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WLADIMIR POMAR 1 a edição São Paulo, 2011 A Dialética da História Volume 1 Sinfonia Desencontrada

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WLADIMIR POMAR

1a edição

São Paulo, 2011

A Dialética daHistória

Volume 1Sinfonia Desencontrada

Copyright©

Wladimir Ventura Torres Pomar

Coordenação editorialValter Pomar

DiagramaçãoSandra Luiz Alves

Apresentação ....................................................... 5

A síndrome dos dinossauros .............................. 12

Origem e desvios ............................................... 30

História e mudança ........................................... 45

Justificando a viagem ........................................ 63

Sobre o autor ..................................................... 82

Índice

Apresentação

O presente texto é o primeiro de uma série, cujo título geral será

A Dialética da História. Nesta série pretendo discutir a história, não

como estudo e relato do processo de mudanças exclusivamente hu-

manas, mas como estudo do processo de mudanças, modificações,

mutações, transformações, ou metamorfoses, que ocorrem em to-

dos os aspectos da natureza, embora ainda não conheçamos devida-

mente todos esses aspectos e, talvez, nunca venhamos a conhecê-los

totalmente.

Em síntese, procuro retomar a discussão sobre a dialética. Este

método, surgido na antiguidade clássica grega e chinesa, foi posteri-

ormente retomado por Hegel e revirado de cabeça para cima por

Marx e Engels. A partir daí, um sem-número dos adeptos do mar-

xismo preferiu tomar a dialética como uma doutrina, ao ponto de

Marx, em certo momento, ter afirmado não ser marxista.

Cerca de 150 anos depois, com a crise do socialismo, a dialética

foi relegada a um plano secundário, ou simplesmente deixada de

lado, tanto por marxistas, quanto por anti-marxistas. Deixou de ser

tida como um instrumento de análise, seja dos fenômenos da natu-

reza, seja do desenvolvimento social. E passou a ser considerada,

progressivamente, como ideologia, ou um simples artifício descriti-

vo, desprovido de sentido, criado pelo pensamento humano.

A dialética se tornou, assim, praticamente desconhecida dos ati-

vistas sociais e políticos, e da maior parte dos cientistas. Em tais

6 Wladimir Pomar

condições, providos de métodos de pesquisa pouco condizentes com

o processo de evolução e desenvolvimento da realidade social e na-

tural, uns e outros têm produzido análises incompletas e pouco con-

sistentes. Isto, justamente no momento em que a história ingressa

não só numa fase avançada de desenvolvimento das forças produti-

vas sociais e das contradições de classe, mas também das contradi-

ções dos homens com a natureza. Ou seja, justamente no momento

histórico em que, talvez, mais necessitemos de um instrumento de

análise do porte da dialética.

Por outro lado, além das vicissitudes da própria dialética, é ne-

cessário reconhecer que muita gente põe em dúvida que a natureza

se movimente dialeticamente. E que o pensamento, para refletir

aproximadamente a realidade, também deva ser dialético. Isto é, que

o pensamento deva ser o reflexo do movimento das contradições

que aparecem em todas as partes da natureza e que, num contínuo

conflito e unidade ou fusão entre seus opostos, conduza a formas

superiores de existência.

Em virtude disso tudo, pretendo retomar o argumento de que a

natureza e sua história se movem dialeticamente, com leis gerais

próprias, geradas por todas as formas específicas de movimento,

sejam mecânicas, físicas, químicas, biológicas ou sociais. Concordo,

pois, com Engels, para quem a dialética tem apenas por incumbên-

cia estudar as leis gerais decorrentes da dinâmica e do desenvolvi-

mento da natureza e do pensamento.

Busco reafirmar que as leis dialéticas ou gerais decorrem daquele

processo natural de mudanças que compõem a história. Elas são

extraídas da história da natureza e da história humana, histórias

entrelaçadas e interdependentes, cujo conhecimento é essencial para

analisar as diferentes formas através das quais a natureza e os ho-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 7

mens se movem. Desse modo, o problema consiste não em impor à

natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e

desenvolvê-las, partindo da própria natureza. Os princípios não são o

ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais. Eles não

se aplicam à natureza e à história humana, mas delas são extraídas.

Em seu rascunho sobre a Dialética da Natureza, Engels acredi-

tava que as leis dialéticas, conforme estabelecidas por Hegel, pode-

riam ser reduzidas a três: transformação da quantidade em quali-

dade, e vice-versa; interpenetração ou unidade e luta entre os con-

trários, ou lei da contradição; e negação da negação. Bento Caraça,

por seu lado, reduziu ainda mais a realidade a duas características

fundamentais: a interdependência e a fluência. Todos os aspectos

da realidade, em virtude disso, evoluiriam e se transformariam.

Hoje, com os avanços das ciências, com as experiências do de-

senvolvimento social e humano, e com as controvérsias geradas pelo

próprio conceito de dialética, talvez se deva considerar como suas

características fundamentais o movimento, em todas as suas for-

mas; as contradições, ou a interpenetração, ou unidade e luta entre

os contrários, ou opostos; as mudanças, mutações ou transforma-

ções da quantidade em qualidade, e vice-versa; a interdependência

entre todos os aspectos da realidade, portanto entre as contradições

internas e seu meio ambiente; a negação da negação como instru-

mento de solução das contradições; a reprodução ampliada, sem a

qual um dos aspectos da contradição começa seu declínio; e o de-

senvolvimento desigual das diversas formas de movimento da ma-

téria, fazendo com que cada história particular seja composta de vá-

rias histórias aparentemente desencontradas.

Nessas condições, ainda de acordo com Engels, uma concepção

da história, ao mesmo tempo dialética e materialista, exige o conhe-

8 Wladimir Pomar

cimento das matemáticas e das ciências naturais. Reforçando essa

exigência e complicando o assunto, o físico Stephen Hawking asse-

vera que no século 21 a ciência se tornou tão técnica que somente

um pequeno número de especialistas seria capaz de dominar a ma-

temática necessária para lidar com ela. É evidente que isso me pare-

ceu um desafio idêntico ao que os filósofos naturais enfrentaram há

mais de 2500 anos atrás. O que, de cara, me deu vontade de desistir.

Por sorte, o mesmo Hawking admitiu que, naturalmente, as idéias

básicas com relação às origens e ao destino do universo podem ser

consideradas sem o uso da matemática, de maneira que pessoas sem

formação científica possam compreendê-las. Einstein também ha-

via dito algo idêntico. Mas é evidente que ambos esqueceram de dizer

que a dificuldade em compreender a ciência contemporânea não está

apenas na tecnicidade da matemática, ou da física, química, biologia

ou outras subdivisões em que elas se fragmentaram. Infelizmente está

também na tecnicidade, muitas vezes rebuscada, parecendo uma sin-

fonia desencontrada, da linguagem que os cientistas utilizam

comumente para tentar explicar suas hipóteses e comprovações.

De qualquer modo, como eles abriram a brecha para pessoas sem

formação científica explicarem a origem e a evolução histórica do

universo, decidi aproveitá-la. O que exigiu de mim voltar a estudar

as diversas ciências que procuram explicar o universo, as galáxias,

as estrelas, os planetas, os átomos, as partículas, a vida, a humani-

dade e a sociedade.

Aos poucos me convenci que talvez não seja tão difícil decifrar a

noção física de que a luz pode ser refletida por um meio com um

índice de refração. Como afirmou o físico e matemático Richard

Feymann, isto poderia ser dito, mais simplesmente, afirmando que

a luz pode ser refletida pela água e outros materiais que possuam

Volume 1: Sinfonia desencontrada 9

idêntica capacidade de reflexão. O mesmo deve ocorrer com o con-

ceito de direção da luz, que poderia ser explicitado, mais simples-

mente, dizendo que a direção da luz depende da posição em que

alguém está olhando.

São esses os pressupostos que orientam esta série, que começa

com o subtítulo Volume 1: Sinfonia Desencontrada. Espero que, na

descrição de cada capítulo, os leitores possam perceber naturalmente

a presença daquelas leis dialéticas listadas acima. E que desculpem

minha necessidade de enfatizar tal presença, através de uma, ou mais

de uma, de suas características marcantes, diante daquelas concep-

ções que as negam, de uma forma ou de outra.

Neste primeiro volume, além desta apresentação, constam qua-

tro capítulos: Síndrome dos Dinossauros, Origens e Desvios, Histó-

ria e Mudanças, e Justificando a Viagem. A Síndrome dos

Dinossauros trata da contradição do conceito da história como his-

tória humana e, ao mesmo tempo, como história da mudança no

tempo, e de como o evento da extinção dos dinossauros colocou em

xeque o conceito de história como algo exclusivamente humano.

Em Origem e Desvios, tento fazer um voo de pássaro sobre a ori-

gem e a evolução da narrativa histórica desde a antiguidade grega e

chinesa, mostrando como, ainda hoje, permanece como força inve-

jável a crença de que se vive uma eterna repetição e de que as mu-

danças seriam uma simples aparência.

Em História e Mudanças, procuro resgatar, também desde a anti-

guidade grega e chinesa, os pensadores que introduziram, cada um a

seu modo, o conceito de mutação, ou de mudança, em oposição à idéia

da imutabilidade histórica. E, em Justificando a Viagem, sugerimos

que a humanidade alcançou um ponto de desenvolvimento científico e

tecnológico de tal ordem que já permite a alguém se embrenhar, ao

10 Wladimir Pomar

mesmo tempo, pelas profundezas mais longínquas do universo e pelo

mundo nano ou microscópico das partículas atômicas.

Com isso, penso retomar o debate sobre a dialética e a história

através de uma espécie de viagem virtual, utilizando-me dos co-

nhecimentos e das diversas teorias que a sociedade humana mo-

derna produziu. Primeiro, até a origem do universo atual. Depois,

de volta pelo menos até a civilização humana atual.

Serão, ao todo, mais dez volumes, cujos subtítulos prelimina-

res, na falta de outros mais criativos, serão Redescobrindo o Mun-

do, Caminhos das Ciências, Viagem ao Início do Tempo,

Brotamento da Vida, Evolução da Vida, Surgimento do Homem,

Privatização Humana, Servidão Humana, Retardatários e Soci-

alização Humana, cada um dos quais com cinco ou seis capítulos.

Talvez eu nem sempre tenha sido capaz de adaptar vários ter-

mos científicos à linguagem corrente. Ou, em vários outros casos,

tenha escorregado em agressões involuntárias aos preceitos

conceituais utilizados pelos cientistas. De qualquer modo, o que

está dito nos textos será, apenas, o que tentei saber do conheci-

mento acumulado por outros autores nas diversas ciências. Tudo,

com o objetivo de colocar em evidência o sentido histórico e

dialético, da natureza e da sociedade humana, em suas relações

internas e externas.

Também por isso, como tais textos de destinam a um público

amplo e diversificado, me abstive de citar, em notas de rodapé, as

pessoas associadas às idéias descritas, assumindo de antemão toda

a responsabilidade por qualquer deslize involuntário a tais idéias.

Na medida do possível, procurei observar o alerta de Feymann,

segundo o qual a verdade emergirá se levarmos em conta que são

os fenômenos da natureza que confirmam ou desabonam as teori-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 11

as. Nesse sentido, ele concordou plenamente, mesmo sem o saber,

com o que disse Engels mais de um século atrás.

Em outras palavras, não são os fenômenos da natureza e da so-

ciedade que se adaptam às teorias. São as teorias que precisam

adaptar-se aos fenômenos naturais e sociais para serem conside-

radas verdadeiras. Esta talvez seja a lei dialética mais geral a ser

observada por todos que pretendam, como cientistas ou ativistas

da natureza e da sociedade, agir sobre elas.

Setembro de 2011

12 Wladimir Pomar

A síndrome dos dinossauros

Sempre estranhei que alguns historiadores tomassem, como ponto

de partida da história brasileira, a descoberta ou ocupação portu-

guesa do território, em 1500. Os povos indígenas que ocupavam esse

território, pelo menos desde 11 mil anos atrás (alguns acreditam que

eles já estavam aqui há mais de 40 mil anos), em geral não são con-

siderados como parte do que ocorreu a partir da chegada dos euro-

peus ao Novo Mundo.

Além disso, por incrível que pareça, o holocausto dessas popula-

ções indígenas, durante mais de 300 anos de colonização européia e

quase 200 anos de independência, aparece como tendo sido resul-

tado de um processo natural de falta de adaptação aos novos tem-

pos. Eles estariam despreparados para a chegada da civilização.

Como decorrência, muitos historiadores sequer os incluem como par-

te do projeto escravista da Coroa portuguesa.

Essa estranheza aumentou ainda mais quando resolvi escrever

sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Ao escarafunchar

textos de diferentes autores, descobri que, além de ignorar ou tomar

como irrelevante a história anterior, algumas vezes chamada de pré-

história americana, ou pré-colombiana, nossa história é contada

de forma toda fragmentada e com sérias lacunas quanto às relações

de seus diferentes aspectos.

Nela se desconsidera, por exemplo, quase totalmente como os ho-

mens sobreviviam, seja diante da natureza, seja diante de seus se-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 13

melhantes. A produção da própria sobrevivência e das condições ma-

teriais e espirituais da reprodução humana são quase sempre dis-

solvidas nos aspectos gerais da vida de cada momento, ou concen-

tradas principalmente nas figuras de algumas personalidades.

Tudo parece como em alguns filmes, nos quais os homens não se

preocupam com o trabalho, nem com a organização da produção. A

comida e o vestuário estão sempre à disposição, mesmo que não se

saiba de onde vieram. O que importa mesmo são os revólveres e

winchesters, maravilhosos, que jorram balas que nunca terminam,

por mais tiros que dêem. Para que perder tempo com algo aparente-

mente sem importância, como os problemas do trabalho, da produ-

ção, e das relações que tais necessidades impõem aos homens?

Como decorrência, as análises de categorias históricas como for-

mação econômico-social, modo de produção, forças produtivas, re-

lações de produção e classes sociais, são quase inexistentes na nar-

ração histórica da sociedade que se formou no processo de coloniza-

ção portuguesa. Na melhor das hipóteses, o que se tem é um agrega-

do geográfico e populacional, de onde emergem relações culturais e

políticas que parecem não ter raízes sociais e econômicas.

Talvez isso ocorra porque cada historiador tem sua própria ver-

são do que é a história, qual seu objeto, e como ela evolui. Constatei

que, muitas vezes, se confunde o processo histórico real com a nar-

ração ou a explicação do que se considera tal processo. É provável

que, no caso da língua portuguesa e algumas outras, a utilização de

uma única palavra – história – tanto para o processo real de mu-

danças, quanto para sua narração, mesmo que a narração não

corresponda ao real, seja um empecilho para uma melhor definição.

Além disso, boa parte dos narradores parece concordar com o

historiador francês Marc Bloch (1886-1944) que, como combatente

14 Wladimir Pomar

anti-fascista, morreu fuzilado pelos nazistas, durante a segunda guer-

ra mundial. Para ele, história seria tão somente a história dos ho-

mens no tempo. Os fatos históricos seriam, nada mais nada menos,

do que fatos humanos. A natureza e as ciências naturais não seriam

objetos da história. Aliás, para muitos, é uma aberração supor que a

natureza tenha história. Para outros, a natureza faria parte de uma

história natural, mas esta teria pouca ou quase nenhuma relação

com a verdadeira história, a história humana.

Mas, há sempre um mas. O próprio Bloch afirmava que a histó-

ria é a ciência do tempo e da mudança. Comecei, então, a me per-

guntar se a história dos homens no tempo seria a mesma coisa que a

ciência do tempo e da mudança. Como reduzir a história do tempo

e da mudança à história dos homens? Como fica, diante da história

dos homens, a teoria de Darwin e sua conclusão de que os homens

descendem de algum tipo de macaco?

Os macacos ancestrais fazem ou não parte da história dos ho-

mens? E se os macacos, por sua vez, descendem de algum outro tipo

de mamífero, este será ou não parte da história humana? E se os

mamíferos, por seu turno, descenderem de algum outro tipo de ver-

tebrado? Assim, se formos seguir a longa cadeia evolutiva e de sele-

ção natural dos seres vivos, dos quais os homens descendem, essa

cadeia faz ou não parte da história? Diante dessas questões, como

fica a teoria de que a história se relaciona apenas aos homens?

Apesar disso, no frigir dos ovos, a maioria esmagadora dos histo-

riadores parece concordar que os fatos históricos seriam, apenas,

fatos humanos. Entre eles, por um lado, há os que postulam a histó-

ria como história dos homens no tempo. Isto é, a história ocorre

porque há mudanças de diferentes tipos, marcadas por idades, cul-

turas e épocas. Por outro lado, há os que continuam acreditando na

Volume 1: Sinfonia desencontrada 15

invariabilidade da sociedade humana, sua história sendo uma eter-

na repetição de fatos e acontecimentos.

Há, portanto, consenso entre eles quanto à exclusividade históri-

ca dos humanos, mas divergências quanto às mudanças no tempo,

divergências que desbordam também para outros temas. Os fatos

humanos seriam essencialmente fatos culturais? Econômicos? Polí-

ticos? Ou o que ocorre é uma multiplicidade de fatos? Qual a relação

entre os diferentes fatos humanos? Como encarar o tempo histórico

humano, o presente, o passado, e o futuro?

Desse modo, todos simplesmente desconsideram a natureza, aqui

compreendida como natureza terrestre e natureza universal. Ainda

hoje, parecem amarrados ao período histórico de mais de mil anos

atrás, que se caracterizou pela concepção de que a natureza era in-

variável. O Sol, as estrelas, os planetas e demais corpos celestes,

assim como a geografia, a flora e a fauna terrestres existiriam da

mesma forma, desde o começo dos tempos. E este começo teria não

mais do que 4400 anos.

É verdade que alguns gregos e chineses da antiguidade se aven-

turaram a dizer que a natureza terrestre sofria mudanças, e que tudo

estava em movimento. Eles, porém, não possuíam ainda elementos

de prova para demonstrar suas teorias. Para superar questões rela-

tivamente mais simples, como colocar a Terra e os planetas girando

em torno do Sol, mostrar que a Terra tinha, ela própria, um movi-

mento rotativo, e que o movimento em torno do Sol não era circular,

mas elíptico, foram necessários cerca de 1800 anos após Aristóteles

(300 a.c.), e 1400 anos após Cláudio Ptolomeu (100-170).

Imagine-se, então, a dificuldade para mostrar que as demais cria-

ções, tidas como divinas, eternas e invariáveis, eram criações históricas

naturais e sofriam mudanças constantes. Para chegar a tal ponto foi

16 Wladimir Pomar

necessário que os chamados naturalistas, ou filósofos naturais, cole-

tassem e classificassem informações e dados durante cerca de dois mil

anos. Mesmo Lineu, em 1750, ao admitir que poderiam surgir novas

espécies de plantas, apenas as admitiu como resultado de cruzamentos

espacialmente restritos. Para ele, novas espécies eram somente uma

possibilidade espacial. Não lhe passou pela cabeça que elas fossem o

resultado de mudanças e desenvolvimento no tempo. Mudanças como

desenvolvimento histórico natural estavam fora da sua percepção.

Apesar dessa dificuldade, em grande parte religiosa, alguns dos

filósofos naturais, que permearam a história da humanidade oci-

dental entre os séculos 15 e 19, retomaram o pensamento dos anti-

gos dialéticos gregos e começaram a tratar a natureza como uma

criação histórica. Com isso, criaram as bases para o surgimento das

ciências, fazendo com que o conhecimento humano desse um salto,

e que a Idade Média parecesse uma Idade de Trevas.

No entanto, o caminho posterior não se viu livre dos obstáculos

representados pelas idéias de invariabilidade, imutabilidade, eterni-

dade e de um universo formado por corpos estáticos. Veremos, em

outros locais, como essas idéias ainda hoje reaparecem, especialmen-

te naquelas ciências que, ao contrário da química, necessitam isolar e

colocar em repouso os corpos ou fenômenos, para estudar suas pro-

priedades sem as interferências de corpos ou fenômenos externos.

Além disso, enquanto os filósofos da antiguidade e, especialmen-

te, da modernidade pós-século 15, tratavam do humano em sua re-

lação com a natureza, os filósofos da atualidade não conseguem mais

acompanhar a evolução das ciências da natureza e das próprias ci-

ências sociais. À medida que as sociedades humanas se tornaram

mais complexas, e que as ciências se desenvolveram não apenas em

quantidade, mas também em complexidade e em especialização, os

Volume 1: Sinfonia desencontrada 17

filósofos passaram a se voltar, cada vez mais, para os aspectos hu-

manos comportamentais. De tal modo que Ludwig Wittgeinstein

(1889-1951), tido por alguns como o mais famoso pensador do sécu-

lo 20, chegou a admitir que a única tarefa que sobrou para a filosofia

teria sido a análise da linguagem.

Assim, parece natural que a maioria dos historiadores continue

evitando debruçar-se sobre a história da natureza, na suposição de

que ela não acrescenta nada à história humana. Deixam isso, como

exercícios teóricos, supostamente inúteis, para astrônomos, físicos,

astrofísicos, químicos, geólogos, biólogos, arqueólogos, paleontólo-

gos e outros naturalistas.

Sofrem, como todos os outros homens vivos, a pressão da cone-

xão existente entre as diversas gerações humanas e a subordinação

das novas gerações às antigas. Sem libertar-se da obrigação de car-

regar o legado dos mortos, por mais pesado que ele seja, alguns his-

toriadores tendem a tratar os cientistas da natureza como aliena-

dos, à parte dos problemas e das preocupações humanas. Para al-

guns, arqueólogos e paleontólogos não passariam de inúteis caça-

dores de ossos.

No entanto, a humanidade se vê cada vez mais obrigada a enten-

der a história de sua ação em conexão com a história natural. A quí-

mica e a geologia já têm uma longa e evidente tradição de participa-

ção no metabolismo entre os homens e a natureza. A geologia é res-

ponsável não só pelo estudo da estrutura da Terra, mas também pela

descoberta da deriva continental e das jazidas minerais e energéti-

cas. Aliada à química, permitiu que esta se tornasse uma das princi-

pais responsáveis pelos avanços de diversos ramos técnicos dos meios

de vida humana, a exemplo da metalurgia, farmácia, medicina, ali-

mentos, tecelagem, petroquímica e plásticos.

18 Wladimir Pomar

Embora a participação da física nem sempre fique claramente

definida, muitas pessoas já se aperceberam de seu papel no uso e de-

senvolvimento da mecânica dos sólidos, dos líquidos e dos gases, da

aeronáutica, das energias elétrica, eólica, atômica, solar e das marés,

dos aparelhos eletromecânicos, telecomunicações, informática, auto-

mação, robótica e outras áreas importantes da vida cotidiana.

O mesmo ocorre com a biologia e suas ramificações científicas no

âmbito da medicina, agricultura, pecuária, silvicultura e ecologia. A

arqueologia e a paleontologia, tendo por base os estudos geológicos

e, por auxiliares essenciais outros ramos das ciências naturais, a cada

dia acrescentam novos dados factuais sobre a evolução histórica ar-

ticulada dos homens e da natureza.

Passo a passo, principalmente diante das mudanças climáticas e

da poluição, que afetam cada vez mais a vida humana sobre o globo,

cresce o número dos que se dão conta de que é difícil desconsiderar

que a natureza não-humana, ou inanimada, tem participação, tanto à

parte, quanto paralela e intrincada, com a ação e a vontade humanas.

Durante centenas de milhões de anos, a transformação dos res-

tos orgânicos em óleo e gás metano processou-se naturalmente, nada

tendo a ver com a ação do homem, mesmo porque o homem sim-

plesmente ainda não surgira sobre a Terra. Durante milhões ou bi-

lhões de anos, as atividades vulcânicas e também dos seres vivos

pré-humanos emitiram dióxido de carbono para a atmosfera terres-

tre, contribuindo para diferentes modificações no ambiente terres-

tre. Esses processos naturais continuam ocorrendo, embora possam

ter mudado sua escala e suas formas.

Assim, a natureza, em seu sentido estrito, realiza infinitas mu-

danças ou transformações de desenvolvimento, de elementos sim-

ples para complexos, e de complexos para simples num processo

Volume 1: Sinfonia desencontrada 19

que inclui dissociações, associações, destruições, criações etc. Em

grande parte, sem que o homem tenha qualquer poder ou ação so-

bre elas. A própria vida surgiu de um processo de desenvolvimento

natural, bem antes do surgimento de algo tão complexo como os

antropóides e, depois, os homens.

O que há de novo na história da natureza, pelo menos da nature-

za terrestre, não é apenas a continuidade das transformações natu-

rais, incidindo fortemente sobre a ação dos homens. Há, principal-

mente, o fato de que a ação humana passou a incidir fortemente

sobre as condições naturais de sua sobrevivência. A continuidade

da evolução humana parece depender, mais e mais, da natureza ter-

restre e, talvez, da natureza sideral. Irônica e, às vezes, sarcastica-

mente, a natureza obriga a história dos homens no tempo a buscar,

nela e em sua história, cada vez mais, as respostas, tanto para os

problemas que os próprios homens infligiram a ela, quanto para as

mudanças que parecem resultar da evolução histórica natural da

Terra e do universo.

Nessas condições, pode-se desconsiderar o desenvolvimento na-

tural, esse processo de mudanças ou transformação da natureza por

seus próprios meios, meios que aos poucos vão sendo descobertos e

conhecidos pelos homens, como história da natureza? Diante de

tantas evidências de uma história natural, da qual os homens fazem

parte, pode-se deixar a história como exclusividade humana?

A história humana já vinha sendo constrangida a incluir em sua

grade temporal os hominídeos, assim como os primatas que os an-

tecederam. Não havia outro meio de explicar suas origens, e enten-

der como os primatas e os hominídeos se relacionaram com a natu-

reza circundante ao longo do tempo. É verdade que existe gente que

explica a presença dos homens na Terra pela ação de extraterres-

20 Wladimir Pomar

tres, ou por desígnios divinos. Na hipótese da ação de extraterres-

tres, certamente nos confrontaríamos com o enigma de sua origem

no planeta e na galáxia onde se desenvolveram. No caso dos desígni-

os divinos, estaríamos diante de um axioma, que dispensaria de-

monstração.

Porém, mesmo ai, os rastros dos homens primitivos, assim como

de animais que viveram há milhões e bilhões de anos, recolhidos

por geólogos, arqueólogos e paleontólogos, recolocam, a cada dia,

novas indagações para os historiadores da vida humana. Eles nos

obrigam a procurar a origem do homem e de seus ancestrais em

algum lugar do tempo passado, onde a natureza sem os homens era

soberana. Como fazer? Desprezar como história o tempo e a mu-

dança da natureza, tanto da terrestre, quanto da universal, da qual

os homens fazem parte?

Por mais estranho que pareça, não foram cientistas e historiado-

res que colocaram em dúvida, para o grande público, essas noções

de história imutável e de história exclusivamente humana. Sem que

a maior parte das pessoas se apercebesse da contradição presente

no fato, isso começou a ocorrer quando os dinossauros viraram moda

humana, há mais de cem anos.

Esses répteis, que viveram entre 170 e 65 milhões de anos atrás,

passaram a atrair crescente atenção, em virtude das progressivas

descobertas de seus fósseis, a partir de metade do século 19, sendo

popularizados tanto pela imprensa escrita, quanto pelo cinema. Pri-

meiro foram encontrados fósseis de Tyrannosaurus rex, um

dinossauro gigante, na Europa e na América do Norte. Depois, nos

anos 1920, ocorreu um novo surto de descobertas na Mongólia. O

que atiçou ainda mais o interesse por esses animais, que não faziam

parte da lista dos pares salvos pela Arca de Noé, durante o dilúvio

Volume 1: Sinfonia desencontrada 21

bíblico que teria coberto a Terra. Em 1930, apareceram os primei-

ros filmes tendo o Tyrannosaurus como um dos astros principais.

Nos anos 1980 e 1990 foram descobertos na Argentina, China e

África Ocidental, dinossauros ainda maiores dos que os encontra-

dos anteriormente. Os Saurópodes, herbívoros de pescoço longo,

achados na América do Sul, rivalizam em tamanho com as grandes

baleias da atualidade. Por outro lado, na China foram localizados

fósseis de pequenos dinossauros carnívoros.

Portanto, os dinossauros ocorreram em todos os continentes. As

sucessivas descobertas estimularam a crescente divulgação sobre sua

existência, milhões de anos no passado. Revistas, livros, filmes e

outras formas de divulgação transformaram os grandes dinossauros

numa verdadeira síndrome, capaz de seduzir tanto às crianças, quan-

to aos adultos. Síndrome hoje alimentada pela hipótese de que, com

a engenharia genética, seja possível reproduzi-los e colocá-los em

parques especiais.

O mais interessante dessa síndrome é que ela destrona o concei-

to de que a história seja apenas a história dos homens no tempo,

apesar de centrar-se na hipótese de que os dinossauros foram extin-

tos, há 65 milhões de anos, não por sua evolução histórica natural,

mas em virtude da queda de um meteoro na península de Yucatan,

no México.

A partir da descoberta da existência de uma camada geológica de

irídio, relativamente grande, em algumas regiões da Itália, Dinamar-

ca e Nova Zelândia, o geólogo Walter Alvarez concluiu que um me-

teoro, com diâmetro superior a 10 km, teria atingido a Terra, há 65

milhões de anos. Sua dedução teve por base três fatos articulados.

Primeiro, o irídio é um metal raro, geralmente associado à queda de

asteróides na Terra. Segundo, as camadas geológicas de irídio esta-

22 Wladimir Pomar

vam incrustadas em camadas de calcário de 65 milhões de anos. Ter-

ceiro, a queda de um asteróide com aquele diâmetro teria causado

uma explosão equivalente a um milhão de toneladas de dinamite.

Ora, uma explosão dessa envergadura teria gerado uma nuvem

de poeira e gases com capacidade de se espalhar sobre todo o globo

através das camadas superiores da atmosfera. Sob tais condições, a

luz solar teria sido impedida de atingir o solo terrestre por muitos

anos, enquanto fragmentos incandescentes teriam caído por todo o

mundo, matando todos os animais terrestres grandes demais para

se abrigarem.

A localização da área de impacto na costa do Yucatan, no México,

onde existe uma cratera de meteorito de 200 km de diâmetro, tor-

nou a hipótese de Alvarez uma certeza para muitos cientistas. Para

o que nos interessa, no momento, talvez pouco importe que essa

hipótese se transforme em certeza absoluta. Ela tem a vantagem de

jogar a história para um tempo em que o homem ainda não estava

presente na face da Terra.

É até possível que a extinção dos grandes dinossauros tenha ocor-

rido com o auxílio desse evento extraterrestre. Da mesma forma que

eventos do mesmo tipo podem ter causado a extinção de outras es-

pécies, nos milhões de anos que antecederam aos dinossauros, ou

que se seguiram a eles. Hoje se sabe que grandes desastres naturais

ou cataclismos terrestres, como erupções vulcânicas, glaciações, ter-

remotos, maremotos, tsunamis, enchentes e mudanças químicas nas

águas e no ar, assim como pandemias causadas por germes, foram

responsáveis por extinções de muitas espécies de seres vivos.

Porém, espantoso não é o fato de haverem ocorrido tais extinções.

Tão ou mais espantoso, no caso da hipótese de Alvarez, é o fato de

metade dos animais e plantas marinhas, e a maioria das plantas ter-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 23

restres, haverem sobrevivido a tal impacto e se adaptado ao novo

ambiente resultante de vários anos de ausência de luz e calor solar.

Valeria a pena, sobretudo, estudar como sobreviveram alguns des-

cendentes diretos dos dinossauros pretensamente extintos pelo me-

teoro, como as aves, cujo precursor mais evidente parece haver sido

o Archaeopterix.

Assim, o realmente espantoso é que, apesar dos inúmeros desastres

naturais, modificações químicas radicais ou disseminação mortífera de

germes, ocorridos ao longo de mais de 4 bilhões de anos de vida sobre a

Terra, as espécies vivas tenham continuado seu processo de evolução e

seleção natural. Portanto, tão importante quanto o conhecimento do

que causou a extinção de espécies inteiras, é o conhecimento do que

permitiu que inúmeras delas sobrevivessem e evoluíssem.

A paleontologia tem dado passos enormes nessas descobertas,

mas ela é uma ciência muito nova. Nasceu da geologia, no século 19,

em grande medida como bifurcação dos estudos que levaram os

geólogos, durante suas escavações, a tropeçarem em dentes e ossos

de animais gigantescos, tanto carnívoros, quanto herbívoros, pro-

venientes de diferentes eras geológicas. Estes períodos guardam não

apenas as camadas das diferentes rochas terrenas, cada uma conta-

da por milhões e bilhões de anos, mas também fósseis de vertebra-

dos e outros materiais orgânicos de cada período.

Em meados dos anos 1800, a maioria dos geólogos calculava em

cem milhões de anos a duração, quase incomensurável, exigida pelo

depósito das camadas de origem sedimentária. Nessa mesma épo-

ca, o zoólogo Ernest Haeckel (1834-1919) considerava que os arqui-

vos paleontológicos de então apresentavam lacunas imensas. As prin-

cipais encontravam-se entre as eras Terciária (60 milhões a 600 mil

anos atrás) e Quaternária (600 mil anos atrás até hoje), onde deve-

24 Wladimir Pomar

riam estar os restos fósseis que permitiriam descobrir a série ances-

tral dos mamíferos, dos quais os homens descendem.

Ele também se lamentava dos vestígios pouco abundantes dos

mamíferos no Mesozóico (200 milhões a 60 milhões de anos atrás).

Mas reconhecia que a anatomia comparada e o estudo da origem

dos fósseis comprovavam a história da evolução zoológica dos

placentários. Isto é, dos mamíferos cujos fetos são envolvidos por

placentas, ou órgãos localizados no útero das fêmeas, responsáveis

pela comunicação entre a mãe e o embrião, através do cordão umbi-

lical, durante toda a gestação.

Os placentários surgiram no período Cretáceo, entre 140 milhões

a 60 milhões de anos atrás, como bifurcação evolutiva dos marsupi-

ais. Estes mamíferos também possuíam placentas, mas o feto mi-

grava para uma bolsa, ou marsúpio, sustentado por um osso à frente

da bacia, onde se encontrava uma teta mamária. O embrião perma-

necia nessa bolsa até completar a gestação do animal completo. Al-

guns descendentes dos marsupiais do Jurássico, que viveram entre

175 a 140 milhões de anos atrás, ainda continuam presentes entre

nós, como os cangurus, gambás e cangambás.

Os marsupiais, por seu turno, resultaram da evolução dos

monotrêmatos ou monotremos, que viveram na era do Triássico,

entre 200 milhões a 175 milhões de anos atrás. Eram mamíferos

cujas fêmeas tinham dois úteros, que produziam e punham ovos atra-

vés da cloaca. Suas glândulas mamárias não possuíam mamilos, o

que obrigava os filhotes a lamberem o leite que escorria nos pelos. O

sistema térmico e numerosas características do esqueleto apontam

para a possibilidade desses mamíferos descenderem de répteis. O

ornitorrinco, encontrado ainda hoje na Austrália, Tasmânia e Nova

Guiné, é um sobrevivente dessa ordem animal.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 25

Em outras palavras, mesmo antes de Darwin dar à luz sua teoria

de seleção natural, a realidade da evolução já se fazia presente na

mente de muitos cientistas do período. Isto tudo apesar de George

Cuvier (1769-1832), que desenvolvera o importante instrumento da

morfologia comparativa e fundara a paleontologia, acreditar na hi-

pótese bíblica de que os fósseis de dinossauros eram apenas restos

de criaturas que haviam perdido o embarque na Arca de Noé.

Portanto, não é novidade que a extinção dos dinossauros seja cre-

ditada a algum tipo de cataclismo. Nesse sentido, os documentaristas

do meteoro caído no Yucatan, há cerca de 65 milhões de anos, ape-

nas mudaram o dilúvio por um outro objeto vindo do espaço. Uns e

outros acreditam que as extinções ocorreram apenas em virtude de

cataclismos terrestres ou espaciais. Eles desdenham os problemas

internos, relacionados com a própria evolução e desenvolvimento

das espécies, que levaram muitas à extinção, mas também permiti-

ram a muitas outras sobreviver e transformar-se.

De qualquer modo, movida ou não pelo charme da síndrome dos

dinossauros, a paleontologia aponta para o fato dos dinossauros

haverem surgido e se desenvolvido num período histórico em que

os continentes pareciam estar todos agrupados numa única massa

territorial. Aos poucos, ela também está chegando à conclusão de

que, numa época terrestre de grande abundância vegetal e animal, e

durante um período de dezenas e centenas de milhões de anos, hou-

ve um constante processo de crescimento físico de algumas espéci-

es, com mudanças genéticas que as levaram a transformar-se em

espécies cada vez maiores, até chegarem aos sáurios enormes, como

o Tyranossaurus rex e o Saurópode.

Essas descobertas também indicam a existência, no mesmo perí-

odo, de dinossauros pequenos, parecidos a ratos, assim como a pre-

26 Wladimir Pomar

sença de espécies de insetos, anfíbios e mamíferos. Algumas das des-

cobertas apontam para a existência de animais em transição, como

parece ser o caso do Archaeopterix e do Ornitorrinco. Em outras pa-

lavras, o processo de mudanças no ambiente natural, incluindo a co-

operação e a concorrência entre espécies e dentro de cada espécie, e a

proliferação das próprias espécies, desencadeava mutações nos seus

organismos, para adaptar-se aos novos ambientes.

Nesse processo de mutação, entre 170 e 65 milhões de anos atrás,

certas espécies de seres vivos, presentes nos períodos anteriores,

haviam sido extintas, por incapacidade de adaptação ao novo am-

biente. Algumas outras, modificadas de forma insuficiente, estavam

em processo de extinção. Havia as que estavam totalmente adapta-

das ao ambiente de abundância e concorrência, como os dinossauros

gigantes. E havia ainda, provavelmente como os mamíferos, as que

se mantinham em dificuldade de sobrevivência nesse ambiente, que

era altamente predatório.

Bem vistas as coisas, durante os 100 milhões de anos de vida dos

dinossauros, continuou a ocorrer um processo natural ininterrupto

de bifurcações, ou ramificações, com a destruição ou extinção de

antigas espécies e surgimento de novas. Hoje há pouca dúvida de

que várias das grandes extinções de espécies no passado ocorreram

sem a ajuda de qualquer meteoro ou cataclismo terrestre. Muitas

espécies desapareceram simplesmente pelo processo constante de

mutações internas e no meio ambiente, sem deixar qualquer des-

cendência. Muitas outras desapareceram ao transformar-se em no-

vas espécies. Então, as questões relevantes são: por que e como isso

tem ocorrido?

Os dinossauros, assim como as diferentes espécies animais e ve-

getais, tiveram uma história evolucionista. Os que se transforma-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 27

ram em grandes (grandes mesmo!), talvez tenham sido extintos por

seu próprio desenvolvimento incontrolado, numa era em que o an-

tigo ambiente terreno de abundância exuberante da vida vegetal e

animal, que lhes permitiu tal crescimento, se transformou num novo

ambiente de escassez.

Essas modificações no ambiente terrestre podem ter sido causa-

das por grandes secas, emergência de desertos, fortes mudanças cli-

máticas, em combinação ou não com glaciações, erupções vulcâni-

cas, queda de meteoros ou explosões solares. Ou mesmo pela ação

predatória animal descontrolada. No caso de algum cataclismo, re-

sultante da queda de um meteoro, aquelas espécies já em processo

de extinção, sofreram um fim com maior rapidez. O evento externo

apenas apressou um desenlace já em curso.

O problema das espécies de grandes dinossauros talvez tenha

consistido em que elas foram incapazes de adaptar-se ao novo am-

biente, conformado aos 65 milhões de anos atrás, ao contrário de

outras espécies de répteis, mamíferos e insetos, que deram conti-

nuidade à sua classe ou ordem, ao transformar-se em novas espéci-

es, ou em novas classes, como parece ser o caso dos sáurios que de-

ram surgimento às aves, aos crocodilos e jacarés, e aos marsupiais e

ornitorrincos. Elas sobreviveram ao primeiro minuto do ano 64 mi-

lhões atrás, continuando seu processo evolutivo, ramificando-se em

mudanças sucessivas de extinções e criações.

Como essas questões não parecem ter apelo de marketing, a exem-

plo das catástrofes cósmicas e dos grandes sáurios (apesar destes

nem sempre serem simpáticos), somos obrigados a conviver com a

síndrome dos dinossauros. Em certa medida, ela é apenas a síndrome

da evolução da própria humanidade. O homo sapiens surgiu de um

longo processo de evolução dos vertebrados e dos primatas, embora

28 Wladimir Pomar

não tão longo quanto o dos dinossauros. E, em algum momento do

futuro, deve bifurcar-se, extinguindo-se e, na melhor das hipóteses,

dando lugar a outra espécie, embora esta afirmação sofra restrições até

de biólogos partidários de Darwin. Esta datação do processo evolutivo,

não apenas das espécies vivas, mas da natureza em geral, deixa muitos

historiadores e cientistas inconformados. Que se há de fazer?

Na pior das hipóteses, como aconteceu a várias outras espécies,

os homens podem simplesmente liquidar as condições de sua pró-

pria existência e extinguir-se, seja naturalmente, seja com o auxílio

de algum grande cataclismo. Eles certamente deixarão muitos ras-

tros sobre a Terra, que deve prosseguir em sua evolução e desenvol-

vimento ainda por alguns milhões ou bilhões de anos. Muitas das

formas hoje viventes poderão ser extintas, juntamente com a espé-

cie humana, enquanto outras continuarão seu processo de bifurca-

ção ou ramificação, sendo em parte destruídas e, em parte, criando

novas formas viventes.

Portanto, extinções continuarão a ocorrer, com a participação ou

independentemente da queda de algum meteoro enorme, erupção

de um super-vulcão, conjugação de inúmeros terremotos e maremo-

tos, formação de tsunamis gigantes, novas glaciações, ou epidemias e

pandemias. Ou, ainda, pela ação de algum artefato destrutivo criado

pelo próprio homem. Esses desastres naturais e, agora, também arti-

ficiais, poderão se fazer presentes na existência terrena, em alguns ou

vários momentos, porque eles têm sido intrínsecos às mudanças que

marcaram a história natural desde bilhões de anos atrás.

As inúmeras previsões sobre catástrofes terrestres e siderais, que

há muito fazem o imaginário humano perder o sono e ter pesadelos

e, agora, inundam televisões e revistas especializadas, apenas am-

plificam, consciente ou inconscientemente, o fato de que a natureza

Volume 1: Sinfonia desencontrada 29

tem história. Os homens ainda não conseguiram medir a regulari-

dade e o período de existência de muitos dos eventos históricos da

natureza, a exemplo das mudanças climáticas, das mudanças no

campo magnético terrestre e das transformações de vários tipos de

átomos e partículas. Mas o avanço das ciências indica que, algum

dia, eles podem chegar lá.

Isso acontece, em parte, porque o tempo de existência do conhe-

cimento humano ainda é infinitésimo em relação ao tempo de exis-

tência do próprio homem, da Terra e do universo. Em parte, tam-

bém, porque apesar dos avanços científicos e da transformação da

ciência, de instrumento de conhecimento, em uma das principais

forças produtivas humanas, ainda estamos tateando às cegas o inte-

rior da crosta da Terra, a atmosfera, o universo, o mundo microscó-

pico e a própria sociedade humana.

De qualquer modo, devo agradecer à síndrome dos dinossauros.

Fui confrontado com esses espécimes gigantes, e com sua história

de mais de 100 milhões de anos, como contraponto à idéia de que a

história seria apenas a história dos homens no tempo. Portanto, co-

mecei querendo estudar bem menos do que 500 anos de história, e

estou sendo levado a fazer uma viagem bem mais longa ao passado,

na tentativa de entender a história do tempo e da mudança.

Porém, antes de seguir adiante, é conveniente repassar, mesmo

sumariamente, o que a humanidade criou a respeito da história.

Navegar por suas origens e desvios. Conhecer os argumentos que a

consideram imutável. E, também, os daqueles que, dialeticamente,

vêem a história como algo em constante movimento e mutação.

30 Wladimir Pomar

Qualquer sumário que se queira fazer das concepções sobre a his-

tória se confrontará, inevitavelmente, com um mosaico estraçalhado,

independentemente do ângulo utilizado para analisá-las. É possível

encontrar uma certa unidade na antiguidade grega e chinesa, quan-

do a história era a narração dos fatos correntes, sem grandes preo-

cupações com possíveis clivagens entre natureza e humanidade, ou

dentro desta.

Porém, à medida que a civilização humana avançou em sua espi-

ral ascendente e foi tomando consciência de seu progressivo, embo-

ra hipotético, domínio sobre a natureza, assim como creditando tal

domínio à Providência Divina ou ao Mandato Celestial, as correntes

sobre a explicação da história multiplicaram-se.

Em geral, a teoria histórica se reporta aos gregos antigos, pelo

menos no lado ocidental do planeta, como os primeiros que tenta-

ram investigar os fatos, os acontecimentos em curso, e explicá-los.

Para eles, a istoria significava não só o fato, o acontecimento, mas

também a investigação, ou a pesquisa sobre eles. Hesíodo (século 8

a.c.), em O Trabalho e os Dias, fez um relato circunstanciado das

formas de trabalho, das técnicas agrícolas e dos costumes de sua

época, como base do relato histórico.

Heródoto (484-425 a.c.), por sua vez, deixou isso de lado e pre-

tendeu extrair da história as lições, ou a verdade, que fossem úteis

às gerações presentes e futuras. Ele não queria que o tempo apagas-

Origem e desvios

Volume 1: Sinfonia desencontrada 31

se os feitos heróicos dos homens. Para Heródoto, sem narrar a his-

tória dos acontecimentos, as grandes façanhas dos gregos e dos bár-

baros cairiam no esquecimento. Portanto, ele não tinha o tempo

como história, mas como um possível apagador das grandes ações

humanas do presente vivido.

Tucídides (471-400 a.c.) sucedeu Heródoto, com a pretensão de

ser testemunha ocular dos acontecimentos e relatá-los, após a críti-

ca das informações colhidas. Ele foi, talvez, um dos primeiros repór-

teres de guerra da história ocidental, que se punha a trabalhar, como

disse, desde os primeiros sintomas dos conflitos. Tanto quanto

Heródoto, ele não considerava o tempo como história, do mesmo modo

que tinha esta como assunto exclusivo dos homens. A honra, ambi-

ções, avidez, heroísmo, violência, prudência, hipocrisia e paixões, que

se encarnavam na política, seriam os fatores que transformavam os

acontecimentos em matéria histórica. Desse modo, coisa tão banal

como a produção dos meios de vida dos homens não poderia fazer

parte dos fatores passíveis de transformar-se em matéria histórica.

Tucídides chegou a narrar o diálogo forte, entre atenienses e

mélios, os primeiros pretendendo convencer os segundos a se entre-

garem sem combate e aceitar a escravidão. Mas, não explicou que

tal escravidão estava relacionada à produção da vida material dos

homens livres de então. E que garantir essa produção era o interesse

real que colocava em movimento os combatentes. Desse modo, as

guerras pareciam apenas decorrência das paixões humanas. No en-

tanto, tinham raízes profundas na agricultura, no artesanato e em

outras atividades produtores dos bens que, na ocasião, satisfaziam

as necessidades dos homens.

Tucidides não podia ir tão fundo. Apesar de sua perspicácia, não

fazia parte de seu imaginário considerar as formas empregadas para

32 Wladimir Pomar

a produção dos alimentos, vestuários, armas, carros e outros utensí-

lios indispensáveis à vida humana, porque eram assuntos privativos

dos escravos, E escravos, naquela época, haviam sido despojados de

honra, ambições e outras peculiaridades humanas. Não eram tidos

como seres humanos, mas como bestas falantes. Portanto, não po-

deriam fazer parte da narrativa histórica.

Xenofonte (430-354 a.c.) também se limitou a narrar a campa-

nha do persa Ciro contra os gregos e a retirada destes. Os romanos,

depois dos gregos, também falavam em seus anais de fatos e aconte-

cimentos, como fatos e acontecimentos em curso. Políbio (200-120

a.c.), de origem macedônica, mas obrigado a viver em Roma, desde

168 a.c., como prisioneiro de guerra, dedicou-se a estudar a trans-

formação dos romanos em senhores do mundo. Em sua obra As His-

tórias, defendeu a idéia de que a história deveria fornecer os ele-

mentos de explicação dos fenômenos observados, tornando-se um

instrumento pragmático de ensino. Porém, mesmo mantendo-se fiel

à história dos fatos correntes, ele introduziu em sua narração uma

relação de causa e efeito e de repetição histórica.

Haveria causas gerais e particulares, mas delas deveriam ser ex-

cluídos os fenômenos de ordem física ou natural. Talvez por isso,

embora tenha percebido que os organismos vivos atravessavam, ine-

vitavelmente, os estados de crescimento, maturidade e declínio,

Políbio tenha se negado a considerar esse processo como algo históri-

co. Vida e morte fariam parte apenas da ordem física ou natural. E, do

mesmo modo que Heródoto e Tucídides, ele desconsiderou a produ-

ção dos meios de vida, coisa de escravos, como parte da história.

No oriente, os historiadores da civilização chinesa seguiam pas-

sos idênticos a seus desconhecidos congêneres ocidentais. O Duque

de Zhou (841-780 a.c.), tendo por base documentos literários e his-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 33

tóricos escritos nos séculos anteriores, sintetizou os ensinamentos

morais e administrativos de conduzir-se e de conduzir o Estado, a

partir do conhecimento das causas que os levavam ao sucesso ou ao

declínio. Para ele, a história era como um espelho ou uma lição para

os condutores de homens. E homens eram apenas os seres livres.

Confúcio ou Kong Qiu (551-479 a.c.) seguiu o mesmo caminho.

Em seus Anais de Primavera e Outono, cobriu a história do Estado

de Lu, entre 722 e 481 a.c. Nessa obra, destacou as relações entre

homem e natureza, homem e sociedade, homem, família e Estado,

relatando os acontecimentos políticos e militares do período. Mas,

da categoria homem não faziam parte os escravos, nem o que eles

produziam, embora sem eles a sociedade, a família e o Estado su-

cumbissem.

Sun Wu ou Sun Zi (535-? a.c.), mais do que o grego Tucídides,

especializou-se na história dos acontecimentos militares como base

para sistematizar aquilo que chamou arte da guerra. As experiên-

cias históricas, positivas e negativas, de guerras, batalhas, comba-

tes, escaramuças, truques, boatos e espionagem, vividas por ele e

por outros comandantes, foram analisados e transformados em en-

sinamentos para as gerações seguintes de reis e estrategistas. Ensi-

namentos que, ainda hoje, são estudados nas mais prestigiadas aca-

demias militares e de formação de empresários de todo o mundo.

Sima Qian (145-90 a.c.) viveu durante a dinastia Han do Oeste.

Apegado à história como história humana, em seus Relatos Históri-

cos descreveu as figuras que compunham a sociedade daquele perí-

odo. Incluiu reis, nobres, burocratas, letrados, mercadores, cavalei-

ros e pessoas do baixo escalão social, assim como a moralidade polí-

tica, as intempéries, o controle do meio ambiente, o cultivo do solo,

as colheitas e a invenção de ferramentas e instrumentos. Mas só se

34 Wladimir Pomar

referiu aos escravos porque as rebeliões e os conflitos gerados por

eles rebatiam negativamente sobre aqueles que considerava figuras

humanas e suas realizações.

Algo idêntico ocorreu com Tito Lívio (59 a.c.-17 d.c.), considera-

do o maior historiador da antiguidade romana. Ele trouxe à luz as

inquietações e as desordens de seu tempo. Isto é, de declínio do Im-

pério Romano. Depois dele, Cornélio Tácito (56-112) concebeu a his-

tória como um gênero baseado na arte da expressão. A história seria

distinta por estar a serviço da verdade, através da análise das causas

e efeitos dos acontecimentos. Ele também descreveu com vivacida-

de o modo de vida dos bárbaros, em especial dos germanos, sobre

os quais o império romano havia se imposto.

Tanto Tito Lívio, quanto Tácito, não creditavam aos escravos qual-

quer papel na história. Porém, ambos acabaram por introduzi-los

em seus relatos, da mesma forma como já haviam incluído os povos

dominados por Roma, em virtude de seus distúrbios e rebeliões, que

consideravam desvios no curso da história.

Para empreender a narrativa histórica, os historiadores da anti-

guidade, tanto ocidentais quanto orientais, utilizaram-se tanto do

instrumento de ver diretamente os acontecimentos, ou ouvir a ver-

são dos que haviam participado deles, quanto de referenciar-se em

documentos escritos. E todos eles já discutiam os possíveis enganos

a que poderiam ser levados por visões incompletas e versões distor-

cidas ou mesmo falseadas. Tinham em conta, particularmente, a

presença do gênero literário, como os anais e as epopéias, que de-

ram renome ao grego Homero e davam mais atenção aos mitos e

paixões, que à verdade dos fatos.

De qualquer modo, este tipo de história contemporânea surgiu

do gênero literário e do gênero de registros factuais. Hesíodo,

Volume 1: Sinfonia desencontrada 35

Heródoto e Xenofonte, na Grécia, assim como seus congêneres chi-

neses, iniciaram esses gêneros, que se mantêm vivos ainda hoje. Paul

Veyne (1970), por exemplo, afirma que a história é um relato dos

acontecimentos, todo o resto decorrendo disso. No mesmo rumo vai

Lawrence Stone (1980), que se opõe às investigações históricas que

chama de estruturais e cientificistas, como a marxista e a ecológico-

demográfica, e defende uma história narrativa, tendo o homem como

primeiro objeto.

Embora algumas correntes modernas da história dos fatos cor-

rentes admitam que a história teve uma existência temporal no pas-

sado, outras supõem que a história é apenas uma sucessão de fatos

numa existência geral fixa. Aristóteles (384-322 a.c.), por exemplo,

apesar de toda sua erudição, supunha que o tempo era imutável,

uniforme e simultâneo, o mesmo por toda parte. A história, portan-

to, não fazia nem fez parte de suas preocupações.

Essa concepção de imutabilidade histórica se acentuou durante a

Idade Média européia, que se estendeu dos anos 300 aos anos 1450.

A explanação histórica tornou-se progressivamente um gênero me-

nor, a serviço da teologia. Para esta, a Providência Divina criara a

Terra e todos as coisas e seres, mantendo-os da mesma forma para

todo o sempre. A história, portanto, deveria dedicar-se exclusiva-

mente à missão de contar os desígnios de Deus. A verdade histórica,

desse modo, era ditada pela autoridade política, religiosa ou secu-

lar, que estivesse a serviço da Providência Divina.

Algo idêntico ocorreu na Idade Média chinesa, que se estendeu

dos anos 220 a.c. aos anos 1900. Seus historiadores dedicaram-se

principalmente a escrever crônicas e compilações sobre as regiões e

localidades dos sucessivos Impérios, pesquisando nos documentos

anteriores os elementos necessários para o desenvolvimento e a so-

36 Wladimir Pomar

brevivência das dinastias. Sima Guang (1019-1086), da fase final da

dinastia Song, acreditava que a chave dessa sobrevivência histórica

residia no espírito moral da benevolência (Ren), retidão (Yi), corte-

sia (Li), inteligência (Zhi) e veracidade (Xin).

No período do expansionismo europeu das Cruzadas (1096-1270),

surgiram cronistas, como Villehardouin e Joinville, que exaltavam a

honra, a lealdade e o cavalheirismo dos reis e seus cavaleiros, ao

narrar os combates que, a serviço de Deus, eles travavam contra os

infiéis. As pretensões territoriais e a abertura de rotas comerciais

para o oriente, que faziam parte dos interesses de boa parte dos que

financiaram e participaram das Cruzadas, não foi tema da história

desses cronistas.

Eles sequer se deram conta de que esses interesses influenciaram

fortemente a história real, fazendo com que as Cruzadas contribuís-

sem para a abertura de novas rotas de comércio e contatos com o

oriente médio e extremo. E que levassem à descoberta de documen-

tos e realizações, tanto dos antigos mundos grego e romano, quanto

dos muçulmanos, que combatiam, e dos povos orientais, que em geral

desconheciam.

Numa das ironias de que é pródiga a história real, a Igreja cristã

viu-se constrangida a preservar de olhos ímpios, por alguns séculos,

os documentos descobertos, que traziam à luz, no velho mundo me-

dieval, o sempre jovem mundo grego. E mais tarde, já no final da

Idade Média, acabou por se tornar a agente da universalização da

história, ao dar conhecimento das inquietações e abordagens geni-

ais da filosofia grega sobre o mundo e os homens.

Mesmo então, porém, os cronistas medievais ainda procuravam

exaltar as façanhas, reais ou imaginárias, da nobreza em decadên-

cia. Esta, já vivendo num novo tempo de ebulições sociais, políticas

Volume 1: Sinfonia desencontrada 37

e militares, e de descobertas e invenções nos sistemas produtivos,

procurava manter sua posição social privilegiada, através de ver-

sões fantasiosas de seu papel e de seus feitos. E excluía os burgueses

e os camponeses das histórias de suas campanhas militares, embora

fosse cada vez mais obrigada a levá-los em conta. Afinal, essas clas-

ses subalternas eram o grosso de seus exércitos. E, em geral, seus

motins tinham os nobres como alvo principal, na prática negando a

história que os cronistas destes narravam.

Talvez como reação a tudo isso René Descartes (1596-1650) te-

nha desprezado a história como um dos ramos do saber. Mas essa

era uma época em que a suposição de espaços, tempo e história es-

táticas ou imutáveis, estava profundamente enraizada, mesmo na

mente de muitos dos homens que revolucionaram o conhecimento

a partir dos anos 1400 e 1500. A começar por Nicolau Copérnico

(1473-1543), que desfechou um golpe mortal na visão religiosa da

Terra como centro do universo, ao situar o Sol como ponto central

de sua teoria planetária. Apesar de haver imprimido rotação e mo-

vimentos circulares aos planetas, Copérnico permaneceu fiel à idéia

da fixidez do Sol.

Johannes Kepler (1571-1630) sofreu horrores diante das crenças

religiosas de seu tempo, que também eram as suas. Primeiro, quando

concluiu que a teoria de Copérnico concordava com as medições que

fizera das órbitas dos planetas e que era a Terra, assim como os de-

mais planetas conhecidos, que giravam em torno do Sol. Bem que

tentou argumentar que isso, muito mais do que estava escrito nos

livros sagrados, demonstrava toda a sapiência e beleza da obra de Deus.

Tão terrível quanto sua comprovação da teoria de Copérnico foi a

descoberta de que tal teoria, embora tivesse causado uma revolução

no conhecimento do sistema planetário, estava tão errada quanto as

38 Wladimir Pomar

escrituras religiosas em relação à forma geométrica das órbitas pla-

netárias. Elas não eram formadas por círculos, tidos como a forma

geométrica perfeita criada por Deus. Eram elipses que tinham o Sol

como fulcro. Kepler tentou, mais uma vez, argumentar que as for-

mas elípticas eram uma criação divina muito mais bela. Mas isto

também não convenceu os sacerdotes, nem o livrou de perseguições

e de ver sua mãe acusada de bruxaria.

Foi preciso esperar outros dois séculos para que a teoria das órbi-

tas elípticas fosse aceita em concordância com a realidade. Nesse

meio tempo, Giordano Bruno (1548-1600) foi queimado na foguei-

ra por defender a extensão da teoria de Copérnico a todo o universo.

Galileu Galilei (1564-1642), por sua vez, embora tendo boas rela-

ções com o próprio Papa, foi excomungado por defender a idéia de

que a Terra tinha um movimento de rotação.

Isaac Newton (1642-1727) viveu num novo momento histórico e

pode partir das premissas de Kepler, Laplace e Galileu, quanto ao

sistema planetário e ao movimento dos corpos celestes, para elabo-

rar sua teoria de gravitação. Mas desconsiderou o tempo, tomando-

o como uma criação divina absoluta. Voltaire (1694-1778), por sua

vez, apesar de haver liquidado a história teológica de Jacques Bossuet

(1627-1704), introduzindo a secularização da história e da evolução,

e haver ajudado, juntamente com Descartes, a emancipar a história

da tutela da teologia, também considerava o homem e a natureza

imutáveis. Ou seja, negava a essência de seus próprios argumentos.

Apesar da força demonstrada pelas idéias de imutabilidade, imo-

bilidade, estática e eternidade, elas começaram a ter seus alicerces

abalados a partir das descobertas marítimas e arqueológicas, da in-

venção de novos instrumentos de pesquisa e de produção, da recu-

peração dos textos clássicos gregos e da expansão do comércio. Es-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 39

sas mudanças, perceptíveis na história contemporânea européia

desde meados dos anos 1400, deram surgimento a novas correntes

de pensamento, que introduziram dúvidas nas concepções de um

tempo eternamente fixo, ao mesmo tempo em que acentuaram a

cisão entre literatura e história.

Jean Bodin (1530-1596) iniciou o rompimento com a supremacia

da teologia na história, introduzindo, além da forma divina, que tra-

taria da ordem e da fé, a forma natural e a forma humana. A forma

natural se ocuparia das causas secretas da natureza e se prenderia à

ordem das necessidades. A forma humana explicaria as ações do ho-

mem vivendo em sociedade. A história humana decorreria principal-

mente da vontade dos homens, que nunca seria semelhante a si mes-

ma e da qual jamais se poderia entrever o término, já que as ações

humanas não cessariam de conduzir permanentemente a erros.

Apesar desse pessimismo, Bodin não concordava com a filosofia

cristã da história, que acentuava a decadência progressiva da hu-

manidade. Comungando com o otimismo de seu tempo, ele introdu-

ziu a influência do clima na evolução das sociedades e citou as mo-

dernas descobertas do Novo Mundo, a expansão do comércio e o

aparecimento de inventos, a exemplo da bússola, metalurgia e im-

prensa, como demonstração do progresso humano. Concluiu, daí,

que o motor da história seria o instinto de sobrevivência dos ho-

mens, que os levaria ao desejo de adquirir riquezas e civilização.

Nivelou, assim, interesses materiais e espirituais ao instinto de so-

brevivência, teoria que ainda hoje se mantém em vários círculos aca-

dêmicos.

Logo depois, Jean Mabillon (1632-1707) se associou às preocu-

pações quanto ao estudo da escrita e dos suportes materiais dos do-

cumentos, tomando-os como a verdadeira fonte da história, enquanto

40 Wladimir Pomar

Alexandre de La Popelinière (1693-1762) assegurava que a essência

da história consistia em conhecer os motivos e verdadeiras ocasiões

dos fatos e acontecimentos humanos. Isto deu surgimento à

paleografia, isto é, ao exame minucioso dos documentos antigos para

verificar sua veracidade ou falsificação, que levou a descobertas

desconcertantes. Muitos documentos emitidos por reis, nobres e

religiosos não passavam de falsificações. A busca da verdade docu-

mental como a primeira regra da pesquisa histórica tomou vulto.

Naquele momento, não se podia prever que a história da nature-

za e a história do homem estavam prestes a mostrar a existência de

outros tipos de documentos, além dos escritos, a exemplo das ferra-

mentas fabricadas pelos hominídeos, a partir do paleolítico e do

neolítico, e dos restos fósseis. Mas deram uma contribuição impor-

tante ao estudo da história ao chamar a atenção para a necessidade

de distinguir a verdade da falsificação, ou do erro, no processo de

pesquisa.

Na China da dinastia Qing (1644-1911), quando esta ainda consi-

derava seu império o centro do mundo, os historiadores dedicaram

seus estudos às relações entre os fenômenos astronômicos, as con-

dições geográficas e a vida social e política. Nessa busca, muitos res-

valaram para os antigos mitos da comunicação entre o Céu ou Man-

dato Celestial, e o homem, enquanto outros adotaram a idéia da exis-

tência de relações entre o ambiente natural e a vida social. Mas, como

no ocidente, a conclusão principal foi que a história da natureza era

absolutamente distinta da história da humanidade.

Para Wang Fuzhi (1619-1692) o valor da história residia em seus

serviços como mestre para a posteridade. Neste sentido, um histori-

ador que relatasse muitos eventos em detalhe, mas negligenciasse

os eventos importantes, que poderiam servir como lição às gerações

Volume 1: Sinfonia desencontrada 41

seguintes, seria de valor histórico insignificante. Desse modo, a re-

lação entre natureza e humanidade se diluía na necessidade de ex-

trair noções morais da história de cada geração humana.

A história da natureza possuiria suas próprias leis de desenvolvi-

mento. Por outro lado, os fenômenos astronômicos ou geográficos

não teriam, necessariamente, influência sobre o desenvolvimento

das sociedades humanas. E, no embalo do quase completo

autarquismo feudal da dinastia manchú, o filósofo Zhang Xuechang

(1738-1801) pensava que os fatos anotados na historiografia não po-

deriam ser mais do que episódios como as biografias dos soberanos,

incluindo aí seus deuses e seus mitos.

A essa altura dos séculos 17 e 18, os estudos e discussões sobre a

relação histórica entre natureza e humanidade haviam explodido

na Europa. Gottfried Leibnitz (1646-1716) considerava a história no

contexto do processo genético e de continuidade da sociedade hu-

mana, sugerindo haverem três modos de sua exposição: o narrativo,

o pragmático e o genético. Enquanto isso, como já se viu, Descartes

negava à história lugar nos ramos do saber. Já para Giambaptista

Vico (1668-1744), em oposição a Descartes, a história seria a forma

pela qual os homens conheceriam a si mesmos.

O mundo ocidental, para Vico, teria surgido e se consolidado sob

o dualismo homem-natureza. Tal dualismo teria levado a ciência

social a transformar-se na filosofia da autoridade e esta, por sua vez,

levara ao conhecimento da gênese do pensamento bárbaro, peculiar

aos primeiros homens. Aí estaria a origem da complexidade históri-

ca e das fábulas, que criaram o mundo civil. Isto, diferentemente da

representação da natureza, que a Física e a Mecânica cartesianas

explicavam unicamente sob uma forma plana, segundo a ordem e a

medida de tudo aquilo que era matéria e movimento.

42 Wladimir Pomar

Mas Vico recusou-se a pensar a história profana separada da his-

tória sagrada. Dedicou-se, então, a explorar a cultura de seu tempo,

concluindo que ela era multidimensional e instrumento de conheci-

mento da história, embora cada cultura só pudesse ser compreendi-

da em sua época singular. Ele também concluiu que a história não

evoluía como processo linear, mas em espiral, no quadro da Provi-

dência, aceitando a idéia de declínio e queda. Assim, embora nave-

gando no movimento dialético, Vico também vagou entre o idealis-

mo e o materialismo filosóficos.

Emanuel Kant (1724-1804), elaborou um conceito de história

universal segundo o método de uma teoria geral da natureza, guiada

pelo princípio mecânico. O universo teria surgido do caos de uma

nebulosa, e se desenvolvido num processo evolutivo e progressivo.

Com isso, desferiu um golpe não apenas nas idéias de uma natureza,

uma humanidade e uma história imutáveis, mas também naquelas

que separavam irremediavelmente homem e natureza.

Porém, contrariamente a Kant, J.G. Herder, (1744-1803), substi-

tuiu a história pragmática por uma história que seria um drama in-

terior da humanidade. Ele via o homem não como a soma de seus

atos, mas como a dinâmica de seu sentir. Na mesma linha de pensa-

mento, o inglês Walter Dilthey (1833-1911) e o italiano Benedetto

Croce (1866-1952) tomaram a história como o conhecimento do eter-

no presente e a história do espírito. Para Dilthey, entre o objeto da

história e o historiador haveria uma relação de vida. Nessas condi-

ções, a natureza não poderia fazer parte dessa relação.

Croce, por seu lado, queria livrar-se do materialismo vulgar das ci-

ências de seu tempo e afirmou que toda a história era história contem-

porânea. Ela reviveria na própria consciência a atividade passada. Para

ele, o que constituía a história era o ato de compreender e entender,

Volume 1: Sinfonia desencontrada 43

induzido pelas exigências da vida prática. Ainda de acordo com Croce,

as obras históricas de todos os tempos e de todos os povos teriam nas-

cido dessas exigências e das perplexidades que implicavam.

A ciência e a cultura histórica existiriam com o propósito de man-

ter e desenvolver a vida ativa e civilizada da sociedade humana. A

história seria, pois, obra do historiador, clara afirmação subjetiva. A

história seria a história do espírito. Croce, desse modo, também va-

gou entre o idealismo e o materialismo. Embora reconhecendo que

os homens faziam sua própria história, não levou em conta que eles

a faziam sob condições naturais e humanas já dadas, e não ao livre

arbítrio dos sujeitos contemporâneos.

O abismo cavado por Dilthey, Croce e outros, entre as ciências

naturais e as ciências do espírito, parece ter sido levado ao extremo

por H. Rickert (1836-1916), ao afirmar que a natureza e a história

seriam dois conceitos opostos, que se distinguiriam por seus objetos

e por seus métodos. Para Rickert, enquanto na natureza se conside-

rava um fato, um ser, ou um fenômeno, sem referência a valores, a

história estudava o fenômeno cultural na sua particularidade, na sua

individualidade. Ou seja, os determinantes da história seriam os

valores humanos, ou os fatores constituintes daquilo que se

convencionou chamar de cultura.

Em plena primeira metade do século 20, supostamente com base

numa tese de Georg Hegel (1770-1831), Alexandre Kojève defendeu o

fim da história em virtude do advento da ciência. Com isto, a história

pararia, desapareceria, emergindo uma pós-história, na qual o homem

estaria de pleno acordo com a natureza, perpetuando uma vida natu-

ral. A imutabilidade retornaria, assim, aparentemente sob os auspícios

de Hegel, o filósofo moderno que foi pioneiro em apresentar a histó-

ria como o próprio processo de mudança ou transformação.

44 Wladimir Pomar

Não muito depois disso, para Michel Foucault (1926-1984), a his-

tória do homem não poderia ser uma espécie de modulação, como

as que ocorriam nas mudanças das condições de vida, a exemplo de

clima, profundidade do solo, modos de cultura, exploração das ri-

quezas, ou nas transformações da economia e, por via de conseqüên-

cia, da sociedade e das instituições ou, ainda, na sucessão das formas

e usos da língua. O pensamento se formaria a partir do discurso e não

da prática social. O homem, simplesmente, não seria histórico.

Nessa mesma linha, nos anos 1990, Francis Fukuyama retomou

a tese do fim da história. Porém, não mais em virtude do advento da

ciência, mas em virtude da consolidação das ciências e tecnologias

como motores da vida moderna, assim como da vitória supostamente

definitiva do capitalismo sobre o socialismo.

Portanto, a crença de que se viveria uma eterna repetição e de

que as mudanças seriam uma simples aparência parece, ainda hoje,

permanecer como uma força invejável. Ela apresenta uma vitalida-

de que a torna um dos principais entraves a uma abordagem mais

consistente da história real.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 45

História e mudança

É verdade que o pensamento de um mundo imutável e estático

ainda apresenta uma vitalidade que não se pode subestimar. No

entanto, esse não é o pensamento único, nem agora, nem nos tem-

pos passados. Durante a antiguidade grega e chinesa, diversos pen-

sadores introduziram, cada um a seu modo, o conceito de mutação,

ou de mudança, em oposição à idéia da imutabilidade.

Na Grécia, o pensamento de que o movimento e as mudanças

eram os componentes essenciais do mundo surgiu antes das idéias

de um mundo imutável. Tales de Mileto (624-548 a.c.) procurou

demonstrar a ideia das mudanças a partir da comprovação de que a

água modificava constantemente seus estados físicos. Anaxímenes

de Mileto (610-550 a.c.) usava o ar como elemento mutável por ex-

celência. Tornava-se fogo ao esquentar, nuvem ao condensar-se, água

ao condensar-se ainda mais, e pedra ao atingir um grau ainda maior

de condensação. Heráclito (550-480 a.c.), por sua vez, ilustrava a

idéia de que tudo estava em mudança constante ao dizer que nunca

se mergulhava na mesma água de um rio.

Na China, ao contrário, a teoria do Mandato Celestial, segundo a

qual tudo se manteria em seu estado para todo o sempre, antecedeu

em cerca de mil anos a teoria das mutações (Yi ou Yi Jing). Esta

surgiu, por volta de 1200 a.c., em parte pelas dúvidas suscitadas com

as crises das dinastias Xia (2070-1600 a.c.) e Shang (1600-1046 a.c.),

as primeiras dinastias da história chinesa. E tomou vulto justamen-

te durante a decadência da dinastia Shang (1075-1046 a.c.).

46 Wladimir Pomar

Segundo a teoria das mutações, as mudanças seriam inerentes

aos fatos e fenômenos, inclusive históricos. Lao Zi, ou Lao Tsé (580-

500 a.c.), cujo nome verdadeiro parece ter sido Li Er, expressava

essa idéia com a afirmação de que nenhum regente de um estado

poderia estar para sempre em sua posição e isento de mudanças.

Para ele, no curso do tempo, colinas se transformariam em vales e

vales em colinas; um furacão nunca duraria uma manhã toda, nem

uma tempestade um dia todo. A história, desse modo, seria movi-

mento e mudança constantes.

Séculos depois, já no império romano, Marco Túlio Cícero (106-

43 a.c.), considerava a história como o testemunho dos séculos, a

luz da verdade, a vida da lembrança, a matriz da vida, a mensageira

da antiguidade. Com isso, distanciou-se dos anais de sua época, que

ficavam restritos aos acontecimentos do momento, e diferenciou-se

das epopéias, onde os mitos predominavam, preocupando-se com

as regras que podiam levar à verdade.

Estipulou que não se deveria afirmar nada falso, contrapondo ao

falso tudo que fosse verdadeiro, evitando qualquer parcialidade e

respeitando a cronologia. Porém, preso aos ditames de sua época,

em que os escravos e os povos tributários não faziam parte da hu-

manidade, Cícero ignorou as formas de produção da vida dos ho-

mens, e também não chegou a indicar como diferenciar o falso do

verdadeiro.

Caio Plínio, o Velho (23-79) se aventurou a escrever uma Histó-

ria Naturalis, reunindo os conhecimentos sobre a natureza, produ-

zidos até então. Foi uma exceção no mundo romano, cuja literatura

entrara em decadência e se contentava com o picaresco. Só 1600

anos depois, John Locke (1632-1704) voltou a atacar a idéia da imu-

tabilidade do ser humano, ao afirmar que apenas o prazer e a aver-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 47

são seriam inatas. Todo o resto da natureza humana teria sido ad-

quirido pela associação ou hábito no curso da história. Hoje, através

do surgimento e desenvolvimento das neurociências, se sabe que

também o prazer e a aversão são produtos históricos.

O Barão de Montesquieu (1689-1775), por sua vez, retomou a idéia

da história como uma imersão no tempo, a partir da qual se poderia

compreender a relação entre as dimensões espacial e temporal. A

história seria uma reflexão sobre o passado. Dela se extrairiam as

diferenças e semelhanças entre os homens e o tempo de seu leitor. A

lei histórica seria uma relação necessária entre termos variáveis, de

tal modo que cada diversidade fosse uniformidade e cada transfor-

mação fosse constância, imanentes aos fatos. Tratar-se-ia de um

conjunto de variáveis ligadas por um processo de comparação his-

tórica, que estabeleceria correlações e formulações de regras gerais.

A idéia de história, para Montesquieu, compreendia as questões

físicas, climáticas e geográficas, sendo mutável, submetida a leis di-

nâmicas e regulares, cujas mudanças conduziriam tanto a estados

de desequilíbrio, quanto de estabilidade. Ele não ligava sua idéia de

mudança àquela idéia de progresso entendido como uma mudança

para melhor. Dizia que onde mais detinha sua mente era diante das

enormes mudanças que fizeram as eras tão diferentes das eras, a

Terra tão dessemelhante de si mesma.

Jean Jacques Rousseau (1712-1789) acreditava que era somente

na espécie humana que as necessidades, os desejos e as faculdades

não se reconciliavam. Idealizando o mundo selvagem, supunha que

apenas entre os homens existiriam guerras, escravidão, assassina-

tos e suicídios. Não tinha conhecimento de quão árdua era a vida

dos animais não-humanos. Porém, ao contrário de grande parte dos

pensadores de sua época, que consideravam imutável a natureza

48 Wladimir Pomar

humana, Rousseau tinha consciência do caráter histórico do ser hu-

mano e da maleabilidade de sua natureza no curso do tempo.

Quanto a Hegel, já nos anos 1800, criticou, sobretudo, o pragma-

tismo histórico. Considerava que a reversão histórica não era possí-

vel. Não haveria um caso sequer que fosse completamente igual a

outro. Para ele, o problema residia em que os historiadores pragmá-

ticos, que haviam dominado a narração histórica até o século 19, só

procuravam saber o que havia ocorrido no passado em virtude do

que estava acontecendo no presente. Portanto, não tinham interes-

se em conhecer o que realmente havia ocorrido.

Se assistirmos hoje a qualquer programa televisivo sobre os acon-

tecimentos internacionais e nacionais, poderemos comprovar ao vivo

aquilo que Hegel chamava de pragmatismo histórico. A história ocor-

rida é sempre um pretexto de justificação do que está acontecendo

no momento. Em reação a tal pragmatismo, Hegel opôs sua história

filosófica. Isto é, a história das leis que regem os acontecimentos,

tendo por base as contradições.

Para ele, da mesma forma que para os dialéticos da antiguidade

grega, as contradições estariam presentes e ativas em todos os mo-

mentos históricos. Essas contradições dariam um caráter singular,

ou diferente, a cada um desses momentos históricos. E elas conteri-

am, dentro de si próprias, a condição de sua superação e de surgi-

mento de um novo momento histórico e, portanto, de novas contra-

dições. As contradições seriam o motor da história, porque a partir

delas teriam se originado os processos históricos.

Hegel assegurava que a Razão deixava, astuciosamente, que as

paixões agissem em seu lugar. Desse modo, através da ação das pai-

xões, a Razão podia chegar a ter existência e a experimentar as per-

das e a sofrer os danos das ações. Essa astúcia da Razão, por outro

Volume 1: Sinfonia desencontrada 49

lado, levava os homens a acreditarem que faziam sua própria histó-

ria, embora tal história se desenvolvesse às suas costas.

Hegel não se dava conta de que ocorria justamente o contrário.

Isto é, que a história se desenvolvia às costas dos homens porque eles

a faziam, sempre, nas condições herdadas das gerações anteriores e

das mudanças impostas pela natureza, levando a Razão a crer que os

enganava com a astúcia das paixões, quando era ela a enganada.

Apesar disso, Hegel tinha razão ao afirmar que não era no tempo

que tudo se produziria e passaria. O próprio tempo produziria o fu-

turo, negação do presente, gerando aniquilamento e criação. Embo-

ra ele considerasse o tempo uma abstração, que engendraria tudo e

destruiria tudo que criava, a afirmação de que a história desdobra-

ria seu processo segundo uma sucessão de épocas, cada uma consti-

tuindo uma totalidade e traduzindo uma plenitude do presente vivi-

do, representava uma inversão materialista em seu pensamento.

Bastava considerar as mudanças ou transformações como constitu-

intes do próprio tempo, num processo progressivo, em que o futuro,

bom ou ruim, seria a única perspectiva histórica, para retirar o tem-

po da abstração e colocá-lo na realidade.

Em contraposição a Hegel, Ranke (1795-1885) dissociou o estu-

do do passado das paixões do presente. Pretendeu narrar a história

como na realidade teria sido, estabelecendo a necessidade da cons-

trução histórica basear-se em fontes estritamente contemporâneas.

Juntamente com Niebuhr, procurou criar um método que deixasse

os historiadores do século 19 indiferentes às soluções e imposições,

tanto da dialética idealista de Hegel, quanto do determinismo de

Comte e do evolucionismo de Darwin. Desse modo, ao procurar li-

vrar-se das contradições, do movimento, dos acasos e das determi-

nações, resvalou numa história oca.

50 Wladimir Pomar

O positivismo determinista de A. Comte (1782-1837) reduzira a

história à descoberta e coleta dos fatos. No estudo de tais fatos seri-

am estabelecidas as relações de causa e efeito, e formuladas as leis

gerais do desenvolvimento humano. H. Taine (1828-1892), na es-

teira de Comte e na contramão de Herder e Ranke, aventurou-se a

tomar por base o desenvolvimento das ciências naturais e da mecâ-

nica, e deduzir daí que a história era um jogo das forças da raça, do

meio e do momento, cuja conexão resultaria na conformação de leis

históricas. Desse modo, o positivismo sempre vagou entre a dialéti-

ca e a metafísica, sem entender a profunda relação entre acaso e

determinação na história.

Quanto ao evolucionismo, ele já estava em curso com Christian

Wolf (1679-1754), Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) e outros zoó-

logos, desde o final do século 18. Portanto, bem antes de Charles

Darwin (1809-1892) e Alfred Wallace (1823-1913) fazerem suas des-

cobertas sobre a seleção natural das espécies e introduzirem uma

cunha dialética profunda na história biológica.

A comprovação de que as espécies evoluíam através de um pro-

cesso histórico de seleção natural deu uma base científica às teorias

evolucionistas e representou um golpe poderoso contra as ideias,

principalmente religiosas, de que a natureza era imutável e não ti-

nha história. Por outro lado, estabeleceu um forte elo entre a histó-

ria natural e a história humana, já que o homem provinha de algu-

ma linhagem de vertebrados ou, como afirmou Darwin, descendia

de algum tipo de macaco antropóide.

Fustel de Coulanges (1830-1889), por seu turno, ponderava que

a história era a ciência das sociedades humanas. O que lhe valeu

críticas dos que consideravam tal ideia uma redução da parte que

cabia ao indivíduo na história. J. Berckhardt (1818-1897) não acre-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 51

ditava na história como ciência. Considerando a cultura uma de suas

forças universais, supunha a história reversível e procurava nela o

típico e o constante. Já Pierre Proudhon (1809-1865) tinha a histó-

ria como uma determinada série de acontecimentos, no rumo do

progresso, nesse sentido concordando com o positivismo.

Karl Marx (1818-1883) e Frederic Engels (1820–1895) diziam

conhecer apenas uma ciência, a ciência da história. Engels afirmou

que, com o homem, os seres vivos haviam entrado na história. Com

isto, ele não queria dizer que a história começou com os homens,

mas que estes evoluíram ao ponto de conhecerem como a história se

processava. Reconhecia que os demais animais também tinham uma

história, a de sua descendência e desenvolvimento gradual até seu

estado atual. Essa história era feita por eles, mas na medida em que

participavam dela, a realizavam sem que o soubessem ou quises-

sem. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastavam dos de-

mais animais, tanto mais faziam sua própria história. Os resultados

desta história poderiam corresponder, cada vez com maior exati-

dão, a objetivos previamente estabelecidos.

No entanto, Marx e Engels frisavam que tais objetivos só obteri-

am os resultados desejados se observassem as leis da natureza. Mes-

mo porque, tudo quanto era criado acabaria perecendo. Milhões de

anos podiam escoar-se. Centenas de milhares de gerações poderiam

nascer e morrer. Mas, inexoravelmente, avançaria a hora em que o

calor solar, em declínio, não conseguiria derreter os gelos invasores.

Em que, pouco a pouco, desapareceria o último resquício de vida

orgânica e em que a Terra giraria cada vez mais próxima do Sol apa-

gado, e deveria ser por ele absorvida.

Haldane achou que essas previsões fúnebres teriam sido

desmentidas por Milne e Dirac, entre 1936 e 1938. Os dois teriam

52 Wladimir Pomar

demonstrado que as leis da natureza evoluiam e que as transforma-

ções químicas se aceleravam em relação às transformações físicas.

Isto tornaria possível que o processo de aceleramento fosse sufici-

entemente rápido para gerar calor e compensar o esfriamento das

estrelas. A vida, desse modo, poderia nunca se tornar impossível.

Infelizmente para Haldane, as observações astronômicas posterio-

res demonstraram que, além daquela hipótese fúnebre, pode haver

outras que levem ao mesmo fim as estrelas e a vida terrena.

A partir das considerações acima, Marx e Engels achavam possí-

vel enfocar a história de dois ângulos, dividindo-a em história da

natureza e história humana. No entanto, não seria possível separá-

las completamente. Enquanto os homens existissem, ambas se

condicionariam mutuamente. Para eles, o problema chave no trata-

mento da história como ciência, assim como das ciências em geral,

estaria no método.

De um lado estaria o método metafísico ou lógico formal, cujas

bases se encontravam em Aristóteles. Embora destruído teoricamen-

te por Kant e Hegel, esse método perdurava por inércia e pela au-

sência de um outro mais simples. Eles reconheciam que o método

metafísico, ou lógico formal, perdurava no trabalho de grande parte

dos cientistas, dos diferentes campos do conhecimento humano,

porque conseguira responder razoavelmente bem a determinadas

questões do movimento terrestre.

Por exemplo, Kepler conseguira determinar as órbitas dos planetas

sem jamais colocar em dúvida que Deus os tinha colocado lá. Newton

estabelecera as leis da gravidade, sem entender o conteúdo das forças

envolvidas, nem seus limites ao ambiente terrestre. Faraday determi-

nara as leis de ação das correntes elétricas sem saber da existência

do elétron. Maxwel explicitara o movimento da luz sem conhecer os

Volume 1: Sinfonia desencontrada 53

fótons. E as leis da termodinâmica foram definidas sem que seus

autores conhecessem o processo interno de movimento dos átomos.

Nas chamadas ciências sociais, o próprio Aristóteles havia vis-

lumbrado a existência do valor, sem nada saber sobre a força de tra-

balho. Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) con-

cluíram que o trabalho humano era o gerador da riqueza sem saber

o mecanismo através do qual essa riqueza era gerada. Os historia-

dores relatavam os acontecimentos muitas vezes sem conhecer suas

origens remotas e os diferentes interesses envolvidos, ou creditando

a fonte geradora apenas a um ou a outro fator.

O problema da lógica formal seria sua limitação para o conheci-

mento das leis internas que geram esses fenômenos. Diante dessa

contradição, os metafísicos preferem dizer que é impossível conhe-

cer a essência das coisas ou corpos. Mas os cientistas que, sem cons-

ciência dos métodos filosóficos envolvidos em qualquer pesquisa,

tentam aplicar a metafísica a fenômenos relacionados à química, à

física molecular, ao atomismo, à física das partículas (ou quântica),

à biologia, à paleontologia, à economia política, à sociologia e a ou-

tras ciências nas quais as mudanças são uma constante evidente,

emaranham-se em problemas e contradições de diferentes ordens.

A questão do método tornou-se, então, vital para resolver tais

problemas e contradições, surgidos com o desenvolvimento social e

o avanço das ciências. O método dialético de Hegel, que se opunha à

metafísica, tinha o defeito de apresentar-se sob uma forma abstra-

ta, especulativa e idealista. Ao partir do pensamento puro, numa

situação em que seria preciso partir dos fatos reais, o método lógico-

dialético de Hegel tornava-se inservível.

Mas esse método, apesar disso, tinha a vantagem de resolver as

contradições da metafísica ao dar sentido histórico a tudo que é exis-

54 Wladimir Pomar

tente e permitir a investigação e o conhecimento das leis internas

dos corpos. Ou seja, a lógica dialética não se limitava a calcular as

órbitas de vários corpos celestes com uma certa precisão, nem a afir-

mar que o Sol deve nascer em determinada hora. Ela tinha a capaci-

dade de explicar, mesmo usando apenas o raciocínio abstrato, a ori-

gem e a natureza desses movimentos, ou de suas mudanças, e de

verificar se as descobertas das ciências naturais correspondiam às

leis de movimento da natureza.

A lógica dialética, por exemplo, admitia que as órbitas dos plane-

tas do nosso sistema solar e os horários de nascimento do Sol, defi-

nidos através da metafísica, eram verdadeiros para o momento his-

tórico em que vivemos. No entanto, ela também afirmava, antes que

os astrônomos e astrofísicos se convencessem que o universo tinha

uma história, que há alguns milhões de anos atrás, as órbitas e o

nascer do Sol não eram os mesmos da atualidade. E que, daqui a

vários milhões de anos, chegaria o dia em que o Sol não nascerá e

seu sistema planetário deixará de existir. A lógica dialética do século

19 certamente errou nos milhões de anos, ao invés dos bilhões. Mas

acertou na tendência geral.

Assim, se desde o início os homens de ciência houvessem enten-

dido que nada é estático, que o movimento e as mudanças são ine-

rentes a todas as formas da matéria, e que a contradição é o motor

que as gera, provavelmente estivéssemos mais avançados na com-

preensão de muitos fenômenos ainda desconhecidos. Porém, esse

descompasso tem feito parte da história do pensamento, e ainda faz

parte da realidade.

De qualquer modo, foi em virtude do sentido histórico do méto-

do dialético hegeliano que Marx e Engels avaliaram, em meio a todo

o material lógico existente na época, que ele era o único que podia

Volume 1: Sinfonia desencontrada 55

ser utilizado. A dialética hegeliana era a única que marchava parale-

lamente ao desenvolvimento histórico universal. Nutrindo-se de con-

teúdo real, ela punha em relevo o processo de desenvolvimento, suas

conexões internas, em toda parte tratando a matéria historicamente.

Tal concepção, submetida à crítica, poderia ser a premissa direta

de uma nova concepção histórica, materialista, além de brindar um

ponto de partida para o método lógico-dialético. No dizer de Marx,

ele teria apenas restaurado o método dialético de Hegel, despojan-

do-o de sua roupagem idealista e colocando-o sobre uma base mate-

rialista. A partir dessa conclusão, qualquer pesquisa científica po-

deria ser abordada tanto pelo método histórico, quanto pelo méto-

do lógico-dialético.

Ao seguir o procedimento histórico, onde as coisas se desenrola-

riam a grandes traços, os pesquisadores se defrontariam, porém,

com a interferência de fatores ou relações externos. Alheios ao pro-

cesso gerador do fenômeno ou acontecimento, esses fatores ou rela-

ções externos fariam com que a história, freqüentemente, se desen-

volvesse aos saltos e em ziguezagues, obscurecendo o processo real

de desenvolvimento do fenômeno ou acontecimento pesquisado.

Por isso, Marx considerou que o método lógico-dialético seria o

mais adequado para estudar os fenômenos específicos de desenvol-

vimento da natureza e da humanidade. Da mesma forma que mui-

tos cientistas já vinham isolando, empiricamente, seus objetos de

pesquisa das interferências externas, a lógica dialética estabelecia essa

prática como forma científica de analisar todo e qualquer fenômeno

da natureza, incluindo a sociedade humana, em sua forma pura, de

modo a descobrir seus aspectos internos de desenvolvimento.

Marx e Engels não consideravam que isso representasse uma se-

paração irreparável entre o método histórico e o método lógico-

56 Wladimir Pomar

dialético. Este último não passaria do método histórico despojado

de sua forma histórica e das contingências perturbadoras que a cer-

cam a cada momento. Em outras palavras, apesar dos desvios e so-

bressaltos impostos por essas contingências externas, se a pesquisa

lógico-dialética fosse correta, a prática a comprovaria mais cedo ou

mais tarde, mesmo que, em muitas ocasiões, devesse esperar a his-

tória para realizar-se plenamente.

Por exemplo, um ser humano tem um período de vida que inclui,

a partir do nascimento, a infância, a puberdade, a juventude, a ida-

de adulta, a velhice e a morte. Completar todas essas fases represen-

ta completar todo o seu desenvolvimento lógico-dialético. Histori-

camente, porém, esse ser pode morrer logo após o parto, ou em qual-

quer das fases intermediárias, por problemas congênitos, por aci-

dentes ou por outro motivo qualquer. Portanto, a história pode in-

terromper o processo lógico-dialético de desenvolvimento, antes de

que ele se complete. Ela também pode causar um desvio nesse pro-

cesso, como é o caso dos seres humanos que, por algum fator exter-

no ou interno, encurtam ou alongam algumas dessas fases, ou so-

brevivem muito além do período médio de vida.

Um dos problemas de alguns cientistas consiste em sua incapaci-

dade de trabalhar essas duas ordens de desenvolvimento – o lógico-

dialético e o histórico – de modo articulado. Para Marx, na aplica-

ção do método lógico-dialético dever-se-ia sempre partir da relação

primeira e mais simples, que existisse historicamente e de fato.

Tomar tal relação significaria considerar a existência de dois la-

dos ou aspectos, a serem analisados tanto separadamente, quanto

em sua interdependência recíproca. Segundo ele, tal análise condu-

ziria a contradições que reclamariam solução, seguindo uma suces-

são real de fatos ocorridos real e efetivamente. Ao estudar o caráter

Volume 1: Sinfonia desencontrada 57

da solução encontrada, lograr-se-ia uma nova relação, cujos aspec-

tos contrapostos deveriam ser analisados na busca de outra solução,

e assim sucessivamente.

Como decorrência da utilização desse método na história huma-

na, Marx deduziu que todas as lutas históricas das sociedades hu-

manas, fossem aquelas que se realizavam nos terrenos social, políti-

co, religioso e filosófico, fossem as que ocorriam em qualquer outro

terreno das idéias, não seriam mais do que a expressão relativamen-

te clara de lutas entre classes sociais. Por sua vez, a existência dessas

lutas estaria condicionada pelo grau de desenvolvimento de sua si-

tuação econômica e pelo caráter do modo de produção e de troca

que davam base a tal situação. É lógico que Marx deixou de lado o

período histórico da humanidade em que as classes e as sociedades

ainda não existiam, e em que a cooperação e o conflito ocorriam

tendo por base outros interesses.

Por esse e por outros motivos, o método proposto e adotado por

Marx e Engels encontrou reações contrárias de todos os tipos. Pri-

meiro, porque Hegel, embora tendo sido posto sobre uma base mate-

rialista, permaneceu difícil de ser estudado e compreendido. Segun-

do, porque o próprio Marx, assim como Engels, acharam mais impor-

tante dedicar-se à aplicação desse método ao estudo econômico-polí-

tico das relações internas do capital, do que tentar explicar didática e

historicamente a evolução do próprio método. Terceiro, porque em-

bora existam muitos textos em que tanto Marx quanto Engels apli-

quem seu método ao estudo de acontecimentos históricos, a maior

parte dos historiadores não os conhece, nega-se a lê-los e, mesmo as-

sim, os repudia como mecanicamente estreitos, ou deterministas.

Além disso, muitos dos seguidores de Marx e Engels não enten-

deram o método de ambos e procuraram transformá-lo em doutri-

58 Wladimir Pomar

na. O que os tem levado a uma interpretação metafísica dos textos

econômicos, filosóficos e históricos de ambos, e a uma avaliação

pouco científica da realidade, em especial da realidade social. Por

fim, à medida que o marxismo se tornou um instrumento para a

transformação social, seu método passou a ser encarado como um

método ideológico e não científico. Nessas condições, muitos pen-

sadores deixaram de lado o método lógico-dialético, seja criticando-

o ou simplesmente ignorando-o ou omitindo-o.

Max Weber (1864-1920) e Ernest Troeltsh (1865-1923), por exemplo,

o rejeitaram, acreditando na necessidade de estudar a história concreta,

os acontecimentos particulares de cada momento. Tinham grandes re-

servas às generalizações, tendo em conta a multiplicidade dos fatores re-

ais. Weber considerava que a história só seria uma ciência à medida que

levasse em conta os procedimentos metodológicos. Em oposição às con-

tradições do método dialético, criou a teoria da multiplicidade das

conexões causais, da importância dos fatores ideais e da periodização

da história universal, considerando as ciências históricas (sociolo-

gia, antropologia e história) fora do domínio das ciências naturais.

Emile Durkheim (1858-1917), por seu turno, considerava que a

história só poderia ser uma ciência com a condição de elevar-se aci-

ma do individual, deixando de ser ela mesma para tornar-se um ramo

da sociologia. François Simiand (1873-1935) também pretendia que

a história se juntasse à sociologia para tornar-se científica, libertan-

do-se de seus ídolos. Ou seja, deixando de lado a preocupação domi-

nante nos fatos políticos e militares, o hábito inveterado de conce-

ber-se como história dos indivíduos, e a cronologia, perdendo-se no

estudo das origens.

J.H. Rodrigues (1913-1987) se aproximou de Hegel e de Marx, ao

afirmar que a história seria a ciência da mudança. Tratar-se-ia de

Volume 1: Sinfonia desencontrada 59

uma ciência humana, que não temeria verdades incômodas, porque

serviria à verdade e não aos acontecimentos políticos do dia. A his-

tória se colocaria em tudo, acompanhando o processo temporal no

todo e em cada parte. A vida e a realidade seriam história, gerando

passado e futuro. Ao mesmo tempo, porém, ele expressou a opinião

de que o marxismo era mecanicamente estreito.

Em oposição a tal estreiteza, sugeriu que o historiador deveria

estar ligado ao ponto de vista contemporâneo. A realidade históri-

ca seria uma pintura que dependia da perspectiva que o historia-

dor tivesse. Um problema histórico, para ele, seria sempre uma

questão levantada pelo presente em relação ao passado. Assim, ao

invés de considerar o presente como um desenvolvimento do pas-

sado, oferecendo condições mais favoráveis para o entendimento

desse passado, subordina este à perspectiva presente, distorcendo

a visão histórica.

Paul Ricoeur (1913-1986) opinou que a filosofia hegeliana da his-

tória teria empanado, com sua totalização, os interesses singulares

dos indivíduos, do Estado e dos povos. Portanto, sua perda de credibi-

lidade teria sido um grande acontecimento do século 20. Com isso, ex-

pressou o ponto de vista de uma grande corrente de historiadores que

procura atacar o marxismo através do descredenciamento de Hegel.

Mas Adam Schaff (1913-1989), na linha do pensamento de Hegel

e Marx, afirmou que o historicismo, como corrente de pensamento,

contestava o ideal da natureza imutável do homem e das leis natu-

rais. Procuraria captar a natureza, a sociedade e o homem, em cons-

tante movimento, em suas mutações contínuas. Reconhecia, porém,

que o historicismo havia se desdobrado em duas vertentes. Uma,

anti-naturalista, não acreditava na existência de leis gerais, enquan-

to a outra, naturalista, embora sustentando a existência de leis de

60 Wladimir Pomar

desenvolvimento histórico, discordava da utilização de leis univer-

sais para os fenômenos sociais.

Em outras palavras, uma simplesmente descartava a dialética

como imprestável. A historia se produziria totalmente de forma ale-

atória, sendo impossível enxergar nela qualquer regularidade ou

determinação. A outra reconhecia a existência da dialética, mas não

nos processos sociais. Assim, a dialética teria acompanhado os

hominídeos até constituírem a sociedade. A partir daí, o desenvolvi-

mento histórico teria deixado a dialética de lado e seguido seu pró-

prio rumo.

Já a visão de Bloch, sobre a história como ciência do tempo e da

mudança, não se coadunava com a sua própria idéia de que a história

é a história dos homens no tempo. Pensava as duas coisas, sem

considerá-las uma contradição. Para ele, seguindo Dilthey nesse as-

pecto, o objeto da história seria, por natureza, o homem. Ou, melhor:

os homens, que deveriam procurar a verdade e a justiça na história.

Por isso, Bloch também considerava que, ao invés de uma ciên-

cia do passado, deveríamos ter uma ciência histórica que levasse os

homens a compreenderem o presente pelo passado e, correlativa-

mente, o passado pelo presente, embora o passado não fosse objeto

de ciência. Talvez nem se tenha dado conta de que, se o passado não

for objeto da ciência, ele não poderá fazer parte da ciência histórica.

Nestas condições, como os homens poderiam compreender o pre-

sente pelo passado e, correlativamente, o passado pelo presente?

Fernand Braudel (1902-1985) procurou colocar a história como

a ciência federativa das ciências humanas, opondo a longa duração

histórica à antropologia estrutural de Claude Lèvi-Strauss (1908-

2009). Supunha que a longa duração subordinaria até mesmo as

estruturas imutáveis da antropologia. Para isso, ele pluralizou a di-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 61

mensão temporal, considerando que o tempo se decompunha em

ritmos heterogêneos, que romperiam a unidade da duração. No en-

tanto, ao fazer isso ele não mais diferenciou passado, presente e fu-

turo. Estes se reproduziriam sem descontinuidade.

Ou seja, embora levando em conta a existência de ritmos diferen-

tes ou desiguais no processo de mudanças, que nos dão um ritmo

temporal plural (por exemplo, num mesmo momento histórico do

planeta Terra, convivem sociedades de momentos históricos dife-

rentes), Braudel misturou passado, presente e futuro e nos condu-

ziu a um tempo estacionário.

Para Walter Benjamin (1892-1940), a história não tem uma rela-

ção de causa e efeito, não se devendo pensar o passado e o presente

como uma relação de sucessividade. O passado seria contemporâ-

neo do presente. Como a trama histórica seria de natureza dialética,

identificá-la a um simples nó causal redundaria em desencaminhar-

se. Seus fios ficariam perdidos durante séculos e se entrelaçariam,

bruscamente, pelo curso atual da história. Este é um exemplo de

onde pode nos levar uma leitura desatenta de Hegel.

Emmanuel Le Roy Ladurie (1929-1973) achou que a história não

colocava sua tônica nas acelerações e mutações, mas sobre os agen-

tes da reprodução, que permitiriam a repetição idêntica dos equilí-

brios existentes. Em conseqüência, seria nos fatos biológicos, mais

do que na luta de classes, que se encontraria o motor da história

humana.

Finalmente, sob o impacto da física quântica, Alain Boyer consi-

dera a indeterminação essencial para pensar as várias possibilida-

des dos agentes da história. Com ele, o chamado princípio de incer-

teza, de Heisenberg, saltou da teoria quântica para a teoria históri-

ca. Embora nossa morte seja previsível, em algum tempo no futuro,

62 Wladimir Pomar

o princípio da incerteza nos diz que é impossível prever a data certa,

como se isso fosse uma descoberta científica fundamental.

Assim, repassando o pensamento de uma relação apenas sumá-

ria de historiadores que trataram da teoria da história, nos depara-

mos com um mosaico desencontrado de escolas díspares. Questões

sobre a história da natureza, sua relação com a história humana,

sobre o espaço e o tempo histórico, sobre a imutabilidade e a mu-

dança histórica, sobre o método de estudo histórico e sobre uma

série de temas relacionados ao conhecimento da história como ciên-

cia, não só permanecem contraditórios, mas também obscuros em

grande parte dos textos históricos.

Decidi, então, tentar esclarecer para mim próprio esses assuntos.

E, ao mesmo tempo, comprovar se Engels tinha razão ao afirmar

que, na natureza, se aplicam, na confusão de suas inumeráveis trans-

formações, as mesmas leis dialéticas do movimento, leis essas que

governam a aparente contingência dos fatos históricos. Para isso,

nada melhor do que começar por uma viagem ao início dos tempos

atuais.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 63

Justificando a viagem

Querer aventurar-se numa viagem ao início dos tempos atuais,

mesmo de maneira virtual, parece coisa de ficção científica. No en-

tanto, não é isso que estamos sugerindo. Estamos apenas afirmando

que a humanidade alcançou um ponto de desenvolvimento científi-

co e tecnológico que nos permite conhecer aquela realidade históri-

ca com razoável grau de aproximação.

Tal viagem seria impensável em qualquer outra época da histó-

ria humana. Somente agora a ciência tornou viável a alguém se

embrenhar, ao mesmo tempo, pelas profundezas mais longínquas

do universo e pelo mundo nano ou microscópico das partículas atô-

micas. Ela reuniu uma massa de conhecimentos empíricos e teóri-

cos, a partir de observações continuadas do cosmos e das partículas

microscópicas, que permite discutir o processo histórico da nature-

za desde os seus momentos primordiais, como costumam especifi-

car alguns físicos e filósofos das ciências.

Portanto, nossa primeira preocupação será demonstrar que, ape-

sar de uma nova barbárie estar à nossa porta, já alcançamos tal es-

tágio de desenvolvimento. Esta é uma contradição que aponta para

desafios de monta. Hoje, somos mais de seis bilhões de seres huma-

nos sobre a Terra. À primeira vista, a maioria dessa humanidade

está organizada em nações e regiões autônomas ou independentes.

A maior parte delas é constituída de nações multi-étnicas, cada uma

das quais com dezenas ou centenas de etnias, com seu próprio idio-

64 Wladimir Pomar

ma. Algumas dessas etnias possuem apenas alguns milhares de se-

res, como a kaiuwa e a ianomami, enquanto outras possuem cente-

nas de milhões, como a han e a hindu.

Apesar da variedade de interpretações sobre a história e a essên-

cia humana, assim como sobre sua organização em sociedades, al-

gumas destas bastante ricas e prósperas, uma observação mais atenta

nos leva à conclusão de que, da mesma forma que seus ancestrais

mais longínquos, a maioria dos homens atuais continua tendo que

trabalhar. Eles precisam produzir alimentos, vestuários, moradias,

meios de transporte, energia e outros bens necessários à vida cotidi-

ana, tanto as suas, quanto as dos demais membros da sociedade.

Em função dessa necessidade, tanto biológica, quanto social, os

homens continuam tendo que se organizar para realizar tal produ-

ção, assim como para distribuir seus resultados entre os diversos

membros de cada sociedade. Esta produção e distribuição ganhou o

nome de economia política ou, para alguns, simplesmente economia.

A organização econômica depende, por sua vez, dos recursos ou

matérias primas que a natureza coloca à disposição dos homens,

assim como do nível técnico que alcançaram os meios de extração

desses recursos naturais, os meios de transformação desses recur-

sos em produtos úteis, e os meios capazes de distribuir tanto as ma-

térias primas quanto os produtos criados a partir delas. Em outras

palavras, dependem dos meios de produção e das relações que os

homens estabelecem com a natureza e entre si.

Assim, nos defrontamos com produções minerais, agrícolas e in-

dustriais e com meios de transporte extremamente desiguais em sua

distribuição territorial, seja entre países e regiões globais, seja entre

regiões dentro de um mesmo país. Em vários casos, nos defronta-

mos com as chamadas altas tecnologias, a exemplo das fabricações e

Volume 1: Sinfonia desencontrada 65

transportes automatizados, com o auxílio de computadores e robôs.

Em vários outros, predominam as tecnologias tradicionais, a exem-

plo do artesanato, da lavoura manual e do transporte de tração ani-

mal, aqui incluído o próprio homem.

Na maioria das nações atuais predomina o modo de produção ca-

pitalista. Isto é, um modo de produção no qual uma série de pessoas

concentra em suas mãos riquezas monetárias, ou dinheiro. Com o di-

nheiro, essas pessoas compram meios de produção, distribuição e

circulação (prédios, máquinas, equipamentos, energia, matérias pri-

mas, transportes etc) e a força de trabalho necessária para o funcio-

namento daqueles meios. Através de tais meios, a força de trabalho

transforma as matérias primas fornecidas pela natureza em produ-

tos, mercadorias, ou valores de troca, para uso na vida humana.

Meios de produção e força de trabalho constituem pólos de uma

relação social normalmente chamada forças produtivas. Historica-

mente, o desenvolvimento técnico dos meios de produção tem de-

sempenhado papel fundamental para o estabelecimento das rela-

ções entre a força de trabalho e os proprietários dos meios de produ-

ção. A invenção da agricultura levou a humanidade a estabelecer as

relações escravistas, nas quais o dono da força de trabalho, isto é, o

trabalhador agrícola, assim como a terra, era propriedade privada.

O desenvolvimento dos instrumentos agrícolas, associada a di-

versos outros fatores históricos, introduziu mudanças importantes

nas relações dos donos da força de trabalho com os proprietários

privados. Nos campos, em geral, manteve o trabalhador agrícola

como escravo da terra, mas não mais como propriedade privada do

proprietário fundiário. O escravo da terra tornou-se proprietário pri-

vado de pequenos meios de produção e, ao mesmo tempo, tributário

do proprietário fundiário.

66 Wladimir Pomar

Ao lado disso, com a ampliação do artesanato e o surgimento da

manufatura, fez surgir, embrionariamente, um trabalhador livre de

qualquer propriedade, que vendia sua força de trabalho em troca de

soldo. Posteriormente, com a transformação da manufatura em indús-

tria, em virtude do desenvolvimento técnico dos meios de produção, da

acumulação de imensas riquezas de metais nobres, transformadas em

dinheiro, e da expropriação de massas de lavradores, a utilização desse

tipo de trabalhador livre tornou-se cada vez mais intensa.

O capital surge, historicamente, da relação que o proprietário de

dinheiro estabelece com o proprietário da força de trabalho. O capi-

tal é, assim, uma relação social, ou um conjunto de relações sociais,

que se materializa principalmente na compra e na venda. O espaço

onde essas relações de compra e venda ocorrem é o famoso merca-

do, que muitos tratam como um ser vivente, mitologicamente eter-

no, embora tenha surgido apenas no estágio histórico do escravismo.

Temos, então, de um lado os proprietários de capital dinheiro,

que transformam esse dinheiro tanto em ativos ou capital constan-

te (compra de meios de produção), quanto em capital variável (com-

pra de força de trabalho). De outro, temos não-proprietários de capi-

tal, mas proprietários de força de trabalho, que podem vender essa sua

força, como uma mercadoria qualquer, em troca de salário, para colo-

car em funcionamento os meios de produção pertencentes aos proprie-

tários de capital constante. Temos aí uma relação de opostos em que a

cooperação predomina para a realização da produção social.

Mas o segredo do desenvolvimento do modo capitalista de pro-

dução reside no fato de que, no processo de cooperação para a pro-

dução social a força de trabalho, ao transformar as matérias primas

em novos produtos, gera um valor superior ao valor que recebe para

se reproduzir. Neste caso, para se reproduzir seja como força de tra-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 67

balho, seja como ser humano. Esse valor a mais, ou mais-valia, ou

capital excedente, ou lucro, é apropriado pelo proprietário dos mei-

os de produção, que o divide para seu usufruto individual e para a

substituição ou ampliação dos seus meios de produção.

Esta é a base do conflito estrutural entre os proprietários dos meios

de produção e os proprietários da força de trabalho, estes os produ-

tores de fato. Os primeiros procuram aumentar a mais-valia através

de uma série de artifícios, os principais sendo o rebaixamento dos

salários e a extensão das horas de trabalho. Os segundos procuram

melhorar as suas condições de reprodução, principalmente através

da elevação dos salários, o que incide diretamente sobre a mais-valia.

Assim, temos aqui uma relação entre opostos em que a disputa, a

competição ou o conflito predomina no processo da produção social.

Neste aspecto, como dizia Engels, Darwin não tinha a menor idéia

da sátira amarga que escreveu sobre os homens, quando afirmou

que a livre competição, a luta pela existência, que os economistas

celebram como a maior conquista histórica da humanidade, consti-

tui exatamente o estado natural do reino animal. Essa disputa entre

os proprietários capitalistas e os proprietários da força de trabalho é

um dos principais aspectos da luta de classes no capitalismo, mas

não o único.

Os proprietários dos meios de produção cooperam entre si, por

diferentes meios, para elevar suas taxas de lucratividade, ou renta-

bilidade, na relação com os proprietários de força de trabalho. Por

outro lado, o modo capitalista de produção também se move em-

purrado por uma constante concorrência ou competição entre os

diversos proprietários de meios de produção.

Esta competição os compele a realizar inovações técnicas e

organizacionais, que elevem a produtividade do trabalho, reduzin-

68 Wladimir Pomar

do o valor de troca unitário de seus produtos e elevando suas vanta-

gens, em termos de custos e preços, em relação aos concorrentes.

Ao introduzir reduções nos valores de troca, a concorrência incide

sobre a lucratividade dos capitalistas, fazendo com que a taxa média

de lucro tenda a cair. Isto represente uma contradição entre seme-

lhantes, difícil de ser resolvida porque a concorrência ou competi-

ção é vital para a sobrevivência dos proprietários capitalistas no mer-

cado, como seres econômicos e sociais. Os que não conseguem ven-

cer na concorrência do mercado são expelidos e aniquilados, como

capitalistas, por seus próprios semelhantes.

Os proprietários de força de trabalho também cooperam entre si

para forçar a elevação dos salários e das condições de sua reprodu-

ção. No entanto, a elevação da produtividade, assim como outros

fatores de funcionamento do processo produtivo, tendem a criar um

excedente de força de trabalho disponível no mercado. A força de

trabalho não empregada procura resolver sua situação de reprodu-

ção ofertando-se por salários mais baixos. Isto também representa

uma contradição entre semelhantes, difícil de ser resolvida no qua-

dro das relações capitalistas.

Desse modo, cooperação e conflito se apresentam como aspectos

contraditórios não só da relação entre os proprietários de meios de

produção (capitalistas) e os proprietários de força de trabalho, os

assalariados, (ou proletários como os chamavam os romanos da épo-

ca do escravismo), mas também como aspectos contraditórios de

cada um dos pólos da contradição entre capitalistas e proletários.

Em cada nação ou região do mundo, esse modo capitalista de pro-

duzir possui diferentes graus de desenvolvimento de suas forças pro-

dutivas, o que inclui tanto os meios de produção quanto a força de tra-

balho. Em geral, elas estão mais concentradas em algumas zonas urba-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 69

nas do que em outras. No Brasil, por exemplo, as principais forças

produtivas estão concentradas nas capitais e em algumas grandes ci-

dades da região sudeste, evidenciando seu desenvolvimento desigual.

As relações sociais, em especial as que dizem respeito à divisão

da propriedade, também são mais polarizadas em alguns países e

menos em outras. O Brasil também é um exemplo de país onde a

propriedade, em especial a propriedade territorial, é altamente con-

centrada. O mesmo ocorre com a divisão social do trabalho, que se

eleva proporcionalmente à concentração da propriedade capitalista

e da força de trabalho.

Além disso, em várias nações ou regiões o modo capitalista con-

vive, às vezes em cooperação, às vezes em conflito, com remanescen-

tes de modos de produção historicamente mais antigos, como o cam-

ponês, o feudal, o escravista e o comunitário. Também convive, em

cooperação e/ou em conflito, nos sistemas políticos socialistas, com

as formas econômicas públicas e estatais sob controle do Estado, que

têm poder de interferir no funcionamento do mercado e da economia

como um todo. Em termos gerais, a maior parte da humanidade se

encontra em sistemas de transição de um modo de produção para

outro, seja dos antigos para o capitalismo, seja deste para outro. O

socialismo, neste sentido, não passa de um sistema de transição.

Essa situação gera grande multiplicidade de culturas, tanto anti-

gas, quanto modernas. Isto é, idiomas, artes, literatura, teatro, cine-

ma, culinária, comportamento, sensibilidade etc, são muito variados

entre as diferentes nações, e dentro de cada uma delas. Os sistemas

políticos também variam. Democracias liberais, democracias popula-

res, regimes socialistas, monarquias constitucionais, monarquias he-

reditárias, ditaduras étnicas, teocracias, ditaduras militares etc, for-

mam um mosaico variado, algumas vezes no interior de cada país.

70 Wladimir Pomar

As disparidades regionais e de renda também são acentuadas.

Na África, Ásia e América Latina, cerca de dois bilhões de pessoas

vivem ameaçadas de extinção pela fome e pelas doenças. Mesmo

nos países economicamente mais desenvolvidos, é possível verificar

aquilo que Engels chamava colossal desproporção entre os objeti-

vos fixados e os resultados obtidos.

Se aplicarmos a tese de que os homens impõem cada vez mais

sua própria história à história humana, verificaremos que os efeitos

não previstos predominam sobre os objetivos fixados. As forças não

controladas seriam muito mais poderosas do que as postas em mo-

vimento pelo plano estabelecido. Isto porque a principal atividade

histórica do homem, aquela que o elevou da animalidade à humani-

dade, que constitui o fundamento material de todas as suas outras

atividades – a produção para as necessidades de sua vida – estaria

submetida ao jogo das influências indesejáveis, de forças não con-

troladas, como é o caso do capitalismo.

A conseqüência do domínio dos homens sobre as forças natu-

rais, com o capitalismo elevando a produtividade a níveis inimagi-

náveis, tem sido, acima de tudo, miséria e poluição. Assim, por um

lado, os países ricos da Europa e América alcançaram um desen-

volvimento material de tal ordem que permitiria à humanidade

suprir as necessidades da maior parte de seus membros, se a apro-

priação dos resultados desse desenvolvimento fosse realizada de

maneira socialmente equilibrada. Porém, esse desenvolvimento

exponencial da capacidade produtiva proporcionado pelo capita-

lismo foi realizado, em grande parte, às custas da exploração dos

demais países e povos do planeta. Paradoxalmente, ele estimulou

e, ao mesmo tempo, foi estimulado pelo desenvolvimento científi-

co e tecnológico.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 71

Se olharmos em retrospectiva, há mais de um milhão de anos

atrás, os ancestrais dos homens começaram a dominar o fogo e a

utilizá-lo para fins úteis à sua sobrevivência. Fósseis do hominídeo

yuanmounensis, datados de 1,7 milhão de anos, apresentaram evi-

dências de que esse antropóide já utilizava o fogo. Depois, entre 15

mil e 5 mil atrás, o Homo sapiens passou a domesticar animais e

plantas, inventou a agricultura e, com ela, o pensamento de escrever

e fazer operações com números.

As primeiras ferramentas para lavrar a terra, de madeira, pedra e

osso, surgiram entre 7 mil e 6 mil anos atrás, da mesma forma que o

primeiro calendário solar, feito pelos egípcios. Para inventar a escri-

ta, os homens consumiram uns 2 a 3 mil anos após a revolução

agrícola. Os egípcios criaram os seus hieróglifos cerca de 5500 anos

atrás, os chineses, os seus caracteres há 4700 anos, e os hindus há

4300 anos. Há 4100 anos atrás a cidade-estado de Ur, na

Mesopotâmia, criou o primeiro código jurídico, enquanto os gregos

de Creta criavam a primeira civilização do mar Egeu e os fenícios

criavam uma escrita alfabética.

A cobrança de impostos reais talvez tenha sido o primeiro impul-

so para a criação da geometria, já que as taxas de cobrança tinham

por base a área de terra ocupada. Os agiotas da Babilônia aprende-

ram a calcular juros, embora através de enigmas, e utilizavam um

sistema de cálculo geométrico idêntico ao teorema de Pitágoras.

A metalurgia de bronze foi praticada pelos chineses desde 4300

anos atrás. Mas a metalurgia do ferro levou pelo menos outros 1700

anos para ser praticada por hititas, babilônios, chineses e gregos. Os

primeiros veículos de transporte de pessoas e cargas, e as primeiras

máquinas que substituíram os músculos humanos na fabricação de

fios e tecidos, só surgiram há uns 3500 anos.

72 Wladimir Pomar

Por volta de 500 a.c. os chineses já escreviam em tiras de papel

vegetal e fabricavam tecidos de seda, enquanto os egípcios utilizavam

pergaminhos e tecidos de algodão. Depois disso, os humanos mais

avançados gastaram mais 2 mil anos para inventar moinhos de água

e de vento, relógios de água e mecânicos, a bússola, a pólvora e as

armas de fogo, construir as primeiras embarcações oceânicas, pavi-

mentar e iluminar ruas, redescobrir os continentes e conhecer outros

povos. Mas, segundo um manuscrito alemão de 1481, esta foi a pri-

meira vez que introduziram o sinal de + (mais) em seus cálculos.

Depois, levaram apenas mais quinhentos anos para criar manu-

faturas, inventar a máquina a vapor, o fuso e o tear mecânicos, a

locomotiva e os navios a vapor, as ferrovias, o motor elétrico, o mo-

tor diesel e a explosão, e o aço. Criaram a indústria, com suas má-

quinas ferramentas e linhas de produção, capazes de produzir subs-

tâncias químicas, tecidos, chapas e laminados de aço, navios e avi-

ões em série. Constituíram assim um complexo sistema muscular e

sanguíneo produtivo industrial, que multiplicou por milhares de

vezes a capacidade do cérebro e das mãos humanas em produzir

bens e equipamentos para sua comodidade.

A seguir, num espaço de menos de 50 anos, na segunda metade

do século 20, as sociedades humanas avançadas deram um salto ain-

da maior. Tendo por base o sistema industrial que seus técnicos e

empreendedores haviam criado, elas passaram a produzir equipa-

mentos e instrumentos capazes de analisar grandes corpos, como

estrelas e galáxias, e corpos microscópicos, como partículas e vírus.

Com isso, ampliaram consideravelmente o conhecimento que os

homens de ciência tinham da realidade que cerca a vida terrena e o

cosmos. E transformaram as ciências e tecnologias nas principais

forças produtivas da humanidade.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 73

No estudo dos corpos microscópicos, foram dados grandes pas-

sos para diagnosticar as doenças dos seres vivos e descobrir meios

de curá-los. Descobriu-se, por exemplo, que os vírus eram causado-

res de inúmeras doenças, como a febre amarela e a dengue. Em con-

trapartida, também foram descobertas e produzidas as sulfanilami-

das, os antibióticos, as vacinas, a insulina, os fatores que permitem

uma transfusão de sangue segura, o saneamento, a higiene pessoal e

as dietas para a saúde humana.

Ao mesmo tempo, com a invenção dos sistemas eletrônicos e das

tecnologias de supercondutores de silício, puderam ser projetadas e

fabricadas bobinas de escaneadores, para a obtenção de imagens

por ressonância magnética, assim como microscópios de alta reso-

lução, o eletro-encefalograma, o tomógrafo e outros equipamentos

avançados para diagnoses e cirurgia por imagens.

A descoberta dos semicondutores levou à fabricação do transis-

tor, no qual o fluxo de elétrons é controlado. Isso permitiu substi-

tuir as antigas válvulas amplificadoras usadas nos rádios e tornou o

transistor usado universalmente em televisores e outros aparelhos

eletro-eletrônicos, na forma de chips de silício.

Os bioquímicos desenvolveram novas técnicas de difração dos

raios X, que tornaram possível estudar a composição das grandes

moléculas. Na química, tudo o que pode ser pensado com coerência

e for possível de ser produzido, passou a ser realizado. Os químicos

criaram os plásticos, os vidros e as cerâmicas refratárias, assim como

as tecnologias de montagem dos circuitos eletrônicos miniaturizados

em chips. Hoje ela avança nos trabalhos com fulerenos, nanotubos e

supercondutores de altas temperaturas, materiais que podem revo-

lucionar ainda mais o processo produtivo.

Os fisiologistas conseguiram descobrir que bilhões de células dos

74 Wladimir Pomar

organismos vivos morrem e são repostas a cada dia, mesmo estando

fisiologicamente saudáveis. E descobriram a forma de produzir te-

cidos vivos em cultura, em especial as células-tronco embrionárias,

que constituem o embrião inicial para a especialização e desempe-

nho das células.

Os geneticistas demonstraram que os genes eram feitos de DNA,

a mais singular de todas as moléculas celulares, abrindo um campo

vasto para o conhecimento em profundidade da evolução histórica

da vida e introduzindo a informação como um aspecto importante

do processo de reprodução das espécies.

Com o Projeto Genoma Humano, através de técnicas automati-

zadas para decifrar as informações codificadas do DNA, constata-

ram que os seres humanos contam com menos genes do que se su-

punha. Apenas cerca de 35 mil, muitos dos quais são compartilha-

dos com insetos e plantas, embora suas funções sejam diferentes.

Em outras palavras, colocaram os seres humanos como mais um

dos resultados do processo histórico de transformação de substân-

cias inanimadas em substâncias orgânicas e, destas, em seres vivos,

com o surgimento das primeiras proteínas.

Planos cada vez mais precisos e extensos permitem racionalizar a

composição química, de tal modo que as qualidades dos compostos

poderão ser previstas antes de qualquer experiência. O conhecimento

profundo de uma substância particular pode ser aprimorado, preci-

sado e multiplicado pelo conhecimento de substâncias diferentes ou

pelo conhecimento do conjunto das substâncias. Ao se introduzir

corpos novos em séries de corpos incompletamente conhecidos,

como fizeram os geneticistas que modificaram alguns pares de genes

do DNA, substitui-se o conhecimento de corpos particulares pelo

conhecimento da série.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 75

Astrônomos, físicos, astrofísicos, cosmólogos e engenheiros cria-

ram o radiotelescópio, o espectrógrafo, a óptica adaptável e a

interferometria, abrindo janelas maiores para observar fenômenos

cósmicos de baixa temperatura e determinar a composição química

das estrelas a distâncias maiores.

Os físicos descobriram a fissão e a fusão nucleares como podero-

sas fontes de energia. E a ciência física moderna, do mesmo modo

que a química moderna, tornou-se cada vez menos ciência dos fatos

e mais ciência dos efeitos. Em geral, as ciências estão se transfor-

mando, rapidamente, de instrumentos de pesquisa da realidade, em

instrumentos de modificação da realidade e das forças produtivas.

Cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as con-

seqüências mais remotas de nossas atividades mais comuns de pro-

dução. Teoricamente, o homem pode submeter a natureza, pondo-a

a serviço de seus fins determinados e imprimindo-lhe as modifica-

ções que julga necessárias, sem romper com as leis naturais de de-

senvolvimento.

Com a criação da espantosa tecnologia aeroespacial, que permite

fazer viagens a longa distância, em curtos espaços de tempo, a huma-

nidade pode chegar à Lua, enviar sondas astronômicas de pesquisa a

outros planetas do sistema solar, e manter telescópios e satélites arti-

ficiais de controle meteorológico e militar ao redor da Terra. E pode

sonhar com a possibilidade de explorar e habitar outros planetas e

satélites do nosso sistema solar, num futuro não muito distante.

Com tudo isso, a humanidade assistiu, ainda sem perceber todas

as suas implicações, à criação daquilo que se pode chamar de siste-

ma nervoso do processo produtivo e da comunicação social, através

de equipamentos eletrônicos de coleta, tratamento e transmissão de

dados, informação e comunicação. Com a invenção do rádio, televi-

76 Wladimir Pomar

são, computadores, telefones sem fio e, mais recentemente, da

Internet, tornou-se comum realizar em poucos minutos cálculos

matemáticos complexos e acompanhar ao vivo os acontecimentos,

descobertas científicas, inventos e inovações tecnológicos, em cada

canto do mundo.

Embora persistam regiões em que esses meios de informação e

comunicação ainda não aportaram, a solução deste problema não é

mais técnica, mas estritamente econômica e social. Desse modo, de

provados instrumentos de pesquisa e conhecimento, as ciências,

associadas às tecnologias, se transformaram nas forças produtivas

mais poderosas dos seres humanos, tendo por base novos ramos ci-

entíficos, a exemplo da eletrônica, robótica, biotecnologia,

nanotecnologia e química fina. Conhecendo em profundidade as leis

da natureza, os homens se tornaram capazes de replicá-las em pro-

dutos projetados para uso humano.

No entanto, apesar das ciências e tecnologias haverem alcançado

esses níveis e demonstrarem uma capacidade de desenvolvimento

cada vez maior, os homens ingressaram no século 21 às voltas com

inúmeras lacunas no conhecimento sobre si próprios, seu entorno

ou meio ambiente, e sobre o universo em que se encontram. Além

disso, estão confrontados com os problemas resultantes dos danos

causados à natureza, tanto pelas antigas formações sociais, quanto

pelo atual sistema capitalista.

Simulações em computador mostraram que a queima de com-

bustíveis fósseis tem ligação estreita com a quantidade de dióxido

de carbono na atmosfera e pode causar a elevação da temperatura

da camada de ar que envolve a superfície terrestre. Mas os modelos

computadorizados também mostraram que o próprio processo na-

tural de atividades vulcânicas, e dos seres vivos em geral, emite quan-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 77

tidades consideráveis de dióxido de carbono para a atmosfera. As-

sim, o atual processo de rápidas mudanças nos padrões atmosféri-

cos e nas correntes oceânicas ainda é imprevisível, em grande medi-

da porque o processo geral de resfriamento, tanto do Sol, quanto da

Terra, continua.

O exame de amostras nas capas de gelo da Groenlândia e da

Antártida mostrou que ocorreram mudanças bruscas durante vári-

os períodos glaciais dos últimos milhões de anos. O clima global pode

ser apenas parcialmente estável, podendo saltar de um estado

confiável para outro imprevisível, como ocorreu várias vezes no pas-

sado remoto. Em alguns momentos de sua história, a Terra esteve

coberta por camadas de gelo que chegaram aos trópicos. Cada um

desses períodos parece ter terminado quando erupções vulcânicas

lançaram grandes quantidades de dióxido de carbono e outros ga-

ses-estufa na atmosfera, derretendo as camadas de gelo tão repenti-

namente quanto haviam surgido (repentinamente, no caso, poden-

do significar algumas centenas ou mesmo milhares de anos).

Embora hoje saibamos, com a ajuda dos satélites artificiais de

pesquisa, que as mudanças climáticas no Índico liberam grandes

ondas de energia, mudando os padrões climáticos do Atlântico Nor-

te, empurrando massas de poros e germes patogênicos do deserto

do Saara para o Caribe e influenciando a vegetação marinha caribe-

nha, ainda não temos um quadro claro sobre os malefícios e/ou be-

nefícios desse fenômeno.

Só há pouco tempo começou a ganhar foros de verdade a hipóte-

se de que na natureza nada acontece isoladamente. Segundo alguns,

o bater de asas de uma borboleta no Jardim Botânico do Rio de Ja-

neiro, ou em qualquer outra parte do mundo, repercutirá em toda

parte. A maioria das pessoas tem dificuldade de entender exemplos

78 Wladimir Pomar

desse tipo, porque os matemáticos que procuram demonstrar essa

interação entre todos os eventos do universo e da Terra (é disso que

se trata), apresentando isso como uma novidade, não conseguem

dar exemplos práticos.

Poderiam, agora, tomar como exemplo a explosão do vulcão

islandês Eyjafjalla, e a nuvem de cinzas que lançou no espaço, em

abril de 2010. A nuvem, empurrada pelos ventos árticos no sentido

leste e sudeste, causou caos ao transporte aéreo em toda a Europa,

mesmo naquelas regiões aonde não chegou, e problemas no sistema

de transporte aéreo de todo o mundo. Embora não tenha sido

publicada a dimensão de todas as repercussões da cadeia de aconte-

cimentos, ela certamente chegou a locais inusitados em todo o pla-

neta, com resultados bastante contraditórios.

Certamente ampliou de forma inesperada a ocupação dos hotéis

próximos aos aeroportos e o transporte rodo-ferroviário, carreando

lucros extras para esses setores. Certamente, também, causou pre-

juízos imensos às companhias aéreas, e deve ter impedido negócios

no interior do Laos e da Bolívia. E pode ter levado outras pessoas a

terem a mesma reação imbecil de um turista que declarou, na televi-

são, odiar a Islândia por causa da erupção.

Na segunda metade dos anos 1800, bem antes das recentes teorias

do caos e fractais, e sem os instrumentos matemáticos que só agora

são possíveis, Engels frisava que a interconexão universal, sugerida

por Hegel, era uma lei do movimento da matéria, em qualquer das

formas que se apresentasse. No rascunho que preparava sobre a Dia-

lética da Natureza, afirmou que os fenômenos exercem entre si influ-

ências recíprocas, num movimento de interação universal.

Para demonstrar essa noção, com exemplo práticos, Engels lem-

brou que, tanto os animais inferiores, quanto os homens, modifica-

Volume 1: Sinfonia desencontrada 79

vam a natureza exterior com suas atividades, ao mesmo tempo em

que essa modificação repercutia sobre os próprios causadores. Esse

exemplo, que em sua época pareceu uma bizarrice a um grande nú-

mero de naturalistas, é hoje algo que biólogos e geneticistas têm com-

provado cada vez com maior insistência.

Os animais inferiores modificam a natureza em menor propor-

ção do que os homens, e de modo involuntário e acidental, mas não

há dúvidas de que as cabras desmataram os bosques da Grécia. O

problema reside em que os homens, à medida que se afastam dos

animais inferiores, mais exercem sobre a natureza uma influência

intencional e planejada, a fim de alcançar objetivos previamente

projetados.

Isto é, ao provocar estragos na vegetação, os homens fazem isso

com o propósito de utilizar a terra livre e a madeira, semear trigo,

soja ou outros grãos, plantar árvores frutíferas, ou cultivar videiras

e laranjais, conscientes de que a colheita será maior. Ao transportar,

de um país para outro, plantas úteis e animais domésticos, os ho-

mens modificam a flora e a fauna de continentes inteiros, às vezes

com danos irreversíveis, como ocorreu com a vegetação da Ilha de

Santa Helena e com a fauna da Nova Zelândia e, modernamente,

com a Mata Atlântica e parte do Cerrado do Brasil.

Engels também analisou que as plantas cultivadas e os animas

criados em condições artificiais sofriam uma influência tão grande

nas mãos do homem, que chegavam a se tornar irreconhecíveis.

Portanto, num texto escrito em 1876, bem antes de nossos ecologis-

tas acordarem, esse filósofo já dizia que não deveríamos nos regozi-

jar com as vitórias humanas sobre a natureza. Ele sugeria que, a

cada vitória dessas ações humanas, a natureza respondia com uma

vingança. Cada uma dessas vitórias produzia conseqüências que

80 Wladimir Pomar

podíamos prever, como o aumento das safras agrícolas decorrentes

da derrubada de bosques e matas. Porém, elas também resultavam

em conseqüências muito diferentes, não previstas, que quase sem-

pre anulavam as vitórias anteriores.

Para reforçar sua visão ecológica, ele acrescentou os exemplos da

destruição dos bosques e florestas na Mesopotâmia, Grécia, Ásia

Menor e Alpes italianos. Essa destruição deu origem à desertificação

dos solos, ao deslizamento das encostas e ao assoreamento dos rios

das respectivas regiões. Ele lembrou ainda a propagação da

escrofulose, pelo plantio da batata, e se mostrou indignado com a

queima dos bosques das encostas montanhosas cubanas, para o plan-

tio de cafeeiros. Sem dar a mínima importância às chuvas torrenci-

ais dos trópicos, que varriam a camada vegetal do solo, esse plantio

causou devastação e deixou como legado apenas rochas desnudas.

Em outras palavras, a natureza nos adverte de que não podíamos

dominá-la como um conquistador domina um povo estrangeiro,

como alguém situado fora da natureza. Ao contrário, pertencemos à

natureza, com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro. Estamos

no meio dela, e nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que

levamos sobre os demais seres, de poder chegar a conhecer suas leis

e aplicá-las corretamente.

Engels tinha a esperança de que, com os progressos das ciências,

os homens seriam capazes de prever e controlar cada vez mais as

remotas conseqüências naturais de suas atividades de produção, pelo

menos das mais comuns, e evitar os danos que até então vinham

causando. Não tinha dúvidas de que a natureza e o homem eram

mutáveis, sofriam transformações. No entanto, conhecendo as leis

de transformação, os homens poderiam adaptar-se a tais leis natu-

rais e agir positivamente sobre elas.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 81

É na busca dessas leis de transformação que nos propomos a fa-

zer uma viagem ao início do tempo, no qual os homens ainda não

estavam presentes.

82 Wladimir Pomar

Wladimir Pomar nasceu em Belém do Pará, a 14 de julho de 1936,

filho de Pedro Pomar e Catarina Torres. Desde os cinco anos, co-

nheceu a vida da clandestinidade, pela perseguição que a polícia do

Estado Novo de Vargas movia às atividades do Partido Comunista

do Brasil (PCB), do qual seu pai era membro.

Começou a trabalhar aos doze anos, como aprendiz de linotipis-

ta, ao mesmo tempo que fazia o ginásio. Depois trabalhou como re-

pórter e redator nos jornais Tribuna Popular e Classe Operária.

Foi colaborador do jornal Movimento, diretor do Correio Agrope-

cuário, além de repórter e diretor editorial de Brasil Extra.

Adquiriu formação técnica e trabalhou como técnico de planeja-

mento e manutenção de máquinas pesadas da Companhia Siderúr-

gica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ) e Conselheiro Lafaiete

(MG). Foi engenheiro de serviços da General Eletric, no setor de

locomotivas, tendo trabalhado junto às estradas de ferro Leopoldina

(RJ) e Leste-Brasileira (BA). Também trabalhou como engenheiro

de manutenção da Cerâmica do Cariri.

Militante político desde 1949, quando ingressou no PCB,

Wladimir Pomar atuou inicialmente no movimento estudantil

secundarista. Em 1951, estudou ajustagem mecânica no Senai, tra-

balhou na Arno e participou no movimento sindical metalúrgico.

Em 1962, fez parte do movimento que deu origem ao PCdoB. Em

1964, foi preso na Bahia, por ação de resistência ao golpe militar.

Sobre o autor

Volume 1: Sinfonia desencontrada 83

Solto no final deste ano, devido a habeas corpus, foi julgado e con-

denado à revelia.

Depois de 1964, colaborou com a imprensa partidária e desen-

volveu suas atividades políticas principalmente no interior de Goiás

e do Ceará, aqui entre os sindicatos de trabalhadores rurais.

Viveu na clandestinamente até 1976, quando foi preso novamen-

te. Desta vez, durante uma ação militar que assassinou três dirigen-

tes do PCdoB, no bairro da Lapa (SP), um dos quais seu pai.

Foi libertado pouco antes da Anistia, em 1979. Pouco depois, desli-

gou-se da direção do PCdoB e ingressou no Partido dos Trabalhadores.

Entre 1984 e 1990, integrou a executiva nacional do PT, onde foi

responsável pela secretaria nacional de formação política, atividade

que acumulou com a coordenação do Instituto Cajamar. Em 1986,

participou da coordenação da campanha de Lula a deputado federal

constituinte. Durante as eleições presidenciais de 1989, foi coorde-

nador-geral da campanha Lula.

Wladimir Pomar é autor de diversos estudos e livros sobre a Chi-

na, entre os quais O enigma chinês: capitalismo ou socialismo (Alfa-

ômega); China, o dragão do século XXI (Ática); A revolução chine-

sa (Unesp); China: desfazendo mitos (Editora Página 13 & Editora

Publisher).

É autor, também, de uma trilogia sobre a teoria e a prática das

tentativas de construção do socialismo, ao longo do século XX: Ras-

gando a cortina (Brasil Urgente), Miragem do mercado (Brasil

Urgente), A ilusão dos inocentes (Scritta) e Os latifundiários (Edi-

tora Página 13).

Outra vertente de suas obras aborda a história do Brasil e da es-

querda brasileira. É o caso de Araguaia, o partido e a guerrilha

(Brasil Debates) e de Pedro Pomar: uma vida em vermelho (Xamã);

84 Wladimir Pomar

Quase lá, Lula e o susto das elites (Brasil Urgente) e Um mundo a

ganhar (Viramundo); O Brasil em 1990 e Era Vargas: a moderni-

zação conservadora (Ática).

Nos últimos trinta anos colaborou regularmente com o Correio

da Cidadania e com a revista Teoria e Debate.

Para comemorar seus 75 anos, foi lançada a página eletrônica

www.wladimirpomar.org.br, onde se pode conhecer sua obra. Mas

grande parte de seus textos ainda não foi organizado para consultas,

nem publicado em formato de livro. É o caso do romance inédito O

nome da vida.

Casado com Rachel, é pai de três filhos, avô de 11 netos e 2 bisnetos.

Livros de Wladimir Pomar

Araguaia, o partido e a guerrilha. São Paulo: Brasil Debates, 1980.

O enigma chinês: capitalismo ou socialismo. São Paulo: Alfa-

ômega, 1987.

Rasgando a cortina. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.

A miragem do mercado. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.

A ilusão dos inocentes. São Paulo: Scritta, 1994.

O Brasil em 1990. São Paulo: Editora Ática, 1996.

China, o dragão do século XXI. São Paulo: Editora Ática, 1996.

Um mundo a ganhar: revolução democrática e socialista. São

Paulo: Viramundo, 2002.

Pedro Pomar: uma vida em vermelho. São Paulo: Xamã, 2003.

Era Vargas: a modernização conservadora. São Paulo: Editora

Ática, 2004.

A revolução chinesa. São Paulo: Unesp, 2004.

Pedro Pomar: um comunista militante. São Paulo: Expressão Po-

pular, 2007.

Volume 1: Sinfonia desencontrada 85

China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher e Editora Página

13, 2009.

Quase lá, Lula o susto das elites. São Paulo: Editora Página 13,

2009.

Os latifundiários. São Paulo: Editora Página 13, 2009.