algumavez imaginou ervas daninhas e formigas como ......produtor.háumbenefíciosocial...

2
74 Sociedade V estiu a roupa de mato e prendeu à cintura a faca afiada. Para o melhor chef do Brasil, Alex Ata- la, há poucos ingredientes proibi- dos na sua cozinha – e por isso passou um sábado a apanhar raí- zes, folhas e cogumelos selvagens na Mata Atlântica, floresta tropical que abrange a costa leste, sudeste e sul do Brasil. “O que faz a dife- rença é a capacidade de conseguir transformar alimentos banais em pratos deliciosos. Na natureza, podemos encontrar tudo o que é preciso para confeccionar uma ementa sofisticada e gourmet”, explica à SÁBADO. Considerado pela revista Time um dos 100 homens mais influentes do mundo em 2013, ficou conhecido pelo prato agridoce de abacaxi e formiga da Amazónia que serve no seu restaurante de luxo em São Paulo – o D.O.M. Quando o desa- fiam a procurar novos ingredientes que possam ser trazidos para den- tro das panelas, raramente diz que não. “Sinto-me uma espécie de Ro- binson Crusoé, ganho anos de vida quando venho para o mato, quando fico em contacto com a terra”, afir- ma durante a caminhada que a SÁ- BADO acompanhou. Desta vez não vai à procura de formigas da Ama- zónia, o ingrediente que mais o sur- preendeu. Esses insectos são trazi- dos directamente do produtor e congelados até duas horas antes de serem servidos à mesa. A formiga “sabe a erva-príncipe com um travo de gengibre”, explica à SÁBADO. Agora é a vez das raízes de alfa- ce, urtigas, dos cogumelos auricu- lária (que crescem no tronco das árvores), da capiçoba (erva dani- nha com flor e folhas usadas como hortaliça), da babosa (planta de aloé vera), da pariparoba (erva medicinal com sabor da pimenta- do-reino, utilizada para a dor de cabeça), dos coentros do chão e palmito (que está dentro do tron- co da palmeira). O passeio na Mata Atlântica, em Paraty, é interrompido por um grito: REPORTAGEM. FESTIVAL GASTRONÓMICO COM INGREDIENTES DA MATA ATLÂNTICA REFOGADO DE URTIGA Alguma vez imaginou ervas daninhas e formigas como uma iguaria gourmet ?O chefbrasileiro 1 O chef com o botâ- nico Jorge Ferreira à procura de ervas na Mata Atlântica 2 Nem todas as plan- tas e cogumelos se podem provar. Quanto mais colo- ridos, maior a pro- babilidade de se- rem venenosos 3 A preparar o prato principal: urtigas refogadas com co- gumelo auriculária 1968 Milad Alexandre Mack Atala nasceu em São Paulo, no Brasil, a 3 de Junho. Tem 46 anos. 1987 Foi na escola de Hotelaria de Namur, na Bélgica, que Atala iniciou a sua carreira. Tinha 19 anos. Trabalhou como chef em França e em Itália. 1999 Aos 31 anos abriu o D.O.M. En- tre os pratos mais famosos está esta sobremesa de for- miga com abacaxi. Este ano o restaurante foi considerado o terceiro melhor da América Latina. DatasdavidadeAtala O chefbrasileiro está entre os melhores do mundo 1 2 “A DIFEREN- ÇA É TRANS- FORMAR ALIMENTOS BANAIS EM PRATOS DE- LICIOSOS”, DIZ ATALA

Upload: others

Post on 08-Jul-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Algumavez imaginou ervas daninhas e formigas como ......produtor.Háumbenefíciosocial eambientalnestatrocaquefa-3 5 6 4 4e5 Oalmoçofoi cozinhadonum fogãoa lenha com oquefoi colhidodurantea

74

Sociedade

Vestiu a roupa de mato eprendeu à cintura a facaafiada. Para o melhorchefdo Brasil, Alex Ata-

la, há poucos ingredientes proibi-dos na sua cozinha – e por issopassou um sábado a apanhar raí-zes, folhas e cogumelos selvagensna Mata Atlântica, floresta tropicalque abrange a costa leste, sudestee sul do Brasil. “O que faz a dife-rença é a capacidade de conseguirtransformar alimentos banais empratos deliciosos. Na natureza,podemos encontrar tudo o que épreciso para confeccionar umaementa sofisticada e gourmet”,explica à SÁBADO.

Considerado pela revista Time umdos 100 homens mais influentes domundo em 2013, ficou conhecidopelo prato agridoce de abacaxi eformiga da Amazónia que serve noseu restaurante de luxo em SãoPaulo – o D.O.M. Quando o desa-fiam a procurar novos ingredientesque possam ser trazidos para den-tro das panelas, raramente diz quenão. “Sinto-me uma espécie de Ro-binson Crusoé, ganho anos de vidaquando venho para o mato, quandofico em contacto com a terra”, afir-ma durante a caminhada que a SÁ-BADO acompanhou. Desta vez nãovai à procura de formigas da Ama-zónia, o ingrediente que mais o sur-preendeu. Esses insectos são trazi-dos directamente do produtor econgelados até duas horas antes deserem servidos à mesa. A formiga“sabe a erva-príncipe com um travode gengibre”, explica à SÁBADO.

Agora é a vez das raízes de alfa-ce, urtigas, dos cogumelos auricu-

lária (que crescem no tronco dasárvores), da capiçoba (erva dani-nha com flor e folhas usadascomo hortaliça), da babosa (plantade aloé vera), da pariparoba (ervamedicinal com sabor da pimenta-do-reino, utilizada para a dor decabeça), dos coentros do chão epalmito (que está dentro do tron-co da palmeira).

O passeio na Mata Atlântica, emParaty, é interrompido por um grito:

REPORTAGEM. FESTIVAL GASTRONÓMICO COM INGREDIENTES DA MATA ATLÂNTICA

REFOGADODEURTIGAAlguma vez imaginou ervas daninhas e formigas como uma iguaria gourmet? O chefbrasileiro

1O chefcom o botâ-nico Jorge Ferreiraà procura de ervas

na Mata Atlântica

2Nem todas as plan-tas e cogumelos se

podem provar.Quanto mais colo-ridos, maior a pro-

babilidade de se-rem venenosos

3A preparar o prato

principal: urtigasrefogadas com co-gumelo auriculária

1968 Milad Alexandre Mack Atalanasceu em São Paulo, no Brasil,a 3 de Junho. Tem 46 anos.

1987 Foi na escola de Hotelariade Namur, na Bélgica, que Atalainiciou a sua carreira. Tinha 19 anos.Trabalhou como chefem França eem Itália.

1999 Aos 31 anos abriu o D.O.M. En-tre os pratos mais famosos estáesta sobremesa defor-miga com abacaxi.Este ano o restaurantefoi consideradoo terceiro melhor daAmérica Latina.

DatasdavidadeAtalaO chefbrasileiro está entreos melhores do mundo

1

2

“A DIFEREN-ÇA É TRANS-

FORMARALIMENTOSBANAIS EM

PRATOS DE-LICIOSOS”,DIZ ATALA

Page 2: Algumavez imaginou ervas daninhas e formigas como ......produtor.Háumbenefíciosocial eambientalnestatrocaquefa-3 5 6 4 4e5 Oalmoçofoi cozinhadonum fogãoa lenha com oquefoi colhidodurantea

www.sabado.pt8 JANEIRO 2015

75

GASÉPRATODELUXOAlex Atala explica como. Por Sofia da Palma Rodrigues (texto) e Ricardo Venâncio Lopes (fotografia), no Brasil

“Nunca faça isso! Há muitos cogu-melos venenosos que podem ma-tar”, alerta o botânico Jorge Ferreiraquando Alex Atala leva à boca umaespécie ainda não catalogada. Jorgeé um dos maiores conhecedores deplantas e cogumelos comestíveisdesta região. É ele que marca o pas-so e diz o que se pode, ou não, ex-perimentar, antes de fazerem umaaula de culinária no festival FoliaGastronómica, em Paraty.

Salada de hibiscos e raízesOs cogumelos com cor mais fortesão quase sempre venenosos. Be-los, bonitos e viçosos, podem ma-tar uma pessoa em poucas horas.A princípio, apanhar do chão raí-zes, plantas e fungos pode pare-cer estranho. Depois, a curiosida-de ganha terreno e o perigo énão controlar a vontade de ex-perimentar os diferentes aro-

vorece as duas partes. Quando vaisao encontro de uma pessoa queestá diariamente em contacto coma terra, ela mostra-te ingredientesque para ela são banais mas que tununca tinhas visto e te permitirãoinovar na cozinha”, defende Atala.

Há dois anos que Jorge Ferreira e ochefbrasileiro trabalham juntos. Jor-ge cresceu na Mata Atlântica. Paraele, comer urtiga, tendões de alfaceou ervas selvagens não é uma novi-dade, mas diz estar “muito feliz” porconseguir fazer esta ponte entre anatureza e a cozinha. O botânicoleva inovação e exotismo para a co-zinha de Atala e recebe em trocaapoio para continuar a investigar.

“A relação da colecta com a entre-ga e a preparação do alimento é noque é mais preciso investir. A partirdo momento em que me relacionocom chefs que desejam ter os pro-dutos que investigo na sua cozinha,preciso de criar uma rede entre elese os produtores locais. Há cogume-los e plantas que não podem ficarmais de duas horas colhidos. No fu-turo, quero fornecer produtos fres-cos às cozinhas dos grandes chefs”,ambiciona Jorge Ferreira.

Ao fim do dia, Alex Atala e o bo-tânico reúnem-se para dar umaaula de culinária no festival FoliaGastronómica, em Paraty. Deze-nas de pessoas juntam-se na pra-ça da cidade do estado do Rio deJaneiro para ouvirem dicas de cu-linária e aprenderem a variar aalimentação com produtos da ter-ra. “A Mata Atlântica é um grandecentro comercial, só que aqui nãopassamos cartão de crédito”,brinca Alex Atala. W

mas até então desconhecidos.Alex Atala leva ao pescoço um as-

sobio que imita o chilrear de umpassarinho. Quando chegamos aoSítio São José – a quinta onde o paide Jorge cultiva espécies caracterís-ticas da região como forma de pre-servar a mata nativa – sopra-o trêsvezes. “Eu sou um jaó [pássaro]”, diza cantarolar. É ali que, num fogão alenha, cozinha os ingredientes quecolhemos durante as quase duashoras de caminhada. Salada de pal-mito, raízes de alface, erva espontâ-nea, hibisco e rabanete como entra-da. Urtigas refogadas com cogumeloauriculária e feijão de manteiga comabóbora, coentro do chão e alho, re-gados com molhos de tomate, foramos pratos principais.

“O cheftem de conhecer o traba-lho do botânico, do agricultor, doprodutor. Há um benefício sociale ambiental nesta troca que fa-

3 5 6

4

4e5O almoço foi

cozinhado numfogão a lenha com

o que foicolhido durante a

caminhada naMata Atlântica

6Os ingredientespassaram todos

pelas mãos de Atala

7O chefAtala dizque as formigas

sabem a erva--príncipe com umtravo a gengibre

7