alienação separação e a travessia da fantasia

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    Opo Lacaniana online nova srie 1 Alienao, separao e travessia...

    Opo Lacaniana online nova srie

    Ano 1 Nmero 1 Maro 2010 ISSN 2177-2673

    Alienao, separao e travessia dafantasia1

    Marcos Bulco Nascimento

    Em termos gerais, pode-se dizer que o processo de

    alienao correlativo ao fato do encontro do indivduo

    com a linguagem, com uma linguagem que o precede, que a

    estava antes de ele existir. Uma linguagem cujas regras e

    cdigos esto j definidos, no tendo tido o sujeito nenhum

    papel em sua constituio. Essas leis lhe so exteriores, e

    preciso conformar-se a elas caso se queira obter o

    reconhecimento do Outro falante. Com efeito, ser esse

    Outro que lhe ensinar a servir-se da linguagem, Outro quefornecer todos os significantes necessrios a tal

    utilizao.

    Por outro lado, podemos dizer que o encontro do

    indivduo com o Outro se faz a partir da experincia de

    satisfao originria. o Outro que realiza para ele a

    ao especfica e coloca fim tenso da necessidade. Sua

    interveno, todavia, tem como consequncia algo mais doque a eliminao do desconforto do recm-nascido. De fato,

    a criana se alimenta tanto de palavras quanto de po2.

    Ou seja, a criana vai registrar dessa experincia

    fundamental tanto os traos mnmicos do objeto quanto as

    palavras pronunciadas na ocasio. Essa interveno do Outro

    implicar desde ento a insero da criana na ordem

    simblica, ordem de troca de significantes. A primeira

    participao da criana nessa troca simblica se faz

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    atravs de seu grito, o qual se torna significante a partir

    do momento em que o Outro o acolhe como uma mensagem.

    esse ato, essa resposta do Outro, o responsvel pela

    mutao significante.

    O grito, como significante primitivo, desempenha

    vrias funes. Em primeiro lugar, por exemplo, o grito nos

    serve para ter uma primeira ideia do objeto hostil. Com

    efeito, temos a tendncia a esquecer as sensaes corporais

    de dor; deste modo, sem o grito que o objeto desagradvel

    nos faz soltar, no teramos um meio seguro de identificar

    o que nos causou dor e, portanto, de evitar uma nova

    ocorrncia do evento desagradvel. O grito desempenha uma

    funo de descarga, e tem o papel de uma ponte no nvel da

    qual alguma coisa do que se passa pode ser capturada e

    identificada na conscincia do sujeito.3

    Em segundo lugar, o grito tem a funo de apelo, de

    demanda de satisfao ao Outro. Ora, na medida em que ele

    s se faz escutar como apelo quando o objeto no est l, o

    grito pode assumir a funo propriamente significante de se

    referir a alguma coisa que falta, que est ausente4.

    Finalmente, na medida em que serve para chamar o Outro, o

    grito torna-se a primeira ao especfica do sujeito e

    assim serve para representar o sujeito para os outros

    significantes.

    Temos aqui o par mnimo da cadeia significante: S1-S2.

    S1 como o substituto do grito, primeiro significante dosujeito; S2como o significante da resposta, o significante

    que faz do grito mesmo um significante5. Ora, dizer que

    S2 que transforma, a posteriori, o grito em um

    significante, equivale a dizer que S2 que inaugura a

    funo propriamente de significao da linguagem. Em outros

    termos, no seno aps ter tido lugar a resposta do Outro

    que podemos realmente afirmar que houve algo como uma

    mensagem, um apelo. S2, portanto, o vetor semntico, j

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    que ele que d, retroativamente, sentido a S1. A dimenso

    do sentido est assim na articulao de S1-S26. Dessa forma,

    no somente o fato de tomar S1como representante, mas

    sobretudo o fato de articul-lo a S2o que produz sentido

    e, em consequncia, alienao7.

    Examinemos agora como isso se passa em termos da

    articulao entre sujeito e o Outro. Representemos a

    interao entre eles atravs dos seguintes diagramas:

    Diagrama 1

    O que podemos ver que esse diagrama pode ser obtido,

    na verdade, a partir de dois crculos ou dois conjuntos: o

    conjunto do sujeito, forosamente vazio, e o conjunto do

    Outro, onde se alojam todos os significantes e smbolos da

    linguagem.

    Diagrama 2

    Ora, dizer que o conjunto do sujeito era vazio antes

    do encontro com o Outro significa precisamente que o

    sujeito criado pelo fato desse encontro, pelo fato de que

    ele toma um significante (S1) do Outro e o utiliza para se

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    representar junto aos outros significantes (S2). Mas o que

    isso quer dizer, que S1 cria o sujeito? Significa, em

    outros termos, que o sujeito fundado a partir dessa

    nomeao do vazio, dessa materializao da ausncia.

    Portanto, o significante a primeira instncia

    diferenciada, o elemento que retira o ser do real ao

    delimit-lo8. Isso quer dizer que o campo do ser se

    inaugura e se instaura quando barreiras, limites so

    impostos indiferenciao do real. Ora, so exatamente os

    significantes que vo primeiramente distinguir um dentro

    de um fora, algo que est presente de algo que est

    ausente9, de onde vemos que a ontologia nasce com o

    discurso. Podemos mesmo chegar ao ponto de identificar o

    campo do ser ao campo do discurso10.

    Isso nos conduz a uma concluso muito importante. Se

    afirmamos que o campo do discurso, o campo do ser, aquele

    do significante, do Outro, quer dizer que o campo oposto,

    aquele do sujeito, , enquanto tal, estritamente condenado

    ao silncio, e mesmo desapario. Dito de outra forma,S1, ao mesmo tempo em que cria o sujeito, ele o apaga:

    quando o sujeito surge de um lado como sentido, produzido

    pelo significante, no outro ele aparece como afnise11.

    Sua nica chance de no se apagar completamente , ento,

    no escolher a via do sentido, a via da alienao. Contudo,

    se no a escolhesse, ele terminaria por cair seja no sem-

    sentido(non-sense), seja no silncio12. Da a inverso do

    cogito: eu sou onde eu no penso. Eu penso onde eu no

    sou13. Est a a condio de sujeito essencialmente

    dividido, barrado: o fato de que o sujeito enquanto tal no

    se manifesta seno no intervalo de S1-S2, isto , antesde

    o sentido se constituir, mas depois de um significante ter

    sido capturado.

    a ideia que pode ser apreendida do cogito em seu

    tempo primeiro, isto , o tempo em que h puramente a

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    constatao de existncia (juzo de significao absoluta:

    eu sou isto), sem haver ainda atribuio (juzo em que a

    articulao significante j requerida). O que acontece

    que, em Descartes, a operao de separao primeira,

    enquanto que, em Lacan, ela vem em segundo. Em ambos os

    casos, entretanto, esta operao implica um corte do

    binrioS1-S2.

    O unrio e o binrio: S1 como fora da cadeia (S1/ $

    a / $)

    O que devemos observar aqui a existncia de um tempo

    primeiro, tempo em que no h ainda alienao

    significante. Para que haja alienao, no basta que o

    significante venha do Outro. preciso tambm que haja uma

    concatenao entre os dois plos. a articulao produtora

    de sentido que gera a alienao, o sujeito sendo capturado

    na armadilha e apagado no processo de representao que

    teve lugar no campo do Outro.

    Portanto, se se chega a interromper esse processo

    representativo, quer dizer de articulao entre S1 e S2,

    tem-se sucesso em obter S1 sozinho e, como tal, fora da

    cadeia. Ora, a chave da diferena entre alienao e

    separao reside exatamente na diferena entre S1sozinhoe

    S1formando par com S2. No nvel de S1-S2, S1tem um valor

    articulador, um significante mediador entre o sujeito e o

    Outro. Dito de outra forma, na alienao, h a imerso do

    sujeito no Outro, suas leis sendo respeitadas e o

    reconhecimentosendo desejado e obtido14. De outro lado, S1

    sozinho tem um valor completamente oposto. um

    significante redutor do Outro. um significante que,

    paradoxalmente, se instala, vale, fora do sistema

    significante. E se a cadeia cortada, isto quer dizer queo sujeito no est representado no Outro. Ora, na medida

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    em que o sujeito renuncia sua representao significante,

    isto , renuncia a seu devir significante, que ele

    suscetvel de tornar-se pequeno a. [...] Uma vez que o

    pequeno ano um significante e S1, se um significante

    no um significante como os outros, todos os dois parecem

    partilhar o estatuto de fora de cadeia, e portanto no

    articulados aos outros significantes15.

    Vejamos o diagrama da separao:

    Diagrama 3

    , com efeito, o encontro do sujeito como o objeto a,causa de seu desejo, que lhe permite realizar o corte de

    S1-S2, e fazer de S1 o significante de sua diferena

    fundamental, diferena pura, irredutvel. Ora, o que

    acontece que S1 sozinho no pode ser apenas um

    representante pontual do sujeito, ou seja, ele s pode

    indicar a presena do sujeito numa frase de significao

    absoluta: tu s isto. Esta frase tem uma significao

    absoluta na medida em que ela no tem seu sentido ou

    decifrao nas mos do Outro. Ora, se o Outro no tem

    nenhuma influncia a, isso significa imediatamente que o

    que a revelado exatamente o que mais ntimo ao

    sujeito, sua verdade mais particular. Vemos, portanto, a

    estreita associao entre essa verdade e o objeto a: o

    objeto a, como ligado ao mais ntimo desejo inconsciente do

    sujeito, propriamente o produto dessa revelao, o que

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    surge por trs das insgnias que ocupam o lugar do Um(S1)

    e que representam o sujeitoparaos outros significantes.

    Cortado o para da relao, no resta ao sujeito seno ser

    representado por sua prpria falta, ndice de gozo:

    a/$16.

    Separao e travessia da fantasia

    A passagem do sujeito alienado ao sujeito separado tem

    outras implicaes. Em primeiro lugar, ela implica uma

    delimitao entre o sujeito do inconsciente e o eu (moi).

    Ns vemos, efetivamente, que o sujeito do inconsciente (je)

    est do lado da verdade evanescente, do S1sozinho e fora

    da cadeia. Por outro lado, o euest do lado do Outro, da

    cadeia articulada, do discurso intersubjetivo e da verdade

    caucionada por um pacto institucionalizado. A oposio

    profunda entre o sujeito do inconsciente (o je) e o moi

    revela-se assim por via da operao de separao, a qual

    faz aparecer no apenas outro tipo de verdade, mas tambm

    outro tipo de demanda, uma demanda desconectada do Outro.

    Ora, esse movimento de desenraizamento do Outro,

    trazido pela operao de separao, coincide com a

    travessia da fantasia, a segunda implicao que queremos

    examinar. A fantasia, veremos, ser o instrumento

    privilegiado para decifrar as diferenas e as conexes

    entre o jee o moi, e entre este e o gozo.* * *

    O que a fantasia? A fantasia, propriamente falando,

    constitui-se como uma defesa contra o real. Ela uma

    espcie de tela que dissimula o encontro com o real e o

    torna suportvel para o sujeito. Em outras palavras, h

    algo que vem do real que intolervel ao sujeito, algo que

    ele deve mascarar, obturar. Essa coisa a castrao, a

    falta primordial que bate porta do sujeito desde seus

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    primeiros momentos de existncia. Com efeito, em razo do

    fato de que o objeto de satisfao falta (por exemplo, o

    seio da me), que a criana se torna um sujeito desejante.

    Se a me estivesse sempre l, o sujeito no adviria jamais,

    pois no haveria o movimento inaugural da demanda. Suprido,

    o indivduo permaneceria no estado de perptua inrcia.

    Vemos assim que a castrao e a alienao se implicam

    reciprocamente, pois a primeira que impulsiona o sujeito

    a ir de encontro ao Outro17.

    O objeto falta, e o sujeito vai justamente homologar

    esta perda do objeto formando uma fantasia. Assim, nesse

    primeiro momento, a fantasia no mais do que a

    representao imaginria do objeto perdido. Esse objetoque

    serve de suporte fantasia ento o objeto que causa e

    coloca em movimento o desejo do sujeito. O objeto da

    fantasia o objeto a, o que bem indicado por seu matema:

    $a18.

    Contudo, a fantasia no somente uma formao

    defensiva, um resultado de um mau encontro com o real, umefeito desse desejo primitivo do objeto perdido. A fantasia

    tambm a matriz dos desejos atuais. Atravs da fantasia,

    toda a realidade do sujeito vai ser mesmo atravessada pelo

    desejo, pois ela enquadra, emoldura a realidade. Dito de

    outro modo, podemos tambm ver na fantasia uma funo

    organizadora da realidade humana e, enquanto tal, a

    fantasia no somente uma funo puramente imaginria, mas

    tambm uma funo simblica19. Seu matema deixa entrever

    isso sob a forma desta barra ($) que divide o sujeito para

    sempre, que a marca de sua entrada na linguagem e seu

    assujeitamento a ela. Dessa maneira, a fantasia o

    conceito que permite amarrar os trs registros: o simblico

    (representado pela barra do $), o imaginrio (pequeno a) e

    o real (pequeno a)20.

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    Todavia, no somente com a pulso e com o sujeito do

    inconsciente que a fantasia tem relaes. Ele as tem tambm

    com o eu. Com efeito, a relao da fantasia com a pulso21

    e com o sujeito do inconsciente revelou-se imediatamente,

    j que a fantasia se colocou precisamente como uma espcie

    de roupagem e de vu da pulso. Realmente, se a fantasia

    pode ordenar a relao do sujeito realidade, porque ele

    emoldura a correlao do sujeito com o gozo.

    * * *

    Contudo, necessrio examinar agora a relao da

    fantasia com o eu, com a instncia psquica encarregada

    precisamente de modificar o mundo para obter satisfao.

    O sujeito do inconsciente o verdadeiro sujeito do

    desejo, o verdadeiro portador das ambies pulsionais. O

    eu, por outro lado, a interiorizao, num certo sentido,

    das leis da linguagem, das leis do Outro. Ele o

    representante de uma lei exterior, de uma lei estranha e

    estrangeira. Dessa maneira, quando o eu tenta organizar os

    modos de satisfao do sujeito via alterao real do mundoexterior, ele vai faz-lo encontrando um compromissoentre

    as exigncias das pulses e as do Outro. Em outras

    palavras, o eu tentar satisfazer as pulses semarriscar

    perder o amor do Outro.

    A necessidade desse compromisso remonta ao aprendizado

    fundamental do eu, por ocasio de suas primeiras

    experincias. De fato, o eu aprendeu que a satisfao vinhasempre do Outro. Ora, sendo assim, o eu acabou por

    confundir o objetivo de encontrar satisfao com a

    obedincia ao Outro, ele acabou por confundir a procura de

    satisfao pulsional com a procura de amor. Dito de outro

    modo, o eu chegou concluso de que, se a satisfao vinha

    sempre do Outro, era preciso ento t-lo em alta conta, era

    preciso respeit-lo, obedecer-lhe, na inteno de obter

    dele a garantia da satisfao futura.

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    Dessa maneira, o eu vai barrar, impedir toda moo de

    desejo que precisamente comprometa o respeito e o amor do

    Outro. E eis a o paradoxo humano: a fim de garantir a

    satisfao (segura), ele se priva da satisfao (imediata).

    Ele a impede porque fica preso na armadilha, na iluso de

    que ele no pode obter satisfao seno atravs do Outro,

    atravs de seu desejo, de sua legitimao e reconhecimento.

    O eu, assim, aprende a sacrificar a pulso pelo amor.

    Ensinou-se ao eu a renunciar ao prazer do erotismo para

    poder ser amado. O que se passa ento uma interiorizao

    do Outro, de suas prescries e de suas proibies. O eu

    como a voz do Outro, seu intrprete interno. Ele o

    sujeito identificado aos ideais do Outro. o que permitiu

    a Lacan instalar, na sua teoria, no lugar do eu, a

    linguagem e suas leis, a linguagem e sua articulao

    estrutural.

    * * *

    Porm, por que dissemos justamente que seria o

    conceito de fantasia que serviria de ponte entre a questodo sujeito e por trs dela, aquela do gozo e o eu? Pura

    e simplesmente porque o objeto da fantasia precisamente o

    que se pe entre o objeto da pulso e o objeto do eu,

    entre a pura vontade de gozo e a demanda desesperada de

    amor.

    Com efeito, atravs da fantasia fundamental que as

    exigncias pulsionais encontram sua dimenso psquica emtermos de contedo organizado, contedo que ser utilizado

    pelo eu para fazer face realidade intolervel. A

    fantasia fundamental , dessa forma, no apenas uma espcie

    de guia de interpretao dos eventos que atingem o aparelho

    psquico, mas tambm um meio de acessar o gozo. assim que

    a fantasia desempenha o duplo papel de dar testemunhode um

    mau encontro com o real e de fornecero material a partir

    do qual a realidade pode tornar-se de novo um espao

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    habitvel22. Em outras palavras, por causa da fantasia

    que todo encontro com o real deixa de ser impossvel de

    suportar.

    Essa ligao entre a pulso, a fantasia e o eu mostra-

    se ainda mais clara no caso da satisfao sublimatria, na

    qual o eu consegue precisamente conjugar as exigncias do

    Outro (sua demanda de ser amado) e as exigncias da pulso.

    Essa conjugao possvel justamente quando os objetos

    fantasmticos que mobilizam a libido encontram tambm uma

    aprovao da sociedade, quer dizer, quando so socialmente

    valorizados23.

    * * *

    Isso dito, o que podemos constatar que o eu, por si

    mesmo, no tem o que se poderia chamar uma vontade

    prpria. Se o eu luta para manter um compromisso entre a

    pulso e o Outro, recusando muitas vezes pulso um meio

    de se satisfazer, isto assim apenas pelo fato de que o eu

    o resultado de um argumento falacioso, aquele que diz

    que, para obter satisfao, preciso de incio renunciar a

    ela.

    Vemos assim que o eu um falsosujeito, j que ele

    deseja, propriamente falando, nada. Ao contrrio, a demanda

    de amor do eu no um verdadeiro desejo e tem apenas uma

    s raiz: a pulso, sua exigncia de gozo. Em outras

    palavras, porque o eu quer garantir a satisfao

    pulsional que ele se torna escravo das leis do Outro. Aofazer isso, o eu parece mudar de mestre, mas na verdade no

    h seno um e nico mestre: a pulso. Assim como h apenas

    um nico e verdadeiro sujeito desejante, o sujeito do

    inconsciente.

    De fato, se retomarmos nossas construes iniciais,

    lembraremos que a pulso visa apenas satisfao: a

    satisfao, a qual s pode ser obtida atravs da repetio

    do percurso do trilhamento primordial. Eis a a realidade

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    da pulso e a nica realidade verdadeiramente irredutvel

    do sujeito: a pulso exige a repetio deste caminho, e

    tudo. Nada mais importa.

    Contudo, pareceria um pouco drstico afirmar isso

    desta forma, j que a partir do exame do funcionamento do

    aparelho psquico se tornou claro que a forma pela qual

    esse caminho percorrido muito importante. Sim, pois

    caso contrrio, se estaria mesmo correndo o risco de

    alucinar at a morte. Ora, est a justamente o ponto

    irredutvel de todo sujeito humano. A pulso uma pulso

    de morte, a qual ordena a repetio a todo custo. Mas,

    ento, por que samos deste circuito alucinatrio? De uma

    maneira acidental, poder-se-ia dizer. Prematuros e

    incapazes de fazer qualquer coisa em prol de nossa prpria

    sobrevivncia, acontece de um outro ser humano nos salvar a

    vida. Vimos o dia entre seres que tomam a seu encargo a

    sobrevivncia dos recm-chegados. Com essa ajuda do Outro,

    temos nossas primeiras necessidades satisfeitas, e a

    partir desse fato, desse movimento do Outro em nossadireo, que os caminhos de satisfao pulsional vo

    inscrever-se em nosso sistema mnmico. Desse modo, porque

    dependemos do Outro para sobreviver que acabamos por

    construir caminhos de satisfao que se desviam, pouco a

    pouco, da estratgia rpida, direta e suicida da alucinao

    indefinida.

    Essa relao de dependncia tem uma consequncia ainda

    mais ampla quando pensamos que ela nos inscreve num sistema

    de troca simblica e nos obriga a utilizar palavras para

    nos referirmos a objetos, significantes para descrever

    sensaes e para determinar objetivos. O que deveria ser um

    simples meio de retardamentoda obteno de satisfao (no

    alucinar at a chegada da boa percepo) acabou por se

    transformar num longo desvio cheio de curvas sinuosas. Ora,

    justamente esse desvio que constitui o que propriamente

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    humano, e esse sujeito humano que despertou o interesse

    de Freud e depois o de Lacan. Esse sujeito que no sabe

    nada sobre seus desejos fundamentais e cuja nica

    possibilidade de aceder a eles se oferece por meio de

    remanejamentos sucessivos de suas inscries mnmicas.

    por isso que a psicanlise utilizar uma tcnica que se

    centra na palavra, j que somente atravs dela que

    podemos penetrar um pouco mais nesse terreno pouco

    desbravado. A revoluo freudiana consiste exatamente nesta

    descoberta de que o sujeito humano desconhece seu desejo

    irredutvel. Assim advertido, ele poder ter uma escuta

    especial na sua prtica clnica, uma escuta que tem sua

    ateno dirigida para o que se repete, para o que se

    traveste, se transforma, mas sempre persiste e retorna.

    nesta insistncia que Freud vai reconhecer os desgnios da

    pulso e poder tentar empreender a cura. Cura,

    entretanto, no significa aqui dar ou restituir ao sujeito

    a liberdade absoluta com relao a seus caminhos de

    satisfao, mas apenas lhe permitir certa mobilidade no queconcerne a todo acesso possvel a esses modos de

    satisfao. A cura psicanaltica no visa restituir ao

    sujeito o poder total de seu destino e de seus desejos, mas

    apenas dar-lhe a possibilidade de trabalhar, de agir sobre

    um terreno de contingncia, sobre uma pequena brecha que se

    abre no real pulsional.

    por isso que todo o trabalho analtico se centra na

    abordagem da fantasia, porque por seu intermdio que o

    sujeito pode aceder ao seu prprio gozo e esperar, a partir

    da, uma mudana no mesmo. A cura psicanaltica no visa,

    assim, nada seno dar ao sujeito a chance de fazer sua a

    sua prpria verdade, fazer seu o seu prprio estilo. Um

    estilo que vem sobretudo do objeto pequeno a, e no um

    estilo importado do Outro. O que a cura visa a

    travessia da fantasia, esse movimento que implica a

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    assuno da falta fundamental, a assuno de um

    significante que no adquire significao seno por relao

    ao objeto causa de desejo; em uma palavra: este movimento

    que implica que o sujeito possa renunciar sua

    representao significante e tornar-se ele mesmo pequeno a.

    1 Texto adaptado, retirado do livro A Constituio da Realidadeno Sujeito, fruto da minha dissertao de D.E.A. defendida em julho de1998, na Universit de Paris VIII, ttulo posteriormente convalidado,em maro de 2001, ao de Mestre pela Universidade de So Paulo(FFLCH/USP). Nascimento, M.B. (2007). A Constituio da Realidade noSujeito: Psiquismo, Real e Epistemologia. Salvador: Edufba.2 Lacan, J. (1994[1956-57]). Le sminaire, livre IV: la relationdobjet. Paris: Seuil, p. 189.3

    Idem. (1978[1959-1960]). Le sminaire, livre VII: ltique dela psychanalyse. Paris: Seuil, p. 42.4 Idem. (1994[1956-1957]). Le sminaire, livre IV: la relationdobjet. Paris: Seuil, p. 182.

    5 nesse sentido que se pode dizer que o verdadeiro significanteprimeiro S2, j que ele precede logicamente a constituio de S1.Isso quer dizer que S1no significante seno por causa de S2.6 Em Freud tambm, a dimenso do significante, do sentido,pertence ao territrio da articulao entre as representaes.7 O processo de alienao consiste precisamente em que o sujeitose faa representar por um significante para outros significantes. Achave est na preposio para, preposio que indica oassujeitamento s leis do Outro.

    8 Em uma palavra, o significante a primeira substncia. Segundoa teoria de Lacan, somos conduzidos a concluir que a substncia, oser, est do lado do significante, e no do lado do sujeito (o quecorrobora nossa leitura de Descartes, a qual estabelece que no seno no tempo dois do cogito que h a petrificao do sujeito em umasubstncia, a saber, quando Descartes determina que a essncia do meuser o pensamento (articulado). O segundo tempo , portanto, o tempoda alienao, tempo da desapario do sujeito enquanto tal.9 Realmente, a oposio presena-ausncia possivelmente aoposio mais importante da ordem simblica. Com efeito, graas aessa distino que a criana passa da ordem da necessidade quela dademanda. Se a me no se ausentasse jamais, no haveria chance paraque a criana comeasse a desejar, a conceber algo como faltante.10

    Esse mesmo resultado poderia ser atingido por uma outra via, asaber, por intermdio dos termos freudianos. Com efeito, o resultadoda captura do real, do pulsional, indiferenciado e desordenado, aprpria construo de Bahnungen, cuja articulao em rede equivale cadeia significante. Ou seja, aqui como l, h, como resultado daimposio de uma estrutura determinada ao real, a produo de sentido.De fato, ser sobretudo ser nomeado, ser distinguido, ser posto comodiferente de uma outra coisa qualquer. Assim, em Freud, a produo desentido vem como produto da articulao das representaes; em Lacan,a produo do sentido vem como resultado da articulao dossignificantes.11 Idem. (1973[1963-1964]). Le sminaire, livre XI: les quatreconcepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, p. 235.12

    Descartes tambm atinge a verdade primeira do cogito atravsde uma escolha do sentido. Com efeito, a partir da deciso deduvidar que o edifcio do conhecimento pode ruir e dar ocasio

  • 8/12/2019 Alienao Separao e a Travessia Da Fantasia

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    Opo Lacaniana online nova srie 15 Alienao, separao e travessia...

    apario do cogitona sua primeira formulao. Contudo, contrariamentea Lacan, o que Descartes procura, a verdade, justamente o movimentode alienao, movimento em direo garantia do Outro.13 Pensar utilizado aqui no sentido da articulaosignificante entre S1-S2. Isso respeita tambm o texto freudiano, para

    quem pensar era sobretudo articular as representaes. Assim, eu souonde eu no articulo equivale a S1, quando separado de S2, desvela$. Mas se a desapario do sujeito condicionada articulao de S 1e S2, isso quer dizer que S1sozinho no basta para apagar $, o queparece contradizer o que foi dito algumas linhas acima. Este paradoxoser resolvido a partir da noo de separao que d um estatutoespecial condio de S1sozinho, no articulado a S2.14 A noo de reconhecimento , com efeito, essencial. Ela implicaa idia de um pacto, de um consenso ao redor de alguns princpios ouleis, que devem ser obedecidos.15 Miller, J.-A. (2006[1998]). Los signos del goce. Buenos Aires:Paids.16 Esse tornar-se pequeno a propriamente o que Lacan elaborou

    sob a noo de travessia da fantasia.17 Lacan, J. (1966-67). "La logique du fantasme". Aula de18/01/67. (Indito).18 Leia-se: sujeito barradopuno de pequeno a.19 A realidade inteira no nada de outro que uma montagem dosimblico e do imaginrio. Lacan, J. (1966-67). "La logique dufantasme". Aula de 16/11/1966. (Indito).20 Este duplo aspecto (imaginrio e real) do objeto ajustifica-se, de uma parte, pelo fato de que todos os objetos que pretendemassumir o lugar do objeto faltante desempenham um papel de suplncia eportanto um papel imaginrio de preenchimento. De outra parte, oaspecto real do objeto a torna-se evidente quando lembrada suadefinio enquanto mais-de-gozar, quer dizer, enquanto resto

    inassimilvel e entretanto ativo no psiquismo.21 Pois o objeto da fantasia , num certo sentido, tambm o objetoda pulso, o objeto a. Entretanto, o objeto da fantasia no coincidetotalmente com aquele da pulso, j que o objeto da pulso no deveser confundido com as formaes imaginrias da fantasia. O objetopulsional deve ser abordado antes do lado do prazer da boca, do que dolado do seio imaginrio que o suscita.22 Isso quer dizer que o euvai substituir a realidade intolervelcolhendo no mundo fantasmtico o material que suas novas formaes dedesejo exigem.23 Lacan, J. (1978[1959-60]). Le sminaire, livre VII : ltiquede la psychanalyse. Op. Cit., p. 113.