aí em cima

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Aí em cima, no teto do meu banheiro, há duas vigas dividindo um pequeno espaço por onde passa o ar. Essa arquitetura pouco óbvia é uma evidência de um projeto inacabado. Planejávamos construir no banheiro um jardim de inverno, depois tivemos a ideia de pendurar no espaço uma samambaia, daquelas bem verdes, que receberia pela brecha o sol, a chuva e o banho de luar necessários à sua sobrevivência vegetal. Como tudo que fica pela metade, há apenas o buraco, o buraco no teto de onde você me lê, obstruindo a minha visão do céu. Gosto dos projetos inacabados, pois sempre há algo que fica – o rastro, a tinta. Me misturo a textos inacabados – o cheiro da tinta, desperdiçada. Muito aconteceu enquanto você não estava. Conto: Enquanto me banho à noite, posso observar a luz da lua e assim na noite meu banho é duplo – água e luz, sou um ente que quer transcender numa cerimônia que fará meu corpo se espargir junto a elas. Meu corpo será uma massa aquosa e iluminada escorrendo para cima (na noite em que eu transcender). Observo a lua enquanto me banho, e pago o preço do privilégio: também sou observada por ela. Deixo a água molhar os cabelos até que ela pese, e escorra pelas minhas costas e escorra pelo encontro dos seios, descendo pela barriga até atingir os calcanhares. Lavo-me, e, passando a mão entre vértices do meu corpo, ajo como quem tem receio, como quem toca o chão de uma terra nova – faço- o de leve e devagar. De leve e devagar, ensaio meu número

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Conto e carta, Jucely Regis

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A em cima, no teto do meu banheiro, h duas vigas dividindo um pequeno espao por onde passa o ar. Essa arquitetura pouco bvia uma evidncia de um projeto inacabado. Planejvamos construir no banheiro um jardim de inverno, depois tivemos a ideia de pendurar no espao uma samambaia, daquelas bem verdes, que receberia pela brecha o sol, a chuva e o banho de luar necessrios sua sobrevivncia vegetal. Como tudo que fica pela metade, h apenas o buraco, o buraco no teto de onde voc me l, obstruindo a minha viso do cu. Gosto dos projetos inacabados, pois sempre h algo que fica o rastro, a tinta. Me misturo a textos inacabados o cheiro da tinta, desperdiada. Muito aconteceu enquanto voc no estava. Conto:Enquanto me banho noite, posso observar a luz da lua e assim na noite meu banho duplo gua e luz, sou um ente que quer transcender numa cerimnia que far meu corpo se espargir junto a elas. Meu corpo ser uma massa aquosa e iluminada escorrendo para cima (na noite em que eu transcender). Observo a lua enquanto me banho, e pago o preo do privilgio: tambm sou observada por ela. Deixo a gua molhar os cabelos at que ela pese, e escorra pelas minhas costas e escorra pelo encontro dos seios, descendo pela barriga at atingir os calcanhares. Lavo-me, e, passando a mo entre vrtices do meu corpo, ajo como quem tem receio, como quem toca o cho de uma terra nova fao-o de leve e devagar. De leve e devagar, ensaio meu nmero para a lua; ela me assiste curiosa e invasiva no perodo de alta mar ou como um voyeur nos dias em que ela se faz nova. De leve e devagar, cumpro a minha tarefa, e logo todos os interstcios estaro deslizantes... Limpos e molhados (provavelmente pela gua que foi derramada pelo chuveiro). Esse minha aliana com a lua, um pequeno jogo de luz. Das sombras, tambm lhe conto.Foi numa noite em que a lua minguava, indiferente como nunca desde que o buraco apareceu. A gua gelada me vestia de medo e eu me tremia como algum que finalmente para, aps fugir de uma perseguio, mas, ao contrrio, eu tinha frio. Eu tinha muito frio e no tinha o olhar da lua e no poderia ensaiar meu nmero para ela. Cumpri a tarefa como qualquer obrigao, mal tocando os interstcios do corpo, buscando faz-lo o mais rpido e superficialmente possvel. A gua corria invasiva e me levava tudo, inclusive a luz que j tinha sido minha. A gua naquela noite era uma gua pesada e no escuro eu adivinhava a sua cor de lodo naquela noite, a luz havia faltado. Naquela noite, no lavei o pescoo nem os pulsos. Algo estava por vir, e meu corpo j o adivinhava. Eu entrava debaixo do chuveiro, primeiro com a cabea, para me lavar naquela gua lodosa. Eu temia fechar os olhos, mas o ritual me obrigava, pois era preciso lavar o rosto, tirar o leo acumulado do dia, mesmo que fosse com aquele lquido espesso. Para isso, fechei os olhos e apertei bem os lbios. Rapidamente abri-os, pois senti o bafo de uma presena face a face comigo. Quando abri os olhos, no era ningum. Eu no via ningum, no via nada, mas ouvi. Ouo uma respirao bem perto de mim, num ritmo de pulso. De repente, a respirao acelera e parece no s uma respirao. a respirao de um homem que aos poucos vira um suspiro ou um gemido. Ele suspira enquanto me enxerga completamente nua em minha fraqueza. O homem que no tem olhos e tudo v me percorre com seu olhar sedento, to doentio que mais se excita quanto mais me causa horror. Por isso ainda mais suspira. Me inclino como uma velha sobre mim enquanto cumpro o ritual. preciso deixar que a gua escorra at que ela leve tudo. Tudo isso durou s uma noite. Foi nessa noite que o sopro do homem semeou o medo no meu corpo.Ainda h mais a contar; aguarde a que j volto. Fecho a porta do banheiro e saio.J estou de volta. S fui guardar a escada que eu havia esquecido do lado de fora.

3 Na dana dos sete vus, o vu minha pele. E ela no serve de vu. Uma dana com o vu da pele no seria algo sensual de se ver. Concorda?... Garanto que este um texto que far doer.J te disse, no tengo o senso da medida. Qualquer proporo me parece coisa de outro mundo, direta ou inversamente. No sei calcular distncias; ou passo meia hora esperando para atravessar, ou passo no rastro de algum carro, correndo. No sei seguir mapas, confundo pontos de referncia, caduco a perspectiva e troco o direito pelo esquerdo. Estranho o tamanho das coisas (quanto a isso estou tranquila, pois algum me disse que acontece sempre da infncia para a idade adulta estranhar o tamanho dos objetos cotidianos, antes imensos e distantes, depois mnimos e acessveis). Se voc sonha com a biologia, digo que a geografia quem me d pesadelo. Dentre os delrios possveis, fabulo diversas maneiras de me perder. Encontro no caminho cotidiano o perigo de pegar o nibus errado, de trocar o transporte que vai pelo que vem, de esquecer o dinheiro da passagem, de ser deixada ao lu, de descer antes ou depois do ponto parando numa ilha no meio trnsito dirio nada fluido, de estar exposta possibilidade do azar, a vulnerabilidade de alguma violncia, os olhares tortos de quem v meu rastro reforado j foram tantas as histrias que me do variaes de uma mesma: estar perdida.Hoje no te dei garantias sobre te mandar um texto. No poderia prometer e me comprometer. Te disse que escreveria para mim, sim talvez eu no tire esse texto dos meus arquivos. Mas para voc que escrevo. Voc presena, tambm voz que fala comigo.Essa respirao masculina tambm presena, mas presena pesada e triste. Essa respirao fruto de paranoia, algum poderia dizer. Essa respirao remete infncia e relao com meu pai, talvez seja; um trauma que finjo ter esquecido? Um trauma de algo que aconteceria e no foi, mas encontrou na sua antecipao tudo que h de negativo. O que vem antes essa respirao masculina, muito prximo dos meus ouvidos. aquilo que vem antes da anunciao do corpo, e ao mesmo tempo vem de dentro dele, aquilo que vem antes da agresso; a progresso violenta, pesada, que submete, que d calafrio.Essa presena masculina um tipo de sujeira que se grudou na minha percepo e incomoda a minha transa. No consigo fluir (ser que entende?) Algo me amarra, algo se coloca atrs de mim prestes a me atravessar a qualquer momento espada que fere ou golpe rasteiro. A qualquer momento posso me enxergar como a criana cercada no seu espao restrito, paralisada, completamente tomada pelo frio, pelo medo. A qualquer Na dana dos sete vus, h minha pele. Ela no serve. Quem dera ser como a cobra, desprender-me da membrana que me expe tal como o contorno do fogo por trs do vu. A minha pele no serve. Frequentemente me vejo inadequadamente. Digo o que no devia e na hora errada, no acerto o ritmo da piada; estou atrasada ou chego antes. Minha pele no serve de vu; me vejo inadequadamente exposta. Nada escondo graas minha expresso, de rosto, de corpo e de tom. Voc me l, perigoso procurar signos na superfcie. Nem tudo que parece claro s isso; e ningum garantiria (voc que estudava semitica) que sempre h a chuva que anunciava o seu indcio.Acontece que novamente me expus. Corri o risco de fazer a dana enquanto arrancava minha pele. Provei da inconsequncia; veias mostra e uma aposta assustadora no possvel. E uma entrega assustadora a todas as promessas, a tudo o que o momento prometia.