adocão: a comunidade dos que nada têm em comum?

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II CONINTER – C ADOÇÃO: A COM 1. Unirio. Progr Av. Pasteur, 4 2. Tribunal de Justiça do Av. Erasmo Braga, RESUMO Com base em levantamento definições do conceito de co adoção reveste-se de caracte sentimento de pertencimento partir da perspectiva de que substituta, constatamos a exis análise, ao privilegiarmos a interdisciplinar do tema. Verif limite, reveste-se de uma equ pode ser entendida como o assim, a relação entre adotad Palavras-chave: Adoção. Co Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e H Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013 MUNIDADE DOS QUE NADA TÊM COIMBRA, JOSÉ CÉSAR rama de Pós-Graduação em Memória Social - Do 458 - Urca - CEP 22.290-240 - Rio de Janeiro - R [email protected] o Estado do Rio de Janeiro. Serviço de Apoio aos , 115 - Centro / CEP: 20020-903 – Rio de Janeiro [email protected] bibliográfico, realizamos uma análise da prática omunidade, cogitando uma inter-relação entre e erísticas privilegiadas para um estudo sobre a co o, o que também encontra no tema comunidade e o adotado realiza um deslocamento entre a stência de uma iluminação recíproca entre adoçã autores das ciências sociais e da filosofia, e ficamos, por fim, que a própria noção de comum uivocidade rica de sentidos. Dessa forma, conclu agenciamento daqueles que não partilham um do, família natural e substituta pode ser lida em no omunidade. Família. Comum Humanidades EM COMUM? outorando RJ - Brasil s Psicólogos - CGJ o – RJ - Brasil social da adoção e das eles. Entendemos que a onstituição subjetiva e do um locus privilegiado. A a família de origem e a ão e comunidade. Nessa explicitamos o potencial m, ao ser levada ao seu uímos que a comunidade ma identidade comum e, ova chave.

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Anais II Coninter

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  • II CONINTER Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

    ADOO: A COMUNIDADE

    1. Unirio. Programa de PsAv. Pasteur, 458

    2. Tribunal de Justia do Estado do Rio de JaneiroAv. Erasmo Braga, 115

    RESUMO Com base em levantamento bibliogrfico, realizamos uma anlise da prtica social da adoo e das definies do conceito de comunidade, cogitando uma interadoo reveste-se de caractersticas privilegiadas parasentimento de pertencimento, o que tambm encontra no tema comunidade um partir da perspectiva de que o adotado realiza um deslocamento entre a famlia de origem e a substituta, constatamos a existncia de uma iluminao recproca entre adoo e comunidade. Nessa anlise, ao privilegiarmos autores das cincias sociais e da filosofia, explicitamos o potencial interdisciplinar do tema. Verificamos, por fim, que a prpria noo de comum, ao slimite, reveste-se de uma equivocidade rica de sentidos. Dessa forma, conclumos que a comunidade pode ser entendida como o agenciamento daqueles que no partilham uma identidade comum e, assim, a relao entre adotado, famlia natural e sPalavras-chave: Adoo. Comunidade. F

    Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

    ADOO: A COMUNIDADE DOS QUE NADA TM EM

    COIMBRA, JOS CSAR

    Programa de Ps-Graduao em Memria Social - DoutorandoAv. Pasteur, 458 - Urca - CEP 22.290-240 - Rio de Janeiro - RJ

    [email protected]

    2. Tribunal de Justia do Estado do Rio de Janeiro. Servio de Apoio aos Psiclogos Av. Erasmo Braga, 115 - Centro / CEP: 20020-903 Rio de Janeiro

    [email protected]

    Com base em levantamento bibliogrfico, realizamos uma anlise da prtica social da adoo e das definies do conceito de comunidade, cogitando uma inter-relao entre eles. Entendemos que a

    se de caractersticas privilegiadas para um estudo sobre a constituio subjetiva e do sentimento de pertencimento, o que tambm encontra no tema comunidade um partir da perspectiva de que o adotado realiza um deslocamento entre a famlia de origem e a

    os a existncia de uma iluminao recproca entre adoo e comunidade. Nessa anlise, ao privilegiarmos autores das cincias sociais e da filosofia, explicitamos o potencial interdisciplinar do tema. Verificamos, por fim, que a prpria noo de comum, ao s

    se de uma equivocidade rica de sentidos. Dessa forma, conclumos que a comunidade pode ser entendida como o agenciamento daqueles que no partilham uma identidade comum e, assim, a relao entre adotado, famlia natural e substituta pode ser lida em nova chave.

    Adoo. Comunidade. Famlia. Comum

    Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades

    DOS QUE NADA TM EM COMUM?

    Doutorando RJ - Brasil

    Servio de Apoio aos Psiclogos - CGJ Rio de Janeiro RJ - Brasil

    Com base em levantamento bibliogrfico, realizamos uma anlise da prtica social da adoo e das relao entre eles. Entendemos que a

    um estudo sobre a constituio subjetiva e do sentimento de pertencimento, o que tambm encontra no tema comunidade um locus privilegiado. A partir da perspectiva de que o adotado realiza um deslocamento entre a famlia de origem e a

    os a existncia de uma iluminao recproca entre adoo e comunidade. Nessa anlise, ao privilegiarmos autores das cincias sociais e da filosofia, explicitamos o potencial interdisciplinar do tema. Verificamos, por fim, que a prpria noo de comum, ao ser levada ao seu

    se de uma equivocidade rica de sentidos. Dessa forma, conclumos que a comunidade pode ser entendida como o agenciamento daqueles que no partilham uma identidade comum e,

    ubstituta pode ser lida em nova chave.

  • Abordar o tema adoo colocar-se, dentre as vrias questes possveis, frente a interrogaes sobre identidade e pertencimento a grupos sociais, seus limites e possibilidades. Adoo aqui entendida como a assuno de vnculos de filiao juridicamente reconhecidos entre adulto/s e criana/s ou adolescente/s, no tendo sido os segundos gerados biologicamente pelos primeiros. Trata-se de prtica social juridicamente regulada, a qual encontra formas de expresso e motivos distintos ao longo do tempo. Adotar hoje no significa o mesmo do que foi na Roma Antiga ou mesmo anteriormente, como nos deixa notar o Cdigo de Hammurabi, que data do Sculo XVII A.C.

    No Brasil, encontramos trs grandes legislaes relativas adoo: o Cdigo de Mello Mattos, que vigorou de 1927 a 1979; o Cdigo de Menores, de 1979 a 1990; e o Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990 at agora. O Estatuto da Criana e do Adolescente sofreu modificaes bastante significativas quanto adoo com a Lei 12010/2009.

    Empiricamente nota-se entre os requerentes nos processos de adoo, de maneira recorrente, a meno a sinais especiais que se manifestam no dia, ou no perodo prximo, em que ocorre o primeiro contato entre eles e o futuro adotado. Esses sinais seriam a indicao do que estaria pr-determinado, ligao e unidade que se imporia de antemo a todos os envolvidos: um sonho, uma fala entreouvida, uma coincidncia, uma caracterstica, tudo retroativamente assume um papel especial na memria familiar. Trata-se de movimento que tem especial apelo no acolhimento, pois traduziria o lugar que precede o adotado propriamente dito, fico a abrir caminho para a realidade.

    Que a adoo traduza a experincia de viver em (ou entre) dois mundos algo que a prtica da adoo internacional, com ou sem percalos, aparentemente, mostra-nos exausto. Diversos testemunhos apontam nesse sentido. Um deles o de Sophie Brdier e seu filme Separes. Sophie uma diretora de cinema sul-coreana adotada por franceses que quando adulta realiza uma trilogia que coloca em destaque essa especificidade de sua vida, inclusive a tentativa de localizar informaes sobre seu passado pr-adotivo e o insucesso desse empreendimento.

    Entendemos que a adoo internacional mostra com mais agudeza o que manifesto tambm na adoo nacional. A adoo internacional aquela que ocorre quando requerentes e adotandos no residem no mesmo pas. Dessa forma, bastante perceptvel que a adoo implica em algum grau, rompimento dos laos com a famlia de origem e sua incluso na chamada famlia substituta. Adoo fechada e adoo aberta so termos no jurdicos que apontam para graus diferentes de manuteno de contato entre, por um lado, adotado e famlia adotiva, e, por outro, famlia de origem.

    Perguntamo-nos se estaria em jogo na adoo um tipo de travessia, a qual se atualizaria na passagem entre famlia de origem e famlia substituta. Esse deslocamento, permitir-nos-ia colocar em perspectiva uma discusso acerca da comunidade?

  • Por ora, devemos ter no horizonte no tanto uma definio precisa de comunidade, mas alguns significados que marcam as diversas definies aplicveis a ela. Assim, sabe-se que, em geral, as noes de totalidade, de territrio, interao, complexidade, conjunto, submisso s mesmas normas e mesma transmisso cultural e histrica, tudo isso marcaria os conceitos de comunidade.

    COMUNIDADES

    Fichter (1973) destacou os pontos acima, sobretudo quanto ao compartilhamento de um mesmo territrio, s relaes recprocas, aos meios e aos fins comuns, como caracterizando o que quer que venha a ser definido como comunidade. nesse sentido que, inicialmente, podemos visualizar a experincia adotiva como a passagem de uma comunidade a outra. Todavia, o que subjaz em nosso percurso a possibilidade de uma leitura diferente aplicvel definio de comunidade, a qual teria implicaes sobre as anlises acerca da prtica adotiva e de seu testemunho. Essa outra leitura relativizaria a interpretao de que uma comunidade seria definida pelos seus meios e fins comuns, por exemplo.

    Peruzzo e Volpato (2009), na sntese que elaboram sobre as definies de comunidade, local e regio, traam um percurso no qual a definio de comunidade envolveria, majoritariamente, uma relao com as noes de parentesco, vizinhana ou amizade, ao que se somaria, como observado acima, a coeso e a unidade calcadas em interesses comuns.

    Contudo, os autores encontram definies e usos de comunidade que no destacam a importncia de laos de sangue ou mesmo de parentesco ou de territrio. Ou seja, h definies e usos de conceitos de comunidade que no se pautariam nas noes de parentesco, em particular os de sangue e de territrio como essenciais e obrigatrios.

    Na anlise realizada por Peruzzo e Volpato (2009) destaca-se ainda que a dimenso territorial no seria a principal a caracterizar uma comunidade. Vontade e interesse seriam elementos que relativizariam o territrio, acentuando, contudo, a comunidade como campo que delimita fronteiras entre um interior e um exterior, que demanda o dilogo e a articulao entre esses polos na produo de identidades.

    Esse conjunto formado por dilogo e articulao assinalaria um modo de relao caracterstica de comunidades de expatriados, nas quais os vnculos com a terra natal e tradies seriam mediados por uma negociao peculiar com as novas culturas em que se inserem.

  • Esposito (2010) destaca que nas definies de comum e comunidade o que comum o que une propriedades tnicas, territoriais ou espirituais. Ou seja, o que se tem em comum o que comum a todos, logo o que no prprio. Da afirmar que communitas a totalidade de pessoas unidas no por uma propriedade mas precisamente por uma obrigao ou dbito [...] (Esposito, 2010, p. 6).

    FRONTEIRA E LIMIAR

    Essa perspectiva de dois lugares e de travessia presentes na adoo particularmente evidente quando Jacobson (2008) apresenta-nos o conceito de culture keeping. Em linhas gerais, esse conceito refere-se ao processo de socializao da criana adotada no qual so mantidas referncias da cultura de origem, com possveis reflexos em sua constituio subjetiva. Em no raras vezes esse processo envolve viagens ao pas natal e outras estratgias de aproximao entre o adotado e o quadro cultural do pas nativo.

    Quiroz (2012), por sua vez, entende que culture keeping efetivamente deve ser nomeado e tratado como cultural tourism. Ou seja, no entendimento dessa autora, trata-se, ao fim e ao cabo, de apropriao seletiva e consumo de smbolos culturais, prprios ao funcionamento do capitalismo, que servem de fonte para a construo da identidade da criana adotiva, moldando-a cultural e racialmente. Ela conclui de sua anlise que as prticas associadas ao culture keeping (ou ao cultural tourism, como denomina) acabam por apontar que crianas adotadas no conseguiriam desenvolver uma identidade hbrida, resultante dos dois mundos que habitam, tornando-se adultos que existem margem de duas culturas possveis.

    Devemos notar que esse tipo de questo central na anlise da noo de comunidade que empreendemos neste trabalho. Esposito (2007) acentua que a impossibilidade da associao entre sujeito e comunidade traduz-se na descontinuidade entre o que seria comum e prprio. Em suas palavras, a comunidade [est] vinculada no a um mais e sim a um menos de subjetividade (Esposito, 2007, p. 18). por essa via que Esposito dissocia a ideia de comunidade de um princpio identitrio comum. O comum, nesse caso, seria o despojamento da identidade que a comunidade suscitaria ou, nas palavras dele: Se o sujeito da comunidade no mais o mesmo, ser necessariamente um outro. No um outro sujeito, mas uma cadeia de alteraes que no se fixa nunca em uma nova identidade (Esposito, 2007, p. 18).

    Jacobson (2008) observa que efetivamente as famlias adotivas na adoo internacional aparentam tratar de modo esttico a relao com a cultura de origem e a de destino. Nesse sentido, atividades culturais propostas aos adotados transnacionais so

  • apresentadas como sendo, por exemplo, americanas ou chinesas. Esse dualismo estende-se aos adotados os quais seriam vistos, ocasionalmente, como americanos ou chineses, isto , como havendo duas identidades residindo na mesma criana. A autora assinala que raramente ouviu um pai adotivo falar de seu filho adotivo como chins-americano ou russo-americano.

    Dado o exemplo acima, entendemos que a observao de Quiroz no escapa, em parte ao menos, anlise de Jacobson, dado que esta autora descreve o crescimento de prticas que denomina past tours ou heritage tours, as quais, em linhas gerais, no estariam distantes das formulaes acerca do cultural tourism. Todavia, Jacobson sinaliza tambm que o acesso ao suposto acervo do passado tnico do adotado poderia ser uma via para atenuar eventuais dificuldades na insero na cultura na qual a prpria famlia adotiva encontra-se imersa.

    Todavia, esse recurso no seria imune a alguns efeitos colaterais: seja aquele inerente ao prprio funcionamento do capitalismo, e que se refere criao de um mercado de bens e produtos a serem consumidos, de commodities, enfim; seja a produo de um passado que refora a linha demarcatria com o presente da famlia adotiva.

    Esse quadro duplicaria a diviso experimentada pelo adotado, segundo essas autoras, inclusive no que tange constituio de identidades calcadas em bases raciais. Os exemplos citados so aqueles de adotantes brancos dos EUA e adotados africanos negros do Malau ou orientais. Nesses casos, estaria em jogo a tentativa de manuteno da cultura real, que pr-adotiva, em detrimento do que de outro modo poderia ser compreendido como pura assimilao cultura do pas de destino.

    Percebe-se nessas alternativas a tenso com a perspectiva que Esposito apresenta:

    [...] a comunidade [...] no um ente. Nem um sujeito coletivo, nem mesmo um conjunto de sujeitos. [...] a relao que no a faz mais ser isso sujeitos individuais porque interrompe a sua identidade com uma barra que a atravessa, alterando-a: o com, o entre, o limiar sobre os quais eles se encontram, em um contato que a relaciona com os outros, na medida em que os separa de si mesma. [...] a comunidade no o entre do ser, mas o ser como entre: no uma relao que modela o ser, mas o prprio ser como relao (Esposito, 2007, p. 19)

    Yngvesson (2010), ela mesma me adotiva, sintetiza as ponderaes acima, reiterando o conjunto de questes que a adoo internacional comporta. A prpria definio de uma categoria que permitiria a apreenso dos adotados, os quais denomina no estudo que realiza de border-crossing children, encontra-se fragmentada em uma srie que no se resumiria a imigrantes, commodities e fantasias, por exemplo.

    Que a adoo no se resuma a essas categorias, mas, ao mesmo tempo, esteja de algum modo nelas contida, uma das concluses do estudo realizado pelo Adoption Institute

  • acerca do impacto da Internet nos procedimentos relacionados a essa prtica social (Howard, 2012).

    Nesse documento, conclui-se que cada vez mais agncias de adoo ou mesmo requerentes intensificam e tornam mais agressivas as estratgicas de marketing pessoal com vistas a capturar os sentimentos e interesses de gestantes passveis de entregar filhos adoo. O relatrio aponta essa prtica como um exemplo de comodificao das adoes, na medida em que objetiva a criana como um produto que circula em um mercado que a torna altamente valorizada.

    interessante perceber que empiricamente no discurso da famlia substituta o filho adotivo comparece como ddiva, como o resultado de uma doao. Esse significante, doao, no incomum igualmente nas palavras de mes que entregam seus filhos para adoo. Para alm do possvel uso intercambivel entre adoo e doao, e sem ser tambm nosso objetivo uma incurso antropolgica sobre o tema, observa-se nessa relao, ao menos em um primeiro plano, muito do interdito sobre o uso do dinheiro, da compra e venda e da presena da dvida na adoo.

    A economia da ddiva apoia-se em formas de organizao social nas quais doaes de bens e servios so realizadas, sem que haja, em princpio, expectativa de reciprocidade nos mesmos termos. Mesmo assim, seus participantes selam entre si o compromisso de que essas doaes de bens e servios prossigam, atualizando-se permanentemente no circuito de obrigaes entre oferecer e receber. Ou seja, a ddiva revela um sistema geral de obrigaes coletivas, no qual a devoluo assimtrica (Martins, 2005).

    No limite, contudo, o circuito econmico associado ddiva pode apontar para a impossibilidade de qualquer retribuio, como algo inerente ao prprio jogo social, de demonstrao de superioridade e valor. Nesse circuito pode ser estabelecido o sistema de prestao total, o qual no envolve apenas a troca de bens e riquezas, mas tambm de outros elementos da vida social, tais como mulheres e crianas. Esse sistema, por sua vez, pode assumir formas antagonistas e no antagonistas, o que determinar as margens possveis de retribuio nas trocas sociais:

    Mauss [...] denominou potlatch (termo que na lngua corrente dos ndios de Vancouver significa alimentar, consumir) o sistema de prestaes totais do tipo agonstico, no qual se encontram os traos de desafio, luta e humilhao. O que h de mais notvel a o princpio de rivalidade e antagonismo que domina essas prticas (Fortes, 2010, p. 14).

    COMMUNITAS: DDIVA E ORIGEM A esse propsito, Esposito (2007) aponta que o termo communitas deriva de munus.

    Da mesma forma, esclarece que munus entendido pelos latinos como ddiva feita e nunca

  • como aquela recebida [...] quer dizer, por princpio privado de remunerao (Esposito, 2007, p. 19). Esse aspecto crucial para que Esposito reafirme a ligao entre comunidade e ddiva, doao, para concluir que comunidade manifesta uma [...] distncia categorial de toda ideia de propriedade coletivamente possuda por um conjunto de indivduos ou mesmo de seu pertencimento a uma identidade comum (Esposito, 2007, p. 18).

    nesse sentido que Esposito afirma ser a comunidade formada no por uma adio de subjetividades, mas, pelo contrrio, por uma operao de subtrao na qual os limites individuais so confrontados com o que fora de si (Esposito, 2010, p. 138). Esposito volta a uma formulao anterior para precisar sua perspectiva: Se o sujeito da comunidade no mais o mesmo, ele ser necessariamente um outro; no outra subjetividade, porm uma cadeia de alteraes que no pode ser fixada em uma nova identidade (Esposito, 2010, p. 138).

    A esse respeito, A. M. Homes, escritora americana, adotada ao nascer, que publicou uma novela autobiogrfica com especial ateno sobre esse aspecto de sua vida, escreveu: Ser adotada ser adaptada, ser amputada e costurada de novo. Mesmo se todas as funes forem recuperadas, sempre restar uma cicatriz (Homes, 2007, p. 60).

    Um eco dessa afirmao aparenta ressoar em Esposito:

    [Comunidade] no nos deixa aquecidos e ela no nos protege; ao contrrio, ela nos expem ao mais extremo dos riscos: o de perder, junto com nossa individualidade, os limites que garantem nossa inviolabilidade com relao ao outro; o de subitamente cair em direo ao nada da coisa (Esposito, 2010, p. 140).

    possvel que tal como o relatrio do Adoption Institute aponta, esteja em curso a quebra, ao menos em parte, da lgica da ddiva por uma lgica do mercado, de modo a destacar no adotado seu valor de troca, monetizvel, identificvel e individualizvel. Nesse quadro, pode-se entender o movimento de ruptura que a adoo fechada promove na lgica da ddiva, fazendo do adotado um indivduo, isto , no passvel de diviso. Desse modo, seria a possibilidade de experimentao da diviso inerente experincia adotiva que se encontraria comprometida.

    Nesse universo do valor de troca e de uso, do mercado e de seus desdobramentos, no deve passar despercebido que a realizao da adoo, em particular da adoo internacional, implica custos financeiros. Como Pertman (2011) indicou, uma adoo internacional para residentes nos EUA, considerando todos os custos envolvidos, chega a US$ 50.000,00. Esse valor pode ser ultrapassado, haja vista que elementos imprevistos, relacionados sade do adotado, por exemplo, tm peso nessa estimativa (Dagher, 2013).

    Por essas consideraes, evidencia-se que Yngvesson (2010) encontra na adoo a certeza de que se trata de tema que apresenta questes radicais sobre o que quer que se

  • entenda por identidade, tal como tambm, a seu modo, as ideias de despossesso e comunidade em Esposito.

    Ao mesmo tempo, a autora interroga-se se a experincia da adoo e, em particular, da adoo internacional, significaria um tipo de liberao do que entendemos por identidade e famlia, culminando em novos padres, ou se, ao contrrio, apontaria para a hegemonia de uma viso ocidental sobre isso. A perspectiva dessa dvida tem por base o fato de que a adoo e seus procedimentos, paulatinamente, acabam por se moldar a diretrizes e formulaes legais que, em grande medida, tm o ocidente e a sua prpria experincia de filiao como eixo. dessa forma que ela analisar as legislaes internacionais relativas ao tema, como a Conveno de Haia e mesmo a Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana e seus efeitos sobre os pases signatrios.

    Um ponto importante do trabalho de Yngvesson a anlise que realiza em momento anterior sobre as adoes abertas, na qual persistem formas de contato entre adotado, famlia de origem e famlia substituta, e que teve por base a prpria adoo que realizou (KIM, 2012). a partir da que a autora procurar mostrar que as adoes fechadas, nas quais o contato com a famlia de origem interrompido, a ttulo de reforar os vnculos do adotado com a famlia adotiva, facilitando certo apagamento de seu passado com a famlia de origem, acabaria por produzir o efeito contrrio, o de um desejo pelo encontro com o real que s poderia estar fora do universo adotivo.

    Um aspecto importante dessa anlise que esse real seria efeito colateral da fico adotiva produzida pela lei que quer fazer da famlia adotiva a verdadeira famlia nas adoes fechadas, a partir da promulgao da sentena judicial. O real nessa construo seria um produto da operao simblica de constituio dos vnculos adotivos, o que para ns equivaleria a um resto inalienvel que encontra no testemunho do adotado uma via de expresso.

    Yngvesson (2010) salienta que as fices legais que suportam a filiao adotiva, as quais se baseiam no consentimento dos pais naturais para adoo; no estatuto de abandono da criana e na redefinio da genealogia do adotado na nova certido de nascimento, reafirmam a centralidade dos vnculos de sangue no estabelecimento de qualquer possibilidade de pertencimento.

    Depreende-se desse argumento que a formalizao da adoo acabaria por provocar o desejo do adotado pelo real pr-adotivo. Assim, a busca das origens empreendida pelos adotados, que se traduz na tentativa de contato com integrantes da famlia de origem ou com o pas de nascimento, parte do entendimento de que ali haveria a promessa de um tipo de fechamento, de resposta s questes que a prpria adoo suscita.

    Yngvesson (2010) afirma ainda que:

  • [...] Esta leitura do que seja o melhor interesse [...] assume que o pertencimento do adotado a seu pas de nascimento precede a adoo em outro pas. Ao contrrio, meu argumento que a capacidade para pertencer [...] criada pelo potencial de alienao e das excluses necessrias e abandonos que precedem essa capacidade. No existe criana indiana (ou colombiana ou coreana) antes de sua adoo em outras naes, somente uma criana especfica cuja incluso em uma populao define o limite do que seja ns, o que a constitui [...] como disponvel para troca, uma condio que transforma a criana abandonada em um bem, tanto para o pas em que ela nasceu como para a nao adotiva (Yngvesson, 2010, p. 58-59).

    Uma vez que a criana originria no est l desde sempre, a jornada realizada pelo adulto adotado revela no raramente toda uma srie de outras questes que se fazem acompanhar da ausncia de respostas para as perguntas que impulsionaram a busca (os motivos para a no permanncia junto famlia de origem, os nomes dos pais naturais, por exemplo).

    Esse cenrio atesta a impossibilidade de qualquer fechamento que produzisse um sentido definitivo para o trabalho empreendido. Constata-se que algo resiste a essa busca, deslocando a origem do ponto onde imaginava-se poder encontr-la. Trata-se, muito proximamente, do cenrio observado no testemunho realizado nos filmes 33, de Kiko Goifman e Spares, de Sophie Brdier. Em 33, seu protagonista parte de S. Paulo a Minas Gerais para, durante 33 dias, sua idade nesse momento e a idade de sua me quando o disponibilizou para adoo, buscar informaes sobre sua famlia de origem. Busca que acaba por resultar em insucesso, embora nela, com base em seu testemunho, possamos perceber modulaes do passado que se recompe a cada pista encontrada.

    Como escreveu Esposito: A origem est sempre fora de si mesma (Esposito, 2010, p. 68) ou, ainda, A origem est sempre em algum outro lugar: uma repetio diferencial de uma origem que j e sempre irrecupervel (Esposito, 2010, p. 106). Esses enunciados, que estabelecem uma correlao entre origem e alteridade, origem e resto irrecupervel, encontram eco em Nancy (2000) que associa essas caractersticas curiosidade:

    [...] a origem o pontual e discreto espaamento entre ns, tanto quanto entre ns e o resto do mundo, como entre todos os seres. Ns achamos essa alteridade primariamente e essencialmente intrigante. Isso nos intriga porque expe a sempre outra origem, sempre inaproprivel e sempre a, a cada vez presente como inimitvel. Este o motivo pelo qual somos primariamente e essencialmente curiosos sobre o mundo e sobre ns mesmos (Nancy, 2000, p. 19).

    VESTGIOS A busca realizada pelo adotado em direo a sua famlia de origem traduz uma frico

    na assimilao dele famlia adotiva, com reverberaes no modo como se elabora o tema identidade e pertencimento. Memria e testemunho entrelaam-se nesse movimento,

  • denunciando um equilbrio delicado quanto ao sentido do que seja o passado e de suas implicaes sobre o eu.

    Tal como o real da famlia de origem adquire seu estatuto a partir da fico adotiva sancionada pelo aparato legal, sobretudo em funo da excluso que realiza da famlia natural, o adotado vislumbra ali algo de si que tambm produto dessa mesma operao simblica: s que sob a forma daquilo que do mesmo modo permanece fora da famlia adotiva.

    Por fim, o que podemos depreender dos testemunhos como os de Bredier ou Goifman talvez seja a tentativa de constituir uma chave para interpretar o passado. Com isso, a memria e a prpria subjetividade que se encontrariam deslocados de certezas e da identidade que o dispositivo judicial caucionam.

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