a vida como um jogo - metÁfora e...
TRANSCRIPT
A VIDA COMO UM JOGO - METAacuteFORA E ESQUECIMENTO NO PRIMEIRO NIETZSCHE
Francisco Manuel Gomes da Costa Saacuteragga Leal
Setembro 2014
Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia
Dissertaccedilatildeo apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo
do grau de Mestre em Filosofia Geral realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica do
Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e da Professora Doutora Maria
Joatildeo Mayer Branco
Ao meu avocirc Manuel um homem bom
AGRADECIMENTOS
Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende
o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes
tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da
Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me
dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora
Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no
desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da
minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute
Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre
me tratou
RESUMO
A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo
Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos
Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo
Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
Dissertaccedilatildeo apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo
do grau de Mestre em Filosofia Geral realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica do
Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e da Professora Doutora Maria
Joatildeo Mayer Branco
Ao meu avocirc Manuel um homem bom
AGRADECIMENTOS
Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende
o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes
tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da
Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me
dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora
Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no
desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da
minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute
Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre
me tratou
RESUMO
A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo
Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos
Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo
Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
Ao meu avocirc Manuel um homem bom
AGRADECIMENTOS
Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende
o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes
tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da
Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me
dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora
Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no
desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da
minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute
Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre
me tratou
RESUMO
A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo
Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos
Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo
Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
AGRADECIMENTOS
Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende
o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes
tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da
Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me
dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora
Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no
desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da
minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute
Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre
me tratou
RESUMO
A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo
Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos
Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo
Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
RESUMO
A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo
Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos
Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo
Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
ABSTRACT
Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche
Francisco Saacuteragga Leal
KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game
This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos
Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis
Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
IacuteNDICE
Introduccedilatildeo 1
Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7
I 1 Linguagem e Retoacuterica 7
I 2 Dioniso e Apolo 14
I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21
Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28
II 1 Siacutembolos e Conceitos 28
II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32
II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39
II 4 Esquecimento e Felicidade 43
Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48
III 1 A Metaacutefora em Causa 48
III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53
Conclusatildeo 58
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE
CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr
das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da
Histoacuteria para a Vida)
FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca
Traacutegica dos Gregos)
NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)
VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral)
Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do
nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o
portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos
ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke
Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari
Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL
seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19
[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o
livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos
referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface
by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company
1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos
traduzidos em nota de rodapeacute
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
Agora ndash
solitaacuterio contigo
dividido no teu proacuteprio saber
entre centenas de espelhos
falso perante ti mesmo
entre centenas de memoacuterias
inseguro
cansado de todas as feridas
transido por todas as geadas
estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos
conhecedor de ti mesmo
carrasco de ti mesmo
Nietzsche
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-
1
Introduccedilatildeo
O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de
resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a
uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida
Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma
conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de
esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por
corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha
relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da
Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si
mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores
que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das
coisas
Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves
divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em
relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade
daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial
incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre
verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im
aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos
Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen
und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die
Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos
das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia
especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken
Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)
Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos
Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a
1875 sensivelmente)
2
Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos
cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo
da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute
imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem
Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou
seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo
leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o
homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem
conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente
das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a
linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no
domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos
posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da
verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso
tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a
linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os
expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente
acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das
palavras
Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo
natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no
Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e
Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial
de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo
e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da
linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial
Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento
nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza
ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos
1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo
3
entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um
conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os
indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual
o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste
entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de
acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo
como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a
sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-
ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2
Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e
Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo
obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou
subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua
perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente
uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma
explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo
os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida
enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade
e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma
ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa
adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a
modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do
ser e da vida
Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de
Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por
Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia
um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa
imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de
moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo
4
transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total
correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo
duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das
palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na
representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo
que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la
e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o
esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem
passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por
representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem
acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como
conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo
conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode
algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o
homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute
natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho
possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar
responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que
noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo
Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito
e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes
pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial
de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo
3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
5
deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva
concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se
trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento
Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma
perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que
constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto
capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave
filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta
introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida
manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela
proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva
olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria
Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a
sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da
filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a
Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que
em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o
elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o
devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo
devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao
presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo
impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra
podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4
Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida
enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da
vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios
pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo
se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto
nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos
4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176
6
unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo
nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a
peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na
necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de
um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)
Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias
conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute
o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5
Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o
problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees
conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e
como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um
mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar
por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora
amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito
5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]
7
I Linguagem e Retoacuterica
I1 Linguagem e Retoacuterica
Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador
quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de
expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre
a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a
partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual
estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute
essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo
Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila
[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute
em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que
Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta
de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche
nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar
uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo
lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o
discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as
palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute
mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de
reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como
Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade
6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7
8
eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e
adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras
natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que
ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a
representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a
imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma
imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer
distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim
dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche
Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um
meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um
meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado
pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo
haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o
homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente
retoacutericas11
Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido
por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica
errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso
desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico
onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida
como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de
Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha
da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o
10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma
9
poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao
serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar
para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria
acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute
exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta
a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa
em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a
retoacuterica
Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que
estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona
coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos
sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos
eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo
transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por
meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das
coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a
nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por
conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que
recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e
permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas
imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens
sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila
disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219
10
do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute
ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo
Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto
linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma
episteme16
Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja
vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam
por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso
entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria
fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que
lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche
defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma
verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que
estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo
ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um
recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras
Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se
de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma
vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo
e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa
16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
11
de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de
liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas
Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas
palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio
natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20
Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do
conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave
filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance
uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou
seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche
defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de
linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De
acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma
linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o
ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das
sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de
pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem
ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior
representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das
coisas ditas
Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito
desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas
e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que
eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o
19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23
12
uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto
que se destaca22
Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo
de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura
convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza
da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar
deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia
de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo
da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder
de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais
segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos
grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos
antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer
uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um
material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o
seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus
principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo
haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila
criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem
novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim
o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas
agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema
em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece
22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36
13
resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do
orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as
determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras
[Manieren] mais adequadas
Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel
delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela
eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave
essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo
mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a
aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante
meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e
verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o
raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso
puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra
por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese
do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo
dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o
que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa
dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de
decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo
Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que
o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um
sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se
com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade
25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia
14
I2 Dioniso e Apolo
O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos
demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-
em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche
edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o
jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com
maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos
ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles
deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento
filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no
Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27
Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la
segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com
limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na
muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras
criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-
Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo
XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento
da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior
contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave
essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno
primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso
27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute
15
para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche
descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende
governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada
um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que
assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir
uma totalidade filosoacutefica31
Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e
comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa
primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia
Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que
tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos
compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno
primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a
quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do
relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do
panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas
orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante
de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada
necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9
16
e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso
instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal
indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita
oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este
deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -
Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e
orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles
as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e
mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava
oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de
algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um
animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes
cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-
o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia
Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista
nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise
natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que
forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos
apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus
Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta
responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo
deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche
em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que
ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e
34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado
17
eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de
Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do
fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do
terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia
alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos
laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas
tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa
um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso
arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos
os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da
brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um
mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT
35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para
39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada
18
seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias
Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o
homem se redime do eterno sofrimento do Ser
ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-
poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de
aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o
Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e
contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora
visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela
e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser
isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como
realidade empiacutericardquo (NT 38)
O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de
uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um
desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente
sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o
homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo
no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave
aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser
ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em
relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as
manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um
momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa
pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22
19
existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho
uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras
Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do
mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma
relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho
a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de
Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-
o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo
ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que
ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da
espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os
espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia
incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada
instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta
nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser
mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma
reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que
outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da
fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas
mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima
44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo
20
(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a
temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos
Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da
aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida
Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara
o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser
amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam
insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado
necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma
necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades
e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se
mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos
dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira
instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o
fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47
Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica
ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a
uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito
procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que
Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a
origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por
retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois
impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao
estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas
46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]
21
permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento
da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas
em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise
de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes
estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo
antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das
palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no
simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a
linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e
criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica
o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de
conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a
experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais
poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de
explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel
se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos
permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os
demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de
um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste
mundo (VM 215)
I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista
A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche
a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus
limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o
homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial
perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila
numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida
que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro
48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22
22
Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua
filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das
palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de
decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o
indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo
aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O
conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que
natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui
dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o
homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no
entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo
de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem
podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida
disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos
termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave
imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites
e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se
ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e
originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar
como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo
homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade
e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo
mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada
sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame
daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie
49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]
23
do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento
traacutegico e de uma metafiacutesica de artista
Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de
seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia
do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo
(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos
Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico
da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo
com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e
essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem
moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um
sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o
seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa
metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava
o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a
razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo
que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens
se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar
conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o
conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a
razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo
lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto
a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um
valor de nada
51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche
24
Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma
cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto
momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que
os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo
empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o
ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando
o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa
eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54
Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores
morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo
lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave
vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia
em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este
fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam
domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo
pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o
queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade
escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva
ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o
seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de
promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo
na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por
uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)
53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise
25
O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido
histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico
ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo
sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua
diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre
notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo
mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II
117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto
sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto
necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente
na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida
presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para
aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e
rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE
II 114)
Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o
sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de
Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais
acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum
general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem
desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do
pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica
mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a
partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida
O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve
simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos
56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)
26
filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o
seu mundo sobre esta lacuna58
A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da
metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso
interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e
subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da
historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa
convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee
uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica
do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida
enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior
escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos
antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a
ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser
verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo
necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de
aparecircnciarsquordquo61
Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista
em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu
antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62
sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida
por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua
criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela
um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela
58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]
27
ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee
a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da
subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a
concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o
uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir
da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que
nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia
da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave
semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos
mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para
eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo
nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos
livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes
reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos
na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas
de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude
63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]
28
II Metaacutefora e Esquecimento
II1 Siacutembolos e Conceitos
Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma
Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a
existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em
si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche
questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando
que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves
coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo
do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da
episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir
da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e
aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos
nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante
aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico
onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e
aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade
historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara
inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos
empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das
consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64
como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche
Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as
palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram
algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma
podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece
depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente
64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in
29
individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade
de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de
uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com
algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos
conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores
de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se
aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de
significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias
existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas
Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que
ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante
agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo
com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de
transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que
necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel
assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo
com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos
os secundaacuterios67
Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo
que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser
contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade
partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite
neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
30
utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute
uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a
outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra
imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de
Nietzsche
Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a
experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia
algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes
isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos
diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)
O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que
ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de
generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para
exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo
das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador
de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte
uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como
se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo
originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando
num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele
mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma
aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente
antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos
laquohonestaraquo ou seja
Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta
costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a
folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se
chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e
68 NL 1872 19 [236]
31
desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos
como acccedilotildees honestas (VM 220-221)
Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e
singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira
fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos
permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o
esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio
processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que
vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante
este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza
desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo
implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material
com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora
69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154
32
estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das
coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda
nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria
tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)
O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou
sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma
representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem
conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa
essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades
eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o
conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma
de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por
exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo
como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca
numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se
todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar
intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer
dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute
por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um
efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto
corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma
relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias
II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade
Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si
mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo
72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58
73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]
33
das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74
e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto
transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica
pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a
linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor
genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem
procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem
mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual
da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo
como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo
processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em
relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual
um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa
primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual
partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas
simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio
autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira
Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo
transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)
Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas
transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este
processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo
homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional
como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e
como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso
pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que
acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as
74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268
34
figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e
julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas
quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo
de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam
corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias
Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende
Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche
desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que
aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa
metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a
espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou
por analogiardquo77
Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados
em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora
por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda
manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes
em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no
Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da
metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do
ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma
metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer
75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit
35
dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da
sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora
Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o
fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna
inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na
reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por
uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso
em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade
originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada
agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa
em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer
inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima
citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo
metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa
linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas
as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80
Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da
metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na
relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito
transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da
espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o
conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge
mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela
entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que
apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais
80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit
36
proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de
imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo
do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade
No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve
Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a
classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um
columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)
Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por
ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de
uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma
transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um
determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como
nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos
satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito
como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza
metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela
metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma
aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos
objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83
O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de
correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo
em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da
igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo
declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma
ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute
posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as
coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um
82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]
37
animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido
anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto
eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade
da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como
laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche
nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal
a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a
imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito
No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de
dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que
se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz
depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade
Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da
crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu
alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees
Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis
privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo
das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido
mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)
Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85
como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto
84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31
38
um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de
conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa
subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade
das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder
agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as
verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo
com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de
ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees
Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico
a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da
totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos
ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral Nietzsche escreve
Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora
apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro
isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da
obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo
gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso
que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de
seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele
atinge o sentimento da verdade (VM 222)
Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o
impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo
ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem
odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos
outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade
marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras
palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem
chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de
todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que
39
tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este
motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado
natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de
seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero
resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito
moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma
de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e
adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)
II3 Metaacutefora e Esquecimento
Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para
um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute
por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se
datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-
se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a
necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos
ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que
esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos
textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de
algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86
Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira
origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo
das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)
enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas
86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem
40
aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que
lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo
defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no
grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)
A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa
medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave
metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso
ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da
Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular
aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em
sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo
ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo
aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a
complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da
impossibilidade do acesso agraves coisas
Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica
o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por
Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos
indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com
o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que
Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento
embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente
ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem
a uma fuga da complexidade da realidade humana
Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira
fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica
requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em
comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar
ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos
apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da
natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que
surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que
41
este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no
esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de
crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o
indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta
experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida
apareceria justificada enquanto fenoacutemeno
Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como
possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da
histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de
esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88
Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados
da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas
dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um
paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta
necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem
estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam
Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos
conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as
vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e
por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem
chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)
sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a
que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute
expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por
conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo
de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo
a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente
87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]
42
antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo
(VM 224)
Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo
acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o
proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela
correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade
correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus
conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o
esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem
eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila
numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as
metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte
pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo
Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do
endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma
torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por
meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em
si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto
sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-
225)
Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo
em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o
90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7
43
esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto
determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como
possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie
de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute
assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus
predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das
ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos
Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao
traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de
metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute
de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da
linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes
indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de
tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as
formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter
metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura
da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento
Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho
transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a
experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)
II4 Esquecimento e Felicidade
Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho
transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento
se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez
mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o
problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada
vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de
felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao
fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a
vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem
conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas
44
a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto
agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute
alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade
bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como
Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou
pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm
pontos de contacto entre si
Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e
por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no
capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de
Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o
tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave
verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a
cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com
o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade
intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem
enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer
por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual
um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de
Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado
aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca
da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a
predominacircncia da linguagem conceptual
eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos
quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das
feras (VM 216)94
92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice
45
Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer
no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria
Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o
demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche
potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera
inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute
idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho
ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo
De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees
distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco
esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e
outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento
define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e
exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees
de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo
que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas
mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave
verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio
criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de
estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95
por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico
necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si
proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o
que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que
do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212
46
Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute
assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz
de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento
histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste
sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto
na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a
felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais
cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)
O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia
de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva
o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a
liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo
homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o
futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor
incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do
que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96
Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura
contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo
Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do
Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo
anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche
concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno
primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do
homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade
subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se
usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97
Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava
96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52
47
ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria
destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos
enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma
tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de
atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o
homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos
noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em
relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute
metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa
vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade
dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de
Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a
qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos
abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo
de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma
ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa
filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em
agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)
98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176
48
III A Vida Como Um Jogo
III1 A Metaacutefora Em Causa
Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das
coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a
linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as
coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem
enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica
por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de
entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da
vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma
serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na
verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser
implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo
apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual
Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-
nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes
criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos
de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do
fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o
esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave
semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma
da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse
103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
49
conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade
dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de
Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria
dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo
provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra
o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza
que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no
principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem
acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o
soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior
Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto
na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por
palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de
Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou
seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma
concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente
superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia
operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em
consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo
traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos
107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)
50
A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a
um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar
numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e
bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal
proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro
dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo
mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)
Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas
animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada
de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que
Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave
essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir
e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas
ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira
vez114raquo (FETG 38)
Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o
mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador
e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta
mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da
existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em
especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de
Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em
que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem
destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma
absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute
subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que
112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147
51
a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm
existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)
natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes
afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade
resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e
os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o
principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De
acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em
sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria
intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos
fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade
fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena
parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as
coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as
quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche
Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era
tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos
contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos
impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos
misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que
existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute
Heraclito o havia afirmado117
115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28
52
De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos
o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do
laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos
indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia
apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da
espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de
Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem
ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade
momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos
e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que
seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum
jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer
isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma
luta de atributos eternos pelo contraacuterio
Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de
que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos
sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)
natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros
humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser
adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois
o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais
inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus
118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147
53
ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute
simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)
Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte
daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento
diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida
Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se
revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que
Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo
(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei
cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais
fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer
propoacutesito sem qualquer sentido
III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso
A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa
posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na
sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado
a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos
desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte
com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos
quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos
fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no
leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na
interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e
inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em
alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do
sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo
120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]
54
como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos
anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa
sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia
nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos
Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V
antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem
optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por
exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche
apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica
Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta
perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro
capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo
com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche
cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides
o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas
como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria
condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a
individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche
122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137
55
como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126
Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim
na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127
A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento
nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e
reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na
metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na
criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere
toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento
teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se
dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica
Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia
aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica
surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal
como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia
Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte
para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a
existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente
de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo
artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)
A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos
apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento
historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na
medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior
o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a
126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152
56
filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de
facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que
o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia
do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia
como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente
a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia
entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a
vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O
ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto
da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza
Atente-se pois nas seguintes palavras
Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a
explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte
natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da
realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que
pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica
de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo
dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse
mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a
vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)
Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um
papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge
legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada
enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante
o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash
trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo
Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma
pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131
131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo
57
Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do
homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se
ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade
da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da
natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime
enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da
repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)
Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos
corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num
tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se
servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um
significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel
lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria
da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar
a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida
58
CONCLUSAtildeO
O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da
obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que
decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos
partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso
uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse
ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que
agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute
que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma
forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia
daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais
distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano
e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para
a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar
um autor como Friedrich Nietzsche
Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos
agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final
neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma
retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos
concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida
1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em
especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em
particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a
que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno
seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha
acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria
que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas
laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa
em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma
laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria
natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo
59
(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria
resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria
sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um
sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo
corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem
Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos
mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-
se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de
pensar
2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem
Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos
acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees
arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG
69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa
de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito
requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma
ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas
palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se
sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo
ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de
novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem
pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som
seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A
linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si
imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo
das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo
do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade
que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o
homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz
se acaso tivesse acesso a essa verdade
132 Cf nota 22
60
3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os
textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento
deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que
abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da
linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves
laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da
constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel
Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma
resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo
em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser
inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de
conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si
mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria
a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um
mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o
homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas
Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista
Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida
seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia
Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por
fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra
filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo
incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e
acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute
visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente
se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro
Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a
metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas
tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma
metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida
61
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Obras de Nietzsche
Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio
Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 1999
Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli
und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter
MuumlnchenBerlinNew York 2003
Traduccedilotildees inglesas utilizadas
Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J
Parent Oxford University Press 1989
Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander
Nehamas Cambridge University Press 2009
Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized
translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921
Traduccedilotildees portuguesas utilizadas
A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade
revista por Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 1987
A Gaia ciecircncia traduccedilatildeo de Maria Helena Rodrigues de Carvalho Maria Leopoldina de
Almeida e Maria Encarnaccedilatildeo Casquinho Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998
Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976
Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques
introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000
Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999
62
O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca
da verdade e da mentira no sentido extra-moral traduccedilatildeo de Helga Hoock Quadrado
Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997
Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996
Monografias sobre Nietzsche
BELO Fernando Leituras de Aristoacuteteles e de Nietzsche Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian
1994
BRANCO Maria Joatildeo Mayer CONSTAcircNCIO Joatildeo MARTON Scarlett Sujeito
deacutecadence e arte Nietzsche e a modernidade Ediccedilotildees tinta-da-china 2014
BROBJER Thomas Nietzschersquos philosophical context an intellectual biography
University of Illinois Press 2008
COLLI Giorgio Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000
COPLESTON S J Frederick Nietzsche Filoacutesofo da Cultura Traduzido do inglecircs por
Eduardo Pinheiro Livraria Tavares Martins 1972
CONSTAcircNCIO Joatildeo Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-
china 2013
DANTO Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005
DARBY Tom EGYED Beacutela JONES Ben Nietzsche and the rhetoric of nihilism Essays
on interpretation language and politics Carleton University Press 1989
DELEUZE Gilles Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora
DERRIDA Jacques Spurs Nietzsches StylesEperons Les Styles de Nietzsche translated
by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981
EMDEN Christian J Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of
Illinois 2005
FINK Eugen A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983
63
HEIDEGGER Martin Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell
HarperCollins Publishers 1991
HEIT Helmut JENSEN Anthony K Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury
Academic 2014
KAUFMANN Walter Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton
University Press 2008
KNIGHT A H J Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his
connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933
KOFMAN Sarah Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993
MONTINARI Mazzino Reading Nietzsche translated from the German and Introduction
by Greg Whitlock University of Illinois Press 2003
MACHADO Roberto Nietzsche e a Verdade Editora Rocco Ltda Rio de Janeiro 1985
MAGNUS Bernd Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University
Press 1978
MAN Paul de Allegories of Reading Yale University Press 1979
MARQUES Antoacutenio (org) Nietzsche ndash Cem anos apoacutes o projecto laquovontade de poder ndash
transmutaccedilatildeo de todos os valoresraquo Lisboa Veja 1989
MARQUES Antoacutenio Sujeito e Perspectivismo Selecccedilatildeo de Textos de Nietzsche Sobre
Teoria do Conhecimento Publicaccedilotildees Dom Quixote Lisboa 1989
MURPHY Tim Nietzsche metaphor religion State University of New York Press 2001
PASLEY Malcom Nietzsche Imagery amp Thought A collection of Essays Edited by
Malcolm Pasley Methuen London 1978
PIPPIN Robert B Nietzsche Psychology and First Philosophy The University of Chicago
Press Robert B Pippin 2010
RAMPLEY Matthew Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press
2000
SCHRIFT Aland D Nietzsche and the question of interpretation Between hermeneutics
and Deconstruction Routledge Chapman and Hall Inc 1990
64
SILK M S STERN J P Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981
TEJERA V Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987
WILCOX John Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and
Epistemology University of Michigan Press 1974
Artigos
BANHAM Gary ldquoArt and symbol in Nietzschersquos aesthiticsrdquo Manchester Metropolitan
University 2006
BELLEI Alexandre Augusto ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo
Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol2 ndash nordm2 ndash pp 1 -
16
CAME Daniel ldquoThe themes of affirmation and illusion in The Birth of Tragedy and
beyondrdquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 209 -
225
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquolaquoA uacuteltima vontade do homem a sua vontade do nadaraquo
pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm
semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70
CONSTAcircNCIO Joatildeo ldquoOn consciousness Nietzschersquos Departure From Schopenhauerrdquo
DENAT Ceacuteline ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos
new language 13 - 37
ELDEN Stuart lsquoEugen Fink and the question of the worldrsquo Parrhesia a journal of critical
philosophy 5 2008 pp 48 ndash 59
HOLZAPFEL Cristoacutebal ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego
en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia
Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo
LEVINE Sarah ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions
in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012
65
OrsquoBRIEN Cruise Conner ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15
nordm 8 Nov 5 1970 pp 12 ndash 16
RIDLEY Aaron ldquoWhat is the meaning of aesthetic idealsrdquo Nietzsche Philosophy and
the Arts ed by Salim Kemal Ivan Gaskell and Daniel Conway Cambridge University
Press 1998 pp 128 ndash 147
SANTOS Leonel Ribeiro ldquoO retorno ao mito Nietzsche a muacutesica e a trageacutediardquo
Philosophica Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa nordm 1 1993 pp 90 ndash 111
SERRA Joseacute Pedro ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos
Claacutessicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
SOLL Ivan ldquoPessimism and the tragic view of life reconsiderations of Nietzschersquos Birth
of Tragedyrdquo Reading Nietzsche Oxford University Press 1988 pp 104 ndash 131
SOLL Ivan ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford
Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 pp 160 ndash 184
SOUSA Luis de ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of
Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-
Moral Sense (1872)rdquo As the spider spins Essays on Nietzschersquos critique and use of
language Walter de Gruyter GmbH amp Co KG BerlinBoston pp 39 - 61
Teses
AMARAL Carlos Alfredo do Couto Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica
do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor
Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999
BARATA-MOURA Joseacute Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-
Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa 1979
BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo
de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010
66
FERRO Antoacutenio A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da
Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia
apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999
GONCcedilALVES Victor Manuel Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de
Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras
2004
MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de
mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa 1984
SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de
Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras
de Lisboa 1989
SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de
subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em
Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013
Outra bibliografia
ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco Traduccedilatildeo do grego e notas de Antoacutenio de Castro Caeiro
Quetzal Editores 2004
ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de
Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000
ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse
Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005
COPE Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the
argument London George Bell and Sons 1883
DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988
DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R
Dodds Oxford University Press 1959
67
EURIacutePIDES As bacantes Ediccedilotildees 70 2011
FINK Eugen Le jeu comme symbole du monde Les Eacuteditions de Minuit 1966
FINK Eugen Todo y nada Editorial Sudamericana Buenos Aires 1964
HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e
comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda
2005
HUIZINGA Johan Homo Ludens traduccedilatildeo de Joatildeo Paulo Monteiro Editora Perspectiva
1980
JASPERS Karl Lo Traacutegico El Lenguaje Editorial Libreriacutea Aacutegora S A 1995
KAHN Charles H The art and Thought of Heraclitus Cambridge University Press 1987
KEREacuteNYI C Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University
Press 1976
KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Histoacuteria criacutetica com
selecccedilatildeo de textos Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian traduccedilatildeo de Carlos Alberto Louro
Fonseca 1994
OTTO Walter F Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965
PIPPIN Robert B Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991
Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da
Costa Editora 1963
PLATAtildeO Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira
Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011
RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966
SCHOPENHAUER Artur Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43
Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa
SCHOPENHAUER Artur Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt
am Main 1960
68
SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a
Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006
SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006
TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926
WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist
Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860
WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press
2007
- Capa_DissertacaoMestrado_092011
- A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
-