação ao meio do homem‖ (comentário acerca da aula de Evolução
do Homem); ―Adorei a aula, os professores e monitores são excelentes e mostraram com
clareza‖ (comentário acerca da aula de Conceito e Caracterização de Patrimônio Cultural),
―Os patrimônios religiosos do Recife são de grande importância da população‖ (comentário
acerca da aula de Patrimônios Religiosos do Recife.
217
Estes comentários têm contribuído como estímulo para a equipe de voluntários e
estagiários que prestam o atendimento, e neste sentido verifica-se um aumento do
comprometimento com o Laboratório, com as pesquisas e com a dedicação aos treinamentos.
Além disso, verificou-se o incremento do número de voluntários no Laboratório e Museu de
Arqueologia, aumento este atribuindo a indicação do valor do trabalho feito no Museu por
parte dos voluntários a seus colegas de curso.
Considerando grande importância da participação da população na defesa patrimonial
em nossa sociedade (BORBA, 1998; RAMOS, 2006), podemos admitir que o trabalho
desenvolvido no Museu de Arqueologia da UNICAP, tem sido fundamental para
conscientização da população, especialmente da comunidade estudantil, para que exerçam um
papel ativo na preservação da nossa memória e identidade representada pelo nosso patrimônio
cultural.
Esperamos com a continuidade das atividades desenvolvidas pelo nosso Museu,
estabelecer nos nossos jovens mudanças comportamentais em relação à valorização da nossa
história e de nossos patrimônios culturais, bem como torná-los multiplicadores dos
conhecimentos e apelo à conscientização aqui promovidos.
D) Agradecimentos
Agradecimento ao CNPq/FACEPE pelo apoio financeiro as atividades desenvolvidas
pelo Laboratório e Museu de Arqueologia da UNICAP. A Universidade Católica na pessoa do
seu corpo administrativo que incentiva as iniciativas da coordenação do Laboratório de
arqueologia; Aos estagiários e voluntários do Laboratório de Arqueologia, pelo compromisso
e desempenho durante os atendimentos prestados; e por fim a aos professores e alunos que
nos visitam, pelos depoimentos favoráveis ao nosso trabalho que nos incentiva e promove.
E) Referências
BORBA, Fernando de Barros. Pernambuco: Patrimônio Cultural de Todos. Recife:
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 1998.
COSTA, Maria do Carmo de Caldas Dias; MEDEIROS, Pedro Castellan; OLIVEIRA,
Evandro Santos; OLIVEIRA, Wagner Pereira. Arqueologia Para Crianças: Uma Proposta
Pedagógica Para Divulgação da Arqueologia. In: VI Workshop Arqueológico e I Ciclo
Internacional de Simpósios Temáticos do Museu de Arqueologia de Xingó - Arqueologia:
Integração, Conhecimento e Tecnologia, MAX, 2010.
218
COSTA, Maria do Carmo de Caldas Dias; Wagner Pereira. Práticas Pedagógicas Na
Arqueologia: Conhecendo a Megafauna. In: VI Workshop Arqueológico e I Ciclo
Internacional de Simpósios Temáticos do Museu de Arqueologia de Xingó - Arqueologia:
Integração, Conhecimento e Tecnologia, MAX, 2010.
FUNDARPE. Patrimônios de Pernambuco: Materiais e Imateriais. Recife: Fundação do
Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 2009.
MACHADO, Meyk da Silva; SILVA, Natália Karina Almeida; COSTA, Maria do Carmo de
Caldas Dias. Educação Patrimonial: Cultura e Cidadania. In: Anais do V Colóquio de
Historia da UNICAP- Perspectivas Históricas: Historiografia, Patrimônio e Pesquisa. Recife:
UNICAP, 2011.
LIMA, Jeannette Maria Dias. Arqueologia da Furna do Estrago, Brejo da Madre de Deus,
Pernambuco, Brasil. (Dissertação de Mestrado – Antropologia Cultural). Universidade
Federal de Pernambuco. Recife, 1985.
LIMA, Jeannette Maria Dias. El sitio arqueológico Furna do Estrago, Brasil. Em une
perspectiva antropológica y social. 168 f. (Manuscrito de Tesis - Antropologia Cultural).
Universidad Nacional Autônoma de México. Ciudad deMéxico, 2001.168p.
SILVA, Almir Amilto Alves; COSTA, Maria do Carmo de Caldas Dias. Gerenciamento do
agendamento e da qualidade do atendimento promovido pelo Museu de Arqueologia da
UNICAP. In: Anais do V Colóquio de Historiada UNICAP- Perspectivas Históricas:
Historiografia, Patrimônio e Pesquisa. Recife: UNICAP, 2011.
RAMOS, Ana Catarina Torres. Posturas e Práticas de Preservação: O confronto entre
modelos participativos e centralizados na manutenção dos bens culturais em Pernambuco
(1978 - 2006). 314 f. (Tese de Doutorado - Arqueologia) Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2001.
POR UMA ARQUEOLOGIA DAS MÍDIAS: DIGITALIZANDO EM 3D O ACERVO
CERÂMICO DO MUSEU DE ARQUEOLOGIA DE XINGÓ
Raquel de Andrade Dantas Figueirôa*
219
Orientadora: Janaina Cardoso de Melo**
1- INTRODUÇÃO
Os últimos anos que a sociedade vem passando estão sendo marcados por mudanças
significativas e grandes evoluções tecnológicas. As mudanças no campo das ciências, da
medicina e, principalmente, da informática, são frequentes. A sociedade já viveu vários tipos
de revolução: a industrial, das telecomunicações e, atualmente, a revolução da informação.
Vivemos na era da informação, na qual a rede mundial de computadores será à base de
recepção e transmissão de dados. Os meios de comunicação permitem a comunicação entre as
pessoas contribuindo para o processo de transmissão de informações. Ao longo da história, o
homem sempre desenvolveu formas para se comunicar: sinais, desenhos, cartas. Com o
desenvolvimento tecnológico, os meios de comunicação foram se tornando mais eficazes. O
telégrafo, aparelho utilizado para a transmissão de mensagens gráficas a partir de códigos,
inventado em 1835‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
, revolucionou a forma de se comunicar à
distância, sendo considerado um dos primeiros sistemas modernos de comunicação.
PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia das Mídias. Modelagem Tridimensional. Cerâmicas.
Patrimônio Digital.
Em seguida, outros meios de comunicação foram inventados, com destaque para o
telefone, rádio, televisão, celular e internet. Todos eles são bastante utilizados em várias
partes do mundo, proporcionando o diálogo e a troca de informações entre pessoas de
diferentes pontos do planeta.
* Mestranda em Arqueologia (PROARQ - UFS). Graduada em Jornalismo (UNIT/2002), Pós-graduada em
Comunicação Digital (FANESE/2005) e estudante de Museologia (UFS). E-mail: r.jor@hotmail.com
** Professora Doutora do curso de Museologia da UFS, graduada em história (UERJ/1997), Mestre em Memória
Social e Documentos (UNIRIO/2001), Doutora em História Social (UNIRIO/2009). E-mail:
janainamello@uol.com.br ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
A telegrafia foi inventada por Samuel Finley Breese Morse, nascido em 27 de abril de
1791, em Charlestown, Massachusetts, Estados Unidos. Estudou no Yale College, onde se interessou por
eletricidade. Em 1832, durante uma viagem de navio, participou de uma conversa sobre o eletroímã, dispositivo
ainda pouco conhecido. Em 1835 construiu finalmente seu primeiro protótipo funcional de um telégrafo,
pesquisando-o até 1837, quando finalmente passou a dedicar-se inteiramente ao seu invento. Em meados de 1838
finalmente estava com um código de sinais realmente funcional chamado Código Morse. Disponível em:. <
http://pt.wikipedia.org/wiki/Telegrafia>. Acesso em: 26 mar. 2012.
220
Cada vez mais a sociedade se insere nesse novo contexto web, por isso a necessidade
do profissional da arqueologia acompanhar esse crescimento, procurando adaptar-se às novas
demandas que crescem gradativamente em todo o mundo.
Para Wilson Dizard Jr, essas novas mídias§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
, sem dúvida,
vieram agregar valores e culturas antes intransponíveis. Mas como foi dito anteriormente,
vivemos hoje em uma nova fase: a digital. A era digital já marca o surgimento da nova mídia.
Nela há uma transição de produção, armazenamento, distribuição de informação e
entretenimento estruturados em computadores.
Desta forma, a Arqueologia das Mídias através da digitalização em 3D propõe ações
que visam divulgar e compartilhar o conhecimento arqueológico com crianças, adultos,
professores e diversos públicos específicos. Portanto, é a reflexão sobre como as pesquisas
arqueológicas, realizadas dentro das academias ou mesmo pelas empresas de Arqueologia,
relacionam-se com a sociedade através dos principais meios de comunicação.
Para Erick Felinto de Oliveira*, a Arqueologia das Mídias nasce do encontro do pós-
estruturalismo francês com a contribuição alemã de certas formas de abordagem históricas e
filosóficas. Sua importância para os estudos de mídia, na atualidade tem a ver com a
necessidade de olharmos mais para o passado, de modo a entender melhor o presente. A
arqueologia da Mídia é algo bastante novo (ainda que o termo em si já possua alguma
história), e apenas agora começa a popularizar-se e conquistar um estatuto mais definido.
Ainda de acordo com o autor ela dialoga com certos aspectos importantes de
abordagens características da teoria pós-moderna, como o materialismo cultural, as teorias de
gênero, a análise do discurso, os estudos pós-coloniais, noções de temporalidade não linear
etc. O que ela faz essencialmente é vasculhar os arquivos textuais, visuais e auditivos das
mídias (de todas as mídias, analógicas ou digitais), enfatizando as manifestações discursivas e
materiais da cultura. Pode-se dizer que tem traços e uma história de desenvolvimento com
fortes acentos germânicos – ainda que esteja rapidamente se popularizando também em outros
§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§§
Para Dizard Jr., a mídia clássica se resume em duas fases. A primeira se inicia com a
impressora de Gutenberg. A segunda se dá com o advento do rádio, TV, jornal impresso e os serviços de
telefonia. Posteriormente, surgem os aparelhos de fax, o vídeo VHS, o cinema e o computador, também
pertencentes à segunda etapa. A terceira fase da história da comunicação já marca o surgimento da nova mídia.
Nela há uma transição de produção, armazenagem, distribuição de informação e entretenimento estruturados em
computadores. * Erick Felinto de Oliveira é doutor em Literatura Comparada pela UERJ/UCLA e tem pós-doutorado em
Comunicação pela Universität der Künste, Berlim.
221
ambientes intelectuais. Isso porque muitos teóricos alemães da mídia, como Friedrich Kittler,
Siegfried Zielinski e Wolfgang Ernst demonstram o mesmo interesse pelas abordagens
históricas, pela relação com a obra de Foucault, pelo fascínio com as ideias de registro e
arquivo, pelo foco na questão das materialidades da comunicação.
Funari (2007), em Arqueologia e Patrimônio, afirma que há uma falta de
comunicação ou interação entre o mundo acadêmico, em particular a comunidade
arqueológica, e o povo. Os arqueólogos deveriam agir com a comunidade, disponibilizando ao
povo uma melhor compreensão do passado e do mundo. O autor coloca que informação,
criação de consciência, ação no mundo, transformação, são as metas da preservação.
Este artigo pretende traçar perspectivas de salvaguarda do acervo cerâmico do Museu
de Arqueologia de Xingó (MAX) que corresponde a um total de 43 vasilhas dos Sítios Justino
e São José 1 e 2, porém sob uma perspectiva digital, com registros em 3D†, digitalizando os
objetos, por meio de imagens fixas e em movimento, disponibilizando-as em um ambiente
virtual que permitirá aos visitantes, descobrir um novo olhar, através da internet. É o uso das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC‘s) no caminho de uma Arqueologia das
Mídias eficaz e eficiente, sendo possível guardar, preservar e divulgar esses bens culturais de
forma que produzam informação e conhecimento, de valor mais permanente para o
conhecimento das atuais e futuras gerações.
O presente estudo tem como objetivo identificar as possibilidades de aplicação da
digitalização em 3D do acervo arqueológico do MAX, permitindo a inclusão de novas
ferramentas tecnológicas de informação e comunicação como suporte à visitação do
público. Como consequência, os objetivos específicos deste trabalho são:
1 - Pesquisar a utilização da tecnologia 3D no campo arqueológico;
2 - Preservar os achados arqueológicos por meio da tecnologia 3D, criando
alternativas que garantam informação acessível às gerações atuais e futuras.
3 - Criar, desenvolver e gerenciar de forma coletiva e compartilhada, um banco de
dados do acervo digitalizado em 3D do acervo arqueológico do MAX.
† Técnica que consiste em obter imagens do mundo real sobre sua forma e possivelmente sua cor. Esses dados serão transformados em uma
imagem digital, possibilitando um estudo mais detalhado da peça. São imagens que simulam o realismo e podem ser obtidas a partir de um
scanner de mão, aparelhos de tomografia computadorizada ou por imagens em 2D (fotografias) convertidas por um software para 3D.
222
1.1 HISTÓRICO DO MAX
O Museu de Arqueologia de Xingó (MAX) fica localizado em Canindé de São
Francisco, município sergipano distante a 203 km de Aracaju, espaço mantido pela
Universidade Federal de Sergipe (UFS), em parceria com a Petrobras e apoio da Lei de
Incentivo à Cultura e da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF). Fundado em
2000, surgiu como uma estratégia para permitir a manutenção da pesquisa e preservação do
patrimônio arqueológico do Baixo São Francisco, resultante do salvamento arqueológico
realizado pela UFS de 1988 a 1997. Além de guardar, preservar e divulgar bens culturais,
apresenta-se como um dos caminhos mais profícuos de divulgação das produções acadêmicas.
Seu acervo arqueológico reúne aproximadamente 55 mil peças‡: esqueletos humanos,
utensílios e registros gráficos, referentes aos aspectos da cultura do homem que, como
revelaram as pesquisas, já se encontrava na região há pelo menos 9 mil anos. O MAX também
abriga em sua estrutura um dos maiores acervos cerâmicos associados a ritos funerários do
Nordeste, correspondente aos Sítios Arqueológicos do Justino§ e São José 1 e 2
**, totalizando
43 vasilhas.
Dos 34 sítios da região que tem como característica a cerâmica, o sítio Justino se
destaca pela abundância do material. Foram recuperados 14.743 fragmentos††
, 7 vasilhames
foram encontrados inteiros e 23 foram recompostos, todos associados ao contexto fúnebre. Já
no Sítio São José 1 e 2 foram encontrados 566 fragmentos‡‡
cerâmicos. Apesar de não poder
reconstituir todas as vasilhas, no sítio São José 1 havia, pelo menos, 36 vasilhas cerâmicas,
das quais apenas 10 conseguiram-se recompor graficamente. No sítio São José 2 apenas 3
puderam ser reconstituídas. Na figura 1, apresentam-se algumas das cerâmicas expostas no
MAX para visitação pública.
‡ Para mais informações conferir: CARVALHO, Admilson Freire de. Uma nova abordagem da Pré-História
no ensino fundamental: a área Arqueológica de Xingó. Revista do Museu de Arqueologia de Xingó, 2005. § O Sítio Justino localizado na fazenda Cabeça do Nego, no município de Canindé do São Francisco (SE), teve a
formação do seu substrato geológico, como resultado da acumulação de 6,40 m de sedimentos depositados sobre
a planície pré-cambriana, através do transporte fluvial e coluvial, fato este devido à sua posição na confluência
do rio São Francisco e do riacho Curituba. Disponível em:. <http://www.max.org.br/biblioteca/Revista/Caninde-
02/P251-274EstruturasFunerarias.pdf >. Acesso em: 08 nov. 2011. **
Os sítios São José I e II estão localizados na Fazenda São José, no município de Delmiro Gouveia (AL), em
um terraço elevado às margens do rio São Francisco. ††
DANTAS, Vladimir; LIMA, Tania Andrade. Pausa para um Banquete: análise de marcas de uso em
vasilhames cerâmicos pré-históricos do sítio Justino, Canindé do São Francisco, Sergipe. Museu de Aqueologia
de Xingó, 2006. ‡‡
LUNA, Suely; NASCIMENTO, Ana. Estudo da Cerâmica Arqueológica dos Sítios São José e 1 e 2
(Delmiro Gouveia – AL) . Editora: Triunfo, Museu de Arqueologia de Xingó, 2010.
223
2 – MATERIAL E MÉTODOS
Nortear a análise da inclusão do acervo arqueológico do Museu do Homem
Sergipano, através das Tecnologias de Informação e Comunicação, em um ambiente virtual
na internet, por meio se um software livre, contribuindo assim, para o conhecimento de uma
educação patrimonial da humanidade de hoje e das futuras gerações. Este trabalho foi
realizada por meio de artigos, livros especializados, dissertações de mestrado e materiais
disponíveis na própria internet. A pesquisa, ainda em desenvolvimento, apresentará
características qualitativas, optando-se pelo estudo de caso, categoria de pesquisa que tem por
objetivo uma unidade que se quer analisar profundamente. Nesse caso, a unidade aqui se
refere apenas ao Museu de Arqueologia de Xingó (MAX). Triviños busca os conceitos de
Bogdan: ―o interesse do pesquisador recai sobre a vida de uma instituição. A unidade pode ser
uma escola, uma universidade, um clube etc‖ (TRIVIÑOS, 1990, p. 45).
O estudo de casos histórico-organizacionais toma a unidade escolhida como foco do
interesse, partindo-se, então, do conhecimento existente sobre a organização que se pretende
pesquisar. Assim, os documentos institucionais, como o arquivo do MAX, a própria sede e a
entrevista com o responsável pelo acervo arqueológico serão tomados como ponto de partida
e essencial para as definições sobre os encaminhamentos do presente trabalho. Para isso, serão
utilizadas duas fases como método de estudo: uma em que apresentaremos dados históricos da
internet no mundo e no Brasil, através de pesquisas bibliográficas; da importância em se
digitalizar acervos arqueológicos; a segunda, na qual os dados do Estudo de Caso vão ser
tratados quantitativa e qualitativamente para cumprir os objetivos propostos.
Faz parte do projeto metodológico deste estudo, a consulta constante de autores que
trabalham com tema pesquisado, como: Levi, Funari, Siegfried Zielinski, Trigger e Davi
Chermann. O trabalho fará análises com outras propostas que já existem, a exemplo do Museu
Nacional de Arqueologia, onde o cibernauta faz visitas virtuais, a qualquer momento, sem
precisar sair do local onde está, contando apenas com a ajuda da tecnologia.
2.3 NOVAS TECNOLOGIAS APLICADAS À ARQUEOLOGIA
224
No fluxo de trabalho de uma pesquisa arqueológica o pesquisador é em muitos níveis
confrontado com a tarefa de gravar o que está investigando, já que uma documentação
completa para análise e interpretação são pré-requisitos básicos de um estudo. A técnica a ser
utilizada depende do grau de conhecimento e de recursos disponíveis, mas em geral traz uma
série de vantagens. Desde a integridade do objeto a ser estudado até a ampliação do estudo do
trabalho de campo. A obra Memória do Futuro retrata a importância do registro arqueológico
sob a perspectiva digital, com o objetivo de caracterizar algumas possibilidades que essa
interação oferece, principalmente quanto a uma possível mudança de paradigma na pesquisa
arqueológica. Na perspectiva digital, a Arqueologia, além de estudar o passado humano, teria
condições de estudar também a relação entre espaço e tempo humano, o que permitiria a
análise do presente e do futuro. O autor ressalta a importância dos registros arqueológicos
digitais:
Os registros, inscritos nos bancos de dados, advindos da digitalização
das informações analógicas (papel, iconografia, relatos orais, vídeos,
etc.) passam a ter uma dinâmica diferente com as novas e inúmeras
possibilidades de se estocar toda a informação disponível de forma
ativa e não mais estática. Esses registros digitais permitem
cruzamentos, simulações e criação de modelos, que podem ser
constantemente avaliados e interpretados, em confronto com a
realidade, como também possibilitam a inclusão de novos
conhecimentos, oriundos dessas simulações e cruzamentos
(CHERMANN, 2008:36).
2.3.1 PROTOTIPAGEM RÁPIDA
A Prototipagem Rápida é uma tecnologia que permite fabricar objetos físicos
tridimensionais§§
a partir de arquivos digitais criados em sistema CAD***
. A técnica oferece
muitas vantagens para a pesquisa. O uso dessa tecnologia evita o manuseio das peças,
§§ §§
Técnica que consiste em obter imagens do mundo real sobre sua forma e possivelmente sua cor. Esses
dados serão transformados em uma imagem digital, possibilitando um estudo mais detalhado da peça. São
imagens que simulam o realismo e podem ser obtidas a partir de um scanner de mão, aparelhos de tomografia
computadorizada ou por imagens em 2D (fotografias) convertidas por um software para 3D.
***
Computer Aided Design é uma sigla em inglês que significa Desenho Auxiliado por Computador. É o nome
genérico de sistemas computacionais utilizados pela engenharia, geologia, geografia, arquitetura, e design para
facilitar o projeto e desenho técnicos. Disponível em:. http://pt.wikipedia.org/wiki/CAD. Acesso em: 04 set.
2011.
225
contribuindo para a conservação do acervo, possibilitando ao visitante, conhecer a fundo o
material pesquisado, permitindo o acesso às informações e detalhes da estrutura das peças que
dificilmente seriam encontrados a olho nu. Além de ser uma importante ferramenta para a
reconstituição da história, a técnica permite que as réplicas sejam utilizadas para o
intercâmbio entre os centros de pesquisa.
Uma das formas de obtenção de dados para Prototipagem Rápida é através do
Scanner 3D Handyscan (ver figura 2). O Scanner 3D é um dispositivo que analisa um objeto
do mundo real ou ambiente para coletar dados sobre sua forma e, possivelmente, a sua
aparência (cor, por exemplo). Os dados recolhidos podem depois ser usados para construir
digitalmente, modelos tridimensionais (ver figura 3 e 4) e a posteriori poderão também ser
feitas réplicas do modelo original.
As limitações orçamentárias em muitas pesquisas se tornam muitas vezes uma
problemática no desenvolvimento e execução dos estudos arqueológicos. O Scanner 3D, por
ser um equipamento importado, ainda não é tão acessível à maior parte dos pesquisadores.
Para facilitar e otimizar os custos na construção de imagens tridimensionais, foram
desenvolvidos em 2011, ainda no processo de popularização do 3D, softwares (figuras 5 e 6)
que permitem a elaboração de modelos tridimensionais a partir do uso de uma câmera digital.
O programa consiste num sistema de aquisição de um novo modelo, que gera uma imagem
3D, de acordo como a sequência de entrada como está sendo coletada. Modelos são
produzidos rapidamente numa estrutura de estimativa de movimento. Logo após a obtenção
de imagens ou vídeos o software encarrega-se de produzir um modelo 3D em 360° nos
formatos em Flash, gift ou HTML para que os mesmos possam dessa forma, serem publicados
a posteriori, em um banco de dados na internet.
3 – RESULTADOS E DISCUSSÃO
A cada dia a internet vem evoluindo novas funções e usos, acrescentados aos
mecanismos de busca, utilizados como fontes de informação, entretenimento, serviços,
educação e comunicação entre as pessoas. Na perspectiva digital, a Arqueologia das Mídias,
além de estudar o passado humano, teria condições de estudar também a relação entre espaço
e tempo humano, o que permitiria a análise do presente e do futuro, por meio de um clique.
Segundo Castells,
226
A Internet tem tido um índice de penetração mais veloz que qualquer
outro meio de comunicação na história: nos Estados Unidos, o rádio
levou 30 anos para chegar a sessenta milhões de pessoas; a TV
alcançou esse nível de difusão em 15 anos; a Internet fez em apenas
3 anos [...] O resto do mundo está atrasado em relação à América
do Norte e os países desenvolvidos, mas o acesso à Internet e seu
uso os estavam alcançando rapidamente nos principais centros
metropolitanos de todos os continente (CASTELLS, 2002, p. 439).
Esta pesquisa pretende transmitir e garantir conhecimento a estudantes, professores,
pesquisadores e profissionais de Arqueologia e Museologia de qualquer parte do mundo, com
apenas um clique. O trabalho ainda está em pleno desenvolvimento. Somente com a aplicação
em sua totalidade do método, poderemos comprovar ou negar os objetivos propostos e os
problemas identificados no estudo. A autora deste trabalho conclui que a criação de um
ambiente virtual, através das TIC, vai contribuir para o desenvolvimento, divulgação e uma
maior durabilidade dos achados arqueológicos do MAX. Com a digitalização do acervo, os
registros e as informações das peças catalogadas irão transmitir conhecimento por meio de
uma educação patrimonial tão eficaz quanto de forma presencial. É o olhar do real para o
virtual. Este estudo visa colaborar com os debates sobre o tema, abordando a importância da
preservação de achados arqueológicos, não somente expostos em museus, mas também no
ciberespaço. É o início de algo ainda muito maior e mais trabalhado para o desenvolvimento
da Arqueologia da mídia brasileira.
4 – AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Arqueologia da Universidade Federal
de Sergipe por acreditar na potencialidade deste trabalho, bem como ao professor Doutor do
Núcleo de Arqueologia da UFS e diretor do MAX, Albérico Queiroz, pelas informações e
sabedoria para a construção deste trabalho.
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. Lisboa:
Fundaçao Calouste Gulbekian, 2002.
CHERMANN, Davi. Memória do Futuro: registros arqueológicos em tempo real. 150f.
227
Tese (Doutorado em Arqueologia). Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São
Paulo, 2008.
DANTAS, Vladimir; LIMA, Tania Andrade. Pausa para um Banquete: Análise de Marcas
de Uso em Vasilhames Cerâmicos Pré-Históricos do Sítio Justino, Canindé do São Francisco,
Sergipe. Museu de arqueologia de Xingó, 2006.
DIZARD JR., Wilson. A Nova Mídia: a comunicação de massa na era da informação.
Disponível em:. <http://www.informacaoesociedade.ufpb.br/html/IS1120112>. Acesso em: 8
jan. de 2011.
FUNARI, Pedro Paulo A. Arqueologia e Patrimônio. Erechim: Habilis, 2007.
LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. São Paulo: Editora 34, 1993.
ORSER JR, Charles E. Introdução à Arqueologia Histórica. Tradução Pedro Paulo Abreu
Funari. Belo Horizonte. Oficina de Livros, 1992.
PAIVA, Marcus Vinicius Jacob. Os impactos das bibliotecas virtuais sobre os hábitos de
leitura e estudo. Monografia apresentada ao Departamento de Comunicação Social do
Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Bacharel em Comunicação Social. Vitória, 2008.
TRIGGER, Bruce G. História do pensamento arqueológico. Tradução de Ordep Trindade
Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2004.
ZIELINSKI, Siegfried. Arqueologia da Mídia. Em busca do tempo remoto das técnicas do
ver e do ouvir. São Paulo: Annabulme, 2006.
6– ANEXOS
Figura 1
Figura 4
228
Fonte: Arquivo Fonte:
http://ortery.com/PC360series_flashdemo/index.html
Figura 2: Handyscan 3D Figura 5
Fonte:
http://www.creaform3d.com/en/pdf/Handyscan_3D Fonte:
http://www.beingbenpeterson.com/?p=7
scanners_line-up.pdf
Figura 3: Modelo Digital em 3D
Fonte: http://ortery.com/PC360series_flashdemo/index.html
229
O MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE E O XANGÔ DE PERNAMBUCO:
REFLEXÕES SOBRE A RELIGIÃO DE MATRIZ AFRICANA E O ENSINO DE
HISTÓRIA NO ESPAÇO MUSEAL
Roberta de Paula Vieira Lima - Unicap†††
O museu constitui-se como ―espaço de saber‖, complementar, as atividades
desenvolvidas pelo professor em sala de aula. Geralmente, dispõe de um setor educativo que
disponibiliza profissional capacitado para realizar o trabalho de mediação - entre o objeto
exposto e o visitante - a relação entre mediador versus mediado, produz um leque de
possibilidades de discussões e reflexões positivas. Desta forma, cabe ao mediador a função de
estimular, provocar e silenciar, permitindo a participação do visitante e não apenas restringi-lo
a mero expectador do discurso produzido pela Instituição. Atualmente, os acervos
museológicos dialogam com temas como História e Cultura Afro-brasileira, auxiliando o
educador no cumprimento da Lei 10.639/03 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais. Destarte, apresentamos a comunidade científica uma
análise da nossa experiência no Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) - vinculado a
Diretoria de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) - durante a exposição
permanente ―Nordeste: territórios plurais, culturais e direitos coletivos‖. Propomo-nos a
refletir sobre as atividades lúdicas, desenvolvidas junto ao público escolar, e os obstáculos
enfrentados durante a mediação com ênfase no Candomblé. Para tanto, utilizamos como
arcabouço teórico a literatura, concernente, a mediação cultural, mitos afro-brasileiros e a
obra destinada a mais intensa das paixões humanas: o medo. Visto que, um dos entraves
durante nossa tarefa diária era o pavor, intensamente, compartilhado entre os alunos e
docentes.
Palavras-chave: Museu, Candomblé, Ensino de História.
Introdução:
Durante as comemorações do centenário de nascimento de Joaquim Nabuco, o então deputado
federal Gilberto Freyre, propôs ao Congresso Nacional a implantação do Instituto Joaquim
††† Pós-graduanda do curso de Especialização em História do Nordeste do Brasil, pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.
Atualmente exerce trabalho de mediação no museu itinerante, intitulado Projeto Expondo Cultura: Patrimônio Arqueológico de Pernambuco, uma realização da Petrobrás em parceria com a Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE e a Fundação de Desenvolvimento
Educacional Apollônio Salles – FADURPE. Email: roberta_depaulalima@hotmail.com
230
Nabuco de Pesquisas Sociais – a posteriori Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) – destinado
―pioneiramente para o estudo científico e interdisciplinar da realidade socioeconômica do
Norte e Nordeste do Brasil... com ênfase nas condições de vida do trabalhador rural situado
nessas duas regiões‖‡‡‡
Em 1979, foi inaugurado o Museu do Homem do Nordeste (MUHNE) - vinculado a
Diretoria de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco - conseqüência da fusão dos seus
museus de Antropologia, Arte Popular e do Açúcar. Logo, ―a instituição criou o Museu do
Homem do Norte, em Manaus, iniciado em 1983 e inaugurado em 1985, com as mesmas
características.‖§§§
Tempos depois, o Museu do Homem do Nordeste passou por um longo período de
reformas, reabrindo com a exposição permanente ―Nordeste: territórios plurais, culturais e
direitos coletivos‖, com uma nova concepção a respeito do trabalho de mediação. A
capacitação dos mediadores, estava sob a responsabilidade do arte-educador Anderson
Pinheiro****
e a orientação da Srª Sílvia Brasileiro - Coordenadora de Programas Educativo-
Culturais do MUHNE.
O termo mediação é utilizado no acordo entre partes conflitantes e envolve um terceiro
elemento - o mediador - que não impõe, mas, sugere alternativas. No espaço museal,
―O processo de mediação há de ser provocativo, instigante ao pensar e ao sentir, à percepção e
a imaginação. Um ato capaz de abrir diálogos, também internos, ampliados pela socialização
dos saberes e das perspectivas pessoas de cada fruidor‖.††††
No museu o objeto perde seu valor de uso, exemplo, as insígnias dos Orixás abandonam a
concepção do Sagrado. Em contrapartida, ―o objeto é tratado como indício de traços culturais
que serão interpretados no contexto da exposição do museu... Assim, qualquer objeto deve ser
tratado como fonte de reflexão‖‡‡‡‡
, desta forma, é possível desenvolver métodos para
promover a percepção crítica dos alunos.
O ―método de investigação de objetos‖ corresponde a observação livre e dirigida, os
discentes precisam se concentrar no objeto exposto, assim será possível fazer à identificação,
descrição, comparação e a síntese. Ao final do processo o ―objeto está situado no tempo e no
‡‡‡ Apresentação de Fernando de Mello Freyre - Presidente da Fundação Joaquim Nabuco. In: O Museu do Homem do Nordeste – São Paulo: Banco Safra, 2000, p. 05. §§§ Apresentação de Fernando de Mello Freyre - Presidente da Fundação Joaquim Nabuco. In: O Museu do Homem do Nordeste – São Paulo:
Banco Safra, 2000, p. 05. **** O arte-educador Anderson Pinheiro é um dos articuladores do REMic-PE (Rede de Educadores de Museus e Instituições Culturais de
Pernambuco). †††† MARTINS, M. C. PICOSQUE, G. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. Rio de Janeiro: Editora RBB, 2008, p. 33. ‡‡‡‡ RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004, p. 22.
231
espaço, em sua relação com determinada atividade econômica... organizações sociais ligadas a
família, com os rituais funerários e as crenças religiosas.‖. Transforma-se o objeto em
material de aprendizagem.
Na segunda metade do séc. XX foi publicada a Lei 10.639 e das Diretrizes
Curriculares Nacionais das Relações Étnico-Raciais, que tratam da obrigatoriedade do ensino
da Cultura Afro-Brasileira e Africana, assim como, para os povos indígenas, passados uma
década ainda enfrentamos obstáculos para aplicação da Lei. A dificuldade é facilmente
observável no espaço museal, pois, todo o trabalho do mediador é prejudicado, devido às
reações adversas dos alunos e docentes, diante da materialização dos elementos que compõem
as práticas religiosas do Candomblé, assim, questionamos: qual(ais) a(s) razão(ões) do medo e
como resolver e/ou amenizar o problema?
Diante do pressuposto e das novas exigências do fazer historiográfico, séc. XX, o
autor Lucien Febvre - fundador da Escola dos Annales - lamentava a ausência da história das
paixões humanas. O historiador francês Jean Delumeau aceitou a empreitada e publicou a
―História do Medo no Ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada‖§§§§
, segundo o autor, tanto o
indivíduo como a coletividade, compartilham do mesmo sentimento com relação ao medo e
aborda os temores enfrentados no Velho Mundo e na América.
Propomo-nos a compartilhar com a comunidade científica o relato de experiência com
mediação - destinada ao público escolar - no espaço dedicado ao Candomblé (Sala dos
Orixás) na exposição ―Nordeste: territórios plurais, culturais e direitos coletivos‖.
Pretendemos discorrer sobre alguns pontos da cosmovisão do Xangô pernambucano, a
dinâmica empregada, analisar os entraves enfrentados durante a mediação e, por fim, as
considerações finais.
1.0 – Material e método.
O Museu do Homem do Nordeste, na sua mais recente exposição ―Nordeste: territórios
plurais, culturais e direitos coletivos‖, promove junto ao público escolar e espontâneo, uma
série de atividades abordando temas diversos - identidade cultural, religiosidade, influências e
assim por diante - desenvolvidas pelo o programa educativo-cultural da instituição.
Iremos dar ênfase a ―Sala dos Orixás‖, acreditamos ser válido fazer uma breve
descrição do local dedicado ao Candomblé - conhecido como Xangô em Pernambuco, orixá
do fogo, dos raios, trovões, da guerra e da justiça. Na entrada tem um assentamento de
§§§§ DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução Maria Lucia Machado; tradução de
notas Heloísa Jahn – São Paulo: Companhia das letras, 2009.
232
Exu*****
e ao lado suas representações todos ―pintados de preto com os corpos em cilindro,
dos quais saem grandes caldas, proeminentes pênis, chifres e braços em postura de defesa,
portando acessórios encaixados, como tridente e lanças.‖†††††
Continuemos! A ―Sala dos Orixás‖ é um espaço amplo, com imagens fotográficas dos
orixás mais cultuados em Pernambuco - Ogum, Oxossi, Omolu, Ossaim, Oxum, Oxalá, Iansã,
Xangô e Yemanjá - com seus símbolos e insígnias. Em local de destaque está às esculturas do
artista baiano Helder Santos, simbolizando o sincretismo religioso. O babalorixá Manuel do
Nascimento Costa - Terreiro Obá Ogunté (Sítio de Pai Adão) - prestou assessoria na
organização, descrição dos orixás e seus cânticos.
Além dos elementos que compõe a ―Sala dos Orixás‖, descritos anteriormente,
utilizamos o ―matulão‖, repleto de pequenos objetos que auxiliava na narrativa, exemplo,
poder-se-ia utilizá-lo para discorrer sobre as lendas e mitos afro-brasileiros, tornando a
mediação mais lúdica aos olhos do público escolar.
A religião de matriz africana - ao contrário do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo -
não possuí um Livro Sagrado, as informações são passadas para as gerações futuras através da
oralidade, os griôs - os cantadores de história - são os responsáveis pela perpetuação dos
mitos da cultura afro-brasileira.
Nossa intenção é assumir o papel de um contador de histórias. Para tanto, reunimos o
grupo visitante na sala dos Orixás e formamos um círculo com todos acomodados no chão.
Lançamos mão do livro ―Lendas Africanas dos Orixás‖‡‡‡‡‡
do autor Pierre Verger e optamos
pela lenda de Exu (anexo) - o mensageiro - responsável pela comunicação entre os dois
mundos o Orum (mundo espiritual) e o Ayê (mundo material).
Na tradição Exu é tido como o ministro dos Orixás, o que em princípio o faria um orixá de
segunda categoria, pois a Exu Olorum não confiou nenhuma tarefa especifica de controlar a
natureza ou uma atividade humana especifica. A ele foi confiada a tarefa de ser o ministro, o
melhor, o mensageiro dos Orixás. E esta é a função especifica de exu no sistema religioso do
Candomblé: Ele é o mediador entre Orum e o Aiye e mesmo o mediador entre os próprios
seres humanos. Exu é a força da comunicação.§§§§§
O matulão repleto de pequenos objetos
***** ―O assentamento é composto pelo conjunto do material sagrado – insígnias, símbolos e utensílios – no qual reside a divindade e sua força mágica. Este assentamento de Exu, dono das encruzilhadas e mensageiro dos orixás, é uma escultura de argila em forma de busto
humano, petrificado com diversos Axés (energia vital), dentro do alguidar modelado em barro‖. In: O Museu do Homem do Nordeste –
São Paulo: Banco Safra, 2000, p. 204. ††††† O Museu do Homem do Nordeste – São Paulo: Banco Safra, 2000, p. 204. ‡‡‡‡‡ VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. [ilustrações] Carybé; tradução Maria Aparecida da Nóbrega. 4º Ed. –
Salvador: Corrupio, 1997. §§§§§ BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997, p. 230.
233
vai facilitar a narrativa da lenda, exemplo: uma peneira (para descrever a astúcia de Exu);
folhas secas de árvores (para representar o período de estiagem); uma chapa de ―raio x‖ (a
sonorização da chuva) e assim por diante. A contação da história dialoga também com o
acervo da exposição (as imagens, os símbolos, as cores e as insígnias dos orixás). 3.0 -
Resultados e discussão. Alguns grupos reagiram de maneira entusiasmada, visto que, os
docentes tinham realizado um trabalho de sensibilização, junto aos alunos, com oficinas de
dança, música, pesquisa, enfim, a experiência foi bastante proveitosa e positiva. Entrementes,
observamos que parte significativa do alunado e, mormente, os docentes tinham medo da
―Sala dos Orixás‖, por quê? Provavelmente, uma das razões é atribuída a...
234
Exu é também o possibilitador de desarmonia, de desgraça de azar. Por causa deste aspecto da
figura de Exu, ele é identificado com o demônio nas representações sincréticas do Candomblé
baiano. Esta identificação fez de Exu uma figura de má fama e que inspira medo. De figura
ardilosa, Exu foi com isso transformado em uma figura má, o que não corresponde ao seu
caráter original.******
Insistimos! Exu é o mensageiro - responsável pela comunicação entre o mundo
material e espiritual – figura ardilosa, mas, não demoníaca. Entretanto, como surgiram as
representações do Diabo? É o que pretendemos responder nas páginas subseqüentes.
As representações e o medo do diabo ficaram freqüentes durante os séculos XVI-
XVII, graças a imprensa, inúmeras obras alemãs e francesas, como, ―O martelo das
feiticeiras‖, o ―Teatro dos diabos‖, ―Instruções sobre a tirania e o poder do diabo‖,
―Magistrados e feiticeiras na França do século XVII‖ e segue uma lista enorme com várias
edições e reimpressões, a literatura discorria sobre as artimanhas de Lúcifer.††††††
A princípio essas informações eram produto da classe mais abastada, cada vez mais
compelida à conscientizar os menos favorecidos, a ―conhecerem a verdadeira identidade do
Maligno por meio de sermões, catecismos, obras de demonologia e de acusações‖‡‡‡‡‡‡
.
Popularizou-se a representação do tinhoso com chifres, tridentes e pele escura - as
características são idênticas as observadas nas representações de Exu (MUHNE).
Durante a colonização do Brasil Português, os jesuítas constataram que os ameríndios
idolatravam o demônio, era imprescindível a catequização, para tanto, utilizaram o teatro
demonizando os deuses dos nativos. O mesmo pode ser observado para os africanos,
desembarcados no Brasil, escravizados e catequizados. Porém, negros e índios às escondidas
continuavam cultuando seus deuses.§§§§§§
Mas, quais são os medos que aterrorizam a pós-modernidade? Sentimos medo da
solidão, de ser ludibriado, da loucura, da violência urbana e etc. No séc. XX, durante o Estado
Novo, o secretário de segurança pública, Etelvino Lins proibiu o funcionamento dos cultos de
matriz africana, baseado na Constituição de 1937 que ―cohibia as práticas viciosas que
****** Ibidem, p. 234. ††††††
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Tradução Maria Lucia Machado; tradução de notas Heloísa Jahn – São Paulo: Companhia das letras, 2009, p. 365. ‡‡‡‡‡‡
Ibidem, p. 370. §§§§§§
Ibidem, p. 395.
235
corrompem e degradam as pessoas‖, estava legitimada a ação das autoridades em defesa do
bem-estar comum.*******
Para a regulamentação do funcionamento dos centros espíritas, era necessário o
acompanhamento dos auxiliares do Serviço de Assistência a Psicopatas, pois, a sociedade
médica acreditava que as incorporações eram na verdade fenômeno patológico de histeria,
passíveis de tratamento.†††††††
Segundo o autor Berkenbrock as manifestações é o momento da
unificação entre os dois mundos, como segue:
A imanência (Aiye) e a transcendência (Orum) no Candomblé são entendidas como muito
próximas, chegando, inclusive, a uma unificação no momento do transe. Neste momento o
próprio Orixá está presente. A pessoa que recebe o Orixá despe-se naquele momento de sua
cotidianidade humana e é revestida pela personalidade do próprio Orixá.‡‡‡‡‡‡‡
No entanto, para a classe mais abastada, os praticantes dos cultos afro-brasileiros
eram ―caso de polícia‖, bandidos perigosos, os representantes do tipológico do malandro -
com o objetivo de adquirir benesses sobre a boa fé do povo - várias Casas de Matriz Africana
foram fechadas e seus adeptos perseguidos, humilhados, ridicularizados e presos.§§§§§§§
Abrimos um parêntese para discorrer sobre o trabalho do autor José Saramago, no
livro ―O Evangelho Segundo Jesus Cristo‖ o autor promove um encontro entre Deus, Jesus e
o Diabo, como segue: ―Este é o Diabo, de quem falávamos há pouco. Jesus olhou para um,
olhou para outro, e viu que, tirando as barbas de Deus, eram como gêmeos, é certo que o
Diabo parecia mais novo, menos enrugado‖********
. O excerto demonstra como o bem e o mal
estão, intrinsecamente, relacionados.
A idéia de que possa existir algo absolutamente bom ou absolutamente mau é com isso estranha à
compreensão do Candomblé. Não existe o bem e o mal em si. O que existe é um maior ou um
menor equilíbrio, uma maior ou uma menor harmonia. Não se trata aqui apenas de um jogo de
palavras, mas sim de uma estrutura de pensamento religioso para o qual a busca da unidade ou
harmonia entre ser humano e orixá é a medida para todas as coisas.††††††††
*******
ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A construção da verdade autoritária. São Paulo: Humanitas/FFLCH/ USP. 2001, p. 155. †††††††
Ibidem, p. 156. ‡‡‡‡‡‡‡ BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1997, p. 254. §§§§§§§ ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de., op. cit., p. 155. ******** SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 368. †††††††† BERKENBROCK, Volney J. op. cit., p. 258.
236
Destarte, para o Candomblé não observamos o maniqueísmo presente em outras
religiões, mas, a busca permanente do equilíbrio harmonioso. Através da iniciação, os
candomblecistas estão mais próximos da proteção do seu Orixá e, conseqüentemente, de
―garantir o Axé como dinâmica da vida‖.‡‡‡‡‡‡‡‡
Como vimos, mesmo não possuindo as ligações demoníacas, o medo dos ritos e das
representações do Candomblé persiste ainda nos dias atuais, então, como trabalhar cultura
afro-brasileira, diante do pavor dos estudantes e docentes? Não temos a intenção de propor
uma solução simplista, diante da complexidade dos sentimentos abordados e perpetuados a
gerações. Mas, é necessário dar início ao processo de conscientização e respeito ao outro.
Não iremos minimizar a presença da família, visto que, ela exerce influência marcante
no desenvolvimento cognitivo dos pueris. Então, o ―processo de conscientização e respeito
com relação ao outro‖ - independente da religião, etnia ou opção sexual - a participação da
parentela é fundamental.
A instituição escolar é importante, porque, os alunos vão aprender a lidar com as
diferenças. Além disso, o educador dispõe – ou deveria dispor – de meios para mediar
conflitos e recursos metodológicos para abordar temas, como o proposto nesta comunicação.
Por fim, o museu como espaço do saber - formal e informal - seria a culminância do trabalho
harmonioso entre a família, o docente e a escola.
Agradecimentos
Nossos agradecimentos sinceros a Suzana Queiroz (SENAI - Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial), Silvia Brasileiro (Coordenadora de Programas Educativo-culturais
do Museu do Homem do Nordeste), a Profª. Drª Ana Nascimento e a Profª Drª Suely Luna
(Coordenadoras do Projeto Expondo Cultura: Patrimônio Arqueológico de Pernambuco.
Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE).
Referências
‡‡‡‡‡‡‡‡ BERKENBROCK, Volney J. loc. cit.
237
ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A construção da verdade autoritária.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/ USP. 2001.
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência
religiosa no Candomblé. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2º
edição - São Paulo: Cortez, 2008. pag. 358-359. (Coleção docência em formação. Série
ensino fundamental / coordenação Antônio Joaquim Severino, Selma Garrido Pimenta).
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada.
Tradução Maria Lucia Machado; tradução de notas Heloísa Jahn – São Paulo: Companhia
das letras, 2009.
MARTINS, M. C. PICOSQUE, G. Mediação cultural para professores andarilhos na
cultura. Rio de Janeiro: Editora RBB, 2008. pag. 33.
O Museu do Homem do Nordeste – São Paulo: Banco Safra, 2000, p. 05.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história.
Chapecó: Argos, 2004. pag. 22.
SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo: romance. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991, pag. 368.
VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. [ilustrações] Carybé; tradução
Maria Aparecida da Nóbrega. 4º Ed. – Salvador: Corrupio, 1997.
Anexo
Exu§§§§§§§§
Laroyê!
Exu é o mais sutil e o mais astuto de todos os orixás.
Ele aproveita-se de suas qualidades para provocar mal-entendidos e discussões entre as
pessoas ou para preparar-lhes armadilhas.
Ele pode fazer coisas extraordinárias como, por exemplo, carregar, numa peneira, o óleo que
comprou no mercado, sem que este óleo se derrame desse estranho recipiente!
Exu pode ter matado um pássaro ontem, com uma pedra que jogou hoje!
Se zanga-se, ele sapateia uma pedra na floresta, e esta pedra põe-se a sangrar!
§§§§§§§§ VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos Orixás. [ilustrações] Carybé; tradução Maria Aparecida da Nóbrega. 4º Ed. –
Salvador : Corrupio, 1997. pág. 12-13.
238
Sua cabeça é pontuda e afiada como lâmina de uma faca.
Ele nada pode transportar sobre ela.
Exu pode também ser muito malvado, se as pessoas se esquecem de homenageá-lo.
É necessário, pois, fazer sempre oferendas a Exu, antes de qualquer outro orixá.
A segunda-feira é o dia da semana que lhe é consagrado.
É bom fazer-lhe oferendas neste dia, da farofa, azeite de dendê, cachaça e um galo preto.
Conta-se que Aluman estava desesperado com uma grande seca.
Seus campos estavam áridos, a chuva não caía.
As rãs choravam de tanta sede e os rios estavam cobertos de folhas mortas, caídas das árvores.
Nenhum orixá invocado escutou suas queixas e gemidos.
Aluman decidiu, então, oferecer a exu grandes pedaços de carne de bode.
Exu comeu com apetite desta excelente oferenda.
Só que Aluman havia temperado a carne com um molho muito apimentado.
Exu teve sede.
Uma sede tão grande que toda água de todas as jarras que ele tinha em casa, e que tinham, em
suas casas, os vizinhos, não foi suficiente para matar sua sede!
Exu foi à torneira da chuva e abriu-a sem pena.
A chuva caiu.
Ela caiu de dia, ela caiu de noite.
Ela caiu no dia seguinte e no dia de depois, sem parar.
Os campos de Aluman tornaram-se verdes.
Todos os vizinhos de Aluman cantaram sua glória:
―Joro, jará, joro Aluman,
Dono dos dendezeiros, cujos cachos são abundantes!
Joro, jará, joro Aluman,
Dono dos campos de milho, cujas espigas são pesadas!
Joro, jará, joro Aluman,
Dono dos campos de feijão, inhame e mandioca!
Joro, jará, joro Aluman!‖
E as rãzinhas gargarejavam e coaxavam, e o rio corria velozmente para não transbordar!
Aluman, reconhecido, ofereceu a Exu carne de bode com o tempero no ponto certo da
pimenta.
Havia chovido bastante. Mais, seria desastroso!
Pois, em todas as coisas, o demais é inimigo do bom.
239
CEMITÉRIO SENHOR BOM JESUS DA REDENÇÃO:
PATRIMÔNIO, IDENTIDADE E MEMÓRIA.
Autor: Rodrigo Marinho*
Coautora Bruna Neves**
Coautor Yago Mendes***
Palavras Chave: Cemitério de santo Amaro, Recife do século XIX, Patrimônio
Histórico.
Legislizar é preciso, viver não é preciso.
As transformações dos ritos fúnebres na província do Recife iniciam-se com as
discussões apresentadas pelos parlamentares sobre as praticas de sepultamento no Recife em
1840. Tais discussões tiveram como proposta combater os focos miasmáticos que afetavam a
população, iniciando o processo de higienização do local. O projeto de número 7/1840*********
tratava da construção de um cemitério extra-muros para que fosse possível enterrar os mortos
fora das igrejas, pois era uma tradição e manifestação católica o costume de enterrar os
mortos em seus templos, como forma de manter próximos os vivos e os mortos, considerando
também o contato mais intimo com Deus. A partir dessa necessidade de criação de um espaço
de enterramento fora das igrejas, vão surgir as propostas políticas e consequentemente a lei
que findou na criação do cemitério Público do Recife.
Segundo Pereira da Costa†††††††††
, o projeto nº 7 foi apresentado pelo médico e
deputado Dr. Simplício Antônio Mavignier que em 7 de maio de 1841, foi aprovado na forma
da lei nº 91/1841. Apesar das ideias sanitárias sobre o perigo das doenças que poderiam
*Graduado em História pela UFRPE - Email: rodrigo.marinho86@gmail.com
** Graduanda em História pela UFRPE - Email: brunapereiraneves@gmail.com *** Graduando em História pela UFRPE – Email: yagomendes.17@hotmail.com
1. Atas de reuniões da assembléia Legislativa provincial disponíveis no acervo da ALEPE.
2. COSTA, F.A. Pereira da. Anais pernambucanos, v.10,1996,p.238.
240
atingir a população, em uma cidade de crenças arraigadas, transferirem seus entes das igrejas
para um lugar aparentemente sem nenhum significado religioso, não deve ter sido tarefa fácil
para as autoridades recifenses. Para que o projeto tivesse êxito se fazia necessário que o medo
da contaminação fosse maior que o receio de mudar um costume secular ligado à fé. Além
disso, as noticias da ―cemiterada‖ ocorrida na cidade de Salvador no cemitério do Campo
Santo em 1836, fizeram com que os deputados tivessem maiores precauções. De acordo com
os jornais baianos a inauguração do cemitério fora turbulenta, pois as autoridades locais,
confrarias e irmandades divergiam com relação à administração do mesmo. O governo baiano
tinha determinado que o cemitério fosse administrado por uma companhia particular que
realizaria os enterramentos de forma exclusiva. As entidades religiosas foram colocadas a
parte do processo administrativo, derivando um motim onde as irmandades incitaram a
população depredar o cemitério do Campo Santo, Pois as mesmas viam neste local um
símbolo da possível causa de perca financeira. A experiência de Salvador que se deu de forma
trágica serviu de lição para que a Assembléia Provincial do Recife tivesse maior prudência na
construção da lei de origem a construção do primeiro cemitério público do Recife.
Em Recife, os parlamentares atentaram para o fato ocorrido na Bahia e sustentaram a
ideia de construir um cemitério que fosse administrado pelo poder público, sem participação
do setor privado. Tendo essa preocupação, para não entrar em conflito com as esferas
eclesiásticas, apresentaram todo projeto de lei as irmandades locais para agraciarem o que
fora escrito.
O projeto técnico que seria elaborado por três médicos e um engenheiro ficaria sob a
responsabilidade da presidência da província que fiscalizaria as obras e também nomearia o
administrador do cemitério, pois julgavam que as autoridades religiosas não estariam
―preparadas‖ para higienizar os sepultamentos. Além disso, criaria o regulamento de
funcionamento que passaria pela aprovação da Assembleia provincial.
Durante a discussão sobre o projeto nº 7 o deputado Sr. Rego Monteiro propôs uma
emenda que contemplaria as irmandades na participação do empreendimento. Apesar de
aprovada a participação dessas irmandades, sua participação foi minimizada no texto,
possivelmente pelo fato de que essa pudesse poderia gerar conflitos de interesses impedindo
os rumos do projeto.
A câmara municipal do Recife, junto à Administração do Patrimônio dos Hospitais e
estabelecimentos de caridade foi designada para construir o cemitério. Caso houvesse falta de
recursos financeiros poderiam adquirir empréstimos do setor privado. Depois de pronto a
responsabilidade de administrar e inspecionar seria da Câmara dos deputados, tendo que
241
nomear todos os funcionários como também contratar em condições razoáveis uma
companhia espreitadeira para executar obras, tendo que passar pela aprovação do presidente
da província.
Observamos que nessa lei, o setor que se beneficiaria dos lucros dos enterros não foi
explicitado, tendo o deputado Sr. Mavignier entrado com uma emenda para destinar os
rendimentos aos hospitais, cofres municipais e instituições de caridade. A emenda foi
rejeitada, diferente do que aconteceu em Salvador, o poder público foi o maior beneficiado. A
lucratividade que os ritos fúnebres poderiam trazer aos cofres públicos se aliava a
minimização dos possíveis conflitos que poderiam surgir com as irmandades e confrarias. O
projeto também discutiu a concessão de sepulturas, uso de carros funerários e demais
serviços, sendo todas essas decisões tomadas pela Câmara Municipal do Recife. O projeto
ganhou visibilidade e apoio na mídia, O Diário de Pernambuco ‡‡‡‡‡‡‡‡‡
evidencia os
benefícios da aprovação da lei em relação à saúde da população e elogia os parlamentares pela
proposta. Mas em nenhum momento argumenta quem seria beneficiado com os lucros do
cemitério.
Em 1842 é montada a comissão de plano técnico, sendo entregue a presidência da
província a proposta do local que seria construído o cemitério, além do projeto arquitetônico.
A localização não poderia ser distante do centro, devido à inviabilidade de deslocamento, o
solo deveria ser seco e de fácil absorção para garantir a rápida decomposição do cadáver, a
questão habitacional também foi levado em consideração, para que não fosse necessário fazer
tantas demolições. A rede fluvial que privilegiava a região favorecia aqueles que por acaso
não possuísse recursos para aluguel de carros fúnebres. Ainda seguindo um relato de Marcus
Carvalho§§§§§§§§§
a escolha do local teria alguma relação com a questão da escravidão,
segundo ele na década de 1810 Henry Koster afirmou que a região era usada para abrigar os
escravos que ficavam em quarentena no intuito de prevenir doenças epidêmicas. Para Koster,
Santo Amaro era um lugar aberto e com boa circulação de ar, numa distância considerável da
cidade, o que evitaria contaminações de doenças existentes em negros recém chegados à
província.
Quanto à arquitetura do cemitério público do Recife foi adotado, após várias
discussões entre o projetista, o senhor Vauthier, e os médicos, o formato quadrangular,
possível influencia do modelo francês de cemitério. Os muros altos serviriam para manter a
salubridade, sendo construída também uma vala para escoamento das águas provenientes das
3. Diário de Pernambuco, 18/03/1841. 4. CARVALHO, Marcus j. de. Liberdade.1998 p. 68-71
242
chuvas. Projetado para ter alamedas radiais que convergiriam para a capela central, formando
assim uma quadra, a capela teria a forma de cruz grega em estilo gótico que era também usada
na Europa em edificações religiosas. A capela que provavelmente fora construída para
reforçar a ideia de lugar sagrado reforça também o sentimento de lugar de orações e
pensamentos elevados; todos os caminhos do cemitério rumam ao centro, ou seja, a capela;
todos os caminhos do homem ―reto‖ levam a Deus. Essa era a metáfora que o projeto da
planta desejava transparecer a aqueles que chegavam a esta nova morada para os mortos - ver
figura 1 – Anexos-. Desta maneira o cemitério público do Recife se tornou a primeira
necrópole de fato planejada do Império brasileiro, não ficava atrais, do ponto de vista
estrutural, dos célebres cemitérios franceses, os quais eram a verdadeira referência para esta
nova concepção de depositário eterno para os mortos.
A temida Peste chega ao Recife
A lei da reforma cemiterial que fora esquecida por quase dez anos, permitiu que
continuasse sendo possíveis os enterramentos nas igrejas sempre que surgisse a necessidade.
Mesmo depois da criação do conselho de salubridade em 1845 atuando na divulgação da ideia
de higienização. O debate sobre a criação do cemitério público só veio repercutir no final da
década de 1840, nenhum recurso foi disponibilizado para a construção de um cemitério
público, até a nefasta chegada da epidemia da febre amarela em 1849 que colocou em risco
muitas vidas.
Os jornais anunciavam os casos de febre amarela ocorridos na província baiana,
alertando o perigo da epidemia em todo império. Como previa o Dr. Aquino, entusiasta
hiegienista recifense, a doença poderia chegar ao Recife por meio dos portos vindo da Bahia,
um marujo contaminado pela febre chegou a província em 18 de dezembro de 1849, mesmo
não tendo uma notificação oficial sobre a enfermidade, os sintomas que apresentava fizeram
com que os médicos dirigisse o mesmo a uma casa de saúde no bairro da Boa Vista; 24 horas
depois do ocorrido o marujo de nome Mario Icard veio a óbito. A febre atingiu em poucos
dias o bairro da Boa Vista e bairros adjacentes.
O conselho de salubridade diante dos acontecimentos tentou acalmar a população
desmentindo o fato na imprensa, afirmando que não estavam diante de uma epidemia. O
medo tomava conta da província, os principais atingidos pela enfermidade foram os
estrangeiros recém-chegados, visto que não possuíam os anticorpos necessários as mazelas
dos trópicos.
243
A ―peste‖ como era denominada a doença pelos recifenses era muitas vezes
interpretada com um sinal e castigo de Deus. Uma procissão foi organizada em 18 de Março
do mesmo ano, onde se recomendou que mulheres e crianças não fossem acompanhar o
cortejo, pois haveria flagelação e assim converter a ―ira de Deus‖ que fora despertado pelos
pecados mundanos.
A doença atingiu Pernambuco e as províncias da Paraíba e Alagoas. No Recife, a
estratégia para o combate a doença entre 1849 à 1850 foi por meio de quarentena e
higienização dos espaços públicos como os médicos indicavam. Diante disso, o conselho de
salubridade convenceu o presidente da província a estabelecer o cordão sanitário criando em
14 de janeiro de 1850. Foi escolhido o Lazareto da Ilha Nogueira para tratar as pessoas em
quarentena pertencentes a guarnições de navios, sejam eles nacionais os estrangeiros. Outras
medidas foram tomadas pelo conselho que proibiu o tocar dos sinos que indicavam o
acompanhamento do Viático, ofícios de agonia e enterros, pois só aumentava o medo da
população.
Os enterramentos na Ilha eram aconselhados pelo Dr. Aquino, pois a grande
quantidade de cadáveres poderia contaminar a população nos centros urbanos, essa atitude foi
questionada por populares e pela imprensa. No intuito de manter esses enterramentos foi
solicitado ao diocesano que abençoasse o terreno da ilha e tornando assim o local em um
espaço sagrado para o enterramento das vítimas. Não faltaram estratégias para que as famílias
pudessem enterrar seus entes nas igrejas; atestados médicos falsos que comprovavam outro
tipo de doença foram forjados, pois havia rumores que os doentes eram maltratados e que os
cadáveres não estavam sendo enterrados de forma descente neste novo local, ficando até
mesmo expostos aos animais.
A falta de coveiros era outro problema enfrentado pelas autoridades, o medo de
contrair a doença afastava as pessoas dessa função, o Dr. Aquino relatar a baixa expectativa
de vida dos coveiros no relatório do conselho de salubridade devido à exposição direta aos
miasmas. Os problemas com os enterramentos fizeram com que o governo autorizasse
africanos livres**********
que estavam sob a guarda do Arsenal de Guerra assumir as funções
de coveiros, o que viria tornar uma prática comum no Recife, sobretudo na construção do
cemitério público.
Essa epidemia foi fator predominante para que o debate sobre a construção do
cemitério extramuros no Recife. A febre veio de forma que foi necessário repensar as políticas
5. Africanos livres eram aqueles que tinham entrado ilegalmente no país como cativos e estavam sob o poder
das autoridades brasileiras após a proibição do tráfico negreiro.
244
públicas de saúde. Diante desse cenário epidêmico foi convocado à comissão para rever o
projeto do engenheiro francês Vauthier, e assim dar inicio a compra do terreno, como também
contratar um novo engenheiro, neste caso foi o pernambucano José Mamede Ferreira, que
trataria da arquitetura do cemitério. Desta forma em 1º de março de 1851 foi inaugurado o
Cemitério Senhor Bom Jesus da Redenção, com as obras ainda inacabadas em meio à
epidemia de febre amarela.
O Cemitério como a nova casa de Deus – Nasce um novo espaço patrimonial.
A adesão dos eclesiásticos††††††††††
a ideia higienista foi importante para convencer os
fieis que não havia diferença entre as igrejas e os cemitérios abençoados, tornando assim os
espaços dos cemitérios sagrados destinados a moradia eterna dos mortos. Assim os lugares de
sepultamento nos cemitérios não perderam seus significados. Os fiéis que outrora não
economizavam para manter seus parentes mais próximos da proteção divina, fazendo o
possível para garantir um lugar sagrado dentro das igrejas para enterrar seus mortos, como
altar-mor, nichos de santos, e pias de água benta que até então eram os locais mais
privilegiados, fizeram dos novos túmulos no cemitério uma extensão desse costume,através
do simbolismo. Mesmo com a diferença de espaços dentro das igrejas, as distinções entre os
sepultados não eram tão visíveis, em outras palavras sepulturas mais simples e de pessoas
mais abastardas poderiam estar junto uma da outra, o que não ocorreu no cemitério, neste
local, diferente da igreja os mortos foram divididos por áreas, sendo visível a valorização das
áreas que estavam enterrados os mais abastados.
Desse modo é possível visualizar com clareza os lugares dos ricos, pobres e do livre e
do escravo, e consequentemente o lugar social das famílias desses mortos. Esses lugares
foram observados por João Cabral de melo Neto em sua obra, Morte e vida Severina6 onde
destaca que as principais ruas do cemitério estão os mais suntuosos mausoléus onde estão
sepultados os mais ricos. As sepulturas desde a inauguração do cemitério foram colocadas
para a compra , as diferenças eram vistas no preço dessas sepulturas, tanto temporárias quanto
perpétuas.
As vaidades matérias antes contidas nas igrejas neste momento foram extravasada no
espaço cemiteral. Os que possuíam recursos estavam livres para construir suas catacumbas e
mausoléus sem qualquer tipo de restrição, respeitando apenas o perímetro destinado as
6. A voz da Religião, 07/07/1850 (AEL- microfilmagem)
245
mesmas. Mesmo com a condenação da igreja a ornamentação exagerada das sepulturas, os
mais abastados viram nas mesmas uma estratégia de salvação da alma, ornaram-nas com os
símbolos que lhes remetiam suas aspirações no além, minimizando desta forma a lacuna que
os enterramentos nos templos católicos deixaram.
Tal transferência dos mortos das igrejas para o espaço do cemitério, a qual mudara
para sempre os costumes recifenses em relação à morte, como foi dito, mudaram também as
formas de ornamentação, como também as informações contidas nas sepulturas que contava
agora com nome do falecido, data de nascimento e morte, fotos nome dos pais, e até o nome
do santo que o morto tinha por devoto em vida, além dos símbolos religiosos, brasões de
famílias ou mesmo místicos que certa forma garantiria alguma benesse no além. Aos poucos o
cemitério foi incorporado ao cotidiano da cidade, as pessoas passaram a frequentá-lo não
apenas para os enterros; por mais contraditório que pareça, virou mesmo um espaço de lazer,
onde famílias se reuniam em domingos ensolarados para realizar picnics. Assim como fora no
passado, mortos e vivos passaram outra vez a ―conviver‖ nas alegrias e tristezas.
Porém já fazem muitas décadas,para não dizer um século, que o cemitério publico do
Recife perdeu essa dinâmica entre mortos e vivos. Em uma sociedade em que a morte é
temida a ponto se criarem diversas estratégias para esconde-la, o espaço cemiterial passou a
ser algo completamente evitado, esquecido, dizimado. Contudo temos no Cemitério de Santo
Amaro obras de arte de extremo valor simbólico, um verdadeiro museu a céu aberto, um
patrimônio de nosso estado que vem sendo legado aos vermes. Um projeto de restauração de
túmulos e mausoléus é de estrema importância para manter viva a memória daqueles que nos
deixaram uma herança tão extraordinária.
Pensando nisto, estamos realizando ações que visam à conscientização da população,
primeiramente a acadêmica, da importância histórica e identitária deste espaço para a cidade
do Recife. Nossos primeiros
passos são as realização de
oficinas de educação
patrimonial no próprio
cemitério para demonstrar in
loco o quão rico aquele espaço
pode vir a ser,sendo mesmo um
espelho permanente da cidade
dos dois últimos séculos.
246
Visamos ainda ampliar tais ações envolvendo a sociedade civil em geral, especialmente os
jovens em idade escolar, confeccionaremos cartilhas didáticas alertando das possibilidades de
ser reconhecer/perceber no patrimônio cemiterial. Por fim, nossa ação mais arrojada, em
conjunto com a Gerência de Necropoles, tendem a transformar o roteiro de nossa oficina em
um roteiro turístico permanente, construindo desta forma mais uma opção desta atividade tão
carente em nossa cidade, visto que já é provado em várias cidades no mundo como Buenos
Aires e Paris que o turismo cemitérial é um verdadeiro captador de recursos, pois oferece um
―contato‖ anteriormente inimaginável com certas celebridades que, as vezes, morreram a
séculos. Acreditamos no potencial do nosso cemitério, e com muito trabalho iremos inseri-lo
no mapa do turismo de nosso estado, garantido desta maneira recursos para a conservação e
manutenção de sepulturas, túmulos e mausoléus de grande valor patrimonial, cultural e
sentimental encontrados nesta necrópole, as gerações futuras tem o direito de desfrutar deste
inestimável espaço de memória.
Anexos
Figura 1: Planta do cemitério público do Recife, 2001.
Planta baixa do cemitério público do Bom Jesus da Redenção (Santo Amaro). Nota-se
no conjunto de edifícios, a capela ao centro. A linha que define o traçado do muro,
assim como as duas linhas paralelas de construções em negrito em seu
contorno são espaços ocupados por catacumbas pertencentes às agremiações
religiosas.
Fonte: SIAL, 2005, p.101.
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247
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História, imagem e narrativas
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CulturaEconômica, 1993.
VOVELLE, Michel. Imagens e Imaginário na História. São Paulo: Ática, 1997.
249
POR LABIRINTOS MITOLÓGICOS: AS REPRESENTAÇÕES MÍTICO-
DISCURSIVAS E HISTÓRICAS EM [XILO]GRAFITES DE MUROS RECIFENSES
Andréia Fernandes Figueirôa‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
*
Mari Noeli Kiehl Iapechino**
Palavras-chave: imaginário; mítico-religioso; [xilo]grafites; sócio-histórica-discursiva
INTRODUÇÃO
O imaginário urbano, segundo Pesavento [1], remete a formas de percepção e de atribuição
de sentidos ao mundo, assim como de composição de identidades. Perceber-se como sujeito
nas cidades implica, portanto, considerar, como afirma Hall [2], que as identidades ―não são
unificadas ao redor de um ‗eu‘ coerente [pois] dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas‖.
Desse modo, as cidades, como locais de encontro e de identificação – social, cultural,
histórica e discursiva – dos sujeitos [3], permitem discutir a maneira que eles encontram de se
fazerem perceber em meio ao caos de uma grande metrópole – no caso desta pesquisa, a
região metropolitana de Recife. Parte-se do pressuposto de que, ao se apresentarem os
conceitos de real e de imaginário e ao se analisar o conjunto de relações urbanas que
envolvem os sujeitos, trata-se da relação dialógica que há entre os autores de [xilo]grafites –
que fazem uso do suporte cidade para ―apresentar‖ suas escritas – e todos aqueles que
observam essas escritas e que, com elas, constroem os sentidos da própria cidade.
No que diz respeito à análise dessas escritas como imagens e ao conceito de imaginário,
adota-se o ponto de vista de Wunenburger [4], para quem o imaginário é um conjunto de
produções mentais, que podem ser materializadas em obras, alicerçadas em imagens visuais e
linguísticas e associadas a funções simbólicas, considerados os sentidos reais ou não, próprios
ou figurados. Reconhece-se que as construções do imaginário serão perpassadas pela noção
ou intenção de apreensão dos sentidos e, também por isso, busca-se refletir sobre as formas de
representação do mítico e do religioso, em zonas de aproximação e de distanciamento dos
*A autora é aluna do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco –
UFRPE e bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq/UFRPE. Rua Dom Manoel de Medeiros, s/n – Dois
Irmãos – Recife/PE, CEP: 52171-900. E-mail: deiafernandes22@gmail.com
** A orientadora é professora do Departamento de Letras e Ciências Humanas; coordenadora do projeto
―Transversalizando o transverso: grafites e pichações em muros de escolas recifenses – uma leitura, muitas
aplicações‖ [CNPq/UFRPE] e coordenadora do NIEL. E-mail: mnkiehl@uol.com.br
250
dois conceitos, sob a perspectiva tanto do sujeito-autor dos [xilo]grafites, que não se concebe
como interlocutor abstrato, quanto do sujeito-leitor dessa escrita, na apreensão das relações
entre real e imaginário, como formas de representação mítica, discursiva e histórica situadas
local e temporalmente. Constata-se que o [xilo]grafite – grafite que dialoga com as tradições
populares, advindas em grande parte do interior do Estado, como a xilogravura, com seu fértil
imaginário mítico-religioso e folclórico – têm propiciado uma mudança de olhares sobre o
grafite contemporâneo e cooperado para a inserção dessa escrita urbana em ambientes
institucionalizados, como escolas, museus etc.
Constata-se, ainda, que é impossível compreender o imaginário, se não se conhecerem seus
símbolos, que são como conexões indispensáveis para unificar o imaginário – a troca
imaginária só é possível, quando o real significado é decodificado simbolicamente. Quando os
símbolos são decodificados, pode-se afirmar que o imaginário foi compreendido em seu
sentido mais amplo, o que se dá em uma relação dialógica entre sujeitos [neste caso, autor e
leitor dos [xilo]grafites].
Por fim, reconhece-se que estudar a cidade a partir do conceito de imaginário é examiná-la
em profundidade, tornando conhecido cada elemento que a constitui e que continua a
constituir. As cidades são como corpos dinâmicos, sempre passíveis de mudanças; constroem-
se e reconstroem-se conforme os desejos de seus habitantes; são moldadas ao bel prazer de
quem as imagina e, por conseguinte, podem tomar qualquer forma e ir desde um espaço de
criação a um ambiente sombrio. Cada símbolo corresponde a uma perspectiva diferente de
mundo e tratar de cidade dinâmica sem citar suas escritas é deixar de levar em conta as
imagens e grafias carregadas de emoções que a cercam e a humanizam.
MATERIAL E MÉTODOS
Com a finalidade de fundamentar teoricamente esta pesquisa, buscaram-se no conceito de
Imaginário [5], na História Cultural [6] e na Análise [Crítica] do Discurso [7] elementos que
permitissem a análise de seu objeto e a discussão de conceitos que lhe são relevantes. Como o
imaginário é algo inerente ao ser humano, ele possibilita, então, que os sujeitos se expressem
de formas variadas, inventem e legitimem suas crenças e mediatizem a realidade e as
representações dessa realidade. Permite, ainda, que os sujeitos-autores dos [xilo]grafites, ao
retratarem, com o emprego de técnicas e de elementos próprios das xilogravuras, o cotidiano
do sertão brasileiro – algo distante da maioria das pessoas que moram nas grandes cidades -,
apresentem aos sujeitos-leitores de suas escritas nos/dos muros recifenses um universo de
251
referências ao religioso e de metáforas acerca dos mitos clássicos, em releituras ora
autorizadas ora desabonadas por esse próprio universo. Com a História Cultural, busca-se
compreender as relações entre os sujeitos e os espaços que o cercam e as formas de uso do
imaginário para refletirem-se nas urbes as aspirações desses sujeitos. Considera-se que, nos
[xilo]grafites, seus sujeitos-autores transitam entre espaços socioculturais plurais em sentidos
e valores e depositam neles seus anseios, ao explorarem, na cidade, os temas, os estilos e os
elementos próprios do sertão e do sertanejo. Com a Análise [Crítica] do Discurso, por sua
vez, visa-se à relação entre os sujeitos e as linguagens presentes nessas escritas urbanas e
como elas, a um só tempo, forjam a identidade dos grafiteiros e disseminam uma cultura, com
o discurso como agente propagador dela. Segundo Ramalho e Resende [8], os discursos são,
também, formas de representar, de distintos e particulares pontos de vista, aspectos do mundo;
por isso, ao inscreverem suas escritas nos muros da cidade, os grafiteiros, mediante seus
discursos, inscrevem, também, sua forma de representar os mundos citadino e sertanejo, pelo
viés, dentre outros, do mítico-religioso. Quanto aos procedimentos metodológicos, parte-se do
reconhecimento 1) da influência de um imaginário mítico-religioso na criação e na execução
dos [xilo]grafites por seus sujeitos-autores – mesmo que eles não vivenciem diariamente o que
representam em seus grafites, como pode ser percebido em outros de estéticas mais próximas
às realidades vivenciadas nas cidades, os [xilo]grafiteiros se apropriam das xilogravuras para
se inspirarem e darem vida a seus desenhos nos muros de Recife; 2) das marcas sócio-
histórico-discursivas presentes em [xilo]grafites que cooperam para a instauração de seus
sentidos e da identidade de seus sujeitos-autores; e 3) de uma posição cultural, que sugere a
proximidade entre uma escrita tipicamente urbana e as formas de representação de um
imaginário mítico-religioso das xilogravuras de sertanejos, e de uma posição discursiva, que
considera as relações dialógicas entre o sertão e a cidade, entre o mítico/religioso e um
romanceiro popular do Nordeste brasileiro, para a [re]significação de identidades urbanas e
sertanejas [sem desconsiderar a já mencionada relação dialógica entre os sujeitos autor do
[xilo]grafite e leitor dele na/da região metropolitana de Recife].
Outra questão considerada na metodologia desta pesquisa recai sobre o fato de que, sendo o
[xilo]grafite uma escrita urbana atual, tem sido possível, mesmo com a pesquisa ainda em
andamento, fazer um levantamento e captura através de fotografias do material analisado, ou
seja, dos [xilo]grafites.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
252
Os [xilo]grafites espalhados por Recife trazem temas variados, mas, neste estudo, dá-se um
destaque particular ao forte imaginário mítico-religioso presente nas xilogravuras e na
literatura de cordel, que lhes servem de modelo e de inspiração. Encontra-se, entre outros
elementos presentes nos [xilo]grafites, uma crítica à devoção que os sertanejos têm à Virgem
Maria [cf. anexo 1], nesta imagem, encontram-se os dizeres ―Maria não salva o homem‖. Essa
marca religiosa é muito forte na cultura e no cotidiano do sertão, o sertanejo tem grande
respeito e admiração pela Mãe de Jesus e lhe verte honras e glórias, recorrendo a ela em suas
preces, para que seus pedidos de graças sejam atendidos e quando o são (para os que creem
nas bênçãos alcançadas) motivam pagamento de penitências e promessas para agradecer o
desejo alcançado. Toda essa devoção também possui características de uma idolatria que, por
vezes, mascara a realidade da situação pela qual o sertanejo passa, por isso há essa crítica feita
pelo [xilo]grafiteiro, com o intuito de demonstrar que a ―salvação‖ das pessoas não está no
âmbito religioso, mas nelas mesmas.
Encontram-se, também, trabalhos que ressaltam elementos da mitologia clássica, com
características próprias do imaginário sertanejo [cf. anexo 2], caracterizados pela
representação de uma Medusa, figura alegórica própria da mitologia grega com a cabeça
repleta de serpentes [quando Medusa fixava diretamente seus olhos no de outras pessoas as
transformava em pedras]. Trata-se de um mito, de uma cultura distante e diferente em muitos
aspectos da brasileira, representado no imaginário do sertanejo com características próprias do
sertão mescladas a ela. Essa mistura de elementos clássicos e populares na cultura [ou nas
formas de representação dela] tem origem com a colonização do país, pois a chegada de
vários povos europeus às terras brasileiras implicou a também chegada de uma cultura
própria, rica em lendas e mitos herdados da Antiguidade Clássica (Grécia e Roma), e
mesclados aos que já se encontravam no território nacional. Esses traços culturais do
colonizador foram passados mediante a oralidade e aqui encontraram um já fértil imaginário
da população nativa, havendo, então, a fusão dessas duas culturas distintas, gerando, assim,
elementos que se tornariam próprios e característicos da cultura brasileira. Isso serve para
demonstrar como algo tão distinto da cultura local consegue chegar ao imaginário do
sertanejo e influenciar suas construções alegóricas próprias que são representadas em
diferentes formatos, como a xilogravura e os folhetos de cordel, que servem, como já
afirmado, de mote inspirador para os sujeitos-autores dos [xilo]grafites.
É possível afirmar que o grafite, como uma linguagem urbana, tem seu discurso e seu
alcance ampliado com o advento dos [xilo]grafites, pois, como afirma Canclini [9]: ―a ‗arte do
desenho urbano‘ é semelhante à do romancista que se move em uma trama aberta, em que irá
253
realizando mais descobertas‖. O grafiteiro, agora, explora novos temas que não se prendem
apenas ao cotidiano e ao imaginário das cidades, visto que seus sujeitos-autores alcançam e
capturam para si a cultura e o imaginário próprios do sertão brasileiro, que geralmente, são
discriminados e tidos como inferiores em relação à encontrada nas urbes e as transformam em
suas criações representadas nos muros, realizando, assim uma conexão sertão-cidade e
praticando uma inclusão, mesmo que pequena, dos elementos de um sobre a outra (nesse caso,
os elementos sertanejos nas cidades).
Foi possível perceber, ao longo do primeiro período deste estudo, que o cotidiano do
sujeito-autor das escritas urbanas permeia-se por interfaces de práticas discursivas
materializadas pelas linguagens (como ações e como representações da sociedade) que
produzem, reproduzem e transformam as relações do que se concebe como real e que se
contaminam pelo imaginário coletivo. Nem sempre esses sujeitos têm, porém, consciência de
que, mediante seu discurso, representam o mundo e se fazem representar por ele (agindo
sobre ele e sobre o Outro e transformando-o em sentido) e de que, mediante suas ações, ainda
que as mais prosaicas, (re)constituem o mundo vivido, revelando maneiras de perceber e de
enunciar o real da língua (e, por conseguinte, da cidade) e de construir sua própria identidade
em sociedade.
Para que o interlocutor desse sujeito possa analisar de forma crítica a sua escrita nos
espaços urbanos, é também preciso analisar como diferentes identidades envolvidas com o
texto (e o seu entorno) se (inter)relacionam, como elas (inter)agem e como influenciam umas
as outras. Pode-se, ainda, analisar a relação dialogal que permite alcançar os sentidos dessas
escritas, considerando que ali [no texto] se reflete, na concepção que esses sujeitos têm de
mundo, seus valores, suas crenças, enfim, suas representações de mundo – o sentimento
permite a interação com a realidade e a apresentação das identidades sociais.
Tem-se considerado, na condução deste trabalho, que a manifestação de múltiplos signos
visuais (captados pelas lentes fotográficas, no trabalho de mapeamento dos espaços da cidade
de Recife) e as apropriações dos sentidos que os interlocutores fazem em relação a eles
marcam a reinvenção da própria cidade, pois é nela que se constroem sistema e mundo de
vida; é nela que tanto se refletem sentidos já instaurados quanto se podem instituir novos
sentidos; e é nela que se expõem à crítica ideologias e manifestações de poder baseadas na
identidade e na alteridade.
AGRADECIMENTOS
254
Agradeço à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e ao CNPq, pela
concessão da bolsa PIBIC para o desenvolvimento deste projeto de pesquisa; aos colegas do
grupo de pesquisa, destacadamente Alesson Luiz Gois da Silva, pelas opiniões acerca do
trabalho; e, em especial, aos meus pais e familiares por seus esforços em oferecer o melhor
em prol de minha formação educacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[4] e [5] WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. Trad. Maria Stela Gonçalves. São
Paulo: Edições Loyola, 2007.
[6] PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,
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[7] MAGALHÃES, Célia. Reflexões sobre a Análise Crítica do Discurso. Belo Horizonte,
MG: Editora da Faculdade de Letras da UFMG, 2001.
[8] RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Analise de Discurso (Para a)
Critica: o texto como material de pesquisa. São Paulo: Editora Pontes, 2011.
[9] CANCLINI, Nestor García. Imaginários Culturais da Cidade:
conhecimento/espetáculo/desconhecimento. In COELHO, Teixeira. A Cultura pela Cidade.
São Paulo: Iluminuras, 2008.
ANEXOS
255
FIGURA 1 - Grafite feito por Derlon Almeida, Recife. Acervo do Projeto
――Transversalizando o Transverso: grafites e pichações em muros de escolas recifenses - uma
leitura, muitas aplicações‖ / NIEL.
FIGURA 2 - Grafite feito por Derlon Almeida, Recife.
256
FONTE: Acervo do Projeto ――Transversalizando o Transverso: grafites e pichações em
muros de escolas recifenses - uma leitura, muitas aplicações‖ / NIEL.
ARTE E PROPAGANDA: CINEMA E IDEOLOGIA DURANTE O ESTADO NOVO
(1937-1945)
Arthur Gustavo Lira do Nascimento
Palavras-chave: Estado Novo, Cinema, Propaganda, Ideologia.
Introdução
Durante a Primeira Guerra Mundial, a indústria cinematográfica européia, até então a
mais poderosa e conhecida do mundo, foi arrasada. Com o enfraquecimento dessa produção,
os Estados Unidos da América começou a produzir e importar vários filmes que se
destacaram pelo mundo. Alguns produtores migraram para a costa oeste dos EUA, onde
encontraram um bom espaço para as locações dos filmes. Com diferentes paisagens, surgia
então a Hollywood, que se transformaria no maior centro da indústria cinematográfica.
O cinema para muitos empresários foi encarado como um grande negócio, bastante
lucrativo às desesperanças econômicas dessa década. Para o Estado, a sétima arte foi utilizada
como um forte veículo de propagação ideológica. Durante a Segunda Guerra Mundial, por
exemplo, os Estados Unidos produziram vários filmes de caráter patriota e antinazistas que
serviram de propaganda de guerra. A Alemanha também se utilizou do cinema como
ferramenta política: o próprio Hitler financiou produções de diversas películas que enalteciam
o nazismo. Dessa forma, o Estado se apropriava da sétima arte para usá-la em seu favor.
Além do caráter propagandístico da guerra, o imaginário norte americano: seus hábitos,
costumes e suas belezas naturais foram levados através de Hollywood para diversos países,
incluindo o Brasil. ―A indústria cinematográfica e as agências publicitárias dos Estados
Unidos empenharam-se em propagar o ‗American way of life‘, isto é, os valores da sociedade
de consumo e seus produtos‖ (LEITE, 2005, p. 25).
Graduado em História – UPE/Campus Mata Norte. E-mail: arthurlira31@hotmail.com ; Orientado pela
Professora Susan Lewis, UPE/Campus Mata Norte. E-mail: s.lewis@uol.com.br.
257
Desde finais da Primeira Guerra Mundial, o cinema norte-americano ocupou seu espaço
nas salas de cinema do Brasil. Em 1925, a capital brasileira havia exibido 1.065 filmes
estadunidenses, enquanto o cinema francês ocupava o segundo lugar com 85 exibições
(SIMIS, 1996, p. 75). A disparidade nas estatísticas nos revela o intenso fluxo de filmes
hollywoodianos no Brasil, uma hegemonia existente até hoje.
A primeira fase do governo Varguista no Brasil conviveu de perto com o crescimento da
indústria cinematográfica estadunidense nas salas brasileiras. O Estado entrou em cena, para
interferir com incentivo às produções nacionais, em 1932, foi implementada a lei que
obrigava à exibição de filmes nacionais. Tal medida contribuiu como um protecionismo ao
cinema nacional, que vivia de uma concorrência desleal com as produções dos Estados
Unidos, fabricadas por uma indústria muito bem estruturada, atingindo um maior público da
sociedade.
A maior aproximação durante esse período entre o cinema brasileiro e o Estado,
entretanto, foi a criação do INCE, Instituto Nacional do Cinema Educativo, segundo Sidney
Ferreira Leite, ―o primeiro, e mais duradouro órgão estatal voltado para o cinema brasileiro‖
(LEITE, 2005, p. 36). As vésperas do Estado Novo, o INCE iria determinar a principal
proposta do novo regime aos meios de comunicação: a propaganda governamental.
O INCE servia para incentivar a execução de filmes e documentários de caráter
educativo. Os filmes realizados pelo órgão mostravam os ideais nacionalistas ao qual Vargas
defendia. Deve-se ressaltar que: ―Nas perspectivas de Getúlio Vargas, o cinema constitui um
dos ‗mais úteis fatores de instrução de que dispunha o Estado moderno‘, educando ‗sem
exigir o esforço e as reservas de erudição que o livro requer e os mestres, nas salas de aula
reclamam‖ (ALMEIDA, 1999, p. 77).
Em 1939, foi criado então o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), o DIP foi
usado por Vargas para fortalecer controle e manutenção da sua política propagandística. Mais
uma vez, com a criação de um órgão estatal, o governo usava seu poder de intervenção
perante os meios de comunicação. O órgão foi responsável por materializar o grande esforço
empreendido durante o Estado Novo: ―controlar os instrumentos necessários à construção e
à implementação de um projeto político-ideológico que se afirmasse como socialmente
dominante.‖ (LEITE, 2005, p. 41).
O objetivo geral do trabalho é estudar as relações entre cinema e ideologia durante o
Estado Novo (1937-1945), o poder e manipulação do Estado na produção cinematográfica,
através das produções exibidas durante esse período, fazendo assim uma reconstrução de uma
parte da história do cinema nacional, seus estilos e estéticas, e sua importância para a
258
historiografia. Analisando a influência dos filmes nacionais e estrangeiros no Brasil e o
controle do governo com a reprodução dos mesmos, compreendendo suas relações com a
cultura política do governo Vargas. Assim, faz-se uma leitura da atuação do governo
estadonovista quanto à censura e propaganda, caracteristicamente ideológico, especialmente
do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
Metodologia
Partindo da abordagem histórica sobre cultura e política no Estado Novo brasileiro, a
metodologia desse projeto está relacionada à análise historiográfica dos conteúdos e fontes
para o determinado período. As fontes de pesquisa histórica estão presentes no Arquivo
Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) e no Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Buscamos a compreensão do tema proposto,
incrementando ao trabalho relatos do período – jornais, cartas, revistas –, além, da própria
produção audiovisual que nos tem sido legada.
O cinema, assim como outras artes, permite ao espectador uma percepção sensível da
reconstrução de um ou vários aspectos da realidade. Ele é importante na história por ser: um
agente histórico, uma fonte histórica, uma representação histórica e também um instrumento
para o ensino da história.
No trabalho historiográfico, o cinema aparece como ferramenta para o desenvolvimento
das aulas de história, e também como uma importante fonte histórica. Surgido no século XIX,
passou por um processo de grande evolução no século seguinte, atingindo um grande público,
fazendo parte o imaginário popular. O papel da arte nas sociedades é uma ferramenta peculiar
para se compreender a mentalidade e suas construções sociais, partindo desse ponto,
buscamos a análise historiográfica do cinema como ferramenta para a pesquisa do regime
estadonovista.
Com a utilização da perspectiva de Marc Ferro (2010), buscamos pensar através do
Cinema sobre o comportamento da sociedade brasileira durante o Estado Novo, suas práticas
sociais e estruturas políticas através da arte e do imaginário coletivo nos quais o cinema está
inserido, importante para compreender a cultura política e ideológica do sistema vigente. A
abordagem acerca da História Cultural em nosso trabalho é feita a partir das considerações de
Peter Burke (2005). Fazendo assim uma análise historiográfica baseada na teoria sociocultural
e política em que o trabalho se insere.
259
Resultados e discussão
Compreendendo o poder da arte perante a sociedade, o Estado Novo brasileiro (1937-
1945) também se preocupou com o crescente cinema. Diversos filmes passavam pela
fiscalização e censura do governo de Vargas. O Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) catalogou os cinemas e teatros, exercendo uma censura sobre peças e filmes, houve
ainda, a utilização dos mesmos para propagandear os ideários do Estado Novo.
A criação do INCE – Instituto Nacional do Cinema Educativo – serviu como um esforço
do Estado para a construção de um cinema nacional que tivesse peso perante a sociedade
brasileira que voltava sua atenção majoritariamente ao cinema norte-americano. A união entre
educadores e cineastas servia para que além do incentivo do Estado se criasse um cinema de
qualidade, estes filmes retratassem valores da cultura brasileira: sua história, sua geografia,
seus artistas; o cinema servia assim como uma ferramenta de criação de identidade, uma
identidade financiada e controlada pelo Estado Novo (ALMEIDA, 1999, p. 59).
O esforço de cineastas brasileiros junto ao Estado era transformar o Brasil num pólo da
indústria cinematográfica. O cinema deveria ser sustentável e industrial. Da mesma forma que
os norte-americanos levaram o American way of life às salas de exibição em várias partes do
mundo, o Brasil buscava retratar sua cultura e tradição por meio do cinema, que para o Estado
também era visto como uma forma de educar e instaurar valores nacionais, sendo um veículo
de propaganda. Com o apoio à sétima, Getúlio Vargas ficou conhecido como ―pai do cinema
nacional‖, a imagem populista, incentivando o cinema local, fez com que o controle através
da propaganda e censura de um governo autoritário passasse despercebido pela população, ou
de certa forma, aceito por parte da sociedade.
Nesse cenário, surgem nomes como o cineasta mineiro Humberto Mauro, membro do
INCE, dirigiu com incentivo do Estado Novo, durante o período que esteve no órgão, dois
grandes filmes: Descobrimento do Brasil (1937) e Argila (1940). A produção desses filmes
nos revela características do cenário político quanto às propostas e cuidados do Estado ao
cinema (ALMEIDA, 1999, p. 90). Dessa forma, as análises das obras se tornam importantes
fontes para a pesquisa historiográfica.
Em Descobrimento do Brasil (1937), Humberto Mauro buscou reconstruir os primeiros
passos da colonização retratando assim a História do Brasil. O filme trata-se de uma
reprodução dos acontecimentos relatados na Carta de Pero Vaz de Caminha, considerada a
certidão de nascimento do Brasil. O filme também trouxe detalhes importantes: em sua
montagem, Mauro tentou reproduzir em grandes detalhes, o famoso quadro de Victor
260
Meirelles ―A primeira missa‖ (1860), mostrando assim traços da cultura brasileira, não só
reproduzindo os relatos de Caminha, mas trazendo também o imaginário da arte sob os
acontecimentos. A trilha sonora do filme foi composta por Heitor Villa-Lobos, um expoente
da música brasileira, que em sua obra enalteceu o espírito nacionalista, incorporando
elementos populares.
A composição de Villa-Lobos no filme ressalta os valores nacionais e pode ser inserido
como uma das propostas da política propagandística do Estado Novo. Exaltando elementos do
Brasil, os meios de comunicação estavam atrelados a configurar um caráter de unidade e
nacionalismo que envolvia também a figura de Getúlio Vargas. Infelizmente, a película não
teve grande destaque, ficando pouco tempo em cartaz na capital.
O grande problema do cinema nacional durante esse período era justamente a aceitação
do público. Habituados com o cinema norte-americano, as sessões nacionais, que se tornaram
obrigatória durante o governo de Vargas, não se tornaram tão populares. O culto ao cinema
hollywoodiano fez parte de quase todas as salas de exibição no Brasil. Na contramão o
cinema nacional se desenvolvia buscando espaço, mas sem reconhecimento, tornando
algumas películas um fracasso, o que dificultou a ascensão de uma indústria cinematográfica
brasileira.
Nos registros de jornais e revistas da época, a predominância do cinema norte-
americano é inegável. Pouco se encontra sobre as produções locais e o cinema nacional. Nos
programas das salas de cinema, retratados diariamente pelos jornais, podemos observar que
apesar da lei de obrigatoriedade de exibições nacionais, a grande maioria dos filmes tratava-se
de películas estadunidenses, pois, era o alvo principal do público, lotando os grandes cinemas
e também os populares cinemas de bairros.
O cenário do cinema durante o Estado Novo nos expõe características da política de
Vargas quanto aos meios de comunicação e o imaginário social que se criava através dos
filmes. Fazendo uma análise da massificação dos filmes norte-americanos e da trajetória do
cinema nacional podemos construir uma abordagem historiográfica peculiar acerca do Estado
Novo.
A ideologia envolvida junto à preocupação e atenção ao cinema nos revela um dos
principais alicerces da política varguista. Em Pernambuco, o Departamento Estadual de
Imprensa e Propaganda (DEIP) catalogou os cinemas e teatros, exercendo uma censura sobre
peças e filmes, houve ainda, a utilização dos mesmos para propagandear os ideários do Estado
Novo. O mesmo ocorria em todos os outros estados. Era necessário saber quais locações
existiam e o que era exibido.
261
Uma das grandes realizações Departamento de Imprensa e Propaganda, foi o
―Cinejornal Brasileiro‖ (ALMEIDA, 1999, p. 94), onde documentários sobre a vida cotidiana
da política nacional, em formato de curta-metragem, deveriam ser exibidos obrigatoriamente
antes da película principal. O Cinejornal foi à instrumentalização do cinema na mobilização
político-social do regime, utilizando dos recursos audiovisuais para impactar os espectadores.
Os passos do chefe da nação, suas obras e feitos eram retratados ao longo desses curtas. O
Estado Novo então não só controlava aquilo que deveria ser ou não visto, como projetava nas
telas o imaginário da nação que Vargas queria construir. O momento político utilizou dessa
forma a propaganda para legitimar o regime perante as massas. As idéias lançadas nos curtas
promoviam a nação e o Estado, através da figura de seu representante. Esse estilo
propagandístico não era muito diferente daquele utilizado por Hitler e Mussolini, que também
utilizaram o cinema como ferramenta política.
Conhecer a conjuntura que caracterizaram a relação entre o cinema e o Estado nos
aponta para novas percepções ao trabalho historiográfico. Estudar o cinema como ferramenta
à História, vai muito além do que apenas narrar à trajetória da sétima arte, e sim observar e
analisar todo um cenário por trás. Os interesses políticos tornaram a arte um importante
mecanismo de veiculação de idéias à massa. Getúlio Vargas, percebendo sua importância,
trouxe o crescente cinema para perto do seu governo, tornando-o um importante papel de
formação e propagação dos ideais do Estado Novo.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Cláudio Aguiar. Cinema como agitador de almas: Argila, uma cena do
Estado Novo. São Paulo: Ed. Annablume, 1999.
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
FERRO, Marc. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2010.
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema Brasileiro: das origens à retomada. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abrano, 2005.
SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo, Annablume, 1996.
SÍTIO ARQUEOLÓGICO DA PEDRA DO NAVIO: UM DESAFIO NA
PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA CIDADE DE PARANATAMA-
PE
262
Reginaldo Vilela de Lima1,
Iolanda Cardoso de Santana,²
Emanoel Magno Atanásio de Oliveira³
Lydiane Batista de Vasconcelos4
Introdução
O presente trabalho pretende analisar os desafios existentes na preservação de um
patrimônio cultural que é relevante para construção da memória local dos habitantes da cidade
de Paranatama-PE. Percebe-se, na localidade que um dos grandes desafios, é conscientizar os
moradores da relevância do sítio arqueológico para a construção da identidade cultural, já que,
boa parte da situação de descaso e ações predatórias, estão vindo dos próprios estudantes da
Escola Municipal Maria Gomes da Silva situada nas proximidades do sítio.
A região onde se localiza hoje o município de Paranatama-PE e outros municípios
circunvizinhos foram áreas de domínio indígena durante o período pós-colonial. O próprio
nome da cidade provém dos índios Itaquatiaras, primitivos habitantes da região. Em uma
perspectiva mais restrita de conceituação, o termo Itaquatiara quer dizer gravura na rocha,
forma intencional de arte, o sítio paranatamense é um exemplar dos muitos sítios
pernambucanos, ricos em obras artísticas de valor incontestável, mas esquecido e depredado
pela falta responsabilidade com o patrimônio histórico cultural.
O sítio dispõe de uma grande quantidade de grafismos rupestres monocromáticos da cor
vermelha que datam aproximadamente 6 mil anos A.P. Os moradores das proximidades dizem
ter aversão às figuras representadas nas rochas, pois relatam se tratar de coisas do mal,
associando assim, as gravuras a algo místico e maléfico. As figuras rupestres recebem,
portanto, um tratamento profano por grande parte dos moradores da cidade, isso influência na
preservação do sítio, pois os habitantes deixam de se preocupar com a conservação de um
ambiente em que não querem fazer parte.
Este patrimônio se encontra ameaçado devido às ações predatórias realizadas pelos
próprios habitantes da localidade, que estão pichando os afloramentos rochosos com seus
nomes em uma tentativa de autopromoção de seu nome para a posteridade, obstruindo assim
os grafismos e reduzindo sua vida útil, o desapego pela historia local, implica na formação de
cidadãos despreparados que iram reproduzir as mesmas praticas destruidoras.
Houve uma narrativa de que na localidade, existiria um tesouro deixado pelos holandeses
nas rochas que compõem o sítio, e que por um desses motivos narrados, tentaram dinamitar a
rocha na qual estão os grafismos. Esse fato serve de exemplo, de que as narrações e as
263
diferentes concepções das pessoas da localidade referentes ao sítio podem influenciar na
preservação desse patrimônio, pois, essa narrativa do tesouro escondido na rocha, não foi
comprovada, serviu apenas como um ato predatório.
Devemos salientar também a ocorrência da degradação natural, que ocorre por fatores
naturais tais como: O acebolamento fenômeno comum nos afloramentos rochosos que
dispõe de água em seu interior ou armazenam de forma casual em seu exterior, caso dos
caldeirões formados nas rochas, este fenômeno é resultado da proliferação de algas briófitas
que formam colônias como os ―musgos‖. Vivendo em ambientes úmidos alimentando-se dos
sais e minerais contidos nas rochas, ocasionando graves problemas. Após o período chuvoso
os musgos perdem sua fonte de alimento, em decorrência disto secam e morrem ou hibernam
para ressurgirem na próxima chuva. Essa mortalidade obstrui os painéis onde estão os
grafismos. Em decorrência deste e de outros fatores naturais à rocha passa pelo processo de
decapagem, perdendo camadas, desfigurando os painéis.
Essa pesquisa pretende verificar de forma clara, fatores que representam obstáculos na
preservação patrimonial na cidade de Paranatama-PE, pois isso irá contribuir para uma
abordagem educativa na localidade, que exponha a realidade de desprezo com que é tratado
o sítio arqueológicoexistente no município, devido a um conceito de modernidade que
supervaloriza o novo em detrimento do antigo.
Material e Métodos
O trabalho teve início com os levantamentos bibliográficos pertinentes ao tema abordado;
visita de campo com ensaios fotográficos da localidade e seus problemas socioambientais.
Foi realizado um diálogo com os moradores das proximidades do sítio, em que foi
discutido temas como; preservação do patrimônio cultural, a construção da memória local
para produção historiográfica do município e as pichações das rochas promovidas por jovens
da cidade.
Desenvolvimento de palestras na localidade, que teve como objetivo expor a riqueza
natural e cultural do sítio arqueológico da Pedra do Navio, buscando conscientizar os
moradores do descasoque esse patrimônio culturalexistente na cidade vem sofrendo ao longo
dos anos, bem como a produção de um documentário relatando todos os mistérios da história
da cidade de Paranatama-PE.
O arquivo teórico foi selecionado a partir de artigos científicos, pesquisas na internet,
livros e outros periódicos que abordaram o tema.
264
Resultados e Discussão
Junto aos grafismos rupestres foram observadas pichações atuais com nomes de pessoas e
símbolos religiosos. Havia no sítio um bar, onde os moradores realizavam atividades de lazer,
deixando no local, lixo e depredando o ambiente. Houve, nas rochas que compõe o sítio
durante certo período, extração de granito para fins econômicos.
O sítio arqueológico apresenta atualmente, uma riqueza histórica, arqueológica e natural
incontestável, porém as marcas desse processo depredação já são bem visíveis e à medida que
o tempo vai passando, e nenhuma medida educativa mais enérgica que objetive a
conscientização é tomada, vai havendo não apenas perdas materiais irreparáveis, mas também
de valor cultural.
O cuidado com os bens patrimoniais visa resguardar a memória, dando importância ao
contexto e às relações sociais existentes em qualquer ambiente. Não é possível preservar a
memória de um povo sem, ao mesmo tempo, preservar os espaços por ele utilizados e as
manifestações quotidianas de seu viver. Como assinala a educadora Regina Leite Garcia, a
escola deve assumir um compromisso; em relação a isso:
―O papel da escola é, também, ensinar a degustar as formas de conteúdos que hoje pode
parecer superados, mas que fazem parte das nossas raízes, ou pertencem ao
patrimônio cultural da humanidade. A poesia chinesa clássica, as pinturas rupestres
de Altamira e de Lascaux, a concepção das malocas dos índios brasileiros, as
esculturas africanas contemporâneas são tão importantes quanto um concerto de
Xinakis, uma pintura de Picasso, um poema Drummond de Andrade, um filme de
Ingmar Bergman, um vídeo de Bill Viola, um Balé de Martha Graham ou uma
fotografia de Sebastião Salgado. (Garcia, p.46)‖.
Diferentemente disso, no cemitério de cidade, as tumbas pertencentes a vários indivíduos
que fizeram parte da elite econômica da cidade, e outros que lutaram contra o bando de
lampião, apresentam-se muito bem preservadas, tendo um funcionário público responsável
pela limpeza do local.
Como existe em Paranatama, certa desvalorização da história dos grupos indígenas
primitivos, que habitavam a região e foram vencidos historicamente pelos colonizadores
europeus, existe o risco de no futuro, uma produção historiográfica do nordeste, excluir a
história dessas classes subalternas, já que as poucas fontes existentes, que relatam um pouco
da vida desses povos estão ameaçadas de extinção.
―Segundo Ecléa Bosi, ―o passado não é o antecedente do presente, é a sua fonte‖ (BOSI,
p.130)‖. Isso é relevante pelo fato, das fontes históricas serem indispensáveis para construção
265
da história de um determinado povo. E quando se tratadas classes que forma vítimas de forte
opressão ao longo de sua existência, essas fontes se tornam raras, pois no Brasil, a política
preservacionista, desenvolvida no governo de Getúlio Vargas, o serviço do patrimônio
histórico e artístico nacional (SPHAN) que teve sua criação em 1937, se preocupou apenas
com o tombamento, de bens imóveis, referentes aos setores dominantes da sociedade, como,
as igrejas barrocas, os fortes militares, as casas-grandes e os sobrados coloniais, esquecendo-
se dos bens culturais e materiais que fizeram parte as classes subalternas.
Na perspectiva de Ricardo Oriá, ―essa política da preservação que norteou a prática do
SPHAN e seus similares nos estados e municípios objetivava passar aos habitantes do país a
ideia de uma memória unívoca, de um passado homogêneo, e de uma história sem conflitos e
contradições sociais. (Oriá, p. 131)‖.
Todo este ciclo de depredação do patrimônio arqueológico, e fruto de uma educação
falha, principalmente nos aspectos da valorização do nosso patrimônio cultural, o descaso
levou as autoridades municipais a mobilizarem seus esforços na busca tombamento do
patrimônio artístico junto ao Iphan. Porém, vale ressaltar que apenas essa apropriação do local
pelo estado é insuficiente, visto que boa parcela dos cidadãos da sociedade contemporânea,
não enxergam as posses do estado como também sendo suas posses, as quais deveriam
valorizar e conservar para que as próximas gerações possam usufruir.
É inadmissível que essa pratica de depredação continue se perpetuando, pois as pichações
apresentam também algumas datas escritas que remetem um longo período de descaso com
sítio arqueológico. E segundo relatos de moradores, ocorre no local durante a noite prática
sexual, além ser um ponto encontro de jovens que utilizam o ambiente para tomarem bebidas
alcoólicas e emcasos mais restritos,fazerem uso de drogas. É um descaso total com uma área
que é referência para construção da memória e da história do município.
É imprescindível destacar, que a maior causa das depredações ocorridas no sítio, provém
do fato dos habitantes de Paranatama, não se identificarem e nem reconhecerem as pinturas
rupestres como sendo manifestações artísticas de uma sociedade remota, mas que é uma fonte
relevante para conhecerem a realidade cultural e social em que estão inseridos.
Nesse caso a memória dos habitantes dessa cidade, é importante pelo fato de fazerem os
moradores perceberem a fisionomia da cidade, sua própria história de vida, suas experiências
sociais e lutas cotidianas que estão entrelaçados com o ambiente em que eles vivem. Enfim,
sem a memória os indivíduos de Paranatama não irão conseguir se situar na própria cidade,
pois, perde-se o elo afetivo que propicia a relação habitante-cidade.
266
Uma das alternativas de preservação de forma sustentável, desse patrimônio seria a
atividade turística, onde os habitantes irão ter ótimos motivos para manter sua preservação, já
que o sítio irá trazer renda e a tão sonhada estabilidade financeira, almejada pela a população
de Paranatama.
Outra importante medida seria uma intervenção pedagógica mais enérgica, que
possibilitasse modificar as práticas predatórias dos alunos e da comunidade, pois o acesso a
um conhecimento que busca conscientizar as pessoas através de praticas que visam à
preservação de maneira sustentável irá, possibilitar os habitantes terem uma nova concepção
da importância desse acervo arqueológico para toda região.
Agradecimentos
Agradecemos aos nossos familiares pelo apoio e incentivo, bem como a direção da
Universidade de Pernambuco – U.P. E, Campus Garanhuns, assim como a todos os colegas
graduandos do curso de História da referente universidade.
Referências Bibliográficas
[1] BOSI, ECLÉA. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. 3. Ed. São Paulo: Cia.
Das letras, 1994.
[2] BRASIL, Parâmetros Curriculares Nacionais. Terceiro e Quarto ciclo do ensino
fundamental: Apresentação dos temas transversais. Brasília: SEF/ MEC, 1998 B.
[3] GARCIA, REGINA LEITE. Cartas Londrinas e de outros lugares sobre o lugar da
educação. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1995.
[4] IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
[5] LE GOFF, Jacques. História e memória; tradução Bernardo Leitão – Campinas-
SP, Editora da UNICAMP, (coleção repertórios) 1990.
[5] ORIÁ, RICARDO. Memória e Ensino de História. São Paulo, editora Contexto. 1997.
267
A. Pinturas rupestres presente nas rochas em Paranatama-PE.
B. Indícios de pichações provocadas por jovens do município.
C. Grafismos rupestres, monocromáticos de cor vermelha.
D. Vista da pedra que dá o nome ao sítio arqueológico.
E. Domínio vegetacional da Caatinga Hiperxerófila.
268
F. Chegada ao sítio arqueológico Pedra do Navio.
AS REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA: DISCUTINDO
HISTÓRIA PELA LITERATURA
Cristiane de Souza Soares¹§§§§§§§§§§
Ângela Grillo²***********
PALAVRAS- CHAVE: interdisciplinaridade, História, Literatura
INTRODUÇÃO
Escrever história hoje é estar aberto às várias possibilidades, é desvencilhar-se de um
passado pronto e acabado, um passado construído por grandes feitos ou grandes heróis, ou
seja, uma história singular. Nesse sentido, o presente trabalho pretende investigar os
pertinentes diálogos entre a história e a literatura no universo escolar, objetivando-se analisar
as proximidades e os distanciamentos entre esses dois campos do saber, e aproveitando esse
relevante diálogo para construir, refletir e problematizar aulas de história que despertem no
aluno o prazer pela disciplina, afastando-se de um ensino de história fundamentado na
memorização e/ou na repetição.
A partir do reconhecimento de um saber histórico interdisciplinar, buscamos trazer
para a sala de aula linguagens alternativas no ensino de História, ampliando o conhecimento
do alunado quanto às novas fontes historiográficas. Segundo a autora Maria Auxiliadora
Schmidt, o uso escolar de diferentes documentos estimula a observação do aluno e contribui
para sua reflexão (SCHIMIDT, 2008), resultando num processo de construção do senso
critico.
A historiografia contemporânea tem sofrido transformações acerca da sua metodologia
e lançado novos olhares sobre os objetos de análise. A pesquisa na contemporaneidade traz
grandes desafios não só aos historiadores, mas também aos estudiosos das demais áreas do
conhecimento. A história se volta para uma multiplicidade de novas questões e utiliza outras
Aluna de Graduação e iniciação a docência do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Rua Dom Manoel
Medeiros, s/n Dois Irmãos-Recife (PE)-CEP 52171-900. E-mail: cristiane.s.soares@gmail.com. Apoio: PIBID/UFRPE/CAPES Professora Doutora, Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Rua Dom Manoel Medeiros, s/n Dois Irmãos-Recife (PE)-CEP 52171-900. E-mail: lagrilo@msn.com Apoio UFRPE
269
lentes sobre questões já estudadas. ―Semelhantemente a um caleidoscópio, vemos uma
história plural, múltipla, multifacetada, pois não conseguimos defini-la, apreendê-la, torná-la
estática para a dissecarmos‖ (SILVA, 2004). Há um incessante revisitar e reescrever no fazer
historiográfico.
Esse repensar na historiografia teve seu marco teórico principal na Escola dos
Annales, movimento intelectual, ocorrido na França a partir de 1929, com forte influência
interdisciplinar. Mas é na chamada terceira geração desta Escola que a história mais se
aproxima da antropologia, da sociologia, do cotidiano, da cultura. Essa mudança de
paradigma traz ressonâncias até os dias atuais. Os horizontes epistemológicos da história são
ampliados, assim como os diálogos com outros saberes e outras áreas do conhecimento, e
mais fortemente com a literatura.
Interessante pensarmos que essa aproximação da história com a literatura não ocorre
em um sentido único. É uma via de mão dupla. Os estudos literários contemporâneos também
revêem seus paradigmas e há uma busca por esse diálogo epistemológico com a história. Há
um retorno à narrativa pelos historiadores e um retorno à historicidade por parte dos
estudiosos da literatura.
Assim, torna-se necessário que esse possível diálogo interdisciplinar entre História e
Literatura ultrapasse os muros da Universidade e atinja também o Ensino Fundamental e
Médio, com o objetivo de formar educandos com um maior poder de reflexão,
questionamento e criatividade.
Material e métodos
Pretendemos realizar uma pesquisa, e desenvolver um cotejo entre as fontes, buscando
traços de aproximação e traços de distanciamento das histórias narradas na literatura com
relação à historiografia acadêmica e o livro didático. Sem dúvida, essa pesquisa muito
contribuirá como incentivo à leitura, e à formação cognitiva de adolescentes e/ou jovens do
Ensino Fundamental e Médio, promovendo uma relevante relação da linguagem lúdica da
Literatura e a História.
Ao analisar o uso do livro didático no ensino de História, percebemos que o conteúdo
apresentado não é suficiente para levar uma compreensão mais abrangente. O conhecimento
limita-se aos grandes feitos, e os alunos apenas reproduzem o assunto abordado, sem ao
menos ter a oportunidade de construir sua critica.
270
A literaura possibilita ao ensino de história tratar de diferentes temáticas, despertando
o senso crítico do alunado, uma vez que a critica literária se faz presente na nova abordagem
da historiografia. Usando o livro didático e os textos literários podemos confrontar visões
distintas, levando o aluno a construir seu conhecimento histórico. Lembrando sempre que a
relação que se constrói entre o texto abordado e o leitor, nesse caso o aluno, é de extrema
importancia na construção de um saber amplo.
A principal preocupação é mostrar aos alunos que o ensino de História não é limitado
ao aprendizado dos fatores políticos, econômicos e sociais, ele é ainda mais amplo, fazendo
perceber que toda essa situação em um dado momento resultou em inquietações, e muitas das
quais foram deixadas nas escritas literárias. Por tanto, buscamos a interdisciplinaridade,
dialogando os saberes históricos com a literatura.
O papel fundamental do professor nesse projeto será o de mediador, ao guiar uma aula
de História buscará aguçar nos alunos curiosidades, saindo da exposição dos fatos, e entrando
em leituras representativas da sociedade da época estudada. A partir dessas leituras, a parceria
entre professor e aluno resultará numa ampla compreensão do momento estudado, e a
avaliação do que foi aprendido será em dinâmicas em grupos, com jogos que incentivem o
debate, misturando-se os conteúdos históricos com as representações literárias.
Resultados e Discussão
O presente trabalho trata-se de um projeto de iniciação a docência, financiado pelo
PIBID/UFRPE, e se encontra em andamento. Através desse projeto, pretendemos melhorar a
relação dos alunos com as aulas de História, pensando em maneiras que despertem os seus
interesses, partindo da análise da dificuldade dos professores em abordar os conteúdos da
disciplina
Assim, as transformações no pensamento historiográfico na segunda metade do século
XX são decisivas para mostrar as novas gerações de educadores do ensino de História, as
possibilidades de trabalhar conteúdos a partir de diferentes linguagens, não limitando-se a
fatos políticos, econômicos e materiais da sociedade.
Abordar as representações literárias é de grande relevância, uma vez que ―os
fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de
observar, sentir, compreender, nomear e exprimir ‖(SEVCENKO,2003, p. 286)[3]. Assim,
apresentaremos aos alunos a literatura como denuncia do seu tempo, através de uma
abordagem cultural, dando espaço ao aluno construir seu conhecimento histórico
271
Dessa maneira, buscamos em nosso trabalho aproximar esses novos paradigmas da
historiografia, mais especificamente os textos literários, com o ambiente escolar, aceitando o
desafio de atrair os alunos para uma nova proposta da construção de um saber histórico.
Através da concretização desse projeto esperamos também compreender ainda mais as
relações de rupturas e permanências do pensamento social, político, cotidiano e cultural de um
período histórico.
Agradecimentos
Agradeço a minha família pelo apoio e compreensão na minha caminhada acadêmica,
em especial a minha irmã Roberta, futura historiadora que me ajuda discutindo os textos e
analisando meus escritos; ao meu namorado Vinicius, que esta ao meu lado em todos os
momentos. Não posso esquecer-me dos meus amigos, que juntos passamos pelas dificuldades
e superamos, nunca desistindo dos nossos objetivos. Agradeço também a Professora Ângela
Grillo, por orientar meu projeto de iniciação a docência, e ao PIBID/UFRPE por permitir a
execução e financiamento dessa pesquisa.
Referências:
BRUCE, Fabiana. FALCÃO, Lúcia. DIDIER, Maria Tereza. História(s) e Ensino de História.
In: Caderno de Estudos Sociais da Fundação Joaquim Nabuco. Recife, vol. 22, n. 2, jul./dez.,
2006, p. 199-207.
CHARTIER, Roger. História e Literatura. In: CHATIER, Roger. À beira da falésia; a história
entre inquietudes e incertezas. Porto Alegre: Ed. Universitária: UFRGS, 2002, pp. 255-271.
____________. Literatura e História. Topoi, Rio de Janeiro, n° 1, pp. 197-216.
_____________. A ―Nova‖ História Cultural Existe?. In: LOPES, Antonio Herculano.
VELLOSO, Monica Pimenta. PESAVENTO, Sandra Jatahy.(Orgs). Rio de Janeiro: 7 Letras.
2006, pp 29-43.
MELLO, Guiomar Namo de. Educação escolar brasileira: o que trouxemos do século XX?
São Paulo: Artmed, 2004.
MORIN, Edgard. A cabeça bem feita. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil,1999.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de
aula. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo:
Contexto, 1997, pp.55-66.
272
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira
República. 2° ed. São Paulo: Compnhia das Letras, 2003.
SILVA, Cristiano Cezar Gomes da. História, cidade e modernidade: a instituição dos signos
modernos na cidade de Belo Jardim (1950/1970). Tambor – revista da Faculdade de
Formação de Professores de Belo Jardim, n. 02, abr. 2004, p.23.
PAULINO, Graça. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Formato, 2001.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & literatura: uma velha-nova história, Nuevo Mundo
Mundos Nuevos, Debates, 2006, [En línea], Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL :
http://nuevomundo.revues.org/15
DAS GRANDES TELAS DO CINEMA PARA SALA DE AULA: O DISCURSO
CINEMATOGRÁFICO NO ENSINO DE HISTÓRIA
Divany Elizabeth Ramos do Nascimento†††††††††††
Palavras-chave: história, cinema, educação, conhecimento, modernidade.
A nossa prática docente enquanto problematizadores do conhecimento, para muitos
professores e discentes, passou a vivenciar um novo tempo, não de maneira nunca antes vista,
mas nunca antes discutida e repensada, mais salienta-se falar que ―há mais de 200 anos já era
praticada na Alemanha com o nome de kulturgeschichte‖.‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
O que passou a ocorrer
foi um olhar a partir do contar história, não mais priorizando os grandes homens
(personagens) e seus grandes feitos, mas agora viria um embate entre cultura e civilização. Já
na primeira geração dos Annales através de seus representantes como Lucien Febvre e Marc
Bloch, representaria em novos caminhos na busca desse saber historiográfico. Mas, só na
fundação da Revista Francesa ―Annales d‘histoire économique et sociale‖, em 1929, é que
viria uma possível ―escola‖ que passaria a realizar algo incomum na época, a
interdisciplinaridade, porém não se afastando dos teóricos que delineiam o saber disciplinar e
pedagógico.
Graduandado curso de Licenciatura plena em História pela UFRPE.‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
BURKE, Peter. O que é história cultural?. Tradução Sergio Goes de Paula. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 2005. Pág. 15.
273
Assim, vemos atualmente a utilização de vários recursos como instrumento
interdisciplinar no campo educacional, quando pensamos nas imagens, como pintura,
fotografia, charges, músicas e também como elemento complementador em sala: o cinema.
Na verdade para que servia o cinema em seus 1895? E como as pessoas reagiam ao
longo da passagem das cenas? ―... que utilidade poderia ter para a História [...] um filme que
mostra um trem entrando na estação de La Ciotat?‖§§§§§§§§§§§
. Essas e outras perguntas que
estaremos fazendo ao longo deste trabalho servem para pensarmos sobre essa análise fílmica
hoje.
Ao relembrarmos o século XIX, percebemos que foi o período que houve, além dos avanços
técnico-científicos, grandes riquezas no âmbito artístico e cultural, onde estava aos poucos
―nascendo‖ uma sociedade capitalista voltada para uma nova visão de mundo e tudo que esse
―mundo‖ poderia oferecer-lhes.
Quando Lilia Schawrcz e Angela Costa afirmam que ―o final do século XIX representa
o momento do triunfo de uma certa modernidade que não poderia esperar.‖************
,
ficando claro que os acontecimentos da época, a influência intelectual que as pessoas
passavam a ter acesso, em busca da racionalidade dos acontecimentos fazia com que
contribuísse para o surgimento dessa modernidade, mesmo que esta não estivesse, pelo menos
de início, ligada a um projeto de sociedade.
A corrente que tratava dessas questões e indagava os conceitos ditos ―imutáveis‖ na
Europa passou a ser chamada de Iluminismo, em que existia a pretensão de ―iluminar‖ as
pessoas e ―clarear‖ suas mentes, permitindo que as mesmas pudessem buscar elementos para
que se sentissem mais satisfeitas com suas vidas, vindo a explorar através das suas condições
ora privado, através da sua subjetividade, do ―eu‖ enquanto sujeito, o que é necessário para
que ―eu‖ me sinta satisfeito, ora público, através dos inventos na busca da felicidade, do bem
estar. Termos estes que ao longo da modernidade††††††††††††
, estiveram atrelados ao progresso
científico.
Tudo era novo e extraordinário para os participantes da época, a velocidade, a luz e uma das
que se destacaria nesse fim de século: o Cinema ou como em sua época de esplendor, o
cinematógrafo.
§§§§§§§§§§§
FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução e notas Flávia Nascimento, editora Paz e Terra. 2ª
edição, São Paulo, 2010. ************
COSTA, Angela Marques da. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Virando Séculos 1890-1914: No tempo
das certezas. São Paulo, Companhia das letras, 2000. Pág. 9. ††††††††††††
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalência. Trad. Marcus Penchel. Jorge Zahar Editor, Rio
de Janeiro, 1999. Pág 12.
274
Diante dessas novas possibilidades de abordagens percebemos o quanto a utilização de
imagens, quadros de arte, retratando um período histórico e ainda o cinema, que já são
utilizados em livros didáticos, contribuirão no aprendizado.
Assim, devemos salientar que o recorte possivelmente feito a partir de um certo filme,
não será meramente ilustrativo e este não é colocado aqui do ponto de vista semiológico, mas
sim, como um produto.
Lembrando ainda que ―de lá pra cá, tanto a noção de documento quanto a de texto
continuaram a ampliar-se.‖ brilhantemente colocado nas palavras de Ciro Flamarion e Ana
Maria Mauad, na obra Domínios da História. ―Desta forma, novos textos, tais como a pintura,
o cinema, a fotografia etc., foram incluídos no elenco de fontes dignas,...‖ permitindo que
outros elementos, como o livro didático e os documentos ditos oficiais, que sempre estiveram
à frente em pesquisas históricas agora se viam acompanhados de novos elementos a serem
problematizados.
Percebendo que teremos que elencar as devidas análises para compreender as
influências externas sobre nosso objeto de pesquisa, o Cinema. Pois, sabemos, mesmo que o
diretor ou a produção não deixe claro seu ponto de vista sobre o que o filme aborda ou sobre o
que acreditam, mas este está veiculado às várias análises que no olhar de Marc Ferro, ―o filme
fala por si só.‖
De acordo com Certeau o social será indispensável para a análise. ―É em função deste
lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os
documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam‖, ou seja, o lugar de
referência daquele que produziu o filme e o lugar do qual tal sociedade faz parte. Percebendo
ainda que será a partir dessa análise do lugar social que poderemos analisar as cenas e os
discursos por ele (o diretor) utilizado.
E é nessa perspectiva que nós, professores-pesquisadores, atrelamos a cuidadosa
análise do filme, retirando o senso comum, de que filme é apenas utilizado em momentos
onde existe falta de professores na escola, mais, sobretudo, que este é um documento
histórico, feito em uma determinada sociedade, que dispõe da escolha de cenas, do cenário, da
trilha sonora para que legitime os elementos trabalhados no decorrer do filme, como por
exemplo, a disposição das câmeras e também do câmera-man, dito por Ferro, o
funcionamento real‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
dela, o que ela ―captura‖, como também as falas ou a ausência
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
FERRO. Idem.
275
delas, implicitando outras análises, levando em consideração a conjuntura de elaboração da
cena que poderá de maneira pedagógica a ser utilizado em sala de aula.
É a partir de todos esses elementos que o filme pode provocar no público, podendo
esse ser aluno, professor e/ou telespectador, um sentimento de investigação, como a que a
equipe técnica desta produção quis mostrar ao construir uma determinada cena. Com isso a
pretensão é tratá-lo como fonte, pois o filme possui essa capacidade de desestruturar o que
diversas gerações construíram como ―verdade‖, a partir de seus documentos, já que se trata de
uma representação, logo também não pode ser colocado como verdade e sendo assim, ele
também estará passível às críticas, podendo ser construídas em sala.
COCO DE SÃO JOÃO: A POÉTICA DO IMPROVISO
Autora: Elysangela Vieira Santana de Freitas*
Orientadora: Marcília Gama da Silva**
Palavras-chave: sociolinguística, oralidade, poesia, improviso, Coco de São João.
Introdução
O Coco é uma manifestação popular de dança, música, canto e poesia oral, encontrada
em toda região Norte e Nordeste do Brasil, especialmente nos Estados de Alagoas, Paraíba e
Pernambuco. Contudo, também é possível brincar Coco em Estados como São Paulo, onde é
grande a influência dos nordestinos.
Observa-se que as variações do folguedo ocorrem pelas mudanças de nomenclatura de
uma região para outra, por algum aspecto na dança e, principalmente, pela diferença na
métrica dos versos que são cantados§§§§§§§§§§§§
.
* Especialista em Língua Portuguesa, com ênfase em produção textual, com graduação em Licenciatura em
História e Bacharelado em Direito. elysangela@gmail.com. **
Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco,
Professora Adjunta I da Universidade Federal Rural de Pernambuco. §§§§§§§§§§§§
BORBA, Alfredo et al. Brincantes. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000. Pág. 105.
276
A manifestação cultural do Coco é uma das mais importantes expressões da cultura
popular tradicional em Pernambuco. Durante o ano inteiro um grande contingente de pessoas
reúne-se em rodas para cantar e dançar Coco*************
.
É grande a variedade de temas e formas poéticas utilizadas pelos coquistas. Segundo
Mário de Andrade, os Cocos são construídos com habilidade e virtuosidade literária. Em sua
opinião, ―se alguns são simplistas, muitos são duma riqueza de forma, duma liberdade que os
outros gêneros literários do nosso folclore jamais não apresentaram‖ †††††††††††††
.
A reivindicação social e política é um aspecto marcante no Coco, posto que o cantador
não é só o repórter da realidade, mas interfere nela, tenta modificá-la com o seu discurso
poético. Daí a importância deste trabalho para que articulemos a imaginação da poesia com as
variações linguísticas, na construção analítica do nosso caminho ao centro da nossa própria
história.
Conforme explana Marcos Bagno, toda e qualquer variedade linguística é plenamente
funcional, ou seja, oferece todos os recursos necessários para que seus falantes interajam
socialmente, é um meio eficiente de manutenção da coesão social da comunidade em que é
empregada‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
.
Zumthor corrobora tal entendimento ao afirmar que a voz é tão fortemente social
quanto individual, tendo em vista que mostra de que modo o homem se situa no mundo e em
relação ao outro; assim como ―interpela o sujeito, o constitui e nele imprime a cifra de uma
alteridade‖ §§§§§§§§§§§§§
.
Segundo Roger Chartier, teórico ligado à Nouvelle Histoire, um autor pode ser lido e
entendido quando se leva em conta o contexto no qual o seu trabalho foi produzido. Assim, ao
pensar os processos de socialização, é possível ir do discurso ao fato, questionando a idéia de
fonte como mero instrumento de mediação e testemunho de uma realidade e considerando as
representações como realidade de sentidos múltiplos e variados. Para o autor, as
representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as
*************
SOBRINHO, Paulo F. Rosa. Sentidos e sonoridades múltiplas na música do Coco do recife e
região metropolitana. Recife: O Autor, 2006. Pág. 11. †††††††††††††
ANDRADE, Mário de. Os cocos. 1. ed. São Paulo: INL, 1984. Pág. 359. ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São
Paulo: Parábola Editorial, 2007. Pág. 48. §§§§§§§§§§§§§
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. Págs. 15 e 29.
277
forjam e elaboram e, por conseqüência, ficam pressupostos em seus discursos, modos de
pensar e compreender o mundo em que vivem.**************
Percebemos, ainda, que a poesia cantada não deve ser considerada como um fazer
autônomo, por ser um meio que se relaciona com fatores extra-musicais presentes na
sociedade e na cultura, influenciando e sendo influenciada por eles. Nesse sentido, este
trabalho utilizou a música como uma linguagem que se comunica e expressa a diversidade
sociocultural dos indivíduos.
Dentre a diversidade de Cocos existente em Pernambuco, o Coco de São João destaca-
se quanto à utilização do improviso, do verso feito na hora. O nome Coco de São João ou
Samba de São João vem do fato de que a brincadeira do Coco ter uma relação estreita com o
ciclo junino, pois é nesse período em que é mais brincado, tendo em vista a questão da
colheita do milho.
Este trabalho tem por objetivo a análise das características da poesia do Coco de São
João, a fim de demonstrar a importância do texto oral na construção da nossa identidade
social e cultural, pois é língua em uso e, por conseguinte, em constante transformação. Nesse
contexto, pretende-se, ainda, apontar a relevância e a necessidade de se compreender o
significado da variação e da heterogeneidade linguísticas, para preservar e difundir os valores
da cultura local. Para tanto, consideramos os sujeitos textuais como construções sociais e
discursivas, os quais interagem com o outro, no seu cotidiano por meio da linguagem.
Material e métodos
Para a execução deste trabalho foi realizada pesquisa de campo, sempre com o olhar
do observador participante, em conversas com vários coquistas durante as apresentações e as
sambadas de cocos, especialmente a Sambada da LAIA, ação cultural que acontece
mensalmente na cidade de Camaragibe, onde há exibições de filmes e apresentações musicais
(ciranda, maracatu, forró,...) e, eventualmente, recitais de poesia, teatro e dança, tendo como
principal atrativo a brincadeira o Coco.
De maio a setembro de 2011 assistimos a várias apresentações de diversos grupos de
Coco, muitas das quais foram fotografadas e o áudio gravado para a posterior transcrição das
letras das músicas, quando possível; participamos do I Seminário Municipal do Coco
realizado na Cidade de Olinda em 20/06/2011; e assistimos ao documentário ―Coco de
**************
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, jan.-abr. 1991, vol. 5, n.
11, p. 173-191.
278
improviso e a poesia solta no vento‖, o qual aborda o universo do Coco de São João na
Região Metropolitana do Recife e conta com depoimentos de quatro mestres de diferentes
gerações do Coco de improviso, fazendo um estudo que resgata e valoriza essa tradição. Estas
são as fontes das colheitas dos Cocos analisados, além de vídeos postados na internet e das
entrevistas não dirigidas realizadas com Adiel Luna nos dias 15 e 16 de agosto de 2011.
Observe-se que na transcrição das entrevistas e das letras do Coco para análise do corpus foi
feita a opção de não destacar as variações linguísticas, por considerá-las integradas ao
discurso.
Ao mesmo tempo, tivemos acesso a diversas entrevistas elaboradas por Yann Le Daré,
no ano de 2009, com coquistas olindenses e artistas ligados à cultura popular como Siba
Veloso e Guga Santos, para o programa de rádio chamado "Autour du monde" (Ao redor do
mundo) da Rádio Périgueux 103, uma emissora francesa.
Paralelamente foram efetuadas buscas na internet acerca dos temas relacionados à
poética do Coco, tais como: músicas, vídeos, fotografias, imagens de cartazes e textos de
todos os tipos – livros digitais, dissertações, artigos, reportagens, entrevistas, notas; assim
como foi realizado o levantamento de uma bibliografia acerca dos termos que percebíamos
como relevantes na temática do presente trabalho, a qual foi se revelando pouco a pouco.
Assim, foram pesquisadas obras relacionadas à linguística, destacando-se autores
como Marcos Bagno e Luiz Antônio Marcuschi, principais eixos teóricos quanto à variação
linguística e aos gêneros textuais, respectivamente. No que concerne à poesia oral, a leitura
das dissertações de André Telles do Rosário e de Maria Alice Amorim, assim como parte da
obra de Paul Zumthor, se revelaram de fundamental importância para a compreensão do fazer
poético na cultura da oralidade e do conceito de performance. Em relação à História Cultural,
Roger Chartier contribuiu com a análise e o debate entre política, cultura e cultura popular.
Quanto ao Coco, os autores mais relevantes foram: Mário de Andrade, que, em viagens ao
Norte e Nordeste do Brasil, elaborou o registro, em campo, de diversas manifestações
artísticas populares, dentre elas os Cocos; Maria Ignez Ayala e Marcos Ayala, pesquisadores
da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, que desenvolvem pesquisas sobre as culturas
tradicionais e a oralidade; além de Luís da Câmara Cascudo e as dissertações de Paulo
Fernandes Rosa Sobrinho e Elisa Paiva de Almeida.
Por meio da pesquisa bibliográfica e documental e, principalmente, da observação em
campo, descobrimos a riqueza da poesia oral brasileira, assim como a importância da
linguagem na construção da identidade cultural dos grupos sociais.
279
Resultados e discussão
Ao final da pesquisa observamos o importante papel da poesia oral na nossa cultura,
devido à sua força como elemento de coesão social e cultural. Nesse contexto, o trabalho
também expôs, através da sociolinguística, que a música e suas letras são suportes atraentes e
possibilitam inúmeras leituras interpretativas mostrando costumes, cultura, evolução da
linguagem e contrastes sociais.
O caminho trilhado por nós demonstra que a linguagem do Coco de São João não é
apenas verbal, sendo também de expressão corporal e musical, eis que, em regra, nas
sambadas há uma grande participação do público, que dança e canta junto com o coro,
enquanto que os cantadores tocam seus pandeiros e interagem com o público por meio dos
improvisos, um dos grandes atrativos da brincadeira. Nos versos de repente os coquistas,
quase sempre, se referem a pessoas presentes e fatos do conhecimento de todos, sendo comum
tratar do assunto do dia.
Constatou-se também que o Coco de São João possui léxico próprio e que os
elementos verbais desta arte quase sempre escapam às normas formais oriundas das práticas
da escrita, não sendo percebidos como ―poesia‖, o que caracteriza e perpetua o preconceito
linguístico.
Normalmente as canções possuem uma parte já pré-estabelecida, com mote e refrão, e
outro segmento é criado no momento da performance. Como é comum na estrutura dos
poemas orais musicados, o Coco de São João tem como base a repetição das rimas, haja vista
que o recurso mnemônico auxilia a recordação e transmissão das canções. Na visão de Maria
Alice Amorim, ―as formas fixas se configuram como um dos eixos que permitem um
nomadismo a atravessar tempo e espaço‖††††††††††††††
.
Acrescente-se que os improvisadores, a depender das circunstâncias, utilizam-se de
moldes feitos de chavões, fórmulas e tópicos, sendo estes, inclusive, um dos traços
definidores da poesia oral.
Vejamos o exemplo abaixo:
Adiel Luna: Na minha praia de Coco
Os coqueiro tão safrejano
††††††††††††††
AMORIM, Maria Alice. No visgo do improviso ou A peleja virtual entre cibercultura e tradição:
comunicação e mídia digital nas poéticas de oralidades. São Paulo: EDU, 2008. Pág. 38.
280
Lêoncio: Tão medonho tirano Coco
Tenho vinte descascano
Trinta tenho pra tombá
Quarenta tenho contano
Cinquenta n‘arvre carregado
Sessenta tá carregano
Setenta tá encostado
E oitenta vai viajano
Viu?
Nem ligo, nem tô ligano
Que eu tenho Coco demai
E aqueles Coco que cai
Eu chamo os pobre e vou
dano
Adiel Luna e
Leôncio:
Na minha praia de Coco
Os coqueiro tão safrejano
Improviso de
Lêoncio:
Leôncio:
Mando Coco pá Bahia
Até para o estrangero
São Paulo e Rio de Janero
Minina, também vendia
Eu escolho outro dia
Pra concretizar meus plano
Nem ligo, nem tô ligano
Que eu tenho Coco demai
E aqueles Coco que cai
Eu chamo os pobre e vou
dano
Na minha praia de Coco
Os coqueiro tão safrejano
Improviso de Canto Coco em qualquer
281
Adiel Luna: tema
Cantá Coco é meu serviço
Eu nasci com compromisso
Canto em qualquer sistema
Canto Coco no cinema
O povo tá aí filmano
Nem ligo, nem tô ligano
Que eu tenho Coco demai
E aqueles Coco que cai
Eu chamo os pobre e vou
dano
Adiel Luna e
Leôncio:
Na minha praia de Coco
Os coqueiro tão safrejano
Outra característica do Coco de São João é o desafio, que, segundo depoimento de
Adiel Luna, sempre foi muito forte, tanto que muitos cantadores acabavam se irritando uns
com os outros e, às vezes, saía briga nos confrontos.
Aqui temos um Coco de insulto:
Zeca do
Pandeiro:
Leôncio pra cantá Coco
Era um leão voraz
Adiel Luna:
Naquele tempos atrás
Era enfeitado
Hoje tá velho, cansado
É um leão desdentado
Nem as unha arranha mais
Leôncio pra cantá Coco...
A seguir vem a resposta:
Leôncio: Quem quer comprar um
282
Adiel Luna:
Leôncio
Bernardo:
Adiel Luna:
Leôncio
Bernardo:
leão
Eu tenho um pra vendê
Leão eu achei você
É de dentro das Montanha
com uma sarna tão medonha
Lhe tratei pra não morrê
Dei água, dei de comê
Tá aí o resultado
Ele adepois de curado
Tá quereno me mordê
Quem quer comprar um
leão
Eu tenho um pra vendê (3x)
Foi o Zeca do Pandeiro
Eu ensinei tanto a tu
Ele achou que era pôco,
Meu triste companhêro,
Se meteu a desordêro
Foi obrigado eu fugi
Adiel Luna: Quem quer comprar um
leão
Eu tenho um pra vendê (2x)
Restou demonstrado que a maioria dos processos linguísticos apontados no trabalho
explica-se pela própria índole e evolução da língua portuguesa e que a riqueza do português
falado pelo povo produz formas próprias de poesia, contribuindo com criatividade na
construção das rimas e das formas poéticas.
Assim, a presente pesquisa possibilitou a realização de leituras e visualizações da
diversidade da língua portuguesa, por meio da análise de uma prática cultural de poesia, canto
e dança numa sociedade em transformação, que tem sua força na alegria e que luta por manter
sua identidade em um mundo planificado e padronizado.
283
Agradecimentos
Agradecemos ao Grupo Camará e aos cantadores Leôncio Bernardo, Ruy Pereira,
Zeca do Pandeiro, Manoel Ferreira e Adiel Luna; assim como a todos que participam do
Laboratório de Intervenção Artística – LAIA e a Natália Lopes.
Referências
AMORIM, Maria Alice. No visgo do improviso ou A peleja virtual entre cibercultura e
tradição: comunicação e mídia digital nas poéticas de oralidades. São Paulo: EDU, 2008.
ANDRADE, Mário de. Os cocos. 1. ed. São Paulo: INL, 1984.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BORBA, Alfredo et al. Brincantes. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Estudos Avançados, jan.-abr. 1991,
vol. 5, n. 11.
SOBRINHO, Paulo F. Rosa. Sentidos e sonoridades múltiplas na música do Coco do
Recife e Região Metropolitana. Recife: O Autor, 2006.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O MESSIANISMO: UMA VISÃO SÓCIO-
ANTROPOLÓGICA
Autor (es): Emanoel Magno Atanásio de Oliveira‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
.
Iolanda Cardoso de Santana§§§§§§§§§§§§§§
.
Reginaldo Vilela de Lima***************
.
Orientador: Adjair Alves4 †††††††††††††††
.
¹Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE – Campus
Garanhuns; e-mail: emanoel077@gmail.com.
²Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE – Campus
Garanhuns; e-mail: iolandacsantana@gmail.com.
³Graduando do curso de Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco – UPE – Campus
Garanhuns; e-mail: reginaldovilela2011@hotmail.com.
4Doutor em Antropologia. Professor Adjunto do curso de História da Universidade de Pernambuco – UPE –
Campus Garanhuns; e-mail: adjairalves@gmail.com.
284
Palavras-chave: Messianismo, Religiosidade, Catolicismo popular, Dimensão simbólica.
Introdução
A pesquisa e o estudo acerca de fenômenos sociais como o messianismo no Brasil traz
a tona um vasto leque de intensos e novos perfis de interpretações sobre o assunto. Numa
tentativa de aproximar a discussão sobre o tema do messianismo, é essencial notificar que esta
se fundamenta na perspectiva do imaginário social e, adquire um forte valor sob o plano de
concretização de determinado objetivo fruto de um anseio coletivo baseado em tom místico-
religioso. Aqui, não se limitando a um ideal puramente abstrato de fundo ideológico e
dogmático. Ou seja, o tema do messianismo está sempre relacionado a questões sociais
característica de um grupo marginalizado, que busca o bem estar social e felicidade através do
fazer prevalecer inicialmente uma estrutura e organização social fundada no trabalho coletivo
e solidariedade (PAVÃO, 2006).
Nesse cenário destaca-se – na mentalidade messiânica – o teor do universo simbólico
pelos grupos que os perpetuam. Posto, que se valem essencialmente do caráter das crenças na
qual dão significados num plano não somente extraterreno, mas também e, sobretudo em um
aspecto que lhes são peculiares de vivência prática, no mundo da práxis histórica. Um dos
fatores relevantes para o entendimento da formação, bem como dos surtos messiânicos que se
desencadearam pelo Brasil, é o seu caráter de interiorização; os principais segmentos que se
formaram faziam parte da população rural brasileira, que na lógica vivenciada foram
reproduzidas a partir do catolicismo popular ou rústico.
Esse distanciamento, caracterizado muita das vezes pela tensão do sertanejo em
relação à forma de cristandade da fé católica oficial torna-se um solo fértil para o surgimento
dos beatos e líderes religiosos leigos (QUEIROZ, 2005)‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
, que são característicos
desses fenômenos religiosos evidenciados no sertão brasileiro. A esses líderes leigos – que
dão a tônica ao messianismo –, ―santos‖ acreditam-se (para os seguidores) serem, em
detrimento da liderança do padre oficializada pela igreja, representantes e, antes de tudo os
verdadeiros representantes de Deus na terra.
As pesquisas, assim como as várias interpretações feitas de tal fenômeno e movimento
religioso faz com que novos estudos surjam em particular no âmbito das Ciências Sociais e
históricas, enriquecendo o debate a respeito do tema. Dado à complexidade do assunto em
questão, se fazem necessários a releitura e interpretação da literatura específica sobre o tema,
‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Renato da Silva Queiroz. Mobilizações sócio religiosas no Brasil: os surtos messiânicos-milenarista,
Revista USP, p. 132-149. São Paulo, 2005.
285
excetuando-se nomes como o de, Renato Queiroz e Lísias Negrão. Nosso trabalho, no que
concerne a leitura da temática, objetiva traçar uma análise entre as interpretações sobre as
mobilizações messiânicas e milenaristas que se desencadearam no sertão brasileiro, a figura
do líder messiânico e o catolicismo rústico. Interpretações essas que podem ser evidenciadas a
partir do campo das Ciências Humanas e Sociais.
Material e métodos
Para o exercício da leitura valemo-nos da bibliografia específica, do campo da história
e que trata da análise e elucidação do fenômeno messianismo no interior do Brasil. O aporte
teórico foi selecionado e constitui-se principalmente de livros, artigos científicos pesquisados
em sites acadêmicos na internet e periódicos que abordam a temática. Visando assim,
organizar e interpretar o acervo selecionado com a intenção de comparar as informações,
apontar os contrapontos já que se trata de uma leitura cunho crítico-reflexiva.
A Metodologia aqui, se deu como processo exploratório de leitura crítico-reflexiva das
fontes bibliográficas, seguida da interpretação dos textos de autores que estudam e pesquisam
o tema, relacionando-os entre si, para apontar as distinções e contrapontos que caracterizam
suas abordagens da temática.
A análise dos apontamentos levantados procedeu-se como ação reflexiva, à medida
que possibilitava destacar categorias sociológicas consideradas fundamentais na identificação
do fenômeno social estudado. O levantamento dessas categorias possibilitou recortar o
processo histórico-social que marcou o fenômeno do messianismo no Brasil; aspecto
primordialmente da análise que nos propusemos na construção do referido trabalho.
Resultados e discussão
Um fenômeno religioso de caráter tão abrangente como é característico dos
movimentos messiânicos, só pode resultar em variadas interpretações quando se pretende
estudá-lo cientificamente a luz do campo das Ciências Históricas e Sociais. Embora se tenha
registro – principalmente em meados do último século e princípio do XXI – de tais
movimentos em segmentos urbanos da sociedade brasileira, os principais movimentos e
mobilizações de cunho messiânico que fizeram parte da dinâmica sócio religiosa no Brasil
originaram-se em áreas de zona rural, ou seja, no interior do país. Além de Canudos e do
Contestado – os mais conhecidos – outras mobilizações fizeram parte da panorâmica social no
interior, ou melhor, sertão brasileiro: trata-se de surtos como o liderado pelo beato Quinzeiro
no movimento denominado Pau-de-Colher onde os participantes – remanescentes do
movimento Caldeirão, surto liderado pelo beato José Lourenço (afiliado de padre Cícero) que
deu origem a uma comunidade extremamente mística no interior do Ceará na década de 1930
286
(Idem) – deixaram o Estado cearense e se fixaram na Bahia; o surto do Catulé ocorrido em
medos da década de 1950 protagonizado por trabalhadores recém convertidos à Igreja
Adventista da Promessa, que ocuparam uma gleba de terras do município mineiro de
Malacacheta, na ocasião sacrificaram quatro de suas crianças, alguns cães e gatos até o
momento em que foram impedidos e presos pelas forças militares; outro surto encabeçado
pelo líder religioso e ex-soldado Silvestre José dos Santos, conhecido como ―Profeta‖ que
após peregrinação fixou-se no Estado de Pernambuco onde liderou o movimento nos
arredores do monte Rodeador, reunindo em torno de 400 adeptos num vilarejo denominado
Paraíso Terrestre (Idem). Um fenômeno bastante conhecido é o encabeçado pela figura do
padre Cícero (1870-1934), que além de líder religioso, também se tornou político bastante
respeitado na cidade cearense de Juazeiro de Norte. Padre Cícero que foi santificado pela
devoção católica-popular, da qual nos deteremos mais adiante.
Diante do que foi exposto acima, propusemos fazer um recorte bibliográfico das
interpretações classificando-as entre as três principais vertente: as interpretações de cunho
biopsicológicas, interpretações sociológicas e as interpretações compreensivo-interpretativa.
As interpretações biopsicológicas, vincula-se aquela vertente da qual a principal obra que lhe
serve de auxílio teórico é, Os Sertões de Euclides da Cunha. Nessa vertente a condição
místico-religiosa aliada às condições físicas e psicológicas predominou como afirma Queiroz
(Idem, p. 141): ―[...] um tipo biológico (o mestiço), majoritário nas populações sertanejas, a
responsabilidade por essa tendência psicológica aberta ao misticismo‖. Outros fatores também
contribuiriam – menos significativas, mas aliadas aquelas – para o levante dos surtos
messiânicos: pobreza, analfabetismo e ignorância, o que desencadearia em ―fanáticos
rebeldes‖.
Entre as décadas de 1950 e 1970 surgiram novas abordagens no que concerne ao
fenômeno. Trata-se das abordagens – a luz das Ciências Humanas e Sociais – de cunho
sociológicas e histórico-antropológicas. As interpretações sociológicas tradicionais surgidas a
partir da década de 1950 agrupadas foram em numerosos trabalhos, no qual duas vertentes
destacam-se. A primeira caracteriza o messianismo como uma modalidade pré-condicionada a
revolução social. Onde em seu interior assume-se a condição econômica como primordial,
cuja religiosidade seria apenas uma ―máscara ideológica‖ da realidade social vivida pelos
sertanejos. Teoricamente baseados nas pesquisas de Eric Hobsbawm sobre os camponeses da
Alemanha, pesquisadores brasileiros adotaram tal perspectiva teórica para entender e
interpretar o messianismo no Brasil. Um dos principais nomes a adotar essa linha de pesquisa
foi Rui Facó, onde o mesmo se pauta por uma concepção do fenômeno a partir de uma
287
perspectiva evolucionista, no qual o ―fanatismo‖ daria lugar à revolução político-social no
interior das comunidades. Já na segunda vertente destaca-se a interpretação de Maria Isaura
Pereira de Queiroz, o fenômeno adquire um posicionamento na lógica social
―desmistificando‖ aquela vertente patológico-social, anteriormente apresentada. O
messianismo passa a ser classificado de acordo com lógica social no interior de cada
sociedade, obedecendo a critérios e condições que lhe são peculiares.
Porém, nenhuma das vertentes descritas acima considera a dimensão simbólica como
própria e intrínseca a realidade social das comunidades que protagonizaram tais movimentos.
Apenas a partir de meados da década de 1970 com a abordagem compreensivo-interpretativa,
passa-se a entender os movimentos messiânicos enquanto movimentos dotados de sentido,
pois busca na dimensão simbólica a visão dos que o protagonizam (Idem). Assim, o sentido
do evento torna-se fator primordialmente investigado, ou seja, uma investigação interpretativa
analisada a partir da dimensão simbólica. Nessa vertente desancam-se principalmente as
pesquisas de Duglas Teixeira Monteiro, Laís mourão, Josildeth Gomes Consorte, Renato da
Silva Queiroz e Lísias Nogueira Negrão.
Embora as abordagens sobre o fenômeno messianismo anteriores à interpretação
compreensivo-interpretativa – principalmente a de tradição sociológica – tenham aberto o
leque para uma ampla compreensão das mobilizações sócio religiosas do tipo messiânico no
Brasil, com pesquisas e análises que muito contribuíram para um melhor entendimento como
no caso das interpretações de Maria Isaura Pereira – a partir da lógica social do fenômeno; a
abordagem compreensivo-interpretativa traz uma dimensão antes nunca evidenciada pelas
abordagens até então conhecidas: a dimensão simbólica. Com a releitura e o novo modo de se
compreender o fenômeno, privilegia-se o universo simbólico e de significados dos atores e/ou
agentes que os perpetua, inseridos em seus ritos e mitos, bem como em suas relações com o
sagrado. Nessa perspectiva, podemos elucidar as condições socioculturais em que os atores
sociais estão inseridos.
Outro indispensável assunto a ser compreendido é o catolicismo popular, também
rotulado de catolicismo rústico, resultante do quadro da ação catequizante da Igreja católica
em especial no sertão brasileiro. Vale ressaltar desde então que, neste espaço físico em
discussão, desde e o inicio a pregação da fé católica careceu de uma organização densamente
ao molde ortodoxo romano, somando-se ainda o fato da escassez do sacerdote nesta investida
religiosa. Este foi então uma das grandes contribuições formadoras de um terreno fértil
propício ao aparecimento do misticismo religioso e da figura do beato. A relação próxima
com o catolicismo popular intrínseca em áreas interioranas perece ser antes, uma afirmação de
288
um catolicismo que se queira autônomo em relação à Igreja (NEGRÃO, 2009, p. 36);
provocado pelo ―vazio simbólico‖ deixado pela ideologia dominante (POMPA, 1998), nesse
caso pelo vazio deixado pelo catolicismo dito oficial.
Assim, o distanciamento da religião oficial torna-se um solo fértil para os líderes
religiosos leigos que, passam a ser considerados (pela comunidade e seguidores) como os
verdadeiros representantes de Deus, já o padre nada mais é que um funcionário da Igreja
(Ibidem, 2005) e representante de seus interesses. E o líder como assinala Queiroz ao citar
Bourdieu: ―é o homem das situações de crise quando a ordem estabelecida ameaça romper-se
ou quando o futuro parece incerto‖ (BOURDIER, apud, QUEIROZ, 2005, p. 147). O líder, o
profeta, o beato, é o testemunho de fidelidade que arregimenta grupos inteiros de seguidores,
é antes de tudo a imitação de Cristo (COSTA, 2008).
Entender o messianismo a partir da lógica simbólica é reconhecer nos agentes que os
propagam esse caráter símbolo da cultura na qual estão inseridos, a própria realidade
existencial daquelas comunidades. Portanto, como afirma Durkheim (1979, p. 206) ao se
referir à religiosidade:
Portanto, no fundo, não existem religiões falsas. À sua maneira todas são
verdadeiras, todas respondem, mesmo que de diferentes formas, a condição
dadas da existência humana. Sem dúvida, é possível dispô-las segundo uma
ordem hierárquica. Umas podem ser ditas superiores às outras no sentido em
que elas põem em jogo funções mentais mais elevadas, são mais ricas em
ideias e sentimentos, nelas figuram mais conceitos, menos sensações e
imagens, sua sistematização é mais engenhosa. Mas, por mais reais que
sejam esta maior complexidade e esta alta idealidade, elas não são
suficientes para classificar as religiões correspondentes em gêneros
separados. Todas são igualmente religiões, assim como todos os seres vivos
são igualmente vivos, desde os mais humildes plastídios até o homem. [...]
Elas respondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel,
dependem das mesmas causas; portanto, elas podem servir para manifestar
igualmente bem a natureza da vida religiosa e, por conseguinte, para resolver
o problema que desejamos tratar.
Compreender a religião nesses moldes é classifica-la enquanto uma modalidade imersa
em signos e significados tecidos pelo homem. É compreender as necessidades existenciais
própria do ser humano. Como reflexo da existência e da capacidade criadora dos seres
humanos, espelho no qual nos vemos. Como assinala Rubem Alves quando cita Ludwig
289
Feuerbach: ―A Consciência de Deus é autoconsciência. A religião é o solene desvelar dos
tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos íntimos, a confissão aberta dos
seus segredos de amor‖ (FEUERBACH, apud, ALVES, p. 13). Ainda segundo Alves (Idem,
p. 25): a religião nasce – no interior das comunidades – pela necessidade que os homens têm
de nomear as coisas, distinguindo o supérfluo do necessário, onde morte e vida relacionam-se.
E é pela busca desse desvelar dos tesouros sagrados e dos mais íntimos segredos que
constitui-se a interpretação dos símbolos constituintes à religiosidade, onde se insere o
fenômeno do messianismo no sertão brasileiro.
Agradecimentos
Ao departamento de Geografia e História, assim como a Universidade de Pernambuco
– UPE – Campus Garanhuns pelo apoio em relação à pesquisa. Aos meus pais Antônio e
Maria pelo incentivo.
Referências
ALVES, Rubem. O que religião? 11ª edição Loyola, São Paulo, 2010.
COSTA, Vanderlei Marinho. De medos e esperanças: uma história das crenças apocalípticas,
messiânicas e milenarista no contexto do movimento de Belo Monte (1874-
1902).Universidade Federal da Bahia(Dissertação apresentada ao Mestrado de História),
FFCH, Salvador, 2008.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália; seleção de textos de José Arthur Giannotti; tradução de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura, et. al. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os pensadores), 1979.
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Sobre os messianismos e milenarismos brasileiros, Revista
USP, São Paulo, nº 82, p.32-45, 2009. Disponível em
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n82=>. Acesso em: 10 Out 2011.
PAVÃO, Suzana Rodrigues. A força do mito que percorre terras e tempos, Universidade
de São Paulo/USP, São Paulo, 2006. Disponível
emhttp://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7120.pdf=>. Acesso em: 17 Out 2011.
POMPA, Cristina. A construção do fim do mundo: para uma releitura dos movimentos
sócio religiosos do Brasil ―rústico‖, Revista de Antropologia, vol. 41 nº 1, São Paulo, 1998.
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=>. Acesso em: 22 Out 2011.
QUEIROZ, Renato da Silva. Mobilizações sócio religiosas no Brasil: os surtos messiânico-
milenaristas, Revista USP, São Paulo, nº 67, p. 132-149, 2005. Disponível em
<http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/revusp/n67=>. Acesso em:10 Out 2011.
290
DISCUTINDO HISTÓRIA, ESCREVENDO HISTÓRIA(S): UM EXERCÍCIO DE
FORMAÇÃO DOCENTE
Karla Fernanda Falcão Rodrigues de Fraga*
Ana Lúcia do Nascimento Oliveira**
Palavras-chave: iniciação à docência; experiência pedagógica; ensino de História;
§§§§§§§§§§§§§§§metodologias alternativas de ensino; formação da cidadania.
INTRODUÇÃO
Tendo em vista a inserção da escola na cultura contemporânea onde o recebimento de
informações é constante, intenso e multilateral (COSTA, 2006), podemos perceber o
desinteresse dos alunos em estudar História, visto o distanciamento entre as vivências destes
indivíduos e os conteúdos apresentados em sala de aula. A partir desta inquietação, surgiu a
proposta de, participando do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência
(PIBID), iniciativa da Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que tem
funcionado como um canal de fundamental importância para os discentes das licenciaturas,
trabalhando com uma escola que passa por problemas nas estruturas física, administrativa e
pedagógica, que exige do docente, mediante suas atividades cotidianas, a conquista dos alunos
a partir da criação de possibilidades de aproximação do alunado com a disciplina histórica.
OBJETIVOS
O projeto vinculado ao PIBID intitulado Discutindo História, escrevendo história(s),
hoje posto em prática na Escola Estadual Lions de Parnamirim, foi estruturado sob a ideia de
inserir nesta instituição um jornal escrito onde seriam discutidos temas próximos do cotidiano
dos alunos, que relacionado aos conteúdos curriculares, atenderia a proposta dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o ensino de História. Nessa proposta, compreende-se que o aluno
―tende a desempenhar um papel mais relevante na formação da cidadania, envolvendo a
*Graduanda em Licenciatura Plena em História pela UFRPE, bolsista PIBID financiada pela
CAPES – karlaffalcao@gmail.com
**Professora Doutora do Departamento de História da UFRPE –
ananascimentoufrpe@gmail.com
291
reflexão sobre a atuação do indivíduo em suas relações pessoais com o grupo de convívio,
suas afetividades e sua participação no coletivo.‖ (PCN, 1997).
Considerando que o domínio do historiador consiste, entre outros espaços, em
considerar o passado no seu potencial de problematização que parte do presente, a ideia de
estimular a produção de um jornal escolar tem por objetivos aproveitar o bombardeio de
informações recebidas por nossos alunos através dos meios de comunicação como conteúdo
para fomentar discussões entre professores e alunos da escola; selecionar as informações
veiculadas pelos meios de comunicação juntamente aos alunos e professores da escola para,
posteriormente, delimitar os assuntos a serem discutidos com o grupo trabalhado, e estimulá-
los a perceber a relação que os acontecimentos explanados têm com o seu cotidiano: sua
própria história e a história da comunidade onde vivem; realizar, procurando os familiares dos
alunos, moradores antigos do local e outras fontes documentais tais quais fotografias e
manuscritos, resgate de memórias dos grupos sociais nos quais estes indivíduos estão
inseridos direta ou indiretamente – escola, família, bairro, cidade, estado, país, mundo; e, por
fim, estimular os alunos a produzirem textos verbais e não verbais, trabalhando suas aptidões
e dificuldades.
MATERIAL E MÉTODOS
Partindo desses objetivos, a prática do projeto, de acordo com suas considerações
previamente estabelecidas, partiria do envolvimento com os conteúdos apresentados em sala
de aula pelos docentes da escola, escolha do personagem ou instituição da comunidade a ter
as memórias retratadas, como também os conteúdos veiculados pelos meios de comunicação a
serem discutidos pelo grupo; também seriam feitas entrevistas para coleta de depoimentos de
moradores do bairro ligados aos assuntos discutidos; socialização em torno das informações
coletadas; discussão dos temas; divisão dos grupos de trabalho e das atividades por eles a
serem realizadas: produção e revisão textual, seleção de imagens, formatação e revisão geral,
sendo as atividades direcionadas a diferentes grupos a cada publicação; e publicação mensal
do jornal da escola.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Seguindo as diretrizes metodológicas estabelecidas, para a produção do jornal se fazia
necessário o envolvimento do alunado na construção do material em encontros, onde os
292
mesmos debateriam diversos assuntos veiculados pelos meios de comunicação sob a
mediação e orientação da iniciante à docência que propôs a inserção do projeto na instituição.
Seguindo estas proposições, o trabalho do jornal iria permitir, também, que por meio da
produção – e não somente reprodução – os participantes das atividades pudessem aprimorar a
leitura e a escrita de textos verbais e não verbais por meio da troca de conhecimentos.
Vivenciando a realidade da escola, foram estudadas, então, as possibilidades e a
viabilidade de realizar esses encontros. Primeiramente se pretendia os fazer em contra-turno,
mas fora limitado o número de pessoas que se disponibilizaram para isto. Daí as reuniões com
um grupo de alunos interessados começaram a existir no horário do intervalo de descanso
entre aulas. Devido à dificuldade de se realizar as atividades neste curto espaço de tempo, se
repensou uma nova forma de abordagem para alcançar resultados mais satisfatórios. Com
isso, as intervenções didáticas em parceria com os professores de História e disciplinas afins
como Sociologia e Filosofia – que ocorriam antes mesmo do início do jornal – se tornaram
mais frequentes.
As monitorias, por sua vez, permitiram um contato estreito com o cotidiano da vida
docente escolar. Partindo do planejamento da atividade e sua adequação à turma na qual
realizá-la, bem como a efetivação do plano e avaliação dos resultados, estas experiências
possibilitam refletir sobre o ensino-aprendizagem, especialmente no que concerne perceber o
progresso, regressão ou simplesmente adequação dos alunos às metodologias de ensino
instituídas. Assim, foi pensado aproveitar as produções solicitadas nas monitorias como meio
para viabilizar a divulgação do jornal, tendo em vista que estas estavam permitindo, além de
pensar em alternativas para auxiliar o aluno, a troca de experiência com os professores, onde
foram compartilhadas percepções acerca da construção do saber escolar, permitindo-os, em
alguns casos, buscar novos caminhos para alcançar melhores resultados.
Adaptando-se às condições permitidas pela realidade encontrada neste ambiente
escolar, a estratégia da intervenção passou a ser realizada, então, partindo das produções
solicitadas nas monitorias, onde fora encontrado o desafio de desvincular o alunado do
costume de copiar textos de autoria de outrem, e responder ao desafio de não apenas
reproduzir, mas também criar conhecimento. Assim, levando a concepção interacionista da
Psicologia à escola, e entendendo que ―para aprender, o aluno precisa ao seu lado alguém que
o perceba nos diferentes momentos da situação de aprendizagem e que lhe responda de forma
a ajudá-lo a evoluir no processo, alcançando um nível mais elevado do conhecimento‖
(DAVIS, OLIVEIRA, 1994), todos os trabalhos entregues pelos discentes foram avaliados
individualmente, para posteriormente ao comentário das particularidades de cada atividade, os
293
alunos interessados poderem analisar seus equívocos e acertos para construir novos textos,
melhorando os pontos deficientes. Passando esta fase, foram selecionadas as melhores
produções pela pibidiana responsável pelo projeto, e logo adiante, os alunos-autores são
convidados a revisarem seus textos, discuti-los com outros colegas e, por fim, publicá-los no
jornal.
Inicialmente, a nova metodologia de trabalho aplicada não foi bem aceita, devido à
resistência do corpo discente em modificar a estrutura pedagógica com a qual trabalhavam até
então. No entanto, o desafio intelectual tem chamado atenção, e com a visível melhoria nos
resultados das avaliações, alguns alunos passaram a superar visões restritivas do seu espaço
de vivência e de suas experiências escolares, propondo-se a conhecer novos meios para
realizar atividades escolares.
Hoje, o Lions Informa – nome escolhido pelos alunos para o periódico da Escola
Estadual Lions de Parnamirim –, conta com o apoio de parte do corpo discente da instituição,
de estudantes do PIBID de Letras, e diagramação de alunos do curso de História da
Universidade Federal Rural de Pernambuco que se identificaram com o projeto. A primeira
edição foi lançada em abril de 2012, onde está sendo discutida a realidade da escola a partir
da imagem que a comunidade e o alunado têm desta instituição de ensino, como também
foram feitas reflexões sobre a transformação do conceito de raça na história e as
discriminações consequentes deste processo. Debatem-se, além desses temas, as diferentes
explicações científicas que algumas correntes da Sociologia dão para o fenômeno da moda, a
partir das quais é feito um exercício de imaginação sociológica (BRYM, 2006), e o papel dos
governos para a garantia da minimização dos danos ao meio ambiente devido à exploração e
mau uso dos recursos naturais e do trabalho humano no processo de produção e distribuição
dos bens de consumo, assim como a responsabilidade dos consumidores frente a este
problema.
Assim, esperamos que, com a participação ativa de alguns discentes, a comunidade
escolar crie um sentimento de pertença em relação ao jornal Lions Informa. Acreditamos que
a aproximação das atividades realizadas por este projeto possibilitar mudanças positivas no
desenvolvimento cognitivo dos nossos estudantes, e na formação docente da graduanda de
Licenciatura Plena em História que coordena este trabalho.
AGRADECIMENTOS
294
Ciente de que o sucesso do desenvolvimento do projeto depende da contribuição de
várias pessoas e instituições, agradeço inicialmente a CAPES por financiar o desenvolvimento
das atividades realizadas pelo PIBID. Grata a Escola Estadual Lions de Parnamirim por
acolher minhas propostas, aos supervisores do programa de iniciação a docência nesta
instituição de ensino, aos professores que compartilham suas experiências docentes e cedem
espaço em suas aulas para a realização de atividades e, principalmente, aos alunos que se
envolvem com a ideia, especialmente a Jonnas, Anderson, Wescley e Michelle. Agradeço,
também, a todos os professores com quem aprendi, a Silvio Cadena pela diagramação da
primeira edição do jornal Lions Informa, a Kátia Falcão pelas orientações de toda uma vida, e
a Diego Leonardo pela atenção, apoio e carinho cotidiano a mim e ao meu trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. 1997. Disponível em:
<<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf>> . Acesso em 23 set 2011.
BRYM, Robert. Sociologia: sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Thomsom, 2006.
COSTA, Marisa Vorraber. Paisagens escolares no mundo contemporâneo. in: SOMMER,
Luís Henrique; BUJES, Maria Isabel Edelweis (org). Educação e cultura contemporânea:
articulações, provocações e transgressões em novas paisagens. Canoas: Ulbra, 2006.
DAVIS, Cláudia; OLIVEIRA, Zilma de. Psicologia na Educação. 2 ed. rev. São Paulo:
Cortez, 1994.
295
Atividade de revisão comentada dos textos selecionados para a publicação da primeira edição do jornal Lions Informa com os alunos.
Primeira edição do Lions Informa lançada em abril de 2012. Páginas 01, 02, 03 e 04, respectivamente.
A LINGUAGEM MUSEAL NA SALA DE AULA: ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS
ATRAVÉS DE OBJETOS MUSEALIZADOS.
Keyth Saborido Ratis; Ricardo de Aguiar Pacheco
Graduanda em História pela UFRPE. Bolsista do PIBID/ UFRPE com financiamento pela CAPES.
Keyth_sbr@hotmail.com
296
Palavras-chave: museus, educação e linguagem museal.
Introdução
O presente trabalho apresenta resultados parciais do projeto - A História e o Objeto: A
Inserção dos Museus na Escola, que vem sendo aplicado na Escola Ministro Jarbas
Passarinho em Camaragibe, Pernambuco. Analisaremos uma reflexão da atividade Criando
Narrativas Através de Objetos Musealizados, realizada no ano de 2011 em duas turmas do 2º
ano do ensino médio. Como bolsista do Programa Institucional de iniciação à Docência,
propomos a utilização da linguagem museológica na sala de aula de forma estimulante ao
aprendizado. Para atuação na escola nos baseamos nas seguintes propostas metodológicas - a
educação patrimonial como a explicada por Maria de Lourdes Horta, a interdisciplinaridade
proposta pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de História e a inserção dos museus
no ensino de História incentivada por Francisco Régis Lopes Ramos.
As atividades aplicadas seguem um planejamento que visa a construção do
conhecimento histórico a partir de práticas de incentivo a preservação da memória (individual
e coletiva) e a construção de identidades, respeitando e valorizando a diversidade do
patrimônio cultural material e imaterial. Acreditamos que o ensino voltado para cidadania é
capaz de ―oferecer saberes e fazeres que permitam a leitura do mundo‖ (PCNs, 1997),
fazendo com que os estudantes sejam capazes de reconhecer seu papel na construção dos
processos históricos, estabelecendo vínculos de identidade com a sociedade em que vivem.
Material e métodos
Nossa intervenção na escola e na sala de aula está sendo embasada a partir da
metodologia da educação patrimonial como explicada por Horta no Guia Básico de Educação
Patrimonial. Através desse método pretendemos estimular memórias utilizando os museus da
região metropolitana de Recife. Tomamos como base as ideias de Ramos, em A Danação do
Objeto, defendendo o museu como espaço educativo e utilizável especialmente no ensino de
História. Assim estamos desenvolvendo metodologias de ensino que procuram aproximar o
aluno do espaço museal. A metodologia do trabalho pedagógico prevê a preparação desses
alunos para a visita aos museus seguindo três momentos: a apresentação da linguagem museal
aos alunos; a visitação ao museu; e a construção de uma exposição com os dados coletados.
Orientador da pesquisa. Doutor em História e Professor Adjunto da UFRPE do Departamento de Educação.
pacheco_ricardo@yahoo.com.br
297
Utilizamos-nos de atividades didáticas e trabalhos coletivos para orientá-los a
estabelecer ligações entre os conteúdos das aulas e a exposição do museu. As atividades
visam a produção de materiais didáticos que podem ser produzidos pelo professor ou pelos
próprios alunos. A atividade que mais se destacou foi a criação de narrativas textuais através
de objetos musealizados. O conteúdo escolhido para atividade foi O período Colonial no
Brasil, e primeiramente os alunos tiveram diversas aulas sobre o Processo de colonização do
Brasil, e a articulação com o professor de História fez com que discussões sobre patrimônio e
identidade cultural estivessem presentes tanto nas aulas como também nas atividades durante
a exposição dos conteúdos.
O Museu Homem do Nordeste (Recife - PE) foi apresentado aos alunos através de
fotografias da exposição, e os objetos mostrados se relacionavam diretamente com o conteúdo
trabalhado na disciplina. O trabalho em grupo foi priorizado e dessa forma cada grupo
recebeu uma imagem e um texto explicativo, ambos retirados do catálogo do museu. No
primeiro momento os alunos tiveram que aliar o objeto da imagem com o conteúdo estudado
nas aulas de História. O texto de apoio trazia uma breve narrativa sobre o tema relacionado
aquele objeto, como: Escravidão, religiosidade, nobreza e etc. Ao lado da fotografia tinham as
informações técnicas, como material que foi confeccionado, ano de fabricação, a quem tinha
pertencido, ou época de utilização.
No segundo momento os grupos tiveram que escolher em que linguagem seria
produzida a releitura do objeto fotografado: história em quadrinho ou cordel. Para isso os
alunos foram instruídos sobre a estrutura do cordel, e cada grupo recebeu exemplares folhetos
e histórias em quadrinhos. Entre os membros do grupo foi possível visualizar a discussão dos
temas, o levantamento de hipóteses e dúvidas que surgiram na medida em que interpretavam
as imagens e seus respectivos contextos.
Durante o trabalho em grupo os alunos foram levados a perceber que durante o
processo de criação da exposição é necessário selecionar o que vai ser tratado, e que durante
esse procedimento várias ideias vão entrar em consenso ou em oposição, mas que o produto
final será resultado dessa articulação. Levamos em consideração, para isso, que a linguagem
museal não se limita apenas a instituição museu, nem ao menos a uma única área de
conhecimento, mas pode ser aplicada em diferentes contextos e objetos.
Resultados
Os resultados da intervenção se mostraram positivos, pois grande número dos alunos
concluiu a atividade conseguindo estabelecer ligações entre o contexto histórico de origem do
298
objeto e seu uso como peça de museu. A criatividade de alguns grupos foi surpreendente e
traz a possibilidade de articular a criação de narrativas e os conteúdos históricos, mostrando
que através da linguagem é possível utilizar a linguagem museal como estratégia de ensino.
O trabalho com fotografia possibilitou a interação virtual desses alunos com o espaço
museológico, porém é necessário ter em mente que nesta prática o professor deixar de ser um
mero transmissor de conteúdo, e ―converte-se num formulador de problemas e provocador de
questionamentos, podendo desencadear o diálogo entre as diferentes falas, culturas e
gerações‖ (SARTORATO, 2009. P.23).
Os materiais didáticos quando levados para sala de aula servem como mediadores de
conhecimento, e seu uso planejado facilita a interpretação dos conceitos e conteúdos
curriculares. Nessa intervenção serviram como meio de estimular e avaliar os alunos. Dessa
forma acreditamos que sua elaboração é ―resultante do domínio do conhecimento obtido no
decorrer do processo de aprendizagem‖ (BITTENCOURT, 2011, p. 297). Ao estimular no
aluno interpretações diferenciadas, ele não será apenas ouvinte do que o professor narra, mas
surgirão perguntas, hipóteses, dúvidas e partir desses questionamentos a informação do
professor passa a ser um suporte nessa construção de conhecimento.
Discussão
Pensar na inserção dos museus no espaço escolar é analisar e desenvolver
metodologias que estimulem a apropriação da linguagem museal. A dimensão educativa
desses espaços é um fator muitas vezes indiscutível, e a relação proposta entre o público e os
objetos expostos evidencia essa potencialidade educativa. O discurso que cada exposição
carrega é um conjunto de sentidos, símbolos e contextos. Introduzir essa fonte de informações
em sala de aula é de fato algo desafiador, e que necessita de um planejamento que vise a
―alfabetização cultural‖ (HORTA, 1999, p.6) dos indivíduos.
Entendemos que é preciso haver uma familiarização entre a escola e o espaço museal,
minimizando a ausência de problematizações, passando a enxergá-lo como um meio de
educação não formal. A partir do momento em que relacionamos museu e sala de aula
estamos reconhecendo que ―o museu sempre teve o caráter pedagógico – intenção, nem
sempre confessa, de defender e transmitir certa articulação de ideias‖ (RAMOS, 2004, p.14).
Percebemos a inserção do espaço museal no ensino de História como um meio que
―possibilita, ao sujeito, apropriar-se de múltiplas linguagens, tornando-o mais aberto para a
relação com outro‖ (LEITE, 2006, p.23), propiciando ao sujeito a percepção de sua
identidade. O processo de aprendizado interdisciplinar vivenciado na visita ao museu é uma
299
forma de tornar o simples momento educativo, em uma experiência que o influenciará não
somente em sala de aula, mas também como um sujeito histórico e agente modificador.
Vale ressaltar que os PCNs de História aconselham trabalhar a diversidade cultural nos
conteúdos históricos e disciplinares nas instituições escolares, ao mesmo tempo em que
defende um ensino escolar que preze pela qualidade da educação, na valorização dos bens
culturais locais e nacionais, e pelo direito de acesso a memória.
Agradecimentos
Agradecemos a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior
(CAPES) pela bolsa de iniciação à docência e a toda equipe da Escola Ministro Jarbas
Passarinho pelo apoio no desenvolvimento do projeto.
Referências
BRASIL, Ministério da Educação e Cultura (MEC). Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, 1997.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: Fundamentos e Métodos.
Ed. Cortez. 4ª edição. São Paulo, 2011.
HORTA, Maria de Lourdes Parreira; GRUNBER, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.
Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
LEITE, Maria Isabel, OSTETTO, Luciana E. (org.) Museus, Educação e Cultura –
Encontro de crianças e professores com a arte. Papirus editora. São Paulo, 2006.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: O museu no ensino de História.
Editora Argos, 2004. 1ª ed.
SARTORATO, Eliana Giro. SANTOS, Anderson Pinheiro (org.) A imagem como
ferramenta pedagógica. Diálogos entre arte e público - Educadores entre museus e salas de
aula: que diálogos são esses? Caderno de textos II. Fundação de cultura cidade do Recife,
2009.
300
FIGURA 1: Quadrinho produzido por um grupo de alunos. Ao lado a fotografia usada como fonte para
produção dos alunos - uma moenda e ao fundo um quadro represtando trabalho escravo. Abaixo o texto do
catálogo sobre escravidão e quadrinho usado como referencial para elaboração. Fonte: acervo pessoal da
autora.
FIGURA 2: Trecho de cordel criado por um grupo de alunos. Ao lado fotografia da Carruagem Vitória. Cordéis usados como referência na produção. Fonte: acervo pessoal da autora.
301
HUMOR EM TEMPOS DE CHUMBO: UMA ANÁLISE DA CENSURA ATRÁVES
DAS CHARGES DO PERÍODO GEISEL
Romulo Gabriel de Barros Gomes
1. INTRODUÇÃO
O golpe civil-militar implantado no país de 1964-1985 foi marcado pela constituição
de um estado de exceção sem precedente na história do país, fruto de uma instabilidade
política, econômica e social. O Brasil passou por um grande problema financeiro e
econômico, a inflação chegava aos 90% (COUTO, 2003), e ainda vivia uma crise institucional
e de governabilidade que se arrastava desde o governo de JK. Esse clima favoreceu todo o
doutrinamento ditatorial. As disputas políticas entre ideologias de direita e esquerda levaram à
construção do estado de exceção no Brasil. O medo do comunismo dito iminente levou os
segmentos conservadores do Brasil a um temor desse novo sistema (ALVES, 1984).
É neste contexto que o humor e, mais especificamente, a charge se destaca como uma
ferramenta poderosa na máquina social. É sob o salvo-conduto do humor que se pode falar de
assuntos reprimidos e condenáveis numa sociedade e num estado de exceção como o foi no
período do regime militar no Brasil. O duplo sentido, a ironia, o sarcasmo são expedientes
lançados pelo humor para driblar a proibição, fazer de tolos os que o tolhem, pactuar com o
receptor e lhe provocar o riso – e mais, a reflexão.
Embora o humor seja um importante traço na formação da personalidade humana e –
por conseguinte – do ethos de uma sociedade, durante muito tempo ele foi relegado ao
esquecimento ou ao descaso pela historiografia. ―Foi apenas recentemente que estes
historiadores, considerando o humor como uma chave para compreender os códigos culturais
e as percepções do passado, passaram a se interessar pelo tema‖. (BREMMER E
ROODENBURG, 2000, p.11). No entanto, o humor e o riso ainda permanecem sob um véu
espesso no que diz respeito a muitos de seus aspectos e em diversos períodos da história.
Cumpre-nos a tentativa de olhar sob ele neste tenso momento da vida do país.
Este trabalho tem como objetivo proporcionar o aprendizado, a preservação da
memória e a disseminação de um conhecimento antes restrito aos porões da ditadura.
Bolsista PIBIC do CNPq/UFRPE, Estudante de História pela UFRPE. O presente trabalho foi orientado pela
Professora Drª Marcília Gama da Silva, professora adjunta da UFRPE. Contato: barros_romulo@hotmail.com
302
Conhecer mais sobre a memória recente que envolve um período significativo da história
brasileira é o que nos leva a pesquisar sobre os anos de 1964 a 1985. Analisar como
funcionava a rede de informação e segurança (SILVA, 2007), a censura imposta à imprensa
assim como o conteúdo dos jornais apreendidos, e, sobretudo as charges, norteiam o nosso
plano de trabalho.
2. MATERIAIS E MÉTODOS
O material pesquisado faz parte do acervo do DOPS-PE e da Hemeroteca, ambos do
Arquivo Público e se compõe de periódicos alternativos de esquerda, em especial o jornal ―A
Crítica‖, além de jornais de grande circulação em Pernambuco como o Diário de Pernambuco
e, sobretudo as charges neles veiculadas. As iconografias relacionadas às ideias de cunho
subversivo produzidas ou apreendidas pela polícia, encontradas nos prontuários funcionais e
individuais, vêm sendo analisadas quanto à sua temporalidade, contexto e significado. A
metodologia aplicada nesse trabalho se divide em duas etapas:
Na primeira, a que se apresenta neste trabalho, dá-se o levantamento e seleção de
prontuários referentes ao período e assunto estudado; tais documentos digitalizados em alta
resolução, tratados por meio de um software apropriado (Adobe Photoshop), garantindo bom
nível de conservação e visualização da imagem. Após isso, as imagens são organizadas em
fichas diagnósticas, fazendo-se uma descrição minuciosa a respeito da localização espacial, do
conteúdo, entre outras características do documento, como: a) Título; b) Data; c) Origem de
sua produção; d) Conteúdo sucinto do que ele apresenta; e) Condições físicas do suporte; f)
Localização de originais; h) Notas, observações e contextualização histórica da fonte
documental; i) Autoria das charges.
2. RESULTADOS E DISCUSSÃO - OSCILAÇÕES: CURVA DE NORMALIDADE E
TONS DE CRÍTICA
A ditadura civil-militar brasileira foi um regime singular, o que é facilmente
observável em contraste com as outras ditaduras do período. Esta não teve seu poder
concentrado num líder, mas em instituições. Todo um aparato estatal foi montado para que a
viabilidade do regime militar fosse alcançada, estruturas como o DCDP – Departamento de
Censura e Diversões Públicas, DOPS, DOI-CODI – Destacamento de Operações de
Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, operavam, muitas vezes, de maneira
303
independente ou sem aval direto do presidente, para além de um generalato que deveria ser
ouvido e poderia tomar decisões antes mesmo do próprio presidente – como no caso da
sucessão de Castelo Branco em 1967, no qual o Costa e Silva foi escolhido em contradição
com a vontade de Castelo.
O estado de exceção, bem como seus objetivos, foram muitas vezes reformulados e
contestados dentro da alta cúpula das forças armadas. É possível que se fale em ―golpes
dentro do golpe‖ como atesta Couto (2003), é possível que se veja a alternância de linhas de
pensamento nas duas décadas de vigência regime. Tais vicissitudes podem ser sentidas na
forma como o regime foi criticado nas charges e em como a censura abordou tais críticas.
O fato de encontrarmos correntes contrárias no interior do exército no
período pós-1964 debita a existência de diferentes leituras do significado de
República, da relação com a sociedade civil e de seu próprio papel, que se
refletem na diversificação dos métodos empregados no controle da produção
artística e das diversões públicas. Dessa forma, podemos observar diversos
tipos de censura [...] (BERG, 2002: 16)
Estas divergências comentadas por Creuza Berg gerariam alterações da curva de
normalidade e possibilidades de contorno da repressão, podendo ser sentidas conforme a
modificação das estruturas de poder durante o regime de exceção. É o que se observa com a
análise de algumas das imagens que se seguem.
A princípio analisa-se a charge de Fortuna, datada de 1966, ou seja, antes do
endurecimento do regime, anterior à implementação do Ato Institucional número cinco – o
AI-5 – que, dentre outras coisas, dava o direito ao presidente de fechar o Congresso Nacional,
as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, decretando o estado de sítio e
concentrando ainda mais poderes numa só esfera do governo, conforme dita o artigo segundo
do documento. (AI-5, 1968, Art.2º)
**************** A imagem contém uma crítica bastante
direta, mostra o personagem com um semblante que
mistura certa raiva e surpresa ao mirar seu jornal
matinal – infere-se que o seja dadas suas roupas – e
vendo que parte das informações contidas nele foram
suprimidas, recortadas de lá. A imagem se segue do
****************
(FORTUNA[sem título], 1966, Correio da Manhã)
304
enunciado que traz as possíveis explicações para a lacuna: ou Maria, provavelmente sua
esposa, recortou o jornal ou as autoridades o fizeram por meio da lei da imprensa, suprimindo
assim as informações do periódico. A lei foi englobada pelo AI-5, mas já esboçada desde o
governo de Castelo Branco. (FICO, 2004: 33-4)
A Lei da Imprensa de 1967 foi o golpe desferido contra a liberdade de expressão que
antecedeu a emenda constitucional de 1968 (AI-5), que endureceu ainda mais a cesura. Tal
caráter pode ser sentido com a leitura da segunda secção do artigo primeiro da Lei em questão
proclamando que
O disposto neste artigo não se aplica a espetáculos e diversões públicas, que
ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem na vigência do estado de
sítio, quando o Governo poderá exercer a censura sobre os jornais ou
periódicos e empresas de radiodifusão e agências noticiosas nas matérias
atinentes aos motivos que o determinaram, como também em relação aos
executores daquela medida.‖ (Lei nº 5.250, 1967, art. 1, § 2º)
Tal endurecimento pode ser sentido se a charge acima charge for comparada com a de
Ziraldo publicada em 1975, período em que o ato já vigorava.
Esta imagem, por sua vez, contem uma crítica um tanto quanto mais sutil – se é que é
possível dado seu conteúdo de dimensões paquidérmicas. Nota-se que na charge se encontram
em evidência dois personagens: um elefante de traje de gala e um sacerdote. Num plano de
menor destaque, mas não de menor importância, no canto inferior esquerdo, encontra-se uma
formiga de véu e grinalda. É necessário que se ††††††††††††††††
enfatize que no trato das
imagens, muitas vezes, estes elementos menores tomam grande
importância na interpretação tal qual atesta Eduardo França
Paiva tratando de pinturas e outras fontes iconográfica e
afirmando que
―‗talvez todas as pinturas sejam, em certo sentido, um enigma‘.
Deve-se salientar, entretanto, que os enigmas existem nas
composições iconográficas (nem sempre, note-se, concebidos
†††††††††††††††† (ZIRALDO, [Sem título], 1975, Jornal do Brasil)
305
como enigmas pelos autores das imagens, mas de maneira mais
frequente, pelo observador a posteriori) muitas vezes não estão no
plano secundário, no fundo, nos grifos laterais, nas cenas ―menos
importantes‖. [...] Há ocasiões, ainda, em que esses enigmas se
convertem em chaves-mestra do historiador, com as quais ele
consegue mergulhar no passado histórico e nas suas incontroláveis
problemáticas‖ (PAIVA, 2002, p. 23, grifos nossos).
Visto isso, é muito claro que o autor trás a ilustração da clássica fábula do casamento
do elefante e da formiguinha, a união entre incompatíveis. Estes personagens são nomeados
de maneira muito singular por Ziraldo e se deslocados do contexto histórico não fazem
sentido e, por tanto, não provocam o riso. Estes nomes são Edi-Stensão, a formiga e Athos
Sinco, o elefante. Com isso, o chargista faz alusão ao período em que mais se utilizou o Ato
Institucional – 5 (Athos Sinco) que foi justamente o da abertura, ou como seu executor
preferiu chamar: Distensão (Edi-Stensão). Desta forma sutil o autor atenta para o caráter
incompatível dos meios utilizados pelo governo e para a situação paradoxal que se instalou na
política brasileira por tal motivo.
2.4. OS ANOS DE GEISEL
Gostaríamos de tomar como provocação a charge de Ziraldo que acaba de ser
analisada para prosseguirmos nossa discussão. Oportunamente inserimos esta obra em
específico dada à intenção de prosseguirmos as discussões atentando prioritariamente para o
período em que ela foi composta, o mandato do General Ernesto Geisel (1974-1979).
A escolha se dá devido à importância do período para a história política do país, dado
que foi em seu mandato que se deu o início do processo de redemocratização e abertura
política por ele próprio denominado ―distensão‖, e também pelas possibilidades de acesso às
informações do período, que se apresentaram em forma dos já comentados prontuários,
compêndios, jornais, além de livros e artigos.
É possível que se note em alguns textos que retrataram o período da ditadura uma
tendência a fazê-lo com certa linearidade, uma linearidade muitas vezes um tanto quanto
simplista. A ditadura como um todo não foi linear, o plano inicial que deveria ser lavado a
cabo com o golpe debelado em 64 foi modificado uma série de vezes. A observação
maniqueísta – diríamos – de uma direita golpista e uma esquerda militante, de uma linha dura
306
e uma linha moderada, de bons contra maus, não cabe mais à história. Isto se aplica não só aos
fatos ocorridos durante o regime de exceção, mas a diversos outros objetos e recortes
historiográficos. As nuances do jogo político ocorrido no tempo aqui estudado vêm à tona
com os estudos mais recentes, o merecido destaque deve ser dado à obra de Carlos Fico que,
sobre esta visão reducionista, comenta:
Ao mesmo tempo, clichês sobre o golpe de 64, os militares e o regime
também vão sendo abandonados, como a idéia (sic) de que só após 1968
houve tortura e censura; a suposição de que os oficiais-generais não tinham
responsabilidade pela tortura e o assassinato político, a impressão de que as
diversas instâncias da repressão formavam um todo homogêneo e articulado,
a classificação simplista dos militares em ―duros‖ ou ―moderados‖ etc. Por
tudo isso, podemos falar de uma nova fase da produção histórica sobre o
período. (FICO, 2004: 30)
É com o bastão passado por Fico que pretendemos prosseguir com a segunda fase de
nossa pesquisa. Refletiremos sobre um dos períodos mais contraditórios da ditadura civil-
militar, cuja historiografia destaca como sendo o que mais utilizou os mecanismos ditatoriais,
mas segundo seu próprio discurso para fins democráticos.
São tais contradições o alvo dos gracejos críticos de Clériston e Lailson, chargistas do
Diário de Pernambuco durante o mandato de Ernesto Geisel. Estes dois artistas cuja obra foi
atenciosamente armazenada pelos censores do DOPS-PE serão o foco prioritário da análise
que se dará na próxima fase deste trabalho.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se concluir que a riqueza e irreverência do conteúdo humorístico presente nas
charges, se constituiu numa forma de resistência à ditadura. A compreensão da imagem, da
charge como documento, fragmento de uma realidade histórico-social, desconstruída através
da análise do discurso iconológico, elucida importantes embates histórico-sociais. Permite
compreender o alcance dessa forma de expressão junto ao social e ao mesmo tempo perceber
o ―perigo‖ temido e observado pelos censores do regime.
307
Através do desenvolvimento do trabalho proposto, está sendo trazido à tona o
significado implícito das charges/documentos num dado contexto da história, garantindo a
preservação do acervo em outro suporte, o digital, contribuindo para o estudo e compreensão
do estado de exceção implantado no país de 1964-1985 e das múltiplas formas de resistência.
Nosso trabalho não se conclui nesse texto, e de modo algum a temática se esgotará tão
breve. Quanto mais observamos os acontecimentos do período, mais notamos o quanto ainda
se faz necessário seu estudo e o quanto ainda influenciam nas questões relacionadas à situação
atual de nossa sociedade.
REFERÊNCIAS RESUMIDAS
BERG, Creuza. Mecanismos do Silêncio: Expressões artísticas e censura no regime militar
(1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2009.
BREMMER, Jan & ROODENBURG, Herman. Uma história cultural do humor. Rio de
Janeiro: Record, 2000.
COUTO, Ronaldo Costa. História Indiscreta da ditadura e da Abertura: Brasil 1964-1985.
4° Edição, Rio de Janeiro: Record, 2003.
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira
de História, São Paulo: v. 24, n. 47, p. 29-60, 2004.
FOUCAULT, Michel. Segurança Território e População. São Paulo: Martins Editora, 1998.
FREUD, Sigmund. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud: Os chistes e sua relação com o inconsciente. 2 ed. Volume VIII. Rio de
Janeiro: Imago Editora LDTA, 1987.
PAIVA, Eduardo França. História e Imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
SILVA. Marcília Gama. Informação, Repressão e Memória: A Construção do Estado de
Exceção no Brasil na perspectiva do DOPS-PE de 1930-1945. Tese de Doutorado. UFPE,
Recife -PE, 2007
UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM UM
BARCO-ESCOLA
308
Thiago Valesko Matias
Carmen Roselaine de Oliveira Farias
Palavras-chave: Educação, Educação Ambiental, Etnografia, Ambientalização Escolar
Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
O Rio (João Cabral de Melo Neto)
Introdução
A poesia de João Cabral de Melo Neto imprime ritmo e força àquilo que é a presença
de um rio na história e na cultura pernambucanas. O rio Capibaribe nasce pequeno e frágil em
Poção, rio menino‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
, como diz o poeta, atravessando leito de pedra, até encontrar
as terras fêmeas da Mata. No seu caminho, o rio-personagem vê pedras, homens, bois,
estradas de ferro e canaviais, e encontra tantos outros rios e riachos, antes de seu encontro
derradeiro com o rio Beberibe. Os rios sabem sobre a vida e a morte do caminho. Sabem de
homens, povoações, usinas, arruados, cidades. Quando chega aos arrabaldes de Recife, o rio
se depara com a cidade anfíbia, e por ela se contorce por entre outras gentes, casas, barcos e
rios até alcançar o Oceano Atlântico.
As imagens evocadas na epígrafe nos ajudam a introduzir a temática deste trabalho
que versa sobre relações entre rios e uma cidade, mais especificamente, a zona estuarina do
Recife. Na verdade, a cidade do Recife não pode ser contada sem a presença dos seus rios e
seu litoral, que a faz uma cidade de ilhas ligada por pontes. Contando com um passado
Estudante do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFRPE, bolsista PIBIC/FACEPE/CNPq,
Thiago.v.matias@gmail.com Professora Adjunta do Departamento de Biologia da UFRPE, coordenadora do projeto ―Ambientalização
escolar: a educação ambiental no Recife‖ (PPP/FACEPE), crofarias@gmail.com ‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡‡
Neste trabalho usamos itálico para destacar expressões extraídas da poesia de João Cabral de Melo
Neto; mas também usaremos deste expediente para demarcar termos e expressões empregadas pelos nossos
interlocutores de pesquisa, como veremos mais adiante.
309
histórico, é também uma cidade moderna, um conglomerado em que perduram velhas
estruturas históricas juntamente com as novas derivadas do capitalismo e da técnica. A cidade
do Recife contemporâneo, já não é mais cidade, mas Região Metropolitana. Possui grande
concentração populacional em sua cidade núcleo e na zona adjacente de influência. Os limites
físicos, outrora colocados pela geografia que dividia terra e água, agora quase se perdem para
formar a metrópole; contigüidade urbana que se produz apesar da natureza diversa.
É certo que quando se fala em cidade quase sempre também se fala em crescimento
rápido da população urbana, construções desordenadas, bairros marginais carecedores de
infra-estruturação de base, fruto das pouco planejadas expansões da cidade. Também não se
pode ignorar o congestionamento crescente dos centros e a obstrução das artérias urbanas, que
gangrenam setores deste ser vivo - a cidade -, que para sobreviver tem de descobrir novos
caminhos por onde possa fluir.
Recife é a cidade em que estamos situados e que se nos impõem interagir de muitos
modos, por diversos meios: seja por que nascemos e ficamos nela, porque chegamos depois
de algumas idas e vindas, ou, ainda, por que resolvemos voltar. Nós participamos da cidade,
assim como a cidade participa da nossa natureza e da natureza dos lugares. Enquanto uma
composição de natureza e cultura, a cidade não se dá a conhecer por uma única via ou área do
conhecimento, mas se oferece a nós enquanto experiência e interpretação. É através desses
processos sempre inconclusos de interpretação dos lugares a que pertencemos (e que nos
pertencem) que vamos apropriando espaços, significados, elementos e relações; produzimos
sentidos através da cultura e do nosso engajamento no mundo, e por eles nos assenhoramos de
objetos e situações.
Neste trabalho, queremos apresentar algumas reflexões sobre os processos
interpretativos das relações entre o Recife e sua zona estuarina, produzidos pela educação
ambiental. Nosso olhar é mediado por uma abordagem antropológica que valoriza a etnografia
como ferramenta para compreender os investimentos da educação ambiental escolar.
Metodologia
Partimos do entendimento que a educação ambiental constitui a esfera educativa de
um campo ambiental abrangente (CARVALHO, 2001), que se nutre da valorização do
ambiente como um bem e em que se disputam os sentidos de uma ética voltada para a
sustentabilidade ambiental e a solidariedade para com as futuras gerações. Neste campo (no
sentido de Bourdieu, 2001), circulam diferentes concepções de ambiente, que se conectam em
maior ou menor grau aos anseios e práticas sociais de diversos grupos e setores da sociedade.
310
Na educação, a questão ambiental também constitui um mosaico de sentidos, um referente
para o qual existem múltiplos significados.
Fazer uma etnografia da educação ambiental, neste sentido, é buscar pelos significados
locais atribuídos às relações dos grupos sociais com o ambiente, considerando sua dimensão
social e histórica. No nosso caso, buscamos pelas interpretações possíveis produzidas na
inserção da educação ambiental na escola, o que também costumamos denominar de
―ambientalização escolar‖. Vale sublinhar que no ambiente escolar existem diversas formas
de contextualizar a educação ambiental as quais variam segundo os fatores que jogam neste
contexto. De modo geral, na escola, os processos de ambientalização tendem a acontecer nos
currículos escolares e nas práticas docentes, compondo diferentes níveis e modalidades de
ensino. Nesses processos, observa-se que existem nuanças e diferenças, que estão
relacionadas aos significados que as pessoas e instituições envolvidas atribuem ao ambiente
local (MATIAS; FARIAS, 2012).
Assim, buscando reconhecer a singularidade de um determinado evento de educação
ambiental, desenvolvemos a presente pesquisa em uma escola que funciona por meio de um
barco-escola, a Escola Ambiental Águas do Capibaribe (EAAC). Por meio de trabalho de
campo, de observação participante e de entrevistas, buscamos reconhecer os sentidos
atribuídos às experiências educativas para os sujeitos que as vivenciam. Consideramos esses
procedimentos, aliados à análise fenomenológica, constituem ferramentas que nos auxiliam a
sintetizar e a interpretar a ambientalização nos contextos estudados.
Flutuando com a Escola Ambiental Águas do Capibaribe: quando a escola é um barco, e
a aula é um passeio
A EAAC realiza práticas de educação ambiental há cerca de oito anos, por meio
de aulas-passeio em uma embarcação do tipo catamarã que navega pelo complexo estuarino
do rio Capibaribe, o barco-escola. Como dito anteriormente, os cursos d‘água são elementos
eloqüentes no cenário e na vida dos recifenses, visto que a cidade é entrecortada por muitos
rios e afluentes. ―A prática pedagógica desenvolvida na EAAC fundamentada na percepção,
sensibilização e reflexão das questões ambientais, proporciona aos participantes um caminhar
para mudanças comportamentais e atitudinais‖ (Santos, et al. 2009). Essa imagem pode ser
ilustrada pelo centro da cidade, onde se presencia a existência de três ilhas fluviais, ligadas
entre si por pontes.
Trata-se de uma escola flutuante que dá suporte de educação ambiental às demais
escolas. Seu funcionamento é regulado pelas normas estabelecidas para a rede municipal de
311
ensino. Recebe diariamente turmas escolares pela manhã e pela tarde, de segunda a sexta-
feira. Nos demais dias do mês, obedece ao calendário escolar, de modo que feriados e
recessos são os mesmos de todas as escolas da rede.
Segundo um dos professores, a criação desta escola surgiu como um projeto,
agregando diversas áreas curriculares, especialmente as mais afins, como as de geografia e de
ciências. Ainda hoje, os professores que atuam no barco-escola são dessas áreas de formação.
As atividades da EAAC são direcionadas, prioritariamente, a atender alunos das escolas
municipais; no entanto, eventualmente, também participam de suas excursões organizações
não-governamentais, universidades, outras secretarias, como a de saúde, por exemplo, além
de pessoal de atendimento, terceira idade, grupos denominados de risco, entre outros.
A EAAC tem uma sede provisória em terra, onde está situada a sua administração,
e uma embarcação, que é uma extensão da escola. Segundo um de nossos interlocutores, a
pedagogia ambiental da EAAC é toda desenvolvida a bordo, mas já há algum tempo eles
aguardam ser contemplados com uma sede fixa, onde seria possível fazer uma dinamização
maior do processo educativo, visto que o passeio de barco seria só um complemento de toda
uma vivência pedagógica ligada à questão ambiental.
A proposta pedagógica desta escola enuncia como finalidade sua forma de
sensibilizar as pessoas. Nas aulas-passeio, a sensibilização é feita através da observação dos
aspectos do ambiente local. Para seus professores, trata-se de oferecer um olhar diferenciado
através da mudança de perspectiva. Busca propiciar uma visão diversa daquela que
comumente temos dos lugares conhecidos: olhar da água para a terra. Quando você inverte o
olhar, você já vê outras situações, outras interpretações. Eu acho que isso é um processo de
educação-formiguinha, que demora, mas que realmente tem esse potencial de sensibilizar as
pessoas.
Seu projeto é pensado em três partes: uma de preparação, que envolve o
agendamento e o desenvolvimento de conteúdos que serão resgatados no dia da excursão;
uma vivência durante o passeio, que enfatiza o que vê e sistematiza os conteúdos; e, por fim, a
última parte, de responsabilidade do professor da turma, que depois da excursão deve resgatar
a vivência em sala de aula, na própria escola de origem, através de poemas, cartazes e assim
por diante.
Em 2011 foram realizadas seis visitas ao barco-escola, sobre as quais tivemos
oportunidade de refletir anteriormente (MATIAS; FARIAS, 2011a, 2011b, 2011c). Em 2012
foi realizada mais uma visita, a qual trazemos aqui para descrever a rotina das práticas de
312
educação ambiental no interior do barco-escola da EAAC. O trecho transcrito foi retirado do
diário de campo do pesquisador:
No dia 28 de fevereiro, quando cheguei ao cais do porto, de onde partimos, a EAAC
se preparava para iniciar mais uma aula-passeio no barco-escola. Desta vez, quem
havia agendado era Escola Municipal Elizabeth Sales Coutinho de Barros, localizada
no bairro de San Martin, que trazia três professores e quarenta estudantes do quinto
ano. Além da turma da Escola Elizabeth, estava no barco os professores da EAAC
Rildo e Mônica. Inicialmente, foram repassadas as informações sobre os
equipamentos de proteção individual (EPI´s), constituídos dos coletes (Figura 1, em
anexo), e a embarcação saiu exatamente às 14h30min. Quem iniciou a aula foi a
professora Mônica, que cumprimentou os estudantes e lhes informou que essa seria
uma aula de observação e de reflexão; que em razão deste ano se estar
comemorando o aniversário de 100 anos de Luiz Gonzaga, iríamos escutar ―Riacho
do Navio‖, de sua autoria (neste momento os estudantes observavam as paisagens do
local). Depois de terminar a música, a professora solicitou que os estudantes
observassem a região estuarina do Recife, pois neste momento estávamos passando
pela bacia do Pina (Figura 2), que é formada pelos rios Capibaribe, Jiquiá, Pina,
Jordão e Tejipió que se encontram com o Oceano Atlântico na boca da barra. Depois
de alguns minutos, a professora informou que estávamos chegando ao Porto, seria o
primeiro ponto de reflexão dos estudantes - estávamos próximo à boca da barra -,
que é por onde saem e entram os navios. Todos nós olhávamos à nossa frente as
embarcações com alguns pescadores (Figura 3), enquanto nos informavam que
nestas águas encontramos pessoas que se utilizam delas para sobreviver e também
algumas aves (garças) que ficam próximas aos pescadores para obter os peixes
deixados por eles. Neste momento da aula, o professor Rildo da EAAC informou
que estávamos passando pelo rio Beberibe, também conhecido como rio das arraias.
Ele indagou aos estudantes que ao ―cuidar da natureza, estamos cuidando de nós
mesmos‖, e continuamos o percurso ao som da música de Luiz Gonzaga ―Luar do
Sertão‖. Ao terminar a música, o professor nos contou que um dos lugares mal-
assombrados do Recife era a Cruz do Patrão (Figura 4), considerada assim por ser
um local onde antigamente se enterravam os escravos que morriam ao chegar da
África. Escutamos mais uma música de Luiz Gonzaga ―Ai, ai, ai, ai, ai que bom.....‖
e o professor enfatizou que esta música referia-se ao sertão, e também ao nosso
ecossistema. Neste momento, avistamos a Ponte do Limoeiro, a primeira das sete
pontes por onde o barco-escola passa. Antes de a embarcação passar por debaixo da
ponte, a professora Mônica começou a falar das primeiras plantas de mangue que já
podiam ser avistadas (Figura 5). Relatou sobre sua importância, o que elas formam e
as suas condições de sobrevivência. Neste momento houve uma pausa e ao som da
música Mandacaru de Luiz Gonzaga, observava-se os estudantes entusiasmados,
313
começando a bater palma diante da visão das Pontes Princesa Isabel e Boa Vista e
também do Palácio do Governo, a Rua da Aurora, os carros parados e em
movimento, e toda a paisagem urbana vista de um ponto de referência novo: do rio.
Neste momento o pesquisador também se sentiu sensibilizado ao se situar em uma
perspectiva diferenciada, vendo o rio e o manguezal de tão perto em uma visão da
água para terra e não da terra para água, como estamos acostumados a ver.
Estávamos entre as ilhas da Boa Vista e Santo Antônio, quando a professora
perguntou: O que podemos fazer para melhorar as condições das águas? Alguns
estudantes responderam que a solução era ―não jogar lixo no rio‖, e a professora
concordava, respaldando os estudantes. Ao chegarmos ao ponto retorno, o professor
entregou a cada aluno a letra impressa da música Xote Ecológico, de Luiz Gonzaga,
e retornamos cantando e cantando. Repetiu-se mais de uma vez a música até que
chegamos na última ponte, a Nova Ponte Giratória, onde foi solicitado aos alunos
que falassem o que estavam sentindo, o que gostaram e o que não gostaram na aula-
passeio. Aline (uma das alunas) disse que o ―manguezal é muito bonito, as águas, os
peixes e a natureza também, e que acha feio na paisagem o lixo‖. Em seguida
Samara disse que o lugar de lixo é no lixo. A professora da escola também falou,
agradecendo as orientações, explicações e terminou dizendo que iria resgatar na
escola o que foi visto na aula-passeio. A esta altura, já estávamos de volta ao ponto
de onde partimos, foi quando todos retiraram os EPI´s e desembarcaram.
Nossa inserção na rotina da Escola Águas do Capibaribe nos mostra uma forma de
internalização da educação ambiental nos ambientes escolares por meio do uso de um
equipamento diferenciado – o barco-escola. No barco-escola, os professores ministram suas
aulas percorrendo os estuários dos rios Capibaribe e Beberibe. O barco percorre o bairro do
Recife, avistando-se o Marco Zero, os monumentos de Brennand, o encontro dos rios, o cais
do porto, os navios atracados, os diques de Recife e Olinda, as pontes recifenses, o
manguezal, os pescadores, animais, ao mesmo tempo em que se contam histórias locais e se
ouve músicas regionais que acompanham o apreço pela paisagem.
A aula-passeio é a principal estratégia da EAAC, e nela se destacam três aspectos: as
paisagens, os agentes e o discurso educativo-ambiental. As paisagens referem-se à interação
entre a cidade e as zonas estuarinas, observada durante o trajeto do barco-escola. Os agentes
são aqueles que participam da ação, incluindo tripulação, professores e os visitantes. E, por
fim, o discurso que institui o currículo da Escola Ambiental. Entende-se o currículo como
uma produção cultural, que não somente expressa a cultura da sociedade na qual está inserido,
mas também expressa a cultura própria da escola.
A aula-passeio leva aproximadamente 1 hora e 30 minutos. Durante seu percurso, os
314
professores enfatizam processos sociais e educacionais de um ambiente que está em uma
rotativa modificação antrópica, fazendo referências às construções locais, ao despejo de
esgoto nos rios por falta de saneamento básico e à deposição de lixo que contamina os rios e
que prejudica a sociedade como um todo. Nessa linha, o sentido de ambiente que constitui as
práticas de educação ambiental no barco-escola não o dissocia da vida da cidade, a qual
aparece em permanente relação com o ambiente estuarino.
Tal como podemos interpretar, o ambiente que constitui as práticas de educação
ambiental no contexto pesquisado, não dissocia a presença da sociedade que aparece em
permanente relação com o ambiente estuarino, e enfatiza os impactos que o grande
adensamento populacional humano vem causando à integridade ecológica e social na bacia do
Capibaribe ao longo de séculos. No entanto, os sentidos que mais se evidenciam, são aqueles
que associam o ambiente à natureza do lugar, buscando uma perspectiva de onde se possa
olhar a cidade e sua natureza, de dentro do rio.
Ao refletir sobre esses aspectos, podemos dizer que a EAAC constitui uma escola
voltada a produzir vivências educativas de natureza diversa daquelas comumente encontradas
nas salas de aula, mas bastante próxima de uma trilha ecológica, exceto pelo fato de se tratar
de uma ―trilha fluvial‖. Nesse sentido, podemos comparar a aula-passeio no barco-escola a
uma aula ao ―ar livre‖ ou ―de campo‖, por meio da qual se acredita possível contribuir para a
sensibilização do público em relação às questões ambientais.
Considerações finais
Ao partir companhia
desta gente dos alagados
que lhe posso deixar
que conselho, que recado?
Somente a relação
de nosso comum retirar;
só esta relação
tecida em grosso tear.
O Rio (João Cabral de Melo Neto)
Na última estrofe de O Rio, o Capibaribe oferece seu sentimento de relação com a
gente dos alagados. O rio nascido no Agreste pernambucano se retira até desaguar no mar,
315
misturando suas águas a tantas outras águas pelo caminho. Hoje já não são os retirantes e as
casas de lama que lhe povoam as margens e alagados, mas outras gentes, costumes e
habitações modernas.
No Recife contemporâneo, os rios que se encontram com o mar são cenários para uma
educação ambiental em um barco, e a aula é passeio pelas águas. Uma educação ambiental
que se dá a conhecer enquanto vivência fora da sala de aula – aula diferenciada - um passeio
em que se ouve, vê e sente a natureza misturada à cidade. As mudanças nas paisagens e na
cidade são impulsos que renovam práticas de educação ambiental: as aulas de campo, as
trilhas ecológicas, o ensino ao ar livre, tomam novas roupagens e se investem de novos
sentidos; a trilha agora é pelo curso d‘água; e o currículo engloba a relação da cidade com o
rio. Os pontos turísticos também são referências desta educação ambiental enquanto passeio, e
o professor profere o discurso do instrutor ou do guia da trilha, que orienta o olhar e a atenção
do visitante.
Mas por que educar por meio de uma aula-passeio pela zona estuarina? O que se
busca ensinar através desta prática, se o rio e a cidade já estão em interação na vida de quem
vive nesta cidade? Uma possível resposta está na condição indigente que o rio vai adquirindo
ao longo do seu trajeto pelas cidades, o que se supõe ser fator de desconexão entre pessoas e
seus ambientes. Assim, a educação ambiental parece buscar ser remédio contra as hostilidades
decorrentes das transformações da vida urbana e atuar como elemento que conecta as pessoas
à natureza e à história do lugar.
Agradecimentos
Agradecemos à FACEPE/CNPq pela bolsa PIBIC concedida. E aos professores da
Escola Ambiental Águas do Capibaribe, pela gentileza e receptividade.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
CARVALHO, Isabel C. M. A invenção do sujeito ecológico: sentidos e trajetórias em
educação ambiental. Porto Alegre: Ed. Cortez, 2001.
316
MATIAS, Thiago V.; FARIAS, Carmen R. O. Imersão em um barco-escola: Notas sobre um
percurso metodológico de pesquisa em educação ambiental. In: Semana de Ecologia da
UFRPE, 3, 2011, Recife. Anais... UFRPE , 2011.
MATIAS, Thiago. V.; FARIAS, Carmen R. O. Perspectiva e interpretação: a educação
ambiental em um barco-escola. In: Congresso Nordestino de Ecologia, 13, 2011, Recife.
Anais... SNE, 2011.
MATIAS, Thiago. V.; FARIAS, Carmen R. O. Navegando pela zona estuarina do Recife: A
educação ambiental em um barco-escola. In: Jornada de Ensino, Pesquisa e Extensão
(JEPEX), 11, 2011, Recife. Anais... UFRPE, 2011.
http://www.sbpcnet.org.br/livro/62ra/resumos/resumos/1002.htm
ANEXOS:
Figura 1 Bacia do Pina vista do barco escola. Fonte: Thiago Matias Figura 1 Embarcações na bacia do Pina. Fonte: Thiago Matias.
317
Figura 2Cruz do patrão as margens do rio. Fonte Thiago Matias. Figura 3 Visão do manguezal no rio.Fonte Thiago Matias.
A HERANÇA LUTERANA E A PEDAGOGIA DO AMOR A DEUS NA MÚSICA DE
JOHANN SEBASTIAN BACH
PAZ, Thiago S.*; RIBEIRO, Marília A.
**
Palavras-chave: Bach, Barroco, Deus, Lutero, Música.
Introdução
A música do período barroco alemão, que vai do começo do século XVII até 1750,
ano da morte de Bach, foi fortemente marcada pela Reforma Protestante de Lutero (1483-
1546). Sua influência nesse sentido se deu essencialmente através da utilização do vernáculo
para a leitura da Bíblia, e consequentemente na composição de obras musicais. Além disso,
sendo também músico, Lutero buscou através do melhoramento do ensino musical uma
melhor forma de se dirigir a Deus, uma vez que interpretava a Música como dom divino
apenas inferior à Teologia e uma forma de fazer refletir sobre a condição humana decaída
(BUTT, 1994; MARISSEN, 1995).
* Graduando em História pela UFPE – thiagosilva1988@hotmail.com
** Professora Doutora em História da UFPE – ribeiromarilia@hotmail.com
318
Autores como Butt (1994) e Grout e Palisca (1988) abordaram a concepção musical de
Lutero e as formas através das quais ele a insere no contexto da educação musical alemã
barroca, enquanto Brant (1957) argumenta de maneira satisfatória como Bach se apropria
dessa perspectiva em sua obra. Carpeaux (2009) e Pratt (1907) são essenciais para o
entendimento da contribuição feita por Bach à técnica musical.
Estudos como este buscam mostrar como elementos distintos de um movimento
intelectual podem se relacionar entre a teoria e a práxis social, e que suas consequências
podem ser duradouras e culturalmente enriquecedoras, tanto em nível micro, no caso a
Alemanha luterana, como em nível macro, o resto do Ocidente e outras partes do mundo.
O objetivo do presente trabalho é mostrar como a obra de Johann Sebastian Bach
absorveu a influência luterana e como ele a repercutiu, tanto nos aspectos técnicos de sua
composição musical, como em seu caráter pedagógico e como lidou com a resistência de seus
contemporâneos ao buscar divulgar seu trabalho.
Material e métodos
Para este estudo, foi realizada uma pesquisa na literatura por ensaios sobre a vida e
obra de Bach, o Barroco alemão, e sobre teoria e história da Música. Após o levantamento
bibliográfico, foi feita a leitura e interpretação da bibliografia com ênfase nas ideias de Lutero
sobre a relação entre a Música e seu ensino, e a Teologia, bem como de que maneiras tais
ideias foram apropriadas por Bach em sua obra e em sua vida profissional e religiosa.
Resultados e discussão
Durante os séculos XVII e pelo menos a primeira metade do XVIII, ainda que a
música produzida pela Igreja Católica tenha sido de grande relevância, ―a música luterana
forma uma tradição separada que preservou algo da perspectiva medieval sobre a música
religiosa, como algo metafisicamente central para a capacidade humana de entender e se
comunicar com Deus‖ (BUTT, 1994, p.xii).
Guiando-se pela tradição antiga, que também foi usada pelo modelo educacional
medieval, que dividia o pensamento em três categorias (Poética, Prática e Teoria), Lutero
dava muita atenção a musica practica, no sentido herdado da Renascença, de significação
humana dos sons, oposta a musica theorica, apenas especulativa, como elemento da educação
319
musical, já que entendia a música como o segundo maior presente de Deus, atrás apenas da
Teologia, e como uma forma de combater o trabalho do Diabo (BUTT, 1994, p.xiii).
A Igreja luterana refletia as opiniões do próprio Lutero no que diz respeito à música,
uma vez que ele era cantor e compositor de razoável habilidade, além de um admirador da
obra de Josquin des Prez (1440-1521), compositor franco-flamengo da Renascença. Publicou,
além de muitos corais – a grande contribuição da Igreja luterana para a música -, uma Missa
Alemã (Deutsche Messe), que tinha a estrutura básica semelhante às missas romanas, mas que
diferia destas em alguns detalhes, como no uso de novos tons de recitação, adaptados à
cadência da língua alemã, a omissão de algumas partes e a substituição dos hinos germânicos
(GROUT; PALISCA, 1988, p.193).
A música agia também no sentido de disseminar os novos textos em alemão,
especialmente através dos corais, que tinham a função de fazer com que os alunos
adquirissem o conhecimento musical e dogmático que se apresentava com as novas liturgias
(BUTT, 1994, p.xiii). Muitos dos corais compostos eram novos, mas a maioria era feita de
partes de músicas sacras ou seculares. O barroco alemão foi frutífero em resignificar obras
profanas ao transformar seu conteúdo em sacro, tendo como grande influência nesse sentido a
concepção de amor ―agridoce‖ do Petrarquismo renascentista, que foi apropriada pelos poetas
luteranos para demonstrar seu amor pelo Cristo crucificado por nós (VAN ELFEREN, 2009,
p.151).
Lutero buscou dar nova ênfase aos estudos em latim e retomou os estudos de retórica
por considerar que esses conhecimentos eram bons para o espírito. Mas ao tentar tal
empreendimento, enfrentou um problema que ele mesmo havia criado, isto é, a retirada do
latim como única língua através da qual a Bíblia poderia ser lida, gerando um menor interesse
por parte dos alunos em aprender a língua e, consequentemente, uma queda no nível da
educação. Para resolver essa questão, Lutero se viu na necessidade de aproximar mais a Igreja
da Escola, e nesse sentido, a educação musical assumiu um caráter integrador ainda mais
determinante (BUTT, 1994, p.2).
Mais uma vez, a musica practica assume significação especial para Lutero, uma vez
que, para ele, o caráter prático da música explicitava sua ―natureza mágica‖, que melhorava o
senso moral e intelectual dos alunos, aumentando também sua disposição para aprender. E por
isso, supunha Lutero, devia ser aprendida ao mesmo tempo em que se aprendiam também
outras ciências, como a aritmética, o que de fato acontecia, segundo relatórios de atividades
escolares da época (BUTT, 1994, p.3).
320
O pensamento de Lutero, do qual Bach era partidário, sobre a relação entre a música e
o sagrado, visava o melhor entendimento da condição humana após a Queda do homem com o
pecado de Adão. Para a maioria dos luteranos, ―especialmente os dos séculos XVII e XVIII, o
verdadeiro propósito da música, incluindo a instrumental, além de seus usos litúrgicos, era
glorificar a Deus e elevar espiritualmente as pessoas ao fazê-las pensar em assuntos celestiais‖
(MARISSEN, 1995, p.116).
Bach nasceu em 1685, em Eisenach, cidade onde Lutero havia articulado a Reforma
da religião cristã, e abraçou com vigor a cultura de seu tempo. ―O mesmo espírito que
presidiu a Reforma foi que deu vida e força à sua obra: a paixão pelo Cristianismo na pureza
primitiva‖ (BRANT, 1957, p.6). De vida pessoal discreta e sem ambições materiais distintas,
seu maior desejo era o de servir a Deus, e preparar aqueles a quem ensinava para fazerem o
mesmo. ―Ele se considerava um meticuloso artífice tirando o melhor de suas habilidades para
a satisfação de seus superiores, pelo prazer e edificação de seus concidadãos, e para a glória
de Deus‖ (GROUT; PALISCA, 1988, p.302).
Luterano convicto, Bach se opunha aos desmandos que tomavam conta da Igreja
Católica e buscava expressar, através de sua música, seu desejo de retorno à antiga doutrina
cristã então vilipendiada pelos padres. Sua arte é a arte do trabalho do espírito e sua música
―fixa e exalta de tal forma esse sentimento que dá a impressão de uma longa prece, que sobe
aos céus e vai até os pés de Deus‖ (BRANT, 1957, p.7). Dos comentários feitos por Bach em
sua edição Calov da Bíblia luterana, Marissen (1995) reproduz a que parece conter a
mensagem mais clara a esse respeito. Ao comentar o capítulo 25 do livro 1Crônicas (Os
músicos e seu ministério), Bach escreveu que ―este capítulo é a verdadeira fundação de toda
música de igreja de adoração a Deus‖ (MARISSEN, 1995, p.113).
Bach também tinha um grande apreço pelo aprimoramento e inovação das técnicas
musicais, e suas especialidades durante a vida foram, sobretudo, o coral e o órgão. ―Em
termos estruturais, sempre foi um contrapontista, mas sua polifonia transcende o mero
pedantismo. Seus temas são quase todos originais, tem caráter e sentido em si mesmos,
sugerem mais ou menos claramente uma ideia harmônica, e frequentemente alcançam
decidida beleza melódica‖ (PRATT, 1907, p.256).
Seu maior interesse em compor para a glória de Deus do que em julgar de onde
vinham as fontes das quais fazia uso lhe permitiu frutífero contato com a parte da liturgia
católica que não havia sido herdada pelo Protestantismo, assim como com as obras literárias
do folclore alemão e com a produção francesa e italiana, das quais era um estudioso,
chegando mesmo a transcrever e executar obras de diversos compositores, como Vivaldi
321
(1678-1741), Corelli (1653-1713), Abinoni (1671-1751) entre outros. Foi profundamente
influenciado pelos trabalhos para órgão do dinamarquês Diderik Buxtehude (1637-1707). A
adoção por Bach, assim como havia sido por Lutero, de elementos musicais profanos em
obras sacras e vice-versa, deve ser entendida também no contexto do agitado ambiente do
Luteranismo alemão do começo do século XVIII, em que não havia consenso mesmo entre os
luteranos sobre muitos temas, inclusive a música (IRWIN, 2006, p.108). Isso serviu a alguns
intérpretes de Bach como justificativa teológica de que ele assim o fazia por julgar toda vida
como sagrada e não fazer distinção entre música sacra e profana (IRWIN, 2006, p.118).
Na epígrafe do seu Pequeno Livro para Órgão (Orgelbüchlein), conjunto de obras de
teor não religioso e pedagógico que compôs durante seu período como organista em Weimar
(1708-1717), Bach deixa claro seu projeto de vida (BRANT, 1957, p.16):
―Dem Höchsten Gott allein' zu Ehren,
Dem Nechsten, draus sich zu belehren.‖
―Para maior glória do Altíssimo
e melhor instrução do próximo.‖
Ao explicar aos seus alunos da Escola de São Tomás, onde era Kantor, o conceito de
baixo cifrado, isto é, a notação musical usada para indicar intervalos, acordes e enarmonias
em relação a uma nota do baixo, Bach lhes disse:
―O baixo cifrado é o mais perfeito fundamento da música, e executa-se com ambas as
mãos de tal maneira que a esquerda toca as notas indicadas, tomando a direita as
consonâncias e dissonâncias, a fim de que surja uma agradável harmonia para a glória
do Senhor e o prazer permitido à alma. Como a de toda música, a finalidade do baixo
cifrado não deve ser senão a glória de Deus e a recreação da alma. Onde isto não é
tomado em conta, não há música, mas um diabólico palavreado e ruído‖ (BRANT,
1957, p.16).
O texto acima é um exemplo do que Bach mais prezava, ou seja, o apreço pelo
refinamento da técnica musical e a satisfação própria, a plenitude da alma humana, adquirida
apenas na medida em que o homem se volta a Deus, em labor e louvor.
Essa característica se manifesta também na sua composição do Oratório de Natal
(Weihnachtsoratorium), de 1734, e das suas três ―Paixões‖ mais conhecidas, a saber: a Paixão
Segundo São Mateus (Matthäuspassion), de 1729, a Paixão Segundo São João (Johannes-
Passion), de 1724, e na apócrifa Paixão Segundo São Lucas (Lukass-Passion). O oratório é
322
uma forma de música vocal semelhante à ópera, mas que se distingue desta pelo fato de não
ser encenado, e ter conteúdo narrativo. As Paixões, em sua maioria, tem conteúdo sacro, e
contam a história da crucificação de Jesus Cristo. ―Nessas obras, além de recitativos, árias e
coros [elementos básicos do oratório], Bach incluiu Corais (hinos alemães), que usou em
pontos-chaves para intensificar os momentos mais solenes e comovedores da história‖
(BENNETT, 1986, p.39).
As mudanças que proporcionou ao coral foram, apesar de magnânimas,
incompreendidas pela liturgia luterana da época. ―A 21 de fevereiro de 1706, [...] quando era
organista da Neue-kirche, em Arnstadt, recebeu do Consistório séria advertência porque, até
então, ‗havia feito, nos corais, muitas variações estranhas, misturando muitos tons alheios,
tanto que a comunidade ficou confundida‖ (BRANT, 1957, p.14).
Bach tinha como característica a tendência a esgotar todas as possiblidades de um
gênero musical e testar todas as soluções possíveis para um problema musical qualquer.
―Quer dizer: são manuais práticos, como destinados para o ensino do respectivo gênero ou
problema; e são, ao mesmo tempo, as realizações mais monumentais, definitivas do gênero‖
(CARPEAUX, Otto M., 2009, p.128). As ―liberdades técnicas‖ das quais Bach fez uso em
toda sua obra lhe causaram muitos problemas ao longo da vida. Ao abandonar o cargo de
organista em Nülhausen, apresentou como justificativa para sua renúncia a nota: ―Tive sempre
o pensamento de fazer progredir a música religiosa, para maior glória de Deus, mas não o
tenho podido conseguir até o presente sem oposição‖ (BRANT, 1957, p.15).
Devido a sua personalidade temperamental e explosiva, Bach teve muitos desafetos
durante toda sua vida, por razões diversas, mas essencialmente relacionadas com suas
inovações musicais e com seu método rígido de ensino. Bach, assim como Lutero, via na
autodisciplina e na concentração nos estudos musicais uma forma nobre de se buscar a Deus,
e costumava ser inflexível e excessivamente duro com seus alunos. ―Quando morreu ainda
havia um certo ambiente hostil a ele. No elogio fúnebre que lhe fez a Escola de São Tomás,
registrava-se que ‗Bach era, talvez, um grande músico, mas um mau pedagogo‘‖. Brant
considera injustiça julgar que Bach tenha sido um mau pedagogo, e usa como exemplos de
suas obras mais didáticas as Partidas, o Concerto Italiano, as Invenções, as Variações
Goldberg e o Cravo bem temperado (BRANT, 1957, p.20). No caso do Cravo bem temperado,
seu caráter pedagógico é justificado pela forma como Bach mantém o âmbito tonal normal de
cada tecla como parte de sua integridade, de forma a demonstrar diferentes formas de
composição e as amplas possibilidades expressivas de cada tecla (LEDBETTER, 2002,
p.117).
Das críticas recebidas por Bach sobre seu pietismo, Irwin (2006) conclui que, mesmo
estando envolto de disputas teológicas entre os luteranos ortodoxos e os pietistas (o Pietismo
323
foi um movimento surgido dentro do Luteranismo como crítica ao desprezo deste pelo caráter
individual e subjetivo da religião), o uso que fez dos textos dos pietistas em suas cantatas
revela mais a utilização de recursos linguísticos e da forma de poesia então disponíveis do que
a adesão a um movimento religioso, uma vez que em sua biblioteca havia um número pífio de
obras dos pietistas, por exemplo, além de que, para além das dificuldades gerais em descrever
o pietismo, Bach tinha divergências tanto musicais quanto doutrinárias com eles, estando mais
inclinado a compartilhar das crenças dos ortodoxos (IRWIN, 2006, p.113).
Bach se notabilizou como maior figura do barroco alemão pelas inovações que trouxe
para a música e pelo perfeccionismo que buscava ao se debruçar sobre qualquer gênero ou
tema musical, e as bases para sua obra monumental apresentam um caráter, por um lado, de
inspiração profundamente teológica, herdada da Reforma de Lutero, e por outro, uma forma
essencialmente pedagógica, em razão de seu desejo de melhor ensinar aos seus pupilos e as
outras pessoas para a glorificação de Deus. A dimensão profissional de sua obra está
diretamente relacionada à sua relação com a Religião, e ambas não podem ser separadas do
caráter tutorial com que se dirigia aos seus contemporâneos.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao amigo Ronald Moura pelas opiniões e sugestões durante a
produção deste trabalho, e a todos os que ajudam a manter viva a memória de Johann
Sebastian Bach, que me apresentou um novo sentido para o conceito de música sublime.
Referências
BENNETT, Roy. Uma Breve História da Música. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1986.
BRANT, Celso. Bach, o Quinto Evangelista. Ministério da Educação e Cultura: Instituto
Nacional do Livro. Rio de Janeiro, 1957.
BUTT, John. Music Education and the Art of Performance in the German Baroque.
Cambridge University Press. New York, 1994.
CARPEAUX. Otto M. O Livro de Ouro da História da Música. Ediouro Publicações S.A.
Rio de Janeiro, 2009.
GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. A History of Western Music. Fourth Edition.
W.W. Norton & Company, Inc. New York, 1988.
IRWIN, Joyce. Bach in the Midst of Religious Transition. In: BARON, Carol K. (Org.)
Bach’s Changing Worlds Voice in the Community. University of Rochester Press.
Rochester, 2006. p.109-126.
324
LEDBETTER, David. Bach’s Well-tempered Clavier: The 48 Preludes and Fugues. Yale
University Press. London, 2002.
MARISSEN, Michael. The social and religious designs of J. S. Bach’s Brandenburg
Concertos. Princeton University Press. New Jersey, 1995.
PRATT, Waldo S. The History of Music. G. Schirmer. New York, 1907.
VAN ELFEREN, Isabella. Mystical Love in the German Baroque: Theology, Poetry,
Music. The Scarecrow Press, Inc. Plymouth, 2009.
RELIGIOSIDADE E COERÇÃO SOCIAL: A FESTA E SUAS FUNÇÕES NAS VILAS
DO RECIFE E DE OLINDA SETECENTISTAS
Ulisses Batista da Silva304
Heriberto Da Mota De Arruda Barros305
Alberon de Lemos Gomes306
(Orientador)
PALAVRAS-CHAVE: FESTAS – PODER – RELIGIOSIDADE – SOCIABILIDADE -
COERÇÃO
INTRODUÇÃO
As festas públicas religiosas, no decorrer do século XVIII, nas localidades das Vilas
do Recife e de Olinda, se configuravam muito mais que um simples espaço de vivência,
sociabilidade e diversão na capitania de Pernambuco. Por trás do aspecto lúdico das
comemorações, construía-se uma rede de relações de interesses e poder que se mantinham
indiretamente como objetivos principais a serem alcançados por aqueles que as organizavam.
Dessa forma, essa pesquisa visa a trabalhar as festas nesse recorte espaço-temporal de forma a
extrair delas não apenas detalhes descritivos e/ou informativos de seu funcionamento, mas
buscar nelas, utilizando-as como uma janela para um estudo maior, sentidos mais profundos
das quais, ao que parece, não estavam isentas. Portanto, ao estudar uma das manifestações
304
Bacharelando em Direito (UFPE) – Licenciado em História (UPE) (ulisses_geps@hotmail.com)
305 Pós-graduando em História (UFPE) – Licenciado em História (UPE) (heriberto.motaupe@hotmail.com)
306 Licenciado, bacharel, mestre e doutorando em História (UFPE)
325
religiosas mais importantes e populares de todo o país: as festividades, busca-se ―investigar‖
de que forma elas estavam embebidas de referenciais políticos funcionando como um reforço
aos interesses locais.
MATERIAL E MÉTODOS
No início dessa pesquisa, foram indicadas algumas leituras teórico-metodológicas
acerca das relações de poder na Colônia e cotidiano; enfaticamente sobre a temática
predominante Católica; e leituras de fontes documentais da época colonial da história do
Brasil, as quais mencionavam aspectos sobre as festas populares da capitania de Pernambuco.
Em um segundo momento foi feita uma pesquisa documental sobre as principais
fontes que retratavam as festas, durante o século XVIII, referente à dita capitania, existentes
no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), e as atas da Câmara Municipal do Recife. Todos
esses documentos levantados estão digitalizados e disponibilizados em CD‘s Rom‘s advindos
do Projeto Internacional Resgate Barão de Rio Branco, do Ministério da Cultura e as atas
estão disponibilizadas no Instituto Histórico, Geográfico e Arqueológico de Pernambuco.
A Análise de tais documentos ocorreu de forma positiva graças à disciplina de
paleografia já cursada, sendo de extrema importância para o primeiro contato com a
documentação contudo, adquirindo experiência e aprendizagem no processo de transcrição de
documentos.
Dando continuidade, passou-se a analisar a documentação sobre as relações de força e
poder através das festas religiosas apoiando-se em fontes de autores como a historiadora Mary
del Priore e, em outra frente de pesquisa, pela carioca Martha Abreu. Tais fontes serviram
para alimentar o banco de dados, possibilitando o manuseio de um grande número de
informações documentais e a produção de textos para o andamento da pesquisa.
Contudo, a pesquisa ainda exige a necessidade da análise de outras fontes que
norteiem seu eixo temático, pois o trabalho ainda se encontra em fase de construção, sendo
apresentado aqui as primeiras produções acerca do tema proposto.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Segundo a historiadora Mary Del Priore, expressão teatral de uma organização social,
a festa é também fato político, religioso ou simbólico. Neste sentido, os jogos, as danças e as
músicas que a recheiam não só significam descanso, prazeres e alegria durante sua realização;
eles têm simultaneamente importante função social. Sendo assim, ao analisarmos as festas
dentro do contexto social colonial do século XVIII, nas Vilas do Recife e Olinda, na capitania
326
de Pernambuco, salientaremos que por trás da ―alegria‖ da festa, tendo em vista a ajuda
oferecida às populações a suportarem o fardo do trabalho, assim como, a difícil exploração,
permitia aos indivíduos marcas de suas especificidades e distinções sociais, neste caso, a
Igreja Católica, através das festas religiosas. Ainda assim, ―espelho das formas modernas de
governo, ela era um meio de fixação política e manifestação do poder crescente do Estado
Português.‖ (DEL PRIORE, 2000: 15) Vale salientar, que através do Padroado a Igreja e
Estado andavam em tênue harmonia.
Um dos exemplos disto eram as procissões, que simultaneamente são comunitárias e
hierárquicas. Segundo Mary Del Priore ―a difusão das procissões, em dias de festa religiosa,
colocava em evidência a mentalidade das populações, que viam no rito processional uma
função tranqüilizante e protetora‖. (DEL PRIORE, 2000: 23) Deste modo, ao lidar com o
espírito piedoso dos colonos a Igreja passou a lhes dar justificativas históricas e teológicas,
além de aproveitar tais momentos, que não eram poucos, para disciplinar e controlar as
populações.
Estabelecer um controle mascarado através do sentido das festas populares era
duplamente significativo para essa que se configurava como uma das mais poderosas
Instituições coloniais. Por um lado era preciso impedir o crescimento para a ―praga‖ do
protestantismo que somente em aproximadamente 50 anos, ainda no século XVI, conseguira a
adesão de 40% dos europeus Ocidentais e que, principalmente em Recife e Olinda que
passaram 24 anos convivendo com a ―liberdade‖ religiosa imposta pelos holandeses e com o
protestantismo huguenote, constituía uma ameaça constante ainda no final do século XVIII.
Por outro, era necessário combater as práticas da heterogeneidade presente no
sincretismo religioso do âmbito privado, pois apesar do extenso controle sobre a vida pública,
a privada era extremamente difícil de ser investigada por outros meios escassos que não
fossem através da confissão. Dessa forma era comum mesclar preceitos católicos com crenças
e ritos provindos da tradição africana, indígena ou até européia mesmo. Para o clericato
Católico era justamente por questões como essa que o ambiente festivo deveria ser visto
muito mais que um simples espaço lúdico de diversão e sociabilidade, era preciso utilizar-se
dele uma ―janela‖ de mentalidades não só para a divulgação dos dogmas católicos como para
a transferência de sua essência do âmbito público para o privado de forma coibir qualquer
outra forma de manifestação que fosse de encontro aos seus interesses.
Daí as festas serem talvez uma forma ainda mais eficaz que outras medidas
―freiativas‖ tomadas pelo catolicismo (tal como as ―visitações‖ dos representantes do Tribunal
da Inquisição que estiveram na Bahia e no recorte espacial em que trabalhamos nos anos de
1591, 1618 e 1627), pois enquanto que essas visitações são esporádicas as festas eram muito
mais presentes. Havia, no final do século XVIII, por exemplo, 98 feriados segundo Luiz Mott,
327
e a maioria deles com rituais públicos e celebrações festivas. Como sabiamente salientou
Durkeheim, no clássico ―Formas elementares da vida religiosa‖, as cerimônias e rituais
públicos sempre tiveram uma função catalisadora do etos comunitário, funcionando
igualmente como eficiente mecanismo de controle social e manutenção da rígida hierarquia da
igreja militante. (MOTT, 1997: 159)
Esses eventos se configuravam como mais um dos reflexos do Concílio de Trento, mas
não como um qualquer. ―A presença do Concílio de Trento como uma espécie de fantasma
normatizador do novo tipo de religiosidade que se quer impor tenta ordenar a espiritualidade
pública e suas práticas, varrendo para baixo do tapete as chamadas ―profanações e
abusos‖―. (DEL PRIORE, 2000: 97) Ou seja, a separação entre o profano e sagrado, requeria
dar uma única função às práticas públicas, interligando a estas todos os segmentos da vida
social em reações ritualizadas e livres de qualquer característica entre a ―bastarda‖ da cultura
e da mentalidade popular.
A igreja perscrutava todas as atividades envolvidas pela festa; desde a procissão e Te
Deum à sua continuidade em bailes, bebedeiras, jogos e fornicação. Destarte, as festas, um
fenômeno essencial para o relacionamento entre as pessoas em torno do evento religioso
tornava-se instrumento das exigências institucionais. Mesmo que de forma, teórica, visto que
na prática as realidades eram outras, o que não impossibilita a imposição de vontades
eclesiásticas percebendo os esforços da mesma para instaurar-se como instituição de poder e
controladora da população aparentemente.
Diante dos dados obtidos podemos concluir que: a) As transformações religiosas
ocorridas no início da Modernidade em suas duas vertentes, a Reforma heterodoxa protestante
e a Reforma ortodoxa católica, fez com que a Igreja Católica expandisse sua zona de interesse
por novos fiéis para o ―além-mar‖ e se utilizasse de diversos recursos com a finalidade de
fazer valer a manutenção do seu poder; b) Houve um intrincado sistema de utilização das
festas, no Brasil colonial, como instrumento de concretização de interesses religiosos; c) Por
fim, entende-se que é necessário um fazer historiográfico menos inocente no sentido de
interpretar as festividades coloniais não apenas em seu caráter lúdico, mas utilizar-se de tais
celebrações como uma janela para entender um campo ainda mais vasto: o das relações de
poder.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Universidade de Pernambuco e à Universidade Federal de
Pernambuco pela concessão dos espaços para os encontros teóricos acerca da temática
escolhida e de suas respectivas bibliotecas com seu acervo teórico. Agradecemos ainda à
328
professora e doutora Maria do Carmo Barbosa de Melo pelo apoio técnico e qualitativo na
confecção do banner e que apesar de tudo mantém-se confiante em nossos trabalhos e nos faz
manter viva a esperança em nós mesmos e na crença na renascentista frase de sir Isaac
Newton: ―Se consegui enxergar mais longe é porque me apoiei nos ombros de gigantes...‖.
REFERÊNCIAS
ABREU, Martha. O Império do Divino: Festas Religiosas Cultura Popular no Rio de Janeiro,
1830-1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Festas: Máscaras do Tempo: Entrudo, Mascarada e
Frevo no Carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996.
COSTA, Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: FUNDARPE, 1986. (11 volumes).
COTRIM, Gilberto. História Global. São Paulo: Saraiva, 2005.
DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime
da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1996.
JANCÓ, Istvan. & KANTOR, Irís. (orgs.). Festas: Cultura e Sociabilidade na América
Portuguesa. São Paulo: Edusc / Imprensa Oficial, 2003. (2 volumes).
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: Secretaria de Educação e Cultura
do Estado de Pernambuco, 1978.
MOTT, Luiz. Cotidiano e convivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: Laura de
Mello e Souza (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras,
1997, Vol.1.
TOLLENARE, L.F. de. Notas Dominicais. Recife: CEPE / Secretaria de Educação e Cultura
do Estado de Pernambuco, 1978.
330
MINI-CURSO 1:
O JUDAÍSMO CONTEMPORÂNEO: ENTRE RELIGIÃO E IDENTIDADES
Coordenador:
CRESO NUNO MORAES DE BRITO – MESTRADO – UFRPE
SUZANA DO NASCIMENTO VEIGA – Mestrando – UFRPE
RESUMO:
Este minicurso tem como objetivo traçar um panorama transdisciplinar introdutório
sobre as identidades e a religião judaica, contribuindo inclusive para a reflexão sobre as
questões de gênero no interior deste grupo étnico, bem como suas inter-relações no contexto
do judaísmo brasileiro contemporâneo e sua relação com a sociedade não-judaica (gentia/gói).
O seu conteúdo está dividido em três segmentos: os dois primeiros consistem num
reconhecimento reflexivo acerca dos diversos elementos que delimitam e norteiam os
conceitos de identidade e das práticas religiosas israelitas atualmente, discutindo também
como a questão das transformações nos modelos de gênero influenciam na construção desses;
concluindo com uma análise das variedades resultantes das suas relações no contexto da pós-
modernidade. Dessa forma, no primeiro dia, ressaltar-se-ão as estruturas sócio-históricas do
Judaísmo e seu caráter duplamente simbiótico e restritivo na construção dos diversos grupos
de pertinência quanto a esta etnia; no segundo dia, aprofundar-se-á na reflexão dos elementos
que compõem a sua estrutura religiosa; por último, veremos como as transformações culturais
na sociedade ocidental no século XX afetaram a autopercepção e a organização do Judaísmo.
A metodologia utilizada será a tradicional, fundamentando-se na reflexão dos textos
propostos, com o auxílio de mídias audiovisuais e na explanação dos conceitos, porém se
permitindo a livre participação dos inscritos e o diálogo construtivo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALPERT, Rebecca T. Whose Torah? A concise guide to progressive judaism. New York: The
New Press, 2008.
BONDER, Nilton. SORJ, Bernardo. Judaísmo para o século XXI: O rabino e o sociólogo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
331
KAUFMAN, Tânia N. Passos Perdidos, História Recuperada: A presença judaica em
Pernambuco. Recife: Bagaço, 2005.
KESSLER, Edward. Em que acreditam os judeus? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
SORJ, Bernardo. Judaísmo para todos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
SZTAJNSZRAJBER, Darío. Posjudaísmo: debates sobre lo judío em el siglo XXI. Buenos
Aires: Prometeo Libros, 2007.
MINI-CURSO 2:
ARQUEOLOGIA SUBAQUÁTICA
Coordenador:
CARLOS CELESTINO RIOS E SOUZA – PhD – UFPE
RESUMO:
A Arqueologia Subaquática de forma semelhante a que é executada hoje, existe no mundo
desde o final da década de 60. No Brasil, começou a dar os primeiros passos nos anos 70 com
os trabalhos realizados na Bahia e em Pernambuco. O Estado de Pernambuco conta com
um considerável patrimônio arqueológico subaquático, tanto no mar quanto em seus estuários,
rios e lagos. O Minicurso expõe aspectos teóricos metodológicos básicos da Arqueologia
Subaquática efetuada em sítios de naufrágios pernambucanos. As aulas teóricas serão
apresentadas em Power point, além de filmes sobre o assunto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BASS, G. F. Arqueologia subaquática. Lisboa: Verbo, 1969.
CUNHA, L. O. C. Manual de Arqueologia Subaquática: enfoque Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Razão Cultural, 2009.
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FUNARI, P. P. e PELEGRINI, S. C. A. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
IPHAN. Patrimônio: atualizado em debate. Brasília, 2006.
LIVRO AMARELO: Manifesto Pró-Patrimônio Cultural Subaquático Brasileiro.
CEANS. Campinas: 2004.
332
RIOS, C. Identificação arqueológica de um naufrágio localizado no lamarão externo do
porto do Recife, PE, Brasil. (Dissertação de Mestrado). Recife, 2007.
RIOS, C. Arqueologia Subaquática: identificação das causas de naufrágios nos séculos
XIX e XX na costa de Pernambuco. (Tese de Doutorado). Recife, 2010.
RIOS, C. Subsídios para a Arqueologia Subaquática: Fatores Causadores de Naufrágios.
Rio de Janeiro: Navigator, 2011.
MINI-CURSO 3:
OS LUGARES DAS CULTURAS NEGRAS NA IDENTIDADE BRASILEIRA:
CONCEPÇÕES, PRÁTICAS E ALTERNATIVAS DE ENSINO
Coordenador:
MARTHA ROSA FIGUEIRA QUEIROZ – UFRPE e Doutora em História pela UnB.
GUSTAVO MANOEL DA SILVA GOMES – Mestrando – UFRPE
RESUMO
Desde o estabelecimento das Leis nº 10.639/03 e, mais tarde, 11.645/2008, o ensino de
História e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas no Brasil passou a ser obrigatório nas
instituições de ensino. Mas, ao contrário do que fomenta a Lei, esses temas ainda não se
consolidaram como práticas pedagógicas na maioria dos estabelecimentos de ensino do país.
As práticas culturais construídas historicamente na sociedade brasileira, como a discriminação
e a invisibilidade de negros e índios, impõem diversos desafios ao exercício de atividades
pedagógicas relacionadas com os temas em questão. Destarte, este minicurso pretende refletir
sobre os desafios de se trabalhar com esses temas em sala de aula e instigar algumas
possibilidades para a transformação desse contexto, por meio de: a) uma abordagem de
referenciais teórico-metodológicos da historiografia na perspectiva de uma análise dos
processos de construção histórica dos estereótipos sobre essas culturas; b) discutir alguns
estigmas negativos sobre negros e sua cultura e, c) sugerir materiais didáticos, metodologias,
temas e conceitos que podemos lançar mão em nossas salas de aula para fomentar um ensino
de História significativo e democrático, comprometido com o reconhecimento e o respeito à
diversidade cultural e também com a ressiginificação das memórias e das identidades
(re)construídas no ambiente escolar. A utilização de linguagens alternativas, a
transversalidade e a interdisciplinaridade no ensino serão práticas contempladas neste trabalho
333
que visa facilitar a elaboração dos conteúdos escolares e das práticas docentes num contexto
em que a postura política do educador/historiador deve continuar sendo repensada.
MINI-CURSO 4:
MAGIA E RELIGIÃO: DE MERLIN DE ROBERT DE BORON AO TRATADO DA
MAGIA DE GIORDANO BRUNO.
Coordenador:
TIAGO JOSÉ CAVALCANTI ATROCH – Mestrando – UFAM
ATILA AUGUSTO VILAR DE ALMEIDA – Mestrando – UFAM
RESUMO
A distinção entre magia e religião é problemática. Se por um lado a Igreja
discriminava o milagre da magia, por outro lado essa distinção não é assim tão simples. Tanto
nas práticas medievais quanto renascentistas os limites entre religião e magia eram tênues. Por
exemplo, distinguir entre o milagre dos sacramentos da religião católica e os usos dos poderes
de Merlim na narrativa de Robert de Boron não é tarefa fácil. Dessa forma, apreender as
relações entre a magia e a religião em um período longínquo como a Idade Média, dos séculos
XII e XIII, de um lado, e o Renascimento, dos séculos XV e XVI, de outro, podem apontar as
variadas formas em que as relações entre magia e religião foram estabelecidas. Por exemplo,
em Merlin de Robert de Boron, um texto literário de fins do século XII e início do XIII, a
magia aparece como absorvida pela religião e, ao invés de possuir caráter herético, tinha
elementos próprio do cristianismo e relacionava-se com ele de forma estreita. Já o Tratado da
Magia de Giordano Bruno, no final do século XVI, apresenta a magia como uma força que se
opõe à religião cristã, quase reclamando para si a grandeza de religião, deixando transparecer
o seu caráter herético. No minicurso discutiremos como esse processo se desenvolveu: para
tanto, no que se refere a Idade Média, serão discutidas algumas passagens marcantes do
Merlin de Robert de Boron e no que toca ao século XVI, as passagens mais polêmicas do
Tratado da Magia. O objetivo é apontar, em ambos os textos, a disparidade das relações entre
magia e religião entre os períodos concernentes a cada texto.
335
SIMPÓSIO:
LITERATURA, MÚSICA E CINEMA: NOVOS OBJETOS E NOVAS FONTES DA
PESQUISA HISTÓRICA
AUTOR 1: ALBERON DE LEMOS GOMES
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
AUTOR 2: JOSÉ RODRIGO DE ARAÚJO SILVA
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
RESUMO:
Após a publicação do manifesto Nouvelle Histoire, pela terceira geração dos Annales,
capitaneada por Jacques Le Goff, a proliferação de novos temas, objetos e abordagens para a
pesquisa história fez com que a literatura, a música e o cinema passassem a dialogar com o
ofício dos historiadores, seja como objeto de estudo, seja assumindo o papel de fontes
históricas. A prática da História, assim, toma um novo rumo, no qual o recurso às imagens,
aos textos e às ações passou a ter um lugar de destaque no entendimento e interpretação do
passado. Em vista disto, os próprios modelos explicativos da história social, até então em
vigor nos meios acadêmicos, tiveram os seus focos de análise direcionados para a história da
cultura, o que vem possibilitando aos historiadores a compreensão das relações econômicas e
sociais, de uma dada época e sociedade, enquanto campos de prática e produção cultura. A
proposta deste simpósio temático é debater essa nova realidade, evidenciando pesquisas que
tenham como foco o estudo da história cultural a partir da literatura, da música e do cinema.
As principais alterações epistemológicas oriundas da História Cultural estiveram ligadas à
336
reorientação da atitude do historiador, a partir dos conceitos de: representação, imaginário,
narrativa, ficção e sensibilidades. Não nos prenderemos a um suporte teórico único, nosso
objetivo é constituir um espaço de debate que prime pela diversidade de propostas, buscando
por em evidência as variadas relações de Clio com a ficção, os filmes e a música. Nesta
perspectiva, também não determinamos limites cronológicos ou espaciais para os trabalhos a
serem apresentados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALBUQUERQUE Jr., Durval Munis de. História – A arte de inventar o passado: Ensaios de
Teoria da História. Bauru: EDUSC, 2007.
BURKE, Peter. (Org.) A escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo: EdUnesp, 1993.
CAPELATO, Maria Helena; MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; & SALIBA,
Elias Thomé. (Orgs.). História e cinema: Dimensões históricas do audiovisual. 2ª. edição. São
Paulo: Alameda / Edusp, 2011.
FERRO, Marc. Cinema e História. 2ª. edição, revista e ampliada. São Paulo: Paz e Terra,
2010.
HUNT, Lynn. (Org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NAPOLITANO, Marcos. História e música: História cultural da música popular. Belo
Horizonte: Autêntica, 2002.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História cultural. 2a. edição. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006. (História &... Reflexões, 5).
ROSENSTONE, Robert A. A História nos filmes / Os filmes na História. São Paulo: Paz e
Terra, 2010.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp,
1994.
SIMPÓSIO:
PERSPECTIVAS DA PINTURA BARROCA: TEORIA, ICONOGRAFIA E
ICONOLOGIA
AUTOR 1: André Cabral Honor
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal de Minas Gerais
337
AUTOR 2: Mateus Alves Silva
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO:
O conceito de barroco é um dos mais discutidos e debatidos dentro dos estudos
historiográficos. Inicialmente posto como uma tentativa de definir uma tipologia artística,
desde sua primeira aplicação, o termo tem sido redefinido, estreitado, alargado, e, até mesmo,
condenado. O presente simpósio procura discutir esta arte barroca, seus conceitos teóricos,
suas ferramentas metodológicas de análise, ressaltando-se suas aplicações para o contexto da
expansão marítima, em especial, da América Portuguesa. Nos trópicos americanos, esta arte
se moldou aos caracteres locais adquirindo aspectos regionais sem esquecer sua matriz
européia que chegava aos pintores locais através de diversos veículos: gravuras, tratados,
crônicas, ou mesmo pela lembrança de uma obra de arte vista em algum momento da vida do
pintor ou de seu encomendante. Com uma grande diversidade de suportes físicos para a
pintura — que inclui desde azulejaria produzida na Europa às telas de pano e madeiramento
— as variantes iconográficas se multiplicavam dentro do contexto colonial, assim as
explicações para suas razões de existir. Desta forma, o simpósio também busca agregar
pesquisas descritivas e interpretativas contemporâneas no intuito de estabelecer um maior
diálogo entre os pesquisadores que se aventuram nesta seara, para que possamos aprimorar a
compreensão da complexa arte barroca, proporcionando um aperfeiçoamento das ferramentas
teóricas e metodológicas de análise das pinturas e seus contextos históricos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Trad. Maurício
Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. [1986].
CREMADES, Fernando Checa; TURINA, José Miguel Morán. El Barroco. Madrid: istmo,
2001.
GOMBRICH, Ernest. Los usos de las imagenes: estudios sobre la function social del arte y
la comunicación visual. México: fondo de cultura económica, 2003.
HAUSER, Arnold. História social da Arte e da Literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 2003 [1953].
MAHÍQUEZ, Rafael García. Iconografía e Iconología. 2 v. Madrid: Ecuentro, 2008.
MELLO, Magno Moraes. A pintura de tectos em perspectiva no Portugal de D. João V.
Lisboa: Estampa, 1998.
338
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991
[1955].
RÉAU, Louis. Iconografía del arte Cristiano. 6 v. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2007.
SEBASTIÁN, Santiado. Contrareforma y barroco. Madrid: Alianza, 1989.
SOBRAL, Luis de Moura. Do sentido das imagens: ensaios sobre pintura barroca portuguesa
e outros temas ibéricos. Lisboa: Estampa, 1996.
SIMPÓSIO;
DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E RELIGIOSIDADE: PRÁTICAS,
REPRESENTAÇÕES E RELAÇÕES DE PODER NA COLÔNIA E NO IMPÉRIO
AUTOR 1: Bruno Kawai Souto Maior de Melo
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal de Pernambuco
AUTOR 2: Gustavo Augusto Mendonça dos Santos
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal Rural de Pernambuco
RESUMO:
O presente simpósio visa proporcionar um espaço de discussão sobre as diversas
formas como a religiosidade foi vivenciada pela população no Brasil colonial e imperial,
intentando com tal proposta reunir pesquisadores que se preocupem com as manifestações
religiosas existentes no Brasil no espaço de tempo delimitado, valorizando as práticas e
representações cotidianas criadas pelos sujeitos históricos de então, que experienciaram a
religiosidade de forma plural e criaram espaços de vivência próprios nos quais cada grupo
social podia conferir sentidos múltiplos à sua interação com o divino, o que caracterizou a
miscelânea religiosa na qual o Brasil se constituiu ao longo dos séculos. Também
pretendemos debater as formas como as relações de poder integravam as práticas religiosas
proporcionando espaços de conflito entre os diferentes grupos que compunham a sociedade,
que hora buscavam demonstrar suas qualidades por meio das várias formas de participação no
universo religioso comuns ao Império Português e hora criavam formas singulares de conexão
com o sagrado diferente dos modelos previstos pela estrutura Eclesiástica Portuguesa. Esta
interpretação é aplicada principalmente no contexto da América Portuguesa, onde política e
religião se interpenetram e se delimitam por uma tênue interface móvel, que alicerça a própria
estrutura do império pluricontinetal Português.
339
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Suely Cordeiro Creusa de. O Sexo Devoto. Recife: Ed. Universitária da UFPE,
2005.
FEITLER, Bruno. Nas Malhas da Inquisição: Igreja e Inquisição no Brasil. São Paulo:
Phoebus, 2007.
______________ e SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil: normas e práticas
durante a vigência das constituições primeiras do arcebispado da Bahia. São Paulo:
UNIFESP, 2011.
FREIRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime
da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
HORNAERT, Eduardo. História da Igreja no Brasil: segunda época – século XIX. Tomo
II/2. Petrópolis: Paulinas e Vozes, 1992.
MELLO, José Antônio Gonçalves. Gente da Nação. Recife: Massangana, 1996.
NEVES, Guilherme Pereira das. A Religião do Império e a Igreja. In. GRINBERG, Keila e
SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Império (1808-1831). Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009.
REIS, João José. A Morte é Uma Festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro: civilização brasileira, 2010.
SCHWARTZ, Stuart. Cada Um na sua Lei. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SIMPÓSIO:
QUESTÕES SOBRE A NARRATIVA HISTÓRICA NO DEBATE
CONTEMPORÂNEO DA TEORIA DA HISTÓRIA
AUTOR 1: RAPHAEL GUILHERME DE CARVALHO
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Programa de pós-graduação em História da Universidade
Federal do Paraná
AUTOR 2: HELDER SILVA LIMA
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Programa de pós-graduação em História da Universidade
Federal do Paraná
340
RESUMO:
Seguindo a orientação temática geral do 2º. Colóquio de História e Arte da UFRPE,
este simpósio propõe a discussão, em termos atuais, de uma velha questão: a história entre
ciência e arte ou o conceito de narrativa entre compreensão histórica e ficção verbal. Ato
antropológico fundamental, prática cultural de interpretação do tempo, a narração é o modo
específico de explicação histórica da ciência da história. Convertido em história por
representações narrativas portadoras de sentido, o passado prolonga-se pela continuidade na
direção dos projetos de futuro orientadores do agir humano. O ponto de viragem da disputa
em torno da teoria da narrativa envolve a chamada linguistic turn com a discussão da história
entre ―arte‖ (estética e retórica) e ―ciência‖ (pesquisa metódica) ou, ainda, sobre verdade e
ficção na narrativa histórica. A historiografia pós-moderna, principalmente a partir do
―problema‖ Hayden White, radicalizou o ceticismo quanto à cientificidade da história, o que
gerou respostas teóricas diferentes e desdobramentos questionáveis, como o relativismo
histórico. A teoria da história alemã, por exemplo, nas figuras exponenciais de Reinhart
Koselleck e Jörn Rüsen, incorporou o debate e a partir dele produziu avanços significativos
em defesa da orientação científica da disciplina. Na França, a hermenêutica de Paul Ricoeur
contribuiu para com a epistemologia da história ao propor interpretação monumental da
questão nos três tomos de ―Tempo e Narrativa‖ (1984). A proposta do Simpósio é remeter ao
debate que girou em torno do conceito de ―narrativa‖ (e correlatos) na teoria da história e
teoria literária, principalmente a partir dos anos 1970 até os dias atuais (embora desde pelo
menos Gervinus, na década de 1830, já se pensasse sobre o caráter ambíguo da apresentação
histórica entre qualidade artística e cientificidade); e, além do debate teórico, privilegiar-se-ão
os trabalhos que discutirem a ―escrita da história‖ na historiografia e na prática de pesquisa
empírica, em autores nacionais ou estrangeiros de qualquer época.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACHAM, K. A compreensão histórica entre ceticismo e arbitrariedade: algumas
considerações sobre as variantes recentes do relativismo histórico e cultural. História da
Historiografia, Ouro Preto, n. 7, nov./dez., 2011, p. 201-224.
GINZBURG, C. Relações de Força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das
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KOSELLECK, R. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto; PUC-RJ, 2006.
LIMA, L.C. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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RORTY, R. (Org.) The linguistic turn: essays in philosophical method. Chicago: The
University of Chicago Press, 1997.
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.
RÜSEN, J. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília :
UnB, 2001.
__________. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. História da
Historiografia, Ouro Preto, n. 2, mar., 2009, p. 163-209.
WHITE, H. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.
__________. Meta-História. A Imaginação Histórica do Século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.
SIMPÓSIO
AS FACES DE EVA: GÊNERO, TRANSGRESSÃO SEXUAL E IGREJA CATÓLICA
NO BRASIL.
AUTOR : Renata Valéria de Lucena
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal Rural de Pernambuco
RESUMO:
A Igreja Católica é uma instituição que, desde a colonização, esteve presente em nossa
sociedade, ditando regras e condutas comportamentais que deveriam ser seguidas no intuito
de combatendo os concubinatos e adultério que eram enquadrados na categoria de crime.
Personificada na figura de Eva, a mulher era comparada ao pecado pela sua capacidade de
seduzir e afastar os homens do modelo ideal de cristão proposto pela Igreja. Enganadora,
diabólica e concupiscente eram alguns dos adjetivos direcionados à mulher que justificavam a
sua condenação à inferioridade social e jurídica. Contudo, estudos recentes têm permitido
uma releitura do papel social da mulher no âmbito social e familiar, destacando as situações
de conflitos trazidas por algumas que encontravam meios de burlar as regras estabelecidas
pelas instituições de controle social. Este Simpósio Temático, sendo um espaço de
formulações e debates acadêmicos que articulam as novas pesquisas relativas à normatização
social, tem o objetivo de analisar como as Leis canônicas eram executadas pelos párocos
brasileiros em uma sociedade que se distanciava do padrão social idealizado pela Igreja
Católica. A proposta inclui a abordagem de temas que apontam os meios usados pela Igreja
Católica para criar uma sexualidade institucionalizada, dentro do casamento e voltada á
342
reprodução, e as maneiras encontradas pela sociedade, especialmente as mulheres, para se
movimentar, fazendo uso de seus corpos e (re) significando a cultura católica em prol de
interesses pessoais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CAMPOS, A. L. A. Casamento e Família em São Paulo Colonial: Caminhos e
Descaminhos. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre praticas e representações. Tradução de Maria
Manuela Galhardo. 2ª edição. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder; organização e tradução de Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 5º Ed. 1985.
SILVA, Gian Carlos de Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e
mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Recife: Universitária da UFPE, 2010.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Feitas
e Ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide,
Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Majestade, Propostas e Aceitas em
Sínodo Diocesano, que o dito Senhor Celebrou em 12 de Junho do ano de1707. São Paulo:
Tipografia de Antônio Louzada Antunes, 1853.
SIMPÓSIO:
MUSEU, MEMÓRIA E EDUCAÇÃO
AUTOR 1: Vivianne Ribeiro Valença
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal de Pernambuco
AUTOR 2: Arlindo Francisco da Silva Filho
INSTITUÇÃO DE VÍNCULO: Universidade Federal de Pernambuco
343
RESUMO:
O Simpósio Temático Museu, Memória e Educação se propõe a reunir comunicações
que apresentem sínteses de estudos concluídos e/ou reflexões acerca de ações concretas que
abordem alguma das múltiplas relações existentes entre os conceitos de memória coletiva,
museus e práticas da educação no âmbito das questões patrimoniais. Nosso debate está aberto
para trabalhos que investiguem as dimensões culturais, simbólicas e políticas inerentes a
memória e ao patrimônio; que reflitam sobre o papel dos bens patrimoniais nas práticas
sociais de memória; que abordem sua atuação como elementos formadores das identidades
sociais; e como discursos sobre o passado ancorados no presente. Trata-se de pensar museu
como um fenômeno cultural em sua pluralidade, capaz de dialogar com a sociedade a partir da
construção e desconstrução de memórias e discursos. Pretendemos ainda debater sobre as
práticas educacionais que tratam da memória social, abordando, desde ações educativas, como
educação patrimonial e a arte-educação, até os desafios de implementação das leis 10.639 e
11.645 no currículo escolar da educação básica. Objetivamos congregar diversos olhares em
torno dessas temáticas, a partir das pesquisas desenvolvidas e teoricamente fundamentadas na
bibliografia sobre o tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMEIDA, Adriana M. Desafios da relação Museu Escola educação em museus, além de
complementar o currículo formal, e exercício de afetividade e preservação da memória e do
patrimônio cultural. Comunicação& Educação, São Paulo, n.10, p.50-56, set./dez, 1997.
ALVES, Ana Claudia. O patrimônio cultural brasileiro: novos instrumentos de
preservação. Brasília: MinC: IPHAN:DID, 2002. Memorando 151.
FONSECA, Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ;IPHAN, 1997.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os museus e a representação no Brasil. IN:
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: Coleções, Museus,
Patrimônios. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p.81-106.
HORTA, Maria de Lourdes P.; GRUNBERG, Evelina: MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia
Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial, 1999.
JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. IN: CADERNO de diretrizes
museológicas I. Brasília: Ministério da Cultura; IPHAN; Departamento de Museus e Centros
Culturais; Belo Horizonte: secretaria de estado da Cultura, Superintendência de Museus,
2006, p.19-32.
344
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de janeiro: Paz e terra, 1984.
POLLACK, Michel. Memória e identidade social. IN: Revista Estudos Históricos (volume
5, numero 10). Rio de Janeiro: CPDOC; FGV, 1992, p. 200-212.
345
MESAS REDONDAS
CONFERÊNCIA DE ABERTURA – DIA 21/05/12
TEMA: O PODER DA ARTE: SOBRE AS FRONTEIRAS DO PENSAMENTO
PROF. DR. SANDRO COZZA SAYÃO – DEP. FILOSOFIA/UFPE
MESA - DIA 23/05/12
TEMA: ENTRE A CRUZ E O TAMBOR: RELIGIÃO E CULTURA EM PERNAMBUCO
PROF. DR. SÉRGIO SEZINO DOUETS VASCONCELOS – UNICAP
PROF. DR. PAULO DONIZÉTI – UFRPE
PROF. DR. WELLINGTON BARBOSA – UFRPE
MESA III - DIA 24/05/12
TEMA: ARTE RUPESTRE, HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: DISCUSSÕES
SOBRE A ATUALIDADE.
PROF. DR. CARLOS XAVIER DE AZEVEDO NETTO –
UFPB
PROFa. DRa. ANA LÚCIA NASCIMENTO OLIVEIRA – UFRPE
PROFa. DRa. SUELY CRISTINA ALBUQUERQUE DE LUNA – UFRPE
CONFERÊNCIA DE ENCERRAMENTO - DIA 25/05/12
TEMA: ATELIER, MUSEUS E GALERIAS: TEMPLOS DA HISTÓRIA E DA ARTE.
PROF. DR. FERNANDO LÚCIO DE LIMA BARBOSA – CAC/UFPE
www.2coloquiodehistoriaearte.blogspot.com.br
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