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A VOZ DO MORRO: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM RIO, 40 GRAUS
CLÁUDIA SANTOS DUARTE
Bolsista PROSUP/CAPES - Universidade Feevale
Introdução
O presente estudo tem como tema a representação do negro brasileiro da década de
50 no filme Rio, 40 Graus, do diretor Nelson Pereira dos Santos. Tal perspectiva justifica-
se pelo caráter inovador da obra cinematográfica em questão, produzida em 1955, que é
uma das primeiras narrativas fílmicas nacionais a inserir negros como protagonistas de
produções dessa categoria.
Rio, 40 Graus ousou apresentar em plena década de 50 um Brasil que muitos não
queriam ver. Nelson Pereira dos Santos levou para a tela do cinema negros marginalizados
moradores de uma favela carioca, contrastando com a classes média e alta numa sociedade
que não fazia muita questão de omitir seus preconceitos. Os negros ali caracterizados
opunham-se ao cenário turístico rico e exuberante do Rio de Janeiro. E, deste modo, as
diferenças parecem ficar ainda mais acentuadas.
Nesse sentido, o problema de pesquisa que norteia esta abordagem refere-se a: de
que forma o negro brasileiro da década de 50 é representado no filme Rio, 40 Graus? E
para responder a esta proposta, o objetivo geral a que este estudo se propõe é: analisar e
refletir sobre a representação do negro no filme Rio, 40 Graus, a partir dos conceitos de
estereótipo, discurso e identidade nacional. Como objetivos específicos a proposta é:
caracterizar o espaço socio-histórico em que a narrativa se passa e proceder ao estudo do
referencial teórico, a linguagem fílmica, para fundamentar a análise.
2
O referencial teórico empregado a esta investigação reúne teóricos ligados ao estudo
dos discursos e das linguagens, especialmente, Mikhail Bakhtin; das relações entre cinema
e história com base nos estudos de Marc Ferro e Miriam Rossini; cinema e ficção a partir
de Paul Ricoeur e do cinema e identidade nacional, a partir de Maurício R. Gonçalves.
Além disso, as reflexões acerca das representações têm como referencial as pesquisas de
Roger Chartier. Para instrumentalizar a análise fílmica os referenciais teóricos destacam,
prioritariamente, os estudos sobre cinema de André Gaudreault, François Jost e René
Gardies.
A pesquisa em questão utilizará como referencial teórico-metodológico a
Hermenêutica de Profundidade, proposta por John B. Thompson, a fim de que se faça,
como ele propõe, a análise sócia histórica do objeto; em seguida, a análise formal ou
discursiva, onde a linguagem cinematográfica será utilizada, a fim de instrumentalizar a
análise. E, por fim, será realizada a interpretação dos elementos destacados, refletindo sobre
o filme Rio, 40 graus e sua representação do negro brasileiro da década de 50, a partir dos
conceitos elencados no referencial teórico.
1 A década de 50 e a pluralidade refletida em Rio, 40 Graus
Em meados do século XX, o Brasil vivia um período de certo crescimento das
populações urbanas. Nesse sentido, dois fenômenos foram fundamentais: as migrações,
especialmente, do nordeste para o centro-sul brasileiro e do interior para as capitais, e o
processo de industrialização. Assim, a base das camadas populares urbanas, que eram mão
de obra para as indústrias, era formada por descendentes de escravos, migrantes nacionais e
imigrantes europeus.
Apesar de o país estar gradativamente se modernizando, principalmente pela
crescente inserção dos meios de comunicação de massa (o rádio e, mais recentemente, a
televisão), a mudança nos hábitos de consumo e o já mencionado crescimento das cidades e
da industrialização, ainda não havia mudanças na mentalidade conservadora do Brasil.
Nas cidades, havia um notável crescimento das camadas médias urbanas formadas
por diversos profissionais que dinamizaram a economia e aumentaram o consumo de
3
produtos que eram vistos como símbolo de modernidade. Por outro lado, todo esse aparente
progresso não era partilhado por todos os setores da sociedade. Assim, a concentração de
renda era visível e as desigualdades sociais eram cada vez mais gritantes.
Outro aspecto relevante refere-se à influência estadunidense no mundo. O modo de
vida americano (american way of life) espalhava hábitos e valores dos Estados Unidos nas
mais diversas regiões do planeta e, no Brasil, não seria diferente. Nesse sentido, expressões
culturais brasileiras conviviam e rivalizavam com elementos importados. Nesse período,
em que a política e a economia brasileiras eram deficiências e a cultura vivia um misto
entre o nacional e o estrangeiro, o futebol já era paixão e projetava o país
internacionalmente.
É nesse contexto que o filme Rio, 40 Graus emerge. O autor Maurício R. Gonçalves
destaca que Nelson Pereira dos Santos, junto com o diretor Anselmo Duarte que dirigiu O
Pagador de Promessas, colocam na agenda cinematográfica nacional um novo discurso que
os separavam das produções anteriores recheadas de influência estadunidense. O autor
afirma que:
Sem participar do movimento liderado por Glauber Rocha, e se antecipando a ele,
compartilharam com o Cinema Novo a preocupação de retratar e empreender um
esforço de representação e análise das questões nacionais, notadamente aquelas
pertinentes à cultura popular e aos problemas que afligiam as camadas menos
privilegiadas da sociedade brasileira (GONÇALVES, 2011, p. 191).
Para Roger Chartier (1990), as representações são importantes, visto que o social só
tem sentido dentro das práticas culturais e a partir dos símbolos que dão coerência e
explicação para uma dada realidade. Dessa forma, o filme em questão aborda
representações do negro que e da favela que apresentam o modo como eram vistos naquela
época e, sobretudo, levantam reflexões acerca desses indivíduos na sociedade brasileira.
Assim, estudando uma narrativa fílmica é possível “identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER,
1990, p. 16).
Rio, 40 Graus aborda um dia na vida de personagens negros moradores da favela
carioca chamada de Cabo Sul. Tais personagens interagem durante a trama com integrantes
de classes mais privilegiadas, revelando as condições sociais das classes marginalizadas e
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as relações de opressão e discriminação sofridas pelas classes populares no ambiente
urbano. Através da análise desses elementos é possível “pensar o cinema como um meio
produtor de discursos que produzem efeitos sobre o social” (ROSSINI, 2007, p.1) e assim
auxiliam na construção não só das representações como das percepções e das relações
sociais.
O filme destaca cinco meninos negros que, num dia comum de trabalho, saem da
favela em direção a diversos pontos turísticos do Rio de Janeiro para vender amendoim. O
dinheiro arrecadado fará parte de diferentes desejos entre os meninos. Um deles precisa
ajudar a mãe doente que necessita comprar medicamentos. Os outros, no geral, querem
juntar o valor necessário para comprar, em conjunto, uma bola de futebol. Independente da
razão, as duas motivações já apresentam um perfil bastante peculiar da infância desses
garotos. Desde cedo, eles são responsabilizados ou pelo provimento das necessidades da
casa ou pela aquisição de bens ligados ao seu lazer. Não há adultos que possam dividir com
eles tais atribuições.
Em meio ao enredo do filme, outras personagens vão unindo-se à narrativa
caracterizando a vida cotidiana no Rio de Janeiro, apresentando elementos das classes
média e alta urbanas, que se relacionam ou ignoram os moradores da favela com os quais
tem contato.
Uma peculiaridade da obra Rio, 40 Graus atribui-se ao fato de ter sido realizada, em
1955, por um sistema de cotas, onde o valor foi dividido entre a equipe e os familiares
envolvidos na produção. Tal atitude é justificada pelo próprio diretor, que afirma: “escrevi
o roteiro do Rio, 40 Graus, mas não consegui produção, pois ninguém queria fazer um
filme com personagens negros...” (RAMOS, 2007, p. 327). A assertiva de Nelson Pereira
dos Santos, em entrevista concedida a Paulo Roberto Ramos, corrobora a reflexão indicada
anteriormente acerca do conservadorismo e do preconceito da sociedade brasileira da
época.
O contexto social em que os moradores da favela estão inseridos incluem os
frequentadores das praias cariocas, jogadores de futebol, turistas nacionais e estrangeiros,
imigrantes, políticos e outras personagens ligadas à classe média. Assim, já é possível
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identificar a pluralidade das relações da sociedade urbana brasileira e refletir sobre o
contexto sócio-histórico da época que destacava um Rio de Janeiro bastante heterogêneo,
como modelo de uma realidade que ambicionava refletir o que, de alguma forma, encontra-
se em outras áreas urbanas do Brasil.
Nesse sentido, Rio, 40 Graus colocou em pauta os discursos das classes
marginalizadas cujas vozes são pouco ouvidas e, por isso, precisam cotidianamente
legitimar seu espaço e sua identidade. Daí a importância de filmes como este que
ambicionam
chegar às massas e refletir-lhe o rosto, construindo um discurso sobre a sociedade
e a nacionalidade brasileiras, indicando caminhos, e projetos de nação, para o
processo de formação de nossa identidade (GONÇALVES, 2011, p. 32).
E, nesse sentido uma importante tarefa do historiador é “confrontar os diferentes
discursos da História, a descobrir, graças a esse confronto, uma realidade não visível”
(FERRO, 1992, p.77) que o cinema tem condições de evidenciar. A discussão acerca da
identidade nacional também passa pela revisão artística que se faz das relações sociais
ocorridas em determinado país. E o cinema configura-se num espaço crucial onde essas
representações ultrapassam fronteiras e são determinantes para a construção da história.
1.1 Os antagonismos cariocas (in)visíveis na década de 50
Rio, 40 Graus inicia sua narrativa a partir de planos1 que destacam uma vista aérea
do Rio de Janeiro, enfatizando as belezas naturais da cidade, ao som, não diegético2, do
samba, recém-lançado na época, A Voz do Morro. Mesmo que somente a música faça parte
dessas cenas iniciais, o espectador, dotado de conhecimento enciclopédico3 sobre a canção,
reconhece a letra que já dá sinais da proposta de assimilação com elementos da identidade
1 Segundo René Gardies (2008, p. 17), o plano “no filme visto pelo espectador corresponde àquilo que foi
conservado na montagem”. 2 A partir de René Gardies (2008), o som não diegético não pertence à história em si; é da ordem do discurso,
produzindo efeitos de sentido que levam os espectadores a “sentirem” os momentos descritos. 3 Para Umberto Eco (1986), o conhecimento enciclopédico diz respeito à vivência do leitor, enriquecida por
elementos culturais, históricos e sociais.
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nacional, demonstrando que “a imagem e o som veiculam duas narrativas fortemente
imbricadas” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 43):
Eu sou o samba
A voz do morro sou eu mesmo sim senhor
Quero mostrar ao mundo que tenho valor
Eu sou o rei do terreiro
Eu sou o samba
Sou natural daqui do Rio de Janeiro
Sou eu quem levo a alegria
Para milhões de corações brasileiros 4
Louis Jean Calvet (1973, p. 47) destaca que “as coisas repetidas significam” e, deste
modo, determinados mitos passam a ser “definitórios da sociedade”. Assim, através da
música inicial (e que será ouvido também nas cenas finais da obra), veicula-se a ideia do
samba como representante daquele povo e como portador de alegrias aos brasileiros.
Entretanto, enquanto somos envolvidos pelas belas imagens do Rio de Janeiro,
gradativamente somos levados a assistir a transição dessas cenas para as imagens das áreas
urbanas marginalizadas da cidade. O enquadramento5 destaca o vai e vem das pessoas e as
construções simples que compõem este espaço onde habitam as personagens centrais da
narrativa.
Logo o espectador é apresentado aos garotos que, posteriormente, irão estabelecer o
primeiro contato entre o mundo da favela e o mundo das classes mais abastadas. As
responsabilidades, a relação com o trabalho e as dificuldades enfrentadas já dão uma ideia
de que aquele dia de domingo no Rio de Janeiro não seria fácil. Os garotos planejam os
locais onde irão vender amendoim e um deles destaca que é melhor ir ao Corcovado que
deve estar “assim de americanos”, intuindo que dessa forma as vendas serão mais
proveitosas.
Nessa e em outras conversas, o modo de falar das pessoas moradoras da favela
denuncia a exclusão em relação ao acesso à educação, destacando, em comparação a outras
personagens, as visíveis disparidades sociais. Deste modo, podemos afirmar que a nossa
4 Samba com letra de Zé Keti, lançado em 1955, mesmo ano de lançamento do filme Rio, 40 Graus.
5 René Gardies (2008, p. 20) aponta o enquadramento como o ato, e o resultado desse ato, que constrói um
espaço visual que será o espaço de representação.
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fala denuncia quem somos, pois segundo Bakhtin (2008) a palavra é uma arena ideológica,
carregada de conteúdo e de sentido vivencial.
Além disso, o diálogo deles mescla as obrigações de quem precisa trabalhar com os
interesses de quem ainda está ou recém saiu da infância. Quando Jorge, que precisa trazer
dinheiro para sua mãe que está doente, pede dinheiro emprestado para ir à Copacabana, a
condição que o amigo impõe para o empréstimo é receber em troca uma figurinha que
desejava. Assim, em meio aos encargos de necessitar “se virar sozinho” como um deles diz,
ainda há espaço para buscar a diversão e a alegria.
Valdomiro, um típico malandro carioca, e Alice, rainha da Escola de Samba da
comunidade, são inseridos na história. Valdomiro é temido e respeitado pelos demais
moradores da favela. Alice é desejada por ele e por Alberto que será seu noivo. Os diálogos
de Alice e Valdomiro e depois de Alberto e Alice transparecem alguns momentos em que
importantes questões sociais do período são apontadas. Alice, em dada oportunidade, fala a
Valdomiro: “tu não vai querer mandar na minha vida, pra mim chega o contramestre da
fábrica”, dando a ideia de que no emprego já vivia uma situação de opressão.
Posteriormente, em conversa com Alberto, Alice diz que queria “morar num lugar
bom” e que “nosso dinheiro junto só dá pra morar aqui no morro”, enfatizando o desejo de
sair daquele espaço para melhorar de vida. Aqui, fica clara a ideia de que a favela é
identificada como um espaço de sofrimento e de marginalidade social. Imagem que deve ter
sido formada a partir das relações de Alice com o mundo externo à favela, especialmente
em comparação com outras moças cuja vida deve ser menos sofrida e marginal. Assim,
“nela, na sociedade, na relação com um ‘tu’, também assume forma determinada o seu
próprio ‘eu’, sua subjetividade” (CASSIRER, 2000, p. 78).
Na feira, é possível perceber a presença dos imigrantes nesse período e também há
destaque para uma primeira fala que pode ser considerada com teor discriminatório. O dono
de umas das tendas refere-se a Alice como uma “neguinha desaforada”, provocando a ira
de Valdomiro.
Na sequência, o espectador é levado a presenciar outro fato dessa categoria.
Paulinho, um dos meninos da favela, talvez o mais novo deles, encanta-se com o universo
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do jardim zoológico, onde entra escondido atrás de uma lagartixa com quem estabelece
uma “amizade fantasiosa”. O menino deslumbra-se com a natureza ali encontrada, à qual
pouco tem acesso, muito diferente dos cenários da favela com que está acostumado. Assim
que vê Paulinho, um guarda o retira do local, dando-lhe um pontapé. Para o guarda, aquele
garoto negro e mal vestido estava dentro do estereótipo6 comumente atribuído a meninos da
favela: ele deveria estar roubando ou planejando alguma forma de prejudicar alguém, por
isso deveria ser expulso do local.
Nesse sentido, os estudos de Homi Bhabha permitem associar essas relações sociais
discriminatórias com o que o autor indica acerca do discurso colonial, considerando como
objetivo “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na
origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e
instrução” (BHABHA, 2007, p. 111). Assim, contrastando com esse momento da retirada
de Paulinho do zoológico, um grupo de crianças bem vestidas e alegres passa pelo local
denunciando que há espaços privilegiados a determinados grupos nacionais.
Na praia, Jorge enfrenta o desafio da venda de amendoins. Ele é derrubado por um
casal de classe média que se diverte na areia. Nesse momento, sua lata de amendoins cai na
água danificando o produto. O casal, indiferente, não é capaz de parar para ver o que
aconteceu. Ao serem abordados por Jorge que quer ser ressarcido pelo dano causado,
Bebeto (homem bonito e mulherengo) o chama de “moleque safado”. Outro cidadão que
passa pelo local complementa dizendo que “são uns criminosos esses pais que largam os
filhos na rua”.
Nesse momento o filme adota uma estratégia chamada por René Gardies (2008) de
montagem por correspondência7, onde a cena descrita acima é sucedida pela cena da mãe
de Jorge, na cama, doente, contando com a ajuda de uma vizinha, enquanto espera pela
volta de Jorge com o dinheiro para os remédios. Aqui, a montagem das cenas “dá liberdade
ao espectador de interpretar ou não, uma montagem poética, cujo sentido permanece
6 Bhabha acredita que o estereótipo seria a principal estratégia discursiva do discurso colonial, transfigurando-
se num “modo de representação complexo, ambivalente e contraditório, ansioso e afirmativo” (BHABHA,
2007, p. 110). 7 De acordo com René Gardies (2008, p. 41), “a montagem é aqui um processo que gera (e que não se limita a
aplicar) o discurso do filme”.
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‘aberto’” (GARDIES, 2008, p. 41). Assim, é possível realizar uma crítica aos indivíduos da
classe média que julgaram aquele menino que trabalha na rua, sem conhecer a sua sofrida
história de vida e a real necessidade de colaborar com a mãe que enfrenta uma situação
difícil. O trabalho na rua é uma questão de sobrevivência.
Ainda, nesse sentido, é possível destacar a questão das múltiplas vozes, que
compõem os discursos, fazendo dos signos discursivos elementos sociais, formados nas
relações do eu e do outro. Bakhtin (2008, p. 38) diz que “a palavra funciona como elemento
essencial que acompanha toda criação ideológica”. Assim, os discursos acerca de Jorge e de
sua condição acabam por denunciar a intensa discriminação pela qual passavam os
indivíduos como ele. Bhabha (2007, p. 167) destaca, nas relações de alteridade, o
“reconhecimento e repúdio de diferenças raciais, culturais e históricas”, onde o homem é
jogado no silenciamento histórico. No filme, o silêncio é adotado por Jorge diante das
opiniões dos demais indivíduos.
O filme também aborda diversas formas de opressão sofridas pelas personagens,
especialmente, as moradoras da favela. Patrões, locatários, clientes e outros com os quais os
moradores de áreas marginalizadas se relacionam exercem práticas de exploração contra as
quais nem todos estão aptos a se defender.
Ao tomarmos a palavra como portadora de sentidos emblemáticos, capazes de
denunciar e legitimar posições discursivas associadas, por exemplo, à discriminação,
podemos agregar, novamente, esta discussão aos propósitos de Homi Bhabha (2007) que
ressalta o poder dos estereótipos e reflexões sobre a alteridade, em que para a “formação do
eu” é preciso a “relação com o outro”. Assim, através dos estereótipos, Bhabha acredita que
se constroem os discursos discriminatórios que projetam em seus alvos um imaginário de
inferioridade, presente nas ideologias desde as práticas colonialistas. Dessa forma, acabam
por formar um “discurso moralista ou nacionalista que afirmam a origem e a unidade
nacional” (BHABHA, 2007, p. 108), transformado-se num aparato de poder.
Outra perspectiva tratada relaciona-se à sequência vivida por Paulinho no zoológico.
Os moradores da favela não têm fácil acesso a determinados espaços do meio urbano
carioca. Enquanto milhares de pessoas vão ao Maracanã assistir a uma partida de futebol,
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Valdomiro e seu amigo precisam dar um “jeitinho brasileiro”, vendendo os amendoins de
um dos meninos para poder comprar os ingressos da partida de onde tinham sido expulsos
ao envolverem-se numa briga.
Nessa perspectiva, podemos trazer os estudos de Gaston Bachelard (1998) que
indicam a ideia da ocupação diferente da habitação. Assim, refletindo sobre esse sentido
presente no filme, podemos entender que os moradores da favela apenas ocupavam os
pontos turísticos do Rio de Janeiro, mas não podiam habitá-lo, pois se encontravam numa
situação marginalizada. Os demais indivíduos, pretendendo à perpetuação dessa distância,
utilizam-se de discursos discriminatórios, que legitimassem o seu acesso exclusivo àqueles
espaços.
Na rua, dois garotos comentam que aquele local onde estão pertence ao “Seu
Peixoto”, que não permite que alguém que não trabalhe para ele use aquele ponto. Um
deles, ao fugir de Seu Peixoto, acaba entrando no bondinho e é acolhido por uma turista
italiana que se compadece da situação do menino que é órfão. Para ter sucesso na fuga, o
menino sobe no teto do bondinho, ocupando um espaço pelo qual não precisaria pagar.
Na praia, Jorge precisa conseguir dinheiro, pois seus amendoins foram molhados na
queda já descrita anteriormente. A indiferença e o preconceito o fazem fracassar em sua
missão, até que um dos amigos lhe aconselha a pedir dinheiro dizendo que é para sua mãe
que está doente, usando uma voz triste para comover os pedestres. O menino mais novo
acaba ensinando Jorge, enquanto fuma um cigarro, “como é que se arranca dinheiro dessa
gente”. Essa cena destaca a ideia de malandragem, desde cedo presente na vida das
crianças da favela, e da necessidade de aprender a ser visto e ouvido por uma população
que os despreza.
Entretanto, dentro do Maracanã, apesar das dificuldades para ter acesso a este
espaço, aqueles marginalizados que conseguiram comprar seus ingressos parecem encontrar
um dos poucos lugares externos ao local onde moravam que os aceita como iguais. O
futebol aparece como uma espécie de redentor onde as diferenças sociais parecem ser
minimizadas em nome de um objetivo comum: torcer por seu time.
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Porém, enquanto alguns estão torcendo, Jorge segue sua luta por dinheiro para levar
para casa e, ao ser perseguido por outros garotos, irrompe pela rua e acaba sendo
atropelado. As cenas da fuga de Jorge e seu subsequente atropelamento são seguidas pela
vibração da torcida no Maracanã, destacando as diferenças de realidade e de desfechos
entre alguns personagens. Nesse momento, o filme usa como estratégia o que Gardies
chama de raccords8 abruptos, cujo efeito impôs um ritmo acelerado produzindo um sentido
de relação entre as partes.
As cenas finais destacam o ensaio da Escola de Samba da comunidade, Unidos do
Cabo Sul, mostrando os moradores da favela, em sua maioria negros, cantando e dançando,
além de estarem muito bem vestidos para a ocasião. O samba entoado por todos os
presentes fala da liberdade ocasionada pela abolição da escravatura em 1888. Nessa
instância, é possível associar a ideia de Gaston Bachelard sobre o sentido da casa, com a
posição desses indivíduos na favela, espaço que é seu, onde podem ser e viver o que
realmente são. Bachelard (1998, p. 36) diz que a “casa é um corpo de imagens que dão ao
homem razões ou ilusões de estabilidade”. Dessa forma, a favela aparece como este espaço
estável, acolhedor e protegido das mazelas vividas do lado de fora.
O encontro mais esperado da narrativa acontece nesse momento. Todos esperavam
que, por desejarem a mesma mulher, Alberto e Valdomiro protagonizariam uma grande
briga. No entanto, ao se encontrarem, os dois se reconhecem como amigos, relembrando
quando estiveram juntos na época de uma grande greve em que Alberto precisou da ajuda
de Valdomiro. Assim, unidos por um inimigo comum (a exploração sofrida no trabalho) os
dois afirmam sua amizade.
O filme termina com o samba inicial, dessa vez, cantado pela rainha da escola,
Alice, e pelos demais integrantes da comunidade, que está em festa. Enquanto isso, a
imagem da mãe de Jorge sobrepõe-se a esta alegria, pois ela está na janela ainda à espera de
notícias do filho, destacando que a alegria do samba não atinge a todos os moradores da
8 Raccords são “elos que permitem atenuar os efeitos de corte entre os planos ou conferir-lhe um sentido
particular. Mas são também formas que marcam o ritmo das passagens entre planos e que dão ao filme a sua
pontuação” (GARDIES, 2008, p. 45).
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favela que permanecem tendo outras preocupações que o carnaval não consegue apagar.
Assim, a imagem volta a mostrar as belezas do Rio, entretanto, ofuscadas pela noite.
Esse panorama geral do filme leva-nos a destacar e associar ao Brasil aquilo que
Stuart Hall (2007) chama de multicultural e que se refere a uma sociedade onde coexistem
comunidades com culturas distintas, bem como os problemas político-civis que essa relação
provoca, na formação de um grupo heterogêneo. Outro elemento de destaque na questão
trabalhada por Hall é que “conceitualmente, a categoria ‘raça’ não é científica [...] ‘raça’ é
uma construção política e social” (HALL, 2007, p. 69). Desse modo, as relações
multiculturais pautadas no filme são regidas, sobretudo, por essa construção política e
social que atribui à diferença étnica uma justificativa para a admissão de inúmeros
estereótipos e para a realização de práticas discriminatórias.
De acordo com as cenas aqui levantadas, os negros moradores da favela carioca
foram vítimas das mais variadas formas de discriminação e mostravam-se constantemente
interessados em ocupar outros espaços que não somente a favela, seja para habitar ou para
adquirir os bens de que precisavam. Entretanto, os demais indivíduos com os quais esses
negros conviviam, especialmente aqueles dotados de uma melhor condição econômica,
faziam questão de destacar as diferenças e de se posicionar de maneira excludente ou
indiferente aos moradores da favela.
Assim, resgatando as palavras do diretor Nelson Pereira dos Santos, que indicava a
dificuldade em encontrar parceiros para a sua produção devido à presença dos negros na
narrativa, percebe-se o que Eni Orlandi (1990) indica acerca das relações coloniais, e que
aqui se associa ao modo como a sociedade reagiu à realização de Rio, 40 Graus: a ideia de
“silenciar aspectos cruciais da nossa história”, fazendo com que os discursos coloniais (e
pós-coloniais) tenham um papel político nas disputas pelo poder. O Brasil da década de 50
parecia ambicionar o silenciamento de um cenário que não pertencia aos cartões postais
cariocas.
Considerações Finais
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A representação do negro brasileiro, da década de 50, morador de áreas urbanas
marginalizadas no filme Rio, 40 Graus, destaca uma realidade ainda presente em algumas
obras atuais. O negro é visto como uma ameaça à ordem vigente, pois carrega o estereótipo
de malandro, vagabundo e ladrão. No filme, mesmo as crianças são temidas ou repelidas
por conta desses arquétipos.
Outro ponto destacado nessa representação é a vida sofrida encarada pelas
personagens, que não podem desfrutar de um domingo de descanso ou frequentar, a
passeio, os pontos turísticos da “cidade maravilhosa”. Aos moradores da favela estão
destinados aos espaços de trabalho e à necessidade constante de disputar os espaços que
deseja ocupar.
Embora tenha sido uma narrativa precursora, na época, trazendo, de modo pioneiro,
os negros como protagonistas de uma obra fílmica, Rio, 40 Graus não pode deixar de
reproduzir uma reflexão comumente utilizada, onde o futebol, o samba e o carnaval
aparecem como os poucos momentos de liberdade e plenitude desses indivíduos. No filme,
são estes os espaços onde as desigualdades sociais parecem não ser tão significativas e onde
os negros moradores da favela carioca mostram-se pertencentes ao país que muitas vezes os
exclui.
Nestes momentos, a “voz do morro” mostra que tem valor e que leva a alegria para
milhões de brasileiros, não importando de que forma recebam ou acolham os filhos deste
morro.
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