adjuro-te, serpens antiqua
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Novela brasileira de ficção científicaTRANSCRIPT
Carlos Orsi Martinho 1
Adjuro te, serpens antiqua
Serpens antiqua. Mboi-una. Mboi-guaçu. Cobra grande. Dragão de
Midgard. Serpente dos Tempos Antigos. Quantos nomes essa coisa tem? Boiúna. O Grande
Parasita. O Verme do Paralelo 14, a cobra de Machu Pichu. E assim por diante. Lúcifer.
Baal, Asmodeu. Godzilla. Cthulhu? Sim. Cthulhu esteve aqui.
Chegamos a Brasília ontem. Assustador. As cúpulas do Congresso, partidas como
cascas de ovo, as duas torres tombadas. A catedral, um esqueleto retorcido, as “mãos postas
em prece” de Niemeyer reduzidas a uma paródia, acometidas de Parkinson e reumatismo
galopante. Os outros prédios e palácios, todos, arrasados; lagos secos, o vazio nas ruas.
Ninguém, em parte alguma, nem mesmo os corpos sem cabeça que encontramos em outros
lugares.
Soldados estão vasculhando as ruínas em busca de cadáveres ou sobreviventes e
indo às cidades satélites, mas não creio que vão encontrar alguém. Foi perto daqui, ao
norte, que o Verme eclodiu, o corpo feito de milhares de anéis, cada um com centenas de
metros de extensão, pesando toneladas, cego, irracional, prenhe, morrendo, expelindo
esporos e zangões pelos poros e pústulas. O que destruiu o planalto central não foi a
contaminação, ao menos não só a contaminação, mas as convulsões finais da criatura.
Nós somos a primeira expedição a entrar em Goiás em quase quarenta anos; desde o
Despertar.
Eu, pessoalmente, preferiria ter ficado no Rio ou ido a São Paulo. Curitiba não digo,
porque os esporos e zangões não suportam muito bem o frio, e os Estados do Sul foram os
menos afetados. Curitiba seria quase que uma opção de covardes. Mas havia muito a ser
feito no litoral. Vidas a salvar, pessoas a educar. Um país a reconstruir.
Carlos Orsi Martinho 2
Só que Emília queria vir a Goiás de qualquer jeito. Investigar a fundo, procurar
respostas. É preciso, disse. Respostas? Como se a realidade já não estivesse se esgarçando
pelas bordas, pensei.
Mas, olhando para ela, concordei.
Eu estava vivendo numa pensão em Berna, trabalhando como assistente numa
pequena clínica de cirurgia plástica – dar aulas, principalmente dar aulas sobre
parasitologia, que era tudo o que queriam ouvir de mim na Europa Ocidental, tinha se
tornado insuportável – quando uma funcionária da ONU me alcançou por telefone. O que
ela me dizia, em português (português!) só viria a ter caráter realmente oficial dentro de
cinco meses, alertou-me. Mas a funcionária supôs que eu quisesse saber com toda a
antecedência possível, para poder estar pronto, caso decidisse aceitar a proposta. Qual
proposta?
– A quarentena sobre o território brasileiro será declarada semipermeável – disse-
me a representante das Nações Unidas. – O quê? Ah, sim. Desculpe o jargão... Isto é,
voluntários poderão entrar, mas não sair, ainda por um período de teste de cinco anos.
Exatamente. Fim do isolamento total. É. Bem... Estamos convidando exilados a voltar,
nesta primeira fase, principalmente médicos, economistas e engenheiros, para preparar o
terreno para a equipe internacional de reconstrução que deverá chegar assim que o
Conselho de Segurança levantar a quarentena em definitivo. Cinco anos. Isso.
Sinceramente, os informes de Buenos Aires e Cidade do Panamá não são nada bons. Vai
ser um trabalho duro.
Que mais eu poderia dizer? Aceitei na hora.
Difícil explicar o que fiz na Europa nos cinco meses seguintes. Deixei empregos,
liquidei meus (poucos) negócios e propriedades, comprei equipamentos. Muitos
equipamentos. A ONU iria fornecer o material-padrão, mas eu queria ter opções.
Fora isso, esperei.
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Encontrei-me com os outros voluntários no avião, que partiu de Lisboa. A viagem
foi mais longa do que seria de se esperar – nenhuma empresa aérea queria comprometer
equipamento de primeira, já que tanto o piloto quanto a aeronave ficariam retidos em solo
brasileiro até o final da fase “semipermeável” da quarentena.
Boa parte dos outros passageiros era composta por “exilados” de fato – gente que
tinha saído do país depois de, como é que costumavam dizer?, “cair na clandestinidade”, ou
profissionais que tinham se tornado persona non grata e entrado numa das infindáveis
listas negras da ditadura. Regime que tinha deixado de existir em dezembro de 1973, o ano
em que a Serpente despertou. Ano em que, para todos os efeitos, o Brasil tinha deixado de
existir.
Alguns dos exilados haviam voltado para casa, cheios de esperança, logo após o
Despertar, antes que o Conselho de Segurança da ONU criasse a Área de Custódia
Internacional, literalmente fechando o país para impedir a propagação do contágio.
Dizem que os russos tinham relutado em concordar com isso, a princípio, mesmo
com toda a cobertura da imprensa internacional acerca de da epidemia.
A URSS tinha lá suas razões para estar agressiva, na época – o acidente nuclear em
Guantánamo acabara de riscar Cuba do mapa, e os boatos sobre a queda de um satélite
militar americano no Planalto Central corriam fortes, a despeito da versão oficial de que se
tratava de um meteoro. Muita gente deve ter se perguntado, o que esses gringos estão
tentando fazer?
O fato de boa parte do sudeste norte-americano ter sido varrido por maremotos e
vendavais radioativos após a explosão (“obliteration”, como dizia a imprensa em inglês) de
Cuba ajudou a reduzir as suspeitas – provavelmente, evitou a eclosão imediata de uma
guerra atômica – , mas não foi o suficiente.
Mas o fechamento finalmente ocorreu, em meados de 1974, depois que os
americanos obtiveram fotos aéreas do Dragão, tiradas por caças-espiões, e que tinham sido
mostradas ao Kremlin. Dado o grau de tensão internacional na época, é possível, mesmo,
que o Despertar tenha sido o argumento que faltava para acalmar o Kremlin e evitar, de
vez, a III Guerra Mundial.
Triste consolo...
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Tivemos sorte de eles não terem concordado em usar as bombas dos dois arsenais
atômicos em nós, imagino.
Só que, no começo, os informes tinham sido tão confusos – falava-se na destruição
de Brasília e em caos no interior do país; falava-se em sublevação popular, em vitória
esmagadora dos comunistas; em infiltração chinesa, vietnamita, até de sobreviventes
cubanos. Falava-se em grandes festas, banquetes, e grandes atentados. Muita gente
acreditou, e voltou.
Eu? Eu, não. Eu fiz o caminho inverso, fugi. Estava no Brasil, no final de 73, numa
cidade da divisa de Minas Gerais com São Paulo. Até poucos dias antes, a crise em torno
do desaparecimento de Cuba era a principal manchete em todos os jornais, com um espaço
menor dedicado ao “bólido” que caíra na região do rio Tocantins, seguido por avistamentos
de “discos voadores” e de “estranhas luzes no céu”.
E então veio o Despertar. Claro, ninguém tinha dado um nome ao fenômeno, ainda.
Tínhamos sentido o tremor e havia imagens na TV: prédios caindo, gente gritando,
morrendo, em Brasília, Goiânia, Anápolis; a onda de destruição se expandia em círculos e
vinha, também, em nossa direção. Na TV, víamos manchas negras caindo sobre as pessoas:
os zangões. Tudo, ainda, em preto-e-branco.
Era a época do videoteipe – transmissões via satélite eram uma espécie de luxo –, e
algumas poucas fitas, registrando a destruição, tinham chegado às retransmissoras.
Censores ainda tentavam vetar parte do conteúdo, mas Brasília, a fonte de toda a
autoridade, tinha deixado de existir. Esse primeiro caos institucional durou alguns dias, até
que o Comando Militar do Sudeste assumisse o governo e requisitasse todos os canais para
o serviço de comunicações de emergência.
Os esporos do Dragão tinham sido carregados pelo vento, saturado a atmosfera. As
pessoas estavam em choque; os saques e a guerra civil ainda demorariam para começar. O
céu tinha ficado amarelo, da aurora ao pôr-do-sol. Eu passava perto de uma praça com
árvores altas, carregadas. Nós, que vivemos aqueles dias, vivíamos em câmera lenta. Sei
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que os filmes modernos sobre catástrofes mostram pessoas se movendo sem parar, lutando,
correndo, fugindo. Mas não era assim: a destruição é hipnótica, como uma cobra egípcia.
Quem está no meio dela simplesmente pára, e olha. Espera sua vez.
Eu caminhava pela praça quando ouvi um zumbido alto, irritante, crescente, e
alguma coisa roçou meu rosto – uma coisa áspera como uma lixa, que passou rápido e
arrancou pele.
Mal havia levado a mão à face e sentido o sangue na ponta dos dedos quando uma
mulher, que caminhava à minha frente, caiu de bruços na calçada, derrubada pelo impacto
de um zangão, uma criatura do tamanho de um gato adulto, que colidira com ela e agora se
agarrava à sua cabeça.
As asas da aberração ainda batiam, uma delas criando ao redor de si um arco de
gotículas de sangue – meu sangue! – quando o ferrão branco se dilatou a partir da base da
carapaça negra e foi se enterrar na nuca da pobre vítima. A mulher ainda tentou girar, ou se
debater, mas as pinças do monstro (que eu não via mas podia imaginar, cravadas na testa,
nos olhos, nos cantos da boca, nas narinas, nos ouvidos) mantinham a carapaça firme e no
lugar. Então o grito de dor, a picada, e o inseto gigante relaxou, rolou de lado, morreu.
Um perfeito zangão.
A mulher se virou, olhou para mim – as pinças do monstro não lhe tinham furado os
olhos, como eu temia – e começou a gritar. E gritar. E gritar.
Foi nesse instante que comecei a fugir. E não parei até ouvir a freada final do táxi
que me levaria do aeroporto ao hotel, em Paris.
A ausência de corpos ou sobreviventes em Brasília, ou no que restou de Brasília,
parece não intrigar muito o grupo de tropas internacionais que nos acompanha. Foram
quarenta anos, afinal. Tempo mais do que suficiente para o clima e a fauna do local
trabalharem. E os sobreviventes, se é que houve algum, também já teriam fugido há anos.
Mesmo assim, e a despeito das mutações registradas ao norte pelos satélites, a área do
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antigo Distrito Federal ainda é uma zona de baixa umidade. Seria de se esperar uma múmia,
pelo menos, ou um pedaço de uma.
Mas não há nada. Nem um dente quebrado debaixo dos escombros – nada.
Comento isso com Emília e ela me diz que estou perdendo meu tempo ao me
preocupar com as “velhas regras”.
– Seria melhor se tentássemos entender as novas – ela sugere.
E por falar em “tentar”, Emília está se empenhando em convencer o oficial
encarregado a nos emprestar um pequeno destacamento para nos acompanhar numa
“incursão científica” rumo norte. Até o trecho Rio Tocantins que corta o paralelo 14; o
ponto exato de onde a Serpente emergiu. São duzentos quilômetros; nossos veículos de
terra são poucos e, em marcha, seriam cinco dias, isso se a mata mutante permitisse. Emília
e eu estamos na faixa dos setenta anos. Os militares estão, compreensivelmente, céticos.
Mas também compreendo Emília. Há algo de emocional nisso, estar tão perto do
monstro: a necessidade de ir até lá, de estar com a criatura, arrancar um pedaço do cadáver,
é quase dolorosa.
Eu me lembro de ter visto as fotos de satélite que os americanos tinham tornado
públicas, no final dos anos 80, com a enorme cratera e o corpo estirado, mutilado, do
monstro. O mais fantástico é que o Verme sequer havia saído de todo de seu buraco: o que
víamos nas fotos era apenas uma parte – metade? um terço? um décimo? – da extensão total
da Serpens Antiqua, termo em latim que havia sido adotada como o nome internacional,
“científico”, do monstro.
O uso dessas duas palavras pelos cientistas não deixava de ser irônico, já que a
expressão havia sido retirada do ritual de exorcismo católico: “adjuro te, serpens antiqua”,
diziam os padres, algo como “exorcizo-te, serpente do tempo antigo”.
E ela estava morta. De acordo com estimativas recentes, feitas a partir de leituras de
infravermelho e radiação obtidas via satélite, tinha estado morta desde 1974, pelo menos.
Descontados os malucos de sempre, com seus best-sellers sensacionalistas sobre
como a eclosão da Serpens prova que a mitologia nórdica, inca, tupi, Lovecraft, Cayce, o
Gênese ou o seu tele-evangelista favorito “estavam certos”, a maior parte das teorias sobre
o ocorrido sustenta que toda a primeira, gigantesca, onda de destruição havia sido causada
pelos espasmos finais do monstro, os estertores; que um dos impulsos mais básicos da
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natureza forçara a criatura a vir à tona e espalhar seus gametas – esporos e zangões – a fim
de preservar a espécie.
A idéia de uma espécie inteira composta de monstros assim sempre me traz
pesadelos. Perto disso, imaginar a Serpens como “Satã” ou o “Arauto do Apocalipse” é
mesmo reconfortante.
Fico imaginando se sou só eu que acho que o “bólido” de 1973 tem algo a ver com
o que aconteceu. Ninguém toca no assunto. Eu achava que as especulações em torno do
satélite militar perdido/meteoro misterioso voltariam com a reabertura da fronteira, mas não
se fala no assunto. Será que só eu me lembro? Ou isso, ou os outros também guardam suas
dúvidas em silêncio.
Foi durante o vôo de volta que conheci Emília. Não fosse por ela, teria sido uma
viagem deprimente. Engenheiros, médicos, arquitetos, economistas e alguns poucos
administradores, eis o que éramos, a princípio. Mas, na verdade? Velhos comunistas,
radicais cansados e socialistas, na maioria, mais um punhado de velhos covardes, como eu,
todos juntos – um grande retorno geriátrico.
Reconheci alguns dos rostos, ou da política brasileira pré-64 ou das passeatas de
Berlim contra a quarentena. E das entrevistas desconcertadas de muitos, quando ficou claro
que os soviéticos apoiavam a proposta americana de criação de uma Área de Custódia
Internacional, da divisa do Uruguai e até o Panamá, dos Andes ao Atlântico, com zonas e
linhas e perímetros de segurança cada vez mais estrita, até a área de quarentena total, que
coincidia com o território brasileiro. Pior, quando descobriram que não se tratava de uma
“proposta americana”, mas de um plano elaborado de comum acordo pelas duas
superpotências e apresentado à ONU com certeza de aprovação.
Fazia sentido, claro. Mesmo sem as imagens obtidas pelos aviões americanos, havia
as fotos das agências internacionais, com vítimas da picada dos zangões vomitando larvas,
outras com a cabeça ou o tórax explodindo em revoadas de insetos alados, parecidos com
traças, mas multicoloridos. Quando a fecundação não levava à morte, havia a deformidade.
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Ou, as deformidades: pois nenhum registro jamais revelou duas desfigurações iguais, ou
sequer semelhantes. Tudo muito eloqüente.
E os vídeos de Brasília devastada, também. O fracasso total das autoridades
brasileiras em lidar com o problema, um colapso muito mais completo do que se poderia
atribuir apenas à folclórica (e muitas vezes superestimada) incompetência militar latina.
Mesmo as equipes de socorro enviadas pela França e pela Argentina tinham desaparecido,
sem deixar traços.
Os russos não estavam dispostos a permitir que os americanos entrassem; e vice-
versa. Ninguém falava, mas as palavras “guerra biológica” estavam no ar para quem
quisesse ver, como se toda a atmosfera tivesse se transformado num grande letreiro néon.
Esse impasse abriu caminho para o que o Le Monde Diplomatique chamaria de “nouveau
protagonisme da ONU nos assuntos estratégicos internacionais”, a pedra fundamental de
uma era de cooperação e confiança entre os povos, etc. e tal.
Deus só permite o mal porque, em sua infinita bondade, sabe que do mal sempre
surge um bem maior, disse Tomás de Aquino. Que, pelo jeito, se esqueceu – ou ele ou Deus
– de levar a opinião das vítimas em consideração.
Por exemplo, os brasileiros que, enquanto isso, respiravam o pólen que depois era
fecundado pelo veneno dos zangões. Como resultado, incubavam monstros.
E morriam ou mudavam.
Antes do vôo de anciões patrocinado pela ONU e após a criação da Área de
Custódia, apenas alguns poucos aventureiros, mercenários ou jornalistas, tinham tentado
violar o perímetro de segurança. Se algum conseguiu, nunca mais foi visto. Havia patrulhas
regulares, claro, e, assim que a tecnologia permitiu, monitoramento por satélite.
Segundo um funcionário da ONU que nos acompanhou em nosso vôo, fazia já três
anos desde que o último zangão tinha sido avistado, por homem ou máquina. O ar estava
limpo de pólen há meses.
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Ainda assim, havia algo de sinistro nessa volta para casa. A esperança do futuro nas
mãos de velhos exilados? Não parecia certo. Eu tentava me convencer de que “velhice” é
apenas uma dor nas costas na hora de amarrar os sapatos, mas havia algo mais: um cansaço.
Talvez não ligado exatamente à idade do corpo, e sim à espera, longa demais. Quarenta
anos. Éramos, não pude deixar de imaginar, um avião-frigorífico cheio de mercadoria
vencida.
Por sorte, Emília estava lá. Graças a ela, os dois martínis que eu havia tomado antes
de embarcar acabaram produzindo um mim um tipo de entusiasmo.
Emília devia ter mais ou menos a minha idade (há coisas que não se perguntam
jamais a uma dama), mas pintava o cabelo de preto – contrariando a convenção de que
senhoras idosas devem preferir cores claras – e, abusando da hospitalidade de bordo,
fumava um cigarro atrás do outro. Disse-me que havia sido convidada pela ONU para
voltar com a primeira turma porque tinha feito carreira na Europa como arquiteta, mas que
seu principal interesse nesse retorno ao Brasil era arqueológico e psicanalítico.
Respondi-lhe que não entendia o que poderia haver de “psicanalítico” na situação.
– Mas você está brincando! – disse ela e, depois de examinar atentamente meu rosto
em busca de um sinal de malícia (que obviamente não estava lá), continuou: – Um símbolo
fálico gigante, uma serpente, um animal que está no centro de duas dúzias de mitologias e
uma dezena de religiões, rompe o país bem no meio, como se o escudo cristalino do
planalto central fosse um hímen enorme; explode em orgasmo, destrói os prédios e as casas
e os palácios do poder patriarcal, espalha pólen e abelhas pelo ar como num livrinho sobre
os fatos da vida, e você não vê o que há de psicanalítico nisso? Sem falar que tudo ocorreu
bem na região do paralelo 14...
– E o que isso teria a ver?
– É exatamente a mesma altura das ruínas de Machu Pichu. E o número de
comunidades hippies e alternativas na área, mesmo sob os militares e depois da ascensão da
linha dura, sempre foi o maior do país. Pense, também, no nome que a mídia internacional
deu ao evento: o Despertar. Isso tudo tem raízes profundas no inconsciente coletivo. Não
me surpreenderia se a Serpens Antiqua fosse, no frigir dos ovos, apenas um sonho de
alguém vestido de bata, deitado na rede, chapado de erva.
– Os efeitos não foram um pouco concretos demais para isso, não?
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Ela se deu uma tragada no cigarro de filtro amarelo e me olhar de lado:
– Você sabe – Emília disse – que, em Guantánamo, o problema não foi só nuclear.
Havia experiências com drogas...
– Sei, sei. Também li os jornais na Europa. MK-Ultra, não é? Uso de lisérgicos para
o controle da mente. Mude a percepção que alguém tem da realidade e isso redefine a
personalidade do paciente. Uma das cobaias pirou e disparou a bomba. O que isso...
– Qual a diferença entre “mudar a percepção da realidade” e “mudar a realidade”?
– Ora, o carro que não vejo é o que tem mais chances de me atropelar!
– Como você pode ter certeza de que o carro que passa na sua frente, enquanto você
está parado na calçada, continua existindo depois da esquina?
Comecei a rir.
– Ora, vamos lá! – prossegui. – Você está soando como um daqueles livrinhos
franceses que se vendem no metrô, “Zoroastro, Nostradamus, Lasers Mentais, a Serpente
Antiga na Babilônia Tropical e os Sinais dos Tempos”...
– Você leu esse? Há insights muito interessantes, a despeito da prosa florida. Gostei,
principalmente, da parte sobre “lasers mentais”.
Fechei a boca e arregalei os olhos, incrédulo. Ela sorria, inocente. De repente não
pude mais me conter, e desatei a rir. Ela tentou ficar com a cara fechada, mas não se
agüentou e também começou a rir. Depois que paramos, perguntou coisas sobre minha
vida.
As tropas internacionais (ou “força multilaterial”, ou o que quer que seja) em
Brasília são compostas por soldados americanos, russos e chineses. Os chineses são os que
falam o melhor português, e o major Liang Guangrui é o oficial mais graduado nesta terra
de ninguém. Sob seu comando direto estão dois capitães, um americano, Michael Lansdale,
e um russo, Znoishe Egorov. O major tem seu próprio “staff” pessoal de chineses, mas os
sargentos e soldados são quase todos russos e americanos.
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Nesta manhã, finalmente, Emília – a quem os chineses chamam “Fan Emao” –
conseguiu convencer o major Liang a enviar um destacamento, por terra, rumo à cratera
aberta pelo Despertar e ao cadáver da Serpens. E, sim, os dois especialistas brasileiros, Fan
Emao e eu, a quem Liang chama de Mai Kairui (não gosto do nome; para meu ouvido, soa
muito como “macarrão”) poderemos ir junto.
A expedição deve partir em dois dias.
Pelo que pude depreender do que Emília me contou depois, minha reputação como
cientista havia sido fundamental para, finalmente, dobrar o major chinês. Quando perguntei
a ela, meio abobalhado, que reputação era essa, Fan Emao sorriu um daqueles sorrisos
cheios de malícia inocente, como o bebê que acaba de pôr na boca algo proibido e
possivelmente venenoso, e disse apenas que eu tinha sido citado como “um dos
parasitologistas mais eminentes da Europa”.
Pensei por alguns instantes em todas as palestras que havia feito e nas teses que
tinha defendido que concluí, entre o surpreso e o divertido, que Emília se mantivera
razoavelmente fiel à verdade.
Teríamos dois jipes, com os tanques cheios, à nossa disposição e seríamos
acompanhados por seis soldados armados, mais dois motoristas. O equipamento científico
que quiséssemos levar teria de ser amarrado aos veículos, juntamente com as tendas, ou
acomodado em nossas próprias mochilas.
Nada havia me preparado para, uma vez fora do avião, já em solo brasileiro, no Rio,
finalmente encontrar os sobreviventes – a terceira geração dos que não tinham partido. Dos
que não tinham tido dinheiro, meios, informação, oportunidade ou inteligência para fugir
enquanto era tempo. Dos que ficaram para trás, sobreviventes da infecção e alterados por
ela. Há, segundo os cálculos da ONU, de seis a dez milhões de brasileiros ainda em solo
brasileiro. A maioria no Rio de Janeiro.
Nós, da diáspora, contando filhos e netos, somos pouco mais de um milhão.
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As mutações (eu e os outros médicos da equipe desistimos de chamá-las de
“deformidades” depois que ficou claro que a transfiguração se dava em escala intracelular,
genética): um homem sem boca; outro, com dezenas de bocas, todas cheias de dentes,
minúsculas, articuladas, espalhadas pelo rosto como feridas bífidas de varíola; outro, ainda,
com meia dúzia de pênis, todos “brotando” a partir de uma massa disforme de carne
esverdeada e pêlos cinzentos na virilha, como flores de um canteiro; uma mulher com duas
fileiras paralelas de seios ao longo do tórax; outra, com fendas e lábios vaginais na palma
das mãos, no umbigo e na sola dos pés, feridas por onde sangrava – menstruava? – a cada
quinze dias.
Vi uma criança com duas orelhas gigantescas nas costas, grandes e abertas como se
fossem asas, e conversei com uma menina pré-adolescente que trazia o ânus entre as pernas
e o sexo, entre as nádegas. Esses foram alguns dos casos que conheci, dentre outros.
Muitos, muitos outros.
Toda a história do Brasil, nos últimos quarenta anos, tinha sido feita por essas
pessoas, essas vítimas, seus pais e avós. Pelos que haviam se organizado em milícias e
tentado romper as barreiras da quarentena; pelos que tinham simplesmente se resignado a
plantar feijão e mandioca no quintal, e talvez rezar, enquanto o mundo desmoronava ao
redor.
Havia histórias de estupros, saque, fogo, canibalismo, linchamentos; de utopias
autocráticas na floresta da Tijuca, de democracia direta nos shopping centers; de orgias nos
quartéis e ordem militarizada nas universidades. Historiadores, antropólogos e sociólogos
viriam, em breve, para recolher esses contos.
Minha função, no Rio, não era ouvir histórias. Ao menos, não esse tipo de história.
Era tratar dos doentes – o que implicava ouvir o que tinham a dizer, mas de uma forma e
num contexto muito mais pessoal –, e pesquisar. No futuro, talvez me chamassem para
organizar uma nova rede de saúde pública. Mas, por enquanto, era preciso aprender.
Descobrir. Tratar.
Eu havia desenvolvido alguns esboços de teoria na Europa, com base nos relatos
fragmentários que vinham das equipes de fronteira, e nas fotografias publicadas. Agora, no
Rio, tinha a oportunidade de conferir o que realmente havia acontecido. Pôr minhas idéias à
prova.
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Uma das primeiras coisas que descobri, em meio ao caos, era que havia pessoas
imunes: homens e mulheres da minha idade, ou um pouco mais jovens ou mais velhos, que
nunca tinham sido incomodados pelos zangões, mesmo tendo respirado o pólen suspenso
no ar, e outros ainda que, mesmo tendo sido picados, não haviam encubado larvas ou
“traças”.
Não tínhamos um tomógrafo conosco, claro, mas com base nos resultados de outros
exames formulei a hipótese de que esses “infectados imunes” partilhariam de uma
peculiaridade específica na conformação do cérebro – um alto desenvolvimento do corpo
caloso, entre os hemisférios.
Também conseguimos isolar, eu e outros cientistas, amostras do pólen da Serpens, o
pó amarelo há anos vinha descendo da atmosfera, misturando-se ao solo ou caindo no
fundo de lagos e caixas d’água. A análise revelou células haplóides, com uma seqüência
genética curta. A teoria dos gametas ganhava corpo.
Infelizmente, todas as carcaças de zangões que conseguimos reunir estavam vazias
de órgãos: nada mais que cascas quitinosas abandonadas – nenhuma amostra de “veneno”.
Somando a pesquisa de laboratório às conversas com meus pacientes – alguns deles,
médicos ou ex-estudantes de medicina –, aprendi que a combinação entre pólen e picada,
quando não encontrava um hospedeiro totalmente imune e nem produzia uma explosão de
larvas ou traças, gerava apenas um tipo de deformidade – neste caso, não se tratava de
mutação: aumento no volume do crânio, com perda de rigidez dos ossos, que assumiam
uma consistência elástica, esponjosa.
A expectativa de vida dos atingidos era curta: dias, se tanto. Relatos de parentes das
vítimas, ou de simples testemunhas, falavam que a morte era sempre precedida por fortes
ataques epiléticos; às vezes, surtos psicóticos.
Exames em cadáveres exumados mostraram larvas mortas, milhares delas,
acumuladas ao redor do cérebro de cada vítima. Formulou-se a teoria de que a mudança na
consistência da caixa craniana fosse causada por uma enzima secretada pelas criaturas. E
que a combinação da enzima com a pressão exercida pelo simples acúmulo de larvas dentro
do crânio inviabilizava a função cerebral, levando a convulsões, à psicose e à morte. Havia
razões fortes para acreditarmos que se tratava do mesmo processo que levava à eclosão do
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crânio, só que ocorrendo de forma muito mais lenta e, talvez por causa dessa lentidão,
culminando não no nascimento de uma ninhada, mas numa espécie de “aborto”..
Já as deformidades variadas – as mutações –, únicas, que enchiam o “ambulatório” e
os “consultórios” improvisados que a ONU destinara a mim e a outros médicos eram
causadas pelas infecções de segunda geração – nas pessoas atacadas não pelos zangões,
mas sim pelas larvas e traças.
As larvas contaminavam como uma verminose típica, misturando-se ao solo ou aos
alimentos. As traças, por sua vez, comportavam-se de forma semelhante ao barbeiro que
transmite o mal de Chagas, picando a vítima no sono e deixando fezes contaminadas ao
lado da ferida. Leves e dotados de asas, esses vetores multicoloridos – sob o microscópio,
pareciam-se, de certa forma, com borboletas em miniatura – tinham muito mais mobilidade
que o barbeiro, e eram, portanto, muito mais perigosos.
A natureza da infecção, como já disse, era genética: mesmo sem nenhum caso
recente para estudar (a última infecção, diziam os sobreviventes mais antigos, teria ocorrido
há quase uma década) eu e meus colegas concluímos que o núcleo das células do corpo da
vítima era atacado pelo antígeno, e seqüências inteiras de bases eram reordenadas e
reativadas. Todas as células do corpo do paciente passavam a ser células-tronco em
potencial: adultos e crianças convertiam-se, na prática, em fetos mutantes.
Em semanas de contato direto com as vítimas, aprendemos mais do que em quarenta
anos de análise de fontes secundárias.
Partimos de Brasília há três dias.
O pequeno destacamento escolhido pelo major Liang para nos acompanhar é
formado, basicamente, por russos. Meia dúzia, sob comando do sargento Kranislav Savin.
Os chineses se fizeram representar por um soldado que é tanto intérprete quanto motorista,
Sun Ronbang. Todos falamos inglês, claro, e a presença de um intérprete me intrigou um
pouco. O major explicou a Emília que, como estávamos em solo brasileiro e a expedição
iria dar apoio a um “eminente cientista” brasileiro, o “senso básico de propriedade” exigia
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que todos os membros da equipe fossem capazes de se comunicar em português. Emília me
disse que, quando chamou a atenção do oficial para o fato de que a maioria dos russos
também tinha algum treinamento (ainda que precário) na língua de Camões, ele apenas deu
de ombros.
Ronbang está aqui para nos espionar, é óbvio. Suponho que o velho medo da
descoberta de dúzias de novas armas biológicas espalhadas à superfície, como outras tantas
goiabas maduras caídas das árvores, ainda perdure na mentalidade militar. E por que não?
Esta “nova era de cooperação”, embora tenha começado há quase quarenta anos, ainda é
bastante tensa.
O capitão americano, Lansdale, tampouco é imune à desconfiança: logo deu um
jeito de que o motorista do segundo jipe fosse um outro americano, um cabo chamado
Landis. Não consigo pôr de lado a impressão de que Landis e o chinês estão travando
algum tipo de duelo de antipatias particular. Nem a de que o que estamos fazendo tem algo
a ver com o meteoro de 1973.
Falei sobre o assunto com o capitão, antes de partirmos.
– Vocês não estão aqui para resgatar algum segredo militar perdido, matar todas as
testemunhas num “acidente” de araque e depois levar “o pacote” de volta para os EUA em
segurança, certo?
Ele quis saber do que eu estava falando, e então expliquei algumas coisas sobre essa
pequena pérola da paranóia dos anos 70. Lansdale, que com certeza ainda usava fralda na
época dos acontecimentos, achou tudo muito interessante.
– Se minha missão fosse realmente essa, você acha que eu diria a verdade? – ele
respondeu, fazendo uma cara de raposa.
– Bem... estamos isolados... Eu não poderia fazer nada a respeito, mesmo... E você
sabe, vilões geralmente adoram falar sobre seus planos, então imaginei que...
– Doutor – o olhar de raposa não se sustentava mais; ele começou a rir. – Eu nem
sabia dessa história de “satélite” até você tocar no assunto. Estou sob ordens da ONU, não
do governo americano. E isto aqui não é um episódio de Bureau Z. Portanto, pare com isso,
certo?
A conversa me deixou um pouco mais tranqüilo, ou menos intranqüilo, conforme se
prefira olhar para a situação.
Carlos Orsi Martinho 16
À noite, quando acampamos, Ronbang e o sargento russo costumam se aproximar
de Emília e de mim, para conversar. Landis, o americano, também se aproxima, mas não
muito; está, ao que tudo indica, muito compenetrado em seu papel de espião. Kranislav, o
sargento, é da nova geração de militares soviéticos, e não se incomoda em ser chamado de
“russo”, talvez pelo fato de ter nascido na Rússia.
Sun Ronbang, nosso “intérprete” chinês, gosta de falar de política. Condena com
veemência a abertura social soviética da última década, enquanto Kranislav simplesmente
grunhe e chama atenção para o “capitalismo selvagem” que vê crescer na China, a despeito
do regime político fechado. Ao que Ronbang replica, rindo:
– Os governos não existiriam se as pessoas em geral não fossem idiotas demais para
cuidar de si mesmas – e em seguida, aumentando o volume da voz, para ter certeza de que
Landis vai ouvi-lo: – Os americanos, é claro, preferem lobotomizar o povo com raios
catódicos e entupir todos com banha e açúcar. E chamam isso de “democracia”. O regime
da China é, ao menos, mais sincero.
Então ouvimos Landis grunhir alguma coisa em seu “esconderijo”, e caímos na
gargalhada. A conversa que descrevi acima ocorreu há cerca de meia hora. Roteiro
semelhante vem se repetindo todas as noites. Às vezes Emília acrescenta algum comentário
seu. Hoje ela disse algo sobre os governos serem avatares:
– Há algo trancado no porão da mente dos povos, e o governo que perdura é o
governo que dá a esse “algo” um meio de expressão. Cada povo tem sua fera particular;
logo, cada governo é o avatar de um espírito distinto. Não faz sentido comparar países
nesses termos.
As conversas são boas e interessantes, ainda que meio malucas, mas a viagem com
os jipes está sendo longa, lenta e acidentada. A vegetação rasteira, o cerrado, quase que não
existe mais ao norte de Brasília: há um descampado estreito, de poucos quilômetros e que
vencemos rapidamente, mas depois teve início uma floresta densa, aparentemente
impenetrável – não obstante o fato de estarmos conseguindo avançar aos poucos – a mata
mutante.
Há fotos de satélite dessa nova cobertura vegetal, mas nada disso nos ajuda muito.
Temos de abrir caminho, achar espaços para os veículos, lutar palmo a palmo, vencer
rochas, raízes e riachos. É provável que os soldados pudessem ter feito progresso mais
Carlos Orsi Martinho 17
rápido a pé, mas Emília e eu temos nossas próprias limitações, e de que adiantaria os
soldados chegarem ao corpo da Serpens se não iriam saber o que fazer com ele?
Outro fator que nos está atrasando é minha óbvia curiosidade frente a essa mata.
“Mutante”, sem dúvida, mas como? E por quê? Emília se diz surpresa com o “rigor
arquitetônico” do desenho da selva. Fala em cúpulas, cornijas, ogivas e arcos. Para ela,
estamos entrando numa enorme catedral de madeira.
De minha parte não vejo nada disso. Mas, chamam-se a atenção, por exemplo, os
insetos – ou criaturas semelhantes a insetos. Não sou zoólogo e nem entomólogo, mas sei
que “insetos”, como as abelhas e formigas, têm seis patas; e “aracnídeos”, como aranhas,
piolhos e escorpiões, oito. E que também existem os crustáceos decápodes, como a lagosta.
E ainda há os miriápodes, como as centopéias. Mas não creio que existam centopéias ou
lagostas sociais.
Então, onde classificar uma espécie que se comporta como os insetos sociais, com
“formigueiros” e, ao que tudo indica, “rainhas”, mas cujos indivíduos têm cauda alongada e
ferrão, como o escorpião, e são dotados de doze patas? O que é isso?
E as árvores, também. Quase todas as espécies têm áreas hexagonais, manchas,
vermelhas e douradas, nas folhas; em diversos casos, a consistência dessas áreas coloridas é
quase metálica. Análises que fiz com o equipamento que trouxemos da base em Brasília
revela que se tratam, realmente, de depósitos metálicos, cobre e um pouco de ouro,
misturados a cristais de selênio. Fico a imaginar se essas plantas não estariam
complementando a fotossíntese química com algum processo fotoelétrico. Infelizmente, a
expedição não possui meios para levar um estudo mais detalhado adiante. Terei que
esperar.
Perdoem-me, mas hoje estou confessional.
Revendo as anotações que venho fazendo neste caderno desde que chegamos ao
planalto central, percebo que fui um tanto quanto reticente a respeito de meus motivos para
deixar o Rio de Janeiro e acompanhar Emília nesta viagem ao antigo distrito federal.
Carlos Orsi Martinho 18
Afirmei apenas que havia concordado em vir depois de “olhar” para a arquiteta. E isso é
verdade, embora não seja, de modo algum, toda a verdade.
Eu queria me afastar do Rio de Janeiro. Queria distância dos sobreviventes. Porque,
veja, eles me faziam sentir culpado. Terrivelmente culpado.
Imagino que nenhum – ou, melhor dizendo, poucos, muito poucos – deles realmente
viessem a mim com uma acusação, velada ou explícita. Repassando aqueles dias com um
mínimo de bom-senso, devo dizer que a emoção mais presente era a gratidão: nos olhos da
criança com asas cartilaginosas; nas palavras da mulher com serpentes douradas no lugar de
fios de cabelo loiro e magotes de vermes marrons brotando continuamente das axilas e do
púbis, minúsculas hidras que geravam cabeças novas a cada depilação; no sorriso aberto da
boca que produzia sêmen em vez de saliva.
Eram-me gratos porque eu os examinava, tocava, falava com eles. Mesmo que não
pudesse, como na maioria das vezes, fazer nada para ajudá-los. Quanto a mim, sentia-me
culpado porque todos tínhamos nascido aqui, mas eles haviam ficado, enquanto eu fugia.
Eles moravam em ruínas de barracos, eu, num prédio restaurado pela ONU. De alguma
maneira, era como se eles tivessem conquistado o direito de estar lá. Eu? Eu era um intruso.
Um covarde. Desertor.
Dizia a mim mesmo que muitos só haviam nascido após o fechamento do país, e
que portanto, para eles, a fuga jamais tinha sido uma oportunidade real; e quanto aos mais
velhos, não era minha culpa se haviam demorado demais para perceber que a situação era
sem esperanças. Talvez o mundo não pudesse ter recebido e absorvido pacificamente uma
diáspora de 90 milhões de brasileiros, mas os primeiros a sair foram bem aceitos. Não era
minha culpa, eu dizia, se eles, todos meus pacientes e seus pais e avós, não tinham sido
rápidos o suficiente.
Então, vim a Brasília para estar com Emília, verdade. Mas, também, para fugir. De
novo.
Emília e eu fizemos amor.
Carlos Orsi Martinho 19
Estamos juntos há semanas; desde que desembarcamos no Rio, e perante os
militares que acompanhamos até Brasília, sempre fomos um “casal”.
Mas esta foi a primeira vez em que a vi nua. Também, a primeira vez em que toco o
corpo de uma mulher que não é minha paciente em, quanto tempo?, quase quinze anos, meu
Deus! Já li muito sobre sexo na terceira idade, mas nunca antes me havia ocorrido a idéia
de praticá-lo. E não é para entrar em detalhes a respeito – apesar de reconhecer a tentação
de pôr tudo no papel, como um cômico voyeur de mim mesmo – que escrevo sobre isso.
O fato é que o que fizemos, Emília e eu, não foi sexo “da terceira idade”. Conheço
meu corpo. Meus limites. Há vinte anos que tenho consciência plena – e dolorosa – do
estado de cada uma de minhas articulações, da situação lastimável de minhas artérias e dos
restos mortais que atendem pelo nome ridículo de “minha libido”.
Além disso: por mais que eu ame Emília, objetivamente ela é uma senhora de
setenta e poucos anos. Sem implantes, próteses ou plásticas, apenas um pouco de tintura de
cabelo e uma ponte móvel no lugar dos dentes do fundo.
Mas não foram essas as formas que minhas mãos tocaram. Não foi no corpo de uma
anciã que satisfiz desejos que nem sabia mais possuir. E, também, não foram as mãos de
um velho, nem a boca ou o sexo de um velho que...
Fan Emao, como os chineses a chamam, significa “graça e beleza”. Ela faz jus ao
nome de diversas formas, mas nesta noite Emília o mereceu tão literalmente, como apenas
uma menina, uma bailarina de dezesseis, dezessete anos poderia. E eu contemplo minhas
mãos, diante da luz da lanterna, e vejo, talvez, algumas manchas a menos – uma veia
flácida de volta ao lugar? Respiro fundo, meu tórax se amplia, o ar flui para dentro de mim
trazendo um frescor glorioso, um poder, algo que não sinto há – trinta? quarenta anos?
Talvez tudo não passe de impressões subjetivas, claro. Bobagens. A loucura após o
orgasmo. Eu posso estar eufórico e, amanhã, acordar com mais dores do que valeria a pena
contar.
Culpas. Engraçado como umas se sobrepõem às outras, mesmo sem que as
anteriores tenham se resolvido de qualquer forma; sem que nenhuma delas desapareça.
Como facetas que se somam. Culpas brotam umas das outras. São criaturas xifópagas.
Carlos Orsi Martinho 20
Não digo que o sentimento original tenha passado a existir, de forma consciente, por
causa de minha chegada ao Brasil. É provável que ele tenha sempre estado comigo, tenha
vivido ao meu lado – dentro de mim – desde que vi a mulher ser atacada, décadas atrás, em
Minas, e fugi. Deserção ou homicídio?
Pode ser, mesmo, que eu só tenha voltado ao Brasil por causa disso (“Voltar? Você
está louco? Aquele lugar, desde sempre, desde antes da Serpens, sempre foi uma armadilha.
Nascer no Brasil é, sei lá, uma merda, um puta azar, um castigo pelos pecados de vidas
passadas, cara. Estou feliz na Alemanha. Eu não volto”, tinha-me dito um colega de exílio,
quando lhe contei sobre o convite da ONU).
Assim como é provável que só tenha me conscientizado plenamente do fato quando
esta nova faceta surgiu. Este novo homicídio cometido, agora, inapelavelmente, por minhas
mãos.
Melhor parar de rodeios. Eu conversava com Emília sobre minha ilusão, ou talvez
devesse dizer meu ataque ou meu surto, de juventude da última noite. De nossa noite. Ela
se limitou a sorrir – lisonjeada, suponho – mas insisti, estou certo, disse, de que há menos
rugas ao redor de seus olhos. E meu ombro, acrescentei, direito não me incomoda mais; às
vezes sinto um vazio no lado do cérebro onde registrava a dor.
Eu falava sobre essas coisas: há algo agindo sobre nós, nesta floresta. Talvez
radiação, produzida pelas estranhas folhas fotoelétricas?
Enquanto conversávamos, ocorria uma altercação entre dois dos russos – estamos
juntos há quase uma semana e ainda não lhes decorei todos os nomes: um deles, eu sabia,
chamava-se Ukhal, mas só porque eu o havia tratado da picada de um dos estranhos
escorpiões duodecápodes, sofrida no dia anterior. O veneno da criatura era quase
inofensivo, causando pouco mais que um instante de tontura.
Os gritos chamaram minha atenção, e parei para assistir à luta que se iniciava.
Ukhal e seu adversário xingavam-se em russo. O outro puxou uma faca da bainha
para ameaçar meu ex-paciente. Ukhal, desarmado, em vez de recuar lançou-se, com a
cabeça baixa, sobre o primeiro, e ambos rolaram pela grama. Então o sargento Kranislav
apareceu, agarrou a ambos pelos respectivos colarinhos, ergueu-os, como se fossem
gatinhos brigões, e arremessou-os em direções opostas, agora como se fossem fardos de
roupa suja.
Carlos Orsi Martinho 21
Um deles, o que estava com a faca, atingiu uma árvore baixa e de tronco fino –
pouco mais que um arbusto – com força tal que derrubou a pobre planta. O solo ao redor
devia estar bem fofo, pois a árvore não curvou e nem se quebrou, simplesmente. Em vez
disso, foi arrancada: desarraigada.
Eu não sabia que o sargento russo era tão forte!
Meu interesse na briga desapareceu assim que vi as raízes da planta, e corri para
estudá-las mais de perto: cada uma delas era composta por uma “trança” de filamentos
delgados, e cada “trança” passava por dentro de uma sucessão de cilindros curtos, ou anéis,
brancos – feitos de alguma substância mineral. Vou fazer testes, mas estou certo de que se
trata de calcário.
Esses anéis de cálcio e carbono não são inteiriços, pois apresentam aberturas nas
laterais; também não têm tamanho uniforme: os de diâmetro maior localizam-se mais perto
do tronco e os menores, na extremidade oposta. Essa estranha carapaça dava às raízes a
forma de uma curva dupla suave e elegante, como um “S” alongado.
E por que me perco, agora, em detalhes assim? Não foi G.K. Chesterton quem disse
que o homem só é capaz de perdoar o que não vê como crime, e que por isso Deus é
necessário – para que o injustificável também tenha perdão?
Sou ateu. Tenho que acreditar que o que fiz foi, de certa forma, justificável.
Eu estava de joelhos no chão, observando essas características, quando ouvi um
grito atrás de mim:
– Cuidado, doutor!
Instintivamente, girei o corpo na direção do som, jogando o punho cerrado para trás.
Senti uma fisgada no bíceps, um pouco acima do cotovelo, e sangue escorrendo; em
seguida, os nós dos meus dedos fizeram contato.
Ouvi um grito abafado e senti o braço tremer sob a energia do impacto. Imaginei se
o ombro não voltaria a doer.
Terminei de girar o corpo e vi o russo cujo nome ainda ignoro caído no chão, a faca
pousada na mão entreaberta. Mais por automatismo profissional que qualquer outra coisa,
fiz um exame superficial no soldado. Estava morrendo, morrendo rápido: meu soco o
atingira bem abaixo da orelha direita.
Eu lhe causara uma fratura grave no o pescoço.
Carlos Orsi Martinho 22
Por alguma razão, a idéia de uma coluna cervical partida me fez voltar os olhos para
a árvore arrancada; esqueci-me de socorrê-lo. Não creio que qualquer socorro tivesse feito
diferença, mas o fato não muda: ignorei o homem. Em seu último alento, ele não existia,
exceto como inspiração.
Voltei-me para a planta, fascinado. Poderia dizer, fora do mundo.
A coluna quebrada desvendara algo para mim – literalmente: o soldado morria, e
uma venda caiu de meus olhos.
As raízes, em suas fileiras sinuosas de anéis brancos, eram um perfeito ramalhete de
espinhas humanas.
O sargento Kranislav Savin desenvolveu força sobre-humana. Eu desenvolvi força
sobre-humana. Emília está rejuvenescendo. Dagras, o soldado russo que matei, tinha
enlouquecido: segundo Ukhal, ele havia começado a gritar que todos éramos “aves
vermelhas de rapina”, ou “lagartos antropófagos”. E Ukhal, que até o dia em que deixamos
Brasília mal era capaz de contar até dez em francês, a única língua latina que parecia
dominar até certo ponto, agora fala um português perfeito.
Foi ele quem gritou “cuidado, doutor!”, e não parou de usar a proverbial inculta e
bela desde então. Com um leve sotaque gaúcho, eu diria.
Sun Ronbang, nosso “intérprete”, e Peter – descobri seu primeiro nome, finalmente
– Landis estão, ambos, mortos.
Acredito que não por minha culpa. Ao menos isso.
Depois da briga entre Ukhal e Dagras e da morte de Dagras, ontem, o sargento
ordenou uma busca por todo o acampamento. Nenhum motivo específico, imagino, além de
dar aos demais russos algo a fazer. Os corpos foram encontrados sentados, um em cada
jipe. Os assentos dos dois veículos, por baixo dos cadáveres e ao redor, estavam cobertos de
sangue e vísceras. Chamaram-me para olhar, e hoje pela manhã realizei duas rápidas
autópsias. Que posso dizer? Os dois derreteram por dentro e cagaram as próprias entranhas.
Carlos Orsi Martinho 23
Quando lhe contei sobre isso, Emília disse algo a respeito – que os dois eram
espiões, e que tinham sido enviados um para ficar de olho no outro. Que talvez se
odiassem, e desejassem a morte um do outro.
– Desejos não matam – respondi.
– Mas existe uma relação entre a mente humana e a natureza da realidade – ela
disse. – Afinal, um elétron sabe onde está, ou o que é, até que um cientista decida olhar
para ele?
– Bobagem.
– Quando eu era estudante – disse ela –, tinha uma colega tão arrogante, tão filha da
puta, que sempre que a via pelas costas eu cravava os olhos nela e dizia, baixinho, “tomara
que morra de câncer, sua piranha”.
– E ela morreu? De câncer?
– Oh, não. Até o Despertar, vivia bem e feliz. Depois disso, perdemos contato.
– Mas então...?
– Antes do Despertar. Agora, querido, as regras são outras. Como se você já não
tivesse percebido.
Disse-lhe que não sabia do que ela estava falando.
– Quais, diga-me, são as chances de um médico septuagenário quebrar o pescoço de
um soldado profissional com um único golpe?
A morte de Dagras ainda pesava – pesa – em minha consciência, e o peso é maior
pelo fato de tudo ter sido tão fácil. Apertei os olhos e engoli em seco, fingindo que a luz do
sol e a poeira no ar me incomodavam. Depois, de algum lugar, tirei o que me pareceu uma
resposta espirituosa:
– Ou de uma arquiteta septuagenária acordar um dia parecendo uma moça bem
conservada de quarenta, é isso?
– Exatamente.
– E você tem uma resposta?
– Talvez. Mas você é o médico, não?
Aceitei a pergunta como uma deixa e depois, falando com o sargento, reuni todos os
homens – todos os sobreviventes – para uma bateria de exames físicos.
Carlos Orsi Martinho 24
Os resultados foram tão impressionantes que não sei se consegui esconder toda
minha surpresa. Médicos com um bom tempo de carreira têm prática nisso, em ler
sentenças de morte com um sorriso amigo nos lábios, mas e quando se trata do oposto?
Porque cada um desses homens está doentiamente saudável. Cada um deles é capaz
de atingir níveis de performance olímpicos em qualquer tipo de esforço físico. Não tenho
dúvidas de que, se tivéssemos uma pista de cem metros aqui, eles seriam capazes de
percorrê-la em pouco menos de dez segundos.
Alguns – Kranislav, eu, um soldado chamado Liutor – têm nível de força e
resistência sobre-humano. Outros, como Ukhal e Evgeny, desenvolveram uma agilidade
mental impressionante; outros ainda – Detz, Andreian, Aleksandr – parecem um pouco
eufóricos demais.
Emília? Ela poderia disputar medalhas em ginástica e no triatlo.
No entanto, apenas Ukhal desenvolveu o que estou chamando de “dom das línguas”.
E apenas ele foi picado pelo duodecápode; estou seriamente interessado em dissecar uma
dessas criaturas.
Não tenho explicações a oferecer. Sinto-me como um cientista de filme B,
atribuindo tudo que desconheço a “misteriosas radiações”, mas sinceramente não vejo outra
explicação.
Emília parece saber, ou suspeitar, de algo, mas não diz nada.
Os exames atrasaram nossa viagem, já que anoiteceu e ainda estávamos nesta
mesma clareira. De qualquer forma, os homens teriam que esfregar os assentos dos dois
jipes antes de partirmos.
Imagino se a base em Brasília, o major Liang e o capitão Lansdale, não está
preocupada. Infelizmente, não há muito que possamos fazer a respeito – o rádio
simplesmente não transmite e o receptor só capta estática vinda das árvores fotoelétricas. O
sinal do celular via satélite não chega a parte alguma.
Carlos Orsi Martinho 25
Entramos hoje debaixo da sombra do cadáver da Serpens Antiqua, do nosso Cthulhu
tropical. A criatura ainda está a pelo menos um dia de viagem, mas seu corpo, caído ao
norte e, portanto, entre nós e o sol, projeta uma extensa sombra sobre a floresta.
A floresta... Ontem dissequei um dos duodecápodes; essas criaturas estão em toda
parte, literalmente. A despeito da aparência ameaçadora, são até que dóceis. A picada em
Ukhal foi uma estranha exceção. Bem, ontem dissequei um deles, como disse; e acho que
cheguei ao ponto em que a tradição literária exigiria que eu saísse correndo, gritando,
arrancando os cabelos, cometesse suicídio e morresse implorando para que Emília
destruísse todas estas anotações.
Não consigo deixar de lado a impressão de que seria mais correto proceder dessa
maneira. Se o que imagino é real, então até a mais melodramática das reações estaria
plenamente justificada.
Mas olho para mim mesmo – ou melhor, para meus pensamentos, refletidos no
papel – e não sinto horror algum. Pelo contrário, estou curioso; sinto ansiedade, mas uma
ansiedade que não é feita de medo ou de maus presságios, e sim de pura antecipação. Estou
fascinado, como um moleque diante de seu primeiro púbis desnudo. Uma doce hipnose,
cheia de arrepios. E excitado, também.
Voltando ao duodecápode: à primeira vista parece ser um artrópode. Mutante, mas
um artrópode. Tem um esqueleto externo feito de matéria rija, esbranquiçada, quase
transparente. Por baixo há uma polpa, também esbranquiçada, cheia de filamentos e
nódulos – nervos.
Agora, a cauda da criatura, com o ferrão na ponta. Essa parte do corpo é articulada
em três pontos: na junção com o “tórax”, a um terço da extensão e a dois terços.
Bem. Embora o duodecápode tenha um exoesqueleto articulado, dentro da cauda
encontrei três estruturas semelhantes a ossos – ossos vestigiais, atrofiados, mas ossos.
Ossículos. Um em cada segmento. E, de repente, me dei conta de que não estava
dissecando a cauda de um inseto, ou aracnídeo, e, sim, um dedo. O dedo indicador de uma
mão humana.
Juntando isso ao que aprendi sobre as mutações causadas pelas larvas e traças, no
Rio de Janeiro; às raízes do arbusto que foi derrubado outro dia; às impressões de Emília
sobre uma arquitetura inteligente por trás da organização da floresta; e – um último dado
Carlos Orsi Martinho 26
importante – à total ausência de moradores, cadáveres ou sobreviventes, em todo o antigo
distrito federal, me vejo face a face com a seguinte hipótese: esta mata, flora e fauna
conjugadas, é a população.
Entende?
As pessoas que viviam aqui quando do Despertar, seus descendentes, os corpos de
seus mortos, tudo contaminado. Tudo convertido! Não em aberrações individuais, como no
Rio de Janeiro, mas numa única biomassa, num único ecossistema fechado que interagiu
com o cerrado, alimentou o solo e, ao longo de quarenta anos, produziu um ambiente.
Plantas e polinizadores, parasitas e hospedeiros, folhas e húmus, fotossíntese e
fotoeletricidade.
Tudo ao nosso redor, partes de uma consciência que vem gerando a estranha energia
vital que nos transforma, pouco a pouco, em loucos e super-homens – talvez estágios para
uma assimilação?
Agora me vejo especulando sobre uma outra possibilidade, suscitada pela picada do
inseto em Ukhal; pelo fato de o soldado russo ter passado a falar num português fluente
depois disso. Será que os duodecápodes são os portadores de informação deste organismo,
seus neurônios? Será que os “formigueiros” dessas criaturas são os gânglios nervosos da
mata?
Preciso saber.
Pesadelos. Em epidemia. Uma epidemia de pesadelos. Era isso que eu e os outros
médicos tínhamos enfrentado no Rio de Janeiro, o tempo todo. Agora que, graças aos
duodecápodes, fiz contato com a Unimente, tudo ficou claro.
A Unimente – seu nome não é esse: tirei a palavra de alguma coisa que li, uma
história em quadrinhos, acho, por falta de coisa melhor – tinha estado em órbita durante
eras. Alguém, ao que tudo indica alguém vindo de muito longe, havia colocado o satélite lá
pouco depois da invenção do polegar opositor, para registrar o conteúdo global de todas as
Carlos Orsi Martinho 27
mentes inteligentes do planeta. A programação da Unimente era simples: mapear a
totalidade da noosfera – a “topografia mental” – do planeta Terra.
Logo nos primeiros milênios, porém, a Unimente percebeu algo desagradável –
parte dos registros tornava tóxica a estrutura orgânica de seus bancos de memória.
Literalmente tóxica. A Unimente era um ser vivo, constituído por circuitos biológicos que
convertiam ondas de pensamento em cadeias moleculares complexas, menores que espirais
de ADN, de forma que toda a atividade mental de um ser humano, da sensação de bexiga
cheia aos pensamentos filosóficos mais sutis, coubesse em algo menor que o núcleo de uma
célula.
O criador da sonda havia projetado a Unimente milhares de séculos antes do
surgimento da civilização humana, e certamente não tinha como saber que rumos a
noosfera terrestre tomaria. A estrutura química da Unimente tinha sido criada, portanto,
com base em conjecturas – conjecturas que se revelaram erradas. Porque, ao longo da
história, primeiro alguns desses bancos de dados, e depois outros e ainda mais e mais outros
foram se revelaram venenosos para o restante da estrutura.
Talvez o criador tivesse previsto esse aumento paulatino de toxicidade, e esperasse voltar
para recolher os registros antes que o problema assumisse proporções mais graves. Se fosse
isso, algo havia dado errado, pois ele não voltara. Tentativas de contactá-lo também
falharam.
O choque mental provocado pela destruição de Cuba tinha sido demais;
literalmente, a gota d’água. A Unimente, que vivia numa órbita variável, subindo e
descendo constantemente para escapar dos radares, naves espaciais e instrumentos
astronômicos, sofreu um colapso em suas funções motoras, e caiu. Despencou, na verdade.
Boa parte de sua massa ardeu na atmosfera, e o que se chocou com o solo, no
planalto central brasileiro, era pouco mais que uma geléia moribunda. Mas havia vida ao
redor, e solo fértil, e nitrogênio, água e carbono. O criador, se não havia previsto todas as
emergências possíveis, tinha, ao menos, programado a Unimente com diretrizes de back-up
para o caso de uma imersão traumática na atmosfera: espalhar o conteúdo já codificado pela
biosfera nativa; e recrutar “unidades móveis” de armazenamento, junto à fauna local, para
dar continuidade ao trabalho de captação e retransmissão.
Carlos Orsi Martinho 28
No entanto, após a explosão em Guantánamo, a atmosfera terrestre tinha sido
impregnada por uma nuvem alucinógena, radiativa. A Unimente registrara o conteúdo do
cérebro dos americanos da CIA que trabalhavam na base cubana antes da explosão, e os
duodecápodes me mostraram a imagem: tanques e mais tanques de substâncias psicoativas,
experimentais ou já testadas, toneladas de pó e líquido prontas para serem derramadas nos
suprimentos de água potável do mundo livre, assim que a fórmula correta fosse encontrada.
Banido dos EUA, o MK-Ultra tinha continuado a todo vapor em Cuba.
A biologia original da Unimente teria sido imune às drogas e à radiação, mas
naquele momento ela tentava se reconstruir usando a matéria-prima disponível na Terra.
Além disso, todos os seres humanos do planeta (e os golfinhos, chimpanzés e outras
criaturas com acesso restrito à noosfera, também) estavam tendo seus pensamentos afetados
pela contaminação. A película alucinógena era tênue demais, difusa demais para afetar a
consciência coletiva da humanidade, mas o inconsciente coletivo era bem mais sensível, e
acusou o golpe.
Como resultado, a Unimente, ainda tentando se reestruturar para pôr em prática suas
diretrizes de emergência, sofreu um choque final: dividiu-se em duas. O que era – tinha
sido – sua parte saudável ficou na superfície e iniciou o processo de mutação da fauna e da
flora que daria origem à floresta onde estávamos. Passou a atrair moradores de regiões
próximas, de forma lenta e gradual, e a incorporá-los ao sistema nervoso da nova estrutura,
onde ficariam guardados os registros da noosfera antiga.
Já a parte tóxica mergulhou fundo no solo, como um câncer que de repente ganhasse
vida própria, e cresceu, absorveu massa da própria rocha, expandiu-se e emergiu, de forma
explosiva, meses depois – a Serpens.
O pólen e os zangões foram, pura e simplesmente, a estratégia desenvolvida pela
“metade tóxica” para levar sua parte da programação adiante.
Embora a floresta tivesse conseguido capturar a maioria dos infectados por sua irmã
entre os que viviam nas proximidades – num raio que ia até Brasília, mais ou menos – as
vítimas mais distantes estavam fora de alcance: ao optar por se converter numa ecologia
fechada e dar prioridade à diretriz de preservar os dados colhidos no último milhão de anos,
a Unimente saudável havia adiado para mais tarde, para quando sua posição local estivesse
consolidada, a diretriz de buscar mobilidade para fazer o registro bioquímico da noosfera
Carlos Orsi Martinho 29
presente e futura; tarefa que acabou ficando ao cargo da outra metade, tóxica e
enlouquecida.
O que mais aprendi: a primeira fecundação, causada pelo encontro do pólen da
Serpens com o veneno do zangão, não gera as larvas apenas a partir do tecido cerebral da
vítima e sim – mais ainda, principalmente – a partir do conteúdo da mente atacada. Com as
afinidades específicas da Unimente tóxica, toda a preferência era dada ao inconsciente e ao
subconsciente, In e Sub, os ciclopes idiotas da alma, traduzidos e codificados como genes
mutantes, infecciosos. Virulentos.
O que eu vinha chamando de infecção secundária, portanto, decorre do encontro
entre a tradução bioquímica das fantasias de uma pessoa com a estrutura genética do corpo
de outra, gerando uma versão perversa da “acumulação de dados em unidades móveis” do
programa original. Os dois códigos se fundem e se interpretam mutuamente. Trata-se, de
fato, de uma fecundação: vermes e traças são como espermatozóides, o paciente é o óvulo,
o mutante, o rebento.
Sem cuidar de fato das próprias feridas, interessada apenas em crescer e espalhar a
semente, sem se preocupar com os problemas de compatibilidade entre seu código
alienígena e os minerais brutos que absorvia, a metade louca havia morrido pouco após a
eclosão – mas não sem antes criar um anel de anticorpos ao redor de si, para manter a irmã-
inimiga, a floresta, à distância.
Aprendi tudo isso na tarde e na noite que passei a tarde entre os duodecápodes.
Segui uma fileira deles mata adentro, até o formigueiro – uma estrutura de terra semelhante
a um toco de árvore, com metro e meio de altura. Eu estava certo que a picada de um deles
havia “ensinado” português a Ukhal; estava certo de que outros indivíduos da espécie
teriam outros tipos de informação para dar.
Só não sabia como fazer contato. As criaturas corriam para lá e para cá,
praticamente ignorando minha presença. Ao redor, árvores. Pensei, a transmissão de dados
para Ukhal tinha sido feita por meio de injeção de “veneno” na corrente sangüínea. Seria a
única forma?
Imaginando se não teria nada a perder, ergui um deles com cuidado, pelas patas
dianteiras, coloquei-o na boca e comecei a mastigar. Lentamente. Assim que o sumo
Carlos Orsi Martinho 30
amargo do primeiro se espalhou em minha boca, outros vieram até mim, os nervos da
floresta, os sentidos incipientes da nova Unimente. Fizemos sinapse. Aprendemos.
Voltei ao acampamento de madrugada. Emília estava acordada, esperando por mim.
Eu havia mastigado um artrópode de doze patas, e dezenas de outros tinham
percorrido meu corpo, descarregando seus conteúdos. Minhas roupas estavam em péssimo
estado, o que deve ter aumentado a preocupação de Emília ao me ver, sob a luz difusa da
lanterna. O sargento Kranislav chegou pouco depois, dizendo que tinha estado à minha
procura.
Apenas sorri: não tinha sido o desejo da floresta que me encontrassem antes que
terminássemos de conversar; era, portanto, mais do que provável que a mata tivesse
desviado o russo de minha posição seguidas vezes.
Por mais tocante (e constrangedora) que a cena do meu reaparecimento fosse,
porém, Fan Emao e Kranislav não tiveram muito tempo para demonstrar a preocupação e a
irritação que certamente sentiam. Um exército de duodecápodes vinha logo atrás de mim,
pronto para invadir olhos, bocas e ouvidos, pronto para partilhar o conhecimento, o poder e
o propósito com os demais.
Outros, eu sei, marcham agora sobre Brasília, em busca de Liang Guangrui, do
capitão Lansdale, dos soldados que ficaram para trás.
Nas últimas quatro décadas, o lado saudável da Unimente havia curado as feridas da
reentrada e consolidado seu novo banco de dados, sob a forma da ecologia especial da
floresta mutante que substitui o cerrado. É, portanto, chegada a hora de passar à segunda
diretriz, mas de forma lógica e ordenada, sem a loucura dos esporos e dos zangões. Para
isso, no entanto, é preciso, primeiro, criar novos agentes de captação – não novas
aberrações mutantes, mas seres humanos, dotados de órgãos especiais para a cartografia da
noosfera, órgãos ocultos, ligados diretamente à floresta e leais ao projeto do criador; este é
o destino dos homens em Brasília, e eu os invejo.
Quanto a nós que estamos aqui, basta aguardar as mutações induzidas pela mata e
pelos duodecápodes terminarem para marcharmos contra os anticorpos, destruirmos o
perímetro e permitirmos que a floresta de que, agora, somos parte, finalmente se aposse dos
recursos e dos arquivos da metade morta.
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O combate não vai terminar nunca.
A Serpens – vista de tão perto – é como uma muralha gigantesca, que se surge de
uma cratera do solo e se estende a perder de vista. Tem, estimo seiscentos metros de altura.
O solo ao redor é só cinza a rocha. Num determinado ponto, a floresta simplesmente
deixa de existir; o perímetro, até esta manhã, era protegido por dezenas de criaturas que só
posso comparar a chimpanzés, mas com garras afiadas nas quatro mãos, e cabeças com
bicos cortantes no lugar da boca. Não passavam de máquinas vivas de rasgar e perfurar;
eram pequenos, porém numerosos e rápidos.
Kranislav e Ukhal, galopando à vanguarda de nossa coluna, esmagaram dúzias sob
seus cascos; Emília, descendo do céu num mergulho rápido, rasgou as costas de outros
tantos com seus esporões de águia. As demais criaturas deixaram seus postos de vigilância
e correram para atacar os dois centauros, abrindo espaço para que eu e o outro russo,
Mosorov, penetrássemos na clareira.
Às nossas costas, ouvimos o som dos fuzis disparando. Uma vez perdido o elemento
surpresa, os dois centauros não confiavam mais apenas nos cascos.
Há uma fenda triangular no corpo da Serpens – provavelmente uma ferida mas,
nesta escala, algo que mais parece uma caverna. De acordo com a floresta, aquele é o nosso
objetivo. Mosorov e eu caminhamos decididamente naquela direção. Nossas novas pernas
não são boas para correr, ao contrário das dos centauros, mas nossos cascos são mais
pesados, e somos mais fortes e maiores: estimo que, depois da última mutação, tenhamos
chegado aos cinco metros de altura.
Se isso for verdade, os dois ciclopes que guardavam a entrada da ferida tinham, pelo
menos, seis. Ambos portavam clavas que mais pareciam estalactites gigantes, ou montanhas
em miniatura. Mosorov e eu estávamos desarmados – somos grandes demais para usar os
fuzis, de qualquer forma.
As pernas são ruins para correr, mas os joelhos invertidos dão uma vantagem
quando se trata de desviar o corpo. O ciclope que me atacou ficou confuso quando baixei o
corpo e me inclinei para trás num só movimento; a clava passou zunindo um pouco acima
da minha testa! Joguei o casco direito à frente, enfiando as duas pontas no lado de dentro da
coxa do monstro, o que não tirou sangue, mas arrancou farpas e estilhaços – o mesmo que
sangue, em se tratando de um monstro feito de terra e pedra animada. Ele caiu para a frente,
Carlos Orsi Martinho 32
vindo sobre mim, e eu o atingi em cheio com um murro no estômago, o que o fez balançar
para trás, mas ele logo voltou a avançar, aproveitando o impulso para baixar a clava com
força – me acertou na lateral do ombro, pondo meu braço direito para dormir. Ele estava
inclinado, com o queixo um pouco acima da minha testa. Movi a cabeça com rapidez,
primeiro para trás e depois para frente e acima, enfiando os dois chifres no único olho.
Depois disso, foi pura carnificina.
Mosorov também já havia se desembaraçado de seu ciclope, e corria na direção da
fenda. Eu me preparava para segui-lo quando vi alguma coisa brilhar na escuridão – olhos?
Gritei para avisá-lo, mas já era tarde; eu estava perto, e seu sangue cobriu por
inteiro.
Obriguei-me a olhar fixamente para a fenda por onde meu colega tinha
desaparecido: não havia nada lá, só escuridão. E, de vez em quando, o brilho de um, dois,
vários olhares cruéis.
Este é meu último registro. Não sou mais capaz de segurar a caneta sem que meus
dedos doam, e o relato, terminando neste ponto, já deve ser instrutivo o bastante para os
que vierem depois.
A Unimente da floresta nos diz que o cadáver de sua irmã deve ser habitado por
organismos surgidos a partir das moléculas tóxicas dos registros passados – das anotações
bioquímicas de cada crime e de cada obscenidade que já mancharam a noosfera terrestre,
desde o surgimento do homem.
A Unimente insiste que devemos ir até lá, e dar cabo de todos.
Sendo, como somos, parte da floresta, não vejo como poderíamos discordar.
Foi a floresta que tentou purificar a mente do russo que matei, levando-o,
inadvertidamente, à loucura – um processo semelhante ao fez aflorar toda a culpa que eu
sentia sem saber, apagou meus medos, limpou minha alma, reorganizou minha mente e me
preparou para esta Mutação; foi a mata que levou o duodecápode a picar Ukhal, testando a
compatibilidade dos fluidos corporais e da transmissão de conhecimento via ARN; foi a
mata que me rejuvenesceu; que deu a Rombang e a Landis os poderes incipientes que os
dois idiotas preferiram usar um contra o outro; foi a floresta que transformou um punhado
de homens em Gigantes, Faunos e Centauros, e Emília, numa Fúria Alada.
punhado de homens em Gigantes, Faunos e Centauros, e Emília, numa Fúria Alada.
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É, portanto, pela floresta que lutaremos amanhã.