abboud georges o mito da supremacia do interesse publico sobre

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A dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se autorizar restriqão a direitos fundamentais - 2"2" .. .. .- . . .A""." " " - - L " " .. GEORGES ABBOUD - .. Mestre c Doutorando em Direitos Difums c Colct:vos pcla PUC-SP. Advogado. ARE* DO DIRE~O: Constikuuíonal; Fundatrent3s do Direito RESUMO: O presente artigo tem por escopo dernons:rar a relaqão ~xistente entre a evo- I~ç2o do constitucionalismo c a regulaç50 do Pader Piiblico, a fim de evidenciar que os direitos fuvdamentai~ constituem conçuista histdrica, limitando c rcgufando toda a atu- açjo do Estado. A partir desse embasarnento, explicitar-se-$ o cquivcco de se preconizar a supremacia do interesse piibtico sobre os direitvs fundamentais, evidenciando a di- ABSTRACT: The scope of the oresen: article is to demonstrate the re[ation that exists bctwec'f the evalution of const.itutionalism and tht reguiation of public powçr, in ordcr ?o evince that fundamental riqhls represent an historical achiwerreni, limiting and rcqu- lating the wholc role of the State. As of :his premise, one shall re9der understandable :he rr.iscanc~ption of advocating the supremacy o' pubric inlerest over fundamental *ight%

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Direito fundamentais: sobre os requisitos de restrição de direito fundamental.

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  • A dimenso constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos

    necessrios para se autorizar restriqo a direitos fundamentais

    - 2 " 2 " .. .. .- . . . A " " . " " " - - L " " .. GEORGES ABBOUD

    - . .

    Mestre c Doutorando em Direitos Difums c Colct:vos pcla PUC-SP. Advogado.

    ARE* DO D IRE~O: Constikuuonal; Fundatrent3s do Direito

    RESUMO: O presente artigo tem por escopo dernons:rar a relaqo ~x is tente entre a evo- I ~ 2 o do constitucionalismo c a regula50 do Pader Piiblico, a fim de evidenciar que os direitos fuvdamentai~ constituem conuista histdrica, limitando c rcgufando toda a atu- ajo do Estado. A partir desse embasarnento, explicitar-se-$ o cquivcco de se preconizar a supremacia do interesse piibtico sobre os direitvs fundamentais, evidenciando a di-

    ABSTRACT: The scope of the oresen: article is to demonstrate the re[ation that exists bctwec'f the evalution of const.itutionalism and t h t reguiation of public powr, in ordcr ?o evince that fundamental riqhls represent an historical achiwerreni, limiting and rcqu- lating the wholc role of the State. As of :his premise, one shall re9der understandable :he rr.iscanc~ption of advocating the supremacy o' pubric inlerest over fundamental *ight%

  • menso constitucional desses direitos. Por fim, sero elencados os requisitos necess- rios para as hipteses que se possam admitir restries a direitos fundamentais no Estado Constitucional. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais - Constitucionalismo - interesse publico - Controle difuso de constitucionalidade - Resiriro a direitos fundamentais.

    making evident the constitutional dimension of the latter. Lastly, one shall list the neces- sary requisites for admitting restrictions to fundamental rights within a Constitutional State.

    KEYWORDS: Fundamental rights - Constitu- tionalism - Public interest - Diffuse constitu- tionaity control - Restriction to fundamental rights.

    SUMARIO: 1. Introduo - 2. A posio e a normatividade dos direitos fundamentais no Estado Constitucional: 2.1 Conceito de direitos fundamentais; 2.2 Direitos fun- damentais e a limitao e vincula~o do Poder Pblico - 3. Os modelos de fun- damentao dos direitos fundamentais e sua relao com o desenvolvimento do constitucionalismo: 3.1 O modelo historicista: 3.1.1 A jurisprudncia como elemento fundamental do cornrnon Iow; 3.1.2 A intangibilidade dos direitos fundamentais no constitucionalismo ingls - Revoluo Gloriosa e a Petition of Right; 3.2 O modelo individualista: 3.2.1 .Revolu$o Francesa e a Decarago de Direitos; 3.2.2 A posio da sociedade civil e do Poder Constituinte no modelo individualista; 3.3 O modelo estatalista: 3.3.1 O modelo estatalista e sua confronta~o com o modelo individu- alista; 3.3.2 A posio do individuo e da sociedade civil no modelo estatalista; 3.3.3 Concluso sobre o modelo estatalista e a posio da jurisprudncia - 4. A dimenso histrica dos direitos fundamentais: 4.1 Direitos fundamentais e Constituio Fede- ral; 4.2 A importncia do elemento historicista para a proteo dos direitos funda- mentais; 4.3 A judiciolreviewcomo direito fundamental: 4.3.1 A origem histrica da judicioi review; 4.3.2 O caso Marbury v% Madison. Aplicao da Constituio como regra juridica; 4.3.3 A importncia de se conferir natureza de direito fundamental a judicioireview; 4.4 Os fundamentos dos direitos fundamentais: 4.4.1 O fundamento normativo: a Constituiro Federal; 4.4.2 O fundamento histrico: o processo civiiza- dor - 5. O mito da supremacia do interesse publico sobre os direitos fundamentais: 5.1 A dimenso constitucional e histrica dos direitos fundamentais: a primazia dos direitos fundamentais sobre o interesse pblico - 6. Rol dos requisitos necessrios para se admitir restrio a direito fundamental: 6.1 Requisitos apontados pela dou- trina suia; 6.2 Requisitos necessrios para se admitir restrio a direito fundamental no Estado Constitucional: 6.2.1 Restrio deve estar constitucionalmente autoriza- da; 6.2.2 A restrio a direito fundamental deve ser proporcional [Ubermossverbot e Untermossverbod; 6.2.3 A restrio deve atender ao interesse social, e no pode se fundamentar na preservao do interesse pblico; 6.2.4 A restriro deve estar exaustivamente fundamentada; 6.2.5 O ato do Poder Pblico que restringe direito fundamental pode ser amplamente revisado pelo Poder Judicirio - 7. Concluses principais - 8. Bibliografia consultada.

  • O presente artigo tem o intuito de explicitar a intrnseca relao existente entre a evoluo do constitucionalismo e o recrudescimento da regulao do 'Poder Pblico mediante a institucionalizao dos direitos fundamentais.

    Para atingir seu desiderato, de inicio, tratar-se-a a posio que atualmente os direitos fundamentais ocupam no Estado Constitucional, ressaltando sua eficcia e normatividade.

    No momento subsequente, sero expostos os trs modelos de fundamen- tao das liberdades, propostos por Maurizio Fioravanti: o individualista, historicista e estatalista.

    A caracterizao desses trs modelos ser feita juntamente com a evolu- o histrica do constitucionalismo proposta por Nicola Matteucci, com o intuito de demonstrar como os direitos fundamentais devem ser concebidos omo conquista histrica de nossa sociedade e, por conseguinte, esses direi-

    tos constituem, hodiernamente, limites para a atuao do Estado. A viso dos direitos fundamentais como conquista histrica, evidenciar a

    defasagem que o paradigma estatalista possui para garantir a preservao des- ses direitos. Desse modo, sero laiiadas as bases tericas necessrias para a descontruo do mito da supremacia do interesse pblico sobre tais direitos.

    por fim, ser tratado o problema relativo a restrio dos direitos funda- mentais no Estado Constitucional. Com fundamento na doutrina sua, ela- borar-se- rol de requisitos necessrios para se admitir qualquer restrio a direitos fundamentais.

    A POSIO E A NORMATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS o ESTADO CONSTITUCIONAL onceito de direitos fundamentais

    s direitos fundamentais (Grundvechte) constituem na atualidade o con- to que engloba os direitos humanos universais e os direitos nacionais dos

    dados. As duas classes de direitos so, ainda que com intensidade diferen- rte integrante necessria da cultura jurdica de todo o Estado Consti-

    ter Haberle. El Estado constitucional. Buenos Aires: strea de Alfredo y Ricar- do Depalma, 2007. 65, p. 304.

  • 2.2 Direitos fundamentais e o l imitao e vinculao d o Poder Pblico Em u m Estado de Direito, existe forte sentido substancial exercido pe-

    los direitos fundamentais em relao a atuao do Poder Pblico. Assim, os Poderes esto limitados e vinculados a Constituio, no somente no que se refere a forma e procedimentos, mas tambm quanto aos contedos.

    Por outros termos, no Estado Constitucional de Direito, a Constituio alm de disciplinar as formas de produo legislativa, tambm impe a esta proibies e obrigaes de contedo correspondentes aos direitos de liber- dade e aos direitos sociais, cuja violao ocasiona antinomias e lacunas que a cincia jurdica precisa identificar para que sejam eliminadas e corrigidas.'

    Desse rnodo, cabe especificar, como bem ensina Garcia Herrera, que o Estado Democrtico de Direito, em uma perspectiva garantista, est caracte- rizado pelo princpio da legalidade formal que subordina os Poderes Pblicos as leis gerais e abstratas, bem como pela legalidade substancial que vincula o funcionamento dos trs poderes a garantia dos direitos f~ndamenta i s .~

    Sendo assim, facilmente perceptvel que os direitos fundamentais cons- tituem, primordialmente, uma reserva de direitos que no pode ser atingida pelo Estado [Poder Pblico] ou pelos prprios particulares?

    Na realidade, os direitos fundamentais asseguram ao cidado u m feixe de direitos e garantias que no podero ser violados por nenhuma das esferas do Poder Pblico. Os referidos direitos apresentam dupla funo: constituem prerrogativas que asseguram diversas posies jurdicas ao cidado, ao mes- mo tempo em que constituem limites/restries a atuao do E ~ t a d o . ~

    2. Luigi Ferrajoli. Pasado y futuro del estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.). Neoconstitucionalismo~sl. 2. ed. Madrid: Trotta, 2005. p. 13 e 18.

    3. Miguel Auge1 Garcia Herrera. Poder judicial y Estado social: legalidad y resis- tencia constitucional. In: Perfecto Andrs Ibnez (org.). Cormpcin y Estado de Dei,echo - E1 papel de lu jurisdiccin. Madrid: Trotta, 1996. p. 71.

    4. Sobre a vinculaco dos particulares aos direitos fundamentais ver: Wilson Steinmetz. A vinculaco dos particulares a direitosfundamentais. So Paulo: Ma- lheiros, 2004.

    5. Sobre essa questo merece destaque a seguinte passagem da doutrina sua: "First, the protection from undue intrusion o the State in essential spheres of human existence falls within the penumbra of fundamental freedoms orfunda- mental liberties (Freiheitsrechte). Based upon the idea o a status ne~atives, the Constitution imposes upon government nd its bodies an obligatio

  • odiernamente, a existncia e a preservao dos direitos fundamentais so requisitos fundamentais para se estruturar o Estado Constitucional tanto no mbito formal quanto material.

    ssim, demonstraremos qual a relao estabelecida entre o desenvolvi- o do constitucionalismo e a consagrao dos direitos fundamentais,

    em como evidenciaremos o mito consistente na assertiva de que sempre ia supremacia do interesse pblico sobre o individual. Por fim, elabora- s rol a fim de identificar quais so os requisitos - que necessariamente

    recisam ser atendidos - para se admitir que ocorra restrio a qualquer di- ito fundamental.

    S MODELOS DE FUNDAMENTAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA RELAAO COM O DESENVOLVIMENTO DO CONSTITUCIONALISMO

    rizio ~ i o r a v a n t i , ~ em obra dedicada a evoluo dos direitos funda- ais, prope u m esquema em trs modelos de fundamentao terica das dades (direitos fundamentais de primeira dimenso). A partir da clas-

    cao proposta por ele, lanaremos as premissas tericas que serviro de ndamento para algumas das concluses finais.

    O modelo historicista primeiro modelo o ~istoricista,' desenvolvido pela tradio anglo-

    xnica das liberdades, cuja principal caracterstica a constatao de que

    aurizio Fioravanti. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de Ias cons- uciones. 5. ed. Madrid: Trotta, 2007. modelo historicista de fundamentao das liberdades proposto por Fioravanti o remete, necessariamente, para o historicismo filosfico alemo. Com efeito, a

    proposta de anlise de Fioravanti simplesmente pretende apontar para o carater de ontinuidade histrica que existe no contexto da formao dos direitos no espao

    contrrio, por exemplo, do modelo francs, de cunho nitidamen- a-se o exemplo da revoluo gloriosa, cujo escopo fundamental

    tia justamente na restaurao da legalidade parlamentar j vigente, enquanto voluo Francesa tinha como principal intuito romper totalmente com alega- de vigente a fim de instituir uma nova (revolucionria). J o historicismo filo-

    sfico - que se forma no contexto do romantismo alemo desaguando em Dilthey - tem caracteristicas fundamentalistas (no sentido da fundamentao inconcusum, no nvel filosfico do pensamento), alm de apostar em elementos nacionalistas. Sobre o modelo historicista de fundamentao das liberdades cf. Maurizio Fio- ravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 26-34.

  • o reconhecimento dos direitos se d mediante processo histrico que se con- funde com o prprio common law.

    3.1.1 A jurisprudncia como elemento fundomental docommon law O modelo historicista desenvolve-se juntamente com o common law, cujo

    maior expoente a ser apontado a prpria Inglaterra. O modelo inglshisto- ricista essencialmente distinto dos demais por conter elemento genuno e dinmico: a jurisprudncia.

    A jurisprudncia o verdadeiro fator de unidade e coeso da histria na- cional constitucional inglesa. Nesse modelo, so os juizes - e no os Prnci- pes ou os Legisladores - os responsveis pela construo do direito comum ingls (common law). Assim, ela o instrumento principal de elaborao das regras de tutela das liberdades que foram evoluindo desde a Idade Mdia at a Idade Moderna.

    Desse modo, formou-se, no modelo ingls, a convico de que o tema das liberdades, enquanto expresso da jurisprudncia e manifestao das regras do common law, substancialmente indisponvel por parte do Poder Pblico, seja ele Executivo ou Legislativo. Vale dizer que a Inglaterra, ao contrrio da Frana, no admitiu a figura do Legislador Absoluto, mesmo a partir da Glo- rious Revolution. Isso porque a soberania parlamentria surgiu para limitar o Poder Real, no tendo nunca se desvirtuado a fim de se transmudar em poder soberano e ilin~itado.~

    Ademais, a posio do Poder Legislativo a partir da Carta Magna inglesa de 1215 tambm peculiar em relao aos demais pases europeus. Na Ingla- terra, o Parlamento ingls aparece em confronto com o rei como o sujeito da unidade nacional (poltica) na luta contra os demais estamentos medievais?

    O papel da jurisprudncia como o principal elemento de criao e fun- damentao dos direitos fundamentais confere ao modelo historicista uma limitao ao Legislativo, ainda que o rgo legiferante seja o prprio Poder

    Para um aprofundamento critico sobre a questo do histoncismo, cf. Ernildo Stein. Racionalidade e existncia. 2. ed. Ijui: Uniju, 2008. Eplogo, p. 127-134. Ver tambm Hans-Georg Gadamer. Verdade e mtodo. 3. ed. Petrpolis: Vozes, 1999. n. l .2., p. 334 et seq.

    8. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 32-33. 9. Carl Schmitt. Teoria de Ia Constitucidn. Madrid: Alianza Universidad Textos,

    2006. 6.", n. 1, p. 67.

  • CONSTITUCIONAL 67

    Constituinte, rgo este que desconhecido nos demais paradigmas (estata- ista e individualista).

    Na realidade, foi mrito de CokeIo e ~e lden" terem conseguido estabele- uma aliana orgnica entre os juristas e os parlamentares. A partir desse

    52-1634), jurista e poltico ingls, cuja firme atuao da pri- mazia do common law e das liberdades fundamentais frente ao ahsolutismo real

    colocou em lugar de honra na histria jurdica da Gr-Bretanha. oke nasceu em Mileham no dia 01.02.1552. Na qualidade de jurista, exerceu

    diversos cargos jurdicos, merecendo destaque o de attomey general, no qual se opositores da Coroa.

    subiu ao trono Jacobo I (1603-16251, Coke foi nome Chief Justice da Court of the Common Pleas (tribunal responsvel por solucionar as incipais lides de direito privado do Pas). Foi na qualidade de Chief ofJustice

    ke teve atuao destacada sempre defendendo o com- usos do Rei e do prprio Parlamento. Nessa passagem que foi

    decidido o Bonhamt case. Devido a sua independente e forte atuao, Jacobo 1, por sugesto de Bacon, nomeou Coke Chief ofJustice do tribunal do Kingk Bench que, em teoria, seria

    mo em termos de autoridade judicial. Novamente, devido a sua endente atuao, Coke confrontou-se novamente com a Coroa, tendo, em ,sido acusado de delitos pelo Conselho Privado do Rei.

    pos a morte de Jacobo I, Carlos I (1625-1649) convocou novo Parlamento. Coke, por sua vez, retornou ao Parlamento em 1628, desempenhando relevante papel na elaborao da chamada Petititon of Right, que consistia em importante declarao de direitos, visto que foi a primeira declarao a restringir os pode- res da Coroa Inglesa desde a ascenso dos Tudor. A obra e o prestgio de Coke contriburam fortemente para a consolidao do common law e para a independncia do Judicirio perante o Poder Poltico. Sua atuao tambm lanou diversos fundamentos jurdicos para a tutela dos direitos fundamentais, bem como influenciou fortemente os protagonistas da

    Cf. Francisco J. Andrs. Edward Coke. In: Rafael iversales: juristas modemos. Madrid: Marcial Pons,

    se pormenorizada da vida e da obra de Edward Coke, ver: Hum- W. Woolrych. The Life of the Right Honourable Sir Edward Coke. Lord Chief tice of the Kingk Bench. London: J. & W T. Clarke Law Booksellers and

    II Selden (1584-1654), erudito ingls, poltico, advogado e biblifilo nasceu Salvington, no dia 16.12.1584.

    den se destaca em virtude de sua fervorosa defesa da liberdade, tendo sido a frase "above a11 things Freedom" o lema de sua vida pblica. Sua atuao foi

  • 68 REVISTA DOS TRIBUNAIS RT907 . MAIO DE 2011

    cenrio, a vitria do constitucionalismo na Inglaterra se explica a partir dessa aliana orgnica, conforme ser tratado no item s ~ b s e ~ u e n t e . ' ~

    3.1.2 A intangibilidade dos direitos fundamentais no constitucionalismo ingls - Revoluo Glorioso e o Petition o f Right

    O constitucionalismo ingls desconfia de uma concepo radical do Po- der Constituinte.13 Nesse sistema, o citado poder, ainda que originrio, no possui legitimidade para iniciar a partir do zero sua ago. A sua atuaso, em ltima instncia, est limitada pelo catlogo de direitos fundamentais que foram historicamente garantidos pela prpria jurisprudncia. Com efeito, a doutrina de John LockeI4 assegura ao povo o direito de resistncia, em caso de tirania e de dissoluo do governo. Trata-se de direito concebido como

    jurdica e principalmente poltica, uma vez que foi eleito deputado em 1624, 1636 e 1628. Na atuao poltica, ops-se a Carlos I da Inglaterra participando ativamente junto com Edward Coke na declarao da famosa Petition of Rights, limitando fortemente os poderes reais no que diz respeito a arrecadao de impostos e na criao dos tribunais de exceo. As duas obras de maior projeo jurdica foram Mare Clausum e seu tratado De inre naturali et gentium iwta disciplinam Hebraeorum. Contudo, a obra com que John Selden alcanou a inaior I-eputao foi editada aps sua morte, com o ttulo de Table-Talh, consistente em uma srie de pensamentos seldenianos, correspondentes aos seus ltimos 20 aiios de vida, que hoje seguem sendo re- conhecidos. Cf. Juan Gmez-Acebo. John Selden. Juristas universales: juristas modernos, vol. 2, cit., p. 345-347. Para maior aprofundamento sobre John Selden ver: Harold Dexter Hazeltine. Selden as legal historian a comment in criticism and appreciation. Festschrqt Heinrich Brunner zum Siebzigsten Geburtstag dargebracht von Schunlern und Ver- ehrern. Weimar: Hermann Bohlaus Nachfolger, 1910. p. 579-630.

    12. Sobre a contribuio de Coke e Selden conferir: Nicola Matteucci. Organizaci- n de1 poder y libei-tad: historia de1 constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta, 1998. n. 4, p. 86.

    13. Importante destacar que a Carta Magna inglesa de 15.07.1215 pode ser consi- derada como modelo e origem das modernas Constituies liberais. Sobre essa questo ver: Carl Schmitt. Op. cit., 3 6 . O , n. 1, p. 67.

    14. Cf. John Locke. Dois tratados sobre o governo. So Paulo: Martins Fontes, 1998 Ver tambm Clarence Morris (org.). Os grandesjilsofos do direito. So Paulo Martins Fontes, 2002. Uohn Locke) n. 6, p. 152-153.

  • instrumento de restaurao da legalidade violada e no como instrumento de projeo de uma nova e melhor ordem politica l5

    prpria essncia da revoluo gloriosa consistia em solucionar o pro- da limitao do Poder Pblico pelo prprio direito, de modo que, para dar esse conflito, a obra de John Locke foi essencia1.16 que pese ter sido John Locke o principal terico a conceber a existncia leo intangvel de direitos fundamentais que no poderiam ser alcan~a- m pelo prprio Poder Pblico," foi o desenvolvimento do common law

    principalmente em virtude da revoluo gloriosa e da atuao de Coke a prtica, ficou garantida a intangibilidade dos direitos fundamentais.

    A consolidaco da revoluco cloriosa constitui acontecimento histrico "

    amental para a colocao dos direitos fundamentais como elemento ju- estruturante e legitimador do Estado Democrtico de Direito (Estado

    -

    titucional). Na revoluo gloriosa, Thomas Cromwell realizou uma re- overnamental, por meio de racionalizao burocrtica da adminis- tral para faz-la mais eficiente e forte."

    omentando a obra de Locke, ver Jean-Jacques Chevallier. As grandes obras olticas de Maquiaiiel a nossos dias. 8. ed. So Paulo: Agir, 2001. 2." Parte, Cap.

    103-117. Ver ainda: Francois Chtelet; Olivier Duhamel; Evelyne Pisier- uchner. Histbria das idias polticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, i998. Cap.

    , n. 2, D, p. 57-60. izio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 1, p. 34. Comentando o direito de resis- a de Locke, ver: Ian Shapiro. Osfundamentos morais da poltica. So Paulo: 'ns Fontes, 2006. n. 5.1, p. 145. anlise sobre a evoluo e o conceito do direito de resistncia, ver: Arthur

    aufmanu. Filosofia do direito. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. Cap.

    desobedincia civil, conferir: Ronald Dworkin. Uma questao de princpio. So Paulo: Martins Fontes, 2005. n. 4, p. 153-174. a Matteucci. Breve storia de1 costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010.

    Ver Clarence Morris (org.). Op. cit., Uohn Locke), n. 6, p. 144. cke baseia sua investigao poltica numa concepo dos direitos naturais e no deixa de lembrar Grcio. Cf. Franois Chtelet; Olivier Duhamel; Eve- e Pisier-Kouchner. Op. cit., Cap. 11, n. 2, D, p. 58. a anlise do jusnaturalismo de Locke e sua relao com a preservao dos itos fundamentais ver: Nicola Matteucci. Breve storia de1 costituzionalismo

    icola Matteucci. Organizacibn de1 podery libertad,cit., n. 4, p. 79-80.

  • A partir da revoluo gloriosa, passou-se a admitir determinado limite instransponvel para o Poder Pblico em relao aos direitos fundamentais. Esse limite consistia justamente no prprio common law. Assim, dizer com- mon l a w era dizer tambm supremacia da lei, reconhecer, portanto, que esta representava algo fundamental, j que garantiria o direito dos ingleses, de que nenhum poder do mundo poderia usurpar.'9

    Nesse ponto, principalmente em razo da atuao de Coke e do advento da Petition ofRight de 1628," passa a ocorrer forte restrio ao Poder Pblico. Ou seja, o poder real em nenhuma hiptese poderia sobrepor-se a legalidade posta para violar ou restringir direitos fundamentais. Sobre esse ponto, Nico- la Matteucci destaca que a poltica de Coke pode ser sintetizada em uma c- lebre afirmao. O common l a w tem redimensionado tanto as prerrogativas do rei, que estas no podem usurpar nem prejudicar o patrimnio de ningum e o melhor patrimnio que algum pode ter a lei de seu reino.21

    Assim, pode-se concluir que, no modelo historicista, as liberdades civis (negativas, patrimoniais e civis) ocupam posio extremamente privilegiada, inclusive em relao s liberdades polticas. Nesse sistema, as liberdades pol- ticas so acessrias em relao as civis. Destarte, a possibilidade de participar da formao da lei est em funo de se poder controlar e equilibrar as for- as, para manter-se inclume a proteo dos direitos j conquistados. Dessa maneira, no constitucionalismo ingls no se consegue precisar o momento constituinte puramente originrio, entendido como poder absoluto do povo ou da nao para projetar uma nova ordem constitucional dependente da vontade dos cidados. A esta premissa se ope a dimenso irrenuncivel do governo moderado e equilibrado como forma que a histria o tem apresenta- do: que o indivduo no pode perturbar outrem sem que concomitantemente seja perturbada toda a ordem poltica e

    Em sntese, pode-se afirmar que o modelo historicista [ingls] confere especial importncia as liberdades civis (direitos fundamentais), tendo sido seu principal elemento diferenciador - a jurisprudncia - a responsvel pela construo e proteo desses direitos.

    19. Idem, n. 4, p. 81. 20. Alm da Petiton of Right, o constitucionalismo ingls tem como uma de suas

    principais declaraes de direito o Bill of Rights, sobre este ver: Carl Schmitt. Op. cit., 3 6.", n. 1, p. 68.

    21. Nicola Matteucci. Organizacin de1 podery libertad cit., n. 4 , p. 87. 22. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 35.

  • essa forma, historicamente, a atuao do Poder Executivo e a atividade Legislativo foram limitadas pela manuteno e garantia dessas liberdades

    nquistadas/asseguradas pela jurisprudncia, de modo que o constituciona- mo ingls no admite a figura do Poder Constituinte ilimitado, porquanto

    esse poder somente pode atuar para resgatar o governo limitado e ado respeitador dos direitos fundamentais. starte, toda atuao, ainda que do Poder Constituinte de maneira contr-

    ever ser prontamente rechaada pelo direito de resistncia, a fim de que estaurada a legalidade anterior que era respeitadora das liberdades civis.

    modelo individualista odelo individualista est presente, de alguma forma, tanto na tradi-

    ontinental como na tradio anglo-saxnica, como produto prprio dos os de transformaes sociais, culturais e do saber que se operaram ernidade e foram, de alguma forma, aquilo que possibilitou o rompi- com o modelo poltico-jurdico-social predominante no Medievo. O

    elo individualista tambm. a seu modo. orienta-se uara tutelar o binmio ade e propriedade 23

    3.2.1 Revoluo Francesa e a Declarao de D~reitos ontinente, a expresso maior do modelo individualista se manifesta

    r da experincia revolucionria da Frana e da Declarao de Direitos mem e do Cidado.*+ Na tradio individualista, o poder transferido

    onarca absoluto para o povo, enquanto fruto da inspirao jacobina da ocracia. Assume relevncia aqui o contedo revolucionrio deste modelo

    ncia que as teorias contratualistas exerceram sobre ele.I5

    Sobre a relao das teorias contratualistas e a proteo dos direitos individuais, ver: lan Shapiro. Op. cit., n. 5.1, p. 145-147.

    . Sobre a Declarao de Direito que sucedeu a Revoluo Francesa, ver: Yves Gu- chet. Histoire constitutionelle de la France - 1789-1974. 3. ed. Paris: Economica, 1993. n. I, p. 39-52.

    ia da contribuio das teorias contratualistas para a valorizao dos 'reitos fundamentais explicitada por Shapiro nos seguintes termos: "Alm da na cincia, a centralidade dos direitos individuais que diferencia a filosofia

    oltica iluminista dos compromissos antigos e medievais com a ordem e a hie- rarquia. Assim, a liberdade individual vai para o centro da discusso poltica". Ian Shapiro. Op. cit., n. 1.2, p. 17.

  • No modelo individualista o Poder Constituinte pressupe o povo como uma unidade poltica existencial. A palavra nao designa um povo capaz de atuar com conscincia poltica. O povo se converte em nao no exato mo- mento em que passa a ter conscincia poltica.26

    Com efeito, a forma de garantia dos direitos, a moda do jusnaturalismo racionalista moderno, d-se pelo reconhecimento, pelo Estado, de direitos preexistentes ao pacto social ps-revolucionrio. A doutrina do Poder Cons- tituinte do Povo tambm merece destaque, pois admite um poder autnomo, reportado ao povo, que precede e determina os poderes estatais constitudos. Neste modelo, a sociedade composta de indivduos politicamente ativos, com sua autnoma subjetividade distinta e precedente ao Estado, que impe respectivamente a presuno geral de liberdade e a presena de um poder constituinte j estr~turado.~'

    O modelo individualista tem como premissa fundamental a primazia do indivduo exclusivamente perante o poder estatal. Ponto marcante que o dis- tingue do modelo historicista diz respeito ao lugar ocupado pela revoluo em cada um deles. Em resumo, o modelo historicista preconiza primordial- mente a ideia do governo limitado. O individualista, por sua vez, sustenta em primeiro lugar, uma revoluo social que elimine os privilgios e a ordem estamental que os fundamenta."

    No paradigma individualista, a Constituio no apenas um pacto entre o prncipe e o povo ou qualquer outra organizao estamental. Nesse mo- delo, a Constituio consiste na deciso poltica adotada pela nao, que uma instituio una, indivisvel e capaz de fixar seu prprio destino. Para o modelo individualista, toda a Constituio pressupe essa unidade.29

    O paradigma historicista critica o modelo individualista, porque esse ad- mitiria excessivamente a necessidade de instrumento coletivo, o Estado ou

    : a vontade geral da nao que poderia eliminar totalmente a ordem jurdico- -social vigente. J para o modelo individualista, o defeito principal do histori- cista seria o excesso de timidez e moderao ao estender os novos valores do individualismo liberal e burgus contra privilgios j es tabele~idos.~~

    26. Carl Schmitt. Op. cit., S 6.*, n. 4, p. 71. 27. Cf. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 42-43 28. Idem, Cap. 1, n. 2, p. 37. 29. Carl Schmitt. Op. cit., 6.', n. 5, p. 72. 30. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 37.

  • 3.2.2 A posio da sociedade civil e do Poder Constituinte no modelo indiv~dualista

    odelo individualista fundamentado no c o n t r a t ~ a l i s m o ~ ~ e reivindica emissa a presuno de liberdade, portanto, defende que o exerccio das es no pode ser guiado ou dirigido pela autoridade pblica, mas to delimitado pelo l e ~ i s l a d o r . ~ ~

    -

    ociedade civil ocupa posio de destaque no paradigma individualista, ciando-se do modelo estatalista justamente por defender a preeminn-

    a sociedade civil em relao ao Estado. istncia da sociedade civil anterior ao Estado no implica desnecessi- Estado. A sociedade civil necessita do Estado e de sua legislao para

    lidar posies e garantir direitos, porm, tanto as posies quanto os existem antes do prprio Estado poltico, podendo ser encontrados rio estado de natureza, tal como preconizam as doutrinas contratu-

    s XVII e XVIII.?~ Por consequncia, no modelo individua- ado criado para aperfeioar a tutela dos direitos, bem como para

    r com mais preciso e segurana as esferas de liberdade de cada um e evenir o nascimento de conflito radical. Dessa forma, o Estado nunca

    ebido para fundar ou criar esses direitos individuais, mas to somente elhor resguard-10s.~~

    elo individualista sustenta a total primazia e anterioridade dos di- mentais em relao a figura do Estado, que surge como instru- garantir e aperfeioar a tutela dos referidos direitos.

    odelo individualista, o Poder Constituinte tambm elemento di- or. Nesse paradigma, o Poder Constituinte tratado como o funda-

    tal e originrio poder dos indivduos de decidir sobre a forma e o rumo

    cerca do contratualismo citado cf. Jean-Jacques Rousseau. O contrato social: ncpios do direito poltico. So Paulo: Martins Fontes, 2006. Para comentrio Rousseau, ver: Jean-Jacques Chevallier. Op. cit., 2." Parte, Cap. 111, p. 163-

    r ainda: John Locke. Op. cit. bre Locke ver ainda Clarence Morris (org.). Op. cit., n. 6, p. 130 et seq. Para eo da obra de Rousseau cf. Clarence Morris (org.). Op. cit., (Jean-Jacques

    seaul, n. 9, p. 211 et seq. rizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 2, p. 41.

    eras notas n. 13, 23 e 29. aurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, u. 2, p. 41.

  • 74 REVISTA DOS TRIBUNAIS RT907 . MAIO DE 2011

    da estrutura poltica, ou seja, o Estado. Este Poder Constituinte ser o pai do todas as liberdades polticas.35

    Nesse ponto, o modelo individualista tambm se diferencia do estatalista, na medida em que o Poder Constituinte com ele incompatvel. Essa incom- patibilidade ocorre porque, nesse modelo, a sociedade de indivduos politi- camente ativos nasce somente com o Estado e atravs do Estado, antes desse momento no existe nenhum sujeito politicamente significativo. O estatalista no reconhece a qualidade de sujeito poltico ao povo ou a nao antes da existncia do prprio Estad0.9~

    Assim, somente a partir da viso individualista que se consegue conce- ber a existncia de Poder Constituinte autnomo que precede e determina os poderes estatais constitudos. Com efeito, a perspectiva individualista pre- coniza que antes de se produzir o pactum subiectionis, por meio do qual os indivduos se submetem a autoridade comum, existe anterior a essa sujeio, um ato precedente e distinto que o pactum societatis. A partir desse pacto, nasce a sociedade civil dos indivduos que tambm a sociedade dos indiv- duos politicamenteativos, o povo ou nao da Revoluo Francesa, que tem total autonomia para exercer o Poder Constituinte para decidir e fundar o tipo de Estado de~ejado.~'

    Historicamente, os modelos individualista e historicista disputam qual a melhor forma de se tutelar os direitos individuais. A viso individualista, ainda que em menor escala, tambm possui diferenas em relao a histo- ricista. Em conformidade com o exposto, os individualistas postulam que o melhor modo de garantir as liberdades confi-las a autoridade da lei do Estado, dentro dos limites rigidamente fixados pela presuno de liberdade e a condio sine qua non de que o Estado seja posterior a sociedade civil, por consequncia, fruto da vontade constituinte dos cidados. J os historicistas preconizam que no existem garantias srias e estveis de manuteno das liberdades - uma vez que o poder poltico j tenha se apoderado da capaci- dade de defini-las. Assim, para o historicista, a melhor forma de se tutelar e garantir essas liberdades mediante a atuao da jurisprudncia em virtude de sua natureza mais pudente e ligada ao transcurso natural do tempo e a evoluo da s~ciedade.~'

    35. Idem, p. 41-42. 36. Idem, p. 42. 37. Idem, p. 43. 38. Idem, p. 44.

  • ontudo, a figura do Poder Constituinte elemento diferenciador funda- ental entre o paradigma individualista e o historicista. O segundo defende

    ue as liberdades (positivas) devem ser gradualmente ampliadas e assegura- s na esfera legislativa. Ocorre que o historicista desconfia da manifestao erna e com forte participao da liberdade politica de decidir das Assem-

    Constituintes. Por isso, na histria constitucional inglesa, no existem embleias Constituintes, presentes na histria constitucional francesa. de10 historicista considera perigosa a manifestao ilimitada do Poder tituinte originrio, em virtude da total instabilidade que nsita a es- rmas de manifestao. Essa instabilidade do Poder Constituinte pode

    etar srias distores no momento de determinar a nova forma politica stado. Ou seja, a atuao do Poder Constituinte ilimitado escapa das entes leis da histria e do controle da jurisprudncia, ficando totalmente

    ito a vontade flutuante e mutvel da maioria eventual dos

    O modelo estatalista lo estatalista o que se forma na Europa continental a partir do , no perodo exatamente posterior a chamada codificao dos ide-

    aturalistas com os Cdigos Civis francs e alemo e que coincide com Ihamento burocrtico do Estado de Direito liberal e a formao do

    1 O modelo estatalista e sua confrontao com o modelo individualista

    elhor forma de compreender a doutrina estatalista confront-la com que ela pretende superar: o individualismo revolucionrio que a ante-

    anto ao modelo historicista, o estatalismo no o rechaa completa- elo contrrio, acaba se aproximando dele em alguns pontos, embora

    e em relao ao modo de fundamentao do prprio poder. primeiro lugar, preciso destacar que tambm o modelo individua- olucionrio reveste-se de certo carter estatalista na medida em que

    mentao das liberdades se encontra dada a partir de Declaraes es- ue reconhecem os direitos dos cidados existentes antes da formao

  • Como afirma Fioravanti, o modelo estatalista se difere do individualista porque neste, ao contrrio daquele, presume-se a existncia da sociedade civil dos individuos como anterior ao Estado. Mas o elemento estado e o sen- timento de descontinuidade histrica - que tambm se manifesta no modelo estatalista - afigura-se presente j neste primeiro perodo ps-revoluo.

    interessante notar que, historicamente, o modelo estatalista possibi- litado por aquilo que ele mesmo pretende superar. Com efeito, as principais estruturas estatalistas j estavam presentes na forma de fundamentar as liber- dades do individualismo revolucionrio. H apenas uma "mudana de rota" com a radicalizao do papel que o direito posto pelo Estado exerce em rela- o aos individuos. Neste ponto, Castanheira Neves extremamente perspi- caz ao demonstrar a ntima relao que o iluminismo racionalista possui com o positivismo juridico que se forma exatamente no ambiente de estruturao do Estado de Direito do sculo XIX?"

    Em outros termos, h uma estreita relao entre a consolidao do positi- vismo jurdico e o modelo estatalista de fundamentao das liberdades.

    Para pontuar essa primeira diferena, podemos dizer que, se no modelo individualista, a fundamentao das liberdades se dava atravs de uma si- tuao pr-estatal que justificava o reconhecimento pelo Estado de direitos inalienveis do indivduo, no modelo estatalista, o fato da prpria positi- vao da lei que far a funo de fundamento. Ou seja, tecnicamente certo dizer que, no interior do modelo estatalista s h um direito: o de ser tratado conforme as leis postas pelo Estado.

    De forma elucidativa, o modelo individualista sempre pressups uma dualidade entre liberdade e poder - como sabemos, antes do Estado existe a sociedade civil dos individuos dotados de direitos naturais e, ao mesmo tempo, a sociedade dos indivduos politicamente ativos dotados da liberdade fundamental de querer uma ordem poltica organizada: o Estado." Todo s- culo XIX, por sua vez, est marcado principalmente pela atuao de juristas, por uma reao frente ao individualismo e ao contratualismo da revoluo.

    Para a doutrina estatalista do Estado Liberal europeu do sculo XIX, no existe nenhuma liberdade e nenhum direito individual anterior ao Estado, mais precisamente, antes da fora imperativa e autorizante das normas do Es-

    40. Cf. Antnio Castanheira Neves. Curso de introduao ao estudo do direito. Coim- bra: Sebenta, 1976. Parte 11.

    41. C. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 1, n. 3, p. 47.

  • tado que so as nicas capazes de organizar a sociedade e de fixar as posies jurdicas subjetivas de cada um.42

    .3.2 A posio do individuo e do sociedade civil no modelo

    onferindo continuidade a exposio do paradigma estatalista, passar-se- exame que esse modelo confere a fundamentao das liberdades. No

    adigma estatalista, o Estado poltico organizado nasce da vontade dos in- uos, principalmente em virtude da necessidade e do desejo de seguran- corre que no estatalismo, o Estado poltico no se estrutura a partir de ato estabelecido entre os cidados e o Estado que contenha recprocas

    tagens. No modelo estatalista, a formao do Estado ocorre mediante um o de subordinao, cujo contedo inegocivel, pelo qual os sujeitos se

    tem, simultaneamente, ao monoplio do imperium. Essa sujeio re- a para que o soberano possa, com sua capacidade de governar, moderar

    nflitos sociais e assim, propiciar aos governados condies mais seguras viver em sociedade, e para preservao dos direitos f~ndamentais.'~ oravanti prossegue seu raciocnio asseverando que na lgica estatalista, ades coletivas como povo ou sociedade no so impensveis antes e fora tado. No modelo estatalista, a sociedade dos indivduos politicamente izada somente se converte em povo ou no mediante sua represeutao

    tria por parte do Estado soberano. Para o estatalismo, pouco importa se ferida representao seja dada por monarca absolutista ou por assembleia s ou menos democraticamente eleita. Com efeito, o que interessa o fato

    m ou outro, na cultura estatalista, no o resultado de uma constru- ratualista desde a base. Desse modo, a partir do Poder Constituinte ribuido a sociedade originria de indivduos politicamente ativos, condio absolutamente necessria para a existncia de um corpo nitrio, que de outro modo seria uma mera multido desagregada e

    camente incapaz de se expressar.44 os moldes estatalistas, quando o cidado elege seus representantes, no

    ansmite os poderes que tem originariamente, mas to somente exerce no: a de designar, com fundamento no interesse pblico e sobre a

  • base exclusiva do direito estatal, os representantes polticos que deveriam expressar a soberania do Estado na forma da lei!5

    3.3.3 Concluso sobre o modelo estatalista e a posio da jurisprudncia

    Em resumo, no paradigma estatalista todas as liberdades se fundam nica e exclusivamente sobre as normas impostas pelo prprio Estado. Assim, for- osamente se deve admitir que nesse modelo, apenas existe um nico direito fundamental, qual seja, de ser tratado conforme as leis do Estado. Ou seja, toda a problemtica das liberdades se reduz ao problema da a~tio, '~ em virtude das solues jurdicas que poder0 ser invocadas quando algum lesione direito fundamental de outrem fundado e garantido na legislao vigente.

    No modelo estatalista, faz-se necessrio ressaltar o relativo desprestgio que a jurisprudncia (Judicirio) sofre quando o paradigma estatalista com- parado principalmente ao modelo historicista. Em sistema politico erigido sobre princpios de carter estatalista, difcil que o juiz [ordinrio ou ad- ministrativo] seja completamente livre para tutelar direitos individuais no momento em que se chocarem com razes de autoridade. Nesses momentos crticos, o Estado no pode atuar como terceiro neutro perante conflitos esta- belecidos entre as razes individuais dos particulares e as razes da autorida- de pblica da burocracia do E~tado.~ '

    4. A DIMENSAO HISTRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 4.1 Direitos fundamentais e Constituio Federal

    Atualmente, na maior parte dos Estados Democrticos, os direitos fun- damentais esto catalogados e assegurados em textos constitucionais. Por consequncia, os direitos fundamentais possuem absoluta normatividade,

    45. Idem, p. 51. 46. Idem, Cap. 3, n. 2, p. 120.

    Para uma crtica aos vnculos estatalistas existentes na vertente terica da ins- trumentalidade do processo, conferir: Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oli- veira. O dito e o no dito sobre a instrumentalidade do processo: crticas e projees a partir de uma explorao hermenutica da teoria processual. RePro 166147.59, n. 3.2-3.3.

    47. Maurizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 3, n. 2, p. 120.

  • evendo ser aplicados imediatamente. Nesse sentido, Friedrich Muller pon- , a partir do momento em que so positivados no texto constitucional, tos fundamentais passam a ser considerados direito vigente, adqui- arter estatal-normativo, por consequncia, sua obedincia significa

    ar o prprio direito positivo." sim, a positivao dos direitos fundamentais nos textos constitucionais ortante para a respectiva concretizao desses direitos. Todavia, ainda enham sua normatividade diretamente proveniente do texto constitu- , a existncia dos direitos fundamentais fruto do desenvol~imento

    torico de cultura de cada sociedade (historicismo). Nesse ponto, passar- examinar a insuficincia do paradigma estatalista para tutelar os direi-

    conformidade com o que expusemos, Fioravanti demonstra que o individualista e o historicista concordam que o primeiro dever do ionalismo realizar o controle e a limitao do poder em nome das s e dos direitos fundamentais que o precedem.*'

    portncia do elemento historicista para a proteo dos direitos

    rnamente, a Constituio Federal, principalmente em seu art. 5.", xtenso rol de direitos fundamentais e tambm assegura diversos ins-

    tos processuais para garantir sua efetividade. Entretanto, diante de o de exceo (anormalidade), quais garantias o cidado possui para tinuem sendo respeitados e assegurados seus direitos fundamentais? nti aponta diversos questionamentos a que o modelo estatalista in- te para responder. Quais garantias pode oferecer uma lei do Estado

    da de toda a referncia externa? Quem pode garantir que os direitos e ades fixados na lei no sejam no instante seguinte anulados pela mesma

    e, por meio de seu poder soberano? nder a essas indagaes algo extremamente complexo. Contudo, firmar que o modelo estatalista totalmente insuficiente para retor-

    Iler. Teoria e interpretao dos direitos humanos nacionais e in- rnacionais - especialmente na tica da teoria estruturante do direito. In: C1-

    on Merlin Clve, Ingo Wolfgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini S.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007. n. 1, p. 46. rizio Fioravaiiti. Op. cit., Cap. 1, R. 3, p. 52.

  • 80 REVISTA DOS T R I ~ U N A I ~ . RT907 . MAIO DE 2011

    quir essas questes. A soluo desses questionamentos deve partir do para- digma individualista e principalmente do historicista, porquanto ambos suh- metem o soberano (seja rei, presidente ou assembleia legislativa) a vnculos superiores, e.g., fora dos costumes, direitos radicados na histria, ou mesmo Constituio escrita que pretende impor-se como norma fundamental supe- rior at mesmo ao soberano (clusulas p t r e a ~ ) . ~ ~

    Nessa perspectiva que se apresenta importante a elaborao de uma te- oria referente s restries aos direitos fundamentais. Em conformidade com o que expusemos, a evoluo do constitucionalismo tem como um de seus escopos principais a regulao [controle] do poder e, consequentemente, a preservao dos direitos f~ndamenta i s .~~

    4.3 Ajudicial review como direito fundamental Para a citada valorizao dos direitos fundamentais, o pensamento de

    Coke foi essencial, uma vez que foi ele quem conferiu, ainda que no common law, status superior Constituio. Para Coke, a Carta Magna constituiu um colosso de estatura tal que no pode suportar nenhum soberano acima dela. Essa a premissa sustentada por Coke para defender a supremacia do parla- mento, no a sua soberania.52

    Depois de proceder limitao do poder do rei e restringir a soberania do parlamento, Coke passa a demonstrar a importncia fundamental que a atuao do Judicirio deve desempenhar para a implementao dos direitos fundamentais. Assim, os juizes eram verdadeiros lees que deveriam custo- diar, frente ao rei, os direitos dos cidados.53

    50. Idem, p. 53. 51. Cf. em especial a introduo feita por Bartolom Clavero para a obra de Nicol

    Matteucci. Organizacin de1 podery libertad cit., p. 9-21. Sobre o tema, merece destaque, o artigo elaborado por Rafael Tomaz de Oli- veira. A Constituio e o estamento: contribuies a patognese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro. ln: Lenio Luiz Streck; Vicente de Paula Barreto e Alfredo Santiago Cnlleton (orgs.). 20 Anos de Constituio: os direitos humanos entre a norma e apolitica. So Leopoldo: ikos, 2010. n. 2.1, p. 221.

    52. Nicola Matteucci. Organizacin de1 poder y libertad cit., n. 4, p. 88. 53. Idem, n. 4, p. 89.

    Ressaltando a importncia da atuao de Coke para combater o absolutismo inels ver: Nicola Matteucci. Breve storia de1 costituzionalismo cit.. C ~ D . 3.

  • .3.1 A origem histrica dajudicial review ontrole de constitucionalidade tem sua origem no processo Bonham.

    e processo, que teve Coke como seu protagonista, muito provavelmente tm uma das mais famosas e discutidas sentenas judiciais, uma vez que

    titui urecedente da moderna instituico conhecida como controle de

    3.1.1 Bonham'scase. A contribuio de Edward Coke para a estruturao da judicialreview

    Bonham (Bonham5 case - The College of Physicians vs. DI: Thomas 55 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward

    sse caso considerado o antecedente mais importante para a forma- nsolidao da tcnica da judicial review consagrada no caso Marbuvy

    on. Alm da judicial review, o caso Bonham tambm traria os ante- histricos necessrios para a estruturao do preceito judicial da

    es de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, faz-se neces- xaminar seu antecedente histrico que a doutrina Jenkins (lenkins

    indo ser esse o precedente da judicial review ver Nicola Matteucci. Orga- in de1 podery libertad cit., n. 4, p. 91. consultar a deciso do caso Bonham ver: John Henry Thomas e John Far-

    har Fraser (orgs.). The Reports ojSir Edward Coke in thirteen parties. London: eph Butterworth and Son, 1826. vol. 4, n. 107d121a, p. 355-383. ristopher Wolfe destaca que o caso Bonham teve maior influncia fora da laterra do que em seu pas de origem. Christopher Wolfe. The rise ojmodern ' ial review: jrom constitutional interpretatiou to jndge-made law Boston: Lit- eld Adams Quality Paperbacks, 1994. n. 4, p. 90-91. entando o caso Bonham, ver: Fernando Rey Martnez. Una relectura der

    r. Bonham's Case y de Ia Aportacin de Sir Edward Coke a la Creacin de Ia icial Review. In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldivar Lelo de Lar- (org.). La ciencia de1 derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a tor Fix-Zamudio. Mexico: Marcial Pons, 2008. p. 847-866. ola Matteucci. Organizacin de1 podery libertad cit., n. 4, p. 91 et seq.

    r ainda: Nicola Matteucci. Breve storia de1 costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 58. - -

    ara uma exposio da doutrina Jenkins conferir: Fernando Rey Martnez. Op. ., n. 11, p. 852-854.

  • 82 REVISTA DOS TRIBUNAIS- RT907 MAIO DE 2011

    Tanto o caso Jenkins quanto o Bonham so oriundos de conflitos judiciais envolvendo o Colgio de Mdicos da Inglaterra, instituio criada pelo Lord Canciller Cavd Wolsey em 1518 sob o reinado de Enrique VIII.

    O Colgio de Mdicos era a instituio responsvel pela concesso de li- cena para se praticar a medicina. Em 1540 foi promulgada pelo Parlamento Ingls lei (Act of Pavliament) que concedeu amplos poderes para o Colgio. A partir dela, o Colgio de Mdicos alm de admitir e expulsar scios, passou a poder apenar com priso os infratores que praticassem medicina sem licena ou fizessem mal uso dela - mantendo-os presos durante o tempo que consi- derasse oportuno.58

    O Colgio de Mdicos era uma instituio que no possua vnculo com nenhuma Universidade e durante o sculo XVI utilizou de seus generosos poderes, conferidos pelo Act of Parliament de 1540, para perseguir diversos mdicos. Um desses mdicos foi Roger Jenkins que havia recusado se sub- meter a autoridade do Colgio que imediatamente determinou sua priso. Em seguida, Jenkins impetrou habeas corpus a fim de obter sua liberdade provisional para o Tribunal (Common Pleas). O mrito do habeas corpus foi julgado pelo Chief justice Popham que decidiu a favor do Colgio de Mdi- cos, afirmando que ele teria competncia suficiente para decretar a priso dos infratores, afirmando ainda que os tribunais no podem decidir sobre a liberdade dos infratores, inas to somente apreciar as formalidades da deciso do Colgio dos Mdi~os.~'

    Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o Tribunal (Common Pleas) j havia corroborado a autoridade regulatria e sancionatria do Colgio de Mdicos de Londres. Tal situao mudaria radicalmente com o caso Bonham.

    No ano de 1605, o mdico Thomas Bonham, que havia estudado medicina em Cambridge, submeteu ao Colgio petio solicitando o direito de admi-

    : nistrar medicamentos. O Colgio de Mdicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham,

    quando convocado, apresentou respostas que foram consideradas imperti- nentes pelo Colgio e exerceu a medicina por algum tempo e sem autorizao para tanto.

    A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colgio de M- dicos. Alm das multas, aps comparecer perante o Presidente do Colgio

    58. Para maiores detalhes ver: Fernando Rey Martnez. Op. cit., n. 11, p. 852. 59. Idem, p. 853.

  • Henry Atkins), Bonham contestou a autoridade do Colgio e afirmou que a iustituio no teria poder contra os universitrios graduados em medi- a. Em seguida, Bonham foi preso por desacato em Newgate.

    ps a priso, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu er habeas corpus no Tribunal (Common Pleas), presidido ento pelo Chefe de

    , Edward Coke. Entretanto, a concesso desse habeas corpus contrariava havia sido estabelecido na Jmkins Doctrine. O Colgio de Mdicos aps ar comit seleto de juizes e por estar plenamente confiante no precedente , resolveu levar o assunto para os tribunais do common l a ~ . ~ ~ ide travada entre Bonham e o Colgio de Mdicos foi instaurada no

    na1 (Common Pleas) com a presidncia de Coke. Nesse processo, Bo- reclamava 100 libras a titulo de danos particulares em razo defalse nment por parte do Colgio de Mdicos. Ocorre que o texto da Lei de ra claro em estabelecer possibilidade de o Colgio de Mdicos apenar exercesse medicina sem licena (prtica ilcita) ou fizesse mau uso dela

    praxis). A lei tambm outorgava ao Colgio a possibilidade de realizar

    or sua vez, Bonham defendia seu ponto de visto com fundamento no es- da lei. Afirmava que a lei tinha a inteno de prevenir prticas medicas

    rretas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era mdico do na Universidade de Cambridge e, por possuir ttulo universitrio, isento da jurisdio do Colgio de Mdicos. alelamente ao julgamento no Tribunal do common law, o caso foi deci- 10 Tribunal do King's Bench no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado tica ilcita de medicina e condenado a pagar 60 libras. Por no ter essa , foi decretada sua priso.

    os um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo Tribu- ommon Pleas). A votao foi por maioria, trs votos favorveis e dois

    se favorvel a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada deciso da por Edward Coke. A deciso de Coke comeava com a seguinte pre-

    a: de que a autoridade dada pelo rei ao Colgio de Mdicos concedia dois distintos com fundamento em duas clusulas distintas. A primeira e a prtica ilcita que permitia ao Colgio multar quem exercesse a

    ra relato mais detalhado do caso ver: Fernando Rey Martnez. Op. cit., n. 111,

  • medicina sem sua licena. A segunda dizia respeito ao exerccio da m (err- nea) prtica mdica, a qual poderia ser apenada com a priso.62

    Para Coke, no era lcito ao Colgio apenar com priso quem praticava a medicina sem a licena do colgio, mas, de maneira adequada. Essa conduta somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferena entre praticar a medicina sem licena e pratic-la de maneira incorreta.

    Fernando Rey Martinez ao interpretar a deciso de Coke afirma que ela teria realizado uma distino entre infrao administrativa (exercer medici- na sem licena) e infrao penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda infrao, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a nica que poderia acarretar pena de priso.63

    Nesse sentido, alm da importncia para a construo da judicial review, Coke teria antecipado princpios fundamentais do direito sancionador no Es- tado de Direito, e.g., o direito penal figurar como a ltima ratio para o Estado agir e a obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoahilidade) das penas.64

    62. Nas exatas palavras de Coke: "The first reason was, that these two absolute, perfect and distinct clauses, and as parallels and therefore the one did not extend to the other; for the second begins, praeterea voluit et concessilv, & c. and the branch concerning fine and imprisonment is parcel of the secoud clause. 2. The first clause prohihiting the practice of physic, &. Comprefends four certainties: - 1. Certainty of the thing prohibited, sc, practice of physic. 2. Certainty of the time, sc. Practice for one month. 3. Certainty of penalty, sc. 51. 4. Certainty in distribution, sc. One moiety to the King, and the other moiety to the college; and this penalty he who practices physic in London incurs, although be practices and uses physic well, and profitable for the body of man; and on this branch the information was exhibited in the KingS Bench. But the clause to punish delicta in non bene exequado, &c. on which branch the case the case at bar stands, is altogether uncertain, for the hurt which may come thereby may be little or great, lexe vel grave, excessive or small, &c. and therefore the King and the makers of the act could not, for an offence so uncertain, impose a certaint of the fine, or time of imprisonment, but leave it to the censors to punish such offences, secundum quantilatem delicti, which is in included in these words, perfines, amerciamenta, imprisonamenta corporum suorum, et per alias vias rationabiles et congruas." John Henry Thomas eJohn Farquhar Fraser. Op. cit., n. 117b. p. 374-375. Fernando Rey Martnez. Op. cit., n. 111, p. 858.

    63. Idem, n. 111, p. 859. 64. Idem, ibidem.

  • 4.3.1.2 A influncia do Bonharn's case na formao da jud~cial revie w

    questo constitucional nsita ao BonhamS case no constitui o ncleo deciso, caracterizando-se como obiter dictum. Coke realiza sua argu-

    tao afirmando que a clusula que permitia ao Colgio apenar a prti- icina sem licena, consistiria em clusula contraditria e absurda

    uma vez que permitiria que o Colgio de Mdicos fosse ao tempo juiz e parte no processo.66

    se modo, a lei que permitia ao Colgio de Mdicos a um s tempo ar o exerccio de medicina sem licena por meio de procedimento no

    e seria ao mesmo tempo parte (acusadora e beneficiria de eventual juiz seria contraditria, absurda (repugnant), porque iria contra o consolidado no common law de que ningum pode ser a um s z e parte no mesmo proce~so.~ '

    'm, Coke, ainda que de maneira marginal (dictum), admite a correo itao da legislao vigente com fundamento em preceitos jurdicos rados historicamente pelo common l a ~ . ~ ~

    esmo diapaso, Nicola Matteucci destaca que a interpretao exata nham pode ser controvertida, contudo, inegvel que tanto para a quanto para os Estados Unidos, o BonhamS case constitui o incio

    definio de vepugnant, em dicionrio consagrado, a seguinte: "adj. Incon- sistent or irreconcilable with; contraty or contradictory to the court's interpre- tation was repugnant to the express wording of the statute". Bryan A. GARNER (org.). Blach's Law Dictionary 7. ed. St. Paul: West Group, 1999, verbete: repug-

    , Fernando Rey Martnez. Op. cit., n. IV, p. 860. 7. Coke destaca que a lei seria contrria ao common law, por consequncia, deve

    ser controlada. Vevbis: "And it appears in our books, that in many cases, the common law Will (d) controul acts of parliament, and sometimesadjudge tbem to be utterly void: for when an act of parliament is against common right aud reason, or repugnant, or impossible to he performed, the common law Will controul it, and adjudge such act to be void. John Henry Thomas eJohn Far- quhar Fraser. Op. cit., n. 118a, p. 375. Femando Rey Martinez. Op. cit., n. IV, p. 861.

    sa a leitura que fazemos do caso Bonham. Nicola Matteucci tambm visu- za nesse caso a origem da judicial review que se formou nos Estados Unidos. . Nicola Matteucci. Organizacion de1 podevy libertad cit., n. 4, p. 91 et seq.

    posio intermediria, ver Fernando Rey Martnez. Op. cit., n. 11; p. 865.

  • do desenvolvimento da mxima que admite a reviso da lei pelo Poder Judi- cirio, qual seja, o prprio controle de constitucionalidade das leis.69

    Na referida deciso, Coke destacou que o common law regula e controla os atos do Parlamento, e em ocasies os julga todos nulos e sem eficcia, uma vez que, quando um ato do Parlamento contrrio ao direito e a razo comum, o common law O controlar e o julgar nulo e sem eficcia. Coke destaca a existncia de um direito superior a lei do Parlamento e que estaria contido na prpria historicidade; uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento, contudo, somente adquire validade substancial quando ra- cional, e o controle de seu contedo corresponde aos juizes do common l a ~ . ~ ~

    O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acor- do com a historicidade. Assim, ao Judicirio caberia exercer o controle dos demais atos de poder pblico que fossem violadores dos direitos fundamen- tais historicamente assegurados aos cidados, ainda que parte desses atos estivesse em consonncia com a iegisiao vigente, mas em confronto com a historicidade (common law).

    Desse modo, faz-se evidente a partir das assertivas de Coke - e do desen- volvimento posterior dessa tecnologia pelo constitucionalismo estaduniden- se - a importncia da judicial review (controle difuso de constitucionalidade) como direito fundamental do cidado. Da mesma maneira que a atividade do parlamento impe limites ao poder real, a supremacia do parlamento no pode ser interpretada como absoluta soberania. Assim, o Judicirio, princi- palmente, por meio da judicial review, tem a funo primordial de limitar os dois outros poderes a fim de resguardar os direitos fundamentais dos cida- dos.

    4.3.2 O coso Morburyvs. Modison. Aplicao do Constituio como regra jurdica

    A judicial ~eview,~' propriamente dita como a conhecemos, tem sua ori- gem no clebre caso Marbury vs. Madison.

    69. Cf. Nicola Matteucci. Breve storia de1 costituzionalismo cit., Cap. 3, p. 59. 70. Nicola Matteucci. Organizacin de1 podery libertad cit., n. 4, p. 91.

    Ver. John Heury Thomas ejohn Farquhar Fraser. Op. cit., n. 118a, p. 375. 71. Sobre origem e desenvolvimento da judicial review ver: Nicola Matteucci. Orga-

    nizacidn de1 poder y libertad cit., n. 6, p. 204 et seq. Ver ainda: John Marshall. Judicial review e stato federale. Milano: Giuffr, 1998.

  • reviso das leis atravs do processo constitui garantia fundamental ento essencial) para a existncia, preservao e concretizao de uma ituio escritaY2 cujas normas devem ser consideradas sempre supe-

    s as emanadas pelo Poder Legislativo. A sentena Marbury vs. Madison cretiza mudanas profundas no constitucionalismo. A partir dela, fica itucionalizada a influncia direta que a Constituio escrita impe ao esso demo~rtico.~ ' hristopher Wolfe pontua a importncia da Constituio escrita para a lidao da judicial review nos Estados Unidos. Isso ocorre porque se o americano optou por ter Constituio escrita, por consequncia, essa

    stituio dever controlar e rechaar todos os atos legislativos contrrios

    o contrrio, caso se admitisse que os atos legislativos inconstitucionais ssem ter o mesmo valor e igual eficcia em relao aos constitucionais, distino entre governo limitado e ilimitado estaria desfeita, na medida

    obert Lowry Clinton. Marbury v. Madison and Judicial Review. Kansas: Univer- 'ty Press of Kansas, 1989. n. 5/8, p. 81 et seq. onferir ainda Christopher Wolfe. Op. cit., n. 2, p. 39 et seq. citado autor destaca como o principal argumento de Marshall a prpria sub- so de todos os magistrados ao texto constitucional. Verbis:

    he hrst and most powerful argument that Marshall gave from the Constitu- n itself was that 'the judicial Power is extender to a11 cases arising under the

    onstitution'. How can one decide a case arising under the Constitution with- ut looking at the Constitution? But if the judges can look at the Constitution

    some cases, why are they forbidden to do so in others". Christopher Wolfe.

    a uma anlise evolutiva da judicial review e sua relao com a teoria de Jon ser sobre a Constituio como restrio cf. Rafael Tomaz de Oliveira. A Cons-

    io e o estamento: contribuies a patognese do controle difuso de cons- cionalidade brasileiro cit., n. 2.3, p. 227-229. re o conceito de Constituies como restries ver: Jon Elster. Ulisses Liber-

    : estudos sobre racionalidade, pr-compromisso e restries. So Paulo: Unesp, 009. n. 2, p. 119 et seq.

    xame da evoluco histrica da judicial review nos Estados Unidos confe- obert Lowry Clinton. Op. cit., n. 1/4, p. 4-72.

    ola Matteucci. Organizacin del podery libertad cit., n. 6, p. 169. bre a importncia da formao da judicial review e sua influncia na funo

    i, Suprema Corte ver: Rafael Tomaz de Oliveira. A Constituio e o estamento: ontribuices patognese do controle difuso de constitucionalidade brasileiro

  • em que qualquer ato legislativo poderia alterar a Constituio Federal, o que impediria que ela usufrusse do status de lei fundamental."

    Pode-se afirmar, assim, que a partir de 1803 tem-se por construda a ideia da Constituio como regra juridica (de se salientar que os modelos de direi- to prximos a Europa continental, somente conhecero o conceito de Cons- tituio como regra juridica a partir do segundo ps-guerra). Portanto, o caso Marbury vs. Madison tem como grande inovao selar a Constituio com o carter da normatividade.

    A partir do caso Marbury vs. Madison fica expressamente registrado que o judicial review constitui elemento fundamental para garantir a concretizao da Constituio Federal. Nesse sentido, asseveramos que a judicial rrview (co~itrole difuso de coiistitucionalidade) possui a natureza de direito funda- mental.

    Do contrrio, ter-se-ia de admitir a existncia de situaoes em que o cida- do ficaria obrigado a submeter-se a situaes e atos formalmente legais, mas em desconformidade com o que est previsto na Constituio Federal.

    4.3.3 A importncia de se conferir natureza de direito fundamental O. judicial review

    Assim, se a Constituio Federal consagra rol de direitos e garantias funda- mentais ao cidado, por consequncia, faz-se necessrio garantir ao particular todos os meios para fazer valer seus direitos constitucionalmente previstos.

    Desse modo, diante de restries aos direitos fundamentais do cidado por algum ato do Poder Pblico formalmente legal, somente por meio da ju- dicial review seria possvel ao particular corrigir a ilegalidade e preservar seu direito fundamental. Ou seja, sem a existncia da judicial review, o direito de ao (acesso a justia) fica seriamente prejudicado.

    mister frisar que a atribuio de status de direito fundamental a judicial review tem por escopo, impedir que essa garantia fundamental do cidado (controle difuso de constitucionalidade) seja suplantada pelo prprio Judici- rio, principalmente pelo recrudescimento das decises de efeito vinculante do STF:

    Ademais, a defesa do controle difuso de constitucionalidade, enquanto garantia fundamental do cidado, justifica-se, principalmente, porque a ju- dicial review que permite a observncia das particularidades de cada caso

    74. Christopher Wolfe. Op. cit., n. 3, p. 82

  • concreto, ou seja, sem o controle difuso de constitucionalidade o acesso a justia (art. 5 . O , XXXV, CF11988) no seria concretizado em sua plenitude.

    esse sentido, Christopher Wolfe destaca que, por meio da judicial re- w o Judicirio no anula simplesmente o ato legislativo, pelo contrrio,

    icirio interpreta e esclarece o teor da legislao, inclusive afastando-a m de no se permitir a violaxo a direitos fundamentais perante o caso

    o. O controle difuso de constitucionalidade legitima-se at mesmo a proteo desses direitos o principal escopo do Poder Pbl i~o . '~ ue o controle difuso de constitucionalidade no pode sofrer restri-

    tivas, ou do prprio Poder Judicirio. Todavia, no se est aqui o nenhuma supremacia ou ativismo do Poder J ~ d i c i r i o . ~ ~ Pelo a prpria valorizao do controle difuso de constitucionalidade

    ta em dimenso mxima o controle de con~t i tuc ional idade~~ dos r Pblico e permite que seja evitada a supresso de algum direito

    amental em decorrncia de deciso com efeito vinculante do prprio icirio, e.g., smula ~ incu lan te . ' ~

    ra uma crtica ao ativismo judicial e ao suposto protagonismo judicial, confe- bra de Lenio Luiz Streck. O que isto - decido conforme minha conscincia? Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

    obre esse ponto, merece transcrio a seguinte passagem de Lenio Luiz Streck: ntre outras coisas, devemos levar o texto a srio, circunstncia que se coaduna rfeitamente com as Constituicoes na segunda metade do sculo XX e confere pecial especificidade a interpretaco do direito, em face do vetor de sentido sumido pelo texto constitucional, alm de reafirmar a autonomia do direito. mbater a discricionariedade, o ativismo, o positivismo ftico etc. -que. como sabe, so algumas das vnas faces do subjetivismo - quer dizer c~&~romisso

    om a Constituico e com a leeislacao democraticamente construda. no interior da - ~

    uma discusso, no plano da esfera pblica, das questes tico-morais da de. Portanto, no ser o juiz, com base na sua particular concepo de , que far as correces morais das leis defeituosas (...).

    Mas atenco: essa crtica ao subjetivismo - que , fundamentalmente, uma cr- a ao pragmati(ci)smo - no implica a submisso do Judicirio a qualquer

    gislao que fira a Constituio, entendida no seu todo principiolgico. Legis- ivos irresponsveis - que aprovem leis de convenincia - merecero a censura jurisdio constitucional. No Estado Democrtico de Direito, nenhum ato do der Executivo ou Legislativo est imune a sindicabilidade de cariz constitu- nal!" Lenio Luiz Streck. Op. cit., n. 7, p. 102-103.

    essa questo, Nelson NeryJunior e Rosa Maria de Andrade Nery admitem pressamente, o controle difuso de constitucionalidade da smula vinculaute. rbis:

  • Dessarte, o historici~mo'~ acima destacado, permite depreender a importn- cia que a preservaco dos direitos fundamentais e o controle do poder possuem para a construo do constitucionalismo. Assim, os direitos fundamentais so atualmente os elementos fundantes e legitimadores do Estado Democrtico de Direito. O Judicirio possui papel fundamental para a defesa dos direitos fundamentais, isso porque, coiifornie ressalta Coke, funo do Judicirio ga- rantir a supremacia dos direitos fundamentais perante a ingerncia do Poder Pblico (real ou parlamentar) e tambm averiguar e controlar a adequabilidade dos atos do Poder Pblico ao historicismo. Ou seja, o Judicirio teria a funo de examinar se atos do poder pblico ainda que formalmente vlidos no esto em dissonncia em relao aos da tradico histrica de determinada sociedade que em sua formao, assegurou histrica e progressivamente direitos funda- mentais, cuja grande parte est, atualmente positivada no texto constitucional.

    Dessa forma, evidente a importncia que a judicial review (controle difu- so de constitucionalidade) conferiu para a elaborao e a garantia dos direitos fundamentais. Em conformidade com o que foi demonstrado at o presente momento, a limitao do poder e a preservao dos direitos fundamentais constituem o principal mote perseguido pela evoluo do constitucionalis- mo. Assim sendo, os direitos fundamentais no podem ser violados pelo Po- der Pblico, porquanto sua preservao o ponto fundante da legitimidade do prprio Poder Pblico (Estado).

    4.4 Os fundamentos dos direitos fundamentais 4.4.1 O fundamento normotivo:a Constituio Federol Em ltima instncia, a soberania do Estado no est limitada nem pode

    ser restringida por outro direito, por norma de ordem constitucional, por conjunto de princpios racionalmente fixados em uma Declarao de direitos ou por controle de constitucionalidade confiado aos juizes. A soberania do

    "Em razo da natureza legislativa da smula vinculante, como o juiz pode con- trolar, in concreto, a constitucionalidade de lei, complementar ou ordinria, ou de ato normativo contestado em face da Constituio Federal, a ele possvel, tambm, fazer o controle da constitucionalidade de verbete da smula vincu- lante do STF, que tem cardtergeral e normativo". Nelson Nery Junior e Rosa Ma- ria de Andrade Nery. Constituio Federal comentada e legislaao constitucional. 2. ed. Sao Paulo: Ed. RT, 2009. Coment. 14, art. 103-A da CFl1988, p. 532.

    79 Sobre nosso conceito de historicismo, vide nota n 7

  • o est sim limitada pelos fatos e pela histria, pelo lugar que o poder a na sociedade liberal do sculo X1X.80 e, cada vez mais difcil reconhecer no legislador o espelho fiel

    de sua histria. Portanto, recrudesce a necessidade de se colocar ivo ao legislador, de vincul-lo a observncia de certos valores nais e tambm de obrig-lo a realizao daqueles valores em sacie- s de largo domnio da soberania pura estatal, aumenta a impor- nstituio como a mxima garantia contra o arbtrio dos Poderes

    e tambm como norma diretiva fundamental a cumprir sobre a base es por ela es tabele~idos .~~ sendo, possvel conceituar a Constituio como ato de funda-

    ireitos e liberdades - uma verdadeira norma juridica - e no como anifesto ideolgico ou poltico como era das Declaraes de direitos iodos revolucionrios. Por conseguinte, faz-se necessrio suprimir o

    utismo do dogma da primazia da lei, sendo necessria a existncia de ole de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado, para permitir a icao de toda lei que for substancialmente contrria aos dispositivos

    O fundamento histrico: o processo civilizado^ e que a preservao dos direitos fundamentais no deve ocorrer

    nte porque atualmente gozam de status constitucional, mas sim por- constituem conquista histrica da formao poltica e juridica dos cuja observncia obrigatria pelo Poder Pblico e pelos demais

    rizio Fioravanti. Op. cit., Cap. 3, n. 2, p. 124.

    aminar os direitos fundamentais como conquista histrica da formao poli- e jurdica do Estado contribui para se avaliar a correo e a legitimidade dos do poder pblico no que diz respeito a tutela dos direitos fundamentais. gio Agamben demonstra que; em ltima instncia, o estgio mais terato-

    ico de desrespeito aos direitos fundamentais est presente nos campos de ntrao (Auschwitz). No campo de concentrao todos os direitos funda- is so suspensos, toda a dignidade do homem retirada, transformando , o homem em um no homem. Ver: Giorgio Agamben. O que resta de Aus-

    witz: o arquivo e a testemunha. So Paulo: Boitempo, 2008. n. 2.15, p. 74-75.

  • Assim, essa conquista histrica no representa o carreamento para dentro do texto constitucional da mera vontade do sujeito histrico que o arquite- to de uma metanarrativa (o sujeito do iluminismo; do comunismo etc.).% Ao

    Sobre a permanente suspenso dos direitos fundamentais, merece destaque a seguinte passagem: "Quando se livre - escreveu Amry, pensando em Heideg- ger - possvel pensar na morte sem forosamente pensar no morrer, sem estar angustiado pelo morrer. No campo, isso impossvel. E no porque - como parece sugerir Amry - o pensamento sobre os modos de morrer (por injeo de fenol, por gs ou por golpes) tomasse suprfluo o pensamento sobre a morte como tal. Mas sim porque onde o pensamento da morte foi materialmente rea- lizado, onde a morte era trivial, burocrtica e cotidiana, tanto a morte como o morrer, tanto o morrer como seus modos, tanto a morte como a fabricao de cadveres se tornam indiscernveis". Giorgio Agamben. Op. cit., n. 2.20, p. 82. Ademais, conceber os direitos fundamentais como conquista histrica da for- mao poltica e jurdica dos Estados permite que se evite o ressurgimento de situaes histricas que se caracterizam pela restrio ou suspenso dos direi- tos fundamentais. Quando os direitos fundamentais so colocados como pro- duto histrico oriundo de processo civilizador, qualquer situao de restrio ou eliminao desses direitos poder ser considerada ilegtima em virtude de evidente retrocesso social. Na realidade, examinar os direitos fundamentais juntamente com o elemento histrico permite que se mantenha o melhor discernimento para avaliar a juri- dicidade e a legitimidade de qualquer ressurgimento ou nova situao histri que pretenda violar direitos fundamentais. Tal alerta altamente importante, Agamben enftico em asseverar que Au chwitr ainda mantem seu; efeitos perdurando no tempo Ainda que ~uschwitz, enquanto momento historico, pode ser considerado encerrado do ponto de vis- ta cronolgico, seus efeitos perduram e se perpetuam no tempo, pr&cipalmen em virtude do testemunho de seus sobreviventes. Verbis: "Contudo, a impossibilidade de querer o eterno retorno de Auschwitz tem, ele, outra e bem diversa raiz, que implica uma nova, inaudita consistn tolgica do acontecido. Nao se pode querer que Auschwitz retome eterna porque, na verdade, nunca deixou de acontecel; jd est se repetindo sempre.' gio Agamben. Op. cit., n: 3.7, p. 106.

    84. Em artigo dedicado ao tema o constitucionalista J. J. Gomes Canotilho afir a morte das metanarrativas enquanto grandes receitas omnicompreensivas totalizantes que atribuem histria um significado certo e unvoco. So, fund mentalmente, trs as metanarrativas expostas: a judaico-crist, cuja promessa a ressurreio e a salvao; a iluminista e positivista, que indica o progresso, marxista, que almeja a desalienao e emancipao do homem atravs da dit dura do proletariado. O que essas filosofias historicistas tm em comum o fato de acreditarem num sentido irreversvel da histria. C. Jos Joaquim Gomes

  • djectivado e teoria da Constituio.Revista da Academia a de Direito Constitucional 3/469. nte com as metanarrativas revolucionrias, o citado constitucionalista morte do sujeito responsvel pela concretizao delas. Verbis:

    mpreender-se-, assim, a relativizao do dirigismo quanto em certos es- tos afirmamos que a 'Constituio dirigente morreu'. Entenda-se: morreu a

    ituio metanarrativa' da transio para o socialismo e para uma socieda- classes. O sujeito capaz de contar a rcita e empenhar-se nela tambm

    'ste ('aliana entre o movimento das Foras Armadas e os partidos e aes democrticas'). O sentido da 'morte' fica, pois, esclarecido. S esta

    orte' estava no alvo da nossa pontaria". Jos Joaquim Gomes Canotilho. Op.

    o tema, ver ainda: Jean Franois Lyotard. A fenomenologia. So Paulo: o Europia do Livro, 1967. p. 121 et seq.

    aqui se coloca no tocante ao processo civilizador nada mais do que ema geral da mudana histrica. Tomado como um todo, essa mudana

    foi racionalmente planejada, mas tampouco se reduziu ao aparecimento esaparecimento aleatrios de modelos desordenados. Como teria sido isso svel? Como pode acontecer que surja no mundo humano formaes sociais

    e nenhum ser isolado planejou e que, ainda assim, so tudo menos forma- s de nuvens, sem estabilidade ou estrutura?

    udo precedente, ein especial as partes dedicadas ao problema da dinmica 1, tentou dar uma resposta a essas perguntas. E ela muito simples: planos

    , impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente elaam de um modo amistoso ou hostil. Esse tecido bsico, resultante de

    lanos e aes isoladas, pode dar origem a mudanas e modelos que ne- essoa isolada planejou ou criou. Dessa interdependncia de pessoas surge em sui generis, uma ordem mais irresistivel e mais forte do que a vontade

    das pessoas isoladas que a compem. Essa ordem de impulsos e anelos entrelaados, essa ordem social, que determina o curso da mudana

    , e que subjaz ao processo civilizador." Norbert Elias. O processo civili- ormao do estado e civilizao. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. vol. 2, Parte

  • tecido bsico que sustenta o universo humano da cultura e que aponta para sua configurao enquanto verdadeiras conquistas civilizatrias.

    Desse modo, a atual positivao dos direitos fundamentais no texto cons- titucional lhes garante, de maneira incontestvel, plena normatividade, o que distinto de se afirmar que a sua existncia est atrelada to somente a sua positivao. Porque tal concepo retiraria todo o carter de conquista hist- rica desses direitos e ficaramos a merc de, na ausncia de um Texto Consti- tucional como o atual, no podermos invocar ou exercer qualquer um destes direitos. Vale dizer, nesta quadra da histria, no podemos aceitar a mxima kelsenianaa6 de que "qualquer contedo pode ser direito", na medida em que tal afirmao seria contrria ao processo civilizador, verdadeiro instituiute e instituidor dos direitos.

    Numa palavra: quando afirmamos que os direitos fundamentais esto in- sertos no processo civilizador e que, portanto, constituem uma conquista histrica, estamos amparados em Renato Janine Ribeiro que ao analisar a obra de Norbert Elias afirma que o processo civilizador carrega uma dimen- so tica; a convicZo de que o homem se civiliza, e de que isto constitui um valor posit i~o.~'

    A no observncia dos direitos fundamentais na atuao do Poder P- blico, alm de padecer de flagrante inconstitucionalidade, estar eivada de absoluta falta de legitimidade. Da que tendo em vista a importncia que os direitos fundamentais possuem na estruturao e legitimao do atual Estado Constitucional, facilmente perceptvel que toda restrio a algum desses direitos dever ocorrer sempre de maneira excepcional e preencher diversos requisitos legais. E justamente acerca de quais seriam os requisitos autoriza- dores para que se realize restrio a direitos fundamentais que nos dedicare- mos no prximo tpico.

    86. Nas palavras do autor: "Uma norma jurdica no vale porque tem um determinado contedo, quer dizer, porque o seu contedo pode ser deduzido pela vida de um raciocnio 1- gico ou de uma norma fundamental pressuposta, mas porque criada por uma forma determinada - em ltima anlise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela a ordem ju- rdica cujas normas so criadas de conformidade com esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer contedo pode ser Direito." Haus Kelsen. Teoria pura do direito. So Paulo: Martins Fontes, 2009. Cap. V, n. 1, p. 229.

    87. Cf. RenatoJanine Ribeiro, prefcio, da obra de Norbert Elias. Op. cit., p. 12.

  • MITO DA SUPREMACIA D o INTERESSE PBLICO SOBRE os DIREITOS i NDAMENTAIS

    tucional no se deve mais distinguir entre Estado e so- Estado Constitucional caracteriza-se no apenas pelo princpio

    de formal, que subordina os Poderes Pblicos as leis gerais e abs- m pela legalidade substancial que vincula o funcionamento a garantia dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa

    omo demonstramos, os direitos fundamentais e sua respectiva pre- nstituem um dos principais objetivos da evoluo do constitucio- a1 ponto que hoje no se pode conceber o Estado Constitucional

    o dos referidos direitos. Na realidade, os direitos fundamen- tivos que o cidado pode fazer valer contra o Poder P-

    ontra a prpria sociedade, no possuem carter meramente privado, -se necessrio revisitar o postulado do direito administrativo que a supremacia do interesse pblico sobre o interesse privado.89

    ireitos fundamentais apresentam duplo mbito de vinculao, posto mesmo tempo em que os particulares so os sujeitos ativos desses

    m determinados momentos, eles podero ser os sujeitos passivos ios) diretos deles. Assim, os direitos fundamentais pertencem aos

    lares permitindo sua oponibilidade contra o Poder Pblico, bem como

    acia do interesse pblico sobre o privado v. Celso Antnio

    contestando a suposta supremacia do interesse pblico sobre o

    e fundada na natureza constitucional dos direitos funda-

    s direitos e garantias fundamentais. In: Ives Gandra Martins e Francisco

  • contra outros particulares, estabelecendo entre eles verdadeiras relaes jus- fundamentais 90

    90. Essa vinculao contra o Poder Pblico e contra os particulares em regra de- nominada de eficcia vertical e horizontal dos direitos fundamentais. Sobre a referida vinculao, merece destaque o posicionamento de Rui Medeiros e Jorge Miranda: "Por conseguinte, sem prejuzo das especificidades impostas pelo regime de cada direito em concreto, do que se trata no princpio da vinculao dos sujeitos privados aos direitos, liberdades e garantias no tanto da possibilidade de tais direitos produzirem tambm efeitos quanto a terceiros privados (Drittwirkung), ou de possurem tambm (a imagem da denominada teoria da eficcia externa das obrigaes) uma eficdcia externa complementar da sua eficcia interna. Ou seja, o que est em causa na parte final do n. 1 do art. 18." no 6 uma figura em que a relao jusfundamental principal se estabelece, verticalmente entre certo particular e o Estado, a se produzindo os efeitos principais do direito em causa. E em que, lateral ou acidentalmente, se verifica tambm a vinculao de outros partic;lares, que no seriam ab initio destinatrios do direito (dirigido unicamente contra o Estado), embora acabassem adstritos a um dever geral de respeito ou, eventualmente, a certos deveres positivos de cooperao. Muito pelo contrrio, o verdadeiro significado do segmento normativo em an- lise o de afirmar que os sujeitos privados, alm de titulares activos, so (ou podem ser) tambm destinatrios passivos principais de direitos, liberdades egarantias, e que, por isso estabelecem entre si verdadeiras relaes jusfun- damentais, independentemente da configurao destas (relaes horizontais, relaes verticais em que um privado detentor de uma 'posio dominante, relaes triangulares em que o Estado protege a posio de um dos sujeitos privados, relaes poligonais em que se cruzam mltiplas posies de sujeitos

    - - - -

    privados). Esta eficcia dos direitos, liberdades e garantias nas relaes entre sujeitos pri- vados tambm no eauivale necessariamente a eficdcia horizontal. em vista da- queles fenmenos de poder econmico e social, dos quais derivam hoje m e graves ameaas para os direitos em questo. E nem equivale sequer a efic no direito privado ou no mbito das relaes jurdicas privadas, uma vez q sem prejuzo das especificidades que estas suscitam por causa do princpio autonomia privada, a vinculao dos sujeitos privados nas suas relaes r procas no deixa de implicar normas de direito pblico, tal como sucede c muita frequncia em domnios como o ambiente, o urbanismo ou a protec dos consumidores. Afora as vetustas teorias da irrelevncia dos direitos, liberdades e garantias relaes entre privados, assim como as suas herdeiras mais directas que s mitam a defender a exclusiva vinculao do legislador privado aqueles mesm direitos - umas e outras absolutamente inviabilizadas pela norma constitu na1 em anlise -, sofundamentalmente duas as teorias que se digladiam quanto

  • mula que postula a sempre primazia do interesse pblico sobre o par- lar uma simplificao errnea e frequente do problema que existe entre

    esse pblico e os direitos fundamentais." 0 erro consiste justamen- ue os direitos fundamentais so constitutivos tanto para o indivduo

    ra a comunidade. Portanto, so constitudos no apenas em favor do o, porquanto cumprem uma funo social e constituem o fundamen-

    onal da democracia. se conclui que a garantia e o exerccio dos direitos fundamentais cterizados por u m entrecruzamento de interesses pblicos e inte- 'viduais. A tutela da vida, da liberdade e da propriedade no Estado

    tucional uma exigncia legtima tanto do indivduo como da comu- seja, existe no interesse pblico e no interesse privado. Esta con- fundamental importncia para se impedir que a restrio a direito

    ental possa ser realizada com fundamento no interesse pblico. modo, se nos direitos fundamentais esto fundidos interesses p- teresses privados, disso se obtm que to logo uma liberdade cons- seja restringida, tambm afetada a coletividade. To logo algum

    ndamental seja lesionado tambm e sempre ser afetado o interesse . Exemplo marcante o direito de propriedade no caso da desapro- que diante da ponderao de interesses esto em jogo interesses p-

    do como seprocessa em conci-eto a dita vinculao: a 'teoria da eficcia mediata' 'teoria da eficcia imediata'. Para a primeira, os direitos, liberdades e garan- valem nas relaes entre sujeitos privados atravs das normas e dos institu- prprios do direito privado, mormente atravs dos direitos de personalida-

    , da interpretao dos seus preceitos e do preenchimento das clusulas gerais onceitos indeterminados ai presentes (v.g., ordem pblica, bons costumes, -f). Para a segunda, os entes privados, sem necessidade de um instrumento ecfico que proceda sua transformao ou incorporao, abrindo a porta

    to (privado) que rege essas relaes ao influxo dos preceitos constitu- is." Jorge Miranda e Rui Medeiros. Constituio Portuguesa anotada. 2. ed. bra: Coimbra Ed., 2010. t. I, coments. XVIII e XIX, p. 334-335.

    bre as teorias da eficcia mediata e imediata, bem como a influncia dos eitos fundamentais sobre as relaes privadas ver: Claus-Wilhelm Canaris. itosfundamentais e direitos privados, Coimbra: Almedina, 2009. n. 3 e 4,

    r Haberle. La garantia de1 contenido esencial de los derechos Jundamen- adrid: Dykinson, 2003. n. 1, p. 25; Nelson Nery Junior. Pblico vs.

    atureza constitucional dos direitos e garantias fundamentais cit.,

  • blicos de ambos os lados. Os direitos fundamentais so como garantia dada a coletividade, componente de ordem pblica e so ao mesmo tempo para o indivduo proteo de bens jurdicos, na ponderao de interesse^.^^

    5.1 A dimenso constitucional e histrica dos direitos fundamentais: a primazio dos direitos fundamentais sobre o interesse pblico

    Em assim sendo, ao contrrio do que preconiza grande parcela da dou trina administrativista. a condio de existncia e legitimidade do Estado Constitucional passa necessariamente pela submisso do interesse pblico aos direitos f~ndamentais.'~ Tal submisso deve ocorrer, justamente, porque os direitos fundamentais possuem natureza constitucional e no so meros interesses privados, ficando desse modo, vedada toda restrio a eles co justificativa no interesse pblico.

    Em consonncia com o que afirmamos, os direitos fundamentais consti tuem conquista histrica da sociedade oriunda do desenvolvimento do p prio constitucionalismo. Assim, a no observncia dos direitos fundament caracterizaria, verdadeiramente, retrocesso no prprio process