afroasia n28 price

Upload: rebeca-campos-ferreira

Post on 05-Apr-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    1/25

    REINVENTANDO A HISTRIA DOS QUILOMBOS:RASURAS E CONFABULAES*

    Richard Price**

    Do Canad, ao norte, Argentina, ao sul, todas as naes nas Am-ricas do hoje proteo legal especial para suas populaes indgenas e,onde relevantes, aos remanescentes de quilombos exceto a Repbli-ca do Suriname.

    A histria dos quilombos nas Amricas sempre foi ligada terra.

    Os tratados dos sculos XVI e XVII entre os quilombos e os poderescoloniais na Colmbia, Cuba, Equador, Jamaica, Mxico, Suriname eoutros demarcaram reas geogrficas de liberdade, sob total controledos quilombos, em troca do fim das hostilidades.1 Controle coletivo doterritrio (para agricultura, coleta, caa e pesca) significava tambmcontrole sobre um espao no qual se poderia desenvolver uma culturaautnoma. Na Jamaica, e no Suriname, onde ainda existem as maiorespopulaes remanescentes de quilombos, o esprito destes tratados foigeralmente respeitado at a segunda metade do sculo XX. Na Jamaicaa independncia trouxe uma inovao legislativa que reconhecia o direi-to coletivo terra dos quilombolas, e a histria destes foi oficialmente

    * Traduzido do ingls por Gisela Moreau.** Professor de Antropologia da William & Mary College, EUA.1 Estes tratados so discutidos mais completamente em Richard Price (org.) Maroon

    societies: rebel slave communities in the Americas, Baltimore, Johns Hopkins University

    Press, 1996 e analisados detalhadamente em Keneth M. Bilby, Swearing by the past,swearing to the future: sacred oaths, alliances, and treaties among the Guianese andJamaican Maroons, Ethnohistory, 44 (1997), pp. 655-689.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    2/25

    consagrada pelo Estado como um captulo herico da histria jamaicana.Mas no Suriname pr-independncia dos anos 1960, o Governo colonialdespejou sumariamente, em colaborao com a multinacional ALCOA,

    aproximadamente seis mil quilombolas Saramaka de terras que lhes eramgarantidas pelo tratado do sculo XVIII, para construir uma barragem euma usina hidroeltrica. E desde a independncia do Suriname em 1975,os governantes vm sucessivamente praticando uma poltica cada vezmais militante e destrutiva contra os quilombolas e comunidades indge-nas, arrancando-lhes seus direitos terra (e s suas riquezas potenciais)e ameaando seu direito de existncia enquanto povos distintos.

    Desde a guerra civil devastadora entre o exrcito nacional doSuriname e os Maroons (1986-1992), que comeou durante a ditaduramilitar de Desi Bourtese, na qual muitas centenas de civis foram mortose seus direitos fundamentais repetidamente violados,2 o Governo doSuriname vem assegurando a posio do Estado em todo o interior dopas. O Governo insiste que, pela lei do Suriname, nem os Maroons nemos povos indgenas possuem quaisquer direitos especiais e que os inte-resses do desenvolvimento total do pas que significam cada vez

    mais os interesses privados das autoridades do Governo e seus amigos,devem prevalecer3 . Relatos recentes de observadores de ONGs retra-tam uma situao cruel:4

    21 de agosto de 1996: A comunidade Saramaka de NieuwKooffiekamp se v forada remoo para ceder espao parauma mina de ouro multinacional que est sendo desenvolvidapela Golden Star Resources de Denver, Colorado, e Cambior Inc.

    de Montreal. A comunidade quilombola contesta a relocao ereivindica que as companhias negociem com eles enquanto pro-prietrios tradicionais da terra. A GoldenStar j construiu vrios

    2 Ver T. S. Polim e H. U. E. Thoden van Velzen, Vluchtelingen, opstandelingen enandere Bosnegers van Oost-Suriname, 1986-1988 , Utrecht, Institut voor CultureleAntropologie, 1988.

    3 Richard Price, Executing ethnicity: the Killings in Suriname, Cultural Anthropology,10 (1995), pp. 437-471 e Quilombolas e direitos humanos no Suriname, Horizontes

    Antropolgicos, 1999 (em impresso).4 Resumo, aqui, relatos bem mais longos disponveis na Internet, mudando apenas algu-mas palavras ocasionalmente em funo da continuidade.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    3/25

    portes e outros equipamentos, incluindo um enorme muro deterra, para restringir a movimentao dos membros da comunida-de em sua terra, negando-lhes acesso a seus campos de agricul-

    tura, zonas de caa e reas religiosas. A polcia do Suriname e osseguranas da companhia esto marcando sua presena, e cola-boram intensamente. relevante o fato de que o chefe da segu-rana da Golden Star o comandante do destacamento de polciana mina Gros Rosbele forneceu a equipe de segurana da GoldenStararmas de grosso calibre. Uma unidade do fortemente armadogrupo de elite de apoio antiterrorista da polcia tambm se encon-tra no local. Os agentes de segurana tm ameaado, abusado eintimidado membros da comunidade. Em diversas ocasies, patru-lhas atiraram para o alto ou nos moradores de Nieuw Koffiekamp,at mesmo nos que s esto cuidando de suas roas e coletandoalimentos da floresta.5

    6 de maro de 1997: No dia 24 de fevereiro de 1997 JulesWijdenbosch, presidente do Suriname, anunciou a inteno deseu governo de buscar financiamento para a construo de duasusinas hidroeltricas no rio Kabelebo, no leste do Suriname. Na

    atual concepo, o plano construir duas usinas que proveroenergia para extrao de bauxita e ouro, para o beneficiamento demadeira e outras atividades no especificadas. A estimativa decustos das barragens de um bilho de dlares. Para conseguirfinanciamento, o Suriname est visando o Brasil, o setor privado,e, possivelmente, o Banco Mundial. O presidente anuncia quevisitas recentes de alto escalo ao Brasil acerca do projeto Kabeleboforam positivas e que um grupo de investidores brasileiros mos-

    trou grande interesse em construir as usinas. Desi Bourterse,dirigente do Partido Nacional Democrata, atualmente no poder,est na China para discutir, entre outros, o projeto Kabelebo.DeWare Tijd(de 4 de maro) anunciou que o Ministrio de Assun-tos Externos da China d boas-vindas idia de um projetoKabelebo unindo Suriname-Brasil-China. Discusses sobre oprojeto Kabelebo se do em meio a um esforo concentrado doGoverno do Suriname para reduzir sua dependncia de doadores

    5 World Rainforest Movement,Urgent action Suriname (21 ago. 1996), texto da Internet.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    4/25

    tradicionais, em particular os Pases Baixos e a Blgica, e procu-rar relaes de negcios e apoio na Amrica Latina. O Governoatual tambm vinculado antiga ditadura militar que dominou o

    Suriname nos anos 80 e teve boas relaes com os militares noBrasil, que representam uma enorme fora na indstria brasileira.Um acordo de cooperao foi discutido no que se refere explo-rao, produo e comrcio de ouro, um fato que certamenteintensificar a presente corrida pelo ouro na regio. Possveis

    joint ventures com investidores brasileiros e surinameses tam-bm foram discutidas. Isto daria ao Brasil acesso ao mercado doCARICOM (Comunidade Caribenha) com iseno fiscal e, aoSuriname, acesso ao MERCOSUL. Alguns assuntos confidenci-ais tambm esto sendo discutidos nos encontros. O Surinamecontinua a desrespeitar rotineiramente os direitos indgenas edos quilombolas, quando se trata da explorao de recursos. OGoverno declara que investidores privados do projeto Kabelebotero total direito de propriedade da terra nos arredores das re-presas, mas se recusa a reconhecer qualquer direito dos indge-nas e dos quilombolas sobre a terra, e freqentemente alega queisto seria impossvel, uma vez que a lei surinamesa define que o

    Estado o nico proprietrio de toda a terra no Suriname. Apa-rentemente, o Governo est disposto a fazer excees quandolhe conveniente.6

    20 de abril 1998: Lderes de vinte e trs aldeias Saramaka sereuniram na comunidade de Piki Seei, nos dias 13 e 14 de marode 1998, para discutir sobre o direito terra e sobre as atividadesde uma companhia madeireira chinesa. Os lderes das aldeiasdefiniram inequivocamente que se opem s operaes da com-

    panhia chinesa NV Tacoba (alis,Tacoba Forestry Consultants)dentro ou perto de suas terras ancestrais, assim definidas porleis internacionais de direitos humanos, e reconhecidas plena-mente. O atual Governo do Suriname declara no ter obrigaeslegais derivadas dos tratados (sculo XVIII) com os quilombolase no reconhece seus direitos de possuir suas terras ancestrais.Alm disso, garantiu, ou se encontra no processo de garantir,

    6 Forest People Programme, Suriname information update (6 mar. 1997), texto daInternet.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    5/25

    grandes reas de floresta equatorial a madeireiras multinacionaise a companhias mineradoras em regime de concesso. Estas con-cesses so feitas sem notificao s comunidades indgenas e

    quilombolas, e nem sequer considerando sua opinio ou aprova-o, mesmo quando suas aldeias se encontram dentro das con-cesses. Atualmente, pelo menos dois teros das comunidadesindgenas e quilombolas (contando mais de 50.000 pessoas) es-to dentro ou muito perto das concesses de madeireiras emineradoras. Os lderes Saramaka s perceberam que uma con-cesso havia sido feita em seu territrio quando um grupo dechineses-falando-ingls chegou s comunidades de NieuwAurora e Guyaba, informando a estas que eles estavam prestes ainiciar operaes de extrao de madeira. As comunidades des-cobriram mais tarde que a Tacoba e outras companhias madeirei-ras haviam conseguido garantia de concesses mltiplas dentroe perto de seu territrio. H rumores de que uma companhia daIndonsia, Barito Pacific, tambm haveria conseguido uma con-cesso de 600.000 hectares, dentro de territrios Saramaka eNdyuka, do Suriname central ao Rio Marowijne. Representantesda Barito visitaram a rea (Jai Kreek) recentemente, acompanha-

    dos de tropas do exrcito nacional do Suriname e de helicpte-ros, trazendo uma carta assinada pessoalmente pelo presidentedo Suriname. Aparentemente, um negcio foi firmado com a Baritoquando o presidente esteve na Indonsia em setembro passado.Nenhuma dessas concesses foi aprovada pela Assemblia Na-cional. Pouco se sabe sobre a NV Tacoba, embora suspeite-se deque seja uma companhia estatal chinesa, incorporada localmenteno Suriname. Sabe-se que a Tacoba tem relaes com o antigo

    ditador militar, Desi Bouterse, ele prprio membro ativo no neg-cio de madeiras como intermedirio, juntamente com outros mem-bros do partido governante no Suriname, o Partido NacionalDemocrtico. O Suriname abriu recentemente uma embaixada naChina e tem tentado expandir o comrcio e relaes de apoio.Tacoba parece ser o primeiro grande investimento chins noSuriname. Uma das concesses da Tacoba inclui a comunidadesaramaka de Duwata. Sabe-se que representantes da Tacoba dis-

    seram ao lder que seu povo no poderia mais usar a floresta paraalm de um quilmetro da aldeia, uma vez que a rea se tornara

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    6/25

    uma concesso da Tacoba. Atualmente, toda a terra no interior dopas (aproximadamente 80%) classificada como propriedade doEstado, sendo que as populaes indgenas e quilombolas so

    consideradas apenas ocupantes de terras estatais, portanto semdireitos ou ttulo. Se suas atividades de subsistncia entrarem emconflito com as operaes madeireiras e mineradoras, estas tmpreferncia perante a lei. Alm disso, a lei surinamesa no dispede qualquer mecanismo de consulta s comunidades quanto aconcesses dentro ou perto de seus territrios. As regras de direi-tos humanos internacionais defendem que populaes indgenase quilombolas tm o direito de participar antecipada e integralmen-te nas decises sobre a possibilidade de concesses de suas ter-ras. Este direito inclui o direito de informao sobre as atividadespropostas, sobre as companhias envolvidas e sobre a naturezados riscos trazidos pela atividade. Atualmente, os quilombolasMatawai tm que importar gua da costa, pois seus rios e crregosesto poludos pelas mineradoras. Eles relatam que pescam peixescom olhos brancos espumados e com tumores.7

    Antroplogos preocupados com esta situao em sua maioria

    estrangeiros e muitos deles crticos suficientemente declarados do regi-me militar do Suriname, a ponto de terem sido efetivamente banidos dopas no tm podido fazer muito mais do que testemunhar a recentedevastao e o abuso de direitos humanos. Dadas as relaes de poderdentro do pas, torna-se incerto quem teria a coragem e os meios paraajudar quilombolas e ndios em sua luta pela preservao de suas identi-dades como povos distintos. O que parece ser preciso , por um lado,uma legislao rpida, para alinhar a constituio e o cdigo legal doSuriname s vrias convenes de direitos humanos assinadas pelo pase, por outro lado, a percepo por parte do Governo de que o tratamentoque tem dispensado a quilombolas e populaes indgenas d ao Surinamea posio vergonhosa de ser o nico Estado no hemisfrio ocidentalonde vivem populaes indgenas e quilombolas que no reconhece le-galmente, de alguma maneira, seus direitos de posse de seus territrios

    7 Forest People Programme, Suriname information update (20 abr. 1998), texto daInternet.

    8 Ibidem.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    7/25

    ancestrais.8 Para os estudiosos da Afro-Amrica, os quilombolas doSuriname tm permanecido, por muito tempo, como um smbolo de re-sistncia herica e um exemplo maior de criatividade cultural em uma

    dispora. Ainda assim, a Repblica do Suriname tem claramente assu-mido um programa unilateral para anular os tratados do sculo XVIII epara anular as conquistas histricas dos maiores grupos de remanes-centes de quilombos nas Amricas.9 No caso do Suriname, sucatear ahistria dos quilombolas equivaleria ao etnocdio.

    Em fevereiro de 1988, quando Sally Price e eu chegamos emSalvador, Bahia, para lecionar por um semestre, com bolsa da Fulbright,os direitos pela terra dos quilombolas estavam muito presentes em nos-sas mentes. Mesmo que ainda no soubssemos, noticirios na TV dei-xavam claro que preocupaes similares chegavam s manchetes deprimeira pgina tambm no Brasil. Quase todas as noites vamos ima-gens de homens Kiriri pintados para a guerra, em confronto com lavra-dores baianos que haviam construdo casas e escolas dentro dos limitesda reserva dos ndios; cenas de sem-terras acampados em frente a pr-dios do Governo em Braslia e imagens ameaadoras de pistoleiros no

    Estado de So Paulo, armados at os dentes e montados em cavalos,caminhonetes ou no ocasional Mercedes-Benz, determinados a prote-ger suas fazendas dos bandos andarilhos de invasores rurais. Ningumpoderia viver no Brasil na dcada de 90 e permanecer alheio aos confli-tos ardentes pelo direito terra.

    Compreendemos logo que os afro-brasileiros cumprem um papelespecial dentro destes conflitos. Desde 1988 centenrio da abolioda escravatura , membros de vrias comunidades rurais negras fize-ram estraordinrios reivindicaes legais quanto ao direito terra. Omovimento negro organizado, com o apoio de diversos acadmicos, ob-teve sucesso durante os debates que levaram promulgao da novaConstituio Federal do Brasil, ao assegurar a incluso de trs artigos.Os Arts. 215 e 215 (Da Cultura) reconhecem oficialmente a contri-buio de grupos negros ao patrimnio cultural da nao e garante

    9 Os quilombolas somam aproximadamente 55.000 pessoas, possivelmente 12% da po-pulao do Suriname.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    8/25

    o pleno exerccio dos direitos culturais afro-brasileiros (em particular oCandombl e outras religies). E o texto integral do Art. 68 do Ato dasDisposies Constitucionais Transitrias diz: Aos remanescentes das

    comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras reco-nhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os ttulosrespectivos.10

    Esta ltima lei mexeu em um ninho de cobras que tem, na ltimadcada, interferido no trabalho de antroplogos, historiadores, advoga-dos, agrnomos e de organizaes ecolgicas e de direitos humanos,assim como de diversas outras que tm trabalhado com membros decomunidades, tentando assegurar-lhes o direito terra. Pois, apesar daexistncia de centenas de comunidades quilombolas durante o perododa escravido (incluindo, claro, o grande quilombo dos Palmares, s-culo XVII), o Brasil de hoje no abriga os tipos de sociedades quilombolas com evidente continuidade histrica das comunidades rebeldes do tem-po da escravido, e com profunda conscincia histrica e organizaopoltica semi-independente que ainda florecem em outras partes dasAmricas (Jamaica, Suriname, Guiana Francesa e Colmbia). A exce-

    lente coletnea Liberdade por um fio: histria dos quilombos noBrasil,11 ao mesmo tempo em que inclui vrios captulos sobre Palma-res, devota a maior parte de suas mais de 500 pginas demonstraoda variedade e da extenso geogrfica de outras comunidades similaresno Brasil mapas detalhados mostram, por exemplo, a densidade not-vel dos quilombos em Minas Gerais do sculo XVIII (onde houve, apro-ximadamente 160, aldeias documentadas), no Mato Grosso, na regiodo Rio de Janeiro, no Maranho e em outras reas. No entanto, dezes-

    sete dos dezoito captulos do livro lidam com quilombos que foramdestrudos bem antes da abolio da escravatura, e uma abordagemmais geral da historiografia deixa claro que, relativamente a um contex-

    10 A legislao de 1988 foi inovadora, uma vez que, no Brasil ps-emancipao, (diferen-temente dos Estados Unidos ou da frica do Sul) no havia nenhuma tradio de inter-veno em assuntos raciais. Para mais detalhes legais, ver NUER, Regulamentaode terras de negros no Brasil (Boletim Informativo n1), Florianpolis, Ncleo de

    Estudos sobre Identidade e Relaes Intertnicas, UFSC, 1996.11 Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes (orgs.), Liberdade por um fio: histria dosquilombos no Brasil (So Paulo, Companhia das Letras, 1996).

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    9/25

    to hemisfrico, as classes dominantes do Brasil tiveram especial suces-so na destruio das centenas (ou, mais possivelmente, milhares) dequilombos histricos. Por ocasio da Abolio, a grande maioria dos

    quilombos que ainda existiam eram recm-formados e muitos deles semesclaram, posteriormente, s populaes de seu entorno.

    No Brasil de hoje, em locais que foram anteriormente reas eco-nomicamente marginais, pode-se encontrar vilarejos habitados por afro-brasileiros, os quais so referidos tradicionalmente como comunidadesnegras rurais ou terras de preto. Suas origens so variadas algu-mas foram formadas por escravos (ou ex-escravos), aps a falncia deuma fazenda ou plantao nas dcadas confusas anteriores Abolio,algumas fruto de doaes de terras por senhores a ex-escravos, outrascompradas por escravos libertos (que, em alguns casos, haviam com-prado sua prpria liberdade), outras doaes de terras a escravos quehaviam servido ao exrcito em tempo de guerra, ou ainda doaes aescravos por ordens religiosas. Em alguns casos (particularmente naregio do Baixo Amazonas), elas incluem descendentes atuais dequilombos formados no perodo prximo ao fim da escravido ou talvez

    at mesmo antes. O que estas comunidades de diversas origens tm emcomum, fora sua negritude, uma resistncia de longas dcadas, emum territrio que exploram (geralmente pela caa, pesca e agriculturade subsistncia) sem subdivises e sem escritura oficial.

    Foram estas comunidades a maioria das quais sem tradies(seja em documentos escritos ou testemunho oral) que as conectemdiretamente com os quilombos histricos que, durante a dcada, pas-sada entraram, em muitos casos, na batalha jurdica como candidatos incluso no crculo privilegiado de remanescentes de quilombos, em-bora, em 1995, quando o primeiro encontro nacional de remanescentesde quilombos aconteceu em Braslia, uma nica destas comunidadeshouvesse sido reconhecida formalmente pelo Estado. O movimento co-meou a adquirir sucesso pequeno, porm simbolicamente importante,logo depois. (Em 1996, um inventrio de comunidades potencialmenteaptas a constar na lista inclua mais de 50012 e outro postulava ao me-

    12 Sem Fronteiras, Muita briga pela frente. Demarcao das terras quilombolas, n 246(nov. 1996), p.18, texto da Internet.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    10/25

    nos 2.000 comunidades negras, no Brasil hoje, que podem se dizer des-cendentes de grupos quilombolas.13

    Um padro diacrnico semelhante descreve a maioria dos casos

    relevantes o que Maria de Lourdes Bandeira chamou de um dramatnico em trs atos: os brancos vo embora; os pretos instituem suacomunidade igualitria; os brancos voltam e os pretos resistem.14 O re-torno dos brancos, durante uma dcada ou duas dcadas passadas, to-mou vrias formas, incluindo a expanso, para reas anteriormente mar-ginais, de companhias de madeira para construo, minerao e agrope-curia, projetos hidroeltricos e investidores individuais. E as comunida-des rurais negras afetadas agora acrescentaram o modo de resistnciajurdico/antropolgico a todas aquelas formas de resistncia mais calmase menos visveis que, no passado, elas acionavam para sobreviverem.

    O restante deste ensaio bibliogrfico examina uma seleo detrabalhos recentes sobre remanescentes de quilombos que, muitas ve-zes, usam pesquisas sobre o Suriname e outras comunidades quilombolascaribenhas como modelos explcitos ou implcitos. Embora a situaodos remanescentes e dos quilombolas surinameses sejam diferentes em

    muitos aspectos, o compromisso jurdico do Brasil pode prover liescruciais ao seu vizinho do Norte. E um comentrio sobre esta experin-cia pode ser interessante tambm para estudiosos da escravido nofamiliarizados (como eu, at recentemente) com a batalha atualmentevigente no Brasil sobre o significado de quilombo e o significado, maisgeral, de formas de resistncia negra, na escravido e depois dela.15

    13 Jos Jorge de Carvalho, Globalization, traditions and simultaneity of presences, inLuiz E. Soares (org.), Cultural pluralism, identity, and globalization (Rio de Janeiro,UNESCO/ISSC/EDUCAM, 1996), pp. 414-458. A Fundao Cultural Palmares prepa-rou um mapa, disponvel na Internet, que representa graficamente a distribuio geogr-fica destas comunidades remanescentes, na home page:

    14 Maria de Lourdes Bandeira, Territrio negro em espao branco: estudo antropolgicode Vila Bela, So Paulo, Brasiliense, 1988.

    15 Escrevi estes comentrios a pedido de nosso anfitrio na Bahia, o historiador Joo Reis.A seleo de livros est longe de ser ampla, consistindo em grande parte de livros dabiblioteca pessoal dele, uma vez que a biblioteca da universidade estava fechada durantea nossa visita, devido a uma greve. Eu os apresento com todo o experimentalismo de um

    nefito em estudos brasileiros. John Collins, Flvio dos Santos Gomes, Ilka BoaventuraLeite, Sally Price e Joo Reis fizeram sugestes teis a uma verso preliminar destetexto. Toda a responsabilidade por erros e interpretaes incorretas minha.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    11/25

    O quilombo do Rio das Rs16 talvez sirva como ponto de parti-da, uma vez que adota uma perspectiva comparativa em sua militnciapelo reconhecimento pblico da luta das comunidades negras brasileiras

    por visibilidade e direitos humanos. Na primeira parte do livro, o antro-plogo Jos Jorge de Carvalho faz um apanhado de 73 pginas sobre ascomunidades maroons nas Amricas, modelado, em parte, em meuMaroon Societies. Os quilombolas surinameses, especialmente osSaramaka, so destaque, e informaes que constam de First-Time e Alabis World17 so apropriadas livremente, s vezes com citao.Quilombos haitianos, jamaicanos, colombianos, cubanos e venezuelanostm, ento, sua vez, antes que o autor inicie uma panormica sobre as

    comunidades quilombolas no Brasil.Carvalho acredita ter identificado uma diferena central entre a

    sociedade brasileira e outras sociedades escravas das Amricas atotal ausncia, no Brasil (em contraste, por exemplo, com o Suriname)de uma oposio estrutural generalizada entre quilombolas e escravos, aausncia de uma tradio discursiva que ponha em contraste quilombolase escravos. 18 Ele segue argumentando baseando-se em cultos afro-

    16 Jos Jorge de Carvalho (org.), Siglia Zambrotti Doria, e Adolfo Neves de Oliveira Jr., Oquilombo do Rio das Rs: histrias, tradies, lutas, Salvador, EDUFBA, 1996.

    17 Richard Price, First-time: the historical vision of Afro-American people , Baltimore,Johns Hopkins University Press, 1983 e Alabis World, Baltimore, Johns HopkinsUniversity Press, 1990. Fico particularmente preocupado com a reproduo, nestecaso, de vrios textos Saramaka de First-Time, incluindo canes e rezas altamentepoderosas, de maneira isolada da (e sem referncia ) contextualizao complexa que osSaramaka definiram explicitamente como pr-requisito para que pudessem ser traduzi-das e impressas (ver Price, First-Time, pp. 5-30)

    18 Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs, p.48. H uma forte dose de presentesmonesta alegada ausncia de tradio discursiva. Conforme li nas histrias apresentadasem Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, confrontos armados entre escravos equilombolas parecem ter sido to comuns durante expedies militares antiquilombosno Brasil quanto no Suriname, e nossa ignorncia sobre tradies discursivas quilombolas(ou de escravos brasileiros) parece brotar bem mais de nossa falta de conhecimentopresente sobre qualquer coisa que pensavam ou diziam os quilombolas brasileiros dofinal do sculo XVIII. Carvalho argumenta igualmente, mais adiante no livro, quereligies afro-brasileiras trazem uma imagem espelhada da religio Saramaka, na medidaem que as primeiras eliminam toda a memria da escravido, privilegiando um passadoafricano, enquanto que esta elimina toda a memria da frica e privilegia um passado

    rebelde (Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs, p. 179). Sem questionar aqui ageneralizao de Carvalho sobre religies afro-brasileiras, eu apontaria o seu notvelexcesso de simplificao quanto aos Saramaka. A meu ver, pelo menos, a religio saramaka

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    12/25

    (como muito de sua sociedade) reflete bastante a dinmica da experincia histricasaramaka ao invs da amnsia que Carvalho lhes atribui no que se refere frica, osSaramaka incorporam e comemoram explicitamente ambos os processos, o africano eo do Novo Mundo, em sua vida religiosa, como at mesmo uma leitura superficial deFirst-Time ou de Alabis World deve deixar bem claro.

    19 Para uma interpretao mais nuanada da dana do quilombo, incluindo uma crtica da

    literatura e uma tentativa de historicizao e contextualizao, ver Demian MoreiraReis, Quilombo, uma dana de luta entre ndios guerreiros e negros quilombolas,Palmares em Revista, 1 (1996), pp. 153-173.

    20 interessante que este argumento seja prximo e paralelo atual reviso do passadoescravo pelos escritores martiniquenhos Patrick Chamoiseau e Raphal Constant, quedefendem que o escravo rural, de aparncia doce e, no entanto, pleno de artimanhas,deva substituir o rebelde quilombola como figura principal nas representaesmartiniquenhas de resistncia histrica (ver Richard e Sally Price, Shadowboxing inthe Mangrove, Cultural Anthropology, 12 (1997), pp. 3-36.). Muito maneira donovo heri dos escritores martiniquenhos, aquele de Carvalho (e, segundo ele, o de Riodas Rs) procurava invisibilidade social como modo primordial de resistncia: Os

    descendentes de quilombos (...) tiveram que tornar-se invisveis, simblica e socialmente,para sobreviver. Jos Jorge de Carvalho, Quilombos: smbolos da luta pela terra e pelaliberdade, Cultura Vozes, 5 (set./out. 1997), pp. 149-160.

    brasileiros, assim como no discurso cotidiano que, em geral, os brasi-leiros constrem a imagem do escravo como oprimido e subserviente. Eanalisa um pouco a dramtica encenao anual dos moradores da rea

    onde Palmares existiu de um folguedo popular, cuja mensagem forte-mente antiquilombola, antindio e pr-escravido (e que deve ter origensjesuticas e outras origens brancas) a mensagem de que resistn-cia armada nunca funciona.19

    Quanto a Rio das Rs, no Estado da Bahia de hoje, Carvalho expli-ca que este contexto histrico era bem diferente daquele dos Palmares(ou Saramaka). Sem uma tradio discursiva de oposio entre quilombolase escravos, e com um modelo de escavo geralmente passivo, o modo deresistncia histrico escolhido pela comunidade era o de no confronta-o, de artimanha em lugar de guerra, mais remanescente (diz ele) davida de Esteban Montejo, em Cuba, do que da de Zumbi dos Palmares.20

    Num jogo retrico caracterstico da literatura brasileira recente, Carva-lho insiste em que o tipo de resistncia adotado historicamente em Riodas Rs representa uma dignidade alternativa em comparao com aresistncia aparentemente mais herica dos Saramaka realmente,

    ele sugere que ela seja mais democrtica por no ser racialmenteexclusivista (antibranca). Enquanto lutavam por suas terras, ele diz, acomunidade de Rio das Rs abraava a idia de fraternidade univer-

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    13/25

    sal, incorporando em sua religio, por exemplo, figuras de ndios, afri-canos, escravos e brancos (em forma de Jesus e Maria).21

    A parte central do livro, escrita por Siglia Zambrotti Doria e por

    Carvalho, se inicia com uma descrio da tentativa violenta, a partir doanos 1970, de tomada das terras que incluam o Rio das Rs pela tercei-ra maior companhia de algodo do Brasil a destruio sistemticadas casas e campos cultivados de seus habitantes e a resistncia cont-nua da comunidade. ( interessante que o fazendeiro havia recebidoemprstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento para be-neficiar estas mesmas terras.22 ) Em 1993, a comunidade foi cercadapor capangas contratados pelo fazendeiro, seus animais foram mortos,algumas de suas casas derrubadas e eles prprios tolhidos de acesso asuas roas e de liberdade de movimentar-se para fora da rea, subsis-tindo apenas de doaes de organizaes de fora.23 Foi nesse clima, ecom proteo da Polcia Federal, que os pesquisadores realizaram pes-quisas etnogrficas e histricas sobre a comunidade, com o intuito delegitimar suas reivindicaes legais.

    Dadas as particularidades de seus objetivos e circunstncias, a

    pesquisa em Rio das Rs e na maior parte das demais comunidadesaqui examinadas tem caractersticas diferentes das realizadas emsociedades quilombolas em outros lugares nas Amricas (que consisti-ram, muitas vezes, de trabalho etnogrfico e histrico de longa dura-o.)24 Em captulo em que aborda o projeto Rio das Rs, Adolfo Ne-ves de Oliveira Jr. captura o sabor especial de tais iniciativas. Nosdeparamos com, escreve ele,

    A presena de uma comunidade negra, no tradicionalmente reco-nhecida como remanescente de quilombo e que passava a reivin-

    21 Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs, p.68. Escrevendo alhures, Carvalhocarrega na elegia quanto a comunidades alegadamente criadas por ancestrais dos rema-nescentes. Eles eram capazes de integrar pessoas de origens tnicas e raciais as maisdistintas e encarna claramente a realizao de uma utopia de liberdade, fraternidade eautonomia. Carvalho, Quilombos: smbolos da luta, pp. 157, 154-155.

    22 Carvalho, Globalization, p.428.23 Para um relato jornalstico, dramtico destes incidentes, ver James Brook, Brazil seeks

    to return ancestral lands to descendents of Runaway Slaves., The New York Times, New

    York, 15 ago. 1993, p.A12.24 Ver, para uma crtica recente, Richard Price (org.), Maroon societies: rebel slavecommunities , pp. xi-xl.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    14/25

    dicar, na Justia, seu reconhecimento enquanto tal (...) Acrescido,ainda, do fato da inexistncia, na mesma comunidade, de uma tra-dio oral articulada, referente a algo que pudesse ser entendido

    como um quilombo, salvo referncias esparsas presena de ne-gros fugidos na regio e a insistncia reticente de no serem eles,os negros de Rio das Rs, descendentes de escravos. Diversa-mente do que se poderia encontrar em um quilombo, no haviaevidncia imediata da presena de qualquer tipo de registro oralsobre feitos hericos de resistncia do quilombo. Entretanto, asreferncias da tradio oral apontavam, insistentemente, em dire-o a um modo de vida que no era aquele de escravos e no haviaqualquer tipo de registro de uma doao de terras a libertos, oucoisa semelhante, que pudesse fornecer explicao para a presen-a de uma comunidade negra naquela regio (...) [Baseados nestasinvestigaes,] acreditamos que o que encontramos no Rio das Rsse encaixe nos termos do Art. 62 dos ADCT; isto ... sejam remanes-centes de um agrupamento de negros fugidos da escravido, queconcentrou-se na regio do Rio das Rs h cerca de 150 anos.25

    Estamos bem distantes de Mooretown (Jamaica), El Palenque de

    San Baslio (Colombia) ou Asindoopo (Suriname).26

    25 Oliveira Jr., O Quilombo do Rio das Rs, pp. 229-230.26 Em estudo sofisticado e nuanado sobre Cafund, uma comunidade negra no Estado de

    So Paulo que mantm sua identidade, em parte atravs do uso de lxico Bantu emdeterminados contextos sociais, Carlos Vogt e Peter Fry ironizam acerca da inconsis-tncia conceitual da definio militante de remanescentes de quilombos (Cafund: A frica no Brasil, linguagem e sociedade, So Paulo, Companhia das Letras,1996): Aose inventar um passado de essncias africanas, inventa-se tambm um presente novo,denso de consonncias com esse passado (...) Organizam-se eventos, fazem-se procla-

    maes, cria-se um calendrio Zumbi para citaes e referncias.Em 1994, moradores de comunidades, militantes do movimento negro brasileiro, cien-tistas sociais e representantes do poder pblico, reunidos em Braslia, sob a inspiraodo heri nacional Zumbi, para o I Seminrio Nacional de Comunidades Remanescentesde Quilombos, fizeram uma proclamao ao povo brasileiro na qual definem as carac-tersticas gerais do que seriam comunidades remanescentes de quilombos:

    Uma identidade tnica de preponderncia negra; a ancianidade desuas ocupaes fundadas em apossamento dos seus territrios; adeteno de uma base geogrfica comum ao grupo; organizaoem unidade de trabalho familiar e coletivo; vivncia em relativaharmonia com os recursos naturais existentes...

    Dentro dessa poltica de identidade, o conceito de quilombo alarga-se cada vez mais, cada vez mais inclusivo. Vogt e Fry (com a assistncia de Robert W. Slenes), Cafund,pp. 269-270.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    15/25

    Pode parecer injusto comparar uma pesquisa realizada explicita-mente para apoiar uma reivindicao legal com uma pesquisa tradicio-nal, mais cientfica. Ainda assim, de uma perspectiva comparativista,

    parece razovel notar, em quase todos os estudos examinados, a redu-o (e brevidade) da pesquisa, a ausncia de etnografia texturizada e apobreza de testemunhos orais. No livro sobre o Rio das Rs, por exem-plo, se publica uma entrevista de uma pgina para demonstrar que osancestrais dos membros da comunidade atual sempre trabalham livres,que nunca trabalharam para patro, mas esta discusso com um ho-mem de 61 anos um testemunho da tendncia do pesquisador de colo-car palavras na boca do interlocutor, e o prprio homem deixa claro que

    no pode falar sobre nenhuma poca anterior quela de seu av.27 Emgeral, a investigao caminha de hiptese em hiptese, de uma nfimaevidncia seguinte, construindo um caso que permanece em grandeparte no mbito das possibilidades. No final, os pesquisadores, aindaassim, asseguram que possuem confirmao de posse continuada eimemorial das terras da Fazenda Rio das Rs por cerca de trezentasfamlias negras.28 No momento em que escrevo (1998), as reivindica-

    es legais da comunidade negra do Rio das Rs continuam a se moverlentamente pelo sistema da Justia Federal e pelo menos outros dezanos devem se passar antes de uma deciso definitiva.29

    A partir de seu texto parece claro que, no obstante o aparente ajuste dos Cafundnestas definies, estes autores sentem a importncia de se manter a autodefinio eespecificidade da comunidade (o que, em realidade, no inclui laos histricos comquilombos), e de evitar tintas romnticas de um coletivismo social que de fato noexiste na comunidade (Vogt e Fry, Cafund, p.270).

    27 Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs, pp. 121-122.28 Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs, p. 126.29 Duas publicaes recentes de padres catlicos militantes (Jos Evangelista de Souza e

    Joo Carlos Dechamp de Almeida, Comunidades rurais negras Rio das Rs-Bahia:Documentrio, Braslia, Impresso e Arte - Arte e Movimento, 1994; e O Mucambo do Rio das Rs: um modelo de resistncia negra, Braslia, Impresso e Arte - Arte eMovimento, 1994) exploram temas similares relativos a Rio das Rs, usando umacombinao de documentao oral e de arquivos. Siglia Zambrotti Doria, O estadobrasileiro frente diversidade social que reconhece o caso da comunidade remanescentede Quilombo do Rio das Rs, Palmares em Revista, 1 (1996), pp. 15-43 inclui anlisemais recente do processo judicial e do papel dos antroplogos no caso, e Carlos Alberto

    Steil, Poltica, etnia e ritual: o Rio das Rs como remanescente de quilombos, Revistade Cincias Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina (1998), nos d umaanlise das nuances da poltica tnica na comunidade.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    16/25

    Um caso contrastante ocorre na rea conhecida como GuianaBrasileira, entre a fronteira do Suriname e o Amazonas, que foi outroraabrigo para um grande nmero de quilombos (em geral chamados de

    mocambos nesta regio). Registros histricos demonstram grandes ex-pedies militares contra as aldeias quilombolas localizadas ao longo dereas ao norte do Amazonas em 1799, 1811, 1813, 1831, 1844, 1855 e1863, algumas delas tendo capturado mais de cem prisioneiros. (A ex-pedio de 1813 incluiu 375 homens milcias, escravos e ndiosmunducuru.) A histria destes mocambos contada parcialmente natese, no publicada, de Eurpedes A. Funes, Nasci nas matas, nuncative senhor: histria e memria dos mocambos do Baixo Amazo-

    nas, e resumida em seu captuloLiberdade por um fio.30 Funes conta-nos que Pacoval, a comunidade contempornea que ele estudou deta-lhadamente, foi formada apenas na dcada de 1870 por pessoas fugidasde outros quilombos da regio. As semelhanas principais dos habitan-tes (em tudo, da organizao religiosa social) com outras comunidadesrurais brasileiras comuns, so, ento, explicadas por uma ausncia decontinuidade, de longa durao, o tipo de passado maroon vivido pelos

    Ndyukas ou Saramakas. Ao ler sobre esta comunidade (como no caso deRio das Rs), fico chocado com a falta de tradies orais profundas asescassas histrias coletadas se referem, no mximo, a meados do sculoXIX, ou, em alguns casos, Africa em geral ou a histrias de escravidodo tipo que poderiam facilmente ter sido aprendidas dos missionrios queesto presentes desde a fundao da aldeia.31

    30 Nasci nos matos, nunca tive senhor: histria e memria dos mocambos do BaixoAmazonas (2 vols.). (Doutorado, Universidade de So Paulo, 1995). Nasci nosmatos, nunca tive senhor: histria e memria dos mocambos do Baixo Amazonas.in Reis e Gomes (orgs.), Liberdade por um fio, pp. 467-497.

    31 Outra pesquisadora, Lcia M. M. de Andrade, encontrou pessoas de idade vivendo nascomunidades remanescentes da rea que possuem tradies de seus bisavs ou tataravsque viveram no Quilombo Maravilha, que foi habitado, segundo registros histricos, de1835 a 1852 (Os quilombos da bacia do Rio Trombetas: breve histrico., in ElianeCantarino ODwyer (org.), Terra de quilombos, Rio de Janeiro, Associao Brasileira deAntropologia, 1995, pp. 47-60). Pelo que tenho visto, este parece ser o limite cronol-gico da atual memria coletiva dentre os remanescentes brasileiros. Ao meu ver, pesquisas

    futuras entre os remanescentes, particularmente na regio do Baixo Amazonas (Par eAmap), so promissoras no sentido de desvendar ocasionais quilombos com uma conti-nuidade histrica ainda maior, talvez at mesmo se estendendo at o sculo XVIII.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    17/25

    Funes faz um bom trabalho descrevendo a escravido na regiode Santarm e bidos, de onde os quilombolas fugiram plantaespequenas, geralmente com apenas um punhado de escravos. No incio

    do sculo XIX, o mapa da regio foi pontilhado por quilombos, localiza-dos em terrenos bastante similares aos do Suriname (aldeias ribeirinhasacima de grandes cachoeiras, a vrios dias de caminhada das capitaisregionais). Diferentemente dos quilombos parasitneos, comuns emmuitas regies do Brasil, muitas destas aldeias amazonenses lembramsuas equivalentes surinamesas em sua distncia das fazendas ou cida-des, e em sua relativa independncia econmica.32

    Segundo a descrio feita por Funes, as comunidades quilombolasdo Baixo Amazonas se parecem, ento, com as do Suriname tanto hist-rica quanto geograficamente por volta de 1800, por exemplo, eles po-dem ter compartilhado muitas caractersticas , mas, ao mesmo tempo,em termos do que se tornaram hoje, diferem delas claramente com as doSuriname mantendo uma vasta gama de continuidades culturais que sus-tentam sua diferena em relao a comunidades no-quilombolas noSuriname, e com as da Guiana Brasileira tendo vivido rupturas e deslo-

    camentos bastante freqentes, para que sua continuidade enquanto co-munidades date apenas da segunda metade do sculo passado.

    A antroploga Eliane Cantarino ODwyer leva adiante a histriado Baixo Amazonas, oferecendo uma descrio da atual situao dosdescendentes dos quilombos na regio de Trombetas.33 Em meados dosanos 70, um imenso centro multinacional de extrao de bauxita foi es-tabelecida a 80 quilometros rio acima de Oriximin, onde vivem muitosdescendentes de quilombos histricos. (Empresas participantes incluemnomes conhecidos, como Reynolds, Alcan e Billiton, assim como firmasnorueguesas e brasileiras; a ALCOA est envolvida em um negcioseparado nas proximidades). A cidade-empresa de Porto Trombetas foiconstruda rapidamente na floresta, com onipresente guarda de seguran-

    32 Ao mesmo tempo, elas conseguiram, como quilombos isolados em outros lugares nasAmricas, conduzir negcios significativos com as cidades, por exemplo cultivando taba-

    co, coletando cajus e produzindo azeite-de-dend em troca de produtos manufaturados.33 Remanescentes de quilombos na fronteira Amaznica: a etnicidade como instru-mento de luta pela terra. in ODwyer (org.), Terra de quilombos, pp. 121-139.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    18/25

    a, supermercado, cinema, hospital, escola e prdios da administrao, ecom vos regulares da Varig em seu novo aeroporto. No rio, navios debauxita com bandeiras estrangeiras minimizam as canoas dos amerndios.

    Perto desta nova cidade, mais de cem casas habitadas por remanescen-tes de quilombos, que as construram com os detritos da cidade durante osanos 80, quando os homens trabalharam como empregados das empre-sas. No comeo dos anos 90, quando foram despedidos, estes homens seviram impossibilitados de retornar a suas atividades de subsistncia ante-riores, em grande parte por conta dos esforos contundentes do IBAMApara proteger uma reserva biolgica de 385 mil hectares e uma reservade floresta nacional de 426 mil hectares. (Note-se que eles e seus an-

    cestrais vm cultivando e pescando nestes espaos h mais de um sculo.Os habitantes de Boa Vista, mas tambm os outros descendentes dequilombos Trombetas na rea, se vem num confronto direto e constantecom a poderosa iniciativa privada e com a fora total do Estado. CantarinoODwyer argumenta que precisamente esta situao de confronto queencoraja a categoria de remanescentes de quilombos a emergir hojeenquanto identidade tnica de significado especial para o povo de Boa

    Vista.Em 1989, vrios milhares de residentes da regio (21 aldeias) se

    organizaram como Associao das Comunidades Remanescentes deQuilombos do Municpio de Oriximin e, com a ajuda de antroplogos eoutros peritos designados, comearam a militar pela posse da terra. Emnovembro de 1995, a pequenina comunidade de Boa Vista se tornou aprimeira em todo o Brasil a receber ttulo de posse coletiva da terra,com base no Art. 68 da Constituio. ( significativo que o Governo

    props inicialmente a concesso de ttulos individuais de posse de lotesde terra, mas a comunidade insistiu em posse coletiva.34 ) Em novembrode 1996, duas comunidades vizinhas, gua Fria e Pacoval (a comunida-de estudada por Funes), se tornaram a segunda e a terceira no pas areceberem suas terras, de acordo com o Art. 68.35

    34 Quilombo de Oriximir (Par). Os herdeiros de Zumbi. Comunidade negra do Par aprimeira a comemorar a conquista de um direito garantido pela Constituio brasileira,

    Revista Sem Fronteiras, 246 (ago. 1995), pp. 22-23 e 248 (jan./fev. 1997), p. 12.),texto da Internet.

    35 Ibidem.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    19/25

    Uma variao diferente da histria dos remanescentes conta-da em Frechal terra de preto: quilombo reconhecido como reservaextrativista36 , que descreve a luta bem sucedida do povo de Frechal,

    no Estado do Maranho, para ter sua comunidade reconhecida pelo Es-tado como uma reserva extrativista no incio do encontro mundial dasNaes Unidas/Eco-92, no Rio de Janeiro. Financiados pela FundaoFord, Oxfam e outras organizaes similares, uma grande equipe depesquisadores, advogados, agrnomos, fotgrafos e outros, participa-ram do projeto Frechal e da produo do livro. Em 1994, membros dacomunidade, juntamente com membros de muitas organizaes nacio-nais e internacionais, ocuparam os escritrios do IBAMA, na capital do

    Estado, para pressionar as autoridades a efetivar a desapropriao deterras estabelecida pelo decreto presidencial de 1992. Os passos judici-ais e administrativos finais ainda esto em andamento, mas com todosos sinais de uma vitria total da comunidade.37

    Os habitantes de Frechal chamam sua comunidade de quilombo,embora no tenham tradies que os relacionem com quilombos histri-cos sua histria oral conta simplesmente que seus pais e avs foram

    36 Frechal terra de preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista, So Lus-MA,SMDDH/CCN-PVN, 1996.

    37 Talvez pela natureza pioneira da iniciativa a necessidade de encontrar uma chave quepossa destravar os caminhos do sistema legal brasileiro , os argumentos usados poradvogados clamando pela causa da comunidade, descritos em detalhe no livro, so dognero vale-tudo. Entre as expresses usadas mais freqentemente para descrever orelacionamento entre esta comunidade negra e o ambiente natural de seu entorno estouma relao harmoniosa, perfeitamente integrada e tradicional argumentosque, embora contendo uma leve pitada de nobre selvageria, ainda assim fazem sentidorelativo no contexto das prticas destrutivas, modernas da agroindstria, que cometem

    crimes contra o meio-ambiente. O entusiasmo desta literatura militante tambm levaao ocasional uso de afirmaes datadas. O livro (Frechal terra de preto, p.27), porexemplo, cita a cifra de Arthur Ramos de 18 milhes africanos trazidos ao Brasil comoescravos, quando qualquer historiador moderno saberia que esta estimativa do incio dosculo XX exagera em, no mnimo, quatro vezes a realidade. (Outro livro sobre quilombos,trazendo outro tipo de argumento, cita um total de apenas 700 mil [Hermes Leal, Quilombo:uma aventura no Vo das Almas. So Paulo, Mercuryo, 1995] e assim vai a histria.)O livroRio das Rs sugere que os remanescentes de quilombos em Oriximin e Frechal sona realidade descendentes de quilombos do sculo XVII (Carvalho et alii, O Quilombo doRio das Rs, p.67), uma afirmao que no encontro em nenhum dos estudos das prpriascomunidades, e os remanescentes do Rio das Rs so caracterizados (em ingls) com

    retrica que parece mais apropriada ao menos a meu ver a quilombolas de Surinameou da Jamaica tanto enquanto maroons quanto como guerreiros da liberdade. Carva-lho et alii, O Quilombo do Rio das Rs, pp. 429-430.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    20/25

    enterrados ali e que eles, desde que podem se lembrar, tm vivido nolocal.38 Como escreve Eliane Cantarino ODwyer em outra obra39, por-ta-vozes comunitrios, antroplogos e outros engajados na presente luta

    esto claramente envolvidos no processo de ressemantizao da pa-lavra quilombo para designar os segmentos negros em diferentes regi-es e contextos do Brasil (...) [E que tm um] sentimento de ser epertencer a um lugar e a um grupo especfico.40 Usando o mesmocritrio, o Projeto Vida de Negro, a Sociedade Maranhense de DireitosHumanos e o Centro de Cultura Negra identificaram hoje, apenas noEstado do Maranho, algo em torno de quatro centenas de situaesde territrios povoados por negros, portadores de uma identidade tnica

    que remonta escravido.41

    Terra de pretos, terra de mulheres se refere ainda a mais umarea de contraste a costa sul do Rio de Janeiro, que est sendorapidamente desenvolvida, tanto pela indstria petroqumica quanto pelo

    38 Frechal terra de preto, p.59.39 ODwyer, Terra de quilombos.40 Sobre o conceito de ressemantizao, ver tambm o estudo de Alfredo Wagner Berno de

    Almeida no livro Frechal (Quilombos: semantologia face a novas identidades inCarvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs , pp.11-19). Flvio dos Santos Gomes,Ainda sobre os quilombos: repensando a construo de smbolos de identidade tnica noBrasil, in Maria Hermnia Tavares de Almeida, Peter Fry e Elisa Reis (orgs.), Polticae cultura: vises do passado e perspectivas contemporneas (So Paulo, ANPOCS/HUCITEC, 1996, pp. 197-221), apresenta um estudo proveitoso sobre as mudanas douso poltico do conceito de quilombo no Brasil do sculo XX. Jos Maurcio AndionArruti, A emergncia dos remanescentes: notas para o dilogo entre indgenas equilombolas., Mana 3:2 (1997), pp. 7-38, faz uma anlise nuanada sobre o conceitomutante de remanescentes inicialmente utilizado para grupos indgenas no comeo

    do sculo XX , enfatizando o aspecto emergente dos neoquilombos e a produo dehistrias e identidades em andamento.

    41 Ivan R. Costa, texto de apresentao para Frechal terra de preto (1996). Depois de terterminado este trabalho, recebi, por gentileza de Eliane Cantarino ODwyer, um exem-plar do ltimo livro do Projeto Vida de Negro, Jamary dos Pretos: terra de mocambeiros,So Lus-MA, SMDDH/CCN-PVN, 1998, um relato detalhado da luta atual para conse-guir que a comunidade de Jamary dos Pretos, no Maranho, seja reconhecida comoquilombo, sob o Art. 68 do ADCT. Este trabalho inclui o texto completo da petiooficial para reconhecimento (pp.27-112) e ainda informaes adicionais sobre a comu-nidade e a regio. Suas foras e fraquezas (como, por exemplo, a brevidade do trabalhode campo antropolgico um ms sobre o qual a petio se baseia, em parte) se

    encaixam no padro de outros livros sobre remanescentes abordados. Para um relato jornalstico recente sobre remanescentes de quilombos no Maranho, ver Marina Amaral,Terra de preto, Caros Amigos 2:14 (1998), pp. 18-25.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    21/25

    turismo de praia. A construo da estrada RioSantos, que dividiu asterras da comunidade de Campinho da Independncia em dois, apenasum dos recentes ataques integridade de um grupo que esteve na mes-

    ma rea de terra, anteriormente marginal, por mais de um sculo e meio.A segunda metade do ttulo do livro se refere a realidades etnogrficaspinceladas pela autora um tanto amplamente quanto largo, embora pa-rea claro que as mulheres formaram o cerne da continuidade da comu-nidade, genealgica e economicamente, desde que trs negras recebe-ram a terra como um presente de um fazendeiro que partia. Em 1995,tricentenrio da morte de Zumbi, os jovens (como os de outras partes doBrasil) assumiram uma nova identidade para sua comunidade, nomean-

    do-a Quilombo Contemporneo da Independncia.42

    A idia de um drama tnico em trs atos, acorrendo em todosos cantos do Brasil, foi desenvolvida antes que antroplogos houvessemcomeado a trabalhar pelo reconhecimento de remanescentes, duranteo estudo de uma comunidade com uma histria paculiar Vila Bela.Sua histria contada com uma graa especial por Maria de LourdesBandeira43 , na mais equilibrada etnografia histrica dos livros aqui co-

    mentados.44

    Ao longo da segunda metade do sculo XVIII, esta cidadecolonial cuja planta fsica foi elaborada em Portugal foi capital daProvncia do Mato Grosso. Por volta dos 1820, havia sido abandonadapor quase toda sua populao branca, que se mudou para a nova capital,Cuiab, simplesmente deixando para trs muitos de seus escravos. Nosculo e meio que se seguiu, o que havia se tornado uma cidade negrade aproximadamente alguns milhares de habitantes, relativamente isola-da, cultivando seu alimento em hortas de subsistncia em seus arredo-

    res, conseguiu sobreviver, muitas vezes reagindo a ataques de ndiosque a cercavam. Mas com a chegada de uma estrada asfaltada, de

    42 Neusa M. Mendes de Gusmo, Terra de pretos, terra de mulheres: terra, mulher e raanum bairro negro, Braslia, Ministrio da Cultura/Fundao cultural Palmares, 1996.

    43 Bandeira, Territrio negro.44 Um exemplo de literatura de cincias sociais pr-remanescente, este estudo foi escrito

    como parte de um projeto mais abrangente, mais puramente cientfico, na USP,

    fortemente influenciado pela escola de So Paulo. Vogt e Fry, Cafund, um estudoantropolgico que tambm claramente separado ideologicamente da literatura sobreremanescentes, se destaca igualmente por seu rigor e sofisticao.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    22/25

    madeireiras, fazendas e outros negcios agropecurios, a populaoaumentou sete vezes entre 1970 e 1985. Os habitantes negros de VilaBela foram atingidos por uma onda de pioneiros de outras regies

    pobres do pas que, devido sua relao com grandes interesses econ-micos, se apossaram (e conseguiram ttulos de posse) da parte da terraque havia sido usada por um sculo e meio pelos residentes de VilaBela.

    O Art. 68 uma mnima porm significativa rachadura no monolitobrasileiro de direito de propriedade.Remanescente de quilombo se tor-nou uma categoria reconhecida (ainda que numericamente minscula),ao lado de populaes indgenas e das grandes massas de sem-terra, naluta geral pela redistribuio de terra nesta que a mais desigual dassociedades modernas. Nas ltimas sesses da Associao Brasileira deAntropologia sobre Terra de Quilombo, antroplogos descreveramnovos casos de norte a sul e de leste a oeste do pas 22 comunidadespotenciais de remanescentes foram mencionadas apenas no Estado deSo Paulo.45 Os antroplogos brasileiros continuam a assumir um im-portante papel auxiliar na atual criao de neo-quilombos,46 um papel

    que cresce, devido, em parte, a suas lutas recentes em favor das popu-laes indgenas47 e que parcialmente paralelo ao de antroplogos dosEstados Unidos e do Canad de uma ou duas dcadas atrs, na redefi-nio do que significava ser membro de uma tribo indgena reconhecidafederalmente.

    Quilombo ocupa um lugar proeminente na rica floresta brasilei-ra de smbolos, da msica de Gilberto Gil no filme Quilombo, de Carlos

    45 Eliane Cantarino ODwyer, Terra de quilombo, (Seo ABA, trechos na Internet),1998.

    46 Antroplogos brasileiros tm tambm continuado a lutar contra a invisibilidade geraldos negros em muitas partes do pas. Uma coletnea organizada por Ilka BoaventuraLeite, Negros no Sul do Brasil: invisibilidade e territorialidade (Santa Catarina, LetrasContemporneas, 1996), toma a invisibilidade como tema, para provar efetivamente aimportncia histrica (e contempornea) dos negros, at mesmo na regio mais euro-pia do Brasil, o Sul.

    47 Alcida Ramos, The hyperreal Indian, Critique of Anthropology, 4:2 (1994), pp. 153-171, apresenta uma excelente reviso da recente histria do relacionamento complexo

    entre antroplogos brasileiros, indianistas profissionais, o Estado e ndios. Para anlisemais completa, ver Alcida Rita Ramos, Indigenism: ethnic politics in Brazil, Madison,University of Wisconsin Press, 1998.

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    23/25

    Diegues, ou da neocatlica Missa dos Quilombos de Milton Nasci-mento, a prolas jornalsticas como a favela filha do quilombo (Fo-lha de So Paulo, 1995)48 ou aos bares Quilombo (e lojas de lembran-

    as de aeroporto, Mocambo) que se v em muitas cidades. Hoje, oCentro Histrico de Salvador, o Pelourinho, freqentemente citado pormembros do movimento negro como um quilombo, embora seus mo-radores tambm usem a palavra gueto para se referir area. E o maisfamoso de todos os quilombos permanece um cone ferozmente disputa-do. Sabe-se que o movimento negro est dividido sobre o destino dos252 hectares alocados pelo Governo para uso comemorativo no stiohistrico de Palmares. Uma das propostas montar uma espcie de

    cenrio do que foi o quilombo de Zumbi, destrudo em 1694, quandotinha cerca de 2.000 habitantes, para resgatar as origens culturaisafricanas do quilombo; a segunda construir um memorial de concretoimenso, desenhado por Oscar Niemeyer; e a terceira transformar area em um parque ecolgico. 49

    Os quilombos da era da escravido do Brasil possuem histriashericas de resistncia, ainda que hoje elas estejam, em sua maior parte,

    perdidas nas sombras.50

    Os remanescentes de quilombos, a meu ver,

    48 Artigo citado por Berno de Almeida em Quilombos: semantologia face a novas identi-dades, in Carvalho et alii, O quilombo do Rio das Rs.)

    49 Ari Cipola, Destino de local de quilombo discutido, Folha de S. Paulo (20 nov. 1997),texto da Internet. Ao ler estas linhas, o antroplogo John Collins chamou minha atenopara a recente presso em Salvador para se classificar qualquer descendente de africanocomo negro ao invs de moreno, fruto de idias sobre democracia racial camisetasproclamando 100% negro e a reorganizao das categorias para censos so exemplos

    que vm imediatamente mente. Este crescente essencialismo racial, juntamente com oessencialismo espacial dos remanescentes, ajudam a explicar um comentrio recente deum ativista do MNU em Salvador de que Cada famlia negra um quilombo. Todo negrono Brasil mora num quilombo. (Comunicao pessoal, maio 1998).

    50 Carvalho, Quilombos: smbolos da luta p.158, procura insistir no herosmo dosquilombolas no contexto brasileiro questionando Reis e Gomes em Liberdade por umfio, por supostamente no enfatizarem isto suficientemente e clama por uma novahistria nacional que reconhea nessa nova galeria de heris, ao lado de Zumbi dosPalmares, nomes como o de Cosme, lder do conglomerado de quilombos de Itapecuru;a Rainha Teresa, lder do Quilombo do Quariter (MT); Ambrsio, chefe do QuilomboGrande de Minas Gerais; Atansio, lder do Quilombo Cidade Maravilha, no Trombetas;

    Malunguinho, lendrio rebelde do Quilombo Catuc (PE); e tantos outros que lutarampela bandeira da liberdade, hoje empunhada, com no menos empenho e dignidade, pormilhares de descendentes (p. 159).

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    24/25

    partilham uma herana diferente de resistncia, mais branda. Atual-mente sitiados por foras muito alm de seu controle, estas comunida-des claramente necessitam de toda a ajuda que possam mobilizar. Com

    o apoio atual de antroplogos e de grupos de ao poltica, h hoje graas ao Art. 68 e seus defensores pelo menos a promessa demelhores dias para as comunidades remanescentes do Brasil.51

    Por quase duas dcadas, em todos os aspectos de suas polticaspblicas, o Suriname tem procurado maneiras de usar modelos do Ter-ceiro Mundo ou da Frente Sul, ao invs daqueles da Europa ou daAmrica do Norte. Assim, solues relativamente brilhantes para ques-tes de terra e de autonomia para populaes indgenas, por exemplo,no Canad, ou para os Sami, na Unio Europia, podem parecer menosrelevantes para quem toma decises no Suriname do que as prticasbrasileiras. Visto que no Suriname, diferentemente do Brasil, osquilombolas representam uma proporo significativa da populao na-cional e que no so necessrios antroplogos para demonstrar suanotvel diferena cultural/social/poltica, que evidente at mesmopara o olho menos avisado h razes para que aqueles que elaboram

    leis no Suriname olhem para seu vizinho ao sul e, quanto antes, o faammelhor.

    Em 1994, ao visitar a Flrida, Joaquim, um ndio Wayampi sul-americano foi apresentado ao alto e robusto dirigente da nao Seminole,mas, mais tarde, insistiu em duzer que aquele homem no um n-dio.52 seguro afirmar, da mesma forma, que, da perspectiva dosquilombolas do Suriname, que sempre viram o mundo dividido entre ns

    51 Embora parea quase evidente demais para citar, talvez valha a pena sublinhar que naautoproclamada democracia racial do Brasil (que tem, como se diz frequentemente, asegunda maior populao negra do mundo, aps a Nigria), o nmero mnimo de pessoasincludas, at mesmo na mais extensa e recente definio de quilombo, ainda deixadezenas de milhares de pessoas negras pobres, no-educadas e despojadas, sem recursolegal especial.

    52 O Wayampi acrescentou: Ele , em realidade, branco... ns ndios no somos assim...chineses so chineses, japoneses so japoneses, ndios so ndios, no so como pessoasbrancas. Joaquim no podia conceber um ndio que parecesse e agisse de maneira toparecida com a de outros americanos. Realmente, neste encontro memorvel, o dirigen-

    te tribal vendeu a Joaquim uma fita cassete de sua banda, na qual constava uma msicachamada ndio da era do espao. A cena est registrada no filme Joaquim vai Amrica, de Frederic Labourasse, co-produo France 3/Les Films dIci (1995).

  • 8/2/2019 Afroasia n28 Price

    25/25

    quilombolas e eles (todos os outros, incluindo escravos e seus descen-dentes), poucos dos afro-brasileiros classificados como remanescentesde quilombosseriam vistos como quilombolas da maneira como os

    Saramaka, Ndyuka, Aluku no Suriname, os povos Mooretown eAccompong na Jamaica, ou os Palenqueros de San Baslio da Colmbiao so. Ainda assim, devido s periprcias da histria do final do sculoXX, estes remanescentes brasileiros e seus aliados polticos vieram arepresentar, potencialmente, um modelo poderoso para seus primos doSuriname. Sem jamais anular as diferenas entre os quilombolassurinameses, cuja identidade permanece ancorada nos conflitos arma-dos de seus ancestrais, e os remanescentes brasileiros e sem tole-

    rar a pesquisa pouco cuidadosa que eventualmente a eles se incorpora,em nome da militncia poltica , vemos que, no final seus destinosvieram a se entrelaar. E que a expresso Destino Rebelde, que osHerskovits53 usaram para caracterizar os Saramaka, em 1934, pode,afinal, servir (desde que nunca esqueamos especificidades histricas)para ambos, juntos.

    53 Melville J. Herskovits e Frances S. Herskovits, Rebel destiny: among the Bush Negroesof Dutch Guiana, New York, McGraw-Hill, 1934.