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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Crime, proceder, convívio-seguro Um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões ADALTON MARQUES São Paulo 2009

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Antropologia Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Crime, proceder, convvio-seguro Um experimento antropolgico a partir de

    relaes entre ladres

    ADALTON MARQUES

    So Paulo 2009

  • 1

    Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Antropologia Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Crime, proceder, convvio-seguro

    Um experimento antropolgico a partir de relaes entre ladres

    Adalton Marques

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Lcia Pastore Schritzmeyer

    So Paulo 2009

  • 2

    RESUMO: Neste experimento antropolgico, fortemente inspirado na

    obra de Michel Foucault, apresento uma etnografia constituda

    principalmente a partir de conversas travadas com presos, ex-presos e

    seus familiares, em torno de experincias prisionais. No primeiro

    captulo, exploro diferentes compreenses sobre o proceder e sobre

    a diviso espacial convvio-seguro, elaboradas como resposta

    pergunta nativa o que o certo?. Cada uma delas se faz como defesa

    do coletivo de presos donde emerge e como execrao dos coletivos

    inimigos. No segundo captulo, busco deslindar uma dimenso de

    estratgias adjacente a essas compreenses, onde os presos so

    levados a prestar ateno a eles prprios, precavendo-se para

    manterem um singular equilbrio entre ser humilde e ser cabuloso.

    Nisso consiste o sentido do que designam por ser ladro.

    Finalmente, no ltimo captulo mapeio uma noo de crime

    fundamental aos meus interlocutores, definido como movimento

    que estabelece as alianas nutridas entre ladres e outros aliados

    ao mesmo tempo em que define inimigos a partir de consideraes

    sobre suas caminhadas.

    PALAVRAS-CHAVE: Crime, Proceder, Diviso espacial convvio-

    seguro, Ladro, Prisioneiros.

  • 3

    ABSTRACT: In this anthropological experiment inspired in the

    Michel Foucault works I present an ethnography mainly constituted

    from conversations with prisoners, ex-prisoners and their families

    about the experience of prison. In the first chapter I tried to present the

    native answers to the question they address to themselves: Which is

    the right way to behave?. So I worked on the meanings of the native

    concept of proceder and the internal division of the space of the

    prisons under the conviviality-security label. In each of these

    places they present their defenses and claim to be acting the right

    way, condemning the other collectivity. In the second chapter I show

    the strategies that underlies in the proceder especially those that make

    them pay attention to themselves in a balance between being

    humble and being fearless, the main definition they present for

    being a bandit. Finally, in the last chapter, I map the native concept

    of crime defined as a movement that institute the nurturing

    alliances among bandits and other allies in the same time that

    define the enemies from the speculations they get in their path.

    KEY-WORDS: Crime, Proceder, Conviviality-security (division of

    the space), Bandit, Prisoners.

  • 4

    Juliana e Pedro, pelos risos de todos os dias

  • 5

    Agradecimentos

    Ao apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

    Tecnolgico CNPQ, que me concedeu bolsa no ms de setembro de 2007, e da

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, que me concedeu

    bolsa durante os vinte e trs meses seguintes.

    A construo desta dissertao no seria possvel sem tantos encontros que me

    arrastaram para lugares outros daquele em que eu me encontrava no incio da jornada.

    Certamente no serei capaz de nomear todos eles.

    Agradeo aos meus colegas de turma, os mestrando de 2007: Adriana de

    Oliveira Silva, Alexandre Kishimoto, Ana Martha Tie Yano, Caio Pompia, Camila

    Gauditano, Enrico Spaggiari, Florbela Ribeiro, Gabriel Pugliese, Glucia Destro, Paula

    Wolthers, Renato Adura Martins e Thais Chang Waldman. Aos professores com quem

    tive contato durante o perodo de mestrado: Fernanda reas Peixoto, Heitor Frgoli,

    Jos Guilherme Cantor Magnani, Mrcio Silva, Marta Amoroso e Renato Sztutman.

    Ana Claudia Duarte Marques e Antnio Rafael Barbosa, pelas inestimveis

    contribuies dadas durante o exame de qualificao. A Jorge Mattar Villela, pelas

    sempre instigantes conversas. Aos membros do Hybris (Grupo de Estudo e Pesquisa

    sobre Relaes de Poder, Conflitos, Socialidades) e do Nadir (Ncleo de Antropologia

    do Direito).

    Aos colegas de outras pocas e queles que conheci nessa etapa: Adriana

    Rezende Faria Taets, Ana Flvia Bdue, Ana Gabriela Mendes Braga, Ana Paula

    Gaudeano, Andr-Kess Schouten, Bruna Soares Angotti, Camila Caldeira Nunes Dias,

    Carmen Slvia Fullin, Carolina Christoph Grillo, Catarina Morawska Vianna, Csar

    Augusto de Assis Silva, Contador Borges, Daniel de Lucca, Dario Borelli, Douglas

    Anfra, dson Pzinho, rika Giuliane, Fbio Ozias Zuker, Flvia Carolina da Costa,

    Frederico Policarpo, Gabriel Feltran, Giovanni Cirino, Giuseppe Cocco, Jacqueline

    Moraes Teixeira Kawauche, Jean Tible, Katucha Rodrigues Bento, Marcos Rufino (meu

    orientador de Iniciao Cientfica), Mario Miranda, Paulo Arantes, Paulo Leonardo

    Martins, Rodrigo Estramanho, Rosemary Segurado, Salvador Schavelzon, Stefanie Gil

    Franco, Tatiana Santos Perrone, Thais Diniz Coelho de Souza, Thomaz Kawauche.

  • 6

    Estendo esses agradecimentos aos colegas de ps-graduao com quem partilhei

    discusses instigantes, durante as aulas, nos corredores, durante os cafs.

    Ana Lcia Pastore Schritzmeyer, minha orientadora, pelo incentivo, pela

    liberdade, pela pacincia, pelas discusses, pelas crticas e pelo terno carinho. Sou

    profundamente grato por esses anos de orientao.

    Karina Biondi, uma grande amizade conquistada. Obrigado pela nossa

    parceria em campo, pelos nossos incessantes debates online, pelo modo to generoso

    com que compartilhou comigo seus resultados de pesquisa, enfim, pelas leituras que

    dedicou a esta dissertao (e a outros textos). No tenho como expressar minha

    gratido. Estendo esses agradecimentos Dona ngela, sua me, e tambm ao grande

    Chico, seu esposo.

    Aos meus grandes amigos: Delcides Marques, Eduardo Dullo e Gabriel

    Pugliese. Tambm no sei como expressar minha gratido a essas figuras encantadoras!

    Que mantenhamos nosso tetrlogo de anos! Que mantenhamos a amizade que nos liga

    desde os tempos de graduao.

    Aos meus interlocutores, pelas conversas, pela ateno e principalmente pela

    confiana. A alguns, inclusive, pela amizade. Esse trabalho no seria possvel sem

    vocs.

    Enfim, agradeo aos meus familiares, principalmente minha me, Yvone,

    minha sogra, Rosangela, ao meu sogro, Natanael e aos meus irmos Alexandre e

    Anderson. Obrigado por permitirem que eu chegasse at aqui. Agradeo, enfim, aos

    meus dois amores, para os quais esta dissertao dedicada: minha esposa Juliana e

    meu filho Pedro.

  • 7

    Quando souber anatomia poderei fazer tudo. Ah, libertar-me daqueles asquerosos modelos! Porque at um satrico gosta de ser livre e independente.

    (Paul Klee)

  • 8

    Sumrio

    Agradecimentos............................................................................................................5 Sumrio ........................................................................................................................8 Introduo.....................................................................................................................9

    Conjuntura histrica ..................................................................................................9 Experimento antropolgico......................................................................................14 Interlocutores ..........................................................................................................21

    Genealogias: o proceder e a diviso espacial convvio-seguro ............................24 H proceder, h diviso espacial convvio-seguro............................................24 H!... Mas somente nos pontos de vista..................................................................33 Quatro genealogias .................................................................................................39

    O ser ladro..............................................................................................................58 Um singular modo de voltar-se sobre si mesmo......................................................58 Humildade e cabulosidade ....................................................................................63 Debates ................................................................................................................73 O debate envolvendo S.........................................................................................74 O debate envolvendo R ........................................................................................78 Truco!, canastra limpa, all in: digresses sobre ocasies e relaes ....................82

    O crime.....................................................................................................................89 Origem indefinida, movimento, consideraes......................................................89 Um mundo de imponderveis..................................................................................96 De repente ..............................................................................................................99 Imprescindibilidade e no-suficincia das aes ................................................... 101 Novo...................................................................................................................... 104 Que a psicologia permanea no lugar................................................................. 109

    Consideraes finais................................................................................................. 113 Referncias bibliogrficas......................................................................................... 115

  • 9

    Introduo

    Conjuntura histrica

    Com a rebelio na Penitenciria de Avar, na tarde de 12 de maio de 2006,

    sexta-feira, deu-se incio quilo que viria a ser chamado de Ataques do PCC sigla

    do coletivo de presos Primeiro Comando da Capital1. Horas mais tarde, no incio da

    noite, deflagravam-se, pela Regio Metropolitana de So Paulo, ataques contra policiais

    civis, policiais militares, agentes penitencirios, guardas civis, e tambm contra um

    Distrito Policial. No amanhecer seguinte, os noticirios j anunciavam o curso de uma

    megarrebelio que abrangia mais de duas dezenas de unidades prisionais por todo o

    Estado. No decorrer do dia, constantemente, noticiavam-se atualizaes das somas de

    ataques a rgos pblicos, bem como do nmero de mortos entre policiais, agentes

    penitencirios e criminosos. Aos poucos, passam a ser registrados ataques em cidades

    do interior do Estado e da Baixada Santista. No domingo do Dia das Mes, as aes

    policiais so intensificadas, contudo, se verifica o incio de rebelies em outras dezenas

    de unidades prisionais e tambm em unidades da Fundao Estadual do Bem-Estar do

    Menor (FEBEM). Os ataques no cessam, vrios nibus so incendiados. Na segunda-

    feira, dia 16 de maio, a cidade de So Paulo se v envolta em pnico e se paralisa,

    parcialmente: rgos pblicos, comrcio, instituies de ensino fecham suas portas;

    linhas de nibus deixam de operar; o rodzio de veculos suspenso. Ainda nesse dia,

    agncias bancrias passam a ser alvos de novos ataques e somente noite ocorre a

    conteno parcial das rebelies em andamento. Os ataques prosseguiram com menor

    intensidade nos dias seguintes, contudo, uma segunda onda de ataques ainda seria

    desfechada entre a madrugada do dia 11 (tera-feira) e a tarde do dia 13 (quinta-feira)

    de julho desse mesmo ano2.

    1 Um corpus discursivo sobre esse coletivo formado, gradativamente, ao longo desta dissertao. imprescindvel pontuar, j de incio, que as polticas do PCC, baseado em minhas impresses de campo, vigoram em pelo menos 90% das 147 unidades prisionais coordenadas pela Secretaria da Administrao Penitenciria do Estado de So Paulo. 2 As quantificaes acerca desse episdio permanecem controversas. Para se ter uma idia da magnitude desse acontecimento, vale consultar o balano divulgado pela Secretaria de Segurana Pblica do Estado de So Paulo, em 22/05/2006: http://www.ssp.sp.gov.br/home/noticia.aspx?cod_noticia=8284. Cf. tambm os resultados da pesquisa encomendada pela CONECTAS Direitos Humanos ao Laboratrio de Anlise da Violncia (LAV-UERJ), sob coordenao de Ignacio Cano e Alberto Alvadia (CONECTAS Direitos Humanos et alli., 2008).

  • 10

    No dia 19 de julho, a revista Veja trouxe a pblico uma edio especial sobre o

    PCC. J no incio desse dossi era apresentada uma reflexo segundo a qual as duas

    ondas de ataques promovidas por tal faco encerram um paradoxo:

    Os cabeas da organizao esto presos, o que demonstra a eficincia do trabalho policial. Querem, no entanto, ditar as condies em que cumprem suas penas e, ao faz-lo com explosiva capacidade de comando e coordenao, comprovam que continuam a lanar um repto mortal autoridade do Estado.

    Segundo esse raciocnio que constri o paradoxo citado, a erupo de vozes

    prisionais que querem ditar as condies para o cumprimento de suas penas tida

    como espantosa e extraordinria. Apesar disso, parece que, de um modo um tanto

    despropositado, a prpria reportagem fala de uma tal histria mundial de repressores e

    reprimidos, na qual, sob condies imutveis, aqueles que esto presos teriam a seu

    favor o fator tempo e a excepcional mobilizao de recursos mentais e psicolgicos

    na luta contra as autoridades. Essa tal teoria jornalstica, que postula a invariao

    histrica da luta entre repressores e reprimidos, poderia ser suficiente para afastar tanto

    espanto ante as reaes de prisioneiros mesmo atravs de tticas terroristas, como

    afirma a reportagem s autoridades que os aprisionam. Poderia servir, inclusive, para

    alocar tal espanto frente das expectativas de que a priso possa anular ou neutralizar

    qualquer reao desses homens encarcerados. Poderia... No fosse a poderosa fora do

    anseio explicitado nesse paradoxo.

    O sentido de tal anseio tambm perpassou os discursos eleitorais para as eleies

    de outubro de 2006. A famigerada questo da segurana foi trazida para o centro dos

    debates e a especulao do momento era a respeito de uma suposta negociao que

    representantes do Estado de So Paulo haviam feito com os lderes do PCC, com o

    intuito de encerrar os ataques. Na pauta, um ponto indiscutvel, consensual: as

    negociaes do Estado com prisioneiros so indcios de perda da soberania estatal.

    Contra isso, nenhuma teoria geral da luta entre aprisionados e aprisionadores poderia

    fazer frente.

    No era foroso enxergar, no mago desse anseio, uma atualizao da convico

    de que a tecnologia priso conseguiu, em algum ponto do tempo e do espao, ou

    conseguir, eliminar, ou pelo menos neutralizar, as vontades dos prisioneiros em suas

    relaes negociaes, negaes, guerras etc com a administrao prisional. Nesse

    anseio, a instituio priso ainda recoberta, como fora em seu nascimento sua

  • 11

    transio para uma penalidade de deteno , de um carter de obviedade: 1) bvio

    que a privao de liberdade o castigo igualitrio numa sociedade em que a liberdade

    um bem que pertence a todos da mesma maneira e 2) bvio que seu papel o de

    transformar os indivduos3. E por mais que se possa argumentar que essa obviedade no

    est intacta, afinal, seu objetivo de tornar os indivduos dceis e teis atravs de um

    trabalho preciso sobre seus corpos sempre apresentou inconvenientes4, no se pode

    perder de vista que a priso continua a ser tida como um projeto plausvel. Ainda no

    se parou de reform-la. No se parou de repetir frmulas para reform-la: H um

    sculo e meio que a priso vem sempre sendo dada como seu prprio remdio; a

    reativao das tcnicas penitencirias como a nica maneira de reparar seu fracasso

    permanente (...) (Foucault, 2004: p. 223).

    O que h de mais poderoso no anseio discutido est sustentado no fato de que o

    projeto prisional admissvel, em sua permanente reforma e expanso. imprescindvel

    notar que poca dos ataques do PCC estvamos no seio de uma intensificao sem

    precedentes da poltica de encarceramento no Estado de So Paulo, que se iniciara com

    o governo Mrio Covas, no ano de 1995, se estendendo quele presente ano de 2006,

    que marcava o final do governo Geraldo Alckmin5. A palavra de ordem era aperfeioar

    e expandir o funcionamento penitencirio. E se no nascimento da priso moderna o

    isolamento6 fora fixado como o princpio basilar para cumprir a contento o papel de

    transformar os indivduos, durante o governo Alckmin esse princpio elementar das

    prises modernas era reeditado com o ttulo de Regime Disciplinar Diferenciado

    (RDD)7. Porm, no mais para transformar os indivduos submetidos a essa

    diferenciao de disciplina, mas para conter aqueles suspeitos de pertencerem a

    associaes misteriosas: PCC, CRBC (Comando Revolucionrio Brasileiro da

    3 Sobre o carter de obviedade da priso, cf. Foucault (2004: pp. 195-197). 4 A reforma da priso, por conta de tais inconvenientes, contempornea ao seu nascimento: sua reforma seu prprio programa. Cf. Foucault (2004: p. 198). 5 Nesse perodo, a populao prisional quase triplicou: de 55 mil para 145 mil presos, aproximadamente: http://www.sap.sp.gov.br/common/dti/estatisticas/populacao.htm. A expanso dessa poltica de encarceramento continua a todo vapor no atual governo Jos Serra. 6 Um duplo isolamento: do mundo e entre os presos. O primeiro isolamento pretende instaurar a solido como instrumento positivo de reforma dos presos; o segundo pretende impedir compls e revoltas (...) cumplicidades futuras (...) associaes misteriosas. Enfim, que a priso no forme, a partir dos malfeitores que rene, uma populao homognea e solidria (Foucault, 2004: p. 199). 7 A Lei n 10.792, de 1 de dezembro de 2003, tornou legtimo aos gestores prisionais brasileiros utilizar o RDD para coao de presos, provisrios ou condenados, suspeitos de envolvimento ou participao, a qualquer ttulo, em organizaes criminosas, quadrilha ou bando, conforme descrito no segundo inciso de seu qinquagsimo segundo artigo. Sobre esses recairia, desde ento, os confinamentos de at 360 dias (prorrogveis) em alas especiais, atravs de celas individuais (por 22 ou 23 horas, diariamente), sem atividades educacionais ou profissionais e com rigorosas restries s visitas.

  • 12

    Criminalidade), SS (Seita Satnica), CDL (Comando Democrtico da Liberdade), TCC

    (Terceiro Comando da Capital)8.

    Acompanhando atentamente tais acontecimentos, no era difcil perceber que o

    anseio que perpassa o paradoxo apresentado por Veja e as polticas de segurana

    propostas pelos candidatos presidncia da Repblica, colocava um problema

    fundamental: ser possvel, ou melhor, plausvel realizar polticas pblicas que buscam

    zerar-nos num grfico cujo ndice vlido para mensurao da soberania estatal

    representado por um gradiente que vai do nenhuma negociao com criminosos/

    soberanamente soberano ao inumerveis negociaes com criminosos/ ausncia

    absoluta de soberania?9 Ser que possui alguma exeqibilidade um projeto de priso

    que pretenda represar qualquer ttica de negociao, de reivindicao ou de

    enfrentamento por parte de prisioneiros? Refletindo sobre essas questes, punha-me a

    pensar nos dados de campo que j possua sobre as relaes entre a administrao

    prisional e os prisioneiros, nas quais esses ltimos eram o plo ativo da negociao10.

    Quo insustentvel me parecia a inteno de anul-los! Entretanto, quo reais eram os

    efeitos desse anseio!

    poca, Biondi (2007a) j havia apresentado uma importante contribuio

    etnogrfica sobre as negociaes entre essas partes. Alm disso, tais relaes no se

    tratam de fatos recentes. Salla discorreu sobre as resistncias de prisioneiros na

    longnqua Penitenciria do Estado da dcada de 1920:

    Uma das formas mais indicativas da resistncia que opunham os presos ao regime penitencirio estava relacionada quebra da lei do silncio. Pelo prprio Cdigo Penal, depois do primeiro estgio da pena, de isolamento celular absoluto, era previsto o trabalho em comum sob silncio. Embora a Penitenciria do Estado tivesse por todos os corredores e dependncias placas recomendando-o, os vrios relatos das infraes cometidas pelos presos apresentados neste captulo mostram freqentemente a sua quebra (Salla, 2006: p. 216).

    Em outro exemplo, o mesmo autor trouxe luz o caso da greve na vassouraria,

    ocorrida em 1927, na mesma instituio (Salla, 2006: pp. 221-224). imprescindvel

    lembrar que a Penitenciria do Estado, inaugurada em 1920, (...) ao que tudo indica,

    8 Entre os anos de 1820 e 1845 j se criticava, entre outros pontos, o fato de que a priso favorece a organizao de um meio de delinqentes, solidrios entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras (Foucault, 2004: pp. 221-222). 9 No seria esse zerar, em alguma medida, uma ressonncia da doutrina da tolerncia zero, to bem analisada por Wacquant (2001)? 10 Apresentei alguns resultados parciais em Marques, 2008. Nessa ocasio eu j havia colocado a problematizao que marca o incio desta Introduo. Retomo-a, contudo, com algumas modificaes.

  • 13

    (...) elegeu-se como smbolo de uma modernidade penal que parecia afinada com a

    marcha do processo civilizatrio no Brasil (Adorno, 2006: p. 19).

    Por tudo isso, eu estava decidido a explorar meus dados etnogrficos a partir de

    uma reflexo sobre a tese, guardada em Vigiar e punir, de que as tticas da priso para

    docilizar e tornar teis os corpos dos prisioneiros, no so postas em prtica sem se

    defrontarem com contra-tticas elaboradas por esses prprios prisioneiros. Mais

    especificamente, eu pretendia estudar as polticas penitencirias de combate quilo

    que vem sendo caracterizado por crime organizado, postas em exerccio desde pelo

    menos o governo Mrio Covas, em sua relao indissocivel com as polticas dos

    prisioneiros11. Nesse sentido, eu conferiria anterioridade a essas polticas nem lgica

    nem histrica, mas pragmtica em detrimento das unidades os presos e a priso

    que, de modo contumaz, desarticulam a possibilidade de pensar termos em relao.

    que os presos e a priso no tm vsceras (no sentido de que no tm interior); no

    so nada mais que efeitos mveis de suas prprias atualizaes, derivados, portanto, das

    relaes que os atravessam12. Com efeito, achava-me pronto para produzir uma

    etnografia que apresentasse as incidncias recprocas de tais polticas: se o delinqente

    o produto da instituio (Foucault, 2004: p. 249), tambm verdade que a instituio

    produto do delinqente. Uma etnografia dividida em duas partes: na primeira,

    focalizaria os investimentos das polticas penitencirias sobre os corpos dos

    prisioneiros; na segunda, focalizaria os investimentos das polticas dos prisioneiros

    sobre o corpus penitencirio (Marques, 2008).

    11 Durante o governo Alckmin, essas polticas ganharam considervel reforo atravs da Conveno de Palermo : A Organizao das Naes Unidas sempre esteve atenta ao fenmeno do crescimento do crime organizado transnacional, e est convencida de que uma resposta ao problema s pode ser efetiva se conduzida atravs da cooperao internacional. O primeiro passo em busca dessa cooperao foi dado em 1997, com a criao do Centro Internacional para a Preveno do Crime (CICP), que parte do Escritrio das Naes Unidas contra Drogas e Crime. Em 9 de dezembro de 1998, a Assemblia Geral das Naes Unidas determinou, atravs da resoluo 53/111, a criao de um comit de trabalho com fim especfico de elaborar uma conveno internacional sobre o combate s atividades do crime organizado transnacional. (...) Em dezembro de 1999, realizou-se em Palermo, Itlia, uma conveno de alto nvel para a assinatura do texto da conveno preparada por esse comit, sob o ttulo de Conveno das Naes Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Esse documento, tambm conhecido como Conveno de Palermo, representa um passo importante na luta contra o crime organizado transnacional, no qual as Naes Unidas expressam a sua convico de que este um problema real e grave, que s pode ser combatido por intermdio da cooperao internacional. A Conveno ficou aberta em Palermo por trs dias, para assinaturas de adeso. Nesse perodo, representantes de 124 pases das Naes Unidas assinaram o documento, o que representa a adeso mais rpida j obtida por uma conveno das Naes Unidas. (http://www.unodc.org/brazil/pt/articles_speechs_simposio_crime_organizado.html). 12 No fao mais do que me apropriar dos deslocamentos promovidos por Foucault em suas anlises sobre o Estado (2008 e 2004).

  • 14

    Contudo, durante os desdobramentos desta pesquisa de mestrado, julguei que tal

    tarefa dependia de uma exposio etnogrfica que levasse a um melhor termo os

    resultados de minha Iniciao Cientfica13. Era preciso voltar-me exclusivamente sobre

    os prisioneiros, explorar seus diferentes pontos de vista acerca da experincia prisional,

    suas defesas do que julgam ser o certo, seus combates motivados por tais

    compreenses, suas estratgias durante os embates travados. Era preciso deter-me sobre

    as relaes entre os prprios presos. Somente assim, segundo entendo, se sedimentar

    um solo propcio execuo da tarefa que agora se encontra protelada para uma

    prxima etapa de pesquisa.

    Experimento antropolgico

    O ponto de partida desta pesquisa de mestrado est na composio dos

    resultados finais de minha Iniciao Cientfica. Durante a graduao, estive empenhado

    em me inserir na seara das discusses acerca de estrutura e ao. Com efeito, me referi

    sempre a uma dimenso simblica, ou melhor, a um campo de estruturas significantes

    (sincronia) que, de todo modo, deve se acoplar dimenso histrica da vida social

    (diacronia). A partir desses parmetros, encontrei um complexo conjunto de regras que

    organiza parte significativa da experincia cotidiana no interior das unidades prisionais

    do Estado de So Paulo, balizando os modos de se pedir licena para ficar em uma

    determinada cela, de se despedir no dia da concesso de liberdade, de se portar durante

    os dias de visita, de utilizao do banheiro, a higiene das celas, os esportes, a conduta

    especfica para os evanglicos, a escolha de vestimentas, os acordos econmicos, as

    trocas materiais, as resolues de litgios, as diferenciaes entre presos a partir dos

    motivos que os levaram priso e a partir de suas histrias antes mesmo do crcere,

    enfim, as decises sobre quem deve ser punido por no cumprir tais regras e como deve

    ser punido segundo a sua falta.

    Pude verificar que todas essas regras esto compactadas, pela populao

    carcerria, em uma nica categoria nativa: proceder. Contudo, tal palavra no 13 Iniciao Cientfica financiada pela FAPESP, de junho de 2006 a dezembro de 2006 processo n 05/58991-6 sob orientao do Prof Dr. Marcos Pereira Rufino. Os resultados dessa pesquisa esto sistematizados na monografia Proceder: o certo pelo certo no mundo prisional, apresentada como Trabalho de Concluso de Curso na Fundao Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo (FESPSP) ao final de 2006. Dessa pesquisa ainda resultaram diversas apresentaes em congressos, dentre as quais destaco o painel Investigao sobre o proceder: um sistema simblico do mundo prisional, com o qual recebi meno honrosa no Prmio Lvi-Strauss (Categoria A) organizado pela Associao Brasileira de Antropologia (ABA) durante a reunio de 2006.

  • 15

    tomada pelos prisioneiros para indicar uma ao, antes, utilizam-na como atributo do

    sujeito. Mas no s isso, utilizam-na, tambm, como um substantivo. Desse modo,

    nunca dito ele procede, mas sim, ele tem proceder ou o proceder. Pude verificar

    tambm que correlato distino entre presos que tm proceder e presos que no

    tm proceder se efetua um recorte preciso sobre o espao prisional, uma diviso

    espacial entre convvio e seguro. Se no primeiro permanecem aqueles reconhecidos

    como detentores do proceder, no ltimo so exilados aqueles que falharam sob esse

    regime de regras e condutas. Enfim, constatei ainda que as regras desse tal proceder

    variaram historicamente, culminando em diferentes defesas acerca do que o proceder

    verdadeiro ou o proceder pelo certo: uma defesa anterior vigncia dos comandos

    e diferentes defesas, atualmente, entre os diversos comandos. Contudo, apesar da

    variao das regras, em nenhuma dessas defesas deixou-se de operar a diviso ter

    proceder / no ter proceder.

    Partindo desses resultados, compus um projeto de pesquisa que norteou a

    releitura dos dados com os quais eu contava, bem como a produo dos novos dados

    que eu viria a coletar. Esse norte consiste exatamente em evitar a dicotomia estrutura

    simblica / histria em proveito de uma anlise na qual as atividades dos meus

    interlocutores aparecem sobre um plano de acontecimentos unvoco no mais dois! ,

    entrecortado por escalonamentos de distintos alcances, amplitudes cronolgicas e

    capacidades de produzir efeitos (Foucault, 2006b: p. 5). Em consonncia com essa

    diretriz, e tendo em vista diferentes defesas acerca do proceder, deixei de indagar por

    relaes de sentido e de significado, para privilegiar relaes de poder; lutas e

    enfrentamentos exercitados atravs de economias de discursos de verdade que

    funcionam no prprio poder, a partir e atravs dele. Com isso eu no queria destituir o

    sentido, a inteligibilidade da realidade, mas busc-lo nas prprias lutas; na produo, na

    acumulao, na circulao e no funcionamento do poder (Foucault, 1999 e 2006b). Em

    suma, passei a tentar compreender as relaes entre esse complexo conjunto de regras e

    condutas especfico, localizado e varivel denominado proceder, os efeitos de

    verdade disparados pelas formulaes de meus interlocutores e os mecanismos de poder

    que os atravessavam.

    Embalado por um projeto to carregado de nortes, inevitavelmente uma questo

    se abriu em meu horizonte: que tipo de poder esse que atravessa os corpos no interior

    dos crceres paulistas por meio de dispositivos especficos e que capaz de produzir

    uma diviso populacional intrinsecamente ligada a uma diviso espacial? Foi

  • 16

    justamente essa pergunta que apresentei como problemtica central do meu projeto de

    mestrado. O poder ultrapassava meus dados empricos, portanto era posicionado na

    problemtica central, com a expectativa de que, mais tarde, eu pudesse lhe sustent-lo

    com dados empricos!

    A ttulo de hiptese, eu ainda propus que tal poder, em seu exerccio, produz a

    associao dos presos que tm proceder a partir de discursos de verdade estabelecidos

    segundo regras do proceder e que disso deriva o convvio como o espao dos

    associados. Conseqentemente, pelo prprio efeito contrrio do exerccio de associar,

    produz dissociaes para exilar (mandar para o seguro) ou matar aqueles que no

    conseguem se esquivar das acusaes de no ter proceder. Avanando ainda mais em

    minha hiptese, ressaltei, como regras do proceder, os procedimentos para o

    estabelecimento do que ter proceder e do que no ter proceder; quanto aos

    mecanismos de poder, sugeri abordar os mltiplos dispositivos atravs dos quais o

    poder associativo / dissociativo (puramente relao, fluxo) incide sobre os corpos (a

    separao espacial convvio / seguro; os rituais de resoluo de litgios entre presos,

    chamados de debates; algumas diretrizes polticas dos comandos); enfim, como

    discursos de verdade apontei possibilidades discursivas produzidas nessas relaes de

    foras (eu tenho proceder, pilantra tem que morrer, o proceder a voz maior, o

    lado certo da vida errada, o certo pelo certo).

    Apesar de no possuir, na ocasio em que propus o projeto de mestrado, dados

    empricos suficientes para elaborar um conceito de poder cuja natureza fosse a produo

    de associaes e de dissociaes, eu j asseverava que eles eram suficientes, ao menos,

    para no replicar a noo de poder disciplinar de Foucault (2004) sobre as relaes

    sociais de meus interlocutores. Argumentei que a utilizao dessa noo para explicar

    acontecimentos especficos, intimamente relacionados ao universo emprico por mim

    delimitado, configuraria aquilo que h de mais anti-foucaultiano. Alm disso, seria

    ignorar a prpria gnese de sua construo e sua ntima relao com acontecimentos

    regionais especficos; seria conceder-lhe um carter universal, qui um estatuto de

    metfora holstica. Eu at cedia em falar sobre uma disciplinarizao dos corpos

    submetidos ao regime do proceder. Contudo, definia terminantemente: a noo de

    poder disciplinar no parece dar conta das especificidades das relaes que atravessam o

    proceder.

    Em minha busca para compreender as caractersticas definidoras de um poder

    singular, refletindo se ele poderia realmente ser designado por associativo / dissociativo,

  • 17

    cheguei outra hiptese, segundo a qual os dispositivos que o pem em exerccio

    devem ser pensados como uma rede produtiva que atravessa o corpo social e constitui

    homens de proceder e homens de seguro. Era a dimenso constituinte desse poder

    singular que eu j entrevia, podendo afirmar que o que faz de um corpo, gestos,

    discursos e desejos uma constituio identificadora de um indivduo precisamente um

    de seus efeitos primeiros (Foucault, 2006b e 1999: p. 35; Machado, 2006: pp. XIX-XX).

    Tinha minha frente, j, um poder capaz de produzir vidas bandidas associadas em

    torno de discursos de verdade, mas, tambm, capaz de produzir vidas exiladas,

    medrosas, alm de modos especficos de morrer. Afirmava que tanto os presos

    associados no convvio quanto os presos exilados no seguro, so todos corpos

    perifricos e mltiplos constitudos pelos efeitos desse poder associativo / dissociativo.

    Segundo entrevia, os primeiros, por terem obtido a glria ao serem incitados a falar pelo

    proceder, tornaram-se homens de proceder. Os outros, por terem sido maculados ao

    terem suas aes, opinies ou condutas condenadas pelo proceder, tornaram-se

    homens de seguro.

    Persegui os nortes estabelecidos em meu projeto de mestrado durante o primeiro

    ano de pesquisa. Tantos esforos para emparelhar meus dados etnogrficos

    compreenso que eu tinha da obra de Michel Foucault, faziam-me interromper

    demasiadamente as descries de meus interlocutores. E isso ficava patente nos

    trabalhos que eu realizava para as disciplinas cursadas, bem como nos papers

    apresentados em algumas ocasies. Por outro lado, no me parecia realizvel uma

    proposta antropolgica estritamente nativa: no era o caso de tentar refundar uma tabula

    rasa para dar continuidade minha pesquisa. Alm do mais, o problema no era

    exatamente a teoria de Foucault. O problema era encontrar um termo proficiente para o

    uso da teoria. Quem me dera se eu pudesse ter a fora para bancar o delrio de

    presuno desse autor:

    (...) em geral, ou se tem um mtodo slido para um objeto que no se conhece, ou o objeto preexiste, sabe-se que ele est ali, mas se considera que ele no foi analisado como devia, e se fabrica um mtodo para analisar este objeto preexistente j conhecido. Estas so as duas nicas maneiras convenientes de se conduzir. Quanto a mim, eu me conduzo de maneira totalmente insensata e pretensiosa, sob aparente modstia, mas pretenso, presuno, delrio de presuno, quase no sentido hegeliano, querer falar de um objeto desconhecido com um mtodo no definido. Ento, visto a carapua, sou assim (Foucault, 2006c: pp. 229-230).

  • 18

    Mas no estava (nem estou) em condies de me conduzir de uma maneira to

    insensata e pretensiosa. Decidi, ento, tomar uma deciso ousada, displicente mesmo,

    no momento de sistematizar meus dados. Mesmo guardando como inspirao os estudos

    tericos que eu havia realizado, passei a refrear meu mpeto de lan-los a cada

    pargrafo escrito, de buscar trechos de pginas que pudessem comprovar que eu estava

    no caminho certo, de fixar a adequao dos passos de meus interlocutores em veredas

    trilhadas por outros homens. Talvez isso seja uma fraqueza, uma dificuldade para

    encontrar outra relao mais produtiva entre teoria e dado. Entendo, no entanto, que se

    trata de uma tentativa de renunciar a recursos explicativos que, quase sempre,

    livravam-me de descrever as explicaes de meus interlocutores. Uma simples

    prudncia: no momento em que eu me encontrava a sistematizar um dado que fora

    produzido, refletido, pensado a partir de um recurso terico, esforava-me para desloc-

    lo minimamente dessa pr-formatao, intensificando os prprios termos colocados

    pelos meus interlocutores.

    No estou certo de que essa simples prudncia possui o mesmo sentido da

    sugesto que Latour d a seu aluno, acerca da produtividade que h na absteno de

    toda e qualquer moldura e dos benefcios que podem ser obtidos com o empenho na

    descrio do estado dos fatos que esto mo (Latour, 2007: p. 341). O estado dos

    fatos que coloquei em minha prpria mo, j era um estado foucaultiano! Meus

    esforos, repito, visaram to somente promover pequenos deslocamentos desses fatos

    no momento de sua sistematizao, em relao s pr-formataes que eu havia

    sedimentado. De qualquer forma, em minha descrio subjaz uma explicao14.

    Essa marca subjacente muito forte. Pode at ser chamada de vis, que est

    diretamente ligado s minhas leituras, minha insero acadmica, enfim, minha

    proximidade com pesquisadores que compartilham um certo nmero de pressuposies.

    H quantidades no desprezveis de informao sobre meus interlocutores nesse vis!

    Desse modo, no espero que minha atitude displicente com relao aos recursos tericos

    que carrego seja compreendida como uma tentativa de encontrar a verdade do nativo.

    Mas, simplesmente, volto a frisar, como uma tentativa de intensificar os prprios termos

    colocados pelos meus interlocutores. Nisso consiste meu experimento antropolgico.

    14 Latour chegar a afirmar que uma descrio que precisa de uma explicao no uma boa descrio (Latour, 2007: p. 344).

  • 19

    Explicito-o, assim, to claramente, para expor sua natureza fictcia aos leitores15.

    Para que seja compreendido prximo de (...) uma espcie de fico conveniente ou

    controlada (Strathern, 2007: p. 31). De certo modo, nos termos de Bohannan, forjei um

    encontro entre o meu sistema folk minha compreenso da obra de Foucault e os

    sistemas folk dos meus nativos (Bohannan, 1973). Esse procedimento, digo,

    forjamento, perpassou os trs captulos desta dissertao, ainda que com diferentes

    intensidades.

    No primeiro captulo, apresento quatro diferentes compreenses sobre o

    proceder e a diviso espacial convvio-seguro, defendidas por meus

    interlocutores: 1) ex-presidirios que viveram experincias prisionais at mais ou menos

    a primeira metade da dcada de 90, portanto antes do surgimento ou da consolidao

    dos comandos nas unidades prisionais do Estado de So Paulo; 2) ex-presidirios que

    viveram experincias em unidades prisionais do PCC; 3) (ex-) presos que viveram, ou

    vivem, em cadeias do CRBC; e 4) presos que, aps terem sido mandados para o

    seguro em cadeias do PCC, passaram a viver nas margens de cadeias do CRBC

    dentre os quais, alguns passaram a garantir suas vidas atravs de idas e vindas entre

    seguros de cadeias do PCC e seguros de cadeias do CRBC. Esses entendimentos se

    tratam de quatro diferentes modos de reagir pergunta o que o certo?, de defender

    que somente seu agrupamento consegue estabelecer as correlaes ter proceder-

    convvio e no ter proceder-seguro, enfim, de asseverar a impertinncia das

    correlaes operadas nos territrios inimigos. Em suma, efetuam jogos de conexo e

    de desconexo entre os termos do proceder e os termos da diviso espacial

    convvio-seguro.

    A inspirao de fundo para a construo desse captulo repousa no processo de

    elaborao da noo de saber de Foucault: seus constantes esforos para diferenciar as

    15 Acerca de um impactante enunciado de Foucault Nunca escrevi seno fices... , Deleuze escreveu: Mas nunca a fico produziu, tanto, verdade e realidade (2005: 128). Entre esses dois enunciados, que aparentemente poderia levar-nos a imaginar uma relao de correo estabelecida pelo segundo sobre o primeiro, h apenas concordncia. E tal afirmao pode ser confirmada se repararmos que a noo de fico aterrorizante para a Antropologia de outrora e que ainda, penso, reverbera seus temores nos dias atuais no oferece qualquer problema para estes dois autores. O primeiro sempre esteve preocupado com o plano dos acontecimentos (Foucault, 2006b: 5)15, no como um historiador propriamente, mas atravs de pesquisa histrica. No entanto, no se incomoda em afirmar que fez fico, soube inventar, sintonizando com as novas concepes dos historiadores, uma maneira propriamente filosfica de interrogar, maneira nova e que d nova vida Histria (Deleuze, 2005: 58-59; grifo meu). O segundo e aqui me deterei apenas ao comentador de Foucault , tambm preocupado com o plano dos acontecimentos (Deleuze & Guattari, 2005), para dizer que a obra que comenta produziu verdade e realidade no precisa retirar dela o predicado fico (alm disso age como um autntico antroplogo, j que leva a srio o que dito!).

  • 20

    estratificaes no-discursivas uma definio ainda negativa das estratificaes

    discursivas, ao longo de As palavras e as coisas (2007) e principalmente de A

    arqueologia do Saber (1995), bem como sua definio positiva da diferena entre

    direito penal (enunciado) e priso (visibilidade), fixada em Vigiar e punir (2004).

    Tambm me inspirei na interpretao singular de Deleuze em seu livro-homenagem a

    Foucault (2005).

    No captulo dois, busquei desdobrar e deslindar (no sentido de averiguar as

    demarcaes) uma instncia de experincias dos presos que, embora adjacente aos jogos

    conectivos-desconectivos que do consistncia estratificao proceder/ convvio-

    seguro, no se confunde com eles. Pode-se dizer que se tratam de dimenses

    inseparavelmente arranjadas, embora sejam diferenciveis. Essa instncia, em relao

    diferencial aos jogos de conexo e de desconexo, singulariza-se por ser preenchida por

    jogos de fora, por ser uma dimenso de estratgias e no de constituio de verdades.

    Busquei mostrar que os presos, nela, so levados a prestar ateno a eles prprios, a se

    conhecer, a se blindar, a reconhecer o tamanho de seu poderio de defesa, de ataque,

    enfim, a se reconhecerem como caras humildes e caras cabulosos, constituindo de si

    para consigo um portentoso maquinrio de relaes, do qual deriva uma espcie de

    descoberta acerca da verdade de seu prprio ser: sou ladro.

    A inspirao basilar para a construo desse captulo se encontra na produo da

    noo de subjetivao que Foucault empreendera em O uso dos prazeres (2005a), em O

    cuidado de si (2005b) e no curso Hermenutica do sujeito (2006a).

    Finalmente, no terceiro captulo, mapeei uma noo de crime amplamente

    utilizada por meus interlocutores, desdobrando trs caractersticas presentes em seus

    relatos: (1) um movimento que vem atravessando territrios (2) desde um instante

    no definido, (3) efetuando consideraes sobre as caminhadas de ladres e de

    outros, a partir dos entendimentos sobre o proceder e sobre a diviso convvio-

    seguro, sendo que, disso, derivam conjuntos de aliados e de inimigos. Destaquei,

    tambm, trs sinais da imponderabilidade de seu movimento: 1) os verbos que

    designam as mil aes que do consistncia ao crime, encontram em de repente seu

    mais ntimo advrbio; 2) cada uma dessas aes imprescindvel para a efetuao do

    crime ele se expande nos seus rastros , porm, somente na medida de sua no-

    suficincia, pois o devir dessa fora no est contido em uma ao; 3) de cada efetuao

    do crime constitui-se uma nova disposio posicional de aliados e de inimigos.

  • 21

    imperioso dizer que a noo de poder, desenvolvida em Vigiar e punir por

    Foucault, foi inspirao importante para a produo desse ltimo captulo.

    Interlocutores

    Presidirios, ex-presidirios e seus familiares: esses so os trs principais grupos

    em que se inserem os interlocutores desta pesquisa. Ao inici-la, eu j havia

    estabelecido uma razovel rede de interlocuo, que se expandiu mais ainda. Apesar de

    ter perdido alguns contatos que fizera na Fundao de Amparo ao Trabalhador Preso

    (FUNAP), mantinha conversas com ex-presidirios e familiares que conheo de longa

    data, moradores do meu bairro e de bairros vizinhos. Mantive, tambm, conversas com

    ex-presos que eu havia conhecido em uma clnica voltada para a recuperao de

    dependentes qumicos. A partir desses contatos, pude conhecer amigos e parentes que

    tambm haviam sido presos, pude tomar caf na casa de interlocutores que at ento eu

    no conhecia, pude travar longas conversas num bar localizado no centro de Diadema

    (SP), pude passar tardes regadas de rap na Cohab Teotnio Vilela (zona leste da

    capital), pude freqentar o comrcio de um homem que havia se defendido em um

    debate, pude conhecer um ex-presidirio morador do bairro do Limo (zona norte

    da capital) nesse mesmo comrcio. At um jogo televisionado pude assistir num

    boteco localizado na viela Florestan Fernandes, no Jardim Promisso, em Diadema!

    Outra importante ocasio em que pude travar conversas com interlocutores se

    deu durante uma viagem para Braslia, entre os dias 27 e 29 de novembro de 2007.

    Junto pesquisadora e amiga Karina Biondi, acompanhei ex-presidirios, familiares de

    presos e de ex-presidirios e membros de ongs, em uma manifestao de protestos

    contra a opresso carcerria. Durante a maior parte do trajeto estive com ex-presidirios

    em seus prprios carros. Ao longo de uma ou duas centenas de quilmetros, mais ou

    menos, estive com familiares em nibus.

    Em trs oportunidades, durante os dias 19 de junho, 26 de outubro e 26 de

    novembro de 2007, estive na Penitenciria Jos Parada Neto (Guarulhos SP),

    conversando com presos e funcionrios agentes prisionais e diretores de reas. Essa

    insero, na verdade, iniciou-se durante minha graduao, quando adentrei nessa

    unidade prisional pela primeira vez. indispensvel notar que encontrei timas

    condies para conversar com os prisioneiros que me foram apresentados. Quero dizer:

    pude dialogar com eles em sala reservada, longe dos funcionrios. Entretanto, esses

  • 22

    presos eram escolhidos pelo funcionrio que me recebia na instituio! O mesmo

    controle no foi efetuado durante as caminhadas que fiz na radial daquela priso,

    espao em que pude me dirigir livremente aos presos que passavam.

    Tomei como dados de pesquisa, tambm, as biografias escritas por ex-

    presidirios. Do mesmo modo procedi em relao s letras de rap que selecionei, cujos

    letristas, seja por estarem presos ou por j terem sido presos, seja por transitarem

    colateralmente sobre as redes da experincia prisional, proferem relatos e formulaes

    que me interessaram16.

    Enfim, devo dizer que procurei ao mximo evitar uma relao de investigao

    com meus interlocutores. Jamais quis saber, nem soube, daquilo que estava em vias de

    acontecer. Falamos sobre acontecimentos que no eram passveis de punio legal, ou

    que j haviam sido pagos Justia. Alm do mais, para evitar possveis complicaes

    a eles, e a mim, segui a mesma diretriz estabelecida em minha Iniciao Cientfica:

    comprometi-me a abstrair os nomes e os lugares dos relatos que me eram contados

    (Marques, 2006)17.

    E se com alguns no foi possvel mais do que poucas palavras, pois no estavam

    interessados em conversar comigo, de outros me tornei colega. Amigo de alguns.

    Admirador tambm. Conduzimos nossas conversas de modo espontneo, falando sobre

    futebol, baralho, domin... e sobre o crime! Evitei, ao mximo, a deselegncia das

    anotaes nos instantes das conversas. Deixei-as para depois. Somente saquei meu

    16 Wacquant foi bem sensvel ao perceber que (...) a simbiose estrutural e funcional entre o gueto e a priso encontra uma expresso cultural surpreendente nos textos e no modo de vida exibidos por msicos de gangster rap, como atesta o destino trgico do cantor-compositor Tupac Shakur (2001: p. 98). O mesmo atestado, em verso brasileira, encontra no destino trgico do cantor-compositor Sabotage a mais terrvel atualizao. justamente esse rapper quem oferece a chave conectiva para a aliana entre o rap e o crime: "(...) A humildade quem conduz pra que o rap reproduz o crime" (Sabotage, 2001b). O princpio no sentido qumico dessa aliana aquilo que meus interlocutores designam de humildade; adiante, o sentido dessa noo ser esclarecido. Na mesma msica, o rapper afirma estar alinhado queles que no so creme (...) Quem no creme eu fao parte tambm , ou seja, que no constituem o falso crime, ou ainda, que no so comdias. Por fim, deixo que um outro rapper estabelea, em forma de rap, essa simbiose de que nos fala Wacquant: (...) Rap o som/ a linguagem da rua e da priso (Sandro et alli, 2001). 17 Barbosa tambm tomou essa mesma precauo em sua pesquisa sobre o trfico de drogas no Rio de Janeiro: (...) NENHUMA MENO A DATAS, LOCAIS, ou NOMES. (As referncias explcitas neste trabalho foram retiradas dos jornais) (Barbosa, 1998: p. 16; as nfases em maisculo esto no original). Marques & Villela enfrentaram questes similares e definiram bem esse estado de coisas: Assim, ao lado das observncias da tica, a deciso entre o que publicar ou calar pode ter a ver com o reconhecimento de relaes de poder envolvidas, na relao entre nativo e antroplogo, mas tambm dos nativos entre si, na generalidade dos trabalhos da disciplina. Poder ou autoridade no se concentram em apenas um lado da balana, presumivelmente mesmo nas pesquisas que envolvem grupos alijados do mando econmico ou poltico (Marques & Villela, 2005: p. 56).

  • 23

    caderno diante deles nas ocasies em que no contive minha empolgao: Putz!

    Preciso anotar isso!.

  • 24

    Genealogias: o proceder e a diviso espacial convvio-seguro

    H proceder, h diviso espacial convvio-seguro...

    H algo para o qual se d o nome de proceder. Algo que orienta partes

    significativas de experincias cotidianas. Melhor dizendo, algumas junes singulares

    de regras e de instrues sobre condutas, em contnua transformao, verificadas em

    diferentes redes sociais, recebem o nome de proceder. Escuta-se essa palavra (...) nas

    ruas, nos campos de futebol de vrzea, nas arquibancadas dos estdios de futebol, em

    escolas, nos sales (danceterias), nas pistas de skate, nas lotaes e nibus que cortam a

    cidade etc; canta-se essa palavra (...) nas letras de rappers, funkeiros e funkeiras [da

    cidade de So Paulo,] do interior paulista, baixada santista, Rio de Janeiro, Braslia etc;

    conhece-se essa palavra desde os extremos (fundo) da capital paulista at a (...)

    Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo (Marques: 2006, p. 14). Em seu estudo

    sobre os pixadores em So Paulo, Pereira apontou para as especificidades do

    proceder dos pixadores, percebendo-o inserido no repertrio mais amplo de certos

    grupos ligados periferia: movimento Hip Hop, torcidas organizadas, baloeiros,

    skatistas (Pereira, 2005: p. 96-97)18. Por sua vez, Hirata apontou o proced com esta

    grafia como o pilar mais importante do cdigo de honra baseado nos princpios da

    Lealdade, Humildade e Procedimento (LHP), em seu estudo sobre o futebol de vrzea19.

    18 Pereira fornece uma valiosa definio dessa noo: (...) um conjunto muito particular de regras de comportamento comum a determinados grupos na cidade, que no s regula as relaes entre os indivduos como tambm exprime o seu pertencimento. Esta idia de proceder utilizada pelos pixadores tambm engloba outros dois elementos, j citados anteriormente: a humildade e a lealdade. (...) estes dois elementos garantem o funcionamento da rede de reciprocidade e asseguram as alianas. Porm, a idia de proceder mais ampla e engloba outros elementos. Ela envolve um repertrio prprio de modos de agir, de postura corporal, de fala, de grias, de vestimenta e de outras referncias comuns. Enfim, o proceder envolve um conhecimento especfico, um capital simblico peculiar a estes jovens e que inclusive extrapola os limites da pixao. O proceder remete a dois significados: o de procedncia (de origem, de provenincia) e o de procedimento (de modo de portar-se, enfim, de comportamento). Pode-se afirmar que estes dois sentidos da palavra proceder esto presentes no uso feito pelos pixadores. Portanto, a idia de proceder ou simplesmente proced, como muitos costumam dizer refere-se a normas de procedimento permeadas por noes de procedncia social (2005: p. 95). 19 Os usos de linguagem feitos pelos meus interlocutores so dados que merecem destaque. Por isso estabeleci certas estratgias de escrita para a composio desta dissertao de mestrado. Por exemplo, a palavra ladro pouqussimas vezes foi citada no plural, por isso decidi mant-la desse modo nas frases de meus interlocutores (os ladro tinha mais apetite), mas no quando a utilizo no texto corrente (Os ladres daquele coletivo poltico). O mesmo vale para nis (ns), c (voc), sumemu (isso mesmo), tendeu (entendi), exturqui (extorque), os polcia e os sujeito homem (utilizados sempre no singular) etc. Quanto s incidncias das palavras proceder, proced e, at mesmo, prosede conforme ilustra a foto inserida adiante optei por manter a primeira ocorrncia. Entendo que esses usos

  • 25

    Assinalou sua extenso, enquanto gramtica comum, torcida de futebol Gavies da

    Fiel, ao Primeiro Comando da Capital (PCC), s letras de grupos de rap, enfim, aos

    (...) perueiros, fiscais, ladres, traficantes e mais todos os que transitam nessa zona de

    indiferenciao entre o legal e o ilegal (Hirata, 2006, pp. 273-278). Talvez seja o

    rapper Xis, oriundo da Cohab II de Itaquera, zona leste da capital paulista, quem nos d

    a mais sinptica declarao sobre a extenso desse cdigo, atravs de sua msica

    intitulada, sintomaticamente, Proced e tal: (...) Us mano l da oeste o que eu desejo

    ver: paz entre us mano, s proced/ Todo mundo l na sul tem que entender: paz entre

    us mano, s proced/ Toda zona norte vai compreender: paz entre us mano, s proced

    (Xis et alli., 2001).

    Atrelada a essas menes sobre a extensividade do proceder escancaram-se

    indicaes acerca de sua importncia, produtividade e gravidade operam como

    recomendaes para que ele no deixe de ser observado. O rapper Sabotage evidencia a

    relevncia desse cdigo em vrias de suas msicas. No refro de Na zona sul

    referncia regio em que se localiza seu bairro, Favela do Cano (Brooklin) , aps

    caracterizar essa regio como um lugar cujo cotidiano adverso, ordena aos ouvintes

    que mantenham o proceder e, enfim, anuncia aquilo que acontece queles que no o

    contm20: Na zona sul, cotidiano difcil/ Mantenha o proced/ Quem no contm ta

    fudido (2001b). Em outra msica, o proceder anunciado como acesso vitria e ao

    crescimento, mas tambm como recurso para se tornar prevalecente em meio s

    adversidades das ruas: (...) A lei das ruas rude, faz voc aprender/ Proced pra

    vencer, pra crescer, prevalecer (Sabotage et alli, 2005). Pelas mesmas ruas rudes

    ecoam avisos que, digamos, recomendam uma certa ateno: (...) Se liga no seu

    proced, proced, proced/ Se liga no seu proced, proced, proced (Xis et alli, 2001).

    Enfim, esses avisos devem ser entendidos como advertncias para que se evite a

    conseqncia inevitvel que recai sobre aqueles que ignoram o proceder nas ruas

    rudes de So Paulo: Assim que , sem proced no para em p (Sandro et alli,

    1999).

    de linguagem compem um estilo particular de fala que se tornou o mais adequado portanto, preponderante para determinadas circunstncias: a expresso se liga, fita de mil grau prepondera sobre a frase ateno, acontecimento surpreendente quando se fala a partir de cadeias, do rap, do funk etc. Enfim, esses usos s podem ser classificados como errados se tomarmos como referente a constituio gramatical oficial; em si mesmo, nenhum uso de linguagem errado. 20 Pouco importa se por contm o rapper se remete a um contedo ou ao de refrear algo. Se for o primeiro caso, fala-nos da conseqncia que sofrem aqueles que no possuem (contm) o proceder logo ficar claro esse uso do proceder enquanto atributo. Se for o ltimo caso, fala-nos da conseqncia que sofrem aqueles que no refreiam (contm) as adversidades caractersticas da zona sul paulistana.

  • 26

    Foto de Karina Biondi21

    Por certo, essas recorrncias palavra proceder no se conectam a um objeto

    homogneo. Melhor pensar que entre esses tantos pontos de aparecimento h relaes

    de sobreposio, de continuidade, de congruncia e de repetio, bem como de

    apartao, de descontinuidade, de fechamento e de diferena. Algumas regras e algumas

    instrues sobre condutas se alteram profundamente ao transladarem de um ponto ao

    outro, ou realizam duradoura rotao em torno de apenas um dos eixos, ou ainda

    aparecem praticamente inalteradas em diferentes conjunturas. So mil territrios

    conectados ao mesmo nome.

    Este estudo parte de uma das interseces desse imenso diagrama. Tem seu

    incio em uma encruzilhada singular, o sistema (prisional paulista), onde vivem

    homens que se orientam por um proceder especificado de um modo bastante

    particular. Ora definido, simplesmente, como regras (Mendes, 2001: p. 62), ora

    21 Biondi presenteou-me com essa foto. Sabendo de meu interesse pelo proceder, ela gentilmente fotografou esse grafite ao passar por uma favela da zona sul de So Paulo. O grafite ilustra um homem morto, conjugado inscrio sem prosede no para imp (sem proceder no para em p).

  • 27

    como um cdigo de honra (Jocenir, 2001: p. 21), ora como princpios de honra

    (Rodrigues, 2002: p. 18), ora como normas de conduta dos detentos (Jocenir, 2001: p.

    85). Em seu impactante Memrias de um sobrevivente, narrando o momento exatamente

    posterior sua transferncia do Recolhimento Provisrio de Menores (RPM) para o

    Instituto de Menores de Mogi-Mirim, quando ainda contava com 15 anos mais ou

    menos , por volta de 1968, Mendes afirma: Ali havia, j de modo dominante, o

    famoso proceder. Conjunto de normas que eram mais fortes que as leis oficiais do

    Instituto e que nos governavam, implacavelmente (Mendes, 2001: p. 159-160). Algo

    parecido foi dito por meu interlocutor mais velho a respeito da extinta Casa de Deteno

    de So Paulo doravante Carandiru , onde cumpriu a maior parte de seus 17 anos de

    pena de privao de liberdade (de 1976 a 1992): quando cheguei o crime j era o

    crime; tinha que ter proceder22.

    Pelo que pude constatar, no usual entre os presos tomar a palavra proceder

    para indicar uma ao23. Utilizam-na, antes, como um atributo do sujeito, ou ainda,

    como um substantivo. No primeiro caso se diz que um sujeito tem proceder ou que

    no tem proceder. No segundo caso se diz o proceder. Ao atriburem ou no o

    proceder a um sujeito, as consideraes dos prisioneiros referem-se sua disposio

    quanto a um respeito especfico (o modo de se pedir licena para ficar em uma

    determinada cela24, o modo de se despedir no dia da concesso de liberdade25, o modo

    de se portar durante os dias de visita26, o modo de utilizao do banheiro27, a higiene da

    22 Entre alguns autores que tambm apresentam constataes sobre regras e condutas que balizam a experincia de prisioneiros esto: Ramalho (1979), S (1996), Dias (2005a e 2005b), Bicca (2005), Biondi (2006a e 2006b) e Braga (2008). 23 Quando ocorre, quase sempre funciona como sinnimo de um agir a partir de uma recomendao, no simplesmente como um agir. Vejamos um exemplo. A propsito de seu ingresso na cela 6 da cadeia pblica de Barueri, Jocenir nos relata as instrues que recebeu de outro preso: Terminadas as apresentaes, Nego Nardo, como era chamado, veio conversar comigo. Sabia pelo carcereiro que eu era preso de primeira viagem. Me esclareceu como funcionava tudo, quais eram as regras, a limpeza, a alimentao, a higiene, como proceder nos dias de visitas, como proceder em relao aos carcereiros e policiais, etc (Jocenir, 2001: p. 41-42). 24 A (...) lei da cadeia, quando se entra em uma cela, : em primeiro lugar, tirar os sapatos, vestir sandlias havaianas e tomar um banho. Eu ainda estava com os pulsos intensamente doloridos das algemas quando terminei esse ritual, com sabonete e toalhas cedidos pelos novos companheiros (Rodrigues, 2002: p. 17). Jocenir completa: (...) ao chegar, todo preso tinha de tomar uma ducha e trocar de roupas (Jocenir, 2001: p. 41-42). 25 (...) da tradio dos presdios doar todos os objetos de uso pessoal para aqueles que ficam, um preso quando ganha as ruas normalmente leva s a roupa do corpo e as correspondncias acumuladas em sua passagem (Jocenir, 2001: p. 167). 26 s teras-feiras, vspera das visitas, acontece a faxina nas celas, que os presos fazem questo de realizar, para que (...) possam receber com orgulho suas companheiras ou familiares. L eles tm sua relaes ntimas. Os solteiros e os que no recebem visitas ntimas ficam nas galerias. Para conseguir privacidade, os beliches so tapados com lenis e cobertores de todas as cores. A cela fica parecendo estar cheia de tendas rabes. (...) E tudo acontecia dentro do maior respeito. Infeliz daquele que tivesse a

  • 28

    cela28, a higiene pessoal29, a escolha de vestimentas30 etc), quanto a uma conduta

    especfica (na vida pregressa priso31, nos esportes32, em relao religio33, no

    cumprimento de acordos estabelecidos etc) e, enfim, quanto a uma atitude especfica

    (para resolues de litgios34 e para negociaes com a administrao prisional35).

    O proceder enquanto substantivo, portanto, alcana essa complexa relao

    entre respeito, conduta e atitude. J do proceder enquanto atributo, de modo

    diverso, se refere a essa consonncia de um sujeito com o proceder-substantivo. Um

    preso nessa condio considerado cara de proceder, sujeito homem, ladro etc,

    possuindo, portanto, os requisitos para viver no espao da priso denominado

    ousadia de se mostrar atrevido. O respeito visita faz parte do cdigo de honra do preso: a visita a coisa mais sagrada (Rodrigues, 2002: p. 23). No cdigo de honra dos presos, maltratar uma visita pode levar morte (Jocenir, 2001: p. 96). Na msica Vida Loka (Parte 1), Abrao, presidirio, atravs de conversa telefnica com seu amigo Mano Brown rapper do grupo Racionais Mcs , profere a frase visita aqui sagrada (...) (Mano Brown et alli, 2002). 27 Para usar o boi (latrina) fazia-se uma tira retorcida de papel higinico acesa na ponta, para tentar disfarar o mau-cheiro (Rodrigues, 2002: p. 22). 28 O preso muito consciente da necessidade de cuidar da higiene e da limpeza, pois em uma cela com cinqenta pessoas isso fundamental (Rodrigues, 2002: p. 22). 29 O banho dirio e obrigatrio, cobrado pelos prprios presos (Rodrigues, 2002: p. 22). 30 vedado o uso de camisetas regatas, por exemplo, durante os dias de visita. Ao contrrio do que nos deixa entender o premiado filme Carandiru, de Hector Babenco. 31 normal quando chega um novo preso que os companheiros de cela queiram saber quem , como foi sua priso e o que ele fez (se fez) (Rodrigues, 2002: p. 20). 32 Diferente do que ocorre nos campos de futebol espalhados pelo pas, em jogos na priso no h ofensas e nem palavres. Uma simples palavra de baixo calo suja uma honra, que invariavelmente se lava com sangue (Jocenir, 2001: p. 22-23). Ou ainda: Em jogos entre times na deteno no existem palavres nem ofensas. Tudo transcorre no maior respeito e harmonia, assim evitam-se problemas e brigas srias. A honra de um preso vale muito (Jocenir, 2001: p. 109). 33 A opo pela transferncia para uma cela de evanglicos o que nem sempre se correlaciona a uma opo pela vida religiosa no feita sem que haja questionamentos por parte dos demais presos. Isso porque tal cela vista sob dois prismas: lugar daqueles que se converteram verdadeiramente e lugar daqueles que se escondem atrs da Bblia. Dias (2005a e 2005b) sublinhou fortemente esse ltimo modo de olhar para os evanglicos, perdendo de vista o fato de que alguns crentes so muito conceituados [prestigiados] no crime. Deste modo, pde afirmar que o evanglico ocupa um lugar desacreditado no crcere. Contudo, nem sempre a ele atribuda a pecha de ter quebrado as pernas do crime. Como dizem meus interlocutores, h presos que foram ladres conceituados e que saram do crime, para virar crente, sem que se pudesse levantar qualquer suspeita sobre eles. Outros, tentando se esquivar de dvidas, de brigas, de inimigos, de represlias, fingem uma falsa converso e correm para os evanglicos. Desses ltimos, dizem que, mais cedo ou mais tarde, a verdade aparece (a mixa cai). Seja como for, aos presos da cela dos evanglicos proibida a utilizao de contravenes como drogas, celulares, bebidas etc. Fala-se, comumente, de um proceder para os evanglicos. 34 Em cada conjuntura especfica estabelecem-se arranjos polticos prprios, como, por exemplo, o modo pelo qual se deve resolver as quiacas (brigas) entre presos. Cada arranjo desses definido como ritmo ou poltica. Porm, independentemente de variaes, segundo meus interlocutores, um preso no pode correr de litgios em que se envolve: tem que resolver sempre. Outra censura, bastante comentada, direcionada aos assassinatos pelas costas. Para esse ltimo ponto cf. Mendes (2001: p.415-416). 35 Tambm dependem do ritmo da cadeia. Em algumas conjunturas as negociaes com a administrao no passam pelos lderes. Em outras se d o contrrio. Nesse caso, para ser mais preciso, se diz que os lderes fazem a ponte entre os presos e a administrao, o que no significa exatamente mediao. Seja como for, estabelecer negociaes em proveito prprio, prejudicando a massa delatar algum projeto de fuga em troca de regalias, por exemplo uma atitude tida como deplorvel.

  • 29

    convvio. No mesmo sentido (enquanto atributo), mas tomando o exemplo contrrio,

    o proceder aquilo que falta ao sujeito que exilado no espao carcerrio

    denominado seguro ou morto durante um debate36 (Marques, 2006).

    Correlacionada diferena moral entre ter proceder e no ter proceder est,

    portanto, a diferena espacial entre convvio e seguro. A palavra seguro usada

    de trs modos distintos pelos presos: para significar aqueles que pedem proteo para a

    administrao prisional diante de ameaas de outros encarcerados; para significar a

    condio daqueles que pedem proteo; e para significar o lugar onde ficam os presos

    protegidos. nica palavra, tripla significao: populao, condio e lugar.

    Portanto, pedir seguro o mesmo que recorrer proteo administrativa por

    estar correndo risco no local onde se cumpre pena. Conseqentemente, passa-se a

    compor a populao seguro, passa-se a viver a condio seguro e, enfim, passa-se a

    morar no espao seguro. J o avesso do seguro, aquilo que os presos entendem por

    convvio, justamente o local de cumprimento de pena onde permanecem aqueles

    que mantm o proceder. O convvio estende-se a todo permetro de circulao

    permitida aos presos no interior das construes penais celas, ptio, cozinha, escola,

    oficinas etc , desde que se subtraia dessa extenso as isoladas celas de seguro. Em

    sntese, podemos exprimir a frmula P S = C, onde P so os espaos de circulao dos

    presos no interior da priso, S o seguro e C o convvio.

    importante ressaltar ainda, a respeito do seguro, que esse espao compe-se

    de dois modos: 1) por presos que jamais puderam pisar no convvio porque j era

    sabido o motivo de suas prises ou seus histricos no crime: geralmente os duque

    treze37, os p de pato (justiceiros), aqueles que tm inimigos no convvio e

    querem evitar o confronto etc; e, 2) por presos que, ao quebrarem alguma regra do

    proceder enquanto habitam o convvio, pedem seguro para evitar um confronto

    36 O debate justamente a realizao de uma discusso que pretende resolver um litgio entre presos. 37 A gria duque treze faz referncia ao artigo 213 do Cdigo Penal, que define o crime de estupro. A ojeriza aos estupradores est propalada por toda parte: (...) respeito e dignidade so fundamentais para os detentos (...). Seja branco, negro ou pardo, velho ou moo, bom ou mau, ladro ou assassino, no h preconceito algum. Exceto com os estupradores (Rodrigues, 2002: p. 18); (...) Homem homem, mulher mulher. Estuprador diferente, n? Toma soco toda hora, ajoelha e beija os ps, e sangra at morrer na rua 10 (Jocenir & Mano Brown, 1998). importante dizer que a possibilidade de pedir seguro antes de ser encaminhado ao convvio, ou seja, quando dado o incio dos processos de incluso, nem sempre chega a se efetuar. Ela pode ser impedida: (...) me deparei com uma situao estranha no setor de trabalho [Incluso]. Percebi que s vezes companheiros que trabalhavam comigo levavam presos [estupradores] que acabavam de chegar a um determinado local e l os agrediam sem piedade (Jocenir, 2001: p. 86).

  • 30

    letal: os talaricos38, os nias39, os cagetas40, aqueles que arrumam quiaca

    (briga) e no esto dispostos a matar ou morrer etc. Em sntese, o preso de seguro

    pode ser compreendido como um preso-preso ou preso (preso ao quadrado).

    As efetivaes dessas divises correlatas moral e espacial dependem do

    ritmo de cada cadeia. Por vezes, se do atravs de quiacas resolvidas entre os

    prprios litigantes, sem interferncia de terceiros. Outras vezes, se do atravs de

    debates instaurados para resolver litgios deflagrados, nos quais se decidem

    absolvies ou punies cabveis para cada infrao especfica das regras do

    proceder. Os debates muitas vezes envolvem uma assemblia, sendo que os

    faxinas, cozinheiros e o patronato posies polticas cujo exerccio j se fazia

    antes do estabelecimento das faces ao longo da dcada de 9041 , ou pilotos

    posio poltica que surge com o estabelecimento das faces42 , devem ser

    consultados para tais decises. Desse procedimento so imputadas punies que podem

    ser intimadas (desabono moral e/ ou fsico pblico), mandar para o seguro ou at a

    38 Aqueles que do em cima da mulher de outro homem: (...) mataram mais um no Pavilho VII, com facadas na parte genital. Dizem que o infeliz havia desrespeitado a esposa de um companheiro no dia de visitas. O desrespeito visita quase sempre fatal (Rodrigues, 2002: p. 85). 39 Comentando a situao de um companheiro viciado em crack, Rodrigues nos diz: um vcio terrvel. O pior que ele j est devendo para os traficantes. Esse proceder aqui na cadeia acaba em morte (2002: p. 53). Segundo Jocenir, (...) [os viciados,] quando no conseguem pagar suas dvidas, sofrem humilhaes, so transferidos para o pavilho Cinco, chamado de Seguro, ou assassinados (2001: p. 21). 40 Gria derivada da palavra alcagete. Goifman nos d uma clara demonstrao de como opera essa diviso populacional que segrega, entre outros, o cageta: (...) Em uma primeira visita ao 5o Distrito Policial de Campinas, na qual conversamos com vrios presos simultaneamente, o lder de cela apontou para um que estava no ptio, com o corpo todo cortado por gilete, afirmando: ... aquele ali cageta, cagetou na rua, no tem mole pra ele aqui no (preso do 5o DP). A represlia cagetagem passa a ser considerada normal e a violncia plenamente justificada: Tinha safado, pilantra, que ningum gosta de safado e pilantra que fica cagetando os irmo, ento saa assim, vai morrer. E matava (preso da P1) (Goifman, 1999: p. 68). Mendes diz que O cagete era escorraado e evitado como tivesse doena contagiosa, quando no era morto. Ou ainda: Um cagete um ser desqualificado, geralmente morto ou tratado como subumano (Mendes, 2001: p. 62 e 376). O rapper Xis condensa a lei do silncio em trs sucintas regras, fala-nos da conseqncia a que esto sujeitos aqueles que as infringem e, enfim, relaciona essas infraes s dividas no proced substantivo e s no constataes do procede alheio atributo: (...) Siga regra um: voc viu tudo e no viu nada/ Siga regra dois: mantenha a boca bem fechada/ Oua e seja surdo, essa a terceira regra/ Quebre uma das trs e d adeus porque j era/ Se desacreditar um abrao pra voc/ Vai pagar a brecha se dever no proced/ (...) Essa a lei se no constar seu proced (...) (XIS et alli, 2001). Rodrigues sintetiza: O cdigo de honra dos bandidos assim: delatou, morre! (2002: p. 200). 41 Trata-se de posies protuberantes nas relaes entre presos e desses com a administrao prisional. H uma homonmia entre essas posies polticas e os cargos de faxineiro, cozinheiro e chefes de oficinas, disponibilizados pela administrao prisional para a populao prisional. imprescindvel notar que tais cargos possibilitam uma maior circulao no interior das construes prisionais, servindo, assim, como ocupaes estratgicas para tal exerccio poltico. 42 Pilotos tambm so salincias nas relaes sociais dos prisioneiros. Contudo, nem sempre ocupam cargos disponibilizados pela administrao prisional. Em outra ocasio problematizei os qualitativos mando e chefia comumente atribudos essas lideranas (Marques, 2010; no prelo).

  • 31

    morte43. Mas tambm pode ocorrer aquilo que meus interlocutores chamam de botar

    uma pedra na fita, uma deciso que encerra a contenda sem prejuzo para as partes.

    importante pontuar que nem sempre os debates envolvem todo esse aparato

    consultivo e deliberativo. Pode ocorrer algo bem mais prosaico que isso44.

    Algumas letras de rap ajuda-nos a perceber a centralidade do proceder na

    experincia prisional e tambm o modo como se processam as correlaes ter

    proceder-convvio e no ter proceder-seguro. O grupo 509-E, referncia ao

    nmero da cela do Carandiru pela qual passaram seus dois rappers, nos fornece um

    poderoso exemplo: (...) A! Ladro! Aqui a sua nova casa, mor?, eu mando e voc

    obedece, se ver inimigo j avisa logo e vai pro cinco, certo? (...) Me jogar em um lugar

    qualquer/ Porm malandro malandro e man man/ (...) (Dexter, 2000a).

    Este trecho da msica Triagem, editado em dois tempos, oferece-nos o instante

    em que um funcionrio da administrao prisional realiza a incluso do preso recm

    chegado, instruindo-o a ir para o Pavilho 5 (seguro do Carandiru), caso tenha algum

    inimigo no convvio. Mas o narrador repudia essa possibilidade e afirma-se como

    malandro em oposio a man45.

    Noutro trecho dessa mesma msica o narrador fala sobre a necessidade de ser

    ligeiro e acreditar no proceder explicita essa palavra como substantivo para

    43 Dependendo da conjuntura poltica em vigor, essa ltima sentena no incomum: Vi muita coisa. Brigas, acertos de conta, cobranas, que geralmente acabavam em mortes. Era impressionante como se matava por to pouco. o cdigo de honra traado pelo crime (Jocenir, 2001: p. 95). 44 Essa uma ressalva feita por Biondi (em comunicao pessoal) acerca da noo de debate entre nossos interlocutores. Venho privilegiando em meus trabalhos os relatos sobre debates nos quais a amplitude dos litgios exige a participao de outros presos, que no o acusado e o acusador, para a emisso de veredictos sobre quem tem proceder e quem no tem proceder. Portanto, venho sempre mencionando acontecimentos extraordinrios, aquilo que no cotidiano na experincia prisional. Biondi, por sua vez, verifica que a realizao de debate muito mais ordinria do que as minhas descries deixam entrever. No posso refut-la pois meus dados no me permitem. Apenas justificarei esta minha opo metodolgica. Meus dados empricos me levam a afirmar que a experincia prisional est norteada por aquilo que os presos chamam de proceder, portanto, ela parcialmente um continuum de debates, nos quais a relao entre os debatedores culmina em concordncia. E esse sentido de relao que permite a manuteno daquilo que se tem por proceder e por convvio. Mas no s, pois h, tambm, parcialmente, a emergncia de debates nos quais a relao entre os debatedores de desacordo. E este sentido de relao que faz instaurar e reforar aquilo que se tem por seguro. Por tudo isso, penso que ao tratar dos enunciados do proceder estou tratando das relaes de concordncia entre os presos, e a esto embutidos os mais variados debates de concordncia que acontecem em cada suspiro da experincia prisional, no entanto, para tratar da quebra do proceder e, conseqentemente, do seguro, conto como recurso por excelncia com esses debates de desacordo que mais parecem um exagero da noo de debate. Mas no se tratam de exageros... No se tratam de tipos ideais... So, antes, acontecimentos especficos e localizados, que, portanto, no servem de metfora dos debates. 45 A chegada ao Carandiru era sempre marcada por uma palestra do diretor: (...) nos colocaram diante de um velho de terno. O velho afirmou que era o diretor da casa. Perguntou se algum de ns tinha inimigos na priso. Ningum se manifestou. Comeou ento uma preleo (Mendes, 2001: p. 265); Quem tiver inimigo fala logo, porque se chegar l, vai acontecer, os caras matam mesmo (Andr du Rap, 2002: p. 45).

  • 32

    sobreviver na cadeia: (...) foda, tem que ser ligeiro pra no morrer/ Pode crer no

    proceder/ Vou sobreviver e voc? (...) (Dexter, 2000a).

    Noutra msica o narrador explicita a sentena decidida contra um sujeito

    (pilantra) que compe as filas dos caras sem proceder: (...) Mais um pilantra foi

    sentenciado/ Sua pena: morrer esfaqueado/ (...) (Dexter, 2000b). Noutra, conta sobre

    um estuprador (213) que foi desmascarado (a mixa caiu) em sua tentativa de

    sustentar uma falsa converso religiosa, sentenciado a ser violentado sexualmente (vai

    dar o ) e, em seguida, assassinado impetuosamente: Um cara queria se esconder

    atrs da bblia/ A mentira no vira, no se cria46/ O crime podre, mas no admite

    falhas/ No somos f de canalhas/ A mixa caiu, m B. O./ 213 (ih), vai dar o / Sem

    d, vai morrer igual porco/ Ladro na ira arranca o pescoo (Afro-X, 2000).

    O grupo Trilha sonora do gueto, atravs da msica 3 opo na qual o

    narrador, ex-presidirio, conta sobre o momento em que chegou priso , tambm

    engrossa as enunciaes acerca do proceder: (...) Os manos na ventana gritava: Vai

    morrer. Triagem na cadeia se no tiver proceder (...) (Casco et alli, 2004a). Aqueles

    que j ocupam o convvio e que, portanto, j provaram e continuam a provar que tm

    proceder, ao observar o recm chegado atravs da janela de suas celas, gritam qual a

    sentena para aquele que no tem proceder: vai morrer. Nos casos em que tal

    sentena futura vai morrer lanada contra um recm chegado que realmente

    no tem proceder, ela recai quase como uma fora infalvel. Espcie de morte (quase)

    a priori em relao sua concretizao. Pois, mesmo que um sujeito sem proceder,

    ciente de que no pode pisar no convvio, pea refgio no seguro ao passar pela

    triagem47, no h qualquer garantia de que ele consiga se salvar do perigo iminente.

    O problema que o seguro no to seguro como sugere o nome. Via de

    regra, o espao daqueles que devem torcer para no ocorrer rebelies durante suas

    estadias pela priso, pois se tal evento ocorrer, h uma grande probabilidade da 46 Entre meus interlocutores a manuteno de alguma mentira (fingir que foi preso por assalto sendo que na verdade foi por estupro, por exemplo), ou de alguma mancada (ter cagetado algum na rua, antes de ser preso), considerada bastante difcil. Sempre tem um que viu o pronturio do cara disse-me um de meus interlocutores. Os prprios carcereiros entregam o pilantra disse-me outro interlocutor. Alm do mais, antes da existncia dos celulares os pipas (bilhetes ou cartas trocadas entre presos atravs dos servios de correio, ou de presos transferidos, ou ainda, de advogados) j cumpriam a funo de alertar os demais presos sobre a falha (brecha) de um pilantra. 47 Em algumas unidades prisionais no Regime de Cela Disciplinar (RCD) que permanecer, num primeiro momento, os presos recm chegados. Ali, esses recm chegados passam pelo que se conhece como prova (condio daquele que deve convencer a administrao prisional de que pode viver junto aos demais presos, no convvio, ou, simplesmente, pedir proteo e abrigo no seguro). Caso o recm chegado seja considerado apto a ser transferido para o convvio, dever assinar um termo se responsabilizando pela prpria deciso de viver junto aos demais presos.

  • 33

    populao do seguro ser dizimada pela populao do convvio: (...) mano

    cumprindo pena, matando o seguro pra ter a transferncia (...) (Eduardo et alli, 2004)48.

    Essas letras de rap, entre tantas outras que seria pertinente mostrar, oferecem

    indicaes de que o proceder e a diviso convvio-seguro so balizadores

    imprescindveis para narrar e/ou descrever a experincia prisional. Foi por isso que quis

    mostr-las, mobilizando-as, junto aos demais dados apresentados, para deixar patente a

    imprescindibilidade desses balizadores.

    H!... Mas somente nos pontos de vista

    Contudo, esse modo de descrever a experincia prisional poderia levar a crer que

    o proceder e a espacialidade convvio-seguro esto objetivamente dados, como

    um corpus que se mostra irrestritamente, em todas as suas dimenses, a todos os olhos

    possveis. Tratar-se-ia, ento, de algo absolutamente objetivo. Isso porque, at aqui,

    descrevi-os a partir das disposies que so tidas como menos controversas entre os

    presos; tal procedimento, inclusive, serviu como recurso didtico. Como resultado, quis

    mostrar que atravs das quiacas reservadas ou dos debates coletivos, processa-se

    uma diviso moral a partir da dizibilidade proceder, que se opera justaposta a uma

    diviso espacial a partir da visibilidade convvio-seguro. Um movimento

    sincronizado entre dois estratos, um dizvel e outro visvel, profundamente conectados

    pela experincia prisional poder-se-ia dizer, quem sabe, que esse movimento funciona

    como uma espcie particular de filme, no qual a emisso de som e a projeo de

    imagem se do simultaneamente.

    Por decorrncia direta das correlaes que se formam entre ter proceder-

    convvio e entre no ter proceder-seguro, daria-se uma nova diviso, no mais de

    estrato, mas dos pontos que existem sobre esses estratos, de modo que para um dos

    lados seriam atrados aqueles que obtiveram a glria ao serem incitados a falar pelo

    proceder, enquanto para o outro seriam repelidos aqueles que foram maculados ao

    terem suas aes, opinies ou condutas condenadas em nome de um proceder certo.

    Com efeito, os termos dessa diviso populacional seriam acrescentados s respectivas

    48 Durante uma rebelio ocorrida na Cadeia Pblica de Barueri, Jocenir diz-nos que alguns presos procuravam tirar suas diferenas com seus inimigos, provocando violncias fsicas de toda ordem. Os gritos de socorro eram ensurdecedores. Alguns presos conseguiram abrir as portas da cela do Seguro, onde estavam os presos jurados de morte. Na seqncia, batiam e humilhavam cada um deles (Jocenir, 2001: p. 70).

  • 34

    correlaes: ter proceder-convvio-caras de proceder e no ter proceder-

    seguro-caras sem proceder.

    Foi isso que eu quis mostrar at aqui. Entretanto, no assim que as coisas se

    passam!

    H apenas dois modos de assegurar tal descrio: ou assume-se um vis analtico

    que implica descortinar as aparncias que obstruem a Realidade prisional neste caso,

    pouco importa aquilo que relativo a pontos de vista , ou considera-se somente um

    ponto de vista acerca dessa experincia ento, corre-se o risco de ignorar que esse

    modo de ver radica-se de relaes de fora. Essas no foram as minhas opes,

    exatamente porque em minhas idas a campo procurei sempre atribuir positividade ou

    se quiserem, realidade ao que diziam meus interlocutores, em detrimento de alguma

    Realidade que eles no pudessem acessar, mas tambm porque aquilo que me diziam

    assolava qualquer possibilidade de reduzi-los a um nico entendimento acerca de suas

    experincias, espcie de Consenso. Tanto foi que, se eu me encontrava com um homem

    que dizia ter proceder e que negava tal atributo aos seus rivais, era infligido por

    espanto e perplexidade ao chegar nesses outros e no obter nem mesmo de um deles, de

    bom grado, que seu respeito, sua conduta e sua atitude estavam em desacordo

    com o proceder. Pelo contrrio, afirmavam-se tambm como caras de proceder e

    praguejavam seus detratores chamando-os de caras sem proceder. Estaria eu diante de

    uma contradio? No! Antes, estava diante de uma diferena! Uma diferena entre

    pontos de vista!

    Assim sendo, o proceder e a espacialidade convvio-seguro no sero

    mais verificados em lugar algum, seno nos pontos de vista. Sobre essa afirmao devo

    fazer duas breves observaes. Primeiro, que essa inflexo analtica no significa um

    ponto final objetividade, mas uma abertura objetividade relativa; relativa aos pontos

    de vista. Segundo, que a ateno doravante concedida s diferentes perspectivas de

    meus interlocutores passa ao largo de uma mera defesa existncia de diversas

    verda