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177 Natália Borges Tosta Figueiredo * A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR FRENTE AO CONTRATO DE CRÉDITO E A NECESSIDADE DE TUTELA ESTATAL THE CONSUMER VULNERABILITY FRONT OF THE CREDIT AGREEMENT AND THE NEED OF PROTECTION STATE LA VULNERABILIDAD DE LOS CONSUMIDORES FRENTE AL CONTRATO DE CRÉDITO Y LA NECESIDAD DE TUTELA ESTATAL Resumo: A concessão de crédito por parte das instituições financeiras tem ocor- rido de forma indiscriminada, o que contribui para um alarmante nú- mero de consumidores que possuem crédito sem nenhuma perspectiva de como usá-lo devidamente ou como quitá-lo posterior- mente. O presente artigo, ao utilizar-se do método dedutivo-bibliográ- fico comparativo, mediante a apreciação dos fatores que norteiam o princípio da vulnerabilidade, análise de casos de superendividamento, legislação alienígena, projetos de lei e, ainda, do diálogo entre obras de grandes autores consumeristas, analisará como a vulnerabilidade do consumidor acaba ocasionando seu superendividamento, bem como de que forma tal fenômeno poderia ser evitado. Busca-se de- monstrar a tutela do Estado frente às relações de consumo, principal- mente no que diz respeito ao crescente superendividamento de consumidores, o que evidencia a necessidade de uma ação conjunta, no que tange ao aprimoramento da legislação e à aplicação de políti- cas públicas que intentem por educar financeiramente o consumidor. Abstract: The granting of credit by financial institutions has occurred in an indis- criminately way causing an alarming number of consumers who have credit with no perspective of how to use it properly and how to pay it, these end up absorbed by the consumer society, sinking in debts and more debts. This study of course conclusion will analyze the reasons * Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Advogada.

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Natália Borges Tosta Figueiredo*

A VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR FRENTE AO CONTRATO DE CRÉDITO E A NECESSIDADE DE TUTELA ESTATAL

THE CONSUMER VULNERABILITY FRONT OF THE CREDIT AGREEMENT AND THE NEED OF PROTECTION STATE

LA VULNERABILIDAD DE LOS CONSUMIDORES FRENTE AL CONTRATO DE CRÉDITO Y LA NECESIDAD DE TUTELA ESTATAL

Resumo:

A concessão de crédito por parte das instituições financeiras tem ocor-

rido de forma indiscriminada, o que contribui para um alarmante nú-

mero de consumidores que possuem crédito sem nenhuma

perspectiva de como usá-lo devidamente ou como quitá-lo posterior-

mente. O presente artigo, ao utilizar-se do método dedutivo-bibliográ-

fico comparativo, mediante a apreciação dos fatores que norteiam o

princípio da vulnerabilidade, análise de casos de superendividamento,

legislação alienígena, projetos de lei e, ainda, do diálogo entre obras

de grandes autores consumeristas, analisará como a vulnerabilidade

do consumidor acaba ocasionando seu superendividamento, bem

como de que forma tal fenômeno poderia ser evitado. Busca-se de-

monstrar a tutela do Estado frente às relações de consumo, principal-

mente no que diz respeito ao crescente superendividamento de

consumidores, o que evidencia a necessidade de uma ação conjunta,

no que tange ao aprimoramento da legislação e à aplicação de políti-

cas públicas que intentem por educar financeiramente o consumidor.

Abstract:

The granting of credit by financial institutions has occurred in an indis-

criminately way causing an alarming number of consumers who have

credit with no perspective of how to use it properly and how to pay it,

these end up absorbed by the consumer society, sinking in debts and

more debts. This study of course conclusion will analyze the reasons

* Pós-graduanda em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP.Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás - UFG. Advogada.

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that generate the phenomenon called over-indebtedness, who it reaches

and how it could be avoided. Current legislation, Bill No. 283/2012,

which aims to inhibit the over-indebtedness through a kind of co-

responsibility by financial institutions as well as the French and

American comparative law will be appreciated. It seeks to demonstrate

the authority of the State toward consumer relations, especially with

regard to the increasing indebtedness of consumers, highlighting the

need for joint action regarding the improvement of the legislation and

the implementation of public policies that educates the consumer

financially.

Resumen:

La concesión de crédito por parte de las instituciones financieras ha

ocurrido de forma indiscriminada, lo que contribuye para un alarmante

número de consumidores que poseen crédito sin ninguna perspectiva

de cómo usarlo debidamente o como quitá-lo posteriormente. El pre-

sente artículo, al utilizarse del método deductivo-bibliográ- quedo com-

parativo, mediante la apreciación de los factores que norteiam el

principio de la vulnerabilidad, análisis de casos de superendivida-

mento, legislación alienígena, proyectos de ley y, aún, del diálogo

entre obras de grandes autores consumeristas, analizará como la vul-

nerabilidad del consumidor acaba ocasionando su superendivida-

mento, así como de que forma él podría ser evitado.

Búsqueda-demostrarse la tutela del Estado frente a las relaciones de

consumo, principalmente en lo que concierne al creciente superendi-

vidamento de consumidores, lo que evidencia la necesidad de una

acción conjunta, en el que tange al aprimoramento de la legislación y

a la aplicación de políticas públicas que intentem por educar financie-

ramente el consumidor.

Palavras-chave:

Crédito fácil, consumidor, superendividamento, proteção estatal.

Keywords:

Easy credit, consumer, overindebtedness, state protection.

Palabras clave:

Crédito fácil, consumidor, superendividamento, protección estatal.

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INTRODUÇÃO

A democratização do crédito remonta aos Estados Unidos,em especial, a concessão de crédito para aquisição de bens dura-douros por meio de um sistema de parcelamento. Essa sistemáticapermitiu que o crédito deixasse de ser visto, àquela época, como si-nônimo de pobreza e passasse a ser encarado como mero meio dese adquirir um produto, o que contribui para o dinamismo e cresci-mento econômico do país. No Brasil, essa chamada democratização teve início a partir de1994, com o advento do Plano Real, que proporcionou a estabilizaçãoeconômica. Durante o novo cenário, as instituições financeiras,que ante-riormente tinham como principal fonte de lucros a própria inflação, foramobrigadas a buscar novos caminhos para gerar dividendos. Assim, ini-ciou-se a concessão de crédito para uma parcela da população que, aprincípio, encontrava-se excluída do sistema formal de crédito. Entre 2005 e 2006, durante o Governo Lula, em decorrênciados estímulos ao crédito popular, cerca de 2,15 milhões de famílias saí-ram da classe de consumo D/E e passaram a integrar a classe C1. Ocrédito trouxe inúmeros fatores positivos para a sociedade como umtodo, pois permitiu que indivíduos passassem a adquirir determinadosbens, que antes seriam considerados inacessíveis, como também con-tribuiu para o fomento da economia com o crescimento do consumo. Entretanto, se esse crédito é concedido de maneira irres-ponsável e quem o detém não o utiliza de maneira racional e equili-brada, ocorre justamente o contrário. O mero endividamento doconsumidor é fator corriqueiro e propulsor da economia. Por outrolado, o consumidor que se endivida, além da sua capacidade de sub-sistência, adentra na seara alarmante do superendividamento. O superendividamento do consumidor, apesar de ser expres-samente tratado no Direito Comparado, ainda não foi regulamentadono Brasil. Trata-se de uma problemática extremamente atual, impulsio-nada pela sociedade de consumo em que se vive. Até o advento daconsolidação do termo e o início de pesquisas acerca de suas causas,essa questão era tratada como descontrole individual; entretanto,

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1BERTONCELLO, Karen Rick Danilevicz; LIMA, Clarissa Costa de. Superendivida-mento Aplicado. Aspectos Doutrinários e Experiência no Poder Judiciário. Rio deJaneiro: GZ Editora, 2010.

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como se depreende do Código de Defesa do Consumidor, o consu-midor é um indivíduo vulnerável, de forma que tal fenômeno necessitade regulamentação por parte do Poder Público. Nesse sentido, diante da imperiosa necessidade de tutelaro consumidor superendividado, o Senado Federal, no ano de 2011,instituiu uma Comissão de Juristas para atualização do Código deDefesa do Consumidor, sendo o superendividamento tratado no Pro-jeto de Lei n. 283/2012, cuja elaboração contou com a participaçãoda ilustre professora e doutrinadora Cláudia Lima Marques. O Projeto, inspirado principalmente no Direto Francês, cria ummodelo próprio de prevenção e tratamento condizente com a realidadebrasileira. Trouxe à baila a importante questão da educação para o con-sumo, os deveres de cooperação por parte das instituições financeiras,como aconselhamentos e esclarecimentos, e, ainda, a possibilidadede uma audiência conciliatória entre devedor e seus credores, quandose tratar daquele consumidor que se encontra superendividado. O objetivo primordial deste trabalho consiste em traçar umpanorama acerca das questões que geram o superendividamento e,consequentemente, examinar quais seriam as melhores formas deprevenção e tratamento. Assim, a presente pesquisa parte das reflexões geraisacerca da vulnerabilidade do consumidor e seu consequente supe-rendividamento, culminando na discussão acerca da maneira emque o Estado deve tutelá-lo, principalmente no que tange à eficáciado Projeto de Lei n. 283/2012.

A SOCIEDADE DE CONSUMO: UMA VISÃO SÓCIO-JURÍDICADO CONSUMIDOR DE CRÉDITO

Breve perfil histórico do crédito

O grande “bum” do crédito ao consumo ocorreu nos Es-tados Unidos, impulsionado pela aquisição de crédito para com-pra e venda a prestações de bens duradouros, por volta do fimdo século XIX e início do século XX2.

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2 SANTO, Liliana Bastos Pereira. Da Concessão de Crédito ao Sobreendividamentodos Consumidores. Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2009.

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O sistema de pagamento em parcelas foi então o pontochave para expansão do crédito no país. Atingiu, inicialmente, aaquisição de artigos domésticos, de natureza industrial, alastrandopara o consumo de artigos culturais, como instrumentos e livros, al-cançando seu auge quando abarcou o pagamento de automóveis3.

No Brasil o crédito começou a dar sinais de sua existên-cia na década de 50, de forma extremamente discreta e inaces-sível, atingindo apenas a venda direta a crédito pelo lojista aoconsumidor, conforme ensina Stumer:

A concessão ao crédito era demorada, trabalhosa e complexa. O can-didato ao crédito preenchia um longo cadastro de informações, entreelas indicando o armazém onde realizava compras, o seu alfaiate e,eventualmente, outras lojas onde comprava a crédito. A loja, por suavez, possuía um quadro de funcionários com a função chamada deinformante que (...) percorriam, diária e pessoalmente os locais indi-cados em busca de informações sobre o crédito da pessoa. O setorde crediário dessas lojas pioneiras possuía cadastro de grande nú-mero de pessoas, o que fazia com que ficassem, no início de cadamanhã, apinhados de informantes de outras lojas em busca de dadose informações dos clientes já por ela cadastrados.4

Só a partir de 1994, com a edição do Plano Real, que ocrédito começou a ter uma relevância fundamental nas relaçõesde consumo, principalmente em razão da estabilidade econômicados preços praticados no mercado.

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, ao rea-lizar o “Estudo sobre Crédito e Superendividamento dos Consu-midores do Brasil”, constatou o seguinte:

Com o Plano Real, em julho de 1994, o novo ambiente de estabiliza-ção de preços trouxe modificações consideráveis para o sistema fi-nanceiro brasileiro, uma vez que, com a estabilização da economia,todas as instituições deixariam de ganhar com a inflação. (...) O cré-dito a pessoas físicas, revelou-se importante suporte para sustenta-ção do nível da atividade econômica, dinamizando a demanda internavia ampliação do consumo das famílias. As linhas de crédito disponí-veis no mercado para aquisição dos bens são abundantes, porém,

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3 SANTO, op. cit., p. 23.4 STUMER, Antonio Bertram. Banco de Dados e Habeas Data no Código do Consumi-dor. São Paulo: RT. Revista de Direito do Consumidor, 1992.

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não necessariamente vantajosas para quem pretende utilizá-las.5

Nota-se que a estabilidade dos preços permitiu que ofoco das instituições financeiras passasse a ser as pessoas físicas,proporcionando a criação de novas formas e maneiras facilitadasde concessão do crédito. Começa, assim, a ocorrer no Brasil achamada “democratização do crédito”.

Quanto à democratização do crédito, Lima e Bertoncelloressaltam o seguinte:

O recurso ao crédito democratizou-se entre os consumidores comrenda familiar de até 10 salários mínimos, os quais representam 77%da população brasileira e responsáveis por 71% do consumo no país.O recurso ao crédito também popularizou-se entre mais de cinco mi-lhões do total de 19 milhões de aposentados e pensionistas do Re-gime Geral da Previdência Social desde 2003, quando foi aprovado oempréstimo consignado com desconto em folha.6

Como se vê, há dois pontos que devem ser enaltecidosnos dizeres das doutrinadoras. O primeiro é quanto ao público-alvodas instituições financeiras, o qual passou a ser famílias de baixarenda que se utilizam do crédito para consumir bens antes inaces-síveis, como eletrodomésticos, carros, celulares, dentre outros.Quanto ao segundo ponto, trata-se do crédito que alcança os apo-sentados e pensionistas, advento da aprovação da Lei n. 10.820,de 17 de dezembro de 2003, que autoriza o pagamento de em-préstimo por meio de desconto da prestação mensal em salário.

Nessa seara, em recente Nota Técnica expedida peloDepartamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeco-nômicos, constatou-se que, em dezembro de 2013 comparado ajaneiro de 2008, a aquisição de crédito por pessoa física por meiode cartão de crédito total elevou 149,9%; o crédito consignadototal, 129,8%; e o crédito pessoal não consignado vinculado àrenegociação de dívidas, 81,9%7.

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5 IDEC. Estudo sobre o Crédito e Superendividamento dos Consumidores dos Paísesdo Mercosul. Superendividamento no Brasil. São Paulo, dez. 2008. p. 8.6 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 25.7 DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos. A evoluçãodo crédito na economia brasileira 2008-2013. Nº 135. São Paulo. 2014. Disponível em:<http://www.dieese.org.br/notatecnica/2014/notaTec135Credito.pdf>. Acesso em: 11 jun.14.

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Conforme restará demonstrada, a concessão de créditotraduz-se essencial para manutenção e crescimento da econo-mia de um país; entretanto, a forma como isso vem sendo tratadono Brasil, desacompanhado da preocupação com a educaçãopara o consumo, tende a gerar, em um futuro não muito distante,a falência do próprio sistema, pois milhares são os consumidoresque se encontram hoje em situação de plena insolvência.

Crédito e a situação de endividamento e superendividamento

O crédito consiste na transferência temporária de valoresmonetários mediante uma determinada remuneração. Desempe-nha duas funções fundamentais: estimular o consumo e fomentara produção8, como elemento essencial para o bom funciona-mento de uma sociedade capitalista, de forma que contribui parao seu crescimento e estabilidade, o que faz com que a economiagire e alcance novos patamares.

Quando se trata do endividamento em razão do créditocontraído, este não pode ser analisado de forma isolada; deve-se entender as razões do endividamento e se a contração da dí-vida, por exemplo, será utilizada para financiar a educação do filhoou em investimento na expansão de uma empresa; ainda há quese aferir se, simplesmente, será utilizado para adquirir produtossupérfluos de forma irracional9.

Destarte, caso o consumidor faça uso do crédito, deforma racional, estará contribuindo para o crescimento da eco-nomia. Nos casos citados, o investimento da educação gera umindivíduo com formação, apto para ser uma mão de obra qualifi-cada para a sociedade; no segundo exemplo, a expansão deuma empresa gera um ciclo positivo de criação de novos empre-gos e aquisição de novos produtos.

Entretanto, caso o consumidor se comporte como o terceiroexemplo relatado, de forma imprudente e irracional, adquirindo bens

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8 Enciclopédia do Consumo. Disponível em: <http://enciclopediadoconsumo.wordpress.com/credito/>. Acesso em: 15 jun. 2014. 9 BUTELLI, Pedro; PORTO, Antônio José Maristrello. O endividamento das famílias bra-sileiras pode ter um lado positivo? Disponível em: <http://www.editorajc.com.br/2014/01/endividamento-familias-brasileiras-lado-positivo/>. Acesso em: 13 jun. 2014.

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desnecessários e sem capacidade para arcar com os custos, entra-se na seara preocupante do superendividamento, em que o rendi-mento familiar não consegue suportar o cumprimento doscompromissos financeiros assumidos10.

A esse respeito, o doutrinador Schmidt Neto11 ainda pon-tua que o superendividamento refere-se ao devedor que está im-possibilitado de saldar suas dívidas, de forma contínua ouestrutural, ou seja, a mera insolvência temporária não é o bas-tante para caracterizar esse fenômeno.

Nesse mesmo diapasão, Lima e Bertoncello prescrevemo seguinte acerca do endividamento:

No plano jurídico, o endividamento é constituído pelo conjunto do pas-sivo, ou seja, o saldo devedor de uma família com origem apenas emuma dívida ou mais de uma dívida simultaneamente, denominando-se, neste último caso, de multiendividamento. O endividamento não éum problema em si mesmo, quando ocorre num ambiente favorávelde crescimento econômico, queda de juros, e, sobretudo se não atingircamadas sociais com rendimentos próximos do limiar da pobreza.12

Vale destacar o significado da palavra crédito, o qualpossui origem do latim credere, que significa ter confiança. Naspalavras de Lima e Bertoncello13,

o crédito é caracterizado pela decorrência de um prazo entre a pres-tação do credor e aquela do devedor, o que somente se traduz pos-sível em razão do credor acreditar que o devedor cumprirá suaobrigação nos prazos convencionados.

Assim, tem-se que o contrato de crédito tem o objetivo de sercumprido, de forma que o fornecedor deve avaliar a capacidade desolvência do consumidor, a fim de que a confiança seja preservada.

Entretanto, a realidade no Brasil é bem diferente. A con-cessão de crédito irresponsável é a predominância no mercadode consumo brasileiro, em que os fornecedores de crédito se

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10 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 27.11 SCHMIDT NETO, Andre Perin. Superendividamento do Consumidor: conceito, pres-supostos e classificação. Revista do Consumidor, São Paulo, 2009.12 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 26-27.13 Ibidem, p. 21.

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aproveitam da vulnerabilidade do consumidor, para impor condi-ções onerosas e/ou desproporcionais à sua realidade.

DIREITOS BÁSICOS DO CONSUMIDOR DE CRÉDITO

O consumidor, como será visto adiante, é o agente vulne-rável da relação de consumo. Assim, visando protegê-lo, o Códigode Defesa do Consumidor estabeleceu em seu artigo 6º alguns direi-tos básicos do consumidor. Note-se que se trata do reconhecimentodos direitos subjetivos do consumidor e a consolidação de deverese obrigações aos fornecedores14.

No presente estudo, tratar-se-á da tutela específica doconsumidor de crédito, principalmente no que tange ao direito àinformação, à proteção contra a publicidade enganosa e abusiva,à proteção contra práticas e cláusulas abusivas, ao equilíbriocontratual e à manutenção do contrato.

Quanto ao direito à informação, o fornecedor deve infor-mar de maneira clara ao consumidor as condições e os riscos donegócio contratado. Sobre a relevância desse dever, CláudiaLima Marques preceitua o seguinte:

Em resumo, hoje o contrato é informação, daí a importância de suainterpretação sempre a favor do contratante mais fraco e das expec-tativas legítimas nele criadas por aquele tipo de contrato. Neste mo-mento, o elaborador do contrato e aquele que o utiliza no mercadode consumo, o fornecedor, devem ter em conta o seu próprio deverde informar, que inclui o dever de redação clara e com destaque,além do dever de considerar a condição leiga do outro, evitando du-biedades na redação contratual.15

Como se vê, a celebração do contrato de crédito deve seracompanhada de plena transparência durante seu nascimento,desenvolvimento e adimplemento, principalmente seu nasci-mento, a fim de evitar que publicidades abusivas ou enganosascontaminem o negócio jurídico.

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14 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dosTribunais, 2012.15 MARQUES, Claudia Lima. Direitos do Consumidor Endividado. São Paulo: Revistados Tribunais, 2006. p. 229.

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A publicidade enganosa está prevista no artigo 37, § 1º,do Código de Defesa do Consumidor16 e consiste, substancial-mente, na informação ou comunicação que possa induzir o con-sumidor a erro. Trata-se de ação ou omissão que possamconfundir o consumidor quanto à natureza, aspectos e atributosde produtos ou serviços. Pode e deve o consumidor exigir inde-nização ou o cumprimento correto da obrigação.

Por outro lado, a publicidade abusiva, prevista no artigo37, § 2º, do CDC17, é um pouco mais abrangente. Trata-se daofensa a um direito difuso, ou seja, atinge toda a comunidade. Se-gundo Miragem18, o caráter abusivo pode ser percebido sob doisângulos: o primeiro trata-se da ofensa à norma propriamente dita,por exemplo, a publicidade que incite à discriminação, vedada peloartigo 3º, IV, e 5º, caput, da Constituição Federal e, o segundo,trata-se da violação da boa-fé ou dos bons costumes, ou seja, vio-lação de valores sociais, aproveitando-se da vulnerabilidade doconsumidor. Tais ofensas geram o direito à tutela coletiva, semprejuízo da tutela individual por danos eventualmente sofridos.

No diapasão da tutela contra o abuso do fornecedor, umdos mais importantes direitos elencados consiste na proteçãocontra práticas e cláusulas abusivas. Essas estão exemplificadasno artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor e consistem,basicamente, em cláusulas que coloquem o consumidor em po-sição de desvantagem no negócio jurídico.

Assim, as cláusulas abusivas são consideradas nulas depleno direito, nos termos do artigo 51 do Código de Defesa do Con-sumidor. Todavia, essas só têm o condão de invalidar o contratocomo um todo quando, mesmo que sanadas, ainda provoquem pre-juízo excessivo a qualquer uma das partes. Do contrário, haverá

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16 Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publici-tário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capazde induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quan-tidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.17 Art. 37 (...) § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer na-tureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da defi-ciência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou queseja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa àsua saúde ou segurança.18 MIRAGEM, op. cit., p. 222.

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apenas uma redução no negócio jurídico, a fim de amenizar asdiferenças antes existentes entre as partes.

Esse direito está intrinsecamente relacionado ao direitoao equilíbrio contratual, que consiste, justamente, em garantirque o fornecedor não obtenha vantagens em face do consumi-dor, de modo que ambos contratem em equilíbrio de interesses.

Com o objetivo de garantir esse equilíbrio, não só no mo-mento da celebração do contrato, mas também durante e até oseu fim, é que se tem o direito à manutenção do contrato, o qualpermite a modificação das cláusulas desproporcionais ou a revisãoem razão de fatos supervenientes que tornem as cláusulas con-tratuais excessivamente onerosas.

A necessidade desses institutos protetivos é notório nos cha-mados “contratos de adesão”. Marques19 os conceitua como sendo

aqueles cujas cláusulas são preestabelecidas unilateralmente peloparceiro contratual economicamente mais forte (fornecedor), ne va-

rietur, isto é, sem que o outro parceiro (consumidor) possa discutir oumodificar substancialmente o conteúdo do contrato escrito.

O fornecedor é quem estabelece todas as cláusulas e asimpõe ao consumidor, o qual, caso queira realmente adquirir de-terminado bem ou serviço, não tem outra opção, senão aderir aoque está estabelecido. Assim, as chances de um contrato de ade-são conter cláusulas abusivas são expressivas, como é o casodos contratos de crédito de empréstimo bancário, cartão de cré-dito, leasing, dentre outros.

Abaixo, um julgado do Superior Tribunal de Justiça, oqual demonstra o entendimento pacífico do Tribunal, no sentidode que o contrato, para concessão de cartão de crédito, queprevê juros abusivos, deverá ser modificado:

AGRAVO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO DO CON-SUMIDOR. REVISÃO DE JUROS CONTRATUAIS. ALEGAÇÃO DEAFRONTA AO ART. 5º, INC. II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.SÚMULAS N. 282, 356 E 636 DESTE SUPREMO TRIBUNAL. RE-CURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO.Relatório 1. Agravo nos

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19 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo re-gime das relações contratuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 71-72.

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autos principais contra decisão que inadmitiu recurso extraordináriointerposto com base no art. 102, inc. III, alínea a, da Constituição daRepública.O recurso extraordinário foi interposto contra o seguinte jul-gado dos Juizados Especiais do Goiás:“RECURSO CÍVEL. REVISIO-NAL DE JUROS. JUROS CONTRATUAIS. ONEROSIDADEEXCESSIVA. NORMA DE ORDEM PÚBLICA. ENCARGOS MORA-TÓRIOS. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. 1. O princípio pacta suntservanda é de relativa validade nos contratos de adesão, cujas cláu-sulas são pré-estabelecidas unilateralmente pela instituição financeira,guardando evidente desigualdade entre os contratantes. O CDC énorma de ordem pública, que autoriza a revisão contratual e a de-claração de nulidade das cláusulas contratuais abusivas, o quepode ser feito até mesmo de ofício pelo juiz. Assim, ainda que nãoexistindo para as instituições financeiras a restrição constante da Leide Usura (Súmula 596 do STF), pode o juiz, por força do artigo 51,do CDC, reconhecer a nulidade na pactuação da taxa de juros,mormente por ter o legislador lhe entregue, na hipótese vertente, otrabalho de determinar o sentido e o alcance da norma específica. Écerto, pelos princípios que norteiam o CDC, não se admite a one-rosidade excessiva de uma das partes e o enriquecimento ilícitoda outra. A razoabilidade da taxação de juros é medida que seimpõe frente aos princípios da boa-fé e equilíbrio das relaçõescontratuais. 2. Verificado o abuso na taxa de juros cobrada noscontratos de cartão de crédito,impõe-se a sua alteração, de-vendo ser aplicada a taxa média de mercado, divulgada peloBanco Central, nas operações de crédito pessoal, vigente à épocado efetivo pagamento, desde que comprovadamente inferior à pac-tuada. 3. Também é impraticável a capitalização mensal de jurosquando o contrato não se enquadra nas exceções previstas em lei,admitindo-se apenas a capitalização anual. 4. Recurso conhecido eimprovido, para manter intacta a sentença vergastada”. (...) 8. Peloexposto, nego seguimento ao agravo (art. 544, § 4º, inc. II, alínea a,do Código de Processo Civil, com as alterações da Lei n.12.322/2010, e art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tri-bunal Federal).Publique-se.Brasília, 22 de maio de 2011.MinistraCÁRMEN LÚCIA Relatora(STF - ARE: 641445 GO, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Jul-gamento: 22/05/2011, Data de Publicação: DJe-100 DIVULG26/05/2011 PUBLIC 27/05/2011)

A proteção dos direitos, aqui tratados, é norteada pelosprincípios aplicados ao consumidor, principalmente no que tangeà boa-fé objetiva e à vulnerabilidade do consumidor, os quaisserão tratados, a seguir, juntamente com alguns deveres ineren-tes ao fornecedor de crédito.

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A vulnerabilidade do consumidor de crédito e a boa fé-objetiva

A formação do contrato de crédito e o princípio da vulnerabilidade

A formação do contrato ocorre mediante dois principaiselementos: o primeiro refere-se à chamada proposta ou oferta, aqual contém todos os elementos constantes do objeto a ser con-tratado e é o instrumento utilizado por uma das partes para ma-nifestar sua intenção de contratar, sendo de caráter vinculante;a segunda consiste na aceitação, em que a parte destinatária daproposta manifesta, tácita ou expressamente, seu desejo emcontratar, assentindo com os termos propostos.

Logo, a presença desses dois elementos faz com quesurja o vínculo jurídico entre as partes e, consequentemente, odever de honrar o que foi pactuado20.

A teoria clássica contratual estabelece uma divisão entre oDireito Público e o Privado. Assim, a manifestação de vontade doaceitante caracteriza sua liberdade individual, só podendo ser limitadaperante uma norma de ordem pública21.

Entretanto, tal divisão é afastada quando se trata do con-trato sob o ponto de vista consumerista. O Código de Defesa doConsumidor estabelece uma nova sistemática, colocando delado o individualismo acentuado e atentando para a função socialdos contratos de consumo22.

O professor Diógenes Faria de Carvalho ao mencionara doutrinadora Cláudia Lima Marques, diz o seguinte:

A nova concepção de contrato é uma concepção social deste instru-mento jurídico, isto é, o direito deixa o ideal positivista da ciência e re-conhece a influência do social, passando a assumir preposiçõesideológicas, ao concentrar seus esforços na solução de problemas. 23

Infere-se, desse modo, que o Código de Defesa do Consumidor

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20 MIRAGEM, op. cit., p. 201.21 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dosContratos.11. ed. São Paulo: Atlas. 2011. p. 382-383.22 CARVALHO, Diógenes Faria de. Do Princípio da Boa-fé Objetiva nos Contratos deConsumo. Goiânia: PUC Goiás, 2011.23 Ibidem, p. 111.

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traz uma coletânea de normas de ordem social, nem pública,nem privada, quebrando os paradigmas preceituados pela teoriaclássica24.

Essa ordem social é caracterizada pela proteção especialque o Código dá ao consumidor, quando esse contrai uma obriga-ção contratual. Isso porque o inciso II do artigo 4º do Código de De-fesa do Consumidor25 reconhece a vulnerabilidade do consumidor.

O princípio da vulnerabilidade do consumidor é condiçãode interioridade, ou seja, é o que legitima e justifica a aplicação doCódigo de Defesa do Consumidor. Sua origem está presente noPrincípio da Igualdade em que, ao satisfazer o dogma da isonomiaconstitucional, trata os desiguais de forma desigual na medida desuas desigualdades26.

Nesse mesmo sentido, Barbosa preceitua:

O supramencionado diploma (CDC) legal buscou tratar desigualmentepessoas desiguais, levando em conta que o consumidor está em si-tuação de manifesta inferioridade frente ao fornecedor de produtos eserviços. O inciso I do artigo 4º do supramencionado diploma legal éclaro ao dispor que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumi-dor no mercado de consumo possui status de princípio, com o objetivoprecípuo do atendimento das necessidades dos consumidores, o res-peito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus inte-resses econômicos e, por fim a melhoria de qualidade de vida.27

Como se vê, o princípio da vulnerabilidade é, em suma, obasilar e a razão da elaboração do Código de Defesa do Consumi-dor. A aplicação desse princípio é essencial para o reconhecimentode que o consumidor é a parte mais fraca da relação de consumo

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24 VENOSA, op. cit., p. 382. 25 Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimentodas necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, aproteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem comoa transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:(...)II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:26 NERY JUNIOR, Nelson. Os princípios gerais do código brasileiro do consumidor.Revista de Direito do Consumidor Relatório-Geral. Comissão de Juristas de Atualização do Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Senado Federal, 2012. p. 133.27 BARBOSA, Hugo Leonardo Penna. Princípio da Vulnerabilidade do Consumidor. Dis-ponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/24263-24265-1-PB.pdf>Acesso em: 6 jul. 2014.

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e que o Estado deve intervir a fim de evitar que este seja ludi-briado pelas inúmeras propostas que se encontram presentes nomercado, conforme expressamente previsto no artigo 4º, incisoI, do Código Defesa do Consumidor28.

Nota-se que se trata de um princípio absoluto, abran-gendo qualquer consumidor, seja ele rico ou pobre, analfabetoou pós-graduado. Contudo, há certos grupos de consumidoresos quais a legislação decidiu conferir proteção especial: são elesos portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adoles-centes29, ou seja, aqueles que se encontram em situação de vul-nerabilidade potencializada, sendo então chamados deconsumidores hipervulneráveis30.

Nessa linha, Marques e Miragem, conceituam hipervul-nerabilidade da seguinte forma:

A hipervulnerabilidade seria a situação social fática e objetiva de agrava-mento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, por circunstânciaspessoais aparentes ou conhecidas do fornecedor, como sua idade reduzida(assim, o caso da comida para bebês ou da publicidade para crianças) ouidade alentada (assim, os cuidados especiais com os idosos, tanto no Có-digo em diálogo com o Estatuto do Idoso e da publicidade de crédito paraidosos) ou sua situação de doente (assim caso do Glúten e sobre infor-mações na bula de remédios).31

Por outro lado, os mesmos autores pontuam acerca daabrangência desse conceito, salientando que não deve se limitarapenas aos consumidores mencionados na Constituição, mas,sim, a todos aqueles que se encontrem em estado de inferiori-dade acentuada, de forma passageira ou permanente, por se tra-tar de uma hipervulnerabilidade social e econômica.

Ao partir desse pressuposto, pode-se encaixar o consu-midor de crédito na tendência de qualificação da vulnerabilidade

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28 Art. 4º (...)I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;29 Portadores de deficiência (CF, artigo 227, parágrafo 1º, inciso II, e parágrafo 2º; artigo244), os idosos (CF, artigo 230, e Lei n. 10.741/2003 – “Estatuto do Idoso”), as criançase os adolescentes (CF, artigo 227, caput e Lei n. 8.069/1990 – o “Estatuto da Criançae do Adolescente”).30 MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O Novo Direito Privado e a Proteçãodos Vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.31 Ibidem, p. 188.

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em hipervulnerabilidade, por se tratar de um indivíduo vítima dosistema de consumo. Principalmente aqueles considerados anal-fabetos, ou que não possuem qualquer tipo de educação finan-ceira ou, ainda, que se encontrem desempregados ou que já seencontrem superendividados.

Assim, pode-se concluir que quanto mais vulnerável o con-sumidor, maior deve ser a tutela despendida por parte do Estado.

Como será analisado mais adiante, o princípio da vulnera-bilidade é o ponto chave para se compreender as razões que podemgerar o superendividamento do consumidor, bem como o porquê danecessidade de novos institutos para aperfeiçoar essa proteção.

A boa-fé objetiva e a avaliação de solvência do consumidor e asua capacidade de solvabilidade.

O princípio da boa-fé está expressamente previsto no ar-tigo 4º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor e traduz-se, basicamente, no dever de lealdade, honestidade eintegridade de um indivíduo perante terceiro, seja ele quem for.

De acordo com Carvalho32,

agir de boa-fé significa comportar-se como homem correto na exe-cução da obrigação, quer dizer, cumprir, observar um comportamentodecente que corresponda à expectativa do outro contratante.

Como se vê, a boa-fé objetiva incide sobre as relaçõesobrigacionais, impondo que os indivíduos atuem de forma probae honesta, colocando de lado seus interesses exclusivamente pes-soais e ponderando os interesses alheios. Dessa forma, busca-seevitar eventual desrespeito e celebrar, com êxito, o negócio jurídicode forma a beneficiar ambas as partes33.

Ademais, os contratos de crédito não podem ser realizadoscom qualquer indivíduo, deve-se avaliar a capacidade de solvência epagamento do consumidor. O crédito deve ser concedido de forma pru-dente, pois, do contrário, pode acarretar a insolvência do consumidorque não consegue arcar com as obrigações contraídas. Em suma,

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32 CARVALHO, op. cit., p. 23.33 MIRAGEM, op. cit., p. 110.

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não pode comprometer de forma substancial a renda do consumidor. Acerca da importância da boa-fé nos contratos de crédito,

mormente no que tange ao dever de se avaliar a solvência do con-sumidor de crédito, pode-se citar o julgado do Tribunal de Justiçado Rio de Janeiro, que condenou, em danos morais, instituição fi-nanceira que concedeu elevado crédito a consumidor desempre-gado, de baixa classe social e reduzido poder aquisitivo:

RESPONSABILIDADE CIVIL DE BANCO - ABERTURA DE CREDITO -MA-FÉ - ART. 170 - CONSTITUICAO FEDERAL DE 1988 - DANOMORAL. Apelação cível. Direito civil e do consumidor. Responsabilidadecivil. Danos morais. Cliente de banco que, movido por inexperiência,desempregado, de baixa classe social e reduzido poder aquisitivo,faz uso de elevado credito, inexplicavelmente disponibilizado porbanco, em flagrante lesão. Obrigações contraídas se evidenciam des-proporcionais ao seu próprio proveito, passando os anos seguintes a ce-lebrar novações e dilapidando o patrimônio da família para fazer frente àobrigação assumida, que alcança três vezes o valor original, em lucroexorbitante para o credor (art.157 do CC). Débitos que eram sempreapresentados de modo a não poderem ser quitados. Negativação donome do autor no SPC, depois que, contraindo dividas com outras finan-ceiras para saldar a prestação com o réu, este, debitando os encargoscontratuais, faz com que o valor restante se torne insuficiente para o pa-gamento, quando já havia pago o dobro do montante creditório originaria-mente contraído. Violação, pelo banco, dos princípios da justiça social(art. 170 da CF), da solidariedade social e da boa-fé, que informam oordenamento jurídico civil brasileiro. Contrato celebrado com indis-cutível lesão ao autor, que, alem de inexperiente, não foi informadodas condições do credito. Violação a seus direitos básicos, enquantoconsumidor, à informação adequada e clara sobre os diferentes pro-dutos e serviços e à educação e divulgação sobre o consumo ade-quado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolhae a igualdade nas contratações (art.6. do CDC). Abuso de direito da ne-gativação do nome do autor. Sentença condenatoria em danos morais,no valor de 50 salários mínimos, equivalente a R$ 12.000,00, nesta data,que se confirma. Recurso improvido. (TJRJ, AC 2003.001.02181/03, 15ªC., Des. José Pimentel Marques, J. 25.03.2003).

Nota-se nesse julgado que o crédito é concedido de formaextremamente irresponsável. Deixar de avaliar a capacidade doconsumidor em arcar com o crédito contraído é como desejarque o consumidor entre em ciclo de endividamento. É a institui-ção que age de má-fé e que lesa seus clientes.

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Vale ressaltar que, quanto mais vulnerável o consumidor,mais ele deve ser assistido pelo fornecedor de crédito. Ao certi-ficar-se da incapacidade de solvência do consumidor, o fornece-dor deve aconselhá-lo a não contrair determinada operação,indicando os reais riscos de um provável endividamento. Trata-se do dever de aconselhamento que será tratado a seguir.

A boa-fé objetiva e os deveres de aconselhamento no contratode crédito

Do princípio da boa-fé objetiva e do dever de avaliar acapacidade de solvência do consumidor, desdobra-se um deverelementar do fornecedor de crédito, qual seja, o aconselhamentodo consumidor quando da celebração do contrato de crédito.

Esse dever teve sua primeira aparição relevante em umadecisão da 1ª Câmara da Corte de Cassação da França, em 27 dejunho de 1995, a qual determinou pela responsabilidade civil de umainstituição financeira, por esta não ter aconselhado, devidamente,seus clientes, acerca das consequências do endividamento34.

Entretanto, tal entendimento não se consolidou. Até2005, a 1ª Câmara da Corte de Cassação da França variou entreresponsabilizar ou não as instituições financeiras pelo endivida-mento do consumidor, partindo do caso concreto e das condiçõesda contratação para decidir se o dever de informação consistiaem elemento essencial ou não35.

Em 12 de julho de 2005, visando obter um consenso, a 1ªCâmara da Corte de Cassação da França reuniu-se em sessão ple-nária e analisou quatro casos diferentes relativos à concessão de cré-dito. Porém, não se obteve uma conformidade de julgados, de formaque a Corte continua a apreciar os casos de forma específica36.

Nesse mesmo sentido, a doutrina não é pacífica peranteo dever de aconselhamento, ou seja, se este deveria ser no sentidode o fornecedor aconselhar e, posteriormente, impedir a conces-são do crédito, ou se bastaria a informação, a fim de que o con-sumidor agisse de forma autônoma, mas racional.

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34 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 74.35 Ibidem.36 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 76 - 77.

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Quanto a esse debate, Bertoncello e Lima37 posicionam-seno sentido de que

o conselho dado ao consumidor não pode ter o condão de substituí-lo da decisão de contratar, já que a própria natureza do dever de con-selho pressupõe que o destinatário tenha uma decisão a tomar.

Assim, o dever de aconselhamento consiste em demons-trar ao consumidor as condições do que será contratado e comoisso poderia afetar a sua vida, cabendo, exclusivamente, ao con-sumidor a escolha de assumir ou não o risco, mas sabendo exa-tamente quais seriam esses riscos.

Em razão disso, o princípio da boa-fé é essencial. O for-necedor deve agir com honestidade e lealdade, pensando nãosó nas vantagens que pode obter com o negócio contratado,mas, principalmente, no interesse do consumidor.

O fornecedor de crédito deve ter em mente que a relaçãocontratual deve ser benéfica para ambas as partes e de que ele,fornecedor, é a parte mais forte da relação contratual, sendo im-prescindível que demonstre e explicite ao consumidor todas ascondições do que será contratado.

Assim, o consumidor pode decidir-se, de modo livre e res-ponsável, acerca da decisão de contrair ou não determinada opera-ção de crédito, fazendo-o de forma consciente e, consequentemente,minimizando os riscos de inadimplência.

A multifuncionalidade da boa-fé objetiva e os deveres acessórios

Como visto, a boa-fé objetiva deve estar presente emtodos os momentos do contrato, sendo crucial para sua fiel e justaexecução. Por isso, fala-se em multifuncionalidade da boa-féobjetiva, pois, ao desempenhar diversas funções, confere umasérie de deveres à realidade contratual38.

A esse respeito, Carvalho preceitua o seguinte:

A cláusula geral de boa-fé acolhida pelo Código de Defesa do Consumidor

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37 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 79.38 CARVALHO, op. cit., p. 150.

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atua como critério definidor da abusividade do direito, flexibilizando o sis-tema consumerista e positivando em todo seu conteúdo normas a exis-tência de uma série de deveres anexos às relações contratuais.39

É nesse sentido, que a doutrina trata dos chamados “de-veres acessórios” ou “deveres laterais”, que consistem em deve-res do consumidor e fornecedor, que não estão expressos emlei, mas que são essenciais para a relação de consumo.

É o caso dos deveres de lealdade e cooperação, apesarde não terem sido, expressamente, tratados pelo atual Códigode Defesa do Consumidor, como é o caso do dever de informare o dever de probidade na publicidade40. Trata-se de deveres deconduta que devem ser observados tanto pelo consumidor,quanto pelo fornecedor, quando da celebração de um contrato.

O dever de lealdade advém da boa-fé objetiva, posto quese trata de uma conduta a ser adotada entre os contratantes;estes devem se comportar de modo verídico, sem falsear situaçõesou tentar desequilibrar a relação pactuada. Hoje pode-se concluirque o dever de lealdade abrange também deveres positivoscomo “o sigilo, a vedação da concorrência e dever de clareza”41.

Quanto ao dever de cooperação, este pressupõe quefornecedor e consumidor devam cooperar, mutuamente, na me-dida do possível, para atingir a finalidade contratual pactuada.

Carvalho42 ainda acrescenta que “cooperar significa,também, a manutenção do vínculo contratual, para que haja amanutenção do equilíbrio contratual”.

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39 CARVALHO, op. cit., p. 147.40 A cláusula geral de boa-fé para controle da abusividade contratual no sistema de defesado consumidor já tipificou várias hipóteses legais de deveres de condutas, como tambémos enunciados sobre a oferta, no Art. 30, sobre o dever de informar, nos Arts. 9, 12, 14, 31e 52, sobre os deveres de lealdade e probidade na publicidade, nos Artigos 36 e 37. Ve-rificamos que no Código de Defesa do Consumidor existem várias situações pré-contra-tuais, que já estão reguladas, e os deveres são impostos pela própria norma. Na mesmaesteira estão as disposições sobre as práticas abusvias (Art. 39), referentes à desconsi-deração da pessoa jurídica (Art. 28), sobre o comportamento do credor na cobrança dedívidas (Art. 42), sobre o armazenamento e utilização de dados de consumidores (Art.43), sobre celebração e o conteúdo dos contratos, no tocante ao direito de prévio conhe-cimento do seu conteúdo (Art. 46), com o direito de arrependimento (Art. 49) e as demaiscláusulas abusivas elencadas nos Arts. 51, 52 e 53 (CARVALHO, op. cit., p. 152)41 Ibidem, p. 154.42 CARVALHO, op. cit., p. 147.

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Pode-se aduzir que o dever de cooperação invoca o di-reito que o consumidor possui de repactuação das cláusulas con-tratuais, quando estas são estabelecidas de forma abusiva ousem a devida transparência. É o caso do contrato de crédito con-cedido por instituição financeira a determinado consumidor quenão possuía nenhuma capacidade para solver o débito. A insti-tuição financeira age de forma irresponsável, não cooperandopara a finalidade do contrato, que é quitar o débito, e contribuirpara o possível superendividamento do consumidor.

A respeito do consumidor superendividado, frente aodever de cooperação, Martinez preceitua o seguinte:

Os deveres de cooperação e renegociação pressupõem que, paraque se possa alcançar a reestruturação financeira do superendivi-dado, faz-se imprescindível a cooperação e compreensão do outroparceiro obrigacional envolvido no negócio, ou seja, o fornecedor docrédito. Diante da situação do consumidor superendividado, deveráo fornecedor do crédito atuar no sentido de cooperar possibilitando arenegociação do débito tendo em vista o restabelecimento financeirodo consumidor e equilíbrio contratual.43

Logo, a finalidade do contrato só poderá ser atingida seo fornecedor atuar, positivamente, no sentido de repactuar ascláusulas contratuais, tornando-as menos onerosas ao consumi-dor, a fim de que possa cumprir, de forma justa, com a sua partedo contrato.

Como se vê, os deveres acessórios da lealdade e coo-peração têm por escopo proteger ainda mais o consumidor, deforma a tentar equilibrar as relações de consumo, reconhecendo,novamente, a evidente vulnerabilidade do consumidor frente aofornecedor.

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43 MARTINEZ, Carolina Curi Fernandes. A tutela do consumidor superendividado e o prin-cípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set.2010. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/17312>. Acesso em: 6 jul. 2014.

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A NECESSIDADE DA TUTELA ESTATAL NA PROTEÇÃO DOCONSUMIDOR DE CRÉDITO

A responsabilidade estatal

O Estado deve criar medidas preventivas ao endivida-mento excessivo, por meio de investimentos na educação sobreo consumo adequado de produtos, serviços e aquisição de cré-dito, de modo a educar financeiramente a população.

Combinado a isso, deve fiscalizar os fornecedores, paraque informem, de forma correta e transparente, aos consumido-res, em respeito ao previsto no art.6º, II e III44, do Código de De-fesa do Consumidor. Tais questões estão sendo discutidas noSenado Federal, por meio do Projeto de Lei n. 283/2012.

O atual Código de Defesa do Consumidor tratou deforma muito tímida os contratos de crédito, de modo que apenaso artigo 52 é específico a essa matéria.

Nota-se que a atual legislação, diferentemente de paísesestrangeiros, como a Dinamarca, França, Estados Unidos, Ale-manha, Bélgica, Suécia, Holanda e Canadá, sequer tratou dapossibilidade do superendividamento do consumidor, sendo ne-cessário “estabelecer um pacto mínimo de boas práticas que fa-voreçam a transparência, a informação, a boa-fé, assegurandoa ampliação do crédito responsável”45.

A esse respeito, Carpena46 ressalta que, por mais que no Brasilos operadores do Direito, graças à sua criatividade, já tenham conseguidobons resultados no combate ao superendividamento, é essencial quehaja uma norma específica disciplinando-o, sob pena de conduzir a te-mática a uma análise pontual, afastando-a da questão social.

Nesse sentido, foi elaborado o Projeto de Lei n. 283/2012,

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44 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) II - a educação e divulgação sobre o con-sumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igual-dade nas contratações; III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtose serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, quali-dade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (...) (CDC)45 LIMA, Clarissa Costa. O Tratamendo doSuperendividamento e o Direito de Recomeçardos Consumidores. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2014. p.132.46 CARPENA, Heloísa. Uma lei para os consumidores superendividados. São Paulo: Re-vista de Direito do Consumidor, n.61, jan./mar. 2007. p. 85.

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que objetiva atualizar o Código de Defesa do Consumidor, com opropósito de estabelecer medidas protetivas, para coibir o supe-rendividamento, o qual será analisado a seguir.

Projeto de Lei n. 283/2012

Até o ano de 2006 não havia qualquer previsão, na ju-risprudência, do termo superendividamento, e o devedor, cominúmeras dívidas, tinha que tentar saná-las de maneira isolada47.

Os estudos acerca desse fenômeno iniciaram-se em2004, no Centro Interdisciplinar sobre Direito, Cidadania e Edu-cação do Consumidor (CIDECON-UFRG), coordenado pela pro-fessora Cláudia Lima Marques, e que culminaram naconsolidação do termo “superendividamento”48.

Inspirado no CEIDECON, foi elaborado um projeto pilotorealizado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pelas ma-gistradas Karén Bartoncello e Clarissa Costa de Lima, denomi-nado “Tratamento das situações de superendividamento doconsumidor”, cujo foco consiste na reinserção social do consu-midor superendividado, por meio da conciliação processual ob-tida mediante audiências de renegociação com a totalidade doscredores49. A obra advinda desse projeto foi utilizada, exaustiva-mente, como fonte para o presente trabalho.

Também como desdobramento do CIDECON, em 2008,foi criado o Observatório do Crédito e Superendividamento doConsumidor, o qual consiste, basicamente, em um banco dedados relativo às informações de devedores que procuram o ser-viço de conciliação por todo o país50.

Em dezembro de 2010, o Senado Federal instituiu a Comis-são de Juristas, para a Atualização do Código de Defesa do Consu-midor. A Comissão foi presidida por Herman Benjamin, sendocomposta pela jurista Ada Pellegrini Grinover, pela professora Cláudia

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47 SILVEIRA, Jacira Cabral. Contra a banalização do crédito. Jornal da Universidade.UFRGS, p. 11, nov. 2013. Disponível em: <http://issuu. com/jornaldauniversidade/docs/ju_165_-_novembro_2013/11>. Acesso em: 14 jun. 2014.48Ibidem.49Ibidem.50Ibidem.

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Lima Marques, responsável pela redação dos artigos que abor-dam a questão do superendividamento, pelo Desembargador doTribunal de Justiça do Estado de São Paulo Kazuo Watanabe,pelo promotor do Distrito Federal e especialista em serviços fi-nanceiros Leonardo Bessa e por Roberto Augusto CastellanosPfeiffer, ex-diretor do Procon de São Paulo.

A necessidade da elaboração do Projeto de Lei n. 283/2012é decorrente da desatualização do atual Código de Defesa do Con-sumidor, uma vez que, quando da sua elaboração, a problemáticado superendividamento ainda não existia, já que o acesso ao créditoera muito mais limitado. De forma que traz a seguinte proposta:

Esta nova seção do Código de Defesa do Consumidor (CDC) tem afinalidade de prevenir o superendividamento da pessoa física, pro-mover o acesso ao crédito responsável e a educação financeira doconsumidor, de forma a evitar a sua exclusão social e o comprome-timento de seu mínimo existencial, sempre com base nos princípiosda boa-fé e da função social do crédito ao consumidor.51

Ao analisar qual seria a melhor solução para o superen-dividamento a ser aplicada no Brasil, a Comissão concluiu que afilosofia adotada pelo sistema americano chamado de fresh start,

que permite o perdão total das dívidas sob certas condições, édemasiadamente avançado, sendo o modelo francês o mais con-dizente à atual realidade do país52.

Assim, sua elaboração foi inspirada na Diretiva Européia2008/48/EC e tem por escopo a prevenção do superendivida-mento, pela regulação dos contratos de crédito ao consumidor,do estabelecimento de novos deveres de informação e de acon-selhamento por parte do fornecedor de crédito, bem como pelacriação do direito de arrependimento do consumidor53.

Dentre os deveres estabelecidos, consta a proibição depromover publicidade de crédito, com referência a crédito gra-

tuito, sem juros, sem acréscimo e expressões semelhantes, aexigência de informações claras e completas sobre o serviço ouproduto oferecido e a criação da figura do assédio de consumo,

200

51Brasil. Senado Federal. Projeto de Lei n. 283 de 2012.52LIMA, op. cit. p. 130.53Ibidem, p. 132.

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quando há pressão para que o consumidor contrate o crédito.Como será demonstrado, o projeto não traz um sistema

formal de falência como consignado no Direito Comparado;porém, inova, ao propor a conciliação global do superendividadocom todos os seus credores54. Tal prerrogativa foi advento da su-gestão apresentada pela Corregedoria de Justiça do TJRS, comfundamento nos projetos realizados no TJRS, TJPR, TJPE, TJSP,Defensoria Pública do Rio de Janeiro e Procon de São Paulo, eestabelece o seguinte:

Art. 104-A A requerimento do consumidor superendividado pessoa fí-sica, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, vi-sando à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou porconciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores,em que o consumidor apresentará proposta de plano de pagamentocom prazo máximo de cinco anos, preservado o mínimo existencial.

De acordo com esse projeto, o superendividado, no Bra-sil, seria aquele que possui mais de 30% (trinta por cento) da suarenda líquida mensal comprometida com dívidas. Nota-se que háa tentativa de especificar, exatamente, quem seria o consumidorsuperendividado, diferentemente da doutrina, que utiliza a ex-pressão genérica “impossibilidade global”.

A fim de se reorganizar financeiramente, o devedor su-perendividado poderá requerer a repactuação de suas dívidas.Instaurado o processo, o devedor deverá apresentar, em audiên-cia conciliatória, um plano de pagamento com duração máximade 5 anos, preservando o mínimo necessário à sua subsistência;esse mínimo será definido pelo conciliador, de acordo com osgastos declarados pelo devedor55.

O mais importante é que a instauração desse processonão tem o condão de acarretar a insolvência civil do consumidor,podendo ser requerido, novamente, após o interstício de 2 (dois)anos, a contar da liquidação das obrigações previstas no planode pagamento.

A partir dessa sistemática, o consumidor deixaria de ser

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54LIMA, op. cit. p. 137.55Ibidem, p. 140.

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analisado sob uma perspectiva individual para ser analisado sobuma perspectiva global, de forma que o Poder Judiciário atuaria,positivamente, na proteção do superendividamento e não só re-visando individualmente contratos de crédito56.

No Rio Grande do Sul, Estado pioneiro no tratamento aosuperendividado, a hipótese de conciliação entre devedor e seuscredores já está prevista em sua Consolidação Normativa Judi-cial, que estabelece a possibilidade de conciliação prévia, antesdo processo judicial, mediante concurso de credores57.

O Projeto tem o objetivo principal de atuar, preventiva-mente, no superendividamento. Sua eficácia será resultante dacombinação do consumidor educado financeiramente com asinstituições de crédito, informando-o de forma clara e transpa-rente. Na ocorrência do superendividamento, a alternativa pro-posta é a possibilidade de conciliação entre devedor e credores.

Críticas ao Projeto de Lei n. 283/2012

Por mais que o Projeto de Lei n. 282/2012 tenha inovadoao prever a possibilidade de o devedor superendividado requereruma audiência de conciliação, ainda há uma falha gravíssimapara o efetivo tratamento do superendividado, qual seja, a au-sência de procedimento específico após a fase conciliatória.

Como a conciliação depende da vontade de conciliar dodevedor e dos credores, esta facilmente pode ser ineficaz, já queuma das partes pode simplesmente se recusar a aceitar o que foiproposto. É por isso que se faz necessária uma fase judicial após aconciliação, em que o juiz arbitra as condições em que o devedorirá reembolsar os credores, como é o caso do sistema francês, ame-ricano, australiano, norueguês, dentre tantos outros58.

Nota-se, nesse projeto, a ausência de um sistema formalpara tratamento do superendividado. Em recente relatório reali-zado pela magistrada Sandra Baurmann, acerca do tratamentodo superendividado no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,constatou-se, nos casos de superendividamento em que não se

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56LIMA, op. cit. p. 138.57Ibidem, p. 139.58Ibidem, p. 141-142.

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alcançou uma renegociação amigável, a necessidade de uma se-gunda fase em que o Estado-Juiz substitua as partes e estabe-leça um plano judicial de pagamento59.

O Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidorsugeriu a inserção do artigo 104-B no Projeto de Lei n. 283/2012,incluindo uma fase judicial no sistema brasileiro, em que o juiz apre-sentaria o plano judicial, caso restasse infrutífera a conciliação60.

Educação Financeira

A questão acerca da necessidade de se educar o con-sumidor é anterior até mesmo à própria elaboração do Códigode Defesa do Consumidor. Em 1985, a Organização das NaçõesUnidas, por meio da Resolução n. 39/243, estabeleceu uma sériede normas, a fim de proteger o consumidor, principalmente noque tange ao seu desequilíbrio econômico e educacional. A esserespeito, Bessa preceitua o seguinte:

Como reflexo dessa preocupação, a Organização das Nações Unidas– ONU, em 1985, por meio da Resolução 39/428, recomendou que osgovernos desenvolvessem e reforçassem uma política firme de pro-teção ao consumidor para atingir os seguintes propósitos: proteçãoda saúde e segurança; fomento e proteção dos interesses econômicosdo consumidor; fornecimento de informações adequadas para possi-bilitar escolhas acertadas; educação do consumidor; possibilidade efe-tiva de ressarcimento do consumidor e liberdade de formar grupos eassociações que possam participar das decisões políticas que afetemos interesses dos consumidores.61

A educação do consumidor, frente ao superendividamento,tem um caráter extremamente subjetivo, uma vez que ainda nãohá um posicionamento acertado e concreto acerca da sua real efi-ciência e consequente influência nas decisões dos consumidores.

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59 BAURMANN, Sandra.Tratamento do superendividamento do consumidor: projeto noPoder Judiciário do Paraná e conclusões de sua experiência. 2014. Disponível em:<http://bdjur.stj.jus.br/xmlui/bitstream/handle/2011/72465/tratamento_superendivida-mento_consumidor_bauermann.pdf?sequence=1>. Acesso em: 30 jun. 2014.60LIMA, op. cit., p. 142.61 BESSA, Leonardo Roscoe. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análisecrítica da relação de consumo. Brasília: Brasília Jurídica, 2007. p. 31.

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Entretanto, é certo que o consumidor que consome, ra-cionalmente, tem menores chances de se endividar. Ao tratar dosuperendividado que adquiriu crédito acima da sua capacidadepor não saber ou não entender sobre as condições em que con-tratava, está-se referindo ao superendividado ativo inconsciente,o qual tem a intenção de pagar suas dívidas, mas não conseguefazer um planejamento financeiro que as comporte ou que, sim-plesmente, não compreende as consequências do que está ad-quirindo.

O uso do crédito consciente é de extrema importância,principalmente pelas famílias de baixa renda, que, por possuírembaixo poder aquisitivo, nem sempre conseguem ter acesso a tudoque desejam. Assim, a capacidade do consumidor de elaborarum planejamento financeiro familiar é imprescindível para con-seguir redistribuir os gastos de forma adequada e inteligente.

A preocupação com o consumo deve iniciar-se na for-mação do consumidor. As escolas brasileiras deveriam prepararas crianças não só para o vestibular, mas também para a vida,mediante a inserção de matérias relativas à educação financeirana grade curricular.

Nessa seara, foi instituído por Decreto Presidencial, a Es-tratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), o qual estabeleceque a educação financeira é uma política de Estado, de caráterpermanente, envolvendo instituições, públicas e privadas, de âm-bito federal, estadual e municipal62.

Combinado a isso, tramita no Senado o Projeto de Lei n.171/2009, que visa instituir a obrigatoriedade do tema “educaçãofinanceira” no currículo da disciplina de matemática63.

Assim, escolas públicas e privadas de todo o Brasil já têmadotado, em sua grade curricular, o Programa DSOP de EducaçãoFinanceira, o qual é baseado em 4 (quatro) pilares: diagnosticar,sonhar, orçar e poupar. A disciplina objetiva ensinar, de forma sim-plificada, aos estudantes, como organizarem sua vida financeira64.

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62 BRASIL. Banco Central do Brasil. Estratégia Nacional de Educação Financeira. Dis-ponível em: <http://www.bcb.gov.br/?ENEFDOC>. Acesso em: 30 jun 2014.63 BRASIL. Senado Federal. Portal Atividade Legislativa. PLC Projeto de Lei da Câmaran. 171 de 2009. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=93105>. Acesso em 30 jun. 2014.64 DSOP. Educação Financeira. Educação financeira faz parte de grade curricular de

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A educação financeira não é a única solução para coibir queo consumidor se endivide excessivamente; entretanto, é ferramentafundamental para formar consumidores conscientes e que, por si sós,sejam capazes de repelir condutas desleais por parte dos fornece-dores, simplesmente deixando de adquirir determinado crédito que sedemonstre vantajoso ou superior às suas condições financeiras.

A necessidade de políticas públicas para educar o consumidor

A democratização do crédito no Brasil é muito recente,os consumidores não tiveram nenhum suporte de como utilizaresse crédito a seu favor. Ao invés disso, cresce o número de fa-mílias dependentes do crédito para sobreviver. Diante desse pa-norama, é imperiosa a necessidade de políticas públicas paratentar educar os futuros consumidores e, principalmente, aquelesque já estão mal educados.

As facilidades de informação devem ser acompanhadas depolíticas eficazes de educação e formação do consumidor, de formaa habilitar os cidadãos como consumidores responsáveis e críticos65.

O Procon de São Paulo já possui um Núcleo de Trata-mento do Superendividamento, pioneiro nessa iniciativa, o pro-grama oferece atendimento individual ao consumidor, por meiode apoio psicológico e suporte jurídico66.

O Estado do Rio de Janeiro criou a Escola de EducaçãoFinanceira do Fundo Único de Previdência Social - RIOPREVIDÊNCIA,que atua em parceria com a Defensoria Pública e oferece aulasde educação financeira a qualquer cidadão interessado67.

O projeto tem como foco principal aqueles consumidoresque já se encontram com problemas de endividamento excessivo.

escolas de Curitiba. Disponível em: <http://www.dsop.com.br/imprensa-dsop/relea-ses/2322-educacao-financeira-faz-parte-da-grade-curricular-de-escolas-de-curitiba>.Acesso em: 30 jun. 2014.65 BERTONCELLO; LIMA, op. cit., p. 47.66 EBC. Agência Brasil Beta. Proteção dos superendividados pode virar lei. 2014. Dis-ponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2014-04/protecao-aos-superendividados-pode-virar-lei>. Acesso em 30 jun. 2014.67 PORTAL G1. Rio inaugura escola gratuita de educação financeira. 22 mar. 2011, SãoPaulo. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/seu-dinheiro/noticia/2011/03/rio-inaugura-escola-gratuita-de-educacao-financeira.html>. Acesso em 30 jun.2014.

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O interessante é que a Escola ensina o cidadão a usar, de formaconsciente, o crédito, evitando que se endivide excessiva e reitera-damente, e, ao mesmo tempo, mantendo-o no mercado de consumo.

O projeto oferece aulas de gerenciamento de orçamentofamiliar, mercado financeiro, crédito e previdência.

A instituição de políticas públicas, que fomentem a educa-ção ao consumo, é elementar para constituição de consumidoreseducados financeiramente; é o meio de ensinar o cidadão a se com-portar, perante as diversas formas de crédito existentes, perante seuplanejamento familiar, perante um futuro negócio que deseje possuir,dentre tantas outras situações que envolvem o quesito econômico.

Ao tratar acerca da efetividade da educação financeirapara o consumo, vale trazer a lume, a fito de comparação, umaproblemática que já foi um pouco mais discutida, que é a questãodo consumo sustentável.

Conforme Ramos, Fonseca e Bourgoignie68, o consumosustentável consiste, basicamente, em colocar o consumidor empé de igualdade com o cidadão, ou seja, o cidadão passa a sersomente aquele que possui acesso ao mercado de consumo, res-tringindo-o à esfera privada.

Assim, a política atual de consumo sustentável acabapor transferir a atividade regulatória ao indivíduo, o qual passa ater que ser consciente de suas escolhas frente ao meio ambienteda noite para o dia.

Todavia, conforme infere os autores, os consumidores,em geral, consomem por influência de suas emoções e senti-mentos, muitas vezes apenas para se verem inseridos em umasociedade de consumo. Trata-se de uma cultura do consumo ex-tremamente imediatista.

Assim, aduz-se que o consumo sustentável não pode serestringir às mudanças no comportamento dos consumidores, massim ser acompanhado de ações e intervenções estatais que inter-cedam na esfera privada e incentivem a compra e produção de pro-dutos ecologicamente corretos, bem como o Judiciário deve atuarde forma rigorosa, a fim de punir os casos de dano ambiental69.

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68 RAMOS, Fabiana D’Andrea; FONSECA, Patrícia Galindo da; BOURGOIGNIE, Thierry.A Proteção do Consumidor no Brasil e no Quebec: Diálogos de Direito Comparado. Niterói:Editora da UFF, 2013. 69 RAMOS et al., op. cit, p. 357-368.

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Do mesmo modo deve ser o comportamento adotadofrente à problemática do superendividamento. A educação finan-ceira, por mais que seja extremamente valiosa, não pode consistirno sistema central de tratamento do consumidor superendividado.

A razão é simples: o consumidor é um indivíduo extre-mamente vulnerável, suscetível a um grande número de infor-mações, não podendo ser incumbido, exclusivamente, a ele aresponsabilidade por um possível superendividamento. Nessesentido, Ferreira70, ao analisar estatísticas acerca do sobreendi-vidamento em Portugal, constatou fortes indícios de racionali-dade limitada, excesso de confiança e necessidade de tentarpreservar o status social por parte dos devedores. No mais, con-cluiu que o superendividamento não se limita a variáveis econô-micas, mas ao conjunto de coeficientes, como fatores sociais,psicológicos e comportamentais.

Como se vê, a educação para o consumo é uma soluçãoeficaz para coibir o superendividamento; entretanto, trata-se deuma medida de longo prazo, posto que interfere no comporta-mento das pessoas. Não basta apenas transferir a responsabili-dade para o consumidor, é necessário uma ação conjunta. OEstado deve adotar políticas para conscientizar o consumidor,mas também deve inserir medidas que fiscalizem o fornecedorde crédito e que tratem o consumidor já superendividado.

CONCLUSÃO

Verificou-se que a concessão de crédito, frente a uma so-ciedade, possui diversos aspectos positivos, principalmente no quetange constituir elemento propulsor para o desenvolvimento econô-mico de um país. No entanto, quando se fala da realidade brasileira,o crédito é concedido sem qualidade, de forma irresponsável, muitasvezes sem observar a capacidade de solvência do devedor. Notou-se, assim, que o endividamento em si não é um pro-blema; trata-se de uma situação inerente à sociedade de consumo,consistindo basicamente em “ter dívidas”, mas isso não significa queessas não estejam previstas dentro de um orçamento familiar. Por

70 FERREIRA, Vera Rita de Mello. Psicologia Econômica. Rio de Janeiro: Campus, 2008. p. 188.

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outro lado, o superendividamento, objeto principal do presente es-tudo, consiste em um fenômeno social, econômico e jurídico, em queum indivíduo, pessoa física, extrapola a esfera do endividamento eencontra-se impossibilitado de saldar suas dívidas atuais e futuras,sem prejuízo do necessário à sua subsistência. Concluiu-se, principalmente pela análise de diversos estudose casos, que merece tutela estatal todo o indivíduo que atua de boa-fé nas relações de consumo, abarcando, assim, tanto o superendivi-dado passivo, indivíduo que foi acometido por um fato imprevisível,como desemprego, morte ou doença, e acaba por sofrer uma consi-derável ou total redução de seus rendimentos, não conseguindo arcarcom os débitos contraídos, como o superendividado ativo incons-ciente, indivíduo que, de boa-fé, não conseguiu gerir seu próprio or-çamento ou não entendeu as condições reais do crédito quecontratou. Isso porque o princípio basilar que enaltece a necessidadede tutela por parte do Estado, frente às relações consumeristas, é oda vulnerabilidade do consumidor. Por ser a parte mais fraca da re-lação, é necessário que o Estado intervenha nas relações de con-sumo, a fim de proteger esse consumidor da superioridadeeconômica do fornecedor. Desse modo, por se tratar de normas deordem pública e interesse social, os dispositivos que regulamentamas relações de consumo são de responsabilidade do Estado, ca-bendo a ele buscar soluções, com o fito de coibir as situações de su-perendividamento do consumidor. Constatou-se que, no Brasil, o superendividamento do con-sumidor ainda se limita à discussão doutrinária, sendo imperativa anecessidade de se regulamentar o tema, diferentemente de paísescomo a Dinamarca, França, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica,Suécia, Holanda e Canadá, que já possuem legislação específicapara regulamentar o tema. Desse modo, a prevenção e tratamento do superendivida-mento são essenciais para manutenção da sociedade de consumo.A ocorrência do superendividamento atinge, negativamente, a todos:o próprio devedor, o credor e o Estado. Um devedor superendividadonão contribui para o crescimento da economia, muito pelo contrário,torna-se dependente das políticas sociais estatais.

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Depreendeu-se, a partir da comparação, realizada frente àexperiência da questão do consumo sustentável, que o Estado nãopode transferir ao consumidor a atividade regulatória do consumo. Aeducação é essencial para formação de um consumidor consciente;entretanto, posto à sua evidente vulnerabilidade e, por se tratar deuma solução de longo prazo, é imperioso a instituição de políticaspúblicas por parte do Estado. O Projeto de Lei n. 283/2012, apesar de não conter todasas ferramentas necessárias para a integral tutela do consumidor su-perendividado no Brasil, já se apresenta como um enorme avançofrente à atual legislação, instituindo o meio necessário para que me-lhores fins sejam alcançados. É o caso da instituição de audiênciasde conciliação em âmbito nacional, que se apresentam como o pri-meiro passo para se alcançar um modelo de procedimento formalde falência aos moldes da realidade brasileira. Um dos pilares compreendidos pelo Projeto de Lei n.283/2012 é o da educação financeira, a qual visa, em síntese, capa-citar os consumidores a utilizarem o crédito de modo produtivo, ad-ministrando suas próprias finanças de forma responsável. Partiu-sedo pressuposto de que um consumidor financeiramente educadopossui menos chances de tomar decisões impulsivas e irracionais.Entretanto, conclui-se que, apesar de se tratar de uma solução es-sencial, refere-se a uma medida com resultados a longo prazo,sendo necessário não só a sua implementação, mas também algummeio que atue, imediatamente na atual sociedade de consumo. Nesse sentido, o Estado não deve se limitar à instituição doProjeto de Lei n. 283/2012, pois é apenas o primeiro passo para setutelar com dignidade o consumidor superendividado. É necessáriotratar o fenômeno como um problema de ordem social, estabele-cendo políticas públicas que atentem não só para a educação doconsumo, mas também para o tratamento do superendividado, aco-lhendo-o como vítima da sociedade de consumo. No mais, deve-seimplementar medidas, que visem fiscalizar a atuação do fornecedor,quando da celebração do contrato de crédito, a fim de verificar seos deveres de transparência, informação e aconselhamento estãosendo efetivamente cumpridos.

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