almanaque de cultura e saúde - febec edição 12

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Se a língua é mesmo a nossa pátria – como cantou Caetano Veloso, ressoando as palavras de Fernando Pessoa –, a nossa tem dimensões continentais. Nela cabe de tudo. Incontáveis palavras, sotaques, gírias e expressões vindas dos quatro cantos povoam estas terras. No Dia Internacional do Idioma Mãe, celebremos a nossa língua mestiça. E mais • Papo-Cabeça com Regina Casé. • Nós garantimos: o Brasil ganhou do Uruguai em 1950. • O folclórico Vicente Matheus. • Além de histórias surpreendentes de luta pela vida. Candido Portinari A arte engajada do artista paulista que mexeu com a cultura nacional.

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Almanaque de Cultura e Saúde - FEBEC Edição 12

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Se a língua é mesm

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No Dia Internacional do Idioma Mãe,

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• Papo-Cabeça com Regina C

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Candido Portinari

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A língua, como se sabe, é um ser vivo.

Sumário

Diretor editorial Elifas AndreatoDiretor executivo Bento Huzak Andreato

Editor João Rocha RodriguesEditor de arte Dennis Vecchione

Editora de imagens Laura Huzak AndreatoEditor contribuinte Mylton Severiano

Redatores Bruno Hoffmann e Natália PesciottaAssistentes de arte Guilherme Resende e Soledad Cifuentes

Gerente administrativa Fabiana Rocha OliveiraAssistente administrativa Eliana Freitas

Assessoria jurídica Cesnik, Quintino e Salinas AdvogadosJornalista responsável João Rocha Rodrigues (MTb 45265/SP)

Correspondências Rua Dr. Franco da Rocha, 137 - 11º andar Perdizes. São Paulo-SP CEP 05015-040 Fone: (11) 3873-9115 [email protected]

O Almanaque de Cultura e Saúde é uma publicação mensal da Andreato Comunicação e Cultura em parceria com a FEBEC – Federação Brasileira

de Entidades de Combate ao Câncer. A revista é distribuída por assinatura, pelos estabelecimentos filiados à Associação Paulista de Supermercados

(APAS) e pelos voluntários das Ligas de Combate ao Câncer.

5 carta enigmática

6 você sabia?

12 gente aJUDanDo gente Célia Lincoln

13 PaPo-cabeça Regina Casé

16 ilUstres brasileiros Candido Portinari

18 esPecial Nossa Língua Mestiça

22 Jogos e brincaDeiras

23 o teco-teco

24 viva o brasil Petrolina

28 temPeros e sabores Peixe Azul-Marinho

29 almacrônica por Lourenço Diaféria

30 em se PlantanDo tUDo Dá Rosa

32 rir é o melhor reméDio

33 caUsos De rolanDo bolDrin

34 mUito obrigaDo Pedro Palhares

Presidente Antonio Luis Cesarino de Moraes Navarro

Victor Hugo

Rua Silva Airosa, 40. Vila LeopoldinaSão Paulo-SP cep 05307-040

Fone: (11) 2166-4131

Departamento Comercial Jaques C. CeruttiRua Lourenço Prado, 218, conj. 151

Jaú-SP CEP 17201-000 Fone: (11) 3017-0417 • (14) 8129-8892

[email protected]

SAC (11) 3017-0417

ASSINE (11) 3017-0417www.febec.org.br

Apoio

Saúde e cultura em forma de almanaque

udo aquilo que o malandro pronuncia / Com voz macia é brasileiro / Já passou de português... No clássico Não Tem Tradução, Noel Rosa sintetiza o espírito da língua falada no Brasil. Um idioma que, depois de sofrer

influências de todos os cantos, já deixou de ser apenas português faz tempo. Tornou-se uma língua mestiça e brasileiríssima. O Especial do mês mostra os povos, influências e caminhos que nos levaram a falar como falamos. Desde a influência indígena até o internetês.

O AlmAnAque de CulturA e SAúde também seguiu para o Rio de Janeiro para um Papo-Cabeça especial com a atriz Regina Casé, que há anos percorre o Brasil para conhecer favelas, periferias e subúrbios com a intenção de mostrar na maior emissora do País o que suas novelas não costumam apresentar. Regina Casé não desvela a periferia com um ar superior, piedoso. Mas busca o que ela tem de melhor: a energia de sua cultura e seu povo, além de grandes histórias.

As primeiras páginas do AlmAnAque, como de costume, trazem pequenas e espertas histórias sobre o Brasil. E não há espaço para preconceito. Há desde casos do folclórico Vicente Matheus à vitória do Brasil sobre o Uruguai em 1950 (é, o Brasil ganhou do Uruguai naquele ano, não sabia?). Do dia em que Gilberto Gil se inspirou para criar uma de suas melhores canções à apresentação dos porto-riquenhos Menudos em São Paulo. Do carnaval pela internet ao artista que ajuda a curar. Uma seção plural como a nossa nação.

Há ainda muito mais: Candido Portinari, o menino do interior de São Paulo que tornou-se um dos maiores artistas do mundo; a cidade pernambucana que produz vinhos; e como se prepara um delicioso peixe azul-marinho, iguaria tradicionalíssima do litoral paulista.

Casos emocionantes de luta pela vida também têm lugar cativo por aqui. Como a impressionante história de Célia, de Capão Bonito, interior de São Paulo, que, anos atrás, constatou estar com 18 tumores no corpo. Não havia muito o que fazer senão esperar pelo pior. Mas Célia curou-se, surpreendendo até os médicos. Desde então, é uma ativista para ajudar pessoas que passam por situações parecidas.

Você também pode dar a sua parcela de contribuição para combater o câncer. Todo o dinheiro arrecadado com a venda do AlmAnAque de CulturA e SAúde é revertido para ações de prevenção e apoio biopsicossocial aos pacientes. Para assinar, acesse www.febec.org.br. Ou ligue: (11) 2166-4100. Ajude o próximo e, de quebra, receba todos os meses saúde e cultura em forma de almanaque.

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O Almanaque de Cultura e Saúde está sob licença Creative Commons. A cópia e reprodução de seu conteúdo são autorizadas para uso não comercial,

desde que dado o devido crédito à publicação e aos autores. Não estão incluídas nessa licença obras de terceiros. Para reprodução com fins

comerciais, entre em contato com a Andreato Comunicação e Cultura.

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João Gilberto, ícone da bossa nova, é famoso pelo seu particular perfeccionismo. Ao

gravar, é capaz de repetir canções horas a fio para eliminar imperfeições que só ele

nota. Mas os ouvidos do cantor não se atêm somente à música. O pingue-pongue,

passatempo no qual exibe seus dotes na foto ao lado, é também um dos alvos dessa

obsessão. Consta que prefere jogar com parceiros “café-com-leite”. Menos pela su-

perioridade técnica, e mais porque nos jogos cadenciados o som da bola indo de um

lado a outro lhe soa mais agradável. arq

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Solução na p. 22

pós décadas de sucesso nacional, nos anos 1960 o persona-gem desta carta enigmática resolveu se afastar da música.

“Esta é a minha última apresentação”, e fãs às lágrimas exigiam que mudasse de ideia. E mudava. De tanto a situação se repetir, ganhou a alcunha de “cantor das despedidas”.

não era o único apelido que lhe acompanharia na carreira. nos anos 1930, começou a emplacar nas rádios suas serestas. Fi-cou conhecido como “o seresteiro do Brasil”. a voz forte, porém claríssima e despojada, também seguia por outros ritmos. Em samba poucos chegaram a seu nível.

Escolhia compositores a dedo: ary Barroso, noel Rosa, Bragui-nha, Wilson Batista. Com orestes Barbosa, o mais constante parcei-ro, compôs Chão de Estrelas. ainda que com letra difícil, a canção

caiu no gosto do público: Tu pisavas nos astros distraída / Sem saber que a ventura desta vida / É a cabrocha, o luar e o violão. Manuel Bandeira considerava este o verso mais belo da língua portuguesa.

Durante anos, a dúvida pairou. afinal, quem era melhor: ele, Chico alves, orlando Silva ou Carlos Galhardo? até hoje, com a distância devida, é difícil responder. o fato é que, entre os quatro, foi o que teve carreira mais longa. Foram 65 anos como profissio-nal, marca nunca alcançada por cantor algum do país.

Em 1965, mudou-se para um sítio em atibaia, interior paulista. De lá só saía quando sentia saudade do microfone – e não fo-ram poucas vezes. a última apresentação ocorreu em São paulo, em 1997. Morreu no ano seguinte, em 3 de fevereiro de 1998. Tinha 90 anos.

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Eduardo Valarelli em uma das oficinas realizadas em hospitais.

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9/2/1907PRIMEIRO REGISTRO DA

PALAVRA “FREVO”, EM UM JORNAL PERNAMBUCANO. A DATA FOI ESCOLHIDA

PARA CELEBRAR O NASCIMENTO DO GêNERO.

18/2/2009EMBALADO PELO FREVO, O

GALO DA MADRUGADA, MAIOR BLOCO DE RUA

DO MUNDO, TORNA-SE PATRIMÔNIO IMATERIAL DE

PERNAMBUCO.

SAIBA MAIS O Arquiteto e o Zelador: patrimônio cultural, artigo de Letícia Bauer, disponível em http://nuevomundo.revues.org.

e formas distintas, dois nomes se destacam

na trajetória do Museu das Missões de São Miguel Arcanjo, que preserva parte da História da antiga redução (povoado habitado por índios e missionários), edificada no século 18, no noroeste do Rio Grande do Sul. Se a glória pelo projeto do museu coube ao arquiteto Lucio Costa, seu primeiro zelador também teve sua importância.

Nascido na cidade de Santo Cristo em 1905, João Hugo Machado mudou-se para São Miguel em 1938. Mesmo admitido como zelador apenas em 1945, iniciou um trabalho detetivesco: com a ajuda do delegado da cidade, decide sair em busca de pistas que pudessem levar ao paradeiro de artefatos desaparecidos, construídos por jesuítas e índios. Assim que começa a busca, os moradores da região passam a se preocupar. Hugo não solicitava a devolução do material que encontrava nas casas; simplesmente o tomava em nome do museu.

Não eram raros os casos em que se disfarçava de pagador de promessas para poder entrar nas residências e dar andamento à sua investigação. Certa feita, enquanto retirava peças de duas senhoras em Bossoroca, elas rogaram-lhe como praga que seu veículo se incendiasse. Hugo relembra: “E não é que pega fogo mesmo no cano de gasolina? ” E completa: “Só não me chamaram de santo, mas de resto, tudo, porque eu não era santo”.

As inusitadas ações do zelador renderam mais de 100 imagens sacras que decoram o museu.

D

udo começou com um problema de saúde. Em 1991, o artista plástico Eduardo Valarelli permaneceu em uma enfermaria durante 25 dias. Era ele o paciente, mas,

com doses extras de sensibilidade, diagnosticou o que nenhum médico tinha notado: doente estava também o hospital. Faltava mais do que remédio. Faltava ali atendimento humanizado e atenção integral ao paciente.

Como de médico e louco todo mundo tem um pouco, Valarelli decidiu fazer a parte dele na busca da cura. Passou a levar arte para onde só havia dor. Nasceu em 1996 a ONG Carmin, que atua em hospitais de São Paulo, Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte.

Como a criação de uma obra-prima, o projeto demandou dedicação. O resultado apareceu colorido: 30 mil alunos atendidos nos hospitais com aulas de arte, 500 jovens e adultos em cursos de formação, além de um acervo de 3.500 trabalhos para provar que a arte está ao alcance do todos. Para Valarelli, quando um paciente em tratamento participa

da ação da Carmim, ele deixa de ser apenas doente. Torna-se artista, descobre potenciais. Como o portador do vírus HIV que aprendeu a pintar para decorar o quarto do filho, ainda em gestação. O bebê nasceu um dia depois da morte do pai. As pinturas dele inspiram o menino e outros pacientes atendidos no projeto.

Pelo trabalho pincelado com capricho, Valarelli recebe o que dinheiro nenhum paga: gratidão, esperança, sorrisos. E sabe que arte não cura, mas pode promover o desenvolvimento e ser um santo remédio para a alma.

SAIBA MAIS Site do Carmin: www.projetocarmim.org.br

T

Essa gauchinha nasceu em 10 de fevereiro de 1983. Começou a treinar tarde para sua modalidade: aos 11 anos. No entanto, a ascensão foi rápida. Aos 20, conquistou a medalha de ouro no Campeonato

Mundial dos Estados Unidos – feito inédito para atletas brasileiros. A essa vitória, somaram-se outras, sempre acompanhadas por clássicos da música brasileira e por um movimento que leva seu sobrenome.

Confira a resposta na página 22

de quem são estes olhos?

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Hugo levou a sério a profissão: zelou pela História

Arte não cura, mas pode ser um santo remédio

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a segunda metade do século 19, iniciativa de pesquisadores brasileiros surpreende

as cabeças mais conservadoras do Império. Era a Comissão do Ceará, organizada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para explorar cientificamente as províncias do Norte e Nordeste. Inicialmente incompreendida, foi apelidada de “Comissão das Borboletas”. Reuniu, pela primeira vez, naturalistas e engenheiros brasileiros para coletar amostras de flora e fauna do País.

Muito da empreitada se deve ao intercâmbio de informações com a Sociedade Imperial Zoológica de Aclimatação, em Paris, referencial de atuação. O contato científico gerou ainda outras inusitadas sugestões. Pedro 2º se interessou pelas experiências de aclimatação de animais empreendidas pelo zoólogo francês Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, fundador da Sociedade, que já estudara a adaptação de lhamas nos Pireneus e de bois do Tibete na Europa. Decidiu apostar na experiência e trazer camelos ao Brasil. No Nordeste brasileiro o animal resistente à escassez de água e comida poderia ser boa aposta para tração e carga.

SAIBA MAIS Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube... lá no Ceará, artigo de Maria Margaret Lopes: www.scielo.br/pdf/hcsm/v3n1/v3n1a04.pdf.

Comissão das Borboletasleva camelos para o CearáN

E assim foi feito. Em julho de 1859, desembarcaram no Ceará 14 camelos vindos da Argélia. Deveriam acompanhar a Comissão até o Ceará e, depois, ficar por lá. Porém, o pequeno rebanho padeceu com a falta de criadores especializados. A longa gestação das fêmeas, que dura cerca de um ano, contrariou os planos do imperador. Era o fim do empreendimento.

Aos animais que conseguiram se aclimatar, foi reservado o papel de atração turística.

Em 16 de fevereiro de 1867, seis anos depois do retorno da Comissão ao Rio de Janeiro, o Diário de Pernambuco trazia o anúncio da exposição: “No botequim do Buessard, camelos aclimatados no Ceará. A entrada para vê-los: 500 réis.”

Vicente Matheus teve oito gestações à frente do Timãohistória do Corinthians passa obrigatoriamente por ele. Nunca um

presidente ficou tantas vezes à frente do clube quanto Vicente Matheus. Entre 1959 e 1989, exerceu oito mandatos. Não era unanimidade. Entre os jogadores, havia os

A

invendÁvel e impresTÁvel

peixes Extravagância não combina com

os nascidos em Peixes, mesmo assim eles têm facilidade em chamar atenção.

Geralmente tímidos e com um quê de mistério, possuem charme natural. São sonhadores e gostam de imaginar o mundo ideal. Fazem-se, assim, distraídos, afetivos e solidários. Não se aborreça com a indecisão de um pisciano. E confie na sua aguçada intuição.

20-2 a 20-3

SAIBA MAIS Vicente Matheus: Quem sai na chuva é pra se queimar, de Luiz Carlos Ramos (Editora do Brasil, 2001).

que se referiam a ele com adjetivos que iam de pão-duro a autoritário – para ficar nos publicáveis. Mas foi durante uma de suas gestões que o Timão quebrou o jejum de 22 anos sem grandes títulos, em 1977, ao vencer o Campeonato Paulista. E lá estava ele no primeiro título nacional, em 1990. Diz a lenda que, quando estava fora da presidência, chegava a financiar derrotas do clube.

Espanhol de nascimento, veio para o Brasil em 1914. E aqui morreu, em 8 de fevereiro de 1997. Figura folclórica, ganhou fama pelas frases impagáveis. Algumas: “O Sócrates é invendável e imprestável.” “O difícil não é fácil.” “Jogador tem que ser completo como o pato, que é um bicho aquático e gramático.” “Jogar pelo empate é uma faca de dois legumes.” “Quem sai na chuva é para se queimar.” “Tive uma infantilidade muito difícil.” “Minha gestação foi a melhor que o Corinthians já teve.” Há quem acredite que eram conseqüência da baixa escolaridade. Aos mais próximos,

garantia que era pura brincadeira.Há um tempo a ONG Cooperfiel

(Associação dos Torcedores Corintianos) lançou projeto de arrecadação de fundos para construir um estádio para o clube. O nome já havia sido definido: Vicente Matheus, “em homenagem ao maior corintiano de todos os tempos”.

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www.almanaquebrasil.com.br

Rei sai vaiado, mas restos mortais voltam aplaudidos

situação de Gilberto Gil com o governo militar não andava bem.

Pouco depois de ele e o parceiro Caetano Veloso terem sido soltos da prisão política, o tropicalista ia do Rio a Salvador, preparando-se para o exílio em Londres.

Foi no trajeto que nasceu a canção Aquele Abraço, em pleno voo, para “dizer bye bye e sumarizar tudo que estava vivendo antes de partir”. Gil lembrou-se da saudação com que os soldados o cumprimentavam na cadeia, retirada de um programa de tevê da época: Alô, moça da favela – aquele abraço! / Todo mundo da Portela – aquele abraço! / Todo mês de fevereiro – aquele passo!

Remontava assim o dia 19 de fevereiro de 1969, quando os baianos deixaram o cárcere: “Revimos a avenida Getúlio Vargas ainda com a decoração de carnaval. Na minha cabeça, Aquele Abraço se passa numa quarta-feira de cinzas”. Gil explica que a melodia é simples porque foi feita no avião: “Ia mentalizando e anotando a letra num guardanapo”. Até hoje é sua música mais tocada.

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Quarta de cinzas inspirou canção

mais tocada de Gil

SAIBA MAIS Gilberto Gil: Todas as letras (Companhia das Letras, 1996).

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O Brasil que ganhoudo Uruguai em 1950

m 1950, a seleção brasileira viveu sua maior tragédia ao perder a final da Copa do Mundo para o Uruguai, em pleno Maracanã, por 2 a 1. Mas saiba que um outro Brasil comemorou uma vitória

sobre os mesmos uruguaios, também por 2 a 1, três meses antes. O feito é do Brasil de Pelotas, o pequeno e valente time do interior gaúcho. E aconteceu na casa dos hermanos.

Pouco antes da Copa, a seleção uruguaia promoveu uma série de amistosos preparatórios para a competição. Valendo-se da proximidade, convidou o Brasil que veste rubro-negro para uma partida no estádio Centenário, em Montevidéu. O jogo mexeu com os ânimos dos fiéis xavantes – como são chamados os torcedores do clube.

A Celeste Olímpica entrou em campo com o time principal, inclusive com o atacante Gigghia, algoz da seleção brasileira no Maracanã. Mas naquele dia as coisas não andaram bem para os uruguaios. Com gols de Mortosa e Darci, o time de Pelotas saiu com a vitória, considerada um dos primeiros grandes feitos da história do futebol gaúcho.

“Foi uma euforia extraordinária. Um time considerado médio ganhando dos poderosos uruguaios na casa deles...”, lembra Nilvio Benitez Severo, que acompanhou a partida pelo rádio e hoje prepara um livro sobre a história do clube.

Meses depois, diante do desastre no Maracanã que deu o título mundial para o Uruguai, teve xavante que não ficou triste. Pelo contrário. Com orgulho gauchesco, alguns celebraram: “O nosso Brasil ganhou dos uruguaios!”. O feito é comemorado até hoje, 61 anos após a façanha, pelos torcedores do Brasil de Pelotas. Um time de poucos títulos (ganhou apenas um Campeonato Gaúcho, o primeiro, em 1919), mas que mantém uma das mais fanáticas torcidas do Sul do País.

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Atemoia, fruta-do-conde, graviola, banana, maçã, manga palmer, limão-taiti.

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asceu a 17 de fevereiro de 1941 em Juiz de Fora, Minas

Gerais, mas tornou-se carioca “por opção”. Começou a carreira no

Jornal do Brasil. Os colegas diziam que era possível reconhecer seu

estilo até em bilhetes. Jornalista e escritor de sucesso, enveredou

pela política. Notabilizou-se pela defesa da ética, das minorias, das

liberdades individuais e do meio ambiente. Na foto, protesta contra

a poluição no rio Tietê.

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R.:

Confira a resposta na página 22

Page 9: Almanaque de Cultura e Saúde - FEBEC Edição 12

Escolas de samba virtuais fazem carnaval o ano todo

o maior espeTÁculo da Tela

omissão de frente, samba-enredo, alegorias, intérpretes. Parece um desfile de escola de samba, certo? Quase. Um detalhe

diferencia este carnaval dos demais: tudo ocorre pela internet. Desde 2003 a Liga Independente das Escolas de Samba Virtuais, Liesv, leva a emoção da avenida para a tela do computador.

O negócio é sério. Tudo começou com amigos que se incomodavam em assistir aos desfiles apenas uma vez por ano. Até que alguém deu a sugestão de criar escolas de samba virtuais. A ideia que parecia de maluco cresceu rapidamente. Hoje são 14 escolas no Grupo Especial e oito no Grupo de Acesso.

Os desfiles acontecem entre julho e agosto. Para assistir ao vivo, basta acessar o site no dia marcado. Numa tela, as alas virtuais começam a surgir – feitas em desenhos, maquetes ou fotos. Logo o intérprete, num áudio gravado, começa a puxar o samba. Há até locução, como se fosse um desfile real pela tevê. Os compactos ficam disponíveis o ano todo.

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SAIBA MAIS Site da Liga Independente das Escolas de Samba Virtuais: www.liesv.com.br.

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A apuração é feita por convidados ligados ao carnaval. Em 2009, numa “apuração histórica”, quatro escolas conquistaram o primeiro lugar: Imperatriz Paulista, Princesa da Zona Norte, Rainha Negra e União do Samba Brasileiro.

Não se paga para participar e nem há prêmios aos campeões. “É tudo por amor ao carnaval”, explica Luís Butti, integrante da Imperatriz Paulista, a maior vencedora do Grupo Especial, com três títulos. Mas alguns investimentos são necessários para vencer. A Imperatriz, por exemplo, contratou um intérprete de uma escola de samba real do Rio de Janeiro. Como nos desfiles de verdade, participar é bom, mas ganhar é sempre melhor.

scondida pelas montanhas da Serra da Canastra, no centro-oeste de Minas Gerais, vive a moradora mais antiga de

São Roque de Minas, a 320 quilômetros de Belo Horizonte. Dona Manoela Cruvinel, que não foi registrada ao nascer, estima ter 97 anos. Na beira do fogão, ainda prepara um café para qualquer visitante disposto a ouvir a história de amor que cruzou rios e terras e desafiou uma cidade inteira.

Manoela cresceu na fazenda, entre a lida na roça, os cuidados com os irmãos e os sonhos. Para ajudar a família pobre, foi prometida pelo pai a um jovem fazendeiro rico conhecido

E

como Juca Gordo. Na década de 1930, a igreja de São Roque de Minas não tinha um padre fixo para dar expediente na paróquia. Era preciso aguardar o dia em que o vigário de Piumhi, município vizinho, aparecesse para celebrar o casamento.

Para adiantar o enlace, Manoela e Juca Gordo casaram-se no cartório. Porém, o que valia para a família tradicional da moça era o aval do sacerdote, e isso tinha que esperar. Até lá, a esposa de Juca Gordo perante a lei continuou debaixo do mesmo teto que o pai. Era o jeito de resguardar a boa fama de donzela.

Entre o casamento civil e o religioso, Manoela permaneceu na fazenda, sob os olhos atentos dos irmãos. Um dia, após ordenhar as vacas, conheceu outro Juca. Aquela conversa mole na cerca foi capaz de mudar o rumo da história. Manoela se apaixonou por um Juca que não era o seu.

Ela ainda se lembra com clareza: uma noite, escutou o trotar de um cavalo se aproximando da casa. O segundo Juca atravessou a serra para buscar a moça e casar-se com ela. Manoela aceitou a proposta. Sem o

consentimento do pai, cavalgaram durante horas até Bambuí, outro povoado, onde procuraram um padre. O casório aconteceu sem nenhum convidado.

Quando voltaram a São Roque de Minas, a história correu. Toda a região sabia da moça que fugiu para se casar, mesmo já sendo casada. Como punição, perdeu o apoio da família, mas honrou o casamento de fé. Permaneceu ao lado do segundo Juca até que a morte os separasse.

Juca Gordo não perdoou a traição, mas nunca pediu o divórcio. Mesmo com rancor, frequentou a casa do xará e da esposa na lei por muitos anos. Quando ficou doente, foi de Manoela que recebeu os cuidados.

Hoje, dona Manoela é viúva duas vezes e vive só. Depois do casamento na igreja, nunca mais saiu da cidade. Não foi alfabetizada, mas criou uma filosofia particular. Com simplicidade, revela: “Na vida só é preciso ter duas coisas: remorso e consciência. Remorso para se arrepender das escolhas erradas. Consciência para fazer escolhas certas e lembrar que o que vale a pena é o amor”.

SAIBA MAIS Serra da Canastra, de Rogério de Paula e Laís Duarte, com fotos de Adriano Gambarini (AORI, 2006).

Mineira passou a vida casada com dois Jucas

Quarta de cinzas inspirou canção

mais tocada de Gil

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10

Fases da Lua1 . 2 . 3 . 4 . 5 . 6 . 7 . 8 . 9 . 10 . 11 . 12 . 13 . 14 . 15 . 16 . 17 . 18 . 19 . 20 . 21 . 22 . 23 . 24 . 25 . 26 . 27 . 28 . 29 . 30 . 31

m fenômeno estranho dos anos 1980 – entre tantos outros – foi a ascensão meteórica do grupo Menudos. Cria de um produtor

musical, a banda era formada por cinco adolescentes porto-riquenhos que cantavam em português e faziam coreografias nada elaboradas ao som de versos como Sai do sério, fala alto / Dá um grito forte / Quando queira gritar. Foi a primeira boy band a estourar no País, inspirando seguidores como Dominó, Polegar e a argentina Tremendo.

A banda também cantava em espanhol e inglês. O motivo de soltar a voz no idioma de Machado de Assis era para abocanhar o enorme mercado brasileiro. Deu certo. A cidade de São Paulo parou em 26 de fevereiro de 1985 para receber os rapazes no aeroporto. Fãs histéricas, pais desesperados. Houve quem passasse mal com tanto empurra-empurra.

O show, realizado no estádio do Morumbi sob uma tempestade, contou com quase 200 mil pessoas. O público entrou em êxtase ao ouvir sucessos como Sobe em Minha Moto e Doces Beijos. Além, claro, da clássica Não se reprima / Não se reprima / Não se reprima...

stavas desprevenida / E por acaso eu também / E como o acaso é importante, querida / De nossas vidas a vida / Fez um brinquedo

também. Como na composição Nem Eu, o acaso cumpriu seu papel na vida do autor, Dorival Caymmi. Apresentou-lhe à Stella Tostes no auditório da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. O baiano foi assistir a um programa de calouros, e a jovem mineira subiu ao palco para cantar Último Desejo, de Noel Rosa. “Virei mármore na cadeira”, contou Dorival décadas depois, ainda apaixonado.

Encantado pela loira esbelta, não trocou palavra com ela. Mas só sossegou depois que a conheceu. Quando foram apresentados, a moça já havia sido batizada com o nome artístico Stella Maris – nada mais apropriado para ser enamorada do “amante do mar”. Casaram-se no dia do 26° aniversário dele. Stella tinha 18 anos.

Bem, não se pode dizer que depois disso Caymmi tenha, enfim, sossegado. A atriz Tônia Carreiro comentou: “O mulherio ficava louco com ele, Stella sofria, mas ele não largava aquela Stella de jeito nenhum.” A verdade é que o casal sempre se completou, dizem os amigos e filhos. Ele vivia no mundo da lua e do mar; ela tinha os pés no chão.

Depois de uma vida de 68 anos juntos, nem a morte foi capaz de separá-los. Em 2008 Stella estava internada no hospital. Já quase curada, entrou em coma. Ninguém disse nada a Dorival. O compositor de 94 anos desconfiou, porém, da piora da esposa e “entrou numa melancolia, desistiu de comer, desistiu de tudo”, contou na época a filha Nana. Acabou falecendo. Menos de duas semanas depois, foi a vez de Stella.

E

cheia minguantenova crescente

Cinco porto-riquenhospararam São Paulo

Nem a morte separou Caymmie Stella Maris

o baú do Barão“A vida é uma coisa que, quanto mais cresce,tanto mais fica curta”

Nossa homenagem a Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

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SAIBA MAIS Acesse os sites do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (www.mncr.or.br) e da ExpoCatadores 2009 (www.expocatadores.com.br).

Filha de camponeses, viveu na Itália do século 13. Foi amante de um nobre,

com quem teve um filho. Depois que o amado morreu, uniu-se a franciscanas e dedicou-se à caridade, convertendo

pecadores. Como nem todos acreditavam em seu arrependimento,

morreu mal-falada e reclusa.

Margarida de Cortona

1 terça Severo

2 quarta Théophane Vénard

3 quinta Brás

4 sexta João de Brito

5 sábado Ágata

6 domingo Dorotéia

7 segunda Ricardo

8 terça Jerônimo Emiliano

9 quarta Apolônia

10 quinta Escolástica

11 sexta Benedito de Aniane

12 sábado Julião

13 domingo Catarina de Ricci

14 segunda Valentim

15 terça Cláudio Columbière

16 quarta Onésimo

17 quinta Patrício

18 sexta Bernardete

19 sábado Conrado de Placência

20 domingo Sadoth

21 segunda Pedro Damião

22 terça Margarida de Cortona

23 quarta Policarpo

24 quinta Sérgio

25 sexta Cesário

26 sábado Porfírio de Gaza

27 domingo Honorina

28 segunda Romano

o ver uma carrocinha de materiais recicláveis no meio da cidade, talvez

você já tenha tido a sensação daquele ser um trabalho do século passado. É verdade, os catadores existem desde o século passado. Mas saiba que eles lutam para associar seu trabalho à vanguarda – não mais ao atraso.

O Movimento Nacional dos Catadores de Material Reciclado existe desde 2001. Conta com 40 mil cadastrados. É um começo para a formalização da categoria, já que estimativas apontam 800 mil catadores em todo o Brasil. A ideia é mostrar que esses trabalhadores prestam um serviço importante. Afinal, o País descarta todos os dias 160 mil toneladas de lixo.

Para evitar lixões próximos do rio e assim proteger as águas, até uma usina hidrelétrica entrou na história. Itaipu desenvolve um trabalho com os catadores e lhes entregou a patente de um revolucionário carrinho elétrico. Ele

A substitui a tração humana usando bateria. Já é usado em Foz do Iguaçu e deve ser financiado com facilidades às cooperativas do resto do País. A empresa também criou um programa em software livre capaz de acompanhar a frota dos carrinhos: indica trajetos, evita sobreposição de território e ajuda na organização do movimento. A Universidade Federal de São João Del Rey desenvolveu um sistema parecido, o Cata Fácil.

As novidades foram anunciadas na feira internacional de catadores que aconteceu em São Paulo em 2009 e reuniu gente do Brasil todo e da América Latina. A alemã Hedwig Knist participa de uma cooperativa e comentou, na ocasião: “No próximo evento é possível que haja catadores da Europa aqui para aprender como se recicla e como se organiza”.

Carrinhos elétricos desenvolvidos pela usina hidrelétrica de Itaipu para auxiliar o trabalho dos coletores de lixo.

Catadores ligam passadoe futuro com carroças elétricas

Origem da expressãoUMA MÃO NA RODA A expressão vem dos nossos tempos de Colônia e Império,

quando as pessoas se transportavam com veículos de tração animal, como carroças ou

carros de boi. Quando eles atolavam nas ruas de terra, o carroceiro forçava as rodas com

as mãos, facilitando o trabalho do animal. “Uma mão na roda” acabou virando sinônimo

de “ajuda propícia”, “auxílio oportuno”, como registram os dicionários.

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Célia venceu a doença e agora ajuda quem

a enfrenta

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Célia Lincoln

ma jornada de 24 horas: Célia Lincoln saía de casa à meia-noite

e, no escuro, o ônibus ia cortando cidades de Capão Bonito até Jaú em incessante pinga-pinga, em busca dos demais passa-geiros. Todos desembarcavam para a seção de quimioterapia no Hospital Amaral Car-valho e, no fim do dia, iam saltando no-vamente para casa nas paradas do ônibus organizado pelas prefeituras. Célia entra-va em casa novamente no mesmo breu da meia-noite, agora do dia seguinte.

Assim era a viagem para o principal hos-pital de tratamento de câncer no estado – e referência no País. Até que o companheiro de itinerário Wilson Renato descobriu que a logística dos 310 quilômetros rodados poderia ser diferente. Ele conheceu uma tal Liga de Voluntárias de Combate ao Câncer que, por solidariedade, prestava apoio estruturado às pessoas nessa si-tuação. Naquele ano de 2005, Wilson procurou a liga para que Ca-pão Bonito também tivesse um grupo voluntário integrado a ela.

Célia foi operada pela segunda vez em junho de 2005, aos 48 anos. Logo depois, já estava envolvida no Grupo de Combate ao Câncer de Capão Bonito. Professora por formação, as salas de aula tinham ficado distantes três anos antes, ocasião da primeira cirurgia e início do tratamento. Desde então, participava da pas-toral da saúde da paróquia. Mas apresentava um quadro clínico bastante complicado. O médico lhe disse, depois do resultado da última cirurgia, que ter a doença totalmente eliminada fora um “milagre divino”. A medicina não imaginava que alguém com 18 tumores no intestino, já com metástase – espécie de tumor que se “multiplica” – pudesse se recuperar.

“Eu pensei: ‘Estou devendo para Deus’”, brinca Célia, ao lembrar do começo do grupo que hoje ela dirige. Na época, o prin-cipal articulador, Wilson Renato, assumiu a presidência. Não teve, porém, a mesma sorte de Célia. Morreu pouco depois. A presidente seguinte, Sueli Domingues, re-sistiu até 2009. Mas deixaram a semente plantada. O grupo conseguiu uma casa de apoio para pacientes que vivem na zona rural e aperfeiçoou o transporte até Jaú. Também com o dinheiro arrecadado por doações na cidade, montou uma lista de

auxílios para os pacientes de todas as classes sociais: fornecimen-to de medicamentos, alimentação, apoio psicológico. Célia teve a ideia de estabelecer grupos de terapia. Há uma terapia comunitá-ria mensal, além de cursos de pintura, bordado – monitorado por uma das pacientes – e até oficina de costura. Hoje 150 famílias são atendidas.

Durante o dia, Célia só não é encontrada na sede do grupo se está visitando alguma família. O cotidiano dela é dedicado à do-ença que quase a levou. Em suas visitas, promove orações e conta a sua história. E, por mais contraditório que possa parecer, é as-sim que consegue esquecer o que passou e seguir adiante. Claro que há situações em que é difícil fazer algo. Célia lembra de um rapaz de 22 anos, com leucemia, que acabou ficando sem força para oferecer resistência à doença. Nesses casos, um sentimento de impotência incomoda, mas o jeito é encontrar formas de satis-fazer o paciente enquanto é tempo. E continuar buscando força e inspiração para os demais. A auto-estima e a esperança que Célia adquiriu com sua vivência são como metástases do bem.

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A favela é a metáfora de tudo o que se tenta jogar para baixo do tapete

Não há razão para gastar muita tinta e papel fazendo a apresentação. Ela dispensa. Como atriz, há tempos é cara mais do que conhecida – pelas novelas, programas de humor, minisséries

ou cinema. Mas ela não se contenta. Quer mais. Nos últimos tempos, tem deixado a carreira em quarentena para assumir outro tipo de atuação: “política, ideológica”, define. Seja nos

programas Um Pé de Quê, do Canal Futura, ou Esquenta, da Globo, deixa sempre a sua marca, provando que na tevê é possível, sim, arriscar, divertir, informar, fazer pensar. Já correu o País de norte a sul, por favelas, rincões, periferias, povoados. “Impressionante o número de pessoas

que beijei e abracei nesse último ano.” É uma demolidora de paradigmas, sempre disposta a lançar outro olhar sobre o que está debaixo do nariz e que ninguém vê, ou se recusa a ver: um Brasil com outros valores, outra cultura, outras histórias. “Vejo um País que não está

escancarado, não o brasilzinho que se lê no jornal.”

Regina casé

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Como você consegue dar conta de tantos trabalhos ao mesmo tempo? Acho que a palavra que me descreveria melhor é fominha. Há quatro anos, por exemplo, em um momento em que eu estava no máximo do envolvimento com meu trabalho “documental”, recebi o convite: “Você quer ir para o Acre fazer Amazônia?” Eu pensei: “Puxa, se eu não fizer, quando é que eu vou para o Acre?” Em suma: em dezembro gravei a minissérie, o Central da Periferia e o Minha Periferia, que é semanal. E ainda tinha um especial de Natal e outro de Ano Novo no Fantástico. Essa situação é uma arapuca que eu mesma criei, por isso digo que sou fominha. Tem gente que fica meio deprê, dizendo: “Não tem nada que me interesse.” Percebi que sou o contrário dos outros. Todo dia vou dormir arrasada, não porque nada me interessa, mas por não dar conta de fazer tudo o que quero.

Não é mais confortável ser só atriz? Muito mais. Eu morro de rir quan-do alguém fala: “Meu Deus, já vai começar a novela, minha vida vai virar um caos.” Eu só fiz duas novelas inteiras do primeiro ao último capítulo, fora as participações especiais. E, nas duas, a minha lembrança é como se eu estivesse de férias. É um trabalho que já vem pronto. Alguém me dá um texto, eu decoro, vou lá e faço. Não tenho responsabilidade nenhuma sobre as outras pessoas que estão ali, sobre o resultado final. No Minha Periferia, ficava envolvida até com a segu-rança da equipe. Além disso, tenho que ser engra-çada, animada, inteligente. Tenho que decorar tex-tos, pensar na pauta da outra semana, nos relacio-namentos com a equipe, com meu marido [Estêvão Chiavatta], que é o diretor e produtor. Fazer nove-la, para mim, é como ir pra Cambuquira – uma es-tação de águas, vida calma, ar refrigerado. Nos meus programas, sempre tem um calor incrível, mil chei-ros, trânsito, poluição, milhões de circunstâncias que não aparecem.

Você ocupou um espaço que não existia: horário nobre com criatividade, ousadia, outra visão sobre a socieda-de. Você imaginava que seria possível essa conquista? Acho que, quan-do se é jovem, temos muito mais preconceito com quem é mais velho do que o contrário. Pelo menos essa é a minha experiência. Todas as minhas amigas mentiam para os pais. Quando iam dormir com o na-morado, diziam que estavam na casa da amiga. Eu sempre falei tudo para a tia com quem eu morava. O Asdrúbal Trouxe o Trombone foi criado dentro da casa dela, que era uma velhinha. Para mim, o mes-mo vale para quem está no poder. Acho que, no caso da Globo, sen-ti em toda a minha trajetória muito mais preconceito por parte das produtoras independentes, dos artistas – seja no cinema ou no tea-tro –, do que o contrário. Acho que esse muro é construído pelos dois lados. No meu caso, tratei de conquistar confiança para arriscar em projetos mais kamikazes.

Havia gente que te olhava com desconfiança? Para a minha geração do teatro, fazer alguma coisa na Globo era execrável. O máximo que se podia fazer era ganhar um dinheiro para depois montar uma pe-ça bem cabeça. Quando eu era novinha, ao contrário de muita gente, queria ser “engolida pelo sistema”, “triturada pela engrenagem”. As-sim poderia fazer o que queria e achava legal, e para todo o País. Ado-

rava trabalhar no Asdrúbal. Quando parei, resolvi que teria que fazer na Globo uma coisa tão legal quanto aquela. A gente vive aqui que-rendo que a referência seja a literatura, como é na França, ou o cine-ma, como é nos Estados Unidos, mas não adianta. Aqui é outro papo, a referência é mesmo a televisão.

Qual a importância dos parceiros na sua produção? Imensa. O Asdrú-bal, por exemplo, foi minha escola, de como eu trabalho, de como funciono. A gente viajou o Brasil inteiro por uns dez anos. Igualzi-nho a agora. E também era um mundão de gente. Ali aprendi mui-to sobre a relação com os lugares, com as pessoas. Graças a Deus, ao longo da minha vida, fui acumulando parceiros. O autor da pri-meira peça que fiz foi o Hamilton Vaz Pereira. O autor de uma re-cente também. O Luiz Fernando Guimarães foi o primeiro cara com quem atuei, e agora, se eu fosse voltar a ser atriz e montar um es-petáculo, chamaria ele na hora. A amizade, a cumplicidade e a sin-

tonia estão intactas. Cada parceiro vem por um ata-lho. O Leonardo Neto, por exemplo, era empresário da Rita Lee. A gente tem uma trajetória linda. Os úl-timos trabalhos que fiz são impregnados da energia e da concepção dele. Sem ele, talvez não fizéssemos o Central da Periferia. O Guel Arraes e o Hermano Vianna nunca tinham feito um programa de auditó-rio. O Hermano, por sinal, é minha alma gêmea – se eu fosse presidente e ele me escrevesse um discur-so com mil comprometimentos, eu poderia subir no palanque sem ter lido antes. Todas essas pessoas são muito importantes para mim, apesar de, na tela, eu aparecer sozinha.

Qual é a diferença entre trabalhar com a equipe de uma produtora independente e com a da TV Globo? A Pindorama veio quando o Estêvão apareceu na minha vida. Vivemos a possibilidade de produzir separado, ter autonomia. Foi a carta de alforria. A gente ia para a favela com três pessoas. Antigamen-te eu tentava fazer isso tudo com a equipe da Globo,

o carro da Globo, com 500 contra-regras... Você imagina o que é dar um pulinho lá em cima, no São Carlos, com 30 carros da Globo? Há uma porção de entraves.

Qual a sua referência para a criação desses programas? Teve influência, por exemplo, das produções da Olhar Eletrônico nos anos 1980? Não, acho que não. Talvez não tenha nenhuma referência. Já trabalhei com o Tadeu Jungle, o Cao Hamburguer, o Marcelo Tas, o Fernando Meirelles, todo esse pessoal de São Paulo que veio da Olhar Eletrô-nico. Brinco que eles são mais chiques. Eles têm uma coisa “menos tevê e mais cinema”. Mas é claro que temos muitas afinidades e cor-respondências. Ao mesmo tempo, tiro sarro. Mesmo quando eles fa-zem televisão, fazem em película. Eu digo que a película é a camisi-nha que o pessoal do cinema põe pra fazer televisão, pra não sujar, não pegar nenhuma doença. O Fernando me chamou para dirigir e escrever quatro episódios de Cidade dos Homens. Foi ótimo traba-lhar com ele, ele é genial.

No Central da Periferia você mostrava manifestações culturais para as quais se costuma torcer o nariz. Vocês fizeram um investimento gran-

A gente vive querendo que a referência seja

a literatura, o cinema. Aqui é outro papo, a referência

é mesmo a televisão.

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de para desconstruir esses paradigmas. Foi difícil? Não é fácil. Às vezes você aposta todas as cartas num cara que muita gente acha que não tem valor, que não é nada. E eu fico: “Pô, será que eu estou maluca? Estou achando isso legal pra caramba!” Por exemplo, a banda Calyp-so é julgada como cafona, brega. E aí eu vou lá e digo: “Não, olha só o que tem aqui. Olha quem são os professores do Chimbinha: todos mestres da guitarrada, todo mundo do carimbó. Olha que legal, co-mo tem coisa atrás disso.” Dizem: “O axé é uma droga.” E eu: “Pres-ta atenção como nisso estão presentes o samba duro da Bahia, o sam-ba do Recôncavo.” Até aí tudo bem, é até fácil. Eu e o Hermano já estamos escolados de brigar por esse tipo de coisa. Difícil mesmo é quando se trata de algo que não tem nenhuma existência, que nin-guém está julgando, nem por mal. Simplesmente está sendo anulado. Aquilo não existe.

Como você definiria os propósitos dos pro-gramas que tem feito? Não tenho vergo-nha de dizer, e acho que o Guel também não, nem o Hermano, que a gente faz um trabalho político, ideológico. Não tem jei-to. Já no Programa Legal havia uma ide-ologia clara: Olha, tem muita gente se di-vertindo de um jeito que você acha que é horrível, ou de que você tem medo, ou que você desvaloriza. As coisas não pre-cisam ser só do seu jeito para serem le-gais. Nos programas, batemos bastante na questão da vida nas favelas. É preci-so dizer que pobreza não significa crimi-nalidade. Eu sempre dou uma estatística básica. Na Rocinha moram 400 mil pes-soas. Quantos bandidos você acha que tem lá? Pode contar qualquer soldadi-nho, qualquer um que esteja com arma. Duvido que chegue a mil. Pra dar 1%, vo-cê precisaria de 4 mil bandidos. E você julga as outras 399 mil pessoas por aque-la minoria. Todo mundo passa com o vidro fechado e apavorado pe-la Rocinha, sendo que tem 399 mil pessoas que estão sendo trata-das injustamente, de uma maneira errada. É como se alguém esti-vesse o tempo todo te acusando de ladrão, de assassino. O tempo todo da sua vida – da hora em que você acorda até a hora em que vai dormir; do dia em que nasce até a morte. É uma criminalização do espaço, do lugar onde essas pessoas vivem.

Você demonstra um envolvimento emocional grande com as coisas que retrata. Acho que às vezes me envolvo mais do que devia. Às vezes me sinto como uma estagiária da Pindorama, que é “adesão total” – vai para a favela e acha tudo lindo, e fica carregando cinco crianças ra-nhentas no colo. Eu, por mais que já tenha ido mil vezes a favelas ou periferias, sempre me espanto. É fascinante o poder de transforma-ção, a força de quem vive em condições tão adversas. Sinto, às vezes, que não consigo lidar com aquilo de uma maneira mais sóbria. E de-pois, quando assisto aos programas, penso: “Tá parecendo que tá tu-do lindo, que viver na favela é uma maravilha.” Eu tenho que me controlar o tempo todo. No último Central da Periferia de 2006, fize-mos uma retrospectiva com os melhores momentos. Apareceu a gen-

te em vários lugares durante o ano. Assistindo, fiquei impressiona-díssima com o número de pessoas que beijei e abracei nesse ano. Mas assim, de beijar muito, abraçar muito, de saber, quando vejo na tele-visão, como eu estava emocionada; como realmente estava comovi-da. Aqueles são encontros verdadeiros.

A vida nas periferias ainda é desconhecida para quem não vive nelas? Muito. A pontinha do iceberg é a empregada da sua casa. Há um tempo liguei para o Arnaldo Jabor para agradecer por uma coluna em que ele elogiou o Central da Periferia. Ele escreveu que considerava o programa revolucionário, que o governo tinha de fazer o que a gen-te faz: entrar na favela, mas não com a polícia. A favela é a metáfora de todos os problemas que a gente tenta botar pra baixo do tapete. A ideia que está na gênese do Minha Periferia e do Central da Periferia

era um programa chamado A Visita. Aca-bou virando só um quadro no Fantástico. Nele, um garoto loirinho, de 13 anos, que jogava tênis numa academia em Cosme Velho – um lugar lindo – ia visitar o me-nino da mesma idade que pegava as boli-nhas enquanto ele jogava. Ia lá para o to-po do morro da Santa Marta. Foi ótimo.

Por que o programa não vingou? O qua-dro-base, que dá origem a tudo, é a mada-me que vai na casa da empregada, o mora-dor que vai na casa do porteiro, a criança que vai na casa da babá, a adolescente que vai na casa da manicure. Só que ninguém mais topou participar. E não é nem que eu consegui poucas pessoas. Eu não consegui nenhuma pessoa. Tentei fazer, por exem-plo, com uma mulher que lavava, passava e engomava camisas. Você não imagina o lu-gar onde ela trabalhava, o percurso que es-sa mulher de 60 e tantos anos fazia, de su-bir o morro para lavar essa camisa e trazer

de volta. Se o dono por um segundo tivesse essa dimensão, aquilo mu-daria a vida dele. Ele pensaria nisso cada vez que usasse a camisa. Con-tei essa história para o Jabor. E ele: “Pois é, mas acho que eu mesmo não ia querer ir. Sabe por quê? Não é porque eu tenho medo de ir à fa-vela. Eu teria medo de ver como é a casa da minha empregada. Eu teria medo de ver a injustiça, de ver que essa pessoa que está dentro da mi-nha casa vive daquele jeito.” Ele resumiu muito bem esse sentimento.

Qual a sua grande constatação em relação ao País? Vejo um País que não está escancarado. Um País que eu já enxergava no sertão, e que na favela vejo ainda mais. O que mais me assusta é que mesmo quem é do bem, pessoas que eu admiro, que eu sei que têm o maior empenho para que essa realidade mude, não têm a menor ideia do que são esses lugares, do tamanho das favelas, das periferias, do Brasil que ninguém está vendo. Não é o brasilzinho que se lê no jor-nal. Eu, que não sou nenhuma princesa de torre de marfim, com 30 anos de experiência, no ano passado me surpreendi como se tivesse descoberto um continente. É como se você achasse que já conhece bem o mapa-múndi, e de repente descobrisse um lugar desconheci-do maior do que a Ásia.

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Das estrelas da igreja de Brodowski

aos painéis da ONU, em Nova Iorque,

Portinari construiu sua trajetória. Superou

o cotidiano sofrido e encontrou nos

personagens de sua infância uma síntese

do homem brasileiro. Foi vítima da

própria arte: as tintas que fizeram dele

um dos maiores pintores de seu tempo

também custaram-lhe a vida.

Mas lá foi ele. Nos primeiros tempos de Capital Federal, fez bicos em uma pensão e entregou marmitas. Dormia em um ba-nheiro e, para matar a fome, comia parte da gelatina usada para misturar às tintas, distribuída pelo Liceu de Artes e Ofícios.

Em 1921, o rapaz ingressa na Escola Nacional de Belas Artes (Enba). Estuda com os consagrados Rodolfo Amoedo, Lucílio de Albuquerque e João Batista da Costa. Participa de diversos salões e recebe menção honrosa em sua primeira exposição coletiva. A primeira vez em que retrata sua gente é em Baile na Roça.

Como estudante da Enba, a recompensa máxima era o Prê-mio de Viagem à Europa. E só em sua terceira tentativa Por-tinari alcançou a façanha. A estratégia já estava traçada: “O que vou fazer é observar, pesquisar. Uma tela só, 100 vezes raspada e 100 vezes pintada só para o artista, em uma procu-ra incessante de perfeição, vale mais do que uma centena de telas acabadas”.

a pequena Brodowski, em 30 de dezembro de 1903, nasceu Candido Torquato Portinari, filho de imigrantes italianos que buscaram no interior

paulista a prosperidade das lavouras de café. Nas retinas do menino, no entanto, ficaram gravadas imagens de sofrimen-to, como a causada pela terrível seca de 1915. A habilidade com os pincéis fez um presente já aos 9 anos, quando o me-nino pintou as estrelas do teto da igreja da cidade. Pouco depois, fez um retrato do compositor Carlos Gomes, usando a estampa de uma carteira de cigarros.

Aos 15 anos, Candinho resolve repetir o gesto migratório dos pais, dessa vez partindo sozinho para o Rio de Janeiro. Queria aperfeiçoar o talento. A decisão não foi fácil: “Procu-rava ensaiar. Ia à casa de minha vó, trocava duas palavras e saía vencido. Voltava para casa, falava com minha mãe e sentia-me impossibilitado de dizer palavras. Não poderia despedir-me.”

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As cores pela vidaCANDIDO PORTINARI

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O melhor produto do Brasil é o brasileiroCÂMARA CASCUDO

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As cores pela vidaEm uma exposição

em Paris, o Duque de Windsor lhe perguntou: “O

senhor não pinta flores?” E Portinari respondeu:

“Flores, não. Só miséria.”

Pintor dos pés grandesEm Paris, Portinari conheceu a uruguaia Maria Victoria Martinelli, com quem se casou. De volta ao Brasil em 1931, pinta a toque de caixa para cobrir as despesas do casal. Suas telas retratam mais de perto a realidade brasileira, a gente sofrida que acompanhou na infância. Obras como Despeja-dos, Negros e Mulheres Carregando Sacos e O Mestiço são algumas dessa fase. Para a historiadora Annateresa Fabris, nesse contexto histórico, o que importa, sob o impulso reno-vador dos anos 1930, é descobrir o homem social brasileiro.

Em 1939, Portinari participa de exposição nos Estados Unidos com o quadro Morro do Rio, indicado como um dos maiores dos séculos 19 e 20. Em novembro, no Museu Nacio-nal de Belas Artes, expõe 269 obras. Convidado pelo Ministro da Educação Gustavo Capanema para fazer os painéis da se-de do ministério, atrai para si críticas de setores contrários ao governo de Getúlio Vargas. Seu trabalho é chamado por nomes como Jorge Amado de “arte oficial”, “equívoco da ar-te brasileira”. E ele, de “pintor dos pés grandes”, em alusão às formas de seus personagens. “Impressionavam-me os pés dos trabalhadores das fazendas de café. Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Pés que só os santos têm”, defende-se Portinari. Em carta ao amigo Mário de Andrade, lamenta: “Fui chamado de tudo, de bosta até gênio”.

Ao longo dos anos 1940, ganhou fama no Brasil e no exte-rior. O mundo vivia a Segunda Guerra Mundial. No Nordeste do País, a seca matava crianças e camponeses. Portinari de-nuncia. Pinta a Série Retirante, com personagens esquáli-dos, famélicos, maltrapilhos.

Conta-se que, em 1946, visitando exposição de Portinari

em Paris, o Duque de Windsor viu aqueles nordestinos flage-lados, lavadeiras de mãos ossudas, crianças descalças e per-guntou: “O senhor não pinta flores?” E Portinari respondeu: “Flores, não. Só miséria.”

Militante do Partido Comunista, o artista põe os pincéis a serviço da causa socialista. Candidata-se a deputado em 1945 e a senador em 1947. Sem sucesso. “Tenho pena dos que so-frem, e gostaria de ajudar a remediar a injustiça social exis-tente. Qualquer artista consciente sente o mesmo.”

Intoxicado pela v idaAo lado de Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, Portinari par-ticipou da primeira Bienal de São Paulo, vista por mais de 150 mil visitantes em 1951. No aniversário de 400 anos da capital paulista, três anos depois, expõe 100 obras. Nes-sa época, começam a surgir sintomas de intoxicação por chumbo, presente nas tintas que usava. Alertado pelo médi-co, declara: “Estou proibido de viver”.

Em 1956, finaliza os painéis Guerra e Paz. As obras, que decoram a sede da ONU, em Nova Iorque, demandaram me-ses de intenso trabalho. Nos derradeiros dias de vida, usa os mesmos tipos de tinta que lhe foram proibidos pelo médico. Morreu em 6 de fevereiro de 1962, aos 58 anos. Para o intelec-tual Alceu Amoroso Lima, nossa arte moderna poderá figurar no quadro da cultura universal ao menos com dois espíritos geniais: Villa-Lobos na música e Portinari na pintura.

SAIBA MAISPortinari, Pintor Social, de Annateresa Fabris (Perspectiva, 1990).

Projeto Portinari: www.portinari.org.br

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A NHE MBI

O

ESPEC IAL

lavo Bilac a chamou de “inculta e bela” no cé-lebre soneto Língua Portuguesa. Que é bela, sabemos. Mas inculta? Séculos antes de Cris-

to, na região do Lácio, atual território italiano, viviam os latinos, povo simples formado em sua maioria por agri-cultores. Tornaram-se uma das civilizações mais avan-çadas que o mundo já viu: o Império Romano. Havia lá dois latins: o culto, da política e dos textos; e o vulgar, falado pela população, em sua maioria analfabeta. Foi essa segunda variante que ganhou o Velho Mundo, leva-da por soldados e comerciantes. A partir dela, surgiram línguas como o espanhol, o francês e o italiano. O por-tuguês é a mais recente delas; a “última flor do Lácio”, nas palavras de Bilac.

O Império Romano, que dominou quase toda a Europa, chegou ao fim no século 5. Nesse período, a Península Ibérica sofreu invasões germânicas e, a partir do século 8, árabes. Esses últimos permanece-ram lá por cerca de 500 anos. O reino portucalense, no território atual de Portugal, expulsou os árabes definitivamente no século 13. Ali, falava-se o gale-

go-português, àquele ponto já marcado por palavras das cul-turas germânica (coifa, ganso, rico) e árabe (azeite, alfaiate, algarismo). No século 15, Portugal entrou na era das grandes navegações, e o galego-português deu lugar ao português me-dieval. No apogeu da história lusitana, palavras portuguesas se espalharam pelo mundo, e a língua sofreu ainda mais influên-cias dos idiomas das regiões conquistadas.

A língua portuguesa aportou por aqui em 1500, com a esquadra de Cabral. Desde então, nunca mais foi a mesma, cada vez mais brasileira.

D I A I n t E r n AC I o n A L D o I D I o m A mã E

Nossa língua

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Fevereiro 2008

T UCURU V IA NHE MBI

TA P I OC A

QU Em DIr IA N O C O M E ç O , P O R T U g U E s E s A d O T A R A M A l í N g U A d O s í N d I O s

?Os portugueses encontraram aqui cerca de 1.200 povos indígenas, que falavam nada menos do que mil

línguas diferentes. Na costa baiana, travaram contato com os tupis. Fugaz, essa comunicação inicial visava

somente facilitar o escambo. A partir de 1530, começa-ram a chegar expedições de colonização. São Vicente, no

litoral paulista, foi a primeira vila, fundada em 1532. Em mi-noria, os portugueses acabaram adotando o idioma indígena.

Com influência lusitana, surgiu uma língua franca, baseada no tupi, conhecida como língua geral paulista. Durou cerca de dois

séculos, tendo sido usado na catequização dos índios pelos padres jesuítas e pelos bandeirantes em suas expedições.

Em condições semelhantes, surgiu na Amazônia, no século 17, ou-tro idioma franco: a língua geral amazônica, ou nheengatu (língua

boa), com base no tupinambá.

PALAVRAS DA LÍNGUA GERAL

PAULISTA

ANHEMBIrio das anhumas

UBERABA rio brilhante

VOTUVERAVA morro brilhante

TUCURUVI gafanhotos verdes

PALAVRAS DA LÍNGUA GERAL AMAZÔNICA

tapiocaaçaítatujacarépororocacuiatipoiapetecaaraponga

m o L E Q U E

Aox L án g U A f R I C A N O s d E T O d A P A R T E

E N R I q U E C E R A M N O s s A l í N g U ANo século 16, o comércio de açúcar era dos mais lucrativos. Os portugueses

passaram a cultivar cana em nossas ter-ras. Como os índios resistiam à escravi-

dão, os colonizadores trouxeram negros da África. A maioria dos que chegaram

nesse primeiro período falava línguas bantas, principalmente o quicongo, o

quimbundo e o umbundo. Nos séculos 17 e 18, com a descoberta de jazidas

de ouro e diamantes, vieram para cá escravos minas-jejes, falantes de lín-guas ewé-fon. Na última leva de escra-

vos, no século 19, chegaram povos de origem iorubá, também conhecidos

como nagôs, para trabalhos domésti-cos e urbanos na cidade de Salvador e

arredores. O resultado: sons de todos os cantos da África encravados na nos-

sa língua.

PA

LA

VR

AS

BA

NT

AS

bagu

nça

• ca

chim

bo •

mol

eque

PALAVRAS EWÉ-FONangu • bobó • vodumPALAVRAS IORUBÁ Afoxé • Iemanjá • Ogum

Com a descoberta de metais preciosos no Brasil, Portugal re-solveu, digamos, reforçar os laços com a Colônia. Em 1758, Marquês de Pombal instituiu o português como idioma ofi-cial daqui e proibiu o uso das línguas gerais. Mas idiomas naturais não são extintos a canetadas. O nheengatu, por exemplo, tem ainda hoje mais de 8 mil falantes.

As disputas com a Espanha pelo território no sul do Bra-sil no século 18 também foram importantes para difun-dir a língua portuguesa na Colônia. A ameaça espanhola

trouxe uma grande leva de colonos lusitanos, que se es-tabeleceram em locais como a Ilha de Santa Catarina, em 1748, e em Porto Alegre, fundada em 1772.

P O R T U g U ê s T E V E q U E s E R I M P O s T O N A M A R R AnADA DE L ÍngUAS gEr A I S

J A C A RÉ

19

Page 20: Almanaque de Cultura e Saúde - FEBEC Edição 12

20

B I B E R ã Od I f E R E N ç A s E N T R E

O P O R T U g U ê s B R A s I l E I R O E

E U R O P E UNão são só o sotaque e a

grafia de algumas palavras que separam o português brasileiro do europeu. No

dia a dia, nós e os lusitanos usamos palavras diferentes para expressar os mesmos

significados. Alguns exemplos curiosos:

O fim da escravidão e a chegada de imigrantes marcaram a segunda metade do século 19. Entre os intelectuais, era forte a influência exer-cida pela cultura da França. Muitas palavras francesas foram incorpo-radas ao nosso vocabulário nessa época, como matinê, abajur e batom.Os imigrantes que aqui se estabeleceram a partir da década de 1870 trou-xeram em sua bagagem cultural diferentes sotaques, palavras e expressões. Alemães, italianos, espanhóis, japoneses e árabes se espalharam pelos quatro cantos do Brasil. E dá-lhe palavras e expressões novas: camicase, castanhola, lasanha... Inicialmente restritas às regiões onde os imigrantes se fixaram, mui-tas dessas contribuições acabaram por ganhar o País.

Inspirado pela colônia italiana, o escritor paulista Alexandre Marcondes Machado criou no início do século 20 o personagem Juó Bananére (João Ba-naneira), que se expressava no dialeto macarrônico, hilária mistura de italiano e português. A revista de humor O Pirralho publicou alguns de seus textos e pa-ródias, reunidos no livro La Divina Increnca, de 1915. Bananére não perdoou nem clássicos de Gonçalves Dias e Olavo Bilac.

PORTUGUÊS BRASILEIROCARRO CONVERSÍVELCONCRETO

GOLGRAMPEADORMAIÔMAMADEIRA

ÔNIBUSSALVA-VIDASTELEFONE CELULAR

PORTUGUÊS EUROPEU

CARRO DESCAPOTÁVEL

BETÃO

GOLO

AGRAFADOR

FATO DE BANHO

BIBERÃO

AUTOCARRO

NADADOR-SALVADOR

TELEMÓVEL

Uvi Strella

Che scuitá strella, né meia strella!Você stá maluco! e io ti diró intanto,

Chi p’ra iscuitalas montas veiz livanto,i vô dá una spiada na gianella

Migna terra

Migna terra tê parmeras,Che ganta inzima o sabiá.

As aves che stó aqui,Tembê tuttos sabi gorgeá

COM A CHEgAdA dA fAMílIA

REAl, fAl AR COM sOTAqUE

PORTUgUês VIROU CHIqUE

Repare: o sotaque carioca muito tem a ver com o lusitano. Basta notar o “s” chiado e as vogais abertas em palavras como “também”, características comuns em ambos. Não é por acaso. Junto com a Família Real, chegou em 1808 uma corte numerosa à Cidade Maravilhosa. O português que se falava no Rio tinha características paulistas, por conta da passagem dos bandeirantes pela região. Mas, com o prestígio da realeza, virou chique falar à moda portuguesa, e houve um fenômeno que especialistas chamam de “relusitanização” da língua.

gOlO!C E l U l A R

20

DialetO Bananére

A StAnHoL ACL A S A n H A

A m I C A S E

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21

Fevereiro 2008

A

l A s C A d OV I X E

sAIBA MAIsS

ÉC

UL

o 2

0 s O N s d O s E R T ã O , d O s s T A T E s E d A T E l E V I s ã O

A partir dos anos 1930, o País passou a navegar nas ondas do rádio, meio de comunicação de imensa penetração popular. Milhares de brasileiros deixaram o campo e o sertão em direção às grandes cidades, principalmente Rio e São Paulo, onde cresciam a indústria e a construção civil. A cultura do interior nordestino marcou profundamente

os grandes centros urbanos, transformando em universais expressões regionais como “vixe”, “lascado” e “cabra”.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Bra-sil de Getúlio alinhou-se aos Estados Unidos. Propagande-ando o estilo de vida norte-americano, palavras inglesas bombardearam o País e são até hoje onipresentes.

Quando a televisão surgiu, na década de 1950, muitos imaginavam que ela daria cabo às peculiaridades regionais do idioma, uniformizando o português do Oiapoque ao Chuí. Não foi o que aconteceu: os brasileiros parecem capa-zes de absorver novas influências, cada um à sua maneira.

O Modernismo chegou em 1922 com bandeiras como a reafirmação da nossa identidade e a antropofagia das culturas estrangeiras. Oswald de Andrade, um dos líderes do movimento, debruçou-se sobre o tema em alguns de seus poemas, como Vício na Falae Pronominais.

víciO na fala

Para dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mió

Para pior pió

Para telha dizem teia

Para telhado dizem teiado

E vão fazendo telhados

PrOnOMinaiS

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro

e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

sERá MIó OU PIó?

Se os índios foram os primeiros a influenciar nossa língua portuguesa, as contribuições mais recentes ao idioma vieram de outras tribos. No fim do século 20 e neste início do 21, palavras e expressões de grupos urbanos – skatistas, surfistas, pagodeiros – caíram na boca do povo.

Com a revolução da informática, foram introduzi-das ainda mais palavras em inglês (e-mail, site, dele-te), além de uma nova linguagem escrita, o interne-tês. Usado principalmente por jovens – e não raro visto com maus olhos – caracteriza-se por abre-viações (bjs, tc, blz, abs) e substituições de letras levando em conta a fonética (naum, aki, axo).

A língua não para nunca. Vida longa ao gentil português brasileiro, e que venham cada vez mais novos sons.

tr

IBo

S

Para viSitar

Museu da Língua Portuguesa: Estação da Luz - Praça da Luz, s/nº.

São Paulo-SP. Na internet:www.estacaodaluz.org.br

Para ler

O Português no Brasil, de Antônio Houaiss

(Revan, 1992).

21

C A B R A

VB

AX RC

gOlO!

OsWAldIANAs

moDErnAS

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22

Pala

vras

Cru

zada

sO Calculista das Arábias

Nossa homenagem a Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan

De passagem por Damasco, o sábio Beremiz Samir foi procurado por três irmãs com um problema de solução aparentemente impossível. O dono da venda em que trabalhavam desafiou: “Quero ter certeza de que minhas funcionárias são inteligentes. Vocês venderão 90 maçãs. Fátima, a mais velha, venderá 50; Cunda, a do meio, 30; e Siha, a mais nova, 10. O preço estabelecido por Fátima deverá ser copiado pelas outras duas e, ao final do trabalho, as três deverão ter vendido todas

as maçãs e arrecadado a mesma quantia. Caso contrário, serão demitidas! ”. Beremiz descobriu uma maneira de poupar o emprego das irmãs. E você, seria capaz de ajudá-las?

ac

ervo

da

fa

míli

a

O Brasil é ocupado em 11/2/1630 por:(a) Espanhóis (b) Holandeses (c) Italianos (d) Alemães

Capital de Pernambuco até 15/2/1827:(a) Olinda (b) Caruaru (c) Jaboatão (d) Paulista

Não organizou o Voo de Solidariedade a Cuba, que partiu em 7/2/1992:(a) Frei Betto (b) Lula (c) Fernando Morais (d) Chico Buarque

Cantor nascido em 6/2/1939, que apresentou com Elis O Fino da Bossa:(a) Chico Buarque (b) Tom Jobim(c) Jair Rodrigues (d) João Gilberto

Primeiro nome do primeiro presidente do Brasil, eleito em 25/2/1891: (a) Floriano (b) Deodoro (c) Rui (d) Prudente

Puderam votar nas eleições brasileiras a partir de 24/2/1932:(a) Mulheres (b) Negros (c) Menores de 18 anos (d) Pobres

Maior porto da América Latina, inaugurado em 2/2/1892: (a) Suape (b) Santos (c) Salvador (d)Tubarão

Filme de Cacá Diegues, lançado em 20/2/1980: (a) Terra em Transe (b)Vidas Secas(c) Bye Bye Brasil (d) Pixote

a Abre o Carnaval de Olinda, desfilando sempre à meia-noite do sábado. Desde 1932 sincroniza a cidade na pisada do frevo.

b Entre tantas marchinhas, Quem Não Chora Não Mama é seu hino. Desfila há 90 anos nas ruas do Rio de Janeiro.

c Fundado por estivadores soteropolitanos, embala milhares de homens na levada do axé. Seu estandarte é a paz.

d Maior bloco de Carnaval do mundo, é animado pelo frevo. Sai no Recife, reunindo mais foliões do que o número de habitantes da cidade.

1

2

3

4

ligue os pontos

Respostas

CARTA ENIGMÁTICA De tanto anunciar o fim da carreira, ganhou o apelido de “cantor das despedidas”. (Silvio Caldas)

ENIGMA FIGURADO Gabeira. O QUE É O QUE É? Estrela do mar.

SE LIGA NA HISTÓRIA 1c (Filhos de Gandhi); 2a (O Homem da Meia-Noite); 3d (Galo da Madrugada); 4b (Cordão da Bola Preta).

BRASILIÔMETRO 1b; 2a; 3b; 4c; 5b; 6a; 7b; 8c.

O CALCULISTA DAS ARÁBIAS Num primeiro momento, as irmãs venderiam grupos de 7 maçãs por 1 dinar. Fátima, liquidando 49, ganharia 7 dinares – restaria uma maçã. Cunda venderia 28 e ganharia 4 – sobrariam duas. Siha venderia 7 e ganharia 1, ficando com três. Depois, as irmãs passariam a vender as frutas a 3 dinares cada. Fátima arrecadaria mais 3 dinares; Cunda, 6; Siha, 9.

orla

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er/pag

os/a

e

Daiane dos santos

DE QUEM SÃOESTES OLHOS? 3 4

21

0

56

7

8Conte um ponto por resposta certa

valiação

teste o nível de sua brasilidade

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ilustrações: luciano tasso

www.lucianotasso.blogspot.com

23

Fica numa cidade sem mar o maior lugar artificial para se ver bichos marinhos no Brasil. O aquário de São Paulo tem o maior oceanário da América do Sul, com um milhão de litros de água salgada e três mil animais em exposição.

Você sabia?

Pra viver no fundo do mar, só mesmocom superpoderes

uando você faz uma concha com as mãos e pega um pouco de água do mar, está segurando mais de 80 elementos químicos: cálcio,

zinco, magnésio, potássio, iodo... Não se preocupe, porque Nenhum deles faz mal. Pelo contrário: nada melhor do que um banho de mar para sarar pequenos mAchucados.O fundo do mar é tão rico que os cientistas não sabem nem quantos tipos de animais vivem lá embaixo. Talvez mais de um milhão! PRa sobreviver em meio a tantas espécies, só mesmo tendo superpoderes.

Q

JÁ PENSOU NISSO?

Sozinho, ele atravessou o oceano Atlântico num barco a remo. Depois, passou três anos

num veleiro na Antártica. Para espantara solidão, costumava conversar

com os animais do mar. SOluçÃO NA P. 22

Qual E o animal mais

popular do oceano?

Sabe quem é o homenageado do mês? Para descobrir seu nome, basta preencher o diagrama abaixo. O número de cada quadrinho indica uma letra colorida escondida na linha correspondente do texto lá de cima. Por exemplo: primeiro quadrinho, linha 5: A. E assim por diante.

O maior animal do mundo vive no mar. A baleia-azul, que tem o tamanho de um prédio de oito andares, alimenta-se de um tipo de camarão minúsculo, chamado krill. Mas para um monstro daquele ficar satisfeito são necessárias quatro toneladas de camarõezinhos todos os dias. Ainda bem que ela não come gente. Se não, devoraria umas 57 pessoas por dia! A gente agradece – os krills nem tanto...

Bagre-brancoé bicho bravo.

Bicho branco é bagre bravo.

Trav

a-Língua

pa

ra ler e repetir em v

oz al

ta

Água-viva Apesar de ser quase todinha de água, pode

queimar quem dela se aproxima. Nem pense em encostar em uMa. Se

encontrá-la na praia, se afaste e avise quem estiver ao redor.

Cavalo-marinho De cavalo, ele só tem o formato da cabeça. Parece mais com um camaLeão: muda de cor para ficar parecido com o ambiente e não ser visto pelos predadores. Ah, e tem também outra semelhança com esse tipo lagarto: é capaz de mexer um olho de cada vez. Você já tentou? É impossível!

Peixe-boi Ele também não tem nada de peixe, nem de boi. Pode acreditar: é uma espécie de mamífero, primo do elefante. Vive sozinho em águas quentes e é tão dócil que entrou em extinção – não tinha nenhum poder para se livrar dos caçadores. Mas de tão simpático e importante, ganhou um projeto para protegê-lo, o projeto Peixe-Boi, desenvolvido em Pernambuco.

Y K K5 13 7 18 24 3

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Muito são-tomé teve que dar o braço a torcer depois de percorrer os mais de 700 quilômetros

que separam Recife de Petrolina e encontrar, em pleno semi-árido pernambucano, uma paisagem como esta.

E, na taça, um vinho solar, único, capaz de quebrar todos os paradigmas da enologia internacional.

etrolinenses de boa cepa gostam de contar a história: 47 produtores de vinho do Rio Grande do Sul receberam, em 1999, um convite que lhes soou como bravata nor-

destina – conhecer as uvas e o vinho produzidos no sertão. Os incrédulos gaúchos, que carregam o tinto néctar em seus DNAs, tinham motivos para não acreditar, pois aprenderam a arte de fazer vinho com seus antepassados italianos. Esses, herdeiros de milenares técnicas, plantaram suas videiras nas melhores terras do sul do Brasil, cujo clima é semelhante ao europeu. Não era um lugar de solo esturricado, onde o verão começa em 1º de janeiro e termina em 31 de dezembro. “Entonados”, como diriam os gaú-

P

Petrolina

chos, esses vitivinicultores foram para Petrolina com a intenção de mostrar que não é assim que a banda toca.

Em lá chegando, sob um sol retumbante, tiveram primeiro que acostumar os olhos no sombreado do parreiral. Começaram a caminhar debaixo da extensão verdejante, numa fundura que confunde a perspectiva. Pé ante pé, e de bico calado, surpreen-deram-se com a visão de um chuveiro de repolhudos cachos de uvas até onde a vista alcançava. Já com água nos olhos, um dos gaúchos não pôde evitar o gesto: tomou ar, levou a mão ao peito e entoou o Hino Nacional.

A glória de tal fartura é do Velho Chico e dos pioneiros que

Néctar do Sertão

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construíram 60 quilômetros de canais irrigados, sem esperar pela transposição do rio São Francisco – o que por lá se ouve falar desde os tempos de Pedro 2º. Aliás, dizem que foi em home-nagem a seu pai, Pedro 1º, e sua mãe, Leopoldina, que batizaram a cidade, juntando os dois nomes.

24 colheitas por anoA união de turismo com vinho não é novidade no mundo. As vinícolas investem em suas dependências para que o consumidor possa conhecer o processo de elaboração do vinho, desde o culti-vo até a comercialização. Para João Santos, enólogo português da vinícola Rio Sol, município de Lagoa Grande, o termo “Roteiros do Vinho” em outros países soa um tanto forçado. “O único lugar do mundo onde se pode ver a uva verde ou madura, a colheita, a poda, a fermentação do mosto nos tonéis, a azáfama dos traba-lhadores e técnicos, sentir o aroma delicioso que incensa o ar – enfim, todo o processo que envolve o vinho e que é o que o visi-tante gosta de ver – está no Vale do São Francisco.”

Marta Agoas, enóloga portuguesa que vive há quatro anos em Petrolina, demorou um ano para entender as virtudes dessa ter-ra. “Precisei defender uma tese para provar que obtive com o vinho dessa região mais intensidade e vigor cromático do que na localidade do Douro, em Portugal, conhecida pela excelência em coloração dos vinhos”, explica. “Em um ano, saí com 24 colhei-tas, o que me deu 24 anos de prática, me colocando ao lado de poucos profissionais no gênero.”

Repare nos vitrais da Catedral Nossa Senhora do Coração de Jesus, popularmente conhecida como Catedral de Pedra. Construída em estilo neogótico, foi inspirada na Catedral de Notre Dame, em Paris, e abriga o maior conjunto de

vitrais franceses do Brasil. Vale lembrar que toda essa riqueza foi erguida na década de 1920,

quando só existia caatinga esturricada ao redor.

Preste Atenção

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Não deixe de conhecer

Vinho na fonteUm dos mais renomados conhecedores de vinhos, o brasileiro Jorge Figueredo, escolheu as terras da Ilha do Pontal, no rio São Fran-cisco, para plantar suas ce-pas e fazer vinho. Figuere-do, que fez especializações em Milão, França, Portu-gal e Chile, defende a causa dos vinhos de Petrolina: “No mundo, os grandes vinhos descartam as pri-meiras safras e só iniciam sua fabricação a partir do décimo ano. Eu tenho esse ciclo em minhas terras já no terceiro”.

Em recente programa de gastronomia da televi-são do Reino Unido, Jan-cis Robinson, tida como a mais importante jorna-lista de vinhos do mundo,

elogiou a qualidade cada vez maior dos vinhos do São Francis-co. Como dizia Raoul Blondin, enólogo do renomado Chateau Mouton Rothschild, “o vinho deve ser bebido na fonte. Quanto mais ele viaja, pior ele se comporta. Sensível, não suporta as mudanças exteriores e o cansaço de qualquer viagem. Quan-to mais perto de sua terra de origem for tomado, tanto mais será apreciado”. Sob tal ótica, uma experiência única é degustar nosso vinho jovem e ensolarado na própria Petrolina, às mar-gens plácidas do Velho Chico.

As águas do rio São Francisco viviam atormentadas pelas reinações do Nêgo d’Água, capaz de virar barcos, afugentar peixes e despachar para o além os pescadores. Era preciso afugentá-lo. Essa foi a origem das carrancas assustadoras que ornamentam as proas dos barcos e navios. Uma de suas mais expressivas criadoras é Ana, cujo nome ficou

para sempre ligado às esculturas: Ana das Carrancas. Seu trabalho gerou escola para artesãos e centro de artesanato em Petrolina. Como reconhecimento, a escultora ganhou

destaque internacional e foi condecorada com a Ordem do Mérito Cultural.

Petrolina tem MaisMuseu do Sertão

Aqui pode-se conhecer um pouco mais da História da cidade; ver a réplica da casa de um caboclo, carrancas

do escultor Guarani, cerâmicas de Maria da Cruz, esculturas em madeira e o painel de Romero de Lima:

Petrolina Centenária.

CabocloDistante 80 quilômetros de Petrolina, no município de

Afrânio, Caboclo é um povoado histórico com mais de 200 anos. Em sua ampla praça central, dois

imponentes tamarindeiros sesqüicentenários são o xodó dos moradores. Ao redor deles, estão penduradas redespara ajudar na tradição que garante a todo casal que se

sentar debaixo das árvores casar sem erro. Lenda?Já se viu lugar melhor para namorar, embalado

de dia pelo canto dos passarinhos e, de noite, pelocéu mais estrelado do planeta?

Mirante da Barragem do SobradinhoLocalizado no alto de um morro, oferece uma das visões

mais desconcertantes de Petrolina: lado a lado,estão oásis irrigados e viçosos e os tons cinzentos

do solo áspero e seco.

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Se rviço

ertão, sertão minimalista, tem lá dessas prendas de pra-ta pra exibir? Só não tem de pouca valia. Tem com muito

gosto e de tudo quanto é forma, pra ser modesto. Não tem só de cor prata, não. Tem vermelho, verde, laranja, amarelo. Até roxo tem. E não se mostra só de vez em quando, mas todos os dias lá no Mercado do Produtor, em Juazeiro, cidade vizinha de Petrolina. Esse sim um espaço embriagador. É festa de aromas, exuberância de cores, um vai-e-vem desabalado de produtos, de gente e de jegues.

O Cebola, um garoto que sonha ser guia de turismo, vai trei-nando ali mesmo, no box das cebolas, sua dialética e seus dotes de conhecimento das frutas e de histórias do rio São Francis-co. Tem tudo na ponta da língua para contar aos visitantes boquiabertos: “Só de manga e de uvas de mesa, temos mais de seis variedades. Temos melancia, melão, abacaxi, laranja, mamão, coco, bananas. Tudo de doçura maior. E não ficam só aqui, não, seguem viagem para o mundo todo: Estados Unidos, Canadá, África, Oriente Médio, Ásia e toda a Europa”. Ele tem razão de se gabar. Só no ano passado foram exportadas 120 mil

Prata da CasaPrataria sertaneja

S toneladas de frutas. E pensar que toda essa fartura poderia ir pelo ralo por uma coisinha de nada, a mosca-das-frutas.

Beatriz Jordão Paranhos, pesquisadora da Biofábrica Mos-camed, instalada na região, ensina: “As moscas-das-frutas são pragas quarentenárias e representam um dos principais proble-mas na exportação dos frutos frescos. O controle químico, nor-malmente utilizado, traz sérios prejuízos ao agroecossistema, ao meio ambiente e à saúde”.

Para evitar o estrago, foi adotada no Brasil a Técnica do Inseto Estéril (TIE), um método eficaz e seguro no controle da Ceratitis capitata (principal espécie de mosca-das-frutas) nos povoados irrigados da região. Ela tem o nome vulgar de mosca-do-medi-terrâneo (moscamed) – referência à sua região de origem.

“A TIE consiste na criação em larga escala dos insetos-praga e na sua esterilização por meio de irradiação gama. A partir daí, eles são liberados semanalmente nos campos, constituindo uma população de machos estéreis de nove a 100 vezes maior em relação aos selvagens. Esses machos copulam com as fêmeas selvagens e essas não geram descendentes”, conclui Paranhos.

Onde ficar JB Hotel, em Petrolina. Tel.: (87) 2101-3777. www.jbhotel.com.br • Pousada Caboclo, no povoado de Caboclo. Tel.: (87) 3861-3431.

Onde comerMaria Bonita, em Petrolina. A portuguesa Denise Santos, chefe de cozinha,

serve pratos com bacalhau acompanhados de vinhos da região. Tel.: (87) 3864-0422.

Cabana Coisa d’Água, na Ilha do Rodeadouro, em Petrolina. Imperdível o maracari, um vatapá de cari (lagosta de rio) com maracujá, servido na fruta. Tel.: (87) 8812-3741.

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Como fazerRE

PRO

DU

ÇÃ

O

PEIXE AZUL-MARINHO

Ingredientes2 kg de peixe em postas2 cebolas grandes picadas3 tomates picados1 pimentão picado6 bananas-da-terra cortadas em rodelas1 maço de coentro1 limãoÓleo de soja para refogarFarinha de mandiocaAlho picado e sal a gosto

Modo de PreparoTempere o peixe com sal e limão e reserve. Em uma panela com óleo, refogue o alho e a cebola até dourar. Acrescente os tomates e o pimentão picados. Coloque 1 litro de água e acrescente a banana. Tampe a panela e deixe cozinhar, em fogo baixo, até que a banana es-teja macia. Acrescente o peixe e o coentro, e deixe co-zinhar por mais 15 minutos. Para preparar o pirão, use duas conchas do caldo do cozimento em outra panela. Em fogo baixo, adicione a farinha de mandioca, me-xendo, de leve, até obter um pirão. Sirva em seguida.

Quando os europeus começaram a colonizar a América, já tinham a fruta tropical como velha conhecida, vinda da Ásia. Até trouxeram para cá algumas espécies, como a nanica e a maçã. Cos-tumavam consumi-las ao natural, como sobremesa. Aqui, no entanto, aprende-ram a acrescentar a banana na comida. Guilherme Piso, holandês da comitiva de Mauricio de Nassau, anotou, em 1638:

“A polpa mole como manteiga é de bom sabor e se come muito, só ou com farinha de mandioca, cozida ou frita em óleo ou manteiga”.

O manjar desta página une os alimentos mais caros à alimentação dos povos do litoral: peixe, farinha de mandioca e banana. Nasceu, especifi-camente, na costa de São Paulo. É tão criativo que a paulista Heloisa de Freitas inspirou-se nele para criar a biomassa de banana. Publicou o livro Yes, Nós Temos Bananas, com mais de 100 receitas doces e salgadas. Ela acredita que a fruta pode amenizar a fome e criar desenvolvimento em áreas pobres do Brasil: “É nosso desprezado ouro verde”, afirma. Não a toa, diz a quadrinha popular: “Com banana e farinha / Passo eu e a vizinha”.

V erdade seja dita: há uma certa licença poética para o nome desta iguaria praiana. O azul-

marinho do prato não é exatamente ví-vido, mas impressiona quando se toma conhecimento dos ingredientes que o originam, muitos tons distantes da cor celestial. Como é possível que, juntos, gerem a tonalidade arroxeada? A al-quimia deve-se aos taninos da banana, aquele elemento que “amarra” na boca. Por isso, para fazer o prato, não há problema em usar a fruta ainda verde. Pelo contrário: a banana-da-terra, variedade usada, é comumente colhida cedo.

Além da cor, a banana contribui com a textura e, principalmente, com a liga do prato. É o que a física chama de “espessante”. Antes dos cientistas, porém, quem descobriu essa propriedade foram os índios. Coube aos nativos entender a utilidade da espécie selvagem, que re-presenta 10% das nossas bananeiras. Pouco macia e pouco saborosa, ela ocupa hoje lugar especial na alta gastronomia, que sabe valorizar os ingredientes típicos.

Azul como bananaPeixe, banana e farinha. Os povos da praia criaram com seus principais ingredientes a alquimia perfeita: até

muda de cor. Prove a antiga invenção e saiba porque ainda hoje é tão valorizada.

REPR

OD

ÃO

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por Lourenço Diaféria

EEmbora não façameu gênero con-tar vantagens, em

especial no princípio de ano par, não me custa de-clarar com relativo orgu-lho que fui office-boy. Na época, era comum office-boy não ter motos, menos ainda motocicletas.

Como se sabe, ou não se sabe, as motocicletas foram inventadas por um senhor nipônico imaginoso que, abor-recido por haver perdido a safra de tomates, decidiu mu-dar de ramo. Porém não pretendo entrar nesse assunto técnico. Volto a escrever sobre coisas simples, que não exigem invencionices intelectuais.

Como já revelei, meu ingresso na especialidade conhe-cida como serviços de office-boy não exigia, então, co-nhecimentos específicos. Bastava apresentar-se à paisana, unhas cortadas, relativamente asseado, lenço, indumentá-ria digna e, claro, mascando chiclete. O emprego não exi-gia diploma. O que se requeria era boa educação, também conhecida como civilidade, alguns parcos conhecimentos de logaritmos e umas tênues fumaças de boa vontade. O resto se aprendia com a prática da vida.

No meu tempo, longínquo, tive excelentes mestres. O principal deles me ensinou a lidar com um aparelho su-postamente de galalite, negro, que servia para enviar e receber mensagens de clientes, amigos, conhecidos e pes-soas que tinham errado a ligação. Seu nome era (não o do telefone, mas do mestre) Doutor Affonso, com dois efes. Criatura boníssima, mas um pouco irascível, em especial quando algum cavalo não cruzava a fita de chegada.

Todavia não desejo me desviar do assunto. Vamos ao que

O OfficE-bOy E O vEadO dOuradO

de fato interessa. Sabe-se que, historicamente, desde os remotos tem-pos em que surgiram as boticas, o estabe-lecimento brasileiro que mais contribuiu para o progresso da civilização paulista foi

a Botica ao Veado D’Ouro, que funcionou na tradicional rua São Bento, no caminho do mosteiro beneditino. A botica foi o principal ponto de refe-rência na cidade. Como já insinuei, uma das coisas que mais marcaram minha precária infância nos tempos de office-boy foi o veado dourado que pontificava na frente do estabeleci-mento, com sua presença hierática anunciando a cura ou o alívio de males de todo tipo. Sem o veado da botica, imagino que a cidade não teria a quem recorrer. Seus funcionários, limpidamente de branco, como anjos, pareciam ser capazes de sanar todas as dúvidas da Humanidade.

Sem dúvida, foi uma época. Nem sei se o veado dourado continua em seu modesto trono. Mudei de rua, de destino, de males da vida, de rumos. Sei apenas que a velha boti-ca deixou uma lacuna. Não digo, não afirmo, que tenha mudado em definitivo de endereço, de razão social, tro-cado de vizinhos, alterado as históricas receitas, mudado de bulas, substituído os receituários. A verdade é que a cidade alterou-se, permutou suas máscaras, passou a viver outros ritmos.

Se me falta realidade, é pura besteira ficar aguardando no ponto a passagem de algum bonde inventado na ima-ginação. Nem mesmo existe o cheiro de folhas maceradas que havia nas velhas boticas. Botica agora é nome fantasia do futuro dos tempos novos.

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ROSA

Ela é demaisSe transformássemos todas as florestas em papel, talvez não chegasse para imprimir o

quanto se disse sobre a flor mais cultivada, símbolo de tudo o que dignifica. Uma poeta

deu explicação de poeta para tal fascínio: Uma rosa é uma rosa é uma rosa.

la simboliza beleza e perfeição desde a antiguidade. Coroava a fronde dos nubentes e dos

vencedores. A rainha egípcia Cleó-patra recendia a rosas e atapetou o palácio com suas pétalas até a altura dos joelhos para receber o amante, general romano Marco Antônio.

Foram chineses os primeiros a desco-brir também suas virtudes gastronô-micas, medicinais – e afrodisíacas, pre-sentes no frutinho, recheado de aquênios, aquelas sementinhas como as do figo, morango, amo-ra. As aristocratas se beneficia-vam de sua rejuvenescedora essência; acredite se quiser: são 5 toneladas de pétalas para obter-se 1 litro do óleo essencial, item obrigatório da farmacopeia chinesa, listado no antiquíssimo tratado de botânica Pen Tsao (2900 a. C). Aliás, não há planta com mais registros históricos. A poeta grega Safo a chamou Rainha das Flores no século 6 a. C.; no século seguinte, Confúcio tinha vários livros sobre ela e relatou que havia mais de 600 na biblioteca imperial chinesa.

A família, Rosácea, nos presenteia com perfumes e sabores delicados; veja que parentes ela tem: maçã, morango, cereja; pera, pêssego, ameixa. Para atingir seu grau de evolução, te-remos de nos aperfeiçoar muito. Ela já habitava o hemisfério

norte há 35 milhões de anos, milhares de séculos antes de surgir o Ardi-

pithecus, nosso mais antigo an-cestral conhecido (4,4 milhões de anos). Através dos milênios, e da ação humana, as 126 es-

pécies primitivas resultaram em mais de 30 mil variedades.

Trazida pelos jesuítas em 1560, dos quintais passou às nossas praças públicas. E, no meio do século

20, batizou Cotia, colada à capital paulista, de Cidade das Rosas – graças ao jardinzão com centenas

de canteiros coloridos e perfumados, a Roselândia, criada em 1929 por uma família alemã vinda da Ci-dade das Flores, Erfurt. Visitamos

Roselândia em dezembro de 2009. Não abre mais para o público. O bem-humorado Arno Boettcher, aos 64 anos, toca a missão que herdou dos pais, conformado com

o “pogresso”: a urbanização desorde-nada trouxe inundações e o obrigou a mudar de lugar; a falta de educação de gente que ali ia para depredar o levou a can-celar visitas. Mas segue vendendo mudas para o Brasil todo. “Também pela internet”, avisa.

Pelo correio, a rosa hoje cruza os céus e chega faceira a qual-quer cidade. De todo modo, viva o “pogresso”.

Rosa spp

E

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O verso de Gertrude Stein (1874-1946) é um dentre incontáveis textos sobre rosa. Alguns mais:

Também para o mendigo a rosa oferece seu perfume. Ditado japonês

Quem colhe rosas deve suportar os espinhos. Ditado chinês

Eu deixo aroma até nos meus espinhos.Cecília Meireles (1901-1964)

Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera. Che Guevara (1928-1967)

Não fiz mais que florir e aromar, servi a donas e a donzelas, fui letra de amor, ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos me trataram e viram com admiração e afeto. Machado de Assis (1839-1908)

Para o cruel que me arranca o coração com que vivo, nem cardo ou urtiga cultivo, cultivo uma rosa branca. José Martí (1853-1895)

Se tivesse outro nome, teria outro perfume a rosa? William Shakespeare (1564-1616)

Se a perpétua cheirasse, seria a rainha das flores. Mas como a perpétua não cheira, não é a rainha das flores. João do Rio (1881-1921)

Lenda da mitologia greco-romana

dônis, tão belo que desperta a pai-

xão de Afrodite, é morto por um javali. Condoído, Zeus o trans-forma na anêmona, para Afrodite o ter durante a primavera; e transforma as lágrimas da deusa da be-leza em rosas brancas. Mas, ao tentar salvar Adônis, ela feriu-se num espinho, seu sangue tingiu a flor (e a rosa vermelha tornou-se o símbolo da pai-xão). Os deuses do Olimpo, extasiados, acrescentam à rosa o perfume da ambrosia, néctar que os nutre e lhes dá a imortalidade. Está pronta a rainha das flores.

Não cometa gafes. Veja o que significa oferecer rosas da cor: amarela amizade, alegria, amor platônico, in-tenções futuras; branca reverência, paz, perdão, senti-mento puro, superação emocional; champanha admi-ração, simpatia; mesclada em tons claros solidarieda-de; mesclada em tons vermelhos amor, felicidade; rosa carinho, afeto respeitoso; rosa-chá gratidão, satisfação; vermelha paixão, desejo intenso, adoração; vermelha e amarela votos de felicidade; vermelha e branca vo-tos de harmonia.

A

SAIBA MAISSítios & Jardins Especial 4, de Arno Boettcher (Europa, 1991). • Almanaque do Amor, de Bernardo Pellegrini e Maria Angélica Abramo (Imaginário, 1994).

Cultivo de Rosas no Brasil, de Waldemar Silva (Nobel, 1976). • Site da Roselândia: www.roselandia.com.br

Cada cor umamensagem

Uma rosa é uma rosa é uma rosa

iOlA

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A h

uzA

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32 Bagagem lícitaO sujeito acaba de chegar no País. Vai passando pela alfândega com uma grande mala quando o funcionário o cumprimenta:— Olá, senhor. Tudo joia? — Não, não! Metade é relógio.

NaturalmenteUma desavença na cidadezinha acaba em crime. O delegado chega e dirige-se ao capiau acusado:— Como o senhor tem o descaramento de dizer que o morto teve morte natural, se o senhor lhe deu 15 facadas?— Pois então, dotô.Não era natural que ele morresse?

Jogo sujoO assaltante aborda um turista português na rua:— Pare! – ele grita. — Impare! – retruca o português, estendendo três dedos. — Mas eu estou te roubando – explica o assaltante. — Então não brinco mais.

Coisa do destino?Um acidente leve acontece numa avenida. Do carro que bateu sai uma mulher deslumbrante, já se desculpando:— A culpa foi toda minha. Mas isso só pode ser coisa do destino… Tenho um champanhe no carro, estava indo comemorar sozinha a separação do meu marido. Já que vamos ter que esperar o guincho, você aceita um brinde?E o rapaz, gaguejando, sem acreditar na sorte:— Mas é claro que sim.Depois de algumas taças, ele estranha:— Ei, por que você não está bebendo?— Estou esperando a polícia chegar com o bafômetro.

GalanteadorO rapaz, todo cheio de si, puxa assuntocom a mocinha no bar:— Olá, gatinha. A gente já se encontrou em algum lugar, né?— Claro! E é exatamente por isso que eu não vou mais lá.

Tombo indiscretoNa saída da aula, a professora severa toma um baita escorregão. Como está de saia, pergunta a um aluno:— Pedrinho, o que você viu?— Seu joelho, professora.— Uma semana de suspensão!E você, Paulinho?— Suas coxas…— Um mês de suspensão!Nessa hora, Joãozinho pega o caderno e vai em direção à porta:— Tchau, pessoal, até o ano que vem.

A importância da bandeiraOs mineirinhos foram se alistar no Exército.– O que você veio fazer aqui? – perguntou o coronel para o Mané.– Uai? Vim fazê o quarté!– Fazer o quartel não, rapaz! – esbravejou o coronel. – O quartel já está pronto! Você veio é servir a pátria, entendeu?– Entendi, sim, senhor!– E o que é aquilo? – perguntou, apontando para a bandeira do Brasil.– Ara… Aquilo ali é uma bandeirinha…– Banderinha, não! Isso é a sua mãe, está entendendo?! A partir de hoje, isso é a sua mãe!E, voltando-se para o outromineirinho, prosseguiu:– E você, o que veio fazer aqui?– Eu vim servi a pátria!– Muito bem. E o que é aquilo? – perguntou, apontando para a bandeira.– Ara… Essa é a tia Lilica, mãe do Tonho…

Questão de estiloO sujeito chega no escritório e repara que o colega, bastan-te conservador, agora usa um brinco na orelha.— Olha lá, Moreira... Quem diria? Achava que você não gostava desse tipo de adereço...— Ah... Isso não tem nada de especial. É só um brinco…— Ah é, só um brinco? E desde quando você usa isso, cara?— Desde que a minha mulher o encontrou no meu carro, semana passada.

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Dito Preto e o guarda

U m amigo meu, o Dito Preto, tinha um Ford 29 pra puxar cana na fazenda. Num sábado desses, colocou as varas

de pescar no caminhãozinho e foi para o rio Sapucaí. No meio da estrada, apareceu um guarda. O policial fez sinal pra ele parar. Dito Preto foi indo, foi indo, foi indo e parou o carro beeeeeeem lá na frente. – Deixa eu ver a carta de motorista.– Seu guarda, não vou enganar o senhor. Não vou dizer que tenho carta, porque não tenho. Comprei este cami-nhãozinho pra puxar cana na fazenda e ainda não deu pra comprar a carta.– Então deixa eu ver o documento do caminhão.– Seu guarda, não vou enganar o senhor. Não vou dizer que tenho documento, porque não tenho. Ainda não comprei, não senhor. – Não tem carta, não tem documento...

– Mas todo mundo me conhece por estas bandas, seu guarda. É só perguntar. Todo mundo

sabe que o caminhãozinho é meu.– Então acenda os faróis.– Vai desculpar, seu guarda, mas o direi-

to não tem... E o esquerdo tá queimado.– E a buzina?

– É que comprei o caminhãozinho à presta-ção... Não deu pra colocar buzina.– E o breque? Pelo menos o breque o senhor tem?– O senhor acha que se eu tivesse breque tinha parado aqui, não lá atrás, quando o senhor mandou?– Meu senhor, se eu for multá-lo, a multa vai sair tão alta que nem vendendo o caminhão o senhor vai poder pagar. Então, vá pescar de uma vez!– É que também não tem bateria também não... O senhor ajuda a empurrar?E o guarda empurrou.

O dia todoDois amigos fazendeiros se encontram depoisde muito tempo:— E aí, Durval? Com quantos alqueires está a sua fazenda?— Já tá com quase cem alqueires! E a sua?— Só para você ter uma ideia, pela manhã eu saio de casa, ligo meu jipe e ao meio-dia ainda não percorri nem metade da minha propriedade.— Entendo... Eu também já tive um carro desses. Uma droga!

Bêbados roubadosDois bêbados chegam ao estacionamento e entram no carro. No ato, começam uma gritaria:— Fomos assaltados!— Roubaram o rádio e o aparelho de CD!— E também o volante!— Pô! Não deixaram nem o painel!Eis que chega o funcionário do estacionamento:— Não seria melhor os senhores sentarem nos bancos da frente?

Futebol no alémDepois de uma boa partida de futebol, satisfeito, Juquinha pergunta para Zezinho:– Rapaz, será que no céu existe futebol?– Não sei… – responde o amigo.– Podíamos fazer um trato. Quem morrer primeiro volta e fala para o outro se tem ou não uma boa pelada lá em cima.Os anos passam e Juquinha morre primeiro. Depois de um mês, Zezinho ouve uma voz ecoando, vinda do além:– Zezinho… Zezinho…– Quem é? – pergunta o rapaz, cheio de medo.– Sou eu: Juquinha… Tenho uma boa e uma má notícia pra você… Qual quer ouvir primeiro?– A boa! A boa!– Bem, no céu existe futebol…– Oba! E a má?– Você está escalado para o jogode sábado…

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Saúde, dignidadee alegria

U

Por Pedro Palhares

ma coisa que eu sempre

fiz foi me preocupar com

a saúde. Hoje tenho 77 anos, e

desde os 35 vou ao médico regu-

larmente para saber se tenho algo

de errado. Nada aparecia, sempre

estava com uma saúde de ferro. Mas,

há 13 anos, numa consulta de rotina, o

médico desconfiou que eu pudesse ter algo

de ruim. Depois dos exames, a má notícia: eu

estava com câncer de próstata.

A palavra câncer leva a uma expectativa dolorosa para muita

gente. Mas dou minha palavra que encarei com tranquilidade –

até mesmo se “o pior” acontecesse. Como sou espírita, kardecista,

nunca tive medo da morte. Todos que estamos na Terra vamos

morrer um dia. Temos que saber nos relacionar melhor com este

momento. A morte não é uma morte. É uma passagem.

Mas claro que queria continuar a viver. E, depois de pro-

curar instituições, fiz todo o tratamento no Hospital Amaral

Carvalho, em Jaú, interior de São Paulo. Contei com a ajuda

fundamental da liga de combate ao câncer da minha cidade,

Panorama. Eles foram maravilhosos comigo e até hoje ajudam

a todos aqueles que estão

num momento difícil como

eu passei naquela época.

Não deixam faltar nada.

Pois bem, com a ajuda de-

les, de minha mulher, filhos e

do Hospital Amaral Carvalho, saí

curado. Uma pessoa por quem tam-

bém tenho carinho especial é o doutor

Renato Machado, médico que me atendeu

na instituição. Tornou-se quase um membro da

minha família, pela amizade e carinho que cultivamos. Desde a

cirurgia, nunca mais tive nenhum sinal da doença, e olha que já

faz quase 15 anos. Mas tive acompanhamento do Amaral Carvalho

desde então. Até hoje, de seis em seis meses, eles entram em con-

tato para saber se está tudo bem.

Hoje sou um homem saudável que está sempre trabalhando.

Tenho uma pequena chácara e estou sempre lá, na labuta, com

a mão na enxada, no lugar que mais me sinto bem no mundo:

entre hortas e galinhas. É o lugar em que gosto de estar. Agra-

deço por ter saúde e por poder levar meus últimos anos de vida

com dignidade e alegria.

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