algarve recria "arca de noé" das árvores de fruto
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Artigo do jornal "Público".TRANSCRIPT
Tiragem: 42175
País: Portugal
Period.: Diária
Âmbito: Informação Geral
Pág: 22
Cores: Cor
Área: 26,85 x 30,75 cm²
Corte: 1 de 1ID: 45244923 16-12-2012
VASCO CÉLIO
Algarve recria “arca de Noé” das árvores de fruto
Nos últimos anos, já foram identificadas 41 variedades de alfarrobeiras. Uma delas está a ser utilizada no Algarve como planta ornamental
Cabrita Vieira é o que se pode cha-
mar um agricultor que “sabe da po-
da”. No meio do campo, a enxertar,
move-se como um cirurgião no blo-
co operatório. “A ferramenta (faca
de dois cortes paralelos) fui eu que
a fi z”, afi rma. Da operação resultam
alfarrobeiras que, ao fi m de três ou
quatro anos, dão fruto.
O agricultor/viveirista é um dos
elementos que estão a colaborar
com a direcção regional de Agri-
cultura para criar uma espécie de
“arca de Noé” do Algarve — um cam-
po experimental onde se recolhem
as espécies tradicionais, em vias de
extinção, procurando assegurar a
sua manutenção futura. Só no que
respeita a fi gueiras, já foram conta-
bilizadas 92 variedades. Amendoei-
ras foram 86 e alfarrobeiras 41.
A recolha e a selecção, desenvol-
vidas por uma equipa de sete agró-
nomos, começaram há cerca de um
ano, prevendo-se que o programa
termine em 2015. Um trabalho “no-
tável” é como o agricultor António
Neto o classifi ca, a pensar na preser-
vação e multiplicação das centenas
de espécies que estavam em risco
de se perderem.
De uma ponta à outra da região,
os engenheiros agrónomos do Mi-
nistério da Agricultua procuram
encontrar árvores que sirvam de
amostra. João Costa, um dos mem-
bros da equipa, fala com entusiasmo
do “fascínio” de um projecto que
tem por objectivo contribuir para
“deixar para as gerações futuras um
património vegetal, criado e aperfei-
çoado ao longo dos séculos”.
Os pêros de MonchiqueA analogia com a “arca de Noé” é
incontornável. “Os pêros (maçãs
pequenas) de Monchique, durante
a Feira de Faro, perfumavam as ruas
da cidade”, recorda. Esta e outras
raridades, salienta, “estão a ser re-
cuperadas, destacando-se da mas-
sifi cação da fruta que chega de todo
mundo, sem cheiro nem sabor”.
O Centro de Experimentação
Agrária de Tavira, com a área de 36
hectares, junta a experiência à in-
vestigação científi ca. No mesmo sen-
tido, na Universidade do Algarve,
Anabela Romano dirige uma equipa
fui a Marrocos, num programa de
cooperação entre os ministérios da
Agricultura dos dois países, ensinar
a enxertar”, acrescenta. Próximo de
Albufeira, António Neto observa as
fi gueiras e amendoeiras, em fase de
hibernação, sublinhando os gestos
das mãos com palavras de lamento.
“Portugal importa fi go da Turquia,
e nós temos aqui fruta tão boa”, ob-
serva. Virando-se para Norte, apon-
ta para a montanha pedregosa e co-
menta: “Plantaram-se pomares de
citrinos, com subsídios, e o pomar
de sequeiro, em terrenos de boa
qualidade, fi cou abandonado”.
Junto de uma amendoeira, apa-
rentemente igual a tantas outras,
descreve as características da ár-
vore. “Foi ela a mãe que deu uma
das variedades que estão em Tavira,
a ser estudadas”, gaba-se.
As variedades, explica João Cos-
ta, “costumavam receber o nome
da localidade ou do agricultor que
as descobriu”. Esta, por exemplo,
passou a ser conhecida como a
variedade “Paderne”. E assim, de
enxerto em enxerto (ou estacaria,
no caso da fi gueira), reconstrói-se
o património genético de uma re-
gião que, mercê do clima, passou
também a produzir frutas tropicais,
deixando esquecidas as romãzeiras,
nespereiras e fi gueiras.
Alfarrobas no AlentejoO agrónomo salienta, no entanto,
que as coisas estão a mudar. “Temos
uma nova geração de agricultores,
virados para as culturas tradicio-
nais, e há novos pomares muito
interessantes.” Cabrita Vieira, por
seu lado, acrescenta que a procura
de alfarrobeiras, que antigamente
se concentrava no Algarve, chega
agora também do Alentejo. Ao todo,
afi rma, já vendeu cerca de 15 mil pa-
ra Mértola, Vidigueira, Aljustrel.
A variedade que recomenda, de
entre as quatro dezenas que tem no
viveiro, é a “cavi” [Cabrita Vieira],
uma espécie que diz ter resultado
de “mais de cinco” experiências que
fez. Sobre as suas características, diz
ser “equilibrada no tamanho e pro-
porção do número de sementes”.
Apesar das múltiplas aplicações do
fruto — os alemães, por exemplo, fa-
zem um sucedâneo de cacau a par-
tir da polpa —, a mais frequente em
Portugal consiste na sua utilização
no fabrico de rações para animais.
Em sentido inverso ao da massifi cação de variedades “sem cheiro nem sabor”, a direcção regional de Agricultura está a desenvolver um projecto que revela cheiros e sabores da fruta de outros tempos
Biodiversidade Idálio Revez
que desenvolve, ao nível biotecno-
lógico, um trabalho sobre a propa-
gação vegetativa in vitro. “Nem to-
dos os enxertadores têm a mesma
precisão na mão”, nota. Por isso é
necessário criar um método que ga-
ranta a “uniformidade genética” das
variedades tradicionais.
O que aconteceu desde há déca-
das com a fl ora algarvia não é dife-
rente do que se passou um pouco
por todo o país – campos desertos
e árvores abandonadas. Mas há ago-
ra um novo olhar para uma região
que “plantou” à beira-mar viven-
das e apartamentos, onde dantes
existiam alfarrobeiras, fi gueiras e
amendoeiras.
Numa zona perto do Algoz (Ar-
mação de Pêra), Cabrita Vieira de-
dica-se ao cultivo das alfarrobeiras
depois de ter trabalhado em citri-
nos durante décadas. De resto, é a
ele que os engenheiros da direcção
regional recorrem para fazer os en-
xertos desta espécie. “Aliás, até já
Alfarrobeiras macho
Novidade nos jardins
A s árvores tradicionais — sobretudos oliveiras — saltaram do campo para a cidade para ornamentar
praças e jardins, depois de as palmeiras importadas do Norte de África começarem a morrer, atacadas pelo escaravelho. “Ainda não descobriram a beleza da flor de uma alfarrobeira macho”, diz Cabrita Vieira, que tem 41 espécies diferentes desta árvore. O viveirista sublinha que “ainda há muito por descobrir”. Sobre as plantas ornamentais, lamenta o facto de os empreendimentos turísticos se encontrarem rodeados de jardins “com palmeiras que vão buscar lá fora, importando pragas e ignorando as coisas bonitas de cá”. A alfarrobeira, explica, “é um arbusto, só é uma árvore se for podada”. Por isso, defende o seu uso na arquitectura paisagista, como planta ornamental. O que é necessário é encontrar “variedades que se adequem ao jardim, que não sejam produtivas”. Os “bravos”, explica, “crescem rapidamente e só dão flor”. No viveiro, conta com a ajuda de três colaboradores que nem sempre apreciam os seus métodos. “Estou sempre a mudar, gosto de experiências”, justifica. Sobre as espécies que tem à sua volta, Cabrita Vieira olha para as folhas, à primeira vista iguais. “Tal como o pastor conhece as ovelhas, eu conheço as variedades”, diz. O agricultor, autodidacta, lembra que até há pouco dizia-se: “Só fica no campo quem não sabe fazer mais nada.” A realidade, acrescenta, “demonstra que o campo precisa de muito conhecimento e capacidade de observação”.