agulhon. 1848-o aprendizado da republica (cap. 1 e conclusao)
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Maurice Agulhon, 1848.TRANSCRIPT
Por que a República?
O ano de 1848 destaca-se na história francesa como uma nova mudança de regime político1 — é esta sua característica mais evidente. A República substitui a Monarquia, ou uma monarquia. Um poder anónimo, mais ou menos coletivo, mas em todo caso amplamente dpsj^rsona1jz_gdri P Hessarrali?aHn vem substituir o reinado de um homem, um Soberano designado e tido como superior simplesmente por nascimento.
Que significa essa forma de poder? Um expediente para garantir o funcionamento do Estado na falta provisória de um monarca, ou seja, uma espécie de regência? Ou um sistema que deve ser escolhido por si mesmo, credor de méritos positivos? A primeira concepção — a de república transitória à espera da restauração da monarquia — não é estranha à história da França. Antecipemos um pouco o curso dessa história: encontraremos esse tipo de república entre fevereiro de 1871 e janeiro de 1879. E sem dúvida já desde 1848 muitos políticos franceses só aceitam a República dentro de tal perspectiva. Contudo, esses republicanos por passividade e por circunstância, republicanos pela força dos fatos — dir-se-ia até "republicanos de amanhã", subenten-
1. Este livro, que aborda um período curto e pleno de experiências políticas, teria necessariamente de centrar-se na política. As transformações económicas e sociais, que se processam em ciclos mais longos, são descritas em La France des No-tables (1815-1848). II. La vie de la nation, de A. Jardin e A.J. Tudesq, e Dc la fête impériale au- mur des federás (1852-1871), de A. Plessis, da coleção "Points Histoi-r e " da editora Seuil. Aqui, merecerão apenas algumas referências.
1848 o aprendunio da Repúblim
dendo-se "da Revolução" no início não são os mais fortes. A República é proclamada a 25 de fevereiro de 1848 em Paris por republicanos "da véspera", calorosos e convictos partidários da República pela própria República.
1 Um debate de história e política
Qual era, então, o sentido de tal aspiração? Nao merecem des taque as referências do exterior, lembranças escolares sobre ci dades livres de Atenas e Roma, nem tampouco o conhecimento dos Estados Unidos da América.
Certamente, Atenas e Roma fa/.em parte da educação bur guesa e os Estados Unidos sensibilizam um público instruído. Mas Demóstenes, Bruto ou Washington fornecem antes modelos de comportamento pessoal do que exemplos constitucionais e poli ticos. Para estes, a principal referência já é de caráter nacional Pensar na República de 1848 significava pensar na Revolução Francesa. Como se escreveu há alguns anos, 1848 e a "primeira ressurreição da Republica" (Henri Guillemin 2)
Imagem e lembrança da Revolução
Resta saber como os jovens de 1848 representavam a Primei ra República Francesa, e de que modo podiam apreciá-la. Tarefa nao muito fácil. O espírito do .Século dds.Luz.es, alibjirxlaJe-piilí
j j r a p a i g n a l H a r i p r i v i l , a m o r i p r n i H a d a das J n s t i t u i ç n P S e O o r g U -
Ihonarippal conwtm-— tudo isso que foi conquistado em 1789 go-dia conciliar-se com um regime monárquica. Foi o que ocorreu de 1789 a 1792, de 1804 a 1814, e voltou a ocorrer a partir de 1830. sob o símbolo da bandeira tricolor e o título de rei (ou impera dor) "dos franceses". Contentar-se com isso nao impedia ninguém de ser, sem perder a honra, filosofo, liberal e patriota Mas ser republicano, invocando a época de 1792-1804, significava que rer algo mais Deixemos de lado os anos do Consulado (1800-1804), em que a monarquia imperial já estava em gestação
liiblii.gi.iíi.i. n " 39
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Deixemos de lado a República do Diretório (1795-1800), cujo fracasso político e social foi patente. Resta-nos a grande época de 10 de agosto, da Comuna e da Convenção. Pode-se sustentar então que sem a exacerbação da energia revolucionária dispendida naquela época, haveria um grande risco de se perderem as próprias conquistas de uma revolução razoável e que era necessário 1793 para salvar e cumprir 1789. Mas tal teoria, hoje banal, ainda não tinha se estabelecido. Por muito tempo, ela foi escamoteada por uma evidência histórica mais forte: a República de 1792 (ano II) que levou a democracia à ditadura popular e o radicalismo ao Terror. Ser republicano era ser partidário da guilhotina e do ma-ximum* um opressor que policia pessoas e bens, um "homem de sangue".
Por volta de 1815, a imensa maioria dos franceses tinha essa imagem grosseiramente simplificadora e fortemente repulsiva da República. Nessa época, entre os que não morreram, nem foram seduzidos pelo oportunismo das monarquias constitucionais, nem sucumbiram ao ceticismo um tanto vergonhoso que "autocen-surava" seu passado, muito poucos eram aqueles que podiam testemunhar — e sobretudo a partir de seu próprio exemplo — os valores positivos da Revolução jacobina. O partido republicano era essencialmente composto por esses homens e suas famílias — conjunto disperso e sem vínculos de pessoas idosas e seus filhos. Para que uma República pudesse tentar renascer em 1830, e consegui-lo em 1848, era preciso que esse grupo informe conquistasse adeptos e adquirisse consistência. Esse avanço pouco nítido da ideia republicana ao longo dos reinados sucessivos da Restauração e do orleanismo foi a primeira das causas políticas da Revolução de 1848.
Muito pouco se sabe sobre o modo como sobreviveram e se difundiram os antigos combatentes da Primeira República. Comparada à abundante literatura suscitada pela legenda de Napoleão, a bibliografia referente à legenda republicana é bem pequena. A figura do velho soldado que Balzac criou em O médico rural está presente na memória de todos; menos notório, porém, é o velho membro da Convenção evocado por Victor Hugo em Os miseráveis (o "bispo na presença de uma luz desconhecida"). É certo que Victor Hugo carrega seus personagens de tão forte sim-
Refere-se ao preço máximo dos géneros de primeira necessidade e ao salário máximo, fixados durante o Terror, assim como à reivindicação de imposição de um máximo ás fortunas. ( N T . )
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bolismo, impondo-lhes imagens tão grandiosamente deformadas, que se torna quase impossível vê-los como tipos sociais representativos. Mas assim como existiram os clássicos demi-solde* do Exército imperial, também existiram antigos jacobinos que se tornaram notários, artesãos ou pessoas que viviam de renda em suas cidadezinhas; e estes, certamente, contavam histórias durante os serões, davam conselhos aos vizinhos e até mesmo participaram (depois de 1831) da política municipal. Fora do âmbito pessoal e familiar, convém ainda ter em mente sua possível influência em associações como lojas maçónicas e sociedades secretas, bem como em pequenos círculos. Nessa convivência com outros livres-pensadores, outros partidários da liberdade política e outros patriotas, os veteranos da República conseguiram atrair para seu ideal alguns orleanistas e até bonapartistas desiludidos.
O papel dos historiadores e da história
Mas a soma dessas influências de memórias individuais não seria suficiente caso a literatura não tivesse criado umajiiejmória çoleJtiyaL É graças à História que nos anos 1840 a República se torna mais conhecida e consegue recrutar adeptos por meios diretos, fora do âmbito restrito dos republicanos sobreviventes e das pessoas a eles ligadas. A História da Revolução já nascera há muito tempo, no período de Restauração, quando os homens da bandeira branca detinham o poder. Contra eles, liberais como Thiers e Mignet defendiam a grande opção de 1789 — a bandeira tricolor e os valores de uma política moderna e racional. Esta linha de defesa da Revolução global exaltava a monarquia constitucional e justificava o parêntese republicano como elo de um encadeamento inelutável, cuja responsabilidade maior cabia à guerra imposta pelo estrangeiro. Contudo, uma vez iniciado o processo de resgate e reflexão do recente passado, já não era possível detê-lo, e se chegaria a estudos mais profundos, mais calorosos e politicamente menos circunspectos. Surgem então, quase ao mesmo tempo (em 1847-1848, período que não chega a dois anos), Uhistoire de la Révolution, de Michelet, Uhistoire des Girondins, de Lamartine, Uhistoire de la Révolution, de Louis Blanc, e Uhistoire
* Militares inativos, que recebiam um soldo reduzido; em particular, ex-combatentes de Napoleão. (N.T.)
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des Montagnards, de Alphonse Jjs^ruãos. Se Louis Blanc sempre associou o elogio do robespierrismo a convicções socialistas, os demais não são tão exclusivistas, e derivam exatamente desse fato sua novidade e sua importância. E m Michelet, assim como em Lamartine, percebe-se que á República não é associada apenas — e talvez nem mesmo em essência — aos poucos meses de ditadura tensa, sombria e por vezes cruel da primavera e do verão do ano II; nota-se que a princípio, em 1792, a República fora o partido dos homens que reavivaram a chama de 1789, quando o rei e a maioria dos antigos constituintes deixavam-na esmorecer. Percebe-se, errr suma, que a República não representou na história da Revolução apenas um parêntese ignominioso e curto, mas sim uma revolução nova, a de 1792, tão estimulante e generosa quanto a de 1789. É o que afirmam Lamartine, da Academia Francesa, o poeta mais célebre da época, e também Michelet, insigne universitário, professor do Collège de France. O partido republicano não precisava do pronunciamento explícito desses escritores a seu favor, pois eles já representavam, quisessem ou não, uma caução moral.
Aliás, a história mobilizada pela Revolução de Julho contra o espírito passadista e retrógrado da monarquia restaurada voltara-se, em todos os campos, contra seu próprio conservadorismo. Durante os primeiros anos de seu reinado, Luís Filipe mandara erguer na Praça da Bastilha o obelisco comemorativo dos combates de julho, dupla homenagem aos combates populares — aos de 1830 por referência explícita, aos de 1789 pela escolha do local. Assim, mantinha-se no próprio coração da Paris operária a lembrança oficial da tradição do recurso às armas. Na mesma época e no outro extremo da cidade — o alto dos Champs-Élysées, eixo do novo desenvolvimento —, o regime terminava a decoração do Arco do Triunfo. Rude esculpira Le départ des volontaires* para exaltar o ímpeto nacional em 1792. Nesse célebre relevo, nada faz lembrar — e com boas razões — a monarquia constitucional. A mulher que lidera a tropa em marcha é, em princípio, o génio da guerra. Mas também pode ser vista como alegoria da República. Não é casual o fato de Le départ des volontaires ser geralmente chamado de A Marselhesa, nome do hino ainda então considerado revolucionário. A "tirania" que ergue seu "estandarte sangrento" era austríaca e prussiana para Rouget de l'Is-
* " A partida dos voluntários." (N.T.)
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le, mas bem depressa as circunstâncias da Revolução permitiram que fosse interpretada em termos de política interna. Mais uma vez o combate patriótico se tornara combate republicano. jSjria muito_djfici]J^^ ca. A incipiente monarquia de julho correra esse risco, ingenuamente, ao erguer na capital do país duas imprudências icnográ-ficas. E é bem sabido que naquele tempo se levavam a sério monumentos e símbolos.
Evidentemente, o que os monumentos franceses demonstram é também simbólico. Com isto queremos dizer apenas que por ter a Revolução Francesa — nascimento da França moderna — sido o que foi, sua trajetória teria de ser reproduzida no dinamismo romântico de sua exaltação. Assim como houve 1792 depois de 1789, a história encaminhou-se para 1848 após ter ensaiado 1830, e o Regime de Julho viria a morrer historicamente depois de ter surgido como a obra da idade áurea dos historiadores. Da mesma forma a República, desconhecida e aviltada trinta anos antes, já possuía no limiar de 1848 um passado honroso, partidários e um lugar na imprensa, na opinião pública e nas tribunas. Em suma, como qualquer outro regime, possuía credibilidade.
O declínio das dinastias
Nem é preciso dizer que as suas oportunidades ganham terreno quando se tornam desacreditadas as soluções que concorrem com elas. Na época, a França dispunha de nada menos que três dinastias. Mas a primeira — a dos Bourbon do ramo mais antigo — estava demasiado identificada à Contra-Revolução, à negação do liberalismo, à preeminência do clero; portanto, as forças vivas do país tendiam a não aderir a ela. Além disso, o conde de Chambord, seu representante, era um príncipe ainda jovem (nascido em 1820), mas deixara a França quando criança e fora educado numa corte estrangeira, dentro de um espírito arcaico. A segunda casa monárquica, a dos Bonaparte, tinha mais chances, uma vez que o Império inseria-se na linhagem da bandeira tricolor, era um prolongamento da República e podia reivindicar parte da glória e da tradição patrióticas. Um Napoleão, contudo, é sempre visto com reservas pelos verdadeiros amantes da liberdade. Por outro lado, o representante dessa dinastia, príncipe Luís
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(nascido em 1808), deixava a desejar. Tratava-se de um homem em plena maturidade, mas tudo que se conhecia dele eram duas imprudências, alguns panfletos não-conformistas, uma fuga prosaica e a vida de dificuldades que levava em Londres. Os sobre-vientes e descendentes dos principais quadros militares e civis do poder imperial sequer cogitavam do príncipe Luís, e estavam, pelo contrário, a serviço de Luís Filipe. A terceira casa monárquica, a dos Orléans precisamente, apresentava problemas bem conhecidos: a idade avançada do rei, cuja capacidade política já declinava; um herdeiro ainda criança, e portanto a perspectiva da regência de um príncipe pouco conhecido e pouco popular; o desgaste e a corrupção do poder; a política de Guizot, que nas eleições de 1846 preferira ligar-se à direita, aliando-se a alguns legitimistas, em vez de se ligar à esquerda, fazendo concessões ao partido da Reforma. Logo, o regime evoluíra em sentido contrário ao de suas origens quase revolucionárias, e transformara-se em puro conservadorismo — conservadorismo empírico, que nenhuma teoria vinha enriquecer, pois a filosofia da ordem era monopolizada pelo legitimismo e pela Igreja. A análise política mostrava, assim, que a República — pelo fato de ter adeptos e pelo enfraquecimento de seus rivais — constituía uma solução.
2. Uma sociedade em crise
No entanto considerações políticas não bastam para explorar todo o terreno das possíveis causas. A Revolução de 1848 ficaria na história francesa como ajgojnuita diferente de uma reedição hgrp-jsiKpHíHa Ha Rpvojnção H P 18.30 Suscitou esperanças que, bem mais que liberais e patrióticas, foram também sociais. E não pretendeu corrigir apenas o funcionamento da máquina política, mas também o da sociedade humana.
O problema operário
Nos anos 1840, é colocada, com efeito, a questão operária. Embora seja difícil determinar com precisão o início de processos objetivos como o advento de máquinas na indústria francesa,
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as concentrações em grandes oficinas, a duração mais longa da jornada de trabalho e todas as novas formas de "pauperismo" daí decorrentes, tampouco é fácil situar as primeiras manifestações grevistas e indícios de organizações pré-sindicais. Não é di-fíaLjJorérn,precisar a data pm que tais rpaljdadps fnrarp rpyp|a-das à opinião pública: isto ocorreu entre 183ILe_184ÍL Os primeiros á revelá-las foram oposicionistas. Republicanos como o dr. Guépin e legitimistas como Villeneuve-Bargemon, devido à sua doutrina filosófica, humanitária ou cristã, certamente inclinavam-se à piedade; e por combaterem o regime, sentiam a tentação natural de imputar-lhe todas as misérias patentes, sobretudo por se tratar de miséria da classe operária, quando o regime se gabava de representar a "classe média", a indústria e os negócios. Mas nem todas as denúncias do mal social vinham da oposição — longe disso. Villermé e Adolphe Blanqui não eram oposicionistas; muito ao contrário, haviam sido levados a estudar o pauperismo exatamente por instância da Academia de Ciências Morais e Políticas, que a Monarquia de Julho queria transformar em centro de estudos avançados, verdadeiro laboratório de reflexão e propostas. Fazíamos ver há pouco que a história se voltara contra o regime dos historiadores; mediante o mesmo esquema, é possível dizer que a economia social se voltara contra o regime dos economistas. É clássico apresentar Luís Filipe em fins dos anos 1840, como vítima do impulso dado por seu próprio reinado à história nacional e ao patriotismo, no início dos anos 1830; é pos-
' sível vê-lo também como vítima de outro de seus estímulos iniciais — incentivo a todo tipo de estudos, à administração positiva que tudo observa e tudo recenseia, desde o montante de impostos territoriais até o número de crianças recolhidas e indigentes amparados. E m suma, à estatística. Um fato é evidente: por volta de 1830-31, nos primórdios das "missões" saint-simonianas, na época em que Charles Fourier envelhecia na solidão e o jovem Auguste Blanqui desprendia-se com dificuldade de seu jacobinismo de Quartier Latin, só uma pequena minoria de excêntricos tinha ideias socialistas. Dez anos mais tarde, a questão social já invadira a imprensa e a literatura. Cinco anos mais, a greve geral dos carpinteiros de Paris apresentava-se como um acontecimento, e o maior orador da oposição, Berryer, ex-paladino da duquesa de Berry, defendia companheiros obscuros perseguidos nos tribunais por delito de coalizão.
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O problema camponês
Sem dúvida, o proletariado era por demais minoritário e o movimento operário por demais incipiente para que pudessem constituir ameaça às instituições vigentes. Mas a questão social não se restringia aos subúrbios das cidades manufatureiras; existia também no campo. No fim do século, um dito de Jules Ferry — impressionante síntese histórica — seria repetido com frequência: a^Primeira-Re^úbJiç^n^ ^a-Terr pira^jo-saber •
Mas se a França de 1900 dava a impressão — embora incompleta — de que existia uma democracia de camponeses-proprie-tários, o fato se devia até certo ponto à Revolução (que procedera à completa expropriação dos bens do clero e à expropriação parcial de bens de emigrados) e em parte também a uma série toda de processos espalhados ao longo do século XIX: desgaste de uma parte substancial das grandes propriedades ainda existentes e o abandono da terra pelos camponeses mais pobres. Ora, essas duas evoluções decisivas ainda mal se esboçavam em 1848; continuava havendo grandes latifúndios, pertencentes a antigos nobres ou a proprietários mais recentes, e o número de proletários nas aldeias era elevado. Aliás, talvez jamais houvesse sido na verdade tão elevado, pois o início da migração para os centros industriais não compensou o crescimento demográfico que ainda prolongava o impulso verificado no século XVIII . E fora de dúvida, porém, que os departamentos* rurais franceses hoje menos povoados atingiram naquela época seu máximo populacional.
A Revolução não pôs fim a todos os conflitos entre ricos e pobres, proprietários e arrendatários, "mestres" e diaristas; tampouco eliminou todos os arcaísmos. Ela aboliu, decerto, a "feu-dalidade", j]iasjw_oJicuiv^i£mp go rural. Continuava sem solução a questão das pastagens aber-
j á s j * * a exploração dos bens comunais permanecia um pomo de discórdia; por fim, e talvez o mais importante, o problema multi-secular dos direitos das comunas rurais, de utilizarem as florestas (antes) senhoriais, continuava a gerar todo tipo de conflito — processos, proliferação de furtos de lenha, tiros que passavam
* Divisão administrativa do território francês. (N.T.) ** E m francês, vaines pâtures, direito que remonta ao século xin, pelo qual os aldeões podiam deixar pastar seus animais nas terras não cercadas, terminada a colheita. (N.T.)
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raspando nos guardas... Cabe até questionar se o acirramento desses litígios — pelo menos em certas regiões — acaso não chegou a atingir a sua intensidade mais forte. A vida dos camponeses pobres sempre depende dos recursos complementares que podem ser buscados nos bosques ou em terras "devolutas": pastos, possibilidade de conseguir diversos alimentos e de obter gratuitamente madeira seca ou madeira para fazer objetos, etc. Ora, tais incómodos se tornavam cada vez mais insuportáveis aos grandes proprietários rurais, crescentemente interessados na agronomia racional e lucrativa; na época, a hulha ainda não era transportada com facilidade por via ferroviária, e os combustíveis locais eram muito vendidos. Em Les paysans, Balzac situa nas florestas a luta de classes em estado puro; certamente teve para isso bons motivos.
Os camponeses pobres cobiçavam as florestas do governo e da comuna tanto quanto as particulares. Sob este aspecto, ao suprimir todas as repressões, a Revolução satisfizera involuntariamente as pretensões de seus antepassados. Um novo Código Florestal votado em fins da Restauração restabelecera uma polícia rural rigorosa, e o Regime de Julho empenhara-se em fazê-la respeitar. Temos aí outra faceta da questão camponesa em 1848: o pauperismo e o arcaísmo rurais se haviam atenuado muito pouco, ao passo que os motivos de queixa eram inúmeros, e ainda mais irritantes por visarem a pessoas próximas — os grandes proprietários, os guardas, os cobradores de impostos.
Incluam-se nessa lista os usurários, pois o capitalismo incipiente ainda não criara uma rede de crédito satisfatória para a indústria e o comércio urbanos, e por isso mesmo era ainda mais distante do campo. As pessoas tomavam empréstimos com os vizinhos ricos e com os negociantes que compravam as safras; ou então endividavam-se com hipotecas.
Contudo, à diferença dos males dos proletários, que são — convém repetir — bastante notórios e quase habituais, o mal-estar rural, mais distante, mais difuso e sobretudo imensamente diversificado, só viria a se revelar por suas consequências. Em Le peuple (escrito em 1845-46), Michelet tem a sensação de estar nadando contra a corrente ao escrever — em explícita contradição com os socialistas — que o camponês, mais que o operário, é o verdadeiro pária social.
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3. O romantismo e a educação do povo
Operário ou camponês, "o povo", precisamente, era encarado com um favor geral, do qual só destoava o pessimismo de um Balzac. O clima humanitário — outro aspecto que vinha das origens da Revolução — predominava no mundo pensante.
Romantismo e populismo
O romantismo era onipresente. Pode-se mesmo dizer que nos anos 1840 os grandes poetas — Hugo, Lamartine, Vigny, Musset — brilharam com toda a intensidade, quer mantivessem uma postura moderada, calassem ou mudassem de ideia, quer a própria moda parisiense se voltasse contra o autor de Les burgraves. Quem poderia então imaginar que dentro de poucos anos o visconde Hugo, membro da Câmara dos Pares, viria a encontrar uma nova inspiração popular e uma nova perspectiva poética? Mas foi nesse momento — com o distanciamento imprescindível — que os românticos triunfaram no mais profundo da França. Na intel-ligentsia da província, fervilhante de poetas amadores, a geração dos êmulos de Béranger, cançonetistas de tabernas, voltaireanos e sibaritas, acabara de ceder lugar à geração dos jovens sisudos, que desfiavam os alexandrinos em longas tiradas lamartineanas transbordantes de sentimento. Entre esses poetas havia até alguns jovens operários (geralmente empregados em oficinas e não em fábricas, é claro) cuja vocação parecia provir do interesse incipiente pela questão social; mais provavelmente, porém, a poesia operária dos anos 1840 advinha do desabrochar das associações de operários, da maior difusão do hábito^de ler jornais nos cafés, e talvez mesmo dos primeiros efeitos .da. lei_Giii7.at quanto àTnstrução primária — ou seja, da confusa ascensão das massas a cultura, grande dádiva da época e em parte também do regime. E em Paris, os escritores românticos e socialistas do círculo de Michelet, George Sand e Pierre Leroux, inclinavam-se comovidos ante a musa proletária, festejando o ingresso do povo na idade adulta.
Tudo, aliás, levava a elite intelectual a apontar no povo um reservatório de forças novas e sadias. Os inspiradores e os dirigentes dos movimentos nacionais no Centro e no Leste europeus
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voltavam a temas que o romantismo alemão lançara em fins do século anterior, e combatiam as cortes e aristocracias de cultura cosmopolita exaltando as viriud^s n a c i o n ^ dos cantos e poesias populares, da saúde primitiva das massas. Mas na França a situação era diferente; considerava-se resolvido o problema nacional. No entanto, os povos e nacionalidades que protestavam, da Grécia à Irlanda, da Polónia à Itália, eram caros aos liberais e republicanos da França, e a ideologia vagamente populista subjacente às lutas europeias certamente impregnava também seus correligionários franceses.
Descoberta da França
Na própria França o folclore foi descoberto e apreciado, sem que contudo se tirassem do fato conclusões políticas e nacionais diretas; sem dúvida, porém, foi então que a classe mais culta descobriu o folclore, assim como descobriu seu próprio país. Nos anos 1830 e 1840, as longas viagens pela província perderam o caráter de raridade, de expedições fora do comum, e tornaram-se uma forma de lazer culto — ainda muito distante do turismo moderno, mas já um início da evolução que levaria a ele. O fato de os membros mais representativos da elite intelectual terem descoberto a França — descoberta apaixonada, apaixonante e finalmente feliz — foi parte do romantismo, alimentou-o e dele se alimentou, e certamente contribuiu para conduzi-lo a um populismo difuso. E m 1820, muitos burgueses ainda viam a França como uma minoria de elites esclarecidas, formadas pelas burguesias instruídas e pelos negociantes das grandes cidades, e sempre sujeitas ao risco de serem sufocadas pela França das massas, cercada de fidalguetes e padres. Um século mais tarde, não mais seria aceito esse maniqueísmo caricatural que justificava, entre outras coisas, leis eleitorais extremamente oligárquicas; quanto melhor se conhecem a riqueza e a diversidade de uma nação, mais é possível encarar seu futuro com confiança.
Assim, várias e importantes correntes políticas e espirituais parecem conduzir à República de 1848: a progressão da ideia republicana, a aspiração a melhorias sociais, a abertura do espírito — em suma, disponibilidade e generosidade, a verdadeira contribuição do romantismo à vida coletiva.
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Incerteza e confusões
Não nos iludamos, no entanto, com análises cuja evidência deriva de seu caráter retrospectivo. Descobrem-se as causas por se conhecer o fato. Evitemos, principalmente, a ideia de que os responsáveis por essas correntes tivessem consciência nítida de suas implicações, e muito menos do fato de que tendiam à convergência.
Nem todos os escritores românticos encaminharam-se para o populismo, sequer para a crítica política. Nem todos os republicanos reconheceram a necessidade de transformações sociais. Michdei^auta^^ puMicarm viriuaL ma Já Proudhon era socialista, mas não se interessava de fato pela questão do regime político, nem se importava com a maioria das tendências sentimentais do romantismo. Seria possível citar, em nível espiritual menos elevado e em antítese semelhante, o republicanismo não-socialista de um Cavaignac e o socialismo3
não-republicano de um Luís Napoleão Bonaparte. Várias das convergências (república-socialismo-romantismo),
que hoje — vistas a distância e de outra perspectiva — parecem de uma evidência lógica, só vieram a ocorrer após a Revolução. E m fins de 1847, às vésperas portanto da própria Revolução, quantos de seus futuros admiradores partilhavam de fato as mesmas ideias, e quais eram essas ideias? Uma delas, sem dúvida, era a consciência de que o decidido conservadorismo de Guizot não se adaptava à complexíssima conjuntura económica, social e política; outra era a noção de que as soluções deviam ser buscadas na ampliação das bases do poder.
E m outros tempos, caso determinados governos e câmaras fossem julgados incapazes e corruptos, logo surgiria a tentação de um 18 Brumário. Mas na efervescência do inverno 1847-48 ninguém parece ter pensado em soluções de tipo autoritário. Só era visto autoritarismo entre aqueles que detinham o poder. E surgia no país, em oposição a eles, um consenso no sentido de que fosse retomado e reforçado o movimento liberal que 18 anos antes fizera a Monarquia de Julho.
J 3 . No sentido amplo em que os homens da época entendiam o termo.
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... porém democratismo difuso
Como se sabe, o sufrágio universal foi estabelecido imediatamente após a proclamação da República, conferindo-lhe seu conteúdo político essencial. O sufrágio universal era a meta lógica a que visavam todas as intenções aqui referidas. Foi a expressão jurídica da aspiração sentimental difusa de dar a palavra "ao povo", reconhecer sua dignidade e sua maturidade. Teria de ser o ponto de chegada do princípio republicano que via em todo homem (e não apenas nos proprietários ricos e poderosos) um cidadão. Por que não seria, enfim, a panaceia social? Sofria-se pelo fato de existir uma sociedade egoísta e injusta, protegida por uma legislação absolutamente burguesa. O que, aliás, não espanta, pois só os burgueses votavam. Mas a partir do momento em que a grande maioria operária e camponesa ganhasse o direito do voto, evidentemente chegariam às câmaras os verdadeiros representantes do povo; o trabalho também teria voz, assim como a riqueza, e seria enfim possível a harmonização de interesses.
E m poucas semanas (como veremos) esse raciocínio foi reprovado no teste da História; nem por isso cabe esquecer que ele representou, de certa forma, o fundamento da imensa e tríplice esperança de 1848 — esperança social, política e moral.
Retornemos brevemente ao crescendo de reivindicações propriamente políticas ocorrido durante todo o reinado de Luís Filipe. O rei se propusera à revisão da Carta, cujo dispositivo decisivo era baixar para 200 francos a cota eleitoral legislativa. Mas que importância poderia ter, em termos puramente lógicos e morais, esse patamar de 200 francos? Por que se justificaria mais que o de 1.000 ou de 300 francos, ou mesmo que os mais antigos, como o "marco de prata" ou os "três dias de trabalho"? Apresentava virtudes simplesmente empíricas, e sabe-se que o empirismo, sempre suspeito de oportunismo, é por natureza menos atraente que os princípios de rigoroso extremismo. O princípio de autoridade — assim como o do voto universal, da tradição ou da democracia — permite talvez uma organização mais brilhante e pode ter efeitos muitíssimo mais positivos que o meio-termo prudente e prático do voto censitário. O justo meio se torna prosaico devido à clássica deficiência intelectual de todo liberalismo moderado, sobretudo o que se recusa a evoluir erigindo em dogma seus antigos compromissos empíricos. Isto ficou patente durante todo o reinado: a maior parte da jovem intelectualidade voltou-se contra esse regime de professores e académicos.
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Contudo, a crescente aspiração do país à democracia não deve ser reduzida a tais considerações, aliás bastante clássicas. A Revolução de 1830 não se limitara a abolir o artigo 14, baixar a cota do censo legislativo e suprimir a hereditariedade do pariato; já em 1831 havia suscitado duas leis fundamentais:- aquejrestabelecia a G u a j ^ d j ^ a c ^ conseihoTmunicrpais. E m ambos os casos, a participação políBca" fícãWT^elnãbaixo da cota de 200 francos, na escala social. A pequena burguesia em peso, assim como os membros mais abastados das classes populares — excluídos da eleição de deputados — começaram a ter participação política, elegendo os administradores locais e os oficiais da "milícia dos cidadãos". Tratava-se, decerto, de política menor, mas era o suficiente para tirar seus participantes da ignorância e da passividade. Essas conquistas foram definitivas J2£sdeJ834^04-£gimeJinha_cojQdiçc^ g ^ J ^ T — - - P ^ n a i n í p n a a - v í d a - . d a s associações e da imprensa, — frutoAa_explojsão^ "reação" espetacular, no entanto, não nos autoriza a esquecer nem o fato de terem sido mantidas as conquistas institucionais de 1831 nem a progressiva democratização da vida do país, efeito decorrente de tais conquistas.
Assim, nesse e em tantos outros domínios a que já nos referimos — patriotismo, trabalho administrativo, instrução primária pública, progresso das comunicações, primeiros impulsos industriais —, o regime surgido em 1830 promovera ou acelerara um verdadeiro processo de maturação (seria o caso de dizer aculturação?) da sociedade francesa profunda; mas tal crescimento voltava-se contra o regime, ou contra aquilo em que Guizot transformara o regime. A ânsia de reforma sensível em 1847 foi a aspiração mais ampla, mais forte e popularizada de reviver e prolongar o "movimento" de 1830, rompido a partir de 1832. Assim também o Espírito de 1848 foi a vontade de dar novo ânimo ao espírito das revoluções de 1789, 1792 e 1830 — cujo conteúdo humano potencial ainda não foi revelado por completo.
4. Um "partido republicano"
Todas essas evoluções levaram à criação de um "partido republicano".
"Partido republicano" se tornou a expressão consagrada, so-
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1848 — o aprendizado da República
bretudo depois da obra clássica de Georges Weill, Histoire du parti républicain en France (1814-1870), lançada há meio século 4. Não nos enganemos, porém! Trata-se tão-somente Ha história rjnsj>ar-
jidários^daJ^epública, algo bem diferente de um "partido" no sentido atual da palavra. Naquele tempo, nenhuma organização comum estável congregava correligionários de um mesmo ideal político, fosse por se considerar a ideia de ação conjunta e disciplinada incompatível com uma concepção política que valorizava a responsabilidade e a consciência individuais, fosse simplesmente pelo obstáculo legal, uma vez que não existia liberdade de associação. Logo, os acordos políticos eram sempre ocasionais, informais e parciais.
Havia três centros possíveis de atração e impulsão: a Câmara, os jornais e as associações (ou o que delas restava). Pode-se tentar descrevê-los, mas será bem mais difícil avaliar a amplitude e as modalidades de sua ação.
Deputados
A Câmara de Deputados contava quando muito com meia dúzia de republicanos que nem sequer podiam declarar sua posição, sob pena de sofrerem perseguições; aludir à República constituía uma afronta ao princípio das instituições vigentes. Para contornar essa dificuldade, os deputados eram por vezgsxhamados
jde^adicais" , termo tomado dovocaíulário^õlítícomiglo-saxão para designar o mais extremado liberalismo político: aquele que, segundo a etimologia, pretende erradicar o mal antigo e promover o progresso a partir da própria raiz, em vez de seguir os prudentes processos de poda e enxerto. Quem mais se destacava na Câmara era Alexandre-Auguste Ledru-Rollin (nascido em 1807), eleito deputado do Mans em 1841, após a morte de Garnier-Pagès (o mais velho). Não surpreende que a circunscrição mais solidamente republicana da França fosse o centro administrativo do Sar-the. No mundo burguês do eleitorado censitário, as lutas históricas ainda costumavam ter papel determinante; e nos confins do Oeste armoricano, o espírito insurrecionista da Vendéia parecia ter despertado após 1830, e as cidades eram bastiões renitentes do partido " a z u l " . Tão logo se constatara a tibieza do monarca
4. Bibliografia, n? 34.
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em combater o adversário partido "branco", passara-se do liberalismo avançado à República. Assim, Le Mans elegia fielmente os homens que seriam os porta-vozes da liberdade no Palais-Bourbon — o genebrino Benjamin Constant, o marselhês Garnier-Pagès e por fim Ledru-Rollin, burguês parisiense. Ledru-Rollin era advogado, bom orador, dotado de sentimentos generosos e também de considerável fortuna, que viria a se reduzir no apoio à imprensa republicana. E m política, era sincera e "radicalmente" liberal; era-o também em economia, pois jamais aderiu aos princípios do socialismo. Mas sendo igualmente liberal no sentido moral da palavra — ou seja, generoso e humanitário — admitia pelo menos a necessidade de o Estado intervir na legislação antimiséria, e isso bastou para que contra ele se erguesse o egoísmo sagrado da economia ortodoxa e burguesa. E m suma, Ledru-Rollin possuía "o coração à esquerda", alguns princípios sólidos e uma hostilidade irredutível para com os conservadores, que aliás pagavam na mesma moeda. E assim como Victor Hugo — embora com menos repercussão — ele também pagou com vinte anos de exílio seu apego à República. Sua memória permanece até hoje marcada pelos sarcasmos de Marx e os elogios de radicais mais recentes, quase nunca dignos do ilustre antepassado. A nosso ver, no entanto, não mereceu tal conjunção de afrontas.
Ledru-Rollin ofereceu à República sua eloquência. François Arago ofereceu-lhe o prestígio de seu renome de sábio. Já idoso, pois nascera em 1786, era o mais ilustre físico e astrónomo francês, e membro do Instituto. Chefe de uma grande família burguesa de Estagel (Pirinéus Orientais), tinha raízes profundas em seu feudo eleitoral, ao contrário de Ledru-Rollin; deputado de sua cidade natal, representava o caso típico — comum entre os conservadores de todos os matizes e mais raro entre os republicanos — do grande burguês de província, eleito "natural" de sua "terra", cuja opinião determina, mais do que é por ela determinada. Convém repetir, no entanto, qúe François Arago gozava em Paris de uma notoriedade devida, unicamente, a seus trabalhos.
Os demais deputados de extrema-esquerda eram bem menos conhecidos, mesmo que tivessem nomes célebres; é o caso de Hip-polyte Carnot, filho do grande Lazare Carnot, e Louis Antoine Garnier-Pagès, irmão mais novo do líder republicano dos anos 1830. Cabe citar ainda Marie, que se tornara famoso por esforço próprio, atuando como defensor em inúmeros processos contra
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jornais e militantes republicanos. Carnot, Marie e Ledru-Rollin eram advogados, profissão típica das famílias ricas e instruídas da burguesia bem estabelecida. Guarnier-Pagès, negociante, continuara enriquecendo com os negócios enquanto seu irmão mais velho já ganhava renome nos tribunais; tal divisão de atividades era então comum entre as famílias cuja ascensão ao mundo da produção e da vida de rendas e lazer culto ainda não se completara. A morte inesperada do irmão mais velho tornara o mais moço chefe da família, e depois político; não podendo dar ao partido voz e talento de advogado (o que levou Ledru-Rollin a ocupar a cadeira que fora de seu irmão), Guarnier-Pagès deu-lhe pelo menos sua experiência na área financeira. Naquela época ainda se acreditava que a contabilidade nacional e a de um banqueiro não requeriam formas muito diferentes de aprendizado.
Esses homens, demasiado poucos para que seus votos tivessem grande influência na Câmara, não estavam contudo completamente isolados. Constituíam um pólo de atração potencial para os que depois de eleitos se desligavam do regime — tanto os que vinham da oposição dinástica, como o advogado israelita Adolphe Crémieux, fiel aos princípios liberais de 1789 e 1830, quanto os que vinham da direita tradicional pela via do romantismo, como Alphonse de Lamartine. No Palais-Bourbon, porém, geralmente faziam declarações de princípios referentes às grandes campanhas organizadas em outros lugares.
Jornais
No século XIX, o que havia de mais parecido com os escritórios, comités e estados-maiores de "partidos" do século XX eram as redações dosi jornais, lugar de permanentes debates e por vezes de ajustes, como ficara patente em 1830.
Vimos, em La France des Notables, que a imprensa republicana contava com dois jornais principais, de linhas bastante diferentes. Le National, o mais antigo, fora fundado por Armand Car-rel, juntamente com Thiers e Mignet, pouco antes da Revolução de 1830, à qual, aliás, dera decisivo impulso. Sob a direção de Armand Carrel e mais tarde de Armand Marrast, tornara-se republicano e assim permanecera; podia ser considerado o maior adversário do Regime de Julho, que reconhecia suas virtudes combativas e moveu-lhe inúmeros processos, dos quais o jornal saiu vencedor, nos tribunais, na maioria das vezes.
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Le National inspirava temor principalmente por ser bem redigido, muito polémico e provocador, e por ter o sucesso que costumam ter os jornais desse género: grande número de leitores, fiéis a sua ração periódica de riso e emoção. Le National também inspirava temor por sua própria moderação política: muito mais republicano liberal que socialista, identificava-se com vários dos princípios dos liberais dinásticos, assim estabelecendo com eles uma aliança tática. Favorável, em princípio, ao sufrágio universal, não se furtava a apoiar a curto prazo as campanhas dos monarquistas de esquerda ou centro-esquerda em favor de uma reforma eleitoral bem mais limitada — plataforma da oposição, e capaz de pôr em risco o poder.
Mas Le National praticamente não contestava os fundamentos da sociedade. Não pretendia renunciar ao liberalismo económico e social — longe disso; tendia antes a acreditar que o liberalismo ainda não levara à prática todos os seus princípios (o que não deixava de ser verdade) e que, se os operários tivessem liberdade de coalização e associação, haveria menos injustiça social e miséria. Posição bem mais moderada que a do socialismo.
Por isto mesmo, vários republicanos vinham há muito tentando criar um órgão de divulgação mais radical e também mais social. É sabido que conseguiram isso desde 1843 — o jornal La Reforme —, graças aos esforços de Godefroy Cavaignac, que morreu em 1845 e foi substituído por militantes menos conhecidos, como Baune, Ribeyrolles e Flocon, este último redator-chefe em 1848. Ao contrário de Le National, La Reforme era declaradamente oposicionista, menos propenso a alianças táticas com a oposição dinástica. Adotava uma linha abertamente socialista, receptiva às fórmulas do direito e da organização do trabalho, já então incompatíveis com a livre empresa. Publicava às vezes artigos de Louis Blanc.
Tal postura doutrinária levava La Reforme a abordar as polémicas de modo mais teórico, mais grave e por isso mesmo menos ferino que Le National.
Não se pense, contudo, que as linhas de oposição de um jornal e outro diferiam muito. Hoje, a distância, é possível analisá-los melhor. A diferença entre os dois jornais republicanos residia sobretudo na ênfase dada a programas e artigos, em questões de expressão e estilo, e em questões relativas a pessoas, é claro. Não havia exatamente dois "partidos" em " u m " partido; os deputados mantinham vínculos com ambas as linhas.
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Associações?
Já as associações ficavam mais distantes de suas propostas. Na época, não passavam de fragmentos. Sempre haviam si
do ilegais do ponto de vista jurídico (artigo 291 do Código Penal); ap^aJRevolução de Julho, multipliçaram-seejoram muito atuantes; voltaram a ser perseguidos com rigor depois~dè~ãBril ãe 1834, tendo de ficar restritas à clandestinidade das sociedades secretas; sofreram cerceamento ainda maior a partir de 12 de maio de 1839. Às vésperas de 1848, os grandes rebeldes estavam presos, condenados a penas perpétuas; alguns já tinham a saúde abalada, como Auguste Blanqui (que teve de ser transferido das masmorras do Mont-Saint-Michel para o hospital de Tours), ou já haviam perdido a dignidade, como Aloysius Huber (que, de acordo com boatos, se tornara informante da polícia). Também estavam presos Armand Barbes, Martin Bernard e vários outros. Os que continuavam em liberdade tinham uma atuação secundária, sobretudo em Paris, e conseguiam se manter em ligação com os que haviam escapado aos motins. Havia ainda algumas sociedades secretas revolucionárias, de atuação já bastante fraca; em suas chefias se haviam infiltrado — ao lado de militantes irrepreensíveis como o operário mecânico Alexandre Martin, chamado de Albert — traidores e agentes policiais como Lucien Delahodde,que mais tarde se gabaria de ter neutralizado os militantes parisienses incitando-os a ser prudentes e esperar.
As associações de província também estavam cerceadas, como as de Paris. Alguns operários convictos pareciam engajados em atividades de mutualismo profissional, cujos frutos só se revelam a mais longo prazo. Vez por outra, alguns jornalistas tentavam lançar um periódico local, ou reavivar os já existentes; mas não tinham dinheiro e a polícia seguia-lhes os movimentos.
As associações políticas pareciam perfeitamente contidas pela repressão; mas a política se infiltrava em associações criadas para outros fins. Jamais se saberá o número exato de burgueses republicanos que conseguiam se manter unidos, nas cidadezinhas de província, graças a "círculos" onde aparentemente se reuniam amigos em simples convívio social, e conversavam enquanto bebiam e comentavam as notícias dos jornais. Conhece-se um pouco melhor o papel exercido pela franco-maçonaria, abrigo e ponto de reunião de republicanos em determinados locais onde estes eram mais numerosos. A franco-maçonaria não tinha grande
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expressão na época; era tolerada por não ter cunho político, mas era também — como sempre foi — potencialmente liberal, fermento do pensamento racionalista e das reflexões em grupo. Vários dos futuros militantes da República foram maçons, e alguns chegaram a dirigir lojas, como em Beaune, Chalon-sur-Saône, Mans ou Toulon.
Nenhuma organização, contudo, dispunha de uma rede com-̂ f pleta e coerente, capaz de cobrir toda a França, nem tampouco! tinha condições de unir todos os republicanos. Também sob esse aspecto, o que mais se aproximava de um partido moderno erá a imprensa, e não só no nível dos redatores, como já vimos, mas também no dos empregados subalternos.
Vários ex-combatentes de sociedades secretas voltaram-se instintivamente para a imprensa, por verem nela a única arma de fato eficaz. O antigo militante lionês Mare Caussidière se tornara caixeiro-viajante de La Reforme; em suas viagens pela província (sobretudo em 1846), fazia bem mais que simples levantamentos e coletas de assinaturas para o periódico — também estabelecida ou restabelecida ligações, em plano mais geral. O papel então desempenhado pela imprensa faz pensar no que Lenin viria a descrever cinquenta anos mais tarde, quando criou um jornal por ainda não ter condições de fundar um partido, e disse que um periódico era um "organizador coletivo".
São esses elementos dispersos do que não era ainda o "aparelho" do partido republicano.
Por que vias exercia-se influência?
Resta ainda conhecer as influências de tudo isso. Já se constatou uma forte influência nos meios intelectuais,
literários e artísticos. Vale citar, como exemplo, La Revue Indépen-dante, de George Sand e Pierre Leroux, publicação de cunho não explicitamente político, porém aberta a todas as correntes de discussão literária, moral e social. Tratava-se de uma revista eclética, igualmente receptiva ao liberalismo sentimental de Michelet e ao socialismo de Louis Blanc, além de bastante identificada — acima de quaisquer divergências — à oposição e ao povo. O mundo editorial e jornalístico contava com muitos republicanos. Um dos grandes editores parisienses, Pagnerre, era um republicano idoso que já não participava de conspirações, mas não perdera seu renome nem sua influência.
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A República contava também com muitos adeptos no Quar-tier Latin, entre " a juventude das escolas". Na época, proclamar-se republicano naquele bairro era o mesmo que viria a ser, mais tarde, dizer-se "de esquerda" ou "revolucionário": algo bastante confuso, bastante diversificado, mas também muito profundo e quase instintivo. Recorde-se o grupo de jovens ao mesmo tempo tão diferentes e tão unidos, que Flaubert descreve no início de Uéducation sentimentale.
Além disso, a República era o "partido" da classe operária. Até que ponto, porém, seria mesmo? A população operária dos bairros do leste de Paris tinha, é certo, grande participação política. Combatera em 1830, 1832, 1834 e 1839, para citar apenas as sublevações mais importantes. Era óbvio seu distanciamento da monarquia. Os operários parisienses conheciam e liam as publicações republicanas, que já começavam, no entanto, a sofrer a concorrência da imprensa socialista e comunista, em especial La Démocratie Pacifique, de Victor Considérant, e Le Populaire, de Ci-bet. Divergência ou convergência? O que não se pode dizer, evidentemente, é que esses jornais fossem monarquistas. Mas tamanha é sua insistência no problema da crítica económica e social, que o problema do regime político é quase completamente negligenciado. Por várias razões, seria difícil considerar esses jornais como republicanos. Vemos assim que muitos operários da província ainda não haviam tomado consciência de política e sequer do republicanismo mais elementar, enquanto em Paris grande parte do mundo operário já o fizera. UAtelier, o jornal de Bu-chez, cujos redatores são operários autênticos, era o único a mostrar alguma influência cristã, e esforçava-se para dar sua contribuição à república e ao socialismo, aproximando-se assim de La Reforme.
Operários e republicanos
Percebem-se, portanto, muita disponibilidade e muitas divisões na classe operária parisiense. E também muito arcaísmo. Convém evitar uma abordagem demasiado moderna da consciência de classe dos trabalhadores da época, e não perder de vista seu relacionamento com os republicanos burgueses. Estes, quase sempre oriundos de profissões liberais, viviam bem; alguns eram até ricos, comparados à classe operária. Na época, a gama
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de recursos e de padrões de vida era bem mais ampla que hoje. Sendo ricos e também humanitários, os republicanos burgueses não podiam deixar de ser filantropos e generosos. Seria absoluto anacronismo considerar como fatos de direita a caridade e o paternalismo da época. Só mais tarde os meios conservadores viriam a erigir tais características em panaceia social, enquanto a esquerda, ao contrário, pretenderia definir-se apenas pela busca da justiça, pelo aperfeiçoamento social institucionalizado e pela autonomia de organização das massas. Um republicano de 1848 não veria no fato de fazer o bem qualquer quebra de seus princípios. Era muito comum os médicos — sobretudo eles, testemunhas das piores misérias — tratarem pessoas pobres sem cobrar; os vários médicos republicanos agiam dessa forma, e não eram os únicos a fazê-lo. A popularidade de Trélat e Raspail em Paris não se devia apenas a sua condição de "médicos dos pobres", mas também a seu passado de militantes políticos nos anos 1830. A classe operária mostrava-se sensível a tal atitude, e a ela correspondia. Não se furtava a chamar um burguês de "pai dos operários" (expressão bem ao gosto da época, na qual se percebem talvez influências das associações operárias), mesmo sabendo que os conservadores, sobretudo em Paris, são bem mais gendarmes do que "pais" . Até os grandes burgueses republicanos, membros da Câmara, mereciam igual devoção, se demonstrassem, por menos que fosse, um pouco de piedade para com o povo e não fossem muito desfavoráveis à ideia de uma legislação social. Arago foi certa vez procurado por uma delegação de operários que desejava felicitá-lo, Ledru-Rollin, que vociferava energicamente contra o poder, era chamado nas ruas de le dru*.
Já na província apresentava-se uma situação bem diferente. Lyon talvez fosse tão politizada quanto Paris, mas em outras localidades havia ainda populações operárias quase maciçamente ligadas à Igreja (Marselha), ou então inteiramente inertes; outras, ainda, só se interessavam por política devido à atuação de algum filantropo destacado (Toulon). E m quase toda parte havia grupos muito reduzidos de "comunistas", em geral icarianos (discípulos de Cabet).
A questão das massas camponesas é ainda menos bem conhecida. Sem sombra de dúvida, encontravam-se bem longe da emancipação intelectual. Mas em certas regiões a República con-
* " O vigoroso." (N.T.)
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tava com a influência social de pessoas importantes — influência à qual era impossível, na época, escapar. Decerto, muito raramente o espírito republicano ou revolucionário seguiu caminhos subterrâneos que contrariassem as pessoas importantes; o comum era seguir os rumos por elas apontados. O fato veio a ser demonstrado primeiro pelo teste da liberdade, e depois pelo julgamento das urnas.
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Tentativa e fracasso de um socialismo (24 de fevereiro-4 de maio de 1848)
Na França contemporânea, os regimes políticos sempre seguem determinadas regras, sob a forma de uma Constituição. Mas é preciso muito mais tempo para elaborar uma Constituição que para derrubar um regime; por isso, um novo regime só atinge a fase constitucional, regular e legítima, depois de um período mais ou menos longo de vigência provisória. Foi assim com a monarquia constitucional, de junho-julho de 1789 a outubro de 1791; com a I República, de 10 de agosto de 1792 a outubro de 1795; e também seria assim com a III República, de 4 de setembro de 1870 a dezembro de 1875, e com a IV República, de agosto de 1944 a dezembro de 1946. A II República francesa não é exceção à regra; só em novembro de 1848 veio a ter uma Constituição votada e promulgada, e seu órgão essencial só foi estabelecido em fins de dezembro, após a eleição presidencial.
A maior parte do ano de 1848 decorreu, portanto, sob o signo do provisório e da constituinte, e durante 1849, 1850 e 1851 esteve em vigência uma política regular. O contraste jurídico e formal entre os dois períodos foi eclipsado por um contraste político mais importante, a ele simultâneo (1848: a República sem Bonaparte; 1849-1851: a República presidida por um Bonaparte). Esse contraste político não pode ser esquecido.
A análise adquire talvez contornos mais precisos se ficar restrita àqueles meses de 1848 que foram os mais próximos da Revolução inicial e também os mais ricos em fatos — como costumam ser as fases que antecedem uma Constituição.
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tituição de 14 de janeiro. O regime teria de ser ratificado por novo plebiscito.
Esse plebiscito realizou-se a 20 de novembro, nas mesmas condições do ano anterior, a apresentou resultados ainda melhores: 7 800 000 votos " s i m " , 250 000 votos " n ã o " .
Era possível marcar a proclamação oficial do Segundo Império para o dia 2 de dezembro — data célebre e agora aniversário quádruplo. Dos quatro Dois de Dezembro, 1 5 só o terceiro se tornaria simbólico, o "Dois de Dezembro". De certa forma, ele apresenta o significado negativo do bonapartismo; o significado positivo era exposto no discurso de Bordéus, discurso-programa e também ato de candidatura.
Convém, para concluir, examinar esses significados — o de bonapartismo, o da República, talvez até das Repúblicas.
15. E m 1804, a sagração de Napoleão; em 1805, Austerlitz; em 1851, o golpe do Estado; em 1852, o advento do Segundo Império.
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Conclusão
Já que a República democrática impôs-se como regime político na França contemporânea, cabe pesquisar a contribuição dos quatro anos da primeira experiência republicana, que acabamos de descrever, à maturação desse regime.
A república, que finalmente prevaleceria nos anos 70 do século XIX, nasceu do fracasso das soluções monárquicas — quer devido à inadaptação dos Bourbon ao mundo moderno, quer devido à derrota do último Bonaparte em Sedan. A República ressurgiu quando se revelou a inviabilidade do Segundo Império, belicoso demais para a Europa inquieta, autoritário demais para a sociedade consciente.
Não cabe demonstrar aqui de que forma a República de Gam-betta e Jules Ferry veio a opor-se ao bonapartismo. Mas já em 1851 e 1852 é possível perceber o principal aspecto dessa antítese: o bonapartismo, sob este ângulo herdeiro do partido da ordem, tira sua força da docilidade: docilidade dos soldados à "obediência passiva", docilidade dos "rurais" aos candidatos oficiais. Os partidários da República, por isso mesmo adversários do bonapartismo, vinham de meios de espírito independente, eram operários de Paris e Lyon, intelectuais e até mesmo camponeses das províncias vermelhas cujas aldeias-burgos já apresentavam costumes citadinos; e talvez até "baionetas inteligentes"... Ver no bonapartismo o fruto da deseducação política e ver na República o resultado da educação, da consciência e do civismo universal — tal foi a posição não só de Jules Ferry, mas também dos
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que participaram de "quarenta e oito". Compreende-se que os sobreviventes da Segunda República — sendo Victor Hugo o mais célebre — se tenham identificado perfeitamente à Terceira, que acolheram com entusiasmo.
Fica assim exposta a primeira característica do saldo da Segunda República, a primeira lição desse aprendizado: a necessidade de educar as massas, dando-lhes não apenas a instrução elementar que as capacite a ler, como também a prática política democrática que enseja jornais livres, liberdade de reunião e associações livres.
Este saldo e este aprendizado não se devem aos governos que exerceram o poder durante aqueles quatro anos. Devem-se em parte à República que tentou viver entre fevereiro e junho de 1848 e tentou sobreviver entre junho de 1848 e janeiro de 1849; devem-se principalmente à República ideal, tal como a definiram e desejaram de 1849 a 1851 os únicos republicados verdadeiros da época, os da oposição.
A História precisa distinguir a contribuição da República ideal — regime dos "quarante-huitards", os verdadeiros, ideal dos mon-tagnards — da contribuição da República de fato — prática dos conservadores que realmente governaram.
1. A República dos quarante-huitards
Trata-se, como foi dito, da educação e do civismo universal, que só podem provir da escola e da liberdade.
Trata-se também — como foi dito de modo especial acerca da insurreição de 1851 e de sua mescla de motivos — de uma forma constitucional que não se satisfaz em ser apenas isto, e pretende definir-se também pelo conteúdo popular. A República não é "verdadeira" ou "boa" se for apenas a não-monarquia ou a não-ditadura; só será de fato a República se as regras de seu funcionamento visarem a fins progressistas.
A finalidade é o bem do povo, ou, se preferirmos, o socialismo. Por mais vagas que sejam as noções de bem-estar, de povo e até de socialismo, é impossível depreciá-las; sua força de impulsão não fica prejudicada pela imprecisão de seus contornos (pelo contrário, pode até ser condicionada por ela). A República
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Conclusão
dos quarante-huitards e daqueles que foram tão adequadamente chamados de démoc-soc desagua tão naturalmente no socialismo quanto o ideal dos sans-culottes de 1793 no babovismo no ano IV; tão naturalmente, de fato, que no discurso de Albi de Jaurès o primeiro desdobramento (a República) encadeia-se ao segundo (o socialismo) e ao terceiro (a paz universal), numa progressão de conquistas morais cada vez mais ambiciosas.
É preciso contudo repisar que a República que visa ao socialismo é a do socialismo pelo direito. Esta é sua constante mais sólida, do princípio ao fim, desde as Jornadas de fevereiro de 1848 — quando graças a Lamartine foram repudiadas a violência e a opressão da herança de 1792 —, até as Jornadas de dezembro de 1851 — quando os revoltosos morriam pelo "pedaço de papel" do artigo 68. Sendo a República o primado da lei, a violência só se justificaria em defesa da própria lei e de seus representantes autorizados. Por isso a rebelião operária de junho, apesar de tão bem coadunar-se à tradição que vinha dos sans-culottes e levava aos partidários da Comuna, pareceu tão insólita, tão alheia e em última instância tão afastada da França. Inevitavelmente, o novo espírito veria naquela revolta uma espécie de regressão. E a isso se deve, principalmente, a profunda repulsa que causou o golpe de Estado, que desprezava o direito. Luís Napoleão teria sem dúvida aderido à hierarquia de valores formulada por um chefe de Estado mais recente nos termos seguintes: " A necessidade em primeiro lugar, a política em segundo lugar, e o direito, na medida em que é possível respeitá-lo, em terceiro lugar". 1 O espírito de Quarenta e oito revoltou-se exatamente contra essa ideia de relegar o direito ao terceiro lugar, se possível... e reivindicou também a primeiro lugar para o que mais tarde seria designado pela expressão consagrada de "respeito à legalidade republicana".
As tristes experiências de 1850 (lei Falloux) e de 1851-1852 (apoio do clero ao regime instaurado pelo golpe de Estado) levaram os revolucionários de quarenta e oito a um profundo anti-clericalismo. Fala-se muito da eurofia conciliatória das primeiras semanas e da República lamartiniana abençoada pelos padres, de tão curta duração. Fala-se muito dos sincretismos religiosos que mostram Cristo como proletário e Deus como cimo do edifício metafísico, sem se considerar que tais teísmos horrorizavam os ver-
1. Conversa entre Charles de Gaulle e M. Jean Foyer, citada por J. R. Tournoux em Jamais dit, Plon, 1971. pp. 286-7.
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dadeiros crentes. Não tardou que os quarante-huitards encarassem o catolicismo como inimigo. Nem todos, é claro, no mesmo nível; alguns ressaltavam mais o papel da Igreja como força política e social conservadora; outros, indo mais longe, julgavam necessário combater o próprio espírito da religião, por considerá-lo incompatível com a nova educação. E m um ponto, porém, todos concordavam: era preciso retirar a Igreja da esfera de influência temporal e social. Já constava das intenções dos republicanos da Segunda República aquilo que seria o grande combate da Terceira.
Tudo isto — República ideal, despertar das consciências e civismo de massa, bem-estar do povo, primado do direito, laicização — foi pensado e também vivido e sentido com entusiasmo. E teve peso no cômputo geral, embora sempre mencionado em tom de caricatura.
O espírito de Quarenta e oito foi ardente, eloquente, sentimental, desordenado. As "velhas barbas românticas" fazem sorrir, por ser a expressão tão equívoca quanto banal. Na verdade, as "barbas românticas" só se tornaram velhas no tempo da Terceira República. Às vésperas de 1848, os não-conformistas que deixavam crescer a barba (e o cabelo) eram quase todos jovens, que desafiavam o cabelo curto e as faces barbeadas escanhoadas dos grandes cavalheiros,2 burgueses e até republicanos (dos 11 membros do governo provisório, só o operário Albert, o mais jovem e pobre, usava mesmo barba; Armand Marrast tinha uma barbicha rala, "imperial", e Flocon usava bigode; os demais eram glabros3). Só aos poucos a barba veio a se tornar uma característica dos militantes revolucionários, dos adversários; mas por fim se tornou sua doutrina, a ponto de ser proibida na Universidade, como vimos. Romantismo, é claro, bem evidente entre os militantes cultos, em cuja convicção política se mesclavam tinturas de Lamartine, Hugo, Michelet e George Sand. 4 Mas também, de certa forma, um romantismo popular, espontâneo e talvez mais importante.
2. Na obra La première réssurrection, de H . Guillemin, há uma coleção interessante de retratos da época (n? 39). 3. Victor Hugo, em 1848 um burguês acomodado e barbeado, ainda não usava barba em 1851; só a deixou crescer no exílio, em Guernesey, e ao que se diz para proteger do frio a garganta fraca... Uma verdade prosaica, que a muito custo triunfou sobre a verdade simbólica! É quase impossível imaginar sem barba o autor de Les misérables e La legende des siècles, o senador de 1880. 4. O jornalista burguês Louis Reybaud, criador do personagem Jérôme Paturot, divertia-se empregando nessa história, muitas vezes, o adjetivo ''cabeludo" em vez de "romântico" , como sinónimo zombeteiro.
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Conclusão
Não se pode esquecer que em várias regiões logo aderiram à ideia republicana pessoas muito pobres e simples, cujo comportamento espontâneo ainda não atingira o nível de razão. Esse comportamento poderia ser considerado "tradicional", "folclórico" ou "primitivo"? Seja qual for o termo, o essencial é sublinhar que nem sempre a República conquistou as massas pela educação positivista das mentalidades; às vezes conquistou-as de um assomo, como nova mística proveniente de uma verdadeira conversão. Não raro, a República assumiu aspectos de Esperança e de Valor impregnado de sagrado, principalmente — mas não exclusivamente — no campo. Não negava a religião, era uma nova religião. Essa aura sentimental e mística tem caráter essencial. Ajuda a compreender, antes de tudo, a força e o ardor do partido republicano no período 1849-1851. Ajuda sobretudo a compreender seu intenso expressionismo e a importância do elemento alegórico e figurativo que os homens de 1848 deixariam como herança. Decerto Marianne não foi de todo uma invenção deles; (a Primeira Revolução também contribuiu). Mas eles lhe deram a feição final, configuram-na e popularizaram-na, depois de a terem batizado.
Karl Marx não previra esse idealismo, e cometeu seu primeiro erro de diagnóstico. Parece ter julgado que só as monarquias pudessem ser "mistificadoras", e que a República, sistema despersonalizado de relações políticas, seria necessariamente transparente às relações de classe. Segundo enfoques sociológicos puros, a racionalização das lutas políticas deveria progredir bem depressa, depois de estabelecida a República. A luta de classes em junho de 1848 era o corolário lógico de fevereiro. Na verdade não o foi, e por diversas razões, inclusive por ser a República menos aberta do que parecia. Contudo, "mistificadora" ou não, não fez morrer os idealismos políticos; de fato, engendrou mais um idealismo.
2. A República oficial
Esta, ao contrário, era "realista". De janeiro de 1849 a dezembro de 1851, a República não esteve em mãos de governantes republicanos, mas de pessoas que não haviam desejado o re-
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gime, apenas toleravam-no e o viam como algo provisório, que só duraria até as circunstâncias permitirem a restauração monárquica. A restauração não foi a que esperavam Thiers ou Falloux — foi antes a do "terceiro ladrão". Durante três anos, as forças da burguesia conservadora haviam governado a França sem monarca, e nem por isso perderam seus bens e suas cabeças.
A possibilidade de uma República burguesa, que permitia a participação dos partidários da monarquia em campos de interesse comum e sua não participação em campos dos quais discordassem, não terá sido mais um legado histórico desse período aos períodos posteriores? Certamente não foi por acaso que Adolphe Thiers, principal mentor do jogo político durante a fase conservadora da Segunda República, conta-se entre os fundadores da Terceira. Após 1870, Thiers simplesmente aceitou como duradouro aquilo que em 1848-1851 suportara como necessidade temporária.
Isto não significa, é claro, que Thiers tenha tornado montag-nard na velhice. Sequer se trata da mesma República. A República que Thiers veio a aceitar diferia muito da dos quarante-huitards; era uma forma constitucional pura, que se satisfazia em prescindir de monarca ou de ditador, praticamente irrepreensível do ponto de vista jurídico, porém desprovida de mística popular e de pretensões de reforma social. Era uma República que se mostrava prudente, muito prudente, quanto à democratização da vida cívica.
E m suma, pode-se dizer que a República dos quarante-huitards foi de concepção moral e conteúdo máximo, enquanto a República de Thiers, não deliberada, foi de concepção puramente constitucional e de conteúdo mínimo.
Nem é preciso acrescentar que ambas as concepções são hoje familiares sob as denominações, respectivamente, de direita e esquerda.
A Segunda República francesa está na origem comum das duas principais tradições políticas da época contemporânea; é a ancestral autêntica de toda a ideologia de esquerda, que vem dos quarante-huitards, heróis malogrados; e é também, através dos bur-graves e de outros dirigentes conservadores, precedente e modelo de todos os centros-direita futuros.
Conclusão
3. A ditadura bonapartista
Mas antes de as políticas assim concebidas entre 1848 e 1851 voltarem a poder confrontar-se, a cena seria protagonizada, durante 20 anos, pelo homem do Dois de Dezembro.
Que significa isto? Conhecemos a reação da esquerda republicana: foi possível derrubar a República porque as massas (especialmente as rurais) ainda não estavam plenamente conscientes e instruídas. Pode ser. Mas por que Bonaparte, e não os bur-graves? Por que um cesarismo vagamente demagógico, e não um conservadorismo abertamente burguês? Talvez porque Bonaparte estivesse presente, e Joinville e Chambord no exílio; ou talvez por razões mais profundas, que exigissem alguém novo para serem postas em prática.
A questão foi logo formulada, em especial pelos pensadores socialistas.
E m La Révolution sociale démontrée par le coup d'État, Proudhon aceita a tese bonapartista de que Luís Napoleão aproximava-se mais do povo que os burgueses da Assembleia, por ser ele mesmo fruto do sufrágio universal, decorrência da ascensão das massas; afinal, por que não? Era talvez uma oportunidade de atender ao anseio socialista das massas. Daí a célebre exortação:
" Q u e ele [Bonaparte] assuma ousadamente seu título fatal,5
que erija ele, no lugar da cruz, o emblema maçónico, nível, esquadro e prumo: sinal do Constantino moderno, a quem é prometida a vitória: in hoc signo vincesl Que o Dois de Dezembro, abandonando a falsa posição a que o obrigou a tática dos partidos, 6 produza, desenvolva e organize, sem demora, o princípio que o faz viver: o anticristianismo, ou seja, a antiteocracia, o an-ticapitalismo, a antifeudalidade; que ele destrone a Igreja, a vida inferior, e crie nos homens os proletários, grande exército do sufrágio universal, agora batizados filhos de Deus e da Igreja, que não têm luzes, trabalho nem pão. Este o seu mandato, esta a sua força.
5. Entenda-se aí seu título popular, que é "fatal" porque necessariamente ligado (fatum: "destino") à origem primordial de seu poder, a eleição de 10 de dezembro de 1848. 6. Fique claro: trata-se da aliança com o partido da ordem, a que o obrigara a resistência dos montagnards, censurados por Proudhon exatamente por isto.
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"Fazer cidadãos os servos da gleba e da máquina; transformar em sábios os crentes perplexos... Algo capaz de satisfazer a ambição de dez Bonapartes." 7
Com grande lucidez, Proudhon percebeu o que havia de potencialmente renovador em determinado aspecto do bonapartismo, e percebeu também que seria difícil conseguir o progresso, devido à aliança entre conservadores e clericalistas, que sob outro aspecto fundamentava esse progresso. Poucos meses após ter escrito essa brochura, Proudhon reconheceu em seu círculo privado8 que o governo se inclinava para a pior tendência, e que "o orleanismo e o jesuitismo são maioria no Élysée". Proudhon não tardou a integrar-se à oposição, e denunciou a principal contradição política desse bonapartismo, motivo por que ele constantemente oscilava entre aliar-se ao partido da ordem e af astar-se dele. Mas Proudhon não parece ter percebido muito mais, além dessa alternativa: ou conservadorismo retrógrado ou revolução social. Por isso, na conjuntura de 1860, se poderia com certo exagero chamar de "proudhonianos" os que acreditavam que o despotismo esclarecido pudesse levar ao progresso social.
Mas talvez houvesse outra alternativa, um bonapartismo sui generis que não representasse os proletários nem as pessoas eminentes.
Na mesma época, Karl Marx julgou ter discernido essa realidade. Pouco depois do golpe de Estado, quando publicou Le 18 Brumaire de Louis-Bonarparte, livro onde analisa o episódio, registrou em páginas que se celebrizariam a consonância entre as "ideias napoleónicas" e os anseios, necessidades e preconceitos do "camponês parceleiro". Os pequenos proprietários isolados — massa mais numerosa da população francesa — não "podiam" ser republicanos, " t inham" de se expressar através do bonapartismo. E Marx apresenta como "necessária" a queda posterior do bonapartismo, que destruiu as ilusões desses camponeses e lhes abriu os olhos. A desmistificação que a República de 1848 não produziu seria conseguida pela República seguinte.
" E r a necessária a paródia do imperialismo, a fim de que a massa da nação francesa se libertasse do peso da tradição, e se revelasse em toda a sua pureza o antagonismo existente entre o Estado e a Sociedade." 9
7. Citado por A . Thomas (n? 32), pp. 35-6. 8. Carta de julho de 1852, ibidem, p. 37. 9. Ver Bibliografia, n? 25, p. 97.
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Conclusão
Foge a nosso âmbito examinar essa previsão; cabe-nos porém, para nos limitarmos a 1852, observar que Marx atribuía o mandato de Bonaparte, não só aos camponeses, mas também a outra categoria: os subproletários. Já vimos várias vezes o quanto Marx e Engels se haviam impressionado com o papel contra-revolucionário do "lumpemproletariado" parisiense; aludem também, por último, à Sociedade do 10 de dezembro. Ampliando ousadamente a noção de súcia, Karl Marx inclui nela, por analogia, os aventureiros notórios e os financistas mundanos. E escreveu:
"Antes de tudo, Bonaparte se apresenta como chefe da Sociedade do 10 de Dezembro, representante do subproletariado, ao qual ele mesmo pertence,10 assim como seu círculo, seu governo e seu exército, e cuja preocupação maior é cuidar dos próprios interesses e tirar bilhetes de loteria californiana". 1 1
O livro termina com tintas panfletárias. Diz que o novo pessoal do governo é um "bando de velhacos" que não se sabe de onde vêm, uma "boémia barulhenta, de má fama, saqueadora"; em suma, " a camada superior da Sociedade do 10 de dezembro". Imagem semelhante à que mostram Hugo em Les châtiments e Ré-musat em suas Mémoires.
Na concepção de Marx, o bonapartismo, representante des- . ses dois grupos sociais heterogéneos — camponeses parceleiros / e parasitas de todo tipo — permaneceu alheio às duas classes fun- I damentais, a burguesia capitalista e o proletariado. O diagnósti- \ co foi decerto prejudicado pela comoção gerada pelas violências de dezembro e pela falta de distanciamento histórico.
Caso tivesse prosseguido em suas observações sobre a França, (o que não fez, exceto no caso da Comuna, e de uma perspectiva inteiramente diversa), Marx certamente notaria que a efervescência dos negócios continha mais do que especulações parasitárias e uma súcia de "luvas amarelas"; surgira a segunda geração do capitalismo francês. Dois anos antes, de modo bem mais sugestivo e útil o próprio Karl Marx observara (no início de Les luttes de classes en France) que no tempo de Luís Filipe reinava apenas parte da burguesia, uma espécie de "aristocracia financeira", e que a "burguesia industrial" propriamente dita estava na oposição. Sem levar a detalhes essas identificações — que gerariam
10. Grifo nosso. 11. Le 18 Brumaire, p. 98. A última alusão refere-se às perspectivas abertas à Bolsa de Valores com a descoberta de minas de ouro na América, fato realmente decisivo naquele momento e naquela conjuntura.
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longas discussões — basta ater-se ao princípio da distinção entre grupos de interesses instalados, conservadores, e grupos inovadores, dinâmicos e pouco à vontade. E m termos de "necessidade" histórica, é possível dizer que o bonapartismo produziu o impulso de que precisava o setor moderno ("saint-simoniano") da burguesia a fim de se livrar da timidez da coalizão de abastados, mais bem expressa no partido da ordem.
Do ponto de vista moral, foi pena que o progressismo económico não se fizesse acompanhar pelo progressismo político... mas isso iniciaria outra série de reflexões, que não vêm ao caso.
Quanto às análises de Marx acerca das afinidades do bonapartismo com " a parcela" e o "subproletariado", seriam mesmo incompatíveis com a tese do Império "saint-simoniano"? Não necessariamente. Mais tarde, os discípulos de Marx analisariam um dos grandes partidos franceses do século XX ora como instrumento de certos grupos de negócios, ora como representante das classes médias urbanas e rurais. 1 2 Seriam análises contraditórias? De certa forma, sim, e é fácil perceber por que. Mas são também, de modo mais profundo, análises complementares, pois algumas buscam em um partido as forças sociais dominantes que dele se servem, e outras buscam as forças sociais subordinadas e mais ou menos mistificadas que constituem sua base maciça. Os esboços de estudos dedicados em 1852 a esses importantes fatos novos e desconcertantes — a República e o cesarismo ple-biscitário — são a origem da ciência política moderna. A história da segunda República ainda é atual, porventura por ter ela sido também laboratório.
12. Essas apreciações são de Maurice Thorez e se referem ao partido radical. Não cabe discutir aqui seu fundamento; foram citadas apenas como exemplo da ambivalência que existe na identificação social de uma realidade política.
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Apêndice
Estatística da repressão da insurreição de dezembro de 1851 (Arch. Nat. BB 30 424. Registro)
Definição:
"O número de pessoas presas ou perseguidas na França por ocasião da insurreição de dezembro de 1851 foi de 26 884."
Classificações
a. Por origem geográfica (departamentos). Os números decrescem desde o Var (3 147), o Sena (2 962), o Hérault (2 840), os Baixos-Alpes (1 669) ... até a Mancha (1) e à Córsega, Finistère, Ille-et-Villaine (zero). Consultar o mapa n? 6, à página 176.
b. Por profissão (ordem alfabética de ofícios). Ver adiante. c. Por estado civil.
- homens: 26 715; mulheres: 169 (Sena, 44; Hérault, 20; Drôme, 19, etc.) - franceses: 26 634; estrangeiros: 250 (os dados não são precisos) - casados (ou viúvos): 17 403; solteiros: 9 481 - menores de 16 anos: 52 (Sena, 35, etc.) — de 16 a 20 anos: 1 253 — de 21 a 30 anos: 8 332 — de 31 a 40 anos: 9 648 — de 41 a 50 anos: 5 873 - de 51 a 60 anos: 1 882 — mais de 60 anos: 344.
d. Por destino: " O s acusados foram classificadas, pelas comissões mistas e pelas comissões militares, da maneira seguinte" (1? coluna de números).
"Após as medidas de clemência, as decisões precedentes foram modificadas" ... e chegou-se ao "número real para cada categoria a 30 de setembro de 1853" (2? coluna de números).
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