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ADRIANA DA COSTA RICARDO SCHIER

REGIME JURDICO DO SERVIO PBLICO: GARANTIA FUNDAMENTAL DO CIDADO E PROIBIO DE RETROCESSO SOCIAL

Tese apresentada ao Curso de PsGraduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas, Universidade Federal do Paran, como requisito parcial obteno do ttulo de Doutor em Direito do Estado. Orientador: Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho

CURITIBA 2009

TERMO DE APROVAO

ADRIANA DA COSTA RICARDO SCHIER

REGIME JURDICO DO SERVIO PBLICO: GARANTIA FUNDAMENTAL DO CIDADO E PROIBIO DE RETROCESSO SOCIAL

Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor no Curso de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas da Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

Orientador:

Prof. Dr. Romeu Felipe Bacellar Filho Departamento de Direito, UFPR Prof. Dr. Clmerson Merlin Clve Departamento de Direito, UFPR Prof. Dr. Jos Antnio Peres Gediel Departamento de Direito, UFPR Prof. Dr. Juarez Freitas PUC/RS Prof. Dr. Paulo Roberto Ferreira Motta UTP/PR

Componentes:

Curitiba, 18 de novembro de 2009. ii

Dedico o trabalho minha famlia, Paulo, Paula, Stephanie e Francisco, com todo amor e gratido, por partilharem comigo o sonho da vida acadmica.

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AGRADECIMENTOS

Sou uma pessoa feliz e realizada. Vivo inventando novos projetos pra minha vida e nesses projetos sempre envolvo todos aqueles esto do meu lado. E sempre conto com o amor, o carinho, o apoio e a dedicao de uma montoeira de gente que acredita que com esses projetos a gente pode ajudar a mudar o mundo...e pode ser feliz... Agradeo, ento, primeiro a Deus, por nos permitir a vida. Agradeo ao Paulo, meu amor, meu marido, meu companheiro e meu professor, por toda a dedicao e mais, pela nossa vida, pelo nosso passado e pelo futuro que estamos construindo. Agradeo aos abraos, aos beijos e carinhos sem fim dos meus filhos, Paula, Stephanie e Francisco...como bom chegar em casa. Agradeo minha famlia grande, minha me Nina (sem ela, nem eu nem a tese existiramos); minha sogra Neuza (pelo amor sempre presente); aos meus irmos: Rozangela (tia-me das crianas), Werner (mais conhecido, nos perodos da tese, como o tio bab oficial), Luiz Henrique (mais um tio-bab) e aos meus cunhados, verdadeiros irmos que a vida me trouxe: Beth, Raul, Placiano e Lauren. E aos meus amados sobrinhos: Dbora, Guilherme e Beatriz. Agradeo de forma muito especial ao Professor Romeu Felipe Bacellar Filho, exemplo de vida cotidiano, com quem eu tive a honra de contar na orientao da tese, mas tambm na orientao da minha vida, pessoal e profissional. Costumo dizer que Deus no me deu a alegria de chamar algum de pai, mas me compensou com o professor Romeu. Ao Professor Clmerson Merlin Clve, no s pelo auxlio sempre presente no Direito Constitucional, mas tambm por idealizar uma instituio em que jovens professores podem realizar seus sonhos. Ao meu eterno Professor Jos Antonio Peres Gediel, pelo exemplo de vida e de magistrio que desde o meu segundo ano da graduao me inspira. Aos meus colegas do escritrio Bacellar e Andrade, Renato Andrade, Clio Guimares, Marcelo Bacellar, Paulo Roberto Ferreira Motta, Clia Folda, Klaus e iv

Antnio Srgio, agradeo demais. Foram eles que, segurando meus prazos, fazendo minhas audincias e trocando cotidianamente ideias sobre a tese, me permitiram seguir no perodo que passou. Aos funcionrios do escritrio Bacellar e Andrade, Viviane, Juliana, Jane, Daniel e Israel, pelo apoio. A Sirlene e ao Seu Joo, agradeo, ainda, pela preocupao e pelo especial cuidado. Agradeo, tambm, com muito carinho Ana Cludia Finger, Emerson Gabardo e Daniel Hachem, colegas de escritrio, companheiros do Instituto, amigos da vida, que foram as minhas grandes vtimas para horas e horas interminveis de discusses, sempre acrescentando alguma indicao bibliogrfica. Ao Daniel agradeo, ainda, pelas tradues. A Adriana Correa, pelo amor da sua amizade e pelo auxlio nas horas de desespero do doutorado. Agradeo a Elaine Falco Silveira, que conheci como estagiria, acompanhei e orientei como aluna e hoje guardo a certeza de t-la como amiga, por todo o companheirismo que me disponibilizou nessa jornada e por compartilhar comigo o amor pelo Direito Administrativo. A Eduardo Teixeira Silveira agradeo pela pacincia em me ceder sua esposa, por tantos e tantos dias, pelas indicaes bibliogrficas e pelas tradues. A Raquel Vasconcellos Brambilla e Antonia, presentes de Deus que chegaram na ltima hora e que, cuidando de mim e especialmente do meu texto, me permitiram terminar... Aos meus queridos alunos, especialmente aos do grupo de orientao 2008-2009). Os sbados chuvosos no teriam sido os mesmos sem as nossas discusses. Aos funcionrios da Ps-Graduao em Direito da UFPR, especialmente Sandra e Ftima, por resolverem, sempre, todos os meus problemas... Aos meus amigos, a todos, sem exceo, pelo apoio em mais esse projeto.

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Dilogo entre me doutoranda e filha de 07 anos: - Me, o que uma tese? - um livro filha. - Tem figura? - No, filha. No tem figura. - E sobre? - sobre servio pblico. A me est explicando que todos tm direito de estudar, de ter um mdico, de ter gua, luz, telefone... - Ah, me...E precisa escrever um livro sobre isso? No d s pra dizer em uma pgina: todos tm direito de estudar, todos tm direito sade, todos tm direito a uma vida boa!!!

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SUMRIO

RESUMO....................................................................................................................viii ABSTRACT.................................................................................................................ix RSUM......................................................................................................................x INTRODUO...........................................................................................................01 1 CONSTRUO DO PANORAMA DO SERVIO PBLICO.................................09 1.1 CENRIOS DO SERVIO PBLICO: AS CONCEPES DO INSTITUTO NO ESTADO LIBERAL E NO ESTADO SOCIAL.............................................................09 1.2 A NOO DO SERVIO PBLICO E SEUS ELEMENTOS...............................26 1.3 UMA LEITURA DA EXCLUSIVIDADE NA PRESTAO DO SERVIO PBLICO....................................................................................................................52 2 O ESTADO NECESSRIO SERVIOS PBLICOS E DIREITOS

SOCIAIS.....................................................................................................................65 2.1 O ESTADO COMO O MAL DO SCULO - AS ILUSES E DESILUSES DO SERVIO PBLICO..................................................................................................65 2.2 SERVIO PBLICO NO ESTADO SOCIAL E DEMOCRTICO DE

DIREITO.....................................................................................................................90 2.3 DIREITOS SOCIAIS E SERVIO PBLICO......................................................106 3 SERVIO PBLICO: GARANTIA FUNDAMENTAL E PROIBIO DE

RETROCESSO SOCIAL .........................................................................................125 3.1 O REGIME JURDICO DO SERVIO PBLICO COMO GARANTIA

FUNDAMENTAL.......................................................................................................125 3.2 O SERVIO PBLICO ADEQUADO E A CLUSULA DE PROIBIO DE RETROCESSO SOCIAL..........................................................................................125 3.3 IMPLICAES CONCRETAS...........................................................................151 CONCLUSO.........................................................................................................199 REFERNCIAS........................................................................................................196

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RESUMO

A tese reside na reflexo sobre o regime jurdico do servio pblico, instituto que se caracteriza como atividade prestacional destinada satisfao da coletividade em geral e promoo da dignidade da pessoa humana. Tal atividade est sob a gide do regime de Direito Pblico, consagrador de prerrogativas e sujeies especiais, institudo em favor dos interesses definidos como pblicos no sistema normativo. Trata-se de um conjunto de ofertas positivas do Estado, assumidas como tarefas pblicas por serem reputadas imprescindveis e correspondentes a convenincias bsicas da sociedade, em determinado contexto histrico-social. Adota-se como pressuposto a ideia de que o conjunto dos princpios que caracterizam o servio pblico o instrumento que viabiliza a concretizao dos direitos fundamentais consagrados na Constituio Federal de 1988. Dentre tais princpios, o da universalidade, o da modicidade das tarifas e o da continuidade apresentam-se como o ncleo essencial do regime jurdico do servio pblico. Defende-se, com isso, que tais princpios apresentam-se como garantia fundamental dos cidados, cuja regulamentao em nvel infraconstitucional estar protegida pela clusula de proibio de retrocesso social, quando vinculada ao mnimo existencial. Pretende-se, assim, a releitura democrtica e inclusiva do instituto do servio pblico, procurando fundamentar, com base na dogmtica constitucional, mecanismos que permitam assegurar a mxima efetividade dos direitos sociais por ele instrumentalizados. Com isso, pretende-se a otimizao do servio pblico como elemento capaz de distribuir riqueza e de gerar desenvolvimento social, mediante a atuao necessria e proporcional do poder pblico.

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ABSTRACT

The thesis examines the legal regime of public services, those that aim at the satisfaction of the basic needs of the population and at the promotion of the dignity of the human being. Submitted to the public law regime, these services are characterized by both special privileges and constraints that are established in favor of specific interests protected by the legal system. They constitute a group of activities guaranteed by the state for they are deemed to be of the utmost importance and since they correspond to the basic needs of the society in a given social and historical context. The starting point adopted by the thesis is that the group of principles that characterize public services is a legal instrument that enables the protection of the fundamental rights enshrined in the 1988 Federal Constitution. Among such principles lie the obligations of universality and continuity of the service and the obligation of reduced tariffs. They form the essential part of the legal regime of public services and are a fundamental guarantee for citizens, their regulation being protected by the clause that prohibits social retrocession. This claim corresponds to a new comprehension of public services, one that is more democratic and inclusive, and one that aims to ensure maximum effectiveness of the social rights predicted by the Constitution. The idea is to optimize the public service as an element capable of distributing wealth and generating social development through necessary and proportional state action.

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RSUM

La thse rside dans la reflxion sur le rgime juridique du service public, institut qui se caractrise comme une activit de prestation destine la satisfaction de la collectivit en gnral et la promotion de la dignit de la personne humaine. Cette activit se soumettre au rgime de Droit Public, qui consacre prrogatives de puissance publique et sujtions spciales et sinstitue en faveur des intrts dfinis comme publiques par le systme normatif. Il sagit dun ensemble doffres positives de ltat, assumes comme des tches publiques pour tre rputes indispensables et correspondants des utilits basiques de la socit, dans certain contexte historique et social. On adopte comme prmisse l'ide selon laquelle l'ensemble des principes qui caractrisent le service public cest l'instrument qui viabilise la concrtisation des droits fondamentaux tablis dans la Constitution Fdrale de 1988. Parmi tels principes, ceux de l'universalit, de modration des taux et tarifs et de la continuit se prsentent comme le noyau essentiel du rgime juridique du service public. On dfend, avec cela, que tels principes se prsentent comme garantie fondamentale des citoyens, dont la rglementation au niveau infraconstitutionnel sera protge par la clause d'interdiction de rtrocession sociale, quand attache au minimum existentiel. L'objectif est, donc, de relire dune manire dmocratique et inclusive linstitut du service public, essayant de crer, partir de la dogmatique constitutionnelle, des mcanismes qui permettent d'assurer l'efficacit maximale des droits sociaux dont il concretise. Ainsi, on prtend optimiser le service public comme un lment capable de distribuer des richesses et produire du dveloppement social, travers la performance ncessaire et proportionnelle du pouvoir public.

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INTRODUO

A tese reside na reflexo sobre o regime jurdico do servio pblico, considerado como garantia fundamental dos cidados, cuja regulamentao em nvel infraconstitucional estar protegida pela clusula de proibio de retrocesso social, quando vinculada ao mnimo existencial. Adota-se como pressuposto a idia de que o conjunto dos princpios que caracterizam o servio pblico o instrumento que viabiliza a concretizao dos direitos fundamentais consagrados na Constituio Federal de 1988. A discusso sobre o regime jurdico do servio pblico teve sua importncia retomada, tanto no cenrio nacional quanto internacional, principalmente a partir da formao de um contexto em que so rediscutidas as funes atribudas ao Estado. Nessa perspectiva, o servio pblico, tema clssico do Direito Administrativo, adotou novas dimenses e teve seus pressupostos marcadamente questionados pela tendncia da ps-modernidade, neste campo caracterizada pela aproximao entre as esferas do pblico e do privado. A reviso da noo de servio pblico pressupe, hoje, portanto, a anlise do contexto da chamada fuga para o direito privado1, que fortemente tem influenciado o Direito Administrativo Contemporneo. A noo de servio pblico, conforme o marco dotado na pesquisa, funda-se na idia de que este deve ser compreendido como atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada satisfao da coletividade em geral, mas fruvel singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faa as vezes, sob um regime de Direito Pblico portanto, consagrador de supremacia e de restries especiais -, institudo em favor dos interesses definido como pblicos no sistema normativo.2

A expresso de ESTORNINHO, Maria Joo. A fuga para o Direito Privado: contributo para o estudo da actividade de Direito Privado da Administrao Pblica. Coimbra: Almedina, 1996, p. 91. Na doutrina nacional, refira-se, por fundamental, o trabalho de BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo e o novo cdigo civil. Belo Horizonte: Frum, 2007, p. 104. A noo adotada de MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed., So Paulo: Malheiros, 2009, p. 404. Justifica-se a escolha porque, no cenrio nacional, o autor representa a principal referncia terica para a clssica compreenso do servio pblico. Na doutrina estrangeira, pode ser referido, na linha adotada da tese, o conceito de SALOMONI, Jorge Luis. Teoria general de los servicios pblicos. Buenos Aires: Ad-hoc, 1999.2

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No atual contexto histrico, observa-se uma ampliao dos elementos que tipificam essa noo, admitindo-se que s se estar diante de um servio pblico se a atividade envolver a prestao de utilidades destinadas a satisfazer direta e imediatamente o princpio da dignidade da pessoa humana ou quando forem reputadas como instrumentos para satisfao de fins essenciais eleitos pela Repblica brasileira.3 Assim, o servio pblico caracterizado pela sua instrumentalidade em relao vinculao ao princpio da dignidade da pessoa humana, princpio fundamental da Repblica, como enuncia o artigo 1o, da Constituio Federal4. De qualquer modo, relativamente pacfico o reconhecimento de que o servio pblico constitui-se como uma das modalidades de atividades exercidas pelo Estado, impondo-se, dessa maneira, como um modo de interveno do poder pblico na sociedade5. Assume diferentes contornos de acordo com o modelo de Estado adotado e por isso discutir servio pblico representa enfrentar as questes mais nucleares da Poltica e do Direito. Trata-se de definir a funo do Estado, seus limites de atuao e o mbito reservado aos particulares6 pois, como afirma Dinor Musetti GROTTI, cada povo diz o que servio pblico em seu sistema jurdico. A qualificao de uma dada atividade como servio pblico remete ao plano da concepo do Estado sobre o seu papel. o pas, na lei, na jurisprudncia e nos costumes vigentes em um dado tempo histrico.73

JUSTEN FILHO, Maral. JUSTEN FILHO, Maral. Teoria geral das concesses de servio pblico. So Paulo: Dialtica, 2003, p. 44. De igual forma, BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo. So Paulo: Saraiva, 2004, p. 152 e ss., e FREITAS, Juarez. O estado essencial e o regime de concesses e permisses de servios pblicos. In: Estudos de direito administrativo. So Paulo: Malheiros, 1995, p. 31. Na doutrina estrangeira, poder-se-ia referir, nesta linha de pensamento, o conceito de SALOMONI, Jorge Luis. Teoria..., p. 124, por exemplo. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O poder normativo dos entes reguladores e a participao do cidado nesta atividade. Servios pblicos e direitos fundamentais: os desafios a experincia brasileira. In: Revista Interesse Pblico, n 16, ano 2002, p. 17. Neste sentido, SALOMONI, Jorge Luis. Teoria..., p. 196. No cenrio nacional, por todos, JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 19. Em sentido contrrio, Eros Roberto GRAU afirma que o Estado no pratica interveno quando presta servio pblico ou regula a prestao de servio pblico. Atua, no caso, em rea de sua prpria titularidade, na esfera pblica. Por isso mesmo dir-se que o vocbulo interveno, , no contexto, mais correto do que a expresso atuao estatal: interveno expressa atuao estatal em rea de titularidade do setor privado. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. 12. ed., So Paulo: Malheiros, 2007, p. 93).6 5 4

JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 16.

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Admitindo-se tais pressupostos e a partir de uma perspectiva interdisciplinar, possvel visualizar a gnese do conceito de servio pblico no Liberalismo Clssico8. bem verdade que o Estado Liberal caracterizado pela quase total ausncia de interveno do poder pblico no mbito scio-econmico. Sabe-se, com o aporte da Teoria do Estado, que este modelo de organizao foi criado tendo por pano de fundo a afirmao da ideologia burguesa, interessada em limitar o poder soberano, de modo a tornar possvel a consolidao do capitalismo nascente9. Nesse contexto, o Estado apresentava um reduzidssimo plexo de funes (Estado Mnimo), permitindo-se a sua atuao em campos bem delimitados, basicamente para garantir a liberdade de concorrncia (poder de polcia) e para exercer atividades que, embora necessrias sociedade, no possuam viabilidade econmica que justificasse o seu desempenho pela burguesia. Nesse perodo o servio pblico traduzia-se na prestao, pelo Estado, de atividades que no traziam diretamente a possibilidade de lucro, mas que eram essenciais para o desenvolvimento social, tais como o servio de saneamento bsico e de iluminao pblica, como pontua Jorge Reis NOVAIS10. Na seara do Direito Administrativo, a noo de servio pblico surge na Frana, com o julgamento do Caso Blanco11, realizado pelo Tribunal de Conflitos em 1873. Neste aresto restou afirmado que as atividades prestadas pelo Estado esto submetidas a um regime jurdico distinto das funes desempenhadas por sujeitos

GROTTI, Dinor Musseti. O servio pblico e a constituio brasileira de 1988. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 87. Sobre o Liberalismo consultar, dentre os clssicos, principalmente as obras de LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. 2. ed., Petrpolis: Vozes, 1999. ROUSSEAU, J.J. Jacques. Do contrato social. Coleo: Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, v. II, 1999. Atualmente, pode-se citar como referncia, exemplificativamente, as obras de GOYARDFABRE, Simone. Os princpios filosficos do direito pblico moderno. So Paulo: Martins Fontes, 1999 e NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de direito liberal ao estado social e democrtico de direito. Coimbra: Coimbra, 1987. OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Universitrio, 1984.10 9 8

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Idem, p. 55.

LONG, Marceal; WEIL, Prosper; BRAIBANT, Guy, et alii. Les grands arrts de la jurisprudence administrative. 16. ed., Paris: Dalloz, 2007, p. 01.

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privados. A partir de ento, o servio pblico torna-se critrio para repartio de competncias entre a jurisdio administrativa e o Conselho de Estado Francs12. no contexto do Estado Social que se amplia a prestao de servios, atrelando-se a concepo desta atuao estatal promoo da dignidade da pessoa humana. Com efeito, a partir das referncias do discurso do Direito Constitucional, pode-se entender a Constituio do Estado Social como um sistema de valores constitudo com base nos direitos fundamentais e em outros princpios

constitucionais, como o do Estado de Direito e o da socialidade. Assim, esse elemento de sociabilidade aponta para uma interveno estatal no apenas como limite, mas ainda como fim ou tarefa pblico-estadual, ordenando concretos deveres de proteo (Schutzpflichte) a cargo do Estado.13 Destarte, passa a ser tarefa do Estado, neste outro momento, intervir na sociedade para garantir a todos uma existncia digna. E o instrumento eleito pelo Estado para realizar esta interveno justamente o servio pblico. No por outra razo que se afirma que o estado de Bem-estar Social o Estado do Servio Pblico. O servio pblico a traduo jurdica do compromisso poltico da interveno estatal para satisfazer as necessidades coletivas.14 A Constituio Federal de 1988 adotou, ao menos em alguns aspectos, essa concepo para o Estado Brasileiro: o modelo de Estado Social em que os direitos fundamentais deixam de ser somente garantias dos indivduos contra o Poder Pblico, impondo-se, tambm, genericamente, a toda a sociedade. Sua efetividade assegurada por meio de medidas interventivas, como o servio pblico15, e impe vinculao inclusive contra os poderes particulares16.

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Breves reflexes sobre a jurisdio administrativa: uma perspectiva de direito comparado. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 211, jan-mar 1998, pp. 65-77. QUEIROZ, Cristina. Direitos fundamentais sociais: questes interpretativas e limites de justiciabilidade. In: Interpretao Constitucional. So Paulo: Malheiros, 2005, pp. 165-216, p. 169. JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 23. Ana Cludia FINGER, nesse sentido, afirma: A Constituio de 1988 privilegia o perfil de uma Administrao ativa servios pblicos, obras pblicas, explorao estatal da atividade econmica, poder de polcia -, operacionalizada por um complexo de rgos e pessoas jurdicas. FINGER, Ana Cludia. Servio pblico: um instrumento de concretizao de direitos fundamentais. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 232, abr.-jun., 2003, p. 59-82, p. 61.15 14 13

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Nessa perspectiva, o servio pblico desponta como ofertas positivas do Estado, que ele assume como sua tarefa por serem reputadas imprescindveis e correspondentes a convenincias bsicas da sociedade, em determinado contexto histrico-social, diretamente vinculadas efetivao do princpio da dignidade da pessoa humana, conforme sustenta Romeu Felipe BACELLAR FILHO17. Assim resta consagrado, no texto constitucional de 1988, em seu art. 175, que incumbe ao Poder Pblico, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concesso ou permisso, sempre atravs de licitao, a prestao de servios pblicos. Do mesmo modo, preocupou-se o constituinte em elencar, dentre as competncias dos entes federativos, as atividades que deveriam compor o elenco do servio pblico no Brasil, dentre elas o servio de telecomunicaes (art. 21, XI), radiodifuso sonora, de sons e imagens (art. 21, inc. XII), servios e instalaes de energia eltrica e o aproveitamento energtico dos cursos de gua (art. 21, inc. XII, b), os servios de transporte ferrovirio (art. 21, inc. XII, d) os servios de transporte rodovirio interestadual de passageiros (art. 21, inc. XII, e), intermunicipal (art. 25, 3) e municipal (art. 30, V), de sade (art. 198) e educao (art. 208), dentre outros. Defende-se, a partir de tal panorama normativo, que o servio pblico s um direito fundamental porque regulado por um regime jurdico de direito pblico, formado por princpios especficos18, quais sejam: a universalidade da prestao do servio (generalidade ou funcionamento eqitativo19), a continuidade do servio20 e a modicidade das tarifas21.

Discute-se, nesta matria, a chamada perspectiva objetiva dos direitos fundamentais. Conferir, sobre o tema, na doutrina nacional, SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.17

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BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O poder normativo..., p. 17.

Tais princpios foram elencados na clssica definio de ROLLAND, que, j na dcada de 30, os definia como as leis naturais de servios pblicos. (Citado por JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 30). Por este princpio, o servio indistintamente aberto generalidade do povo. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso..., p. 635). De acordo com Maral JUSTEN FILHO, a continuidade significa a impossibilidade de interrupo da prestao do servio, eis que se presume que as utilidades prestadas so essenciais e indispensveis sobrevivncia ou normalidade da vida. (JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 31). Deveras, se o Estado atribui to assinalado relevo atividade a que conferiu tal qualificao, por consider-lo importante para o conjunto de membros do corpo social, seria arrematado dislate que os integrantes desta coletividade a que se destinam devessem, para desfruta21 20 19

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Trata-se de elevar o regime constitucional da prestao do servio pblico categoria de garantia fundamental do cidado, do prprio direito ao servio. De modo que a Constituio, neste vis, no apenas asseguraria a realizao de direitos fundamentais prestacionais por meio dos servios pblicos mas, antes, como forma de garantia, estabeleceria que estes servios fossem prestados sob determinado regime. A tese est calcada, assim, em uma interpretao sistemtica das normas constitucionais. Com efeito, o regime jurdico especializado do servio pblico atrelase a uma opo do constituinte no sentido de que somente atravs dele que seriam devidamente concretizados os direitos fundamentais assegurados pela sua prestao. E por este motivo que o regime jurdico de tal atividade deve ser visto, em si, como uma garantia fundamental autnoma em relao ao prprio direito ao servio pblico. possvel admitir, ainda, que o contedo do regime jurdico do servio pblico seja protegido pela clusula de proibio de retrocesso social quando os princpios que compem tal regime relacionem-se ao mnimo existencial, ou seja, quele ncleo essencial da existncia mnima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana22. A clusula de proibio de retrocesso social vem sendo admitida, no Brasil, principalmente em relao aos direitos sociais23, a partir do desenvolvimento que teve essa noo na doutrina constitucional alem24, como mecanismo apto a ampliar a proteo dos direitos fundamentais constitucionalizados25.lo, pagar importncias que os onerassem excessivamente e, pior que isso, que os marginalizassem. Dessarte, em um pas como o Brasil, no qual a esmagadora maioria do povo vive em estado de pobreza ou miserabilidade, bvio que o servio pblico, para cumprir sua funo jurdica natural, ter de ser remunerado por valores baixos, muitas vezes subsidiados. (MELLO, Celso Antnio Bandeira. Curso..., p. 635). CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 339. Conferir, ainda, o posicionamento de Cristina QUEIROZ, que afirma: Essa garantia de um mnimo social ou standard mnimo compreendido como mnimo existencial destina-se a evitar a perda total da funo do direito fundamental, por forma a que este no resulte esvaziado de contedo e, deste modo, desprovido de sentido. (Op. cit., p. 173). bem verdade que, no Brasil, o alcance desta clusula no se refere, somente, aos direitos sociais, como bem pontua SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. 4. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 408. Felipe DERBLI indica a experincia alem, a portuguesa e a italiana como antecedentes tericos da formulao da clusula de proibio de retrocesso social no Brasil. Indica, de qualquer modo, como idia comum a estes trs ncleos, a busca pela maior eficcia dos direitos fundamentais24 23 22

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Essa noo importa na compreenso de que a legislao infraconstitucional que regulamenta os direitos fundamentais previstos na Carta Magna cria direito subjetivo a uma determinada prestao estatal, nos moldes estabelecidos pelo legislador, de tal sorte que [tais direitos] no se encontram mais na (plena) esfera de disponibilidade do legislador....26. As questes e reflexes tericas apontadas sero examinadas na tese em trs captulos. O primeiro dedica-se anlise da noo de servio pblico, desde seu surgimento at sua configurao na Constituio Federal de 1988. J no segundo captulo, a abordagem ser realizada com o enfoque na reflexo sobre o regime jurdico do servio pblico, principalmente em face da atual relativizao do papel do Estado e da crise de sua concepo social. No terceiro captulo ser abordado especificamente o tema do regime do servio pblico como garantia fundamental. J lanadas as premissas tericas que permitem compreender os princpios que integram o regime jurdico do servio pblico no primeiro captulo, tratar-se-, agora, de entender o conjunto de princpios, em si, enquanto garantia fundamental. Alm disso, tratar-se da clusula de proibio de retrocesso social tem sido compreendida como mecanismo apto a ampliar a proteo dos direitos fundamentais constitucionalizados, notadamente dos de cunho social27. Assim, tem-se que o art. 175, pargrafo nico, IV, da Constituio Federal, faz expressa referncia Lei que dispor sobre o servio adequado, assegurando coletividade o direito ao servio pblico adequado. Regulamentando tal dispositivo, o legislador ordinrio editou a Lei n 8987/95, que, por sua vez, no art. 6o, 1, trouxe o conceito de servio adequadoe sua sindicabilidade em juzo (DERBLI, Felipe. Proibio de retrocesso social: uma proposta de sistematizao luz da Constituio de 1988. In: BARROSO, Lus Roberto. A reconstruo democrtica do direito pblico no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 433-635, p. 446-53). Sobre o tema, conferir, CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 338 e ss.; MIRANDA, Jorge. Op. cit. e SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais e proibio de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivncia dos direitos sociais num contexto de crise. In: Revista da AJURIS: Doutrina e Jurisprudncia, v. 31, n 95, set. 2004, p. 103-135; BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais. O princpio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 68 e ss.,26 25

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia..., op. cit., p. 106.

Sobre o tema, conferir, alm das obras antes citadad de CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 338 e ss.; MIRANDA, Jorge. Op. cit., SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos..., e BARCELLOS, Ana Paula. A eficcia..., p. 68 e ss., exemplificativamente.

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como o que satisfaz as condies de regularidade, continuidade, eficincia, segurana, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestao e modicidade das tarifas. Adota-se, ento, como referencial, nesse tpico, a definio e proteo do ncleo existencial. Sustenta-se, assim, que a clusula de proibio de retrocesso dever ser aplicada em relao aos princpios que compe o regime jurdico do servio pblico que estiverem diretamente ligados ao mnimo ltimo e indispensvel para o gozo dos direitos, relacionados dignidade da pessoa humana. A partir de tais digresses, sustenta-se, na presente tese, que o regime jurdico do servio pblico uma garantia fundamental, porque se coloca como instrumento para a concretizao dos direitos fundamentais prestacionais

assegurados pelo instituto. Alm disso, tais princpios dizem diretamente com o contedo que, em comum, se tem atribudo ao mnimo existencial. Com efeito, sem a garantia de que o servio seja ofertado indistintamente a todos, de maneira contnua e mediante uma tarifa capaz de ser suportada, no haver direito assegurado. So esses traos que vo assegurar, ento, em ltima anlise, o pleno gozo do direito vida, sade, educao, ao transporte, por exemplo. Por isso, entende-se que o regime jurdico do servio pblico, naquilo que se refere ao mnimo existencial universalidade, modicidade das tarifas e continuidade das prestaes, est protegido pela clusula de proibio de retrocesso social. Esse posicionamento permitir proteger o regime do servio pblico em si contra modificaes legislativas que atentem contra a prpria essncia do instituto. Alm disso, a aplicao da clusula de proibio de retrocesso social regulamentao feita pelo legislador infraconstitucional sobre o servio pblico, no que se refere ao mnimo existencial, o que permitir garantir que sejam preservados os valores consagrados na Constituio Federal de 1988, que adotou, sem qualquer possibilidade de questionamento, o servio pblico prestado sob um regime especfico como um mecanismo sem o qual no sero atingidos os objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil.

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1 CONSTRUO DO PANORAMA DO SERVIO PBLICO

1.1 CENRIOS DO SERVIO PBLICO: AS CONCEPES DO INSTITUTO NO ESTADO LIBERAL E NO ESTADO SOCIAL

O rol de atividades materiais prestadas pelo poder pblico em prol da coletividade, com o objetivo de proporcionar condies de acesso aos bens essenciais vida do ser humano, configura o catlogo de servios pblicos, definidos de acordo com o modelo de Estado adotado28. Desde o modelo absolutista, teorizado por Maquiavel29 e Hobbes30, por exemplo, possvel identificar, ainda que no plano da justificativa ideolgica31, o desempenho, pelo Estado, de funes pblicas com o desiderato de proteger o que convencionalmente se denomina de interesse pblico32.

A delimitao de atividades que compem o rol dos servios pblicos supe a definio de determinado modelo de Estado. essa eleio, pois, uma manifestao da face poltica do Estado. (ROCHA, Carmen Lcia Antunes. Princpios constitucionais dos servidores pblicos. So Paulo: Saraiva, 1999, p. 508). No mesmo sentido, Maral JUSTEN FILHO afirma que o conceito de servio pblico deriva do tipo de Estado vigente no momento histrico (JUSTEN FILHO, Maral. Teoria geral das concesses de servio pblico. So Paulo: Dialtica, 2003, p. 17). MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. Traduo, prefcio e notas: XAVIER, Lrio. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. HOBBES, Thomas. O leviat ou Matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1997. Fala-se, aqui, em justificativa ideolgica porque no se olvida que vigorava, no Absolutismo, o modelo de gesto patrimonialista, em que o Estado era tomado como um bem do soberano e as funes pblicas eram prioritariamente dirigidas ao atendimento das necessidades do rei. Ver, neste sentido, PASTOR, Juan Alfonso Santamara. Princpios de derecho administrativo. 2. ed. Madrid: Centro de Estudios Ramn Areces, 2000. v. II, p. 301. O interesse pblico constituia-se como critrio legitimador da atuao do soberano. Nesse perodo, poderia ser traduzido essencialmente como a garantia da segurana dos sditos. Tal categoria, assumida como fim da atividade do Estado, matria objeto de inmeras controvrsias na seara do Direito Pblico, tanto nacional, quanto estrangeiro. Sobre o tema remete-se obra de RIVERO, Jean. Direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1981, p. 40. Na doutrina nacional, vejase, por todos, o mais recente artigo de MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Grandes temas de direito administrativo. So Paulo: Malheiros, 2009, p. 181-191. O autor, desde a dcada dos anos de 1960, tomou o conceito de interesse pblico como o ncleo dos princpios reitores do Regime Jurdico de Direito Administrativo, quais sejam, a supremacia do interesse pblico sobre o privado e a indisponibilidade do interesse pblico. Tal noo, contemporaneamente vem sendo retomada a partir de uma perspectiva crtica, propondo nova interpretao atribuda a tais princpios. Ver, sobre o assunto, a coletnea de artigos organizada por SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses pblicos32 31 29

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Nesse perodo, caracterizado pela concentrao de poder nas mos do Soberano, quase todas as atividades eram exploradas pelo Estado, tanto as que tivessem algum liame com o bem-estar da coletividade, como as que simplesmente fossem muito lucrativas, ou ainda as que passassem a ser exploradas pelo Estado pelo desejo do Rei.33 Dentre tais funes, despontam aquelas tradicionalmente tratadas como atividades de polcia, aes em que o poder pblico tem por objetivo restringir a atuao do particular de modo a proteger a coletividade34. Porm, ainda que a interveno do soberano alcanasse todas as esferas da vida privada, no se pode afirmar que tal interveno se dava mediante prestaes positivas em benefcios dos particulares35, trao que somente mais tarde caracterizaria a noo de servio pblico36. Mesmo assim, J. Gilles GUGLIELMI e Genevive KOUBI identificam j nesse perodo algumas funes que poderiam ser tomadas como as primeiras manifestaes de servios pblicos. Os autores referem que em 1464, na Frana,

versus interesses privados: desconstruindo o princpio da supremacia do interesse pblico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. ARAGO, Alexandre Santos de. Direito dos servios pblicos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 30. Dentre os clssicos, Rafael BIELSA define poder de polcia como el ejercicio del conjunto de disposiciones reglamentarias sobre la construccin, la conservacin, el funcionamento y la utilizacion de las actividades. (BIELSA, Rafael. Derecho administrativo. 6. ed. Buenos Aires: La Ley, 1964, p. 510). Ver, igualmente importante, a obra de Agustn GORDILLO, referncia para o tratamento doutrinrio atual do tema da polcia administrativa, inclusive abordando a crise da noo (GORDILLO, Agustn. Derecho administrativo. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. t. II, p. V-12). Interessante observar que nem mesmo as atividades de cunho assistencialista eram desempenhadas pelo Estado, as quais continuavam a ser desempenhadas pela Igreja, conforme esclarece Alexandre Santos de ARAGO. (ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 31). usual atribuir a ROUSSEAU a paternidade da expresso servio pblico, como se v na obra de Dinor Musetti GROTTI (GROTTI, Dinor Adelaide Musetti. O servio pblico e a Constituio brasileira de 1988. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 19-20). A passagem da obra Do contrato social, que autoriza tal interpretao, pode ser observada no seguinte trecho: Assim que o servio pblico deixa de ser o principal assunto dos cidados, e que preferem cuidar de sua bolsa a cuidar de sua pessoa, o Estado j est prximo da runa. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social e discurso sobre a economia poltica. Traduo de: PUGLIESI, Mrcio; LIMA, Norberto de Paula. 7. ed. Curitiba: Hemus, [19--], p. 100 - Textos da edio de 1782, com indicao das variantes da edio de 1762. Esse no o posicionamento de Gilles J. GUGLIELMI e Genevive KOUBI que sustentam que a primeira vez que se fez meno expresso servio pblico foi em 1635, com a declarao do Rei da Frana ao determinar que (...) instalaes de pessoas e comissrios suficientes para atender a todos os vages, de sorte que o servio pblico sem dvida alguma retardar. (Traduo livre) GUGLIELMI, J. Gilles; KOUBI, Genevive. Droit du service public. 2. ed. Paris: Montchrestien, 2007, p. 35.36 35 34 33

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criou-se a organizao dos servios postais, cujas atividades foram estendidas para toda a coletividade37. Os exemplos, contudo, so escassos na experincia dos estados organizados nos cnones do Absolutismo, pois a caracterizao do servio pblico como atividade prestacional do Estado em prol da coletividade ocorreu somente com o advento do Estado Liberal38, impondo-se, dessa maneira, como um novo modo de interveno do poder pblico na sociedade39. bem verdade que esse tipo de Estado caracterizado pela quase total ausncia de atuao do poder pblico no mbito socioeconmico. Foi criado tendo por pano de fundo a afirmao da ideologia burguesa, interessada em limitar o poder soberano, de modo a tornar possvel a consolidao do capitalismo nascente40. Nesse contexto, o Estado apresentava um reduzidssimo plexo de funes (Estado Mnimo), permitindo-se a sua atuao em campos bem delimitados, basicamente para garantir a liberdade de concorrncia (poder de polcia) e para exercer atividades que, embora necessrias sociedade, no possuam viabilidade econmica que justificasse o seu desempenho pela burguesia41. O servio pblico traduzia-se, assim, na prestao, pelo Estado, de atividades que no traziam a possibilidade de lucro, mas que eram essenciais para o

GUGLIELMI, J. Gilles; KOUBI, Genevive. Op. cit., p. 34 e ss. (Traduo livre.) No Brasil, Odete MEDAUAR identifica, do mesmo modo, que, em nvel local, algumas atividades [que] passaram a ser qualificadas como servio ao pblico, porque designavam interveno dos poderes pblicos em favor dos particulares. (MEDAUAR, Odete. Servio pblico. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, v. 219, p. 100-113, 1992, p. 101). Sobre o Liberalismo consultar, por todos, GOYARD-FABRE, Simone. Os princpios filosficos do Direito Poltico Moderno. Traduo de: PATERNOT, Irene A. So Paulo: Martins Fontes, 1999, CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000 e NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do estado de direito: do estado de direito liberal ao estado social e democrtico de direito. Coimbra: Coimbra, 1987. Neste sentido, ver, por todos, no cenrio nacional, JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 19. Em sentido contrrio, Eros Roberto GRAU afirma que o Estado no pratica interveno quando presta servio pblico ou regula a prestao de servio pblico. Atua, no caso, em rea de sua prpria titularidade, na esfera pblica. Por isso mesmo dir-se- que o vocbulo interveno, , no contexto, mais correto do que a expresso atuao estatal: interveno expressa atuao estatal em rea de titularidade do setor privado. (GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na Constituio de 1988. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2007, p. 93). OFFE, Claus. Problemas estruturais do estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Universitrio, 1984.41 40 39 38

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NOVAIS, Jorge Reis. Contributo..., p. 55.

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desenvolvimento social, tais como o servio de saneamento bsico e de iluminao pblica, como pontua Jorge Reis NOVAIS42. Observe-se que, mesmo em reas no ligadas implantao de servios de infraestrutura, j era reconhecida como dever do Estado a prestao de alguns servios de cunho social, como a sade e a educao43. Outro fator que contribuiu para a consolidao desse instituto sob a gide do Estado Liberal foi a extino de grupos intermedirios entre a sociedade e o Estado. Com efeito, ainda que um dos fundamentos do Liberalismo clssico tenha sido a valorizao da autonomia privada, certo que a sociedade liberal aboliu as entidades que pudessem intermediar a relao do indivduo com o poder pblico. Com isso, extinguindo-se as corporaes de ofcio, minando-se o poder da Igreja, proibindo-se as agremiaes, el individuo se quedo slo, como um elemento indiferenciado frente al Estado, que se vio obligado a sumir como tareas prprias algunas que antes estaban desarrolladas por la sociedade orgnicamente estructurada.44 Nessa perspectiva, Gaspar Ario ORTIZ reconhece que a burguesia liberal acaba por criar um paradoxo, na medida em que, buscando limitar teoricamente a misso do Estado, acaba por promover uma progressiva assuno de tarefas que at ento no eram imputadas ao ente pblico, mas assumidas pelos grmios, pela Igreja, pelas Fundaes, pelas Corporaes, pelas Universidades, por exemplo45. Afirma, ento, o autor, quehasta mediados del siglo XIX todo lo que hoy llamamos servicios pblicos sociales (la educacin en todos SUS niveles, la sanidad, la beneficiencia, la asistencia social, el arte y la cultura, etc...) eran actividades no asumidas por el Estado sino por la Sociedade (aunque reguladas por aqul). Cuando, como consecuencia del individualismo liberal, se produce una pregresiva desvertebracin social, y cuando politicamente se queda el individuo solo frente al Estado, este se encuentra en la necesidad de asumir muchas de

42

Ibidem, p. 191.

Em Portugal, por exemplo, o Estado assume a educao em 1772, mediante a chamada Reforma dos Estudos Menores, promovida por Marques de Pombal. J o ensino universitrio, desde seu surgimento teve influncia do poder pblico (UREA, Ado. Estado absoluto e o ensino das primeiras letras. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997, p. 50). ORTIZ, Gaspar Ario. Princpios de derecho pblico econmico. Granada: Comares Editorial, 1999, p. 482.45 44

43

Ibidem, p. 483.

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esas tareas, que han sido abandonadas por sus antigos gestores, y de declarar que tales actividades le son propias.46

Alexandre Santos de ARAGO, contudo, entende que este aparato criado pelo Estado para suprir o espao deixado pelos particulares voltava-se proteo dos interesses dos mais aquinhoados, que eram indiretamente prejudicados com essa penria, do que propriamente dos necessitados.47 Com base em tais consideraes, verifica-se que pelo menos no contexto do seu surgimento, o servio pblico no poderia ser tomado como mecanismo dirigido diminuio das desigualdades sociais, funcionando, antes, como instrumento de gesto do poder pblico na implantao de servios bsicos para promover as condies de desenvolvimento do sistema econmico. Ainda assim, foi sob a gide do Estado Liberal, em meados do Sculo XIX, que se tem o desenvolvimento terico do servio pblico enquanto instituto de Direito Administrativo. Normalmente atribui-se s decises do Conselho de Estado Francs48 as primeiras construes tericas sobre o servio pblico49. usual a citao do Caso Blanco50, julgado pelo Tribunal de Conflitos Francs, em 1873. Neste aresto restou afirmado que as atividades prestadas pelo Estado esto submetidas a um regime jurdico distinto daquele atribudo s funes desempenhadas por sujeitos privados.

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Idem. ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 34.

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Ver, neste sentido, MODERNE, Frank. La Idea de servicio pblico en el derecho europeo: nuevas perspectivas. In: CASSAGNE, Juan Carlos (Dir.). Servicio pblico y polica. Buenos Aires: Universitas, 2006, pp. 7-32, p. 10. Em sentido diverso, contudo, Jorge Luis SALOMONI defende que a origem do conceito de servio pblico se deu na Argentina. Assim, sustenta que el concepto moderno de servicio pblico no naci en Francia ni en Alemania ni en otro pas europeo, y menos an en Estados Unidos. Increblemente debo sealar que, entre 1853 y 1854, se dictaran, tanto en la Confederacin Argentina como en el Estado y provncia de Buenos Aires, las primeras leyes del mundo que establecieron el concepto normativo de servicio publico. (SALOMONI, Jorge Luis. La responsabilidad del estado por omisin en la Repblica Argentina. In: FREITAS, Juarez (Org.). Responsabilidade do estado. So Paulo: Malheiros, 2006, p. 103-135; p. 109). Da mesma forma, relativizando a importncia da noo francesa de servio pblico para a construo do direito administrativo dos demais estados europeus, veja-se MODERNE, Frank. Op. cit., p. 12. Julgado em 08.02.1873, pelo Tribunal de Conflitos Francs. Veja-se, na ntegra, em LONG, Marceal; WEIL, Prosper; BRAIBANT, Guy; et alii. Les grands arrts de la jurisprudence administrative. 16. ed. Paris: Dalloz, 2007, p. 01. Dinor Adelaide Musetti GROTTI faz um interessante resumo do julgado. (GROTTI, Dinor Adelaide Musetti. O servio..., p. 27).50 49

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A partir da so lanadas as bases que permitiriam tomar o servio pblico como o critrio para repartio de competncias entre a jurisdio administrativa51 e o Conselho Administrativo52. Segundo Jean RIVERO53, tal fato constituiu-se no principal motivo que explica a repercusso do citado aresto, j que a partir dele vinculou-se a competncia da justia administrativa especfica atuao do Estado, ou seja, ligou servio pblico ao direito pblico54 J na leitura de Mnica Spezia JUSTEN, a importncia do Caso Blanco se deve ao fato de que, desde o seu julgamento, o critrio aglutinador do Direito Administrativo deixa de ser a noo de puissanse public55 e passa a ser a ideia de servio pblico56. Alm do Caso Blanco tambm paradigmtico, na jurisprudncia francesa, o Caso Terrier57. Nesse julgamento, um particular ingressa com uma medida contra uma prefeitura pretendendo receber um prmio por ter executado o servio de caa

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Breves reflexes sobre a jurisdio administrativa: uma perspectiva de direito comparado. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 211, p. 65-77, jan./mar. 1998. p. 69 e ss. De acordo com Mnica Spezia JUSTEN, contudo, o caso Blanco no causou tamanho impacto na doutrina poca em que foi proferido. Durante quase trinta anos a deciso passou quase ignorada pela jurisprudncia e mesmo pelas construes tericas dos administrativistas. A interpretao de que o servio pblico seria categoria jurdica de fundo do direito administrativo e critrio de competncia administrativa s foi extrada do consagrado acrdo muitos anos depois de ele ter sido proferido. (JUSTEN, Mnica Spezia. A noo de servio pblico no direito europeu. So Paulo: Dialtica, 2003, p. 26).53 52

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RIVERO, Jean. Op. cit., p. 206 e ss. MEDAUAR, Odete. Servio..., p. 101.

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Maral JUSTEN FILHO afirma que a traduo para o portugus da noo de puissance publique problemtica ainda que possa ser entendida pela ideia de poderio, potencialidade, capacidade. Com base em tal conceito, a atividade administrativa distinguia-se (especialmente da atividade privada) pela concretizao do poderio estatal. Era uma via pela qual o poder de imprio estatal se difundia na sociedade. A supremacia do Estado, titular monopolista do uso da violncia, gerava atuaes qualitativamente distintas daquelas dos particulares. (JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 23).56

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JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 24.

O caso Terrier foi julgado em 06.02.1903, pelo Conselho de Estado Francs (LONG, Marceal; WEIL, Prosper; BRAIBANT, Guy; et alii. Op. cit, p. 73). Para Romeu Felipe BACELLAR FILHO, este caso tambm relevante porque, segundo ele, tem-se, com ele, pela primeira vez a referncia clusula da reserva do possvel, tema que ser objeto de tratamento no Captulo III, da presente Tese (BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Direito administrativo e o novo Cdigo Civil. Belo Horizonte: Frum, 2007, p. 243).

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s vboras. Na deciso do litgio, o Conselho de Estado58 decidiu pela possibilidade de aplicao da noo de servio pblico para atividades locais e pela configurao da atividade de caa s cobras como um servio pblico. O caso apresenta especial interesse porque, de acordo com o Comissrio Romieu, responsvel pelo julgado, a criao de um servio pblico no implicava a estruturao de um corpo de agentes pblicos, mas poderia dar-se pela necessidade de satisfazer a uma necessidade pblica, um interesse geral em um dado momento.59 A partir desses dois julgados, basicamente, desenvolve-se, na Frana, no incio do Sculo XX, a Escola do Servio Pblico, tambm chamada Escola de Bordeaux, que tem por seu maior expoente Leon DUGUIT60, cuja principal obra Letat, le droit objectiv et la loi positive, de 1901.61 Entende-se o servio pblico como instituto capaz de identificar toda a atuao do Estado em prol do atendimento de necessidades de interesse geral. A anlise da noo de servio pblico com base nas consideraes dessa Escola justifica-se porque esta a noo admitida como o fundamento terico da

De acordo com Mnica Spezia JUSTEN, a compreenso do percurso histrico do sugimento do servio pblico, na Frana, est intimamente ligada histria do Direito Administrativo Francs, principalmente no que se refere ao papel da jurisdio administrativa. Relembra a autora que o Conselho de Estado tinha sido extinto,com a queda do Imprio, mas foi restabelecido em 1872, sendo, a partir da, o rgo competente para decidir as causas decorrentes da chamada justia delegada. (JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 21).59

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Ibidem, p. 27.

H na doutrina, contudo, a tese de que a paternidade histrica do conceito de servio pblico deve-se Maurice HARIOU (Ver, nesse sentido, CASSAGNE, Juan Carlos. La crisis de los servicios pblicos en Argentina. In: ______ (Dir.). Servicio pblico y policia. Buenos Aires: Universitas, 2006, p. 375-401; p. 377). Tal autor, contemporneo de DUGUIT, desenvolveu sua teoria pretendendo fundar o Direito Administrativo ora privilegiando a noo de servio pblico, ora a de puissance publique. Porm, consagrou-se, a partir de 1921, pela defesa da pouissance publique como o critrio que permitia a definio do Direito Administrativo como um conjunto de normas relativas organizao e funcionamento dos servios pblicos, cujo regime jurdico se definiria pela exteriorizao da puissance publique. (JUSTEN, Mnica Spezia, Op. cit., p. 41), Por isso, o autor ficou conhecido como representante da Escola de Toulouse, identificada como a escola da puissance publique. Ocorre que, como restar demonstrado, no se aborda o servio pblico, na presente tese, como conceito vinculado ideia de poder, mas sim de dever do Estado, razo pela qual, dentre os clssicos sero abordados, apenas a ttulo de ilustrao, os posicionamentos de DUGUIT e JZE. A abordagem histrica da Escola do Servio Pblico feita de maneira irretocvel por Monica Justen SPEZIA. (JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 29).61

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chamada concepo francesa de servio pblico concepo esta que entra em crise no final do Sculo XX62. Na doutrina de Leon DUGUIT identifica-se o intuito de encontrar a justificativa para a atuao do Estado no atendimento da coletividade, razo pela qual defendia que el Estado est obligado a satisfacer las necesidades de los particulares y solamente despus, el Estado estar legitimado para mandar.63 Pretendia, com isso, superar a ideia de poder do soberano como o fundamento do direito pblico, sustentando que el Estado no tiene solamente el derecho de mandar, sino que tiene tambin grandes deberes que cumplir.64 Segundo Alexandre Santos de ARAGO, a leitura do servio pblico proposta por Len DUGUIT buscava uma aproximao do conceito com a ideia republicana de liberdade e igualdade, motivo pelo qual, na leitura do autor, seria justificvel o relevo que tal noo assume na Frana65.Segundo Alexandre Santos de ARAGO, as crises e os desafios que marcam a noo de servio pblico resultam, justamente, das dificuldades de acomodao da construo francesa tradicional a novas realidades socioeconmicas, polticas e tecnolgicas. (ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 27). SALOMONI, Jorge Luis. Teoria general de los servicios pblicos. Buenos Aires: Adhoc, 1999, p. 149. H, ainda, outro elemento sensacional na ideia de Duguit, trazido atravs dos comentrios de Alexandre Santos de ARAGO: sendo titular do monoplio da fora, o Estado soberano e dotado de personalidade jurdica deve ser limitado, mas no pelas regras comuns concernentes a indivduos que se encontram em igualdade de condies -, mas por um direito especial um Direito Administrativo. O Estado de Direito constituiria, sobretudo, um estatuto da Administrao Pblica. (ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 81). Flexibiliza-se, como se v, o lugar do conceito de soberania. Ainda fazendo a relao de tal ideia com o conceito de Duguit, Celso Antnio Bandeira de MELLO pondera que se tem, na concepo de Duguit, o Estado no o titular da soberania, criador do direito e, em conseqncia, produtor de tda ordem jurdica, circunscrito apenas aos lindes com que se conformar a prpria vontade. DUGUIT expele a noo de soberania e a substitui pela ideia de servio pblico.(...) Converte-se, portanto, em noo chave, unificadora do direito administrativo, determinante da aplicao de suas regras, assumindo o lugar que antes coubera noo de poder pblico (pouissance publique) (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 145). De tais colocaes, surge a idia de que o servio pblico, esteja, para a Frana, como a categoria de Estado de Direito calcado na soberania est para a Alemanha. Na Alemanha, a categoria de soberania fundamental para garantir a unificao poltica. J na Frana, desde o contexto da Revoluo Francesa, j h a unificao necessria e fundamental para a ideia de Estado. Portanto, tomando como certo o fato de que a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado est acima de qualquer norma interna, para os franceses possvel admitir que o Estado tinha, j naquele contexto, deveres para com o cidado, ainda que deveres ligados garantia da prpria interdependncia social. Parece ser esta a ideia nuclear da teoria de DUGUIT. Citado por SALOMONI, Jorge Luis. Teoria..., p. 150. Continua o mestre francs: El derecho pblico moderno se convierte en um conjunto de reglas que determinan la organizacin de los servicios pblicos y aseguran su funcionamiento regular e ininterrumpido. De la relacin de soberano a sbdito no queda nada. Del derecho subjetivo de soberania, de poder, tampoco. Pero si um rela fundamental, de la cual se derivan todas las dems: la regla que impone a los gobernantes la obligacin de organizar los servicios pblicos... (Ibidem, p. 152).65 64 63 62

ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 77.

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Em verdade, Len DUGUIT, a pretexto de instituir a Clssica Escola de Bordeaux, acaba por construir uma Teoria do Estado calcada no pensamento de DURKHEIM, entendendo o servio pblico como o elemento capaz de assegurar a interdependncia social66 e, ao mesmo tempo, funcionar como critrio de legitimidade da atuao do Estado67. Assim, para DUGUIT o servio pblico toda atividade cujo cumprimento deve ser regulado, assegurado e fiscalizado pelos governantes, por ser indispensvel realizao e ao desenvolvimento da interdependncia social, e de tal natureza que s possa ser assegurado plenamente pela interveno da fora governante. (...) Dizer que um servio um servio pblico quer dizer que esse servio organizado pelos governantes, funcionando sob a sua interveno e devendo ter por eles assegurado o seu funcionamento sem interrupo68

A Escola de pensamento liderada por Leon DUGUIT foi batizada de Escola Sociolgica, ento, por considerar o servio pblico como elemento que assegura o vnculo de solidariedade entre os indivduos de uma mesma sociedade69, cuja convivncia mediatizada pelo Estado70. Tal perspectiva permite identificar a influncia, no autor, dos cnones do positivismo sociolgico71.

Seria possvel dizer, ento, que o servio pblico tomado como elemento que permite a interligao entre os indivduos, como um trao da solidariedade orgnica. Nesse sentido, parece inegvel relacionar a noo da escola sociolgica de DUGUIT concepo de Emile DURKHEIM, terico reconhecido que desenvolve o conceito de coeso social. Ver, sobre o tema, dentre as obras do autor, principalmente DURKHEIM, Emile. A diviso do trabalho social. 3. ed. Lisboa: Editorial Presena, 1989, p. 131 e ss.67

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SPEZIA, Mnica Justen. Op. cit., p. 29.

(...) cest toute activit dont laaccomplissment doit tre rgle, assure et contrl par les govvernants, parce que laccomplissement de cette activit estindispensable la ra lisacion et au dveloppement de linterdpendance sociale et quelle est de telle nature quelle ne peut tre assure complitemente que par lintervencion dela force govvernante. DUGUIT, Leon. Trait de droit constitucionnel. Tome premier. Thorie gnrale de Ltat (les elements, les tonetions, les organes de Ltat, les agents publics). Paris: Fontemoing & Cie, 1911, p. 99-100. (Traduo livre.) De acordo com Mnica Spezia JUSTEN, a expresso solidariedade social utilizada por DUGUIT seria uma obrigao de solidariedade que tm os membros de uma sociedade, no sentido de realizar e alcanar suas necessidades de ordem material, intelectual e moral. (JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 31). Para o autor, compete aos governantes cuidar para que sejam realizadas suas atividades prprias, no sentido de garantir a cultura fsica, intelectual e moral do indivduo, bem como a prosperidade da nao. (JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 31). Note-se, ainda, que esse conjunto de deveres, atribudos ao Estado pelo autor, que permite, a alguns, entenderem sua doutrina como uma passagem para o Estado Providncia. De acordo com Mnica Spezia JUSTEN, por exemplo, DUGUIT acreditava que havia chegado ao fim o tempo em que os governados exigiam que o Estado nada fizesse, conforme dos ditames do liberalismo, predominante no sculo XIX. Ao70 69

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Tanto assim que, para ele, o Direito compreendido como um fato social retomando a perspectiva de DURKHEIM -, e o legislador capaz de ler, de captar na sociedade quais so as necessidades que devero ser atendidas pelo Estado, mediante a prestao de servios pblicos72. Admitia, ento, que o servio pblico se constatava pelos dados objetivos da histria, no se criava pela vontade subjetiva do legislador.73 Da decorre o carter de maleabilidade inerente noo de servio pblico. Ou seja, j para DUGUIT as mudanas ocorridas no seio da sociedade implicariam necessariamente alteraes no catlogo de servios tomados como pblicos por um determinado grupo social. Tal compreenso ser traduzida, posteriormente, para o campo do regime jurdico do servio pblico, consagrando-se como o princpio da mutabilidade ou da adaptabilidade74. Constata-se, assim, que o elemento central na definio de servio pblico, para ele, o atendimento das necessidades dos cidados o que os autores

contrrio, o homem moderno reclamava que o Estado suprisse certas demandas novas, que assumisse certas obrigaes que se traduziriam pela prestao de servio pblico. E continua a autora: Ao destinar ao Estado o fim da solidariedade social, DUGUIT rebelou-se contra qualquer concepo de uma Administrao meramente espectadora da realidade social e omissiva quanto s necessidades dos administrados. (Ibidem, p. 34). De acordo com o posicionamento de SPEZIA, Monica Justen. Op. cit., p. 30. Veja-se, ainda, que, segundo Celso Antnio Bandeira de MELLO, o autor, dissociando-se de Ihering e Jellinek, entende que o Estado no o criador da ordem jurdica. A regra de direito independe dle, sendolhe exterior: a resultante objetiva de uma situao social determinada em dado momento histrico. Os governantes, isto , os detentores do monoplio da fra, de acrdo com sua concepo, esto submetidos regra de direito no por motivo de alguma qualidade transcendente que possua, nem por autolimitao, mas porque ela se impe irrefragavelmente como o resultado concreto e inafastvel produzido pelo equilbrio social. uma derivada das condies sociais. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 142). Em seu entender a regra de direito surge da conscincia social que lhe adere na exata convico, ainda que difusa, de que se trata de uma norma que brotou das condies objetivas da sociedade. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 143). Essa concepo traduz o cerne da epistemologia positivista, na qual o cientista capaz de captar as verdades, mediante o mtodo emprico, tal qual uma mquina fotogrfica, para referir a clssica figura citada por MIAILLE, Michel. Introduo crtica ao direito. Lisboa: Estampa, 1989. JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 33. Veja-se, assim, a despolitizao da noo de servio pblico, prpria de uma concepo epistemolgica positivista, como antes se afirmou. Nesse sentido, ainda que sem adotar a perspectiva de crtica ao positivismo, Alexandre Santos de ARAGO pontua que o autor nunca se preocupou, efetivamente, em responder quais seriam as conseqncias do Estado descumprir a suposta obrigao de reconhecer legalmente uma ou outra atividade como servio pblico. (ARAGO, Alexandre Santos. Direito..., p. 84).74 73 72 71

Tal princpio ser estudado no item 1.2.

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contemporneos vo chamar de elemento material do conceito75. Da porque considera como servios pblicos a guerra, a polcia, a justia e tambm a educao e a assistncia social, o transporte coletivo local, interestadual e internacional e a energia eltrica76. Ao explicar o servio pblico com enfoque no atendimento das necessidades sociais, DUGUIT acaba por adotar uma noo ampla do instituto. Isto porque, no ambiente do Estado de Direito, toda e qualquer atividade desempenhada pelo poder pblico somente justifica-se, ao menos no plano da legalidade formal, quando dirigida ao atendimento das demandas da sociedade, ou seja, admitindo-se a concepo sociolgica proposta pelo autor, todas as atividades desempenhadas pelo Estado seriam servios pblicos. Tal concepo foi, ento, por esse motivo, objeto de acirradas crticas, ressaltando-se o fato de que, na teoria de DUGUIT, o prprio Estado passaria a ser definido como um conjunto de servios pblicos, admitindo-se, sob esse conceito, atividades to dspares a ponto de perder toda a utilidade.77 Dentre os autores que desenvolveram suas obras a partir das crticas a DUGUIT importa, para a abordagem realizada na presente tese, a posio de Gaston JZE78, que tambm integrou a Escola do Servio Pblico79. Segundo JZE, a noo de servio pblico define-se no s pelo atendimento de necessidades sociais, mas tambm pela presena de um procedimento de direito pblico, identificando, assim, o que se convencionou chamar de regime jurdico especfico do servio pblico. Sustenta, portanto, que

Ver, por todos, MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 26. ed, So Paulo: Malheiros, 2009, p. 668.76

75

JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 33. ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 85.

77

Como j se fez referncia, dentre os autores clssicos que se opunham doutrina de Leon DUGUIT no incio do sculo XX, poderiam ser citadas as obras de Maurice HARIOU, conforme citado na nota 33, obra que no ser melhor abordada no presente trabalho por centrar-se na noo de puissance publique. Celso Antnio Bandeira de MELLO, aps pontuar as divergncias entre os doutrinadores franceses aqui referidos, reconhece um denominador comum aos autores da Escola do Servio Pblico na noo [que] opera como ideia-chave para o direito administrativo, cujo complexo de regras em torno dela se explicava e unificava. Da a afirmao de que a tarefa do administrativista se cinge teoria dos servios pblicos, eu o prprio Estado nada mais que um conjunto de servios pblicos. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 136-137).79

78

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Toda vez que se est en presencia de un servicio pblico propiamente dicho, se verifica la existencia de reglas jurdicas especiales, de teoras jurdicas especiales, todas las cuales tienen por objeto facilitar el funcionamiento regular y continuo del servicio pblico, satisfaciendo, en la forma ms rpida y completa que sea posible, las necesidades de inters general. 80

Procura, ento, com a referncia a um regime jurdico especfico, restringir a noo de servio pblico de Leon DUGUIT, buscando identificar o instituto dentre as atividades desempenhadas pelo Estado. Como se v, com a adoo de tal regime, estabelece o autor uma especial forma de prestao dos servios pblicos, tema que norteia a discusso da presente tese. Alm disso, JZE tambm se dissocia do pensamento de seu antecessor porque somente admite como servio pblico atividades que estejam sob a gide do referido regime jurdico especfico por fora de lei. Assim, ainda que no negue a existncia de um elemento teleolgico no conceito de servio pblico, admitindo que tais atividades devessem atender as necessidades coletivas, para ele, o catlogo dos servios ser definido, antes, mediante a atividade legislativa. Ou seja, enquanto para Leon DUGUIT os servios pblicos so definidos pela sociedade e o legislador simplesmente tem o dever de descobrir quais so81, para JZE, estas atividades s sero servios pblicos se forem assim definidas por lei, na medida em que forem submetidas a um regime jurdico especfico82. No por outro motivo, ressalta o autor que

JZE, Gastn. Principios generales del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 04. Segundo Celso Antnio Bandeira de MELLO, tal noo, em face de tal aspecto, no fornece elementos que permitam configurar sua fisionomia jurdica, caracterizando-se, por isso, como um fenmeno que servir de indicao para o poltico, o legislador. Segundo o autor, uma vez que se reporta diretamente realidade social subjacente construo jurdica, desdenha fornecer as referncias concretas necessrias ao intrprete, juiz ou doutrinador, que se abroquele estritamente na perspectiva do cientista do Direito, isto , daquele que se defronta com um sistema construdo e no a construir. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 141). At porque, inegvel que nem todas as atividades de interesse geral so prestadas pelo Estado, como, por exemplo, o fornecimento de po e leite. Sobre o tema, refere Francisco Jos Villar ROJAS: certo que o fornecimento de po e de leite so essenciais, mas nesse casos a diferena para os servios pblicos) radica na organizao produtiva, ou seja, na possibilidade de criao de uma rede de padarias ou de autorizar mltiplos postos de venda de po, enquanto o gs ou a gua so fornecimentos condicionados pela utilizao de uma infra-estrutura que limita a concorrncia (ROJAS, Francisco Jos Villar. Privatizacin de servicios pblicos. Madrid: Tecnos, 1993, p. 155).82 81

80

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se habla nica y exclusivamente de servicios pblicos cuando las autoridades de un pas, em determinada poca, deciden satisfacer las necesidades de inters general, mediante el procedimiento del servicio pblico. La intencin de los gobernantes es lo nico que debe 83 considerarse.

Assim, possvel identificar seu conceito de servio pblico:es um procedimiento tcnico y no el unico - com el que se satisfacen las necessidades de inters general. Decir que, en determinando caso, existe servicio publico, significa que los agentes tienen la posibilidad de usar procedimientos del derecho publico, de apelar a teoras y a reglas especiales, o sea, de recurrir a um rgimen jurdico especial: este rgnimen se caracteriz por la subordinacin de los interes privados al interes general: la organizacin del servicio es siempre modificable com arreglo a las necesidades del inters general, y, en consecuencia, legal y regulamentaria.84

A concepo do servio pblico como critrio central do Direito Administrativo perdurou na Frana at meados do Sculo XX, quando se passa a falar da crise do instituto85. Para RIVERO86, a constatao de que a atividade administrativa no se limita prestao de servios pblicos e a gesto de tais atividades por particulares87 foram os fatores que, segundo ele, levaram a noo de servio pblico ao declnio.

JZE, Gastn. Op. cit., p. 06. Celso Antnio Bandeira de MELLO resume a divergncia entre DUGUIT e JZE nos seguintes termos: enquanto DUGUIT conceitua o servio pblico em termos sociolgicos e identifica as regras de direito administrativo com o servio pblico administrativo, examinando a matria mais em termos de fieri que em termos de facto; (...) Jze assume perspectiva formal, rigorosamente jurdica, e conceitua o servio pblico como um procedimento tcnico que se traduz em um regime peculiar, o processo de direito pblico e associa estreitamente servio pblico administrativo e direito administrativo. (MELLO, Celso Antnio Bandeira de. Natureza..., p. 151).84

83

JZE, Gastn. Op. cit., p. 18. RIVERO, Jean. Op. cit., p. 38. Ibidem, p. 39.

85

86

De acordo com Frank MODERNE, a flexibilizao do elemento subjetivo do conceito de servio pblico, com a permisso de que particulares desempenhassem tais atividades teria sido o principal fator a determinar a primeira crise do servio pblico, o que teria ocasionado a ruptura de la vinculacin entre servicio pblico e intervencin de uma persona pblica, al nvel nacional o local. (MODERNE, Frank. Op. cit., p. 11).

87

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Frank MODERNE acrescenta anlise de RIVERO que o surgimento da categoria dos servios pblicos virtuais tambm teria contribudo para o desprestgio do servio pblico como a noo-chave do Direito Administrativo88. A noo de servio pblico, entretanto, passa a ser novamente valorizada aps a Primeira Guerra Mundial, com o crescente intervencionismo do Estado na economia89. Parece certo afirmar, ento, que no contexto do Estado Social90 que se amplia a prestao de tais servios, atrelando-se a sua finalidade promoo da dignidade da pessoa humana e aos demais princpios fundamentais de tal modelo de Estado. Destarte, passa a ser tarefa do Estado intervir na sociedade para garantir a todos uma existncia digna91. E o instrumento eleito para realizar tal intento o servio pblico. Pode-se dizer que foi o enfraquecimento do modelo liberal que implicou na necessidade de se conceber uma nova forma de atuao do poder pblico na esfera da sociedade, proclamando-se um novo ethos poltico: a concepo da sociedade no j como um dado, mas como um objecto susceptvel e carente de uma estruturao a prosseguir pelo Estado com vista realizao da justia social.92 Por isso, tem-se que o estado de Bem-estar Social o Estado do Servio Pblico. O servio pblico a traduo jurdica do compromisso poltico da interveno estatal para satisfazer as necessidades coletivas.93 A noo de servio pblico que se apresenta neste modelo de Estado, ao menos no contexto francs que influencia o direito brasileiro94, norteia-se pelosPara o autor constituem-se como servios pblicos virtuais ciertas actividades de inters general [que] no son suscetibles de ser ejercidas en condiciones satisfactorias por el livre juego de una explotacin privada y pueden ser sometidas a reglas exorbitantes del derecho comn (Idem). A noo de servio pblico virtual ser objeto dos itens subsequentes.89 88

JUSTEN, Mnica Spezia. Op. cit., p. 49.

No sero discutidas, no mbito deste trabalho, as divergncias doutrinrias sobre a nomenclatura atribuda ao Estado aps a crise do Estado Liberal. Para tanto, remete-se o leitor obra de Jorge Reis NOVAIS que, com maestria, discorre sobre as vrias frmulas que procuram identificar o Estado de cunho prestacional e democrtico surgido, basicamente, a partir da promulgao da Constituio do Mxico (1917) e de Weimar (1919). (NOVAIS, Jorge Reis. Contributo..., p. 188 e ss., principalmente). O que significa, na dico de Jorge Reis NOVAIS que o Estado encara a esfera econmica como susceptvel de ser moldada em funo das exigncias sociais e dos objectivos polticos por ele definidos. (Ibidem, p. 193).92 91

90

Idem. JUSTEN FILHO, Maral. Teoria..., p. 23.

93

23

postulados de DUGUIT (atendimento de necessidades sociais) e JZE (regime jurdico especfico). Admite-se, porm, a relativizao em face do chamado elemento subjetivo do servio pblico permitindo-se, com isso, a sua explorao pelos particulares, mas sob vnculo com o poder pblico (concesses e permisses). O que efetivamente se altera, ento, no seio do Estado Social, o elenco de tais atividades. Destarte, enquanto no Estado Liberal traduziam-se basicamente em servios necessrios implantao de infraestrutura, agora tais servios vinculamse diretamente concretizao dos direitos sociais95. Por isso, Manuel Aragn REYES sustenta que o Estado Social implica na assuno de novas tarefas, que convivem com as antigas, tais como as atividades de ordem pblica, polcia, segurana, defesa.96 Tal assertiva leva o autor concluso de que o Estado Social no se apresenta como um modo de ser do Estado, mas como uma especfica forma de atuao do Poder Pblico.97 No este o entendimento de Ario ORTIZ. Para o autor, com o intervencionismo estatal o conceito de servio pblico assumiu uma conotao que implicou na reserva das atividades a favor do Estado, convertendo-as em tarefas pblicas exclusivas98. Toma-se, ento, tal categoria como um instrumento disposio do Estado para realizar o interesse pblico, proibindo-se a titularidade de tais servios pela iniciativa privada99. Alexandre Santos ARAGO, filiando-se s ideias de Ario ORTIZ afirma que havia uma demanda social para que o Estado assumisse a titularidade exclusiva destas tarefas principalmente porque, segundo ele, a explorao por particulares,

MENEGALE, J. Guimares. Direito administrativo e cincia da administrao. 2. ed., Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1950, p. 93 e CAVALCANTI, Themstocles Brando. Curso de direito administrativo. 3. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1954, p. 195.95

94

Sobre o tema, ver o segundo captulo da presente tese.

REYES, Manuel Aragn. La democracia social y economica. Los conceptos economicos y sociales. In: GARCIA-TUNN, ngel Marina. Economia Y derecho ante el siglo XXI. Valladoid: Lex Nova, 2001, p. 18.97

96

Idem.

ORTIZ, Gaspar Ario. Op. cit., p. 484. Ainda que essa perspectiva j estivesse presente na obra de DUGUIT, como antes ressaltado.99

98

No ltimo item do presente captulo, ser retomada tal ideia.

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sob regime privado, de setores estratgicos constitudos como monoplios naturais, impedia o acesso adequado de tais servios por grande parcela da populao.100 Tal discusso pode ser ilustrada com o exemplo das telecomunicaes, na esteira do pensamento de Nicoletta RANGONE. Segundo a autora, a busca por uma maior segurana na transmisso de dados e o objetivo de que tais servios possam ser mecanismos de participao na vida social e culturais foram fatores que levaram o Estado a excluir os particulares da sua prestao101. Aponta, ainda, a autora, que a exclusividade do Estado visava, ainda, a necessidade de reduo de custos e at a maior difuso do servio102. A ampliao dos deveres do poder pblico em relao sociedade, que caracteriza o Estado Social, impe, na mesma medida, o incremento da finalidade do servio pblico, tomado no s como mecanismo de coeso social, mas tambm, como instrumento de distribuio de riquezas. A atuao do Estado, ento, no campo dos servios pblicos, assegura um conjunto de prestaes tendentes a garantir uma vida digna e protegida, independentemente da capacidade ou viabilidade da integrao individual no processo produtivo, dos imponderveis das condies naturais ou das desigualdades sectoriais ou regionais103 O servio pblico tomado nesta perspectiva chega ao Brasil somente com a Constituio de 1988, que consagrou o modelo de Estado Social e Democrtico de Direito, atribuindo ao poder pblico o dever de concretizar os direitos fundamentais, inclusive os de cunho social. bem verdade que o surgimento do servio pblico no pas remonta ao perodo colonial. Tais servios teriam sido implementados com o objetivo de construir, nas terras da colnia, uma estrutura que permitisse aos nobres portugueses viver com um mnimo de conforto e de benesses104.

100

Idem.

RANGONE, Nicoletta. Trattato di diritto amministrativo (a cura di Sabino Cassese). Milano: Giuffr, 2000, p. 1785.102

101

Idem. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo..., p.196.

103

Sobre a histria dos servios pblicos no Brasil, no prisma do Direito Administrativo, consulte-se a obra de ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 55-78, tomada como referncia nos prximos pargrafos da tese.

104

25

De acordo com Alexandre dos Santos ARAGO, foi com a vinda da Corte de Dom Joo VI para o Brasil que se comeou a pensar sobre os servios pblicos de infra-estrutura urbana105 porque a nobreza portuguesa, no suportando o odor e a insalubridade do Rio de Janeiro, pressionou o Rei para que tomasse providncias.106 Com o advento da Repblica, norteada pelas ideias liberais clssicas francesas,107 o servio pblico mantm-se como instrumento de viabilizao de infraestrutura, trao que, na era do Estado Novo seria intensificado de maneira a assegurar o desenvolvimento do pas, em reas voltadas para a segurana108 e desenvolvimento109. A preocupao com a estatizao de tais atividades, a partir da dcada de 30, pode ser verificada na obra de Bilac PINTO:O Estado que no tiver o controle real dos servios de utilidade pblica [eletricidade, gs, telefone, ferrovias] ser sempre impotente em face dos managements das holdings companies, pois que o seu poder estar 110 permanentemente dividido com estas formidveis potncias econmicas.

Comentando os famosos discursos de Getlio Vargas, Alexandre Santos ARAGO111 afirma que j havia, neste momento, uma acentuada preocupao com a igualdade social, reconhecendo-se, ao Estado, o dever de acudir o proletariado. Ainda com base nas ideias de tal autor note-se que no regime militar a estatizao foi mantida no pas, implicando a proliferao das entidades da

105

Ibidem, p. 59.

Idem. Assim, como sugere o autor, remonta a tal perodo a implantao de ferrovias e eletrificao urbana (Ibidem, p. 61).107

106

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 3. ed. So Paulo: Globo, 2001, p. 557.

Ver, nesse sentido, DUTRA, Pedro Paulo de Almeida. Controle das empresas estatais. So Paulo: Saraiva, 1991, p. 29. FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 802. Ver, tambm, SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo da economia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 65. PINTO, Bilac. A regulamentao efetiva dos servios de utilidade pblica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 87. ARAGO, Alexandre Santos de. Direito..., p. 65. Ver, sobre o tema, por todos, FAORO, Raymundo. Op. cit., p. 752 e ss.111 110 109

108

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administrao pblica indireta, notadamente empresas pblicas e sociedades de economia mista112, em um crescente processo de descentralizao administrativa113. O regime poltico do pas, contudo, no permitia a consolidao do servio pblico como efetivo instrumento de concretizao dos direitos sociais. a Constituio Federal de 1988 que, no seio de redemocratizao do Estado Brasileiro, permite a leitura do servio pblico como o conjunto de ofertas positivas assumidas pelo poder pblico por serem reputadas imprescindveis e

correspondentes a convenincias bsicas da sociedade, diretamente vinculadas efetivao do princpio da dignidade da pessoa humana114.

1.2 A NOO DO SERVIO PBLICO E SEUS ELEMENTOS

Ainda que seja possvel identificar a noo115 de servio pblico adotada em um determinando contexto histrico-poltico, a partir do referencial oferecido pela Teoria do Estado, o certo que o tratamento do tema encontra na doutrina enorme pluralidade de posicionamentos116. Seja em relao ao seu contedo e nvel de112

SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito..., p. 61.

Os objetivos almejados com a estatizao dos servios mediante a criao de tais entidades no foram atingidos. Com efeito, a descentralizao facilitou a fuga do regime jurdico administrativo, em detrimento das garantias do interesse pblico. A contratao direta sem concurso pblico, a aquisio de bens e servios sem licitao, a realizao de emprstimos internacionais sem aprovao do Sentado Federal constituam-se nas polticas comuns dessas entidades, o que implicou em um crescente movimento pela democratizao da Administrao Pblica, que desembocaria na Constituio Federal de 1988. BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. O poder normativo dos entes reguladores e a participao do cidado nesta atividade. Servios pblicos e direitos fundamentais: os desafios a experincia brasileira. Revista Interesse Pblico, Porto Alegre, n. 16, p. 13-22, 2002, p. 17. Adotando-se o posicionamento da maior parte da doutrina, no se tratar do conceito de servio pblico, mas sim de sua noo, sob a justificativa trazida por Eros Roberto GRAU: o conceito atemporal. Pode-se estudar como os conceitos se engendram uns aos outros no interior de categorias determinadas. Mas nem o tempo, nem, por conseqncia, a Histria podem ser objeto de um conceito. A h uma contradio nos termos. Desde que se introduz a temporalidade, deve considerar-se que no interior do desenvolvimento temporal o conceito se modifica. A noo, pelo contrrio, pode-se definir com o esforo sinttico para produzir uma ideia que se desenvolve a si mesma por contradies e superaes sucessivas e que , pois, homognea ao desenvolvimento das coisas. (GRAU, Eros Roberto. Constituio e servio pblico. In: Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 264-265). No Brasil, Fernando Herren AGUILLAR resume o posicionamento da doutrina ptria no que se refere divergncia no conceito de servio pblico. Para ele, possvel identificar duas116 115 114

113

27

abrangncia, seja quanto titularidade ou regime jurdico aplicvel, dentre outros aspectos correlatos, no se consegue vislumbrar nem um mnimo de consenso acadmico. No mbito nacional, o constituinte no se preocupou em definir o instituto, ainda que aparea expressamente no texto das Cartas Constitucionais desde 1934117. Seguindo a tradio das demais Constituies, a Carta de 1988 igualmente no traz uma definio precisa do instituto, sendo que a expresso utilizada com sentidos diferenciados ao longo de seus dispositivos. Ainda assim, voltada ao objetivo de concretizar os valores de um Estado Social e Democrtico de Direito e buscando romper com as estruturas de um Estado at ento autoritrio, o constituinte originrio fornece referenciais que permitem identificar a noo de servio pblico pretendida para a sociedade brasileira118. Para situar a noo de servio pblico a partir do conjunto de princpios que formam o chamado regime jurdico administrativo,119 consagrado na Constituioposies bsicas: (i) o primeiro grupo, chamado pelo autor de convencionalistas-legalistas, para quem o conceito de servio pblico dependeria de disposies constitucionais ou legais. Cita o autor, dentro deste primeiro grupo, Celso Antnio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella DI PIETRO; (ii) j no segundo grupo, os essencialistas, definem servio pblico como atividades que atendem necessidades relevantes da populao que no podero ser devidamente atendidas pela iniciativa privada. Representando tal corrente, o autor refere Eros Roberto GRAU. (AGUILLAR, Fernando Herren. Controle social dos servios pblicos. So Paulo: Max Limonad, 1999, p. 126). A primeira referncia expresso servio pblico no sentido de funo aparece, pela primeira vez, no Pargrafo nico do art. 17, da Constituio de 1934. Dinor Adelaide Musetti GROTTI, comentando o surgimento, esclarece que desde ento, no foi erigido algum conceito constitucional de servio pblico. (GROTTI, Dinorah Adelaide Musetti. O servio..., p. 89).118 117

Deve-se atribuir, portanto, ao servio pblico, nos termos em que previsto na Carta Constitucional de 1988, a dimenso da prospectividade que caracteriza a Constituio. Nesse sentido, segundo Clmerson Merlin CLVE, a CF/88 fala o que a sociedade brasileira quer ser. (CLVE, Clmerson Merlin. Direito alternativo (por uma dogmtica constitucional emancipatria). In: Evento comemorativo do sesquicentenrio do Instituto dos Advogados Brasileiros, 1994, Rio de Janeiro. Direito alternativo. Seminrio nacional sobre o uso alternativo do direito. Rio de Janeiro: COAD, 1994, p. 47.) No mesmo sentido, o autor reconhece como uma renovada linha doutrinria a da dogmtica constitucional emancipatria. Neste aspecto, afirma que esta consiste em formao discursiva que procura demonstrar a radicalidade do Constituinte de 1988, tendo em vista que o tecido constitucional passou a ser costurado a partir de uma hermenutica prospectiva que no procura apenas conhecer o direito como ele operado, mas que, conhecendo suas entranhas e processos concretizadores, ao mesmo tempo fomrente uma mudana teortica capaz de contribuir para a mudana de triste condio que acomete a formao social brasileira. (CLVE, Clmerson Merlin. A eficcia dos direitos fundamentais sociais. In: Revista Crtica Jurdica. Curitiba, n 22, juldez. 2003, p. 18). este o pano de fundo no qual pretende-se desenvolver a presente tese.

119

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso..., p. 95 e ss.

28

Federal de 1988, impe-se releitura do instituto sob o enfoque que visa consagrar a dignidade dos cidados brasileiros120. A partir de tal perspectiva, a leitura dos dispositivos da Carta Magna indica ao menos dois critrios sob os quais foi utilizada a expresso servio pblico, quais sejam, o critrio subjetivo ou orgnico e o objetivo. Segundo Dinorah Adelaide Musetti GROTTI, o primeiro critrio referido indica uma certa confuso da prpria Administrao Pblica com a categoria de servio pblico121. Jean RIVERO, sobre a utilizao do servio pblico para identificar a estrutura administrativa assevera que a expresso [servio pblico] designa um conjunto de agentes e de meios que uma pessoa pblica afecta a uma mesma tarefa...122 Na doutrina nacional, Celso Antnio Bandeira de MELLO pontua que em sentido subjetivo o servio pblico concebido como um organismo pblico, ou seja, uma parte do aparelho estatal. Nesta acepo, falar em servio pblico o mesmo que se referir a um complexo de rgos, agentes e meios do Poder Pblico.123 Na Carta de 1988, o disposto no art. 37, XIII, por exemplo, indica a adoo desse sentido, quando prev que vedada a vinculao ou equiparao de quaisquer espcies remuneratrias para o efeito de remunerao do pessoal do servio pblico;. Da mesma maneira, a disposio do art. 40, III, que trata do direito dos servidores aposentadoria voluntria, desde que cumprido tempo mnimo de dez anos de efetivo exe