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A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ESQUECIMENTO NO PRIMEIRO NIETZSCHE Francisco Manuel Gomes da Costa Sáragga Leal Setembro, 2014 Dissertação de Mestrado em Filosofia

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A VIDA COMO UM JOGO - METAacuteFORA E ESQUECIMENTO NO PRIMEIRO NIETZSCHE

Francisco Manuel Gomes da Costa Saacuteragga Leal

Setembro 2014

Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia

Dissertaccedilatildeo apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo

do grau de Mestre em Filosofia Geral realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica do

Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e da Professora Doutora Maria

Joatildeo Mayer Branco

Ao meu avocirc Manuel um homem bom

AGRADECIMENTOS

Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende

o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes

tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da

Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me

dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora

Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no

desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da

minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute

Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre

me tratou

RESUMO

A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo

Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos

Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo

Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

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poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

18

seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

19

existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

20

(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

46

Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

49

conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

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De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 2: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

Dissertaccedilatildeo apresentada para cumprimento dos requisitos necessaacuterios agrave obtenccedilatildeo

do grau de Mestre em Filosofia Geral realizada sob a orientaccedilatildeo cientiacutefica do

Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e da Professora Doutora Maria

Joatildeo Mayer Branco

Ao meu avocirc Manuel um homem bom

AGRADECIMENTOS

Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende

o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes

tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da

Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me

dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora

Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no

desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da

minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute

Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre

me tratou

RESUMO

A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo

Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos

Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo

Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

10

do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

20

(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

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ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

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conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

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De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

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ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

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como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

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filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 3: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

Ao meu avocirc Manuel um homem bom

AGRADECIMENTOS

Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende

o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes

tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da

Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me

dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora

Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no

desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da

minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute

Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre

me tratou

RESUMO

A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo

Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos

Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo

Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

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eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

10

do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

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(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

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proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

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um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

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conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

52

De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

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  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 4: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

AGRADECIMENTOS

Agrave minha avoacute materna de seu nome Normanda que desde a minha meninice empreende

o penoso labor de ler e corrigir os meus textos Ao professor Joseacute Luiacutes e agrave Dona Lourdes

tatildeo importantes na minha formaccedilatildeo enquanto homem Ao Engenheiro Joatildeo Virott da

Costa e agrave Doutora Soledade Carvalho Duarte pela imerecida amizade que me

dedicaram Ao Professor Doutor Joatildeo Manuel Pardana Constacircncio e agrave Professora

Doutora Maria Joatildeo Mayer Branco pela orientaccedilatildeo e pelas sugestotildees concedidas no

desenrolar desta dissertaccedilatildeo (ilibemo-los natildeo obstante do resultado final que eacute da

minha inteira responsabilidade) Em especial ao meu amigo Professor Doutor Joseacute

Pedro Serra pelo carinho com que sempre me recebeu e pela ternura com que sempre

me tratou

RESUMO

A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo

Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos

Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo

Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

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eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

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poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

13

resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

14

I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

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(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

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conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

52

De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 5: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

RESUMO

A vida como um jogo ndash metaacutefora e esquecimento no primeiro Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

PALAVRAS-CHAVE Nietzsche linguagem laquocoisa em siraquo arte metaacutefora esquecimento verdade ilusatildeo Dioniso Apolo laquogeacutenio da espeacutecieraquo Heraclito vida jogo

Pretende-se neste estudo levar a cabo uma investigaccedilatildeo aos primeiros escritos de Friedrich Nietzsche com o intuito de compreender de que forma o manifesto jovial interesse do filoacutesofo pelas questotildees da linguagem pode revelar-nos uma perspectiva muito particular e peculiar sobre a vida e sobre o homem em relaccedilatildeo com a vida Para tal tentar-se-aacute demonstrar que subjacente ao problema da linguagem estaacute a questatildeo - herdada de Kant e de Schopenhauer - da inacessibilidade por parte dos homens agrave laquocoisa em siraquo e que a esta questatildeo por sua vez corresponde um esboccedilo da constituiccedilatildeo do homem enquanto insuficiente e incompleta perante a tarefa de conhecer a essecircncia das coisas de conhecer-se a si mesmo e ao seu papel no cosmos

Por outra parte dependendo o conhecimento humano da linguagem conceptual seraacute de particular relevacircncia numa primeira instacircncia analisar a noccedilatildeo Nietzschiana de metaacutefora e por consequecircncia o papel que o autor concede ao esquecimento Seraacute posto em evidecircncia e sob anaacutelise o ponto de vista do filoacutesofo segundo o qual a linguagem conceptual resulta de um processo duplamente metafoacuterico que transforma um X para noacutes inacessiacutevel numa imagem e essa imagem posteriormente num som ou seja numa palavra Concluir-se-aacute que para que o homem possa crer na representatividade das palavras de acordo com os escritos aurorais de Nietzsche tornar-se-ia imperiosa a capacidade de esquecer a geacutenese metafoacuterica dos conceitos Por outras palavras apenas mediante o esquecimento poderia o homem viver com alguma tranquilidade e serenidade confiando na verdade resultante do imenso edifiacutecio de conceitos por si mesmo criado Ora uma vez que tal verdade seria meramente humana natildeo correspondendo como tal a uma veritas aeterna Nietzsche desenvolve por um lado uma criacutetica agrave razatildeo poacutes-Socraacutetica e agrave metafiacutesica teiacutesta ambas vigentes na modernidade e sustentadas por uma racionalidade incapaz por definiccedilatildeo de aceder agrave verdade e por outro lado uma metafiacutesica de artista pensada a partir dos gregos preacute-Socraacuteticos Para que possamos entender esta metafiacutesica teremos de reflectir acerca da dicotomia evidenciada em especial no Nascimento da Trageacutedia entre Apolo e Dioniso representando o primeiro um mundo de belas formas plaacutesticas e de sonhos e o segundo o Uno primordial que romperia com o principium individuationis apoliacuteneo

Acima de tudo mais seraacute do intuito desta reflexatildeo perceber como no espiacuterito da trageacutedia grega no centro do conflito entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos Nietzsche descobre um jogo de transitoriedade ie do devir e entender qual o papel que o filoacutesofo concede nesse jogo ao indiviacuteduo ou seja ao homem

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

13

resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

18

seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

19

existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

20

(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

46

Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

49

conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

52

De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 6: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

ABSTRACT

Life as a game ndash metaphor and forgetfulness on the first Nietzsche

Francisco Saacuteragga Leal

KEYWORDS Nietzsche language laquothing in itselfraquo art metaphor forgetfulness truth illusion Dionysus Apollo laquogenius of the speciesraquo Heraclitus life game

This study aims to investigate the early writings of Friedrich Nietzsche with the aim of understanding how the un-doubtful interest of the young philosopher regarding the questions of language can provide us with a supremely particular and peculiar perspective over life and over man in relation to life With that purpose we will try to demonstrate that underneath the problem of language is the question - which comes from Kant and Schopenhauer - of manrsquos inaccessibility to the laquothing in itselfraquo and that this last question corresponds to an overview of manrsquos constitution as being insufficient and incomplete to successfully and entirely know the full essence of things himself and his own role in the cosmos

Since human knowledge seems to depend on conceptual language it will be of utmost relevance for us to analyse the Nietzschean notion of metaphor and consequently the role that the philosopher bestows to forgetfulness We will carefully study Nietzschersquos perspective by which conceptual language would be no more than the result of a doubly metaphorical process that would transform firstly an inaccessible X on an image and secondly that same image on a sound ie on a word Then we will examine how this metaphorical genesis of all conceptual language was needed to be forgotten so that man could believe on the ability of words to represent things Saying that we put ourselves in a position where we have to recognise according to Nietzsche that forgetfulness is needed for us to be able to live with serenity and tranquility ndash how would we otherwise believe that there is anything true resulting from our conceptual knowledge Since truth is therefore only human far from reaching any veritas aeterna Nietzsche develops on the one hand a critique to post-Socratic reason and to theist metaphysics both present on modernity and sustained on a rationality incapable by definition of reaching any kind of truth and on the other hand an artistrsquos metaphysics thought from pre-Socratic Greeks So that we can understand this metaphysics of art we will have to reflect on the dichotomy evidenced mainly on The Birth of Tragedy between Apollo and Dionysus being the first representative of a world of plastic and beautiful forms and dreams and the second of the primordial Uno that shatters the apollonian principium individuationis

Above all it is this dissertationrsquos intention to understand how in the spirit of Greek tragedy and at the center of that conflict between apollonian and dionysian impulses Nietzsche discovers a game of transience ie of becoming (devir) and to comprehend what is the role that the philosopher concedes in that game to individuals that is to man

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

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I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

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eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

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poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

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(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

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proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

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um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

49

conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

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De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras de Nietzsche

Saumlmtliche Werke Kritische Studienausgabe in 15 Baumlnden herausgegeben von Giorgio

Colli und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter

MuumlnchenBerlinNew York 1999

Saumlmtliche Briefe Kritische Studienausgabe in 8 Baumlnden herausgegeben von Giorgio Colli

und Mazzino Montinari Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter

MuumlnchenBerlinNew York 2003

Traduccedilotildees inglesas utilizadas

Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989

Nietzsche Writings from the early notebooks ed by Raimond Geuss and Alexander

Nehamas Cambridge University Press 2009

Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface by Dr Oscar Levy authorized

translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company 1921

Traduccedilotildees portuguesas utilizadas

A filosofia na idade traacutegica dos gregos traduccedilatildeo de Maria Inecircs Madeira de Andrade

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Consideraccedilotildees Intempestivas Presenccedila traduccedilatildeo de Lemos de Azevedo 1976

Ditirambos de Dioacutenisos Dionysos-Dithiramben traduccedilatildeo de Manuela Sousa Marques

introduccedilatildeo e notas de Delfim Santos Guimaratildees Editores 2000

Ecce Homo traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Reloacutegio DrsquoAacutegua 1999

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O Nascimento da trageacutedia traduccedilatildeo comentaacuterio e notas de Teresa R Cadete e Acerca

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Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997

Para aleacutem do bem e do mal traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996

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pessimismo e niilismo em Nietzscherdquo Revista Traacutegica estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm

semestre de 2012 ndash Vol 5 ndash Nordm 2 ndash pp 46-70

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new language 13 - 37

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Teses

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Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

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Letras da Universidade de Lisboa 1979

BRANCO Maria Joatildeo Mayer Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo

de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010

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Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de Mestrado em Filosofia

apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1999

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Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras

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MARQUES Viriato A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de

mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova

de Lisboa 1984

SERRA Joseacute Pedro Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de

Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras

de Lisboa 1989

SOUSA Luiacutes de autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de

subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em

Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013

Outra bibliografia

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Quetzal Editores 2004

ARISTOacuteTELES Poeacutetica Traduccedilatildeo prefaacutecio introduccedilatildeo comentaacuterio e apecircndices de

Eudoro de Sousa Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2000

ARISTOacuteTELES Retoacuterica Traduccedilatildeo e notas de Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse

Alberto e Abel do Nascimento Pena Imprensa Nacional ndash Casa da Moeda 2005

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DODDS Os Gregos e o Irracional Gradiva 1988

DODDS E R Plato Gorgias a revised text with Introduction and Commentary by E R

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HERACLITO Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e

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Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da

Costa Editora 1963

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Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011

RENAULT Mary The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966

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Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa

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Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860

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2007

  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 7: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

IacuteNDICE

Introduccedilatildeo 1

Capiacutetulo I Linguagem e Retoacuterica 7

I 1 Linguagem e Retoacuterica 7

I 2 Dioniso e Apolo 14

I 3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista 21

Capiacutetulo II Metaacutefora e Esquecimento 28

II 1 Siacutembolos e Conceitos 28

II 2 Linguagem Metaacutefora e Verdade 32

II 3 Metaacutefora e Esquecimento 39

II 4 Esquecimento e Felicidade 43

Capiacutetulo III A Vida Como um Jogo 48

III 1 A Metaacutefora em Causa 48

III 2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso 53

Conclusatildeo 58

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 61

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

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poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

13

resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

14

I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

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(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

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do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

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Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

46

Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

49

conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

52

De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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am Main 1960

68

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a

Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006

SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926

WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist

Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860

WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press

2007

  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 8: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

ABREVIATURAS DOS TIacuteTULOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE

CE II ndash Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen und Nachteil der Historie fuumlr

das Leben (Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos Inconvenientes da

Histoacuteria para a Vida)

FETG ndash Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A Filosofia na Eacutepoca

Traacutegica dos Gregos)

NT ndash Die Geburt der Tragoumldie (O Nascimento da trageacutedia)

VM ndash Uumlber Wahrheit und Luumlge im aussermoralischen Sinn (Sobre verdade e

mentira no sentido extra-moral)

Os textos de Nietzsche acima indicados seratildeo citados pela abreviatura do tiacutetulo seguida do

nuacutemero de paacutegina correspondente (por exemplo NT 37) de acordo com as traduccedilotildees para o

portuguecircs que seratildeo seguidas devidamente identificadas na bibliografia final Recorreremos

ainda aos fragmentos e escritos poacutestumos utilizando para tal a ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke

Kritische Studienausgabe Band 1-15 herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari

Deutscher Taschenbuch Verlag Walter de Gruyter Berlin 1999 que seraacute citada pela sigla NL

seguida do ano do volume e do nuacutemero canoacutenico da nota poacutestuma (por exemplo NL 1872 19

[37]) Sempre que agraves aulas que Nietzsche leccionou em Basileia nos referirmos seguiremos o

livro Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J

Parent Oxford University Press 1989 Por fim quando agraves cartas de Nietzsche fizermos

referecircncia seraacute tido em conta o livro Selected Letters of Friedrich Nietzsche ed with a preface

by Dr Oscar Levy authorized translation by Anthony M Ludovici Doubleday Page amp Company

1921 Sempre que as traduccedilotildees forem da nossa autoria seraacute posta a versatildeo original dos excertos

traduzidos em nota de rodapeacute

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

10

do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

20

(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

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ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

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conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

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De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

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ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

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como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

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filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 9: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

Agora ndash

solitaacuterio contigo

dividido no teu proacuteprio saber

entre centenas de espelhos

falso perante ti mesmo

entre centenas de memoacuterias

inseguro

cansado de todas as feridas

transido por todas as geadas

estrangulado nos teus proacuteprios laccedilos

conhecedor de ti mesmo

carrasco de ti mesmo

Nietzsche

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

10

do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

12

uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

13

resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

14

I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

15

para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

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(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

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do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

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Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

46

Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

47

ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

49

conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

52

De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

53

ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

54

como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

56

filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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am Main 1960

68

SERRA Joseacute Pedro Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a

Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006

SOacuteFOCLES Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

TAYLOR Plato The Man and His Work Methuen amp Co 1926

WHEWELL William The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist

Dialogues Cambridge Macmillan and Co 1860

WILLES David Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press

2007

  • Capa_DissertacaoMestrado_092011
  • A Vida Como Um Jogo - Metaacutefora e Esquecimento No Primeiro Nietzsche (1)
Page 10: A VIDA COMO UM JOGO - METÁFORA E ...run.unl.pt/bitstream/10362/14450/1/TESE_FRANCISCOSARAGGA...correspondendo, como tal, a uma veritas aeterna, Nietzsche desenvolve, por um lado,

1

Introduccedilatildeo

O que estaacute em causa no estudo que aqui se apresenta eacute uma tentativa de

resposta a partir dos textos da primeira fase da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche a

uma das mais inquietantes perguntas que a um homem pode colocar-se o que eacute a vida

Trata-se antes de mais de uma questatildeo que leva o homem inelutavelmente a uma

conversa intrapessoal ou seja a olhar-se a si mesmo enquanto parte disto da vida e de

esta enquanto parte de si Quer dizer o perguntar-me ldquoo que eacute istordquo implica por

corolaacuterio que tenha de responder a ldquoo que sou eu no meio distordquo e ldquoqual a minha

relaccedilatildeo com istordquo Ou seja como Nietzsche questiona no Acerca da verdade e da

Mentira no Sentido Extramoral ldquoQue eacute que o homem no fundo sabe acerca de si

mesmordquo (VM 217) Sendo este o tema central do presente trabalho os fios condutores

que a ele nos dirigiratildeo seratildeo os problemas da linguagem e do acesso agrave essecircncia das

coisas

Natildeo sendo viaacutevel dada a sua extensatildeo e complexidade nem uacutetil devido agraves

divergecircncias de interpretaccedilatildeo existentes no decorrer da proacutepria obra nietzschiana em

relaccedilatildeo ao tema deste trabalho empreender uma investigaccedilatildeo sobre a totalidade

daquela obra decidimos limitar esta reflexatildeo aos seus escritos iniciais com especial

incidecircncia nos seguintes O Nascimento da Trageacutedia (Die Geburt der Tragoumldie) Sobre

verdade e mentira no sentido extra-moral (Uumlber Wahrheit und Luumlge im

aussermoralischen Sinn) Consideraccedilotildees Extemporacircneas II Da Utilidade e dos

Inconvenientes da Histoacuteria para a Vida (Unzeitgemaumlsse Betrachtungen II Vom Nutzen

und Nachteil der Historie fuumlr das Leben) A Filosofia na Eacutepoca Traacutegica dos Gregos (Die

Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen) Seratildeo tambeacutem relevantes os escritos

das aulas dadas por Nietzsche no iniacutecio da deacutecada de 1870 na Universidade de Basileia

especialmente os seguintes Descriccedilatildeo da Retoacuterica Antiga (Darstellung der Antiken

Rhetorik) Escritos de Aristoacuteteles Sobre a Retoacuterica (Aristotelesrsquo Schriften zur Rhetorik)

Recorreremos ainda aos Fragmentos Poacutestumos (Nachgelassene Fragmente) e aos

Escritos Poacutestumos (Nachgelassene Schirften) do periacuteodo em anaacutelise (ou seja de 1869 a

1875 sensivelmente)

2

Comeccedilaremos pois por estudar a forma como na preparaccedilatildeo de alguns dos

cursos que Nietzsche leccionou em Basileia o autor se questiona acerca da adequaccedilatildeo

da linguagem ou seja da correspondecircncia entre as palavras e as coisas que lhes eacute

imposto representarem Sob manifesta influecircncia de Schopenhauer e de Kant p jovem

Nietzsche natildeo questiona a existecircncia de coisas mas sim a nossa representaccedilatildeo delas ou

seja que elas sejam em si mesmas tal qual noacutes as percepcionamos Esta interrogaccedilatildeo

leva o entatildeo professor de filologia claacutessica a concluir numa primeira instacircncia que o

homem natildeo tem acesso directo agrave essecircncia das coisas e que por isso a linguagem

conceptual refere-se meramente agrave nossa representaccedilatildeo intrinsecamente insuficiente

das coisas e natildeo agraves laquocoisas-em-siraquo Ou seja agrave semelhanccedila do que eacute tido por retoacuterico a

linguagem limita-se a procurar originar uma doxa [δόξα] uma opiniatildeo exercendo-se no

domiacutenio do pithanon [πιθανόν o que persuade] ie na forma como noacutes nos

posicionamos perante as coisas e natildeo da episteme [ἐπιστήμη conhecimento] nem da

verdade Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica teria feito entre um discurso

tido por natural apropriado e um outro artificial retoacuterico estaria errada toda a

linguagem eacute retoacuterica defende Nietzsche uma vez que os tropus ie os modos os

expedientes para a formaccedilatildeo de significados natildeo literais natildeo satildeo ocasionalmente

acrescentados ao discurso humano mas consistem na proacutepria fundaccedilatildeo e natureza das

palavras

Ora de acordo com esta perspectiva qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo

natildeo passaria de mera figuraccedilatildeo uma vez que aquele nos permaneceria inacessiacutevel Eacute no

Nascimento da Trageacutedia mediante uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e

Apolo que podemos encontrar o mais importante contributo do pensamento primordial

de Nietzsche ao problema do acesso humano agrave essecircncia das coisas agrave verdade do mundo

e ao mais fundo de noacutes Por outras palavras a investigaccedilatildeo introdutoacuteria ao problema da

linguagem implicaraacute um olhar atento embora breve agrave obra maior do Nietzsche inicial

Tratar-se-aacute nesta parte do trabalho de tentar pensar o traacutegico a partir do pensamento

nietzschiano escusando-nos como tal a participar no extenso debate acerca da justeza

ou falsidade dos pressupostos filoloacutegicos em anaacutelise1 Quer dizer interessa-nos

1 Assim como escreveu Eugen Fink ldquoeacute indiferente se Nietzsche desenha correctamente ou natildeo a imagem da trageacutedia antiga o que importa eacute o facto de ele representar nela na maneira como vecirc a trageacutedia grega pela primeira vez um tema central da sua filosofiardquo Eugen Fink A Filosofia de Nietzsche Editorial Presenccedila 1983 pp 17 cumpre notar natildeo obstante que Nietzsche natildeo eacute o primeiro nem o uacutenico filoacutesofo

3

entender de que forma eacute no e a partir do espiacuterito grego que Nietzsche descobre um

conflito entre aquilo que seria o impulso dionisiacuteaco o subsolo comum a todos os

indiviacuteduos e o impulso apoliacuteneo o mundo ilusoacuterio das formas plaacutesticas mediante o qual

o homem se redimiria do eterno sofrimento do ser Defenderemos que o contraste

entre estes dois impulsos assume o labor de uma filosofia ontoloacutegica uma vez que de

acordo com o esboccedilo que deles Nietzsche delineia a constituiccedilatildeo do homem tendo

como fundo o impulso dionisiacuteaco implica um desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a

sua proacutepria condiccedilatildeo de ser eternamente sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-

ser ou seja o mundo apoliacuteneo de beleza2

Sendo que nos focaremos em absoluto na dicotomia desenvolvida entre Apolo e

Dioniso na secccedilatildeo segunda do primeiro capiacutetulo desta reflexatildeo cumpre alertar natildeo

obstante que o Nascimento da Trageacutedia acompanharaacute declarada ou

subentendidamente a totalidade do presente trabalho Como tal eacute a partir da sua

perspectiva da origem da trageacutedia aacutetica que Nietzsche desenvolve simultaneamente

uma criacutetica agrave modernidade e a proposta de uma metafiacutesica de artista ou seja de uma

explicaccedilatildeo total do mundo segundo categorias esteacuteticas Ora tomando como exemplo

os antigos helenos Nietzsche opotildee o conhecimento traacutegico ie a aceitaccedilatildeo da vida

enquanto fissura que jamais seraacute preenchida enquanto simultaneamente necessidade

e impossibilidade de explicar a unidade do ser agrave adoraccedilatildeo obtusa de uma mesma

ldquoaboacutebada celesterdquo (FETG 18) e aos valores tidos por transcendentais que dessa

adoraccedilatildeo haviam resultado bem como ao excesso de conhecimento histoacuterico no qual a

modernidade repousava evitando assim confrontar-se com a imensa complexidade do

ser e da vida

Determinante na filosofia da linguagem presente nos primeiros escritos de

Nietzsche eacute uma concepccedilatildeo de metaacutefora distinta da outrora desenvolvida por

Aristoacuteteles Segundo o autor os processos mediante os quais numa primeira instacircncia

um estiacutemulo nervoso se converte numa imagem e numa segunda instacircncia essa

imagem se converte numa palavra num som seriam ambos metafoacutericos tratar-se-ia de

moderno a considerar a trageacutedia grega e o traacutegico como tema filosoacutefico (Hegel Schelling Houmllderlinhellip) veja-se a este respeito M S Silk amp J P Stern Nietzsche on Tragedy Cambridge University Press 1981 2 Cf Eugen Fink op cit pp 17 ndash 18 ldquoo tema esteacutetico adquire a condiccedilatildeo de um princiacutepio ontoloacutegico fundamental [hellip] Nietzsche serve-se de categorias esteacuteticas para fundamentar a sua visatildeo fundamental do serrdquo

4

transposiccedilotildees entre esferas completamente distintas Assim presumir-se uma total

correspondecircncia entre as palavras e as coisas implicava esquecer aquele processo

duplamente metafoacuterico Apenas mediante o esquecimento da geacutenese metafoacuterica das

palavras entatildeo poderia o homem acreditar na adequaccedilatildeo da linguagem na

representatividade daquelas na verdade dos predicados que mais natildeo seria no fundo

que um esconder uma coisa por detraacutes de um arbusto e nesse exacto lugar procuraacute-la

e encontraacute-la (VM 223) Cabe pocircr em relevo por conseguinte a importacircncia que o

esquecimento assume na filosofia em anaacutelise em primeiro lugar permite que a imagem

passe por representaccedilatildeo fiel do estiacutemulo nervoso e o som por seu turno por

representaccedilatildeo fidedigna daquela imagem em segundo lugar permite que o homem

acredite que tem acesso agraves coisas e por conseguinte possa ser feliz Como

conseguiriacuteamos noacutes ser felizes se assumiacutessemos que natildeo conhecemos as coisas que natildeo

conhecemos o mundo a vida que natildeo nos conhecemos a noacutes mesmos Como pode

algueacutem ser feliz se estiver consciente de que as verdades natildeo passam de ilusotildees que o

homem esquece serem ilusotildees Ou por outra parte como Nietzsche aliaacutes proporaacute

natildeo poderaacute ser a aceitaccedilatildeo da nossa condiccedilatildeo necessariamente insuficiente um caminho

possiacutevel para a felicidade Mais ainda e se natildeo pudesse ser de outra maneira Ao tentar

responder a estas perguntas o autor seraacute forccedilado a distinguir dois tipos de homem que

noacutes analisaremos com maior pormenor no final do segundo capiacutetulo desta reflexatildeo

Sobre o papel da verdade na filosofia inicial de Nietzsche muito tem sido escrito

e discutido Se por um lado natildeo trataremos no decorrer desta reflexatildeo dos diferentes

pontos de vista que o problema da verdade contextualizado no pensamento primordial

de Nietzsche tem suscitado3 dado natildeo ser esse o propoacutesito deste estudo natildeo

3 Cumpre destacar natildeo obstante alguns dos autores que mais contribuiacuteram para a anaacutelise do problema da verdade na filosofia de Nietzsche Assim por entre os ldquotradicionaisrdquo veja-se Walter Kaufmann Nietzsche Philosopher Psychologist Antichrist Princeton University Press 2008 - sobre a influecircncia da perspectiva de Kaufmann na interpretaccedilatildeo norte-americana do primeiro Nietzsche escreve OrsquoBrien que teraacute sido ldquoquase completamente dominanterdquo (cf Cruise Conner OrsquoBrien ldquoThe Gentle Nietzscheansrdquo The New York Review of Books 15 nordm 8 (Nov 5 1970) 12 ndash 16) ver tambeacutem John Wilcox Truth and Value in Nietzsche A Study of His Metaethics and Epistemology University of Michigan Press 1974 e Martin Heidegger Nietzsche Translated from the German by David Farrell Krell HarperCollins Publishers 1991 em relaccedilatildeo agrave perspectivas mais recentes ldquonatildeo-tradicionaisrdquo destaca-se Danto Nietzsche as Philosopher Columbia University Press Expanded edition 2005 Jacques Derrida Spurs Nietzsches StylesEacuteperons Les Styles de Nietzsche translated by Barbara Harlow University of Chicago Press 1981 Bernd Magnus Nietzschersquos Existential Imperative Bloomington Indiana University Press 1978 Paul de Man Allegories of Reading Yale University Press 1979 e Sarah Kofman Nietzsche and Metaphor Stanford University Press 1993

5

deixaremos por outro lado de desenvolver todo o trabalho agrave volta de uma perspectiva

concreta e particular sobre esse problema Nem o poderiacuteamos fazer uma vez que se

trata de uma questatildeo central no estudo da metaacutefora e do esquecimento

Ora notaraacute o leitor que subjacente a tudo o que ateacute agora foi dito estaacute uma

perspectiva da constituiccedilatildeo do Humano que natildeo tem acesso agraves laquocoisas em siraquo e que

constroacutei um mundo de formas apoliacuteneas no qual redime o seu proacuteprio ser enquanto

capacidade mutilada e insuficiente de conhecer-se a si mesmo Quer dizer subjaz agrave

filosofia da linguagem nietzschiana como defendiacuteamos nas primeiras linhas desta

introduccedilatildeo uma percepccedilatildeo da vida e do homem em relaccedilatildeo com a vida

manifestamente influenciada pelos gregos preacute-socraacuteticos e nestes em particular pela

proximidade do autor aos fragmentos de Heraclito de Eacutefeso Numa oacuteptica retrospectiva

olhando mais tarde o Nascimento da Trageacutedia o proacuteprio Nietzsche escreveria

Antes de mim natildeo haacute essa transposiccedilatildeo do dionisiacuteaco para um pathos filosoacutefico falta a

sapiecircncia traacutegica ndash procurei em vatildeo indiacutecios dela mesmo nos grandes vultos gregos da

filosofia nos dois seacuteculos anteriores a Soacutecrates Restou-me uma duacutevida quanto a

Heraclito em cuja proximidade me sinto em geral mais agasalhado e bem-disposto que

em qualquer outro siacutetio A afirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o

elemento decisivo numa filosofia dionisiacuteaca a aprovaccedilatildeo do antagonismo da guerra o

devir com radical rejeiccedilatildeo ateacute mesmo do conceito de laquoserraquo - eacute aiacute que de qualquer modo

devo reconhecer o que mais afinidades tem comigo entre tudo aquilo que ateacute ao

presente se pensou A doutrina do laquoeterno retornoraquo - isto eacute de uma circulaccedilatildeo

impreteriacutevel e repetida infinitamente de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra

podia afinal jaacute ter sido ensinada por Heraclito4

Em suma o que estaacute em causa nesta reflexatildeo eacute entatildeo uma anaacutelise da vida

enquanto parte da transitoriedade de tudo e do devir enquanto parte constitutiva da

vida e do homem Defenderemos que esta perspectiva do primeiro Nietzsche tem vaacuterios

pontos de contacto com a filosofia presente nos fragmentos heracliacuteticos apesar de natildeo

se corresponderem ambas as filosofias na sua totalidade Natildeo se trataraacute no entanto

nas paacuteginas que se seguem de uma descriccedilatildeo detalhada e minuciosa do que julgamos

4 Friedrich Nietzsche Ecce Homo Obras escolhidas de Nietzsche Traduccedilatildeo de Paulo Osoacuterio de Castro Ciacuterculo de Leitores 1997 pp 175-176

6

unir eou separar os autores em questatildeo mas sim de perceber qual a concepccedilatildeo

nietzschiana da vida e da relaccedilatildeo do homem com ela tendo em conta em especial a

peculiar concepccedilatildeo do tempo e do devir ldquoa doutrina da lei no devir e do jogo na

necessidaderdquo (FETG 53) de Heraclito ou seja a concepccedilatildeo da vida enquanto parte de

um jogo ldquoo jogo da grande crianccedila universal o jogo de Zeusrdquo (FETG 52)

Esta concepccedilatildeo do Homem note-se fundamenta-se tambeacutem ela em categorias

conceptuais meramente humanas que o proacuteprio filoacutesofo repetidamente questiona ndash ateacute

o mais leve e insignificante pensamento susteacutem-se na ligaccedilatildeo metafoacuterica de siacutembolos5

Como tal parece-nos de fulcral importacircncia percebermos de que forma a linguagem o

problema da inacessibilidade das coisas e da insuficiecircncia das suas representaccedilotildees

conceptuais inelutavelmente metafoacutericas se entrelaccedila com a filosofia dionisiacuteaca e

como em relaccedilatildeo a estas duas problemaacuteticas aparentemente diacutespares subjaz um

mesmo perspectivismo e um relativismo influenciado segundo tentaremos demonstrar

por uma concepccedilatildeo da intemporalidade dionisiacuteaca enquanto criadora e destruidora

amoral no que agrave temporalidade fugaz e impotente dos indiviacuteduos diz respeito

5 No final do ano de 1870 Nietzsche escrevia ldquoA linguagem a palavra nada para aleacutem de um siacutembolo Pensar ie imaginar conscientemente eacute nada mais do que a realizaccedilatildeo e ligaccedilatildeo de siacutembolos linguiacutesticosrdquo [Die Sprache das Wort nichts als Symbol Denken dh bewuszligtes Vorstellen ist nichts als die Vergegenwaumlrtigung Verknuumlpfung von den Sprachsymbolen] NL 1870 5 [80]

7

I Linguagem e Retoacuterica

I1 Linguagem e Retoacuterica

Segundo Friedrich Nietzsche eacute tido por retoacuterico um livro um autor ou um orador

quando nestes se percepciona uma aplicaccedilatildeo consciente de meios artiacutesticos de

expressatildeo ie quando de forma deliberada e por conseguinte natildeo natural se recorre

a meios de persuasatildeo com o intuito de levar aqueles a quem o discurso eacute dirigido a

partilharem uma determinada opiniatildeo6 Esta concepccedilatildeo do conceito de retoacuterica na qual

estaacute impliacutecita uma consciente e propositada falsa naturalidade do discurso eacute

essencialmente poacutes-socraacutetica Originalmente no entanto os gregos (ateacute mesmo

Aristoacuteteles) tinham por retoacuterica um poder [δύναμις] que Nietzsche traduz por forccedila

[Kraft] inerente agrave linguagem7 O que estaacute em causa quando hoje se fala de retoacuterica eacute

em contraste com os primeiro helenos uma artificialidade do discurso humano a que

Platatildeo no Goacutergias8 chamara κολακεία9 [adulaccedilatildeo] um meio mediante o qual se tenta

de forma enganosa atribuir um conteuacutedo a algo que soacute tem forma Ora como Nietzsche

nota esta concepccedilatildeo de retoacuterica pressupotildee desde logo duas coisas em primeiro lugar

uma avaliaccedilatildeo meramente subjectiva do que eacute natural e do que eacute artificial em segundo

lugar a ideia de que no discurso tido por natural ao contraacuterio do que sucede com o

discurso retoacuterico eacute expectaacutevel uma correspondecircncia necessaacuteria e evidente entre as

palavras e a coisa que lhes eacute imposto representarem Mas eacute necessaacuterio perguntar seraacute

mesmo assim que acontece Seraacute a linguagem ldquonatildeo-retoacutericardquo um espelho capaz de

reproduzir com adequaccedilatildeo a coisa que pretende representar Ou ainda tal como

Nietzsche questiona existe sequer alguma linguagem que natildeo seja retoacuterica A verdade

6 Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language ed amp transl by S L GilmanC BlairD J Parent Oxford University Press 1989 pp 7-8 7 Cf Ceacuteline Denat ldquoTo speak in imagesrdquo The status of rhetoric and metaphor in Nietzschersquos new language pp 16 8 Platatildeo Goacutergias Introduccedilatildeo traduccedilatildeo do Grego e notas de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio Ediccedilotildees 70 2011 463b3-4 e 466a5 9 No mesmo Goacutergias pode ler-se o seguinte sobre o termo κολακεία ldquoA isto chamo eu adulaccedilatildeo que considero uma coisa vergonhosa [hellip] porque visa o agradaacutevel sem a preocupaccedilatildeo do melhor E sustento que ela natildeo eacute uma arte mas uma actividade empiacuterica porque natildeo tem na sua base um princiacutepio racional que permita justificar as vaacuterias formas do seu procedimento no que respeita agrave sua natureza e agraves suas causas Ora eu natildeo chamo arte a uma actividade que natildeo esteja fundada na razatildeordquo Ibidem 464e3-465a7

8

eacute que nem mesmo Soacutecrates no Craacutetilo10 consegue concluir acerca da origem justeza e

adequaccedilatildeo dos nomes Na perspectiva de Nietzsche por seu turno as proacuteprias ldquopalavras

natildeo passam de siacutembolos para as relaccedilotildees das coisas entre si e connoscordquo siacutembolos que

ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo (FETG 69) O mesmo eacute dizer pois que a

representatividade expectaacutevel das palavras eacute segundo o filoacutesofo uma farsa e que a

imagem reflectida no espelho natildeo pode ser tomada pela laquocoisa em siraquo que essa mesma

imagem pretende representar ou seja que no final de contas natildeo haacute qualquer

distinccedilatildeo entre o discurso natural e o discurso artificial ndash toda a linguagem eacute por assim

dizer retoacuterica Nas palavras de Nietzsche

Natildeo eacute no entanto difiacutecil provar que o que tem sido chamado ldquoretoacutericordquo enquanto um

meio artiacutestico consciente estava jaacute activo na linguagem e na sua vontade enquanto um

meio artiacutestico inconsciente e tanto assim eacute que a retoacuterica eacute um desenvolvimento guiado

pela luz do entendimento dos meios artiacutesticos que jaacute estatildeo situados na linguagem Natildeo

haacute pois absolutamente nenhuma ldquonaturalidaderdquo natildeo-retoacuterica da linguagem agrave qual o

homem possa apelar a linguagem eacute ela mesma o resultado de artes puramente

retoacutericas11

Assim a distinccedilatildeo que a filosofia poacutes-socraacutetica fez entre um tipo de discurso tido

por natural proacuteprio e um outro artificial tende a sustentar uma concepccedilatildeo de retoacuterica

errada da qual se concebem duas perspectivas igualmente nefastas em relaccedilatildeo ao uso

desta techne na primeira a retoacuterica eacute completamente afastada do acircmbito filosoacutefico

onde se procuram a claridade e adequaccedilatildeo do discurso na segunda a retoacuterica eacute tida

como uma ferramenta secundaacuteria ao uso da filosofia12 Esta uacuteltima percepccedilatildeo era a de

Platatildeo que apesar de reduzir a retoacuterica a uma mera κολακεία agrave semelhanccedila da cozinha

da sofiacutestica e da toilette [κομμωτική]13 natildeo deixava de reconhecer nela a capacidade o

10 Platatildeo Craacutetilo Versatildeo do grego prefaacutecio e notas pelo P Dias Palmeira Livraria Saacute Da Costa Editora Lisboa 1963 pp 159 11 ldquoEs ist aber nicht schwer zu beweisen dass was man als Mittel bewusster Kunst ldquorhetorischrdquo nennt als Mittel unbewusster Kunst in der Sprache und deren Werden thaumltig waren ja dass die Rhetorik eine Fortbildung der in der Sprache gelegenen Kunstmittel ist am hellen Lichte des Verstandes Es giebt gar keine unrhetorische ldquoNatuumlrlichkeitrdquo der Sprache an die man appelliren koumlnnte die Sprache selbst ist das Resultat von lauter rhetorischen Kuumlnstenrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 20 12 Veja-se Ceacuteline Denat op Cit pp 13-14 13 Veja-se Platatildeo Goacutergias op Cit pp 61-63 (464b4-466a3) Natildeo eacute faacutecil traduzir o termo grego κομμωτική Em relaccedilatildeo agraves traduccedilotildees para a liacutengua inglesa podemos tambeacutem observar alguma

9

poder de mudar a alma dos homens14 e como tal alguma utilidade se utilizada ao

serviccedilo do bem e da filosofia Claro estaacute tal concepccedilatildeo de retoacuterica aleacutem de a relegar

para um papel secundaacuterio no pensamento filosoacutefico pressupunha que agrave filosofia seria

acessiacutevel uma outra linguagem por seu turno correcta apropriada e verdadeira E eacute

exactamente este ponto como identificaacutemos atraacutes que a oacuteptica Nietzschiana contesta

a existecircncia de uma linguagem que permita o acesso a mais do que impulsos ie agrave laquocoisa

em siraquo linguagem da qual segundo o ponto de vista moderno acabaria por derivar a

retoacuterica

Aprofundando um pouco as nossas leituras de Nietzsche notamos que o que

estaacute em causa para o autor eacute numa primeira instacircncia que o homem natildeo percepciona

coisas ou eventos mas apenas impressotildees imagens que satildeo dadas em estiacutemulos

sensoriais por isso o homem comunica apenas coacutepias imageacuteticas das coisas e dos

eventos A sensaccedilatildeo por sua vez evocada mediante um impulso nervoso natildeo

transporta consigo a laquocoisa em siraquo pelo contraacuterio a sensaccedilatildeo faz-se representar por

meio de uma imagem15 E eacute apenas a isso que o homem tem acesso agrave imagem das

coisas nunca agraves coisas Natildeo satildeo pois segundo o autor as coisas que passam para a

nossa consciecircncia mas sim a forma como nos colocamos diante delas o pithanon Por

conseguinte como estaacute bem de ver a linguagem que utilizamos as palavras a que

recorremos para nos expressarmos natildeo podem referir-se agraves coisas que nos satildeo e

permaneceratildeo para sempre cognoscitivamente inacessiacuteveis mas somente agraves suas

imagens Assim sendo as palavras acabam por ser uma espeacutecie de imagens imagens

sonoras [Tonbild] das jaacute de si imagens das coisas e o intuito da linguagem agrave semelhanccedila

disparidade William Whewell por exemplo tradu-lo como cosmetic (Cf The Platonic Dialogues For English Readers Vol II Antisophist Dialogues Cambridge Macmillan and Co London 1860) Cope como personal embellishment (Cf Platorsquos Gorgias with an introductory essay containing a summary of the argument London George Bell and Sons York Street Convent Garden 1883) e Taylor como bodily adornment (Cf Plato The Man and His Work Methuen amp Co London 1926) A melhor explicaccedilatildeo para o que estaacute em causa eacute no entanto a dada pelo proacuteprio autor ldquopraacutetica malfazeja e enganadora vil e indigna de um homem livre que ilude com aparecircncias cores cuidados da pele e do vestuaacuterio a tal ponto que interessadas em exibir uma beleza artificial as pessoas descuram a beleza natural proporcionada pela ginaacutesticardquo (465b2-6) Neste trabalho optaacutemos por utilizar a traduccedilatildeo de Manuel de Oliveira Pulqueacuterio presente no livro acima citado 14 Veja-se E R Dodds Plato Gorgias A revised text with Introduction and Commentary by E R Dodds Oxford University Press 1959 p 10 ldquoPlato never doubted that the spoken word could laquochange the souls of menraquo [hellip] Nor did Plato think this skill unimportant [hellip] But he thought the kind of education offered by Gorgias both inadequate and dangerousrdquo 15 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22-23 Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira pp 218-219

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do que eacute atribuiacutedo agrave retoacuterica natildeo eacute nem poderia ser originar uma episteme que nos eacute

ininteligiacutevel mas apenas uma doxa uma opiniatildeo

Em vez de a coisa a sensaccedilatildeo percepciona apenas um sinal Esse eacute o primeiro aspecto

linguagem eacute retoacuterica porque deseja corresponder apenas a uma doxa natildeo a uma

episteme16

Assim se haacute vaacuterias formas de tropus acessiacuteveis ao discurso humano ou seja

vaacuterios meios artiacutesticos de persuasatildeo ao serviccedilo da retoacuterica as proacuteprias palavras acabam

por ser a primeira dessas formas (sendo que soacute depois se seguem a metaacutefora neste caso

entendida ainda no sentido aristoteacutelico e a metoniacutemia) Uma vez que na proacutepria

fundaccedilatildeo da linguagem o homem parte de um estiacutemulo nervoso para uma causa que

lhe eacute exterior aplicando por conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente17 Nietzsche

defende que natildeo pode ser expectaacutevel a constituiccedilatildeo de uma certeza tampouco de uma

verdade num sistema que se constroacutei no fundo sobre designaccedilotildees arbitraacuterias18 O que

estaacute em causa em suma eacute que os tropos ie os significados natildeo literais natildeo satildeo

ocasionalmente acrescentados ao discurso de um homem natildeo satildeo meramente um

recurso artiacutestico ao serviccedilo da retoacuterica mas consistem na proacutepria natureza das palavras

Consequentemente do ponto de vista de Nietzsche natildeo faz qualquer sentido falar-se

de um ldquosignificado adequadordquo das palavras ou de uma ldquolinguagem apropriadardquo uma

vez que aquilo que noacutes temos por linguagem eacute na verdade nada mais do que figuraccedilatildeo

e como observa Matthew Rampley qualquer proposiccedilatildeo relativa ao mundo natildeo passa

16 ldquoStatt der Dinge nimmt die Empfindung nur ein Merkmal auf Das ist der erste Gesichtspunkt die Sprache ist Rhetorik denn sie will nu reine δόξα keine επιστήμη uumlbertragenrdquo Ibidem 17 O princiacutepio da razatildeo suficiente remonta agrave filosofia de Schopenhauer nesta ldquoo princiacutepio da razatildeo suficiente em geral explica-se pelo facto de sempre e em todo o lado qualquer coisa soacute ser por intermeacutedio de outrardquo (Schopenhauer G 158 traduzido por Luiacutes de Sousa em O autoconhecimento da vontade Um estudo sobre o conceito de subjectividade no sistema filosoacutefico de Schopenhauer Tese de Doutoramento em Filosofia Antropoloacutegica Universidade Nova de Lisboa Junho de 2013 pp 17) o que estaacute em causa para Schopenhauer natildeo eacute tanto uma propriedade das coisas em geral mas sim o princiacutepio mais fundamental do nosso modo de conhecer as coisas segundo o qual todas as coisas tecircm de ter uma razatildeo suficiente da sua existecircncia Como nota Luiacutes de Sousa ldquoalgo natildeo pode ser a razatildeo suficiente de outra coisa se esta natildeo se lhe seguir necessariamente isto eacute quando aquela estaacute ldquopostardquo a consequecircncia eacute inevitaacutevel e eacute necessariamente aquelardquo neste caso quando o homem passa de um estiacutemulo nervoso para uma causa de outra esfera que lhe eacute exterior viola o princiacutepio atraacutes explanado na medida em que natildeo haacute uma relaccedilatildeo de necessidade entre as duas esferas sendo que ldquoo conceito de uma razatildeo suficiente que fosse contingente eacute internamente contraditoacuteriordquo (Luiacutes de Sousa op Cit pp 18) 18 Veja-se Friedrich Nietzsche Acerca da Verdade e da Mentira Reloacutegio DrsquoAacutegua 1997 pp 219 Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

11

de uma mera traduccedilatildeo19 Demonstra-o aliaacutes a existecircncia de uma multiplicidade de

liacutenguas se houvesse uma linguagem apropriada natildeo seriam necessaacuterias tantas liacutenguas

Nas palavras de Nietzsche ldquoComparadas entre si as diferentes liacutenguas mostram que nas

palavras nunca eacute a verdade que importa nem a expressatildeo adequada caso contraacuterio

natildeo existiriam tantas liacutenguasrdquo (VM 219)20

Eacute importante neste momento notar que o foco de Nietzsche no estudo do

conceito de retoacuterica resulta natildeo numa criacutetica ao conceito per si mas sim numa criacutetica agrave

filosofia metafiacutesica que - juntamente com a cultura moderna - julga ter ao seu alcance

uma linguagem apropriada um espelho capaz de reproduzir mais do que imagens ou

seja mais do que simples representaccedilotildees Seguindo o mesmo raciociacutenio Nietzsche

defende que quando se fala de pureza da linguagem fala-se tatildeo-somente do estilo de

linguagem que eacute adoptado pela sociedade mais educada ou seja pela aristocracia21 De

acordo com a perspectiva nietzschiana os sentimentos de pureza e de claridade de uma

linguagem satildeo formados gradualmente sem disso haver consciecircncia acompanhando o

ritmo e o sentido das escolhas feitas pela aristocracia pelas castas mais educadas das

sociedades altas correspondendo agrave semelhanccedila dos dialectos a um grupo limitado de

pessoas E eacute exclusivamente neste sentido que o ouvinte percepciona uma linguagem

ldquonaturalrdquo ldquopurardquo e ldquoapropriadardquo sem que na verdade esta ofereccedila uma maior

representatividade daquilo que estaacute em causa ou um qualquer acesso agrave essecircncia das

coisas ditas

Em relaccedilatildeo agrave ldquopurezardquo esta diz respeito apenas agravequeles com um sentido linguiacutestico muito

desenvolvido que especialmente nas sociedades grandes correspondem aos aristocratas

e educados que estabelecem o que eacute tido como provinciano como um dialecto e o que

eacute considerado normal isto eacute ldquopurezardquo corresponde positivamente ao que mediante o

19 Matthew Rampley Nietzsche Aesthetics and Modernity Cambridge University Press 2000 pp 21 20 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoNa diversidade de liacutenguas revela-se imediatamente o facto de que a palavra e a coisa natildeo se cobrem nem completamente nem necessariamente mas que a palavra eacute um siacutembolordquo [In der Vielheit der Sprachen giebt sich sofort die Thatsache kund daβ Wort und Ding sich nicht vollstaumlndig un nothwendig decken sondern daβ das Wort ein Symbol ist] NL 1871 12 [1] e tambeacutem quando na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva Nietzsche nota que ldquoas centenas de liacutenguas diversas correspondemrdquo no final de contas ldquoa necessidades tipicamente estaacuteveis dos homens de tal modo que se se compreendessem essas necessidades natildeo se aprenderia nada de novo atraveacutes do conhecimento das diversas liacutenguasrdquo (CE II 113) 21 Cf Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 23

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uso dos mais educados de uma sociedade recebeu aprovaccedilatildeo ldquoimpurezardquo a tudo o resto

que se destaca22

Como consequecircncia de acordo com a argumentaccedilatildeo de Nietzsche a percepccedilatildeo

de uma linguagem ldquoapropriadardquo acaba por ser o resultado de uma longa e duradoura

convenccedilatildeo que se sustenta e desenvolve sobre o esquecimento da origem e natureza

da linguagem Este esquecimento que seraacute estudado com maior minuacutecia no desenrolar

deste estudo eacute por um lado necessaacuterio agrave organizaccedilatildeo das sociedades e agrave sobrevivecircncia

de qualquer cultura na medida em que possibilita a crenccedila dos homens na adequaccedilatildeo

da sua comunicaccedilatildeo e implica por outro lado uma acccedilatildeo uma forccedila ou seja o poder

de uma linguagem mediante a retoacuterica induzir as formas de pensar e os valores morais

segundo os quais os homens se regem Assim a arte da persuasatildeo possibilita aos

grandes oradores aos artistas aos escritores e aos pregadores23 agrave semelhanccedila dos

antigos helenos estabelecer padrotildees reinventar a linguagem e ateacute deixar transparecer

uma naturalidade do discurso inelutavelmente inexistente A linguagem eacute entatildeo um

material jaacute preparado do qual o orador dispotildee e eacute a partir deste que o orador com o

seu estilo caracteriacutestico recorrendo agrave ldquoimitaccedilatildeo da naturalidaderdquo como um dos seus

principais meios de persuasatildeo exerce uma arte livre24 Ou seja depois de a comunicaccedilatildeo

haver surgido de uma carecircncia e uma vez estabelecida aquela ldquopurezardquo a forccedila

criadora a ldquoforccedila plaacutesticardquo (CE II 108) que eacute a linguagem irrompe novamente e surgem

novas criaccedilotildees linguiacutesticas como um excesso de forccedila e arte da comunicaccedilatildeo Soacute assim

o ouvinte percepciona a tal ldquonaturalidaderdquo do discurso que no fundo refere-se apenas

agrave uniformidade e conformidade com o que jaacute era entatildeo expectaacutevel em relaccedilatildeo ao tema

em discussatildeo O que estaacute em causa na nossa noccedilatildeo de adequaccedilatildeo de um discurso parece

22 ldquoVon ldquoReinheitrdquo ist nur die Rede bei einem sehr entwickelten Sprachsinn eines Volkes der vor allem in einer grossen Societaumlt unter den Vornehmen und Gebildeten sich festsetzt Hier entscheidet sich was als provinziell als Dialekt und was als normal gilt dh Reinheit ist dann positive der durch den usus sanktionirte Gebrauch der Gebildeten in der Gesellschaft ldquoUnreinrdquo alles was sonst in ihr auffaumllltrdquo Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 26 23 Cf Friedrich Nietzsche A Gaia Ciecircncia Reloacutegio DrsquoAacutegua 1998 pp 269 24 Nas palavras que Nietzsche emprega ldquoo estilo caracteriacutestico eacute o proacuteprio domiacutenio da arte do orador aqui ele pratica uma arte plaacutestica livre a linguagem eacute o seu material que tinha jaacute sido preparado [hellip] Assim na retoacuterica haacute tambeacutem uma ldquoimitaccedilatildeo da naturezardquo enquanto meio baacutesico de persuasatildeordquo [Der charakteristische Stil ist das eigentliche Kunstbereich des Redners hier uumlbt er eine freie plastische Kraft die Sprache ist fuumlr ihn ein bereites Material [hellip] Es giebt also auch in der Rhetorik eine ldquoNachahmung der Naturrdquo als Hauptmittel zu uumlberzeugen] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 34-36

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resumir-se por conseguinte agrave conformidade deste com o nosso pithanon a arte do

orador passa exactamente por entender de que forma o ouvinte se relaciona com as

determinaccedilotildees em causa e utilizar para cada situaccedilatildeo as palavras e as maneiras

[Manieren] mais adequadas

Assim sendo do ponto de vista de Nietzsche se a um homem fosse possiacutevel

delinear uma genealogia da linguagem25 este observaria que a proacutepria natureza daquela

eacute necessariamente retoacuterica na medida em que natildeo tem nem pode ter acesso agrave

essecircncia das coisas e que por conseguinte a linguagem tal qual a retoacuterica procura natildeo

mais do que persuadir isto eacute originar uma doxa Servindo-se desta linguagem a

aristocracia as castas mais educadas das sociedades e os bons oradores mediante

meios artiacutesticos de persuasatildeo estabelecem aquilo que deve ser tido como apropriado e

verdadeiro e aquilo que deve ser crido enquanto falso e impuro sendo que segundo o

raciociacutenio nietzschiano natildeo existe na verdade qualquer diferenccedila26 entre o discurso

puro e o impuro da mesma forma que natildeo existe uma linguagem retoacuterica e uma outra

por sua vez ldquonatildeo-retoacutericardquo A linguagem e o esquecimento assumem desde a geacutenese

do pensamento filosoacutefico do jovem professor de filologia um papel activo na criaccedilatildeo

dos valores morais no sentido em que distinguem mediante uma longa convenccedilatildeo o

que deve ser tido por correcto e incorrecto podem representar tambeacutem numa

dimensatildeo muito peculiar que estudaremos no desenvolver desta reflexatildeo um sinal de

decadecircncia da modernidade e da cultura historicista na medida em que segundo

Nietzsche a par da crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem que para subsistir requeria que

o homem esquecesse a sua geacutenese e de um excesso de sentido histoacuterico estava um

sinal de fraqueza dos homens que mediante estes artifiacutecios evitavam confrontar-se

com a evidecircncia da insuficiecircncia da sua condiccedilatildeo para conseguirem chegar agrave verdade

25 O conceito de genealogia eacute um conceito tardio na obra de Nietzsche assumindo particular relevo numa fase distinta daquela que agora estudamos assume natildeo obstante uma interpretaccedilatildeo particular que conveacutem explicitar genealogia natildeo trata meramente de uma procura ou mesmo descoberta das origens de algo mas tambeacutem de uma procura ou descoberta do valor dessa origem Quer isto dizer que neste caso ao referirmo-nos a uma genealogia da linguagem ou das palavras esta implica natildeo somente que se desenhe os seus passados epistemoloacutegicos mas tambeacutem o valor a necessidade que essas palavras e a proacutepria linguagem teriam vindo colmatar Sobre o significado do termo laquogenealogiaraquo na filosofia de Nietzsche pese embora interpretado de um modo mais geral veja-se Gilles Deleuze Nietzsche e a Filosofia Reacutes-Editora pp 5-8 cf igualmente Nietzsche and Metaphor op Cit pp 120 ndash 145 26 Para dizer a verdade haacute uma diferenccedila e eacute exactamente a que estamos a expor trata-se de uma diferenccedila meramente formal e eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia

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I2 Dioniso e Apolo

O que se encontra subjacente ao problema da linguagem eacute pelo que tentaacutemos

demonstrar na secccedilatildeo antecedente uma impossibilidade de o homem aceder agrave laquocoisa-

em-siraquo Ora eacute no Nascimento da Trageacutedia primeiro livro publicado por Nietzsche

edificado em torno de uma antiacutetese entre dois deuses gregos Dioniso e Apolo que o

jovem filoacutelogo fazendo uso de inegaacuteveis capacidades literaacuterias e poeacuteticas aborda com

maior profundidade e abrangecircncia o problema em causa Por este motivo parece-nos

ser de manifesta utilidade estudarmos com detalhada incidecircncia a simbologia daqueles

deuses bem como o papel que a ambos Nietzsche dedica na geacutenese do seu pensamento

filosoacutefico Regressemos pois ao mito como o filoacutesofo sugere natildeo apenas no

Nascimento da Trageacutedia mas tambeacutem nos textos de Basileia27

Com o intuito de relatar a origem da trageacutedia aacutetica o autor apresenta-no-la

segundo algumas das criacuteticas que ao Nascimento da Trageacutedia tecircm sido feitas com

limitada evidecircncia histoacuterica e literaacuteria e embrenhada na filosofia de Schopenhauer e na

muacutesica de Wagner28 tendo o texto como consequecircncia sido alvo de devastadoras

criacuteticas aquando da sua publicaccedilatildeo (em particular por parte de Ulrich Von Wilamowitz-

Moellendorff que mais tarde se tornaria um dos principais classicistas do final do seacuteculo

XIX)29 Natildeo obstante o parco interesse filoloacutegico que esta obra possa ter o Nascimento

da Trageacutedia encerra a partir da consideraccedilatildeo dos antigos helenos quiccedilaacute a maior

contribuiccedilatildeo do pensamento nietzschiano para o problema do acesso humano agrave

essecircncia das coisas a que Nietzsche outorga vaacuterios nomes como ldquocoisa em sirdquo ldquouno

primordialrdquo ldquogeacutenio da espeacutecierdquo30 e ldquoDionisordquo entre outros e agrave qual contrapotildee o impulso

27 Sobre a importacircncia deste ldquoregresso ao mitordquo para o entendimento da filosofia primeira de Friedrich Nietzsche escreve Antoacutenio Ferro ldquoEacute por isso necessaacuterio um certo entendimento do que eacute o mito para poder saber do que fala Nietzsche quando nesses escritos faz uso desse temo e para se compreender o seu lugar numa filosofia de futuro ou melhor numa filosofia de um novo tempo que haacute-de vir e de que o filoacutesofo se faz o aacuteugure e o adivinho mas tambeacutem o profetardquo Antoacutenio Ferro A Metafiacutesica de Artista e o Pessimismo Esteacutetico Em o Nascimento da Trageacutedia e Outros Textos do Jovem Nietzsche Tese de mestrado em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1998 pp 171 28 Sobre a influecircncia de Wagner no Nascimento da Trageacutedia escreve Fink ldquoEste texto representa em primeiro lugar uma homenagem a Richard Wagner uma interpretaccedilatildeo dos seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam as trageacutedias antigasrdquo Eugen Fink Nietzschehellip op Cit pp 17 29 Cumpre assinalar que tal criacutetica natildeo eacute unacircnime havendo autores que ao contraacuterio de Wilamowitz vecircem no Nascimento da Trageacutedia um importante contributo filoloacutegico Veja-se a propoacutesito Helmut Heit amp Anthony K Jensen Nietzsche as a Scholar of Antiquity Bloomsbury Academic 2014 30 Uma vez mais tambeacutem o conceito de laquogeacutenio da espeacutecieraquo repetidamente utilizado em toda a obra de Nietzsche tem origem em Schopenhauer em particular na Metafiacutesica do Amor (Cf Arthur Schopenhauer Metafiacutesica do Amor Cadernos Culturais laquoInqueacuteritoraquo nordm 43 Editorial Inqueacuterito Limitada Lisboa) Eacute

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para a aparecircncia Eacute no espiacuterito grego e em particular na trageacutedia aacutetica que Nietzsche

descobre o conflito entre os dois misteriosos princiacutepios que segundo defende

governam a vida humana de um lado o nosso mais iacutentimo ser o subsolo comum a cada

um de noacutes do outro lado o mundo ilusoacuterio das formas e da representaccedilatildeo em que

assenta o nosso conhecimento e eacute a partir deste conflito que o filoacutelogo procura atingir

uma totalidade filosoacutefica31

Assim segundo o mote do proacuteprio autor ldquodepois destes pressupostos e

comparaccedilotildees gerais aproximemo-nos agora dos Gregosrdquo (NT 29) em particular numa

primeira instacircncia do significado de Dioniso e do fenoacutemeno do menadismo na Greacutecia

Antiga tal como foi interpretado seacuteculos mais tarde pelo nosso filoacutesofo uma vez que

tal aproximaccedilatildeo seraacute no nosso entendimento fundamental para que possamos

compreender a perspectiva nietzschiana do que seria a representaccedilatildeo mais fiel do Uno

primordial e em uacuteltima anaacutelise do fundo da vida Ora Dioniso ldquofilho de Zeus [hellip] a

quem gerou um dia Seacutemele a filha de Cadmo assistida no seu parto pela chama do

relacircmpagordquo32 era um deus grego (embora estrangeiro ldquotatildeo grego quanto outros do

panteatildeordquo33) de longos cabelos anelados de modos efeminados e de caracteriacutesticas

orgiacuteacas marcadamente orientais Se por um lado a sua origem espacialmente distante

de Atenas tem servido para perpetuar a falsa imagem de uma Greacutecia serena equilibrada

necessaacuterio entender o que tinha Schopenhauer por laquogeacutenio da espeacutecieraquo uma vez que eacute agrave sua filosofia que Nietzsche o vai requisitar Naquela obra Schopenhauer apresenta o laquogeacutenio da espeacutecieraquo como um instinto intemporal uma vontade da espeacutecie que se sobrepunha agraves vaacuterias vontades individuais dos homens todos eles mortais e fugazes Assim Schopenhauer explica como usando-se do amor o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sem que disso os homens tenham consciecircncia comanda as paixotildees humanas e sexuais em prol de uma jaacute determinada geraccedilatildeo futura O intuito da espeacutecie eacute prolongar-se em existecircncia e por conseguinte o laquogeacutenio da espeacutecieraquo leva a que cada homem procure a mulher que de acordo com o que eacute melhor para a sobrevivecircncia da espeacutecie lhe corresponde Nietzsche em especial no Nascimento da Trageacutedia identifica Dioniso com o laquogeacutenio da espeacutecieraquo sendo Dioniso o impulso que nos guia sem que disso estejamos conscientes vontade amoral que se sobrepotildee aos espeacutecimes e que sobrevive intemporal agraves mortes destes Cumpre aclarar natildeo obstante que o laquogeacutenio da espeacutecieraquo ldquoSchopenhauerianordquo correspondia aos olhos de Nietzsche a um sinal de baixeza a um instinto sexual cego Em Nietzsche este conceito toma um significado mais vasto a partir de uma identificaccedilatildeo com Dioniso e em particular com a figura do Saacutetiro 31 Numa carta a Paul Deussen em Fevereiro de 1870 Nietzsche escrevia ldquoObservo como os meus esforccedilos filosoacuteficos morais e acadeacutemicos vatildeo no sentido de um uacutenico objecto de que eu possa talvez tornar-me no primeiro filoacutelogo a alcanccedilar a totalidaderdquo Cf Sarah Levine ldquoThe Birth Of Tragedy out of the Spirit of Dance Nietzschean Transitions in Nijinkyrsquos Balletsrdquo Religious Studies Theses Paper 37 2012 32 Euriacutepides As bacantes Ediccedilotildees 70 p 39 Sobre as origens e a importacircncia do deus Dioniso na mitologia grega ver entre muitos outros Walter F Otto Dionysus Myth and Cult Indiana University Press 1965 C Kereacutenyi Dionysos Archetypal Image of Indestructible Life Princeton University Press 1976 33 Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismo na Literatura Grega Dissertaccedilatildeo de Mestrado apresentada ao Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa 1989 p 9

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e racional por outro lado acaba por ser essa mesma distacircncia que permite a Dioniso

instalar-se na polis sendo que eacute ldquoenquanto outro espeacutecie de culto marginal

indispensaacutevel agrave identidade e sobrevivecircncia da cidade que esta [Atenas] o aceita

oficialmente como o demonstra o calendaacuterio das festas que lhe satildeo dedicadasrdquo34 A este

deus sabemos hoje foram prestados ldquode todos os confins do mundo antigordquo (NT 30) -

Tebas Opus Melos Peacutergamo Priene Rodes35 ndash cultos bienais de iacutendole sexual e

orgiacuteaca Estes estranhos cultos ao que se sabe eram compostos por trecircs fases Neles

as mulheres conhecidas por meacutenades ou por bacantes comeccedilavam por entrar e

mergulhar nas profundidades de uma montanha numa fase do ritual a que se chamava

oreibasia subindo ateacute ao seu cume36 sob o som de tamboris e agrave escassa luz provinda de

algumas tochas A segunda fase do ritual o sparagmos passava pelo sacrifiacutecio de um

animal (normalmente um bode um dos principais siacutembolos de Dioniso) que as bacantes

cortavam em pedaccedilos despedaccedilavam e rasgavam com as unhas e os dentes comendo-

o ainda cru na terceira e uacuteltima fase conhecida por omofagia

Sendo certo que o fenoacutemeno do dionisismo natildeo se resume do ponto de vista

nietzschiano aos rituais ldquoquase-baacuterbarosrdquo que a este deus eram prestados a sua anaacutelise

natildeo deixa de nos ajudar a entender o proacuteprio ldquodisciacutepulo do filoacutesofo Dionisordquo37 e de que

forma surgira nos Gregos ldquoaquele povo tatildeo sensiacutevel aos estiacutemulos tatildeo impulsivo nos

apetites tatildeo uacutenico na sua capacidade para o sofrimentordquo (NT 35) a necessidade do deus

Apolo ie de um mundo de sonhos e aparecircncias A difiacutecil pergunta agrave qual o texto tenta

responder ldquoo que eacute o dionisiacuteacordquo eacute merecedora de um olhar cuidado e atento que natildeo

deveraacute pois cingir-se agraves tendecircncias orgiacuteacas daqueles cultos bienais Como Nietzsche

em retrospectiva escreveria no prefaacutecio de 188638 eacute no Nascimento da Trageacutedia que

ldquose anuncia quiccedilaacute pela primeira vez um pessimismo laquopara aleacutem do bem e do malraquordquo e

34 Ibidem 35 Veja-se E R Dodds Os Gregoshellip op cit pp 289 Nas palavras de Nietzsche tais ldquofestas dionisiacuteacasrdquo deram-se ldquode Roma a Babiloacuteniardquo (NT 30) 36 Pausacircnias conta que as bacantes subiam ateacute ao cume do Parnasso que tem cerca de 2500 metros de altura Como Dodds explica estes rituais ocorriam agrave noite em pleno Inverno e tinham de envolver bastante desconforto e algum risco Plutarco descreve mesmo uma situaccedilatildeo em que as bacantes teriam sido isoladas por uma tempestade de neve sendo que teria sido necessaacuterio o envio de uma equipa de socorro Ver E R Dodds Os Gregoshellip op Cit pp 290 37 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 111 38 A primeira ediccedilatildeo do Nascimento da Trageacutedia data de 1872 A uacuteltima ediccedilatildeo autorizada por Nietzsche data no entanto de 1886 e o corpus desta eacute idecircntica a uma ediccedilatildeo revista e impressa em Fevereiro de 1874 por Fritzsch mas apenas disponibilizada ao puacuteblico em 1876 por Schmeitzner A ediccedilatildeo de 1886 comporta ao contraacuterio das anteriores o prefaacutecio acima citado

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eacute no dualismo entre Dioniso e Apolo que encontramos sob influecircncia de

Schopenhauer39 ldquouma filosofia que ousa colocar a proacutepria moral no mundo do

fenoacutemeno fazendo-a descer natildeo apenas para o meio dos laquofenoacutemenosraquo (no sentido do

terminus technicus idealista) mas para o meio das laquoilusotildeesraquo enquanto aparecircncia

alucinaccedilatildeo erro interpretaccedilatildeo arranjo arterdquo (NT 14) Sob este mundo dos

laquofenoacutemenosraquo das laquoilusotildeesraquo e da aparecircncia onde Nietzsche potildee natildeo apenas a moral mas

tambeacutem o conhecimento e a linguagem sob esta ldquosuperfiacutecie belardquo o filoacutesofo destapa

um ldquofundo aterradorrdquo40 o fundo dionisiacuteaco Este impulso este ldquovoluptuoso

arrebatamentordquo (NT 27) corresponderia a uma afirmaccedilatildeo total da vida incluindo todos

os seus dissabores e sofrimentos que o homem natildeo era capaz de suportar Da

brutalidade desta afirmaccedilatildeo surgiria numa primeira instacircncia a necessidade de um

mundo de sonhos e ilusotildees41 tal ldquocomo as rosas brotam de arbustos espinhososrdquo (NT

35) um laquoveacuteu de Mayaraquo42 em cuja veracidade e realidade o homem cresse para

39 ldquoThat Nietzsche presents them [the Apollonian and the Dionysian] not just as phenomena peculiar to classical Greek culture but as universal human tendencies and moreover as tendencies that address the fundamental problems of the suffering insignificance and intolerability of human existence shows Schopenhauerrsquos influence [hellip]It was the confluence of what Nietzsche took to be at the core of both Greek culture and Schopenhauerrsquos philosophy that furnished a powerful impetus for his first book and the subsequent development of his philosophyrdquo Ivan Soll ldquoSchopenhauer as Nietzschersquos lsquoGreat Teacherrsquo and lsquoAntipodersquordquo The Oxford Handbook of Nietzsche Oxford University Press 2013 p 169 Sobre Nietzsche e Schopenhauer ver tambeacutem entre muitos outros Luis de Sousa ldquoKnowledge Truth and the Thing-in-itself The Presence of Schopenhauerrsquos Transcendental Idealism in Nietzschersquos On Truth And Lie in an Extra-Moral Sense (1872)rdquo Christian J Emden Nietzsche on Language Consciousness and the Body University of Illinois 2005 pp 32-60 Sobre Nietzsche e a trageacutedia grega Dioniso e Apolo ver tambeacutem M S Silk amp J P Stern Nietzsche onhellip op Cit Joseacute Pedro Serra Pensar o Traacutegico Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia Dezembro de 2006 pp 19-70 (em especial pp 53 e pp 54) Joseacute Pedro Serra ldquoLuz e Trevas nos Rituais de Dionisordquo Departamento de Estudos Claacutessicos da Faculdade de Letras de Lisboa Joseacute Pedro Serra Dioniso Aspectos do Dionisismohellip op cit Eugen Fink op Cit pp 14-43 Gilles Deleuze op Cit pp 5-59 A H J Knight Some Aspects of the Life and Work of Nietzsche and particularly of his connection with Greek Literature and Thought Cambridge University Press 1933 pp 67-92 Victor Manuel Gonccedilalves Figuras do Dionisiacuteaco na Filosofia de Nietzsche Tese de Mestrado em Esteacutetica e Filosofia da Arte Universidade de Lisboa Faculdade de Letras 2004 40 Nas palavras de Nietzsche ldquoNatildeo haacute nenhum belo rosto sem um fundo aterradorrdquo [Es gibt keine schoumlne Flaumlche ohne eine schreckliche Tiefe] NL 1970 7 [92] O belo rosto acaba por funcionar pois como uma maacutescara daquele fundo aterrador veja-se sobre este tema Mary Renault The mask of Apollo Pantheon Books New York 1966 veja-se tambeacutem em sentido inverso David Willes Mask and Performance in Greek Tragedy Cambridge University Press 2007 41 O mesmo eacute posto em evidecircncia no seguinte passo ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio da aparecircncia tanto mais me sinto compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o Ser verdadeiro e Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora visatildeo da deleitosa aparecircnciardquo (NT 38) 42 A presenccedila do conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo na filosofia de Nietzsche remonta novamente a Schopenhauer Uma explicaccedilatildeo simples do que Schopenhauer entende por laquoveacuteu de Mayaraquo eacute-nos dada

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seguranccedila da sua proacutepria vida Apolo assume esse papel e ao mundo das aparecircncias

Nietzsche chama apoliacuteneo mera representaccedilatildeo do Uno primordial mediante a qual o

homem se redime do eterno sofrimento do Ser

ldquoQuanto mais me dou conta nomeadamente na natureza daqueles impulsos todo-

poderosos e neles de um ardente desejo de aparecircncia de serem redimidos por meio de

aparecircncia tanto mais me sindo compulsionado a adoptar a hipoacutetese metafiacutesica de que o

Ser verdadeiro e o Uno primordial enquanto entidade eternamente sofredora e

contraditoacuteria necessita simultaneamente para a sua permanente redenccedilatildeo da sedutora

visatildeo da deleitosa aparecircncia essa mesma aparecircncia que noacutes completamente presos nela

e por ela constituiacutedos nos vemos obrigados a sentir como sendo o verdadeiro Natildeo-ser

isto eacute um constante devir em tempo espaccedilo e causalidade por outras palavras como

realidade empiacutericardquo (NT 38)

O contraste entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos assume pois o labor de

uma ontologia43 Os ldquoimpulsos [dionisiacuteacos] todo-poderososrdquo do Ser implicam um

desejo de redenccedilatildeo e reconforto com a sua proacutepria condiccedilatildeo de Ser eternamente

sofredora e contraditoacuteria mediante o natildeo-ser o mundo apoliacuteneo de beleza Assim o

homem completamente preso na aparecircncia e por ela constituiacutedo cegamente crendo

no mundo do constante devir em tempo espaccedilo e causalidade natildeo deixa de senti-la [agrave

aparecircncia que constitui o mundo da realidade empiacuterica] no entanto enquanto natildeo-ser

ldquoPelo menos eacute esta a minha experiecircnciardquo afirma Nietzsche num outro passo ldquoe em

relaccedilatildeo agrave sua frequecircncia e mesmo normalidade eu teria bastantes testemunhos e as

manifestaccedilotildees dos poetas para apresentarrdquo (NT 25-26) Se nos ldquoabstrairmos por um

momento da nossa laquorealidaderaquordquo (NT 38) defende Nietzsche veremos como a nossa

pelo proacuteprio autor da seguinte forma ldquoa obra da Maya eacute precisamente apresentada como sendo este mundo visiacutevel no qual nos encontramos uma aparecircncia sem essecircncia comparaacutevel agrave ilusatildeo oacuteptica e ao sonho um veacuteu que rodeia a consciecircncia humana algo sobre o qual eacute igualmente falso e verdadeiro dizer que eacute bem como que natildeo eacuterdquo Artur Schopenhauer Saumlmtliche Werke ed W von Loumlhneysen StuttgartFrankfurt am Main 1960 t 1 p 567 Numa nota ao conceito de laquoveacuteu de Mayaraquo presente na versatildeo do Nascimento da Trageacutedia que estamos a seguir pode ler-se tambeacutem ldquoEm sacircnscrito macircyacirc significa laquopoder maacutegicoraquo considerado pela filosofia veacutedica como uma ilusatildeo do mundo das aparecircncias obnubilando a identificaccedilatildeo do indiviacuteduo com as formas superiores de conhecimentordquo 43 Veja-se a este propoacutesito Victor Manuel Gonccedilalves op Cit pp 105-108 Maria Joatildeo Mayer Branco Arte e Filosofia no Pensamento de Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa 2010 pp 47 Eugen Fink op Cit pp 21-22

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existecircncia empiacuterica e do mundo em geral eacute resultado de uma representaccedilatildeo e o sonho

uma mera aparecircncia da jaacute de si aparecircncia [der Schein des Scheins] Por outras palavras

Nietzsche esboccedila no Nascimento da Trageacutedia uma espeacutecie de explicaccedilatildeo laquototalraquo do

mundo (uma metafiacutesica como defenderemos um pouco adiante) delineando uma

relaccedilatildeo de necessidade entre o fundo verdadeiro deste e a redenccedilatildeo mediante o sonho

a aparecircncia da aparecircncia ou seja a criaccedilatildeo artiacutestica apoliacutenea A terriacutevel sabedoria de

Sileno que por deter o conhecimento traacutegico da laquocoisa em siraquo perante o rei Midas leva-

o a afirmar que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido natildeo

ser nada ser e a segunda melhor seria morrer em breve (NT 34) demonstra ateacute que

ponto aquele conhecimento seria intoleraacutevel44 e de que forma o proacuteprio laquogeacutenio da

espeacutecieraquo a Vontade a natureza imoral45 necessitava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para a sua proacutepria subsistecircncia Sem essa crenccedila os

espeacutecimes natildeo aguentariam a vida como ela eacute o conhecimento traacutegico ser-lhes-ia

incomportaacutevel Esta eacute a verdadeira tarefa de Apolo tornar ldquoa existecircncia em cada

instante digna de ser vivida incitando a viver o momento proacuteximordquo (NT 171) A proposta

nietzschiana vai natildeo obstante um pouco mais aleacutem da simples redenccedilatildeo do ser

mediante a crenccedila num mundo empiacuterico infundado entendamos trata-se de uma

reconciliaccedilatildeo entre os impulsos dionisiacuteacos e apoliacuteneos agrave semelhanccedila daquela que

outrora criara a trageacutedia aacutetica resultando numa aceitaccedilatildeo e afirmaccedilatildeo traacutegica da

fugacidade da vida da nossa temporalidade finita e da transitoriedade de todas as coisas

mediante a criaccedilatildeo artiacutestica que no limite levaria ateacute Sileno a inverter a sua maacutexima

44 Cf ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) 45 A descriccedilatildeo da Natureza como imoral ou ldquodemoniacuteacardquo eacute um aspecto marcante de toda a obra de Schopenhauer e depois tambeacutem do Nascimento da Trageacutedia Vejamos por exemplo o seguinte excerto do Mundo Como Vontade e Representaccedilatildeo ldquoJunghuhn relata que em Java viu um imenso terreno coberto de esqueletos e pensou que era um campo de batalha poreacutem eram todos eles esqueletos de grandes tartarugas com cinco peacutes de comprimento trecircs peacutes de largura e igual altura Estas tartarugas vecircm do mar para este terreno para porem os seus ovos e nesse momento satildeo apanhadas por catildees selvagens (Canis rutilans) que reunindo esforccedilos as deitam de costas abrem a sua couraccedila inferior rasgam as pequenas escamas das suas barrigas e assim as devoram vivas Eacute frequente que depois disso um tigre ataque os catildees Ora esta miseacuteria repete-se milhares e milhares de vezes todos os anos Eacute para isto que as tartarugas nascem Que culpa tecircm elas para sofrerem desta maneira Para quecirc todo este horror Soacute haacute uma resposta assim se objectiva a vontade de viverrdquo (WWV II sect28 405) Traduzido pelo Professor Dr Joatildeo Constacircncio Note-se no entanto que eacute perante esta imoralidade da natureza que ambos os autores mais diferem Schopenhauer cria a partir dela um pessimismo insuportaacutevel Nietzsche por seu turno parte dela para uma afirmaccedilatildeo total da vida a que mais tarde daria o nome de laquoamor fatiraquo

20

(NT 36) trata-se pois da experiecircncia da infinidade do todo da espeacutecie mediante a

temporalidade fugaz dos espeacutecimes dos indiviacuteduos

Apolo diviniza o princiacutepio ilusoacuterio de individuaccedilatildeo e constroacutei a aparecircncia da

aparecircncia o sonho que liberta o homem do sofrimento e da incomportabilidade da vida

Dioniso pelo contraacuterio regressa agrave unidade primitiva e suprime o indiviacuteduo natildeo mascara

o sofrimento mas afirma-o num prazer superior numa totalidade da vida que deve ser

amada e querida em toda a sua plenitude mas cuja violecircncia e brutalidade seriam

insuportaacuteveis agrave fragilidade dos homens Ambos os deuses eram por um lado

necessaacuterios aos gregos (como Dodds viria a afirmar ldquoDioniso foi na eacutepoca arcaica uma

necessidade social tatildeo grande como Apolo cada um tratava agrave sua maneira as ansiedades

e caracteriacutesticas de uma cultura de culpardquo46) e por outro lado necessitavam-se

mutuamente Dioniso o geacutenio da espeacutecie necessita que Apolo torne a vida aos olhos

dos espeacutecimes digna de ser vivida e Apolo por seu turno nasce numa primeira

instacircncia como consequecircncia daquela carecircncia Citando Deleuze ldquoDioniso eacute como o

fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparecircncia mas sob Apolo eacute Dioniso que bramerdquo47

Nesta obra a muacutesica assume para Nietzsche o papel primordial da trageacutedia aacutetica

ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo (NT 50) e a linguagem eacute reduzida a

uma reproduccedilatildeo uma imagem deficiente daquela ldquoa palavra a imagem o conceito

procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesicardquo (NT 51) Assim e agrave semelhanccedila do que

Nietzsche defendia nos cursos leccionados no iniacutecio da deacutecada de 1870 ao analisar a

origem da linguagem a sua adequaccedilatildeo e o contraste desta com o que era tido por

retoacuterica tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia ao esboccedilar o conflito entre os dois

impulsos artiacutesticos cuja reconciliaccedilatildeo perioacutedica havia originado a trageacutedia grega ao

estudar o eterno diferendo entre o uno e a individuaccedilatildeo a completa essecircncia das coisas

46 Dodds op cit pp 88 47 Gilles Deleuze op cit pp 21 Atente-se tambeacutem no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia ldquoTemos aqui diante dos nossos olhos numa suprema simbologia artiacutestica aquele mundo apoliacuteneo de beleza e o seu subsolo a terriacutevel sabedoria de Sileno e entendemos por intuiccedilatildeo a sua muacutetua necessidaderdquo (NT 39) A propoacutesito vaacuterios autores tecircm escrito sobre uma predominacircncia do elemento dionisiacuteaco sobre o elemento apoliacuteneo na intuiccedilatildeo traacutegica de Nietzsche outros por outro lado optam por notar que eacute o proacuteprio filoacutesofo quem afirma que a trageacutedia grega teria nascido de uma reconciliaccedilatildeo de ambos os impulsos em igual medida e que dizer o contraacuterio consiste numa clara contradiccedilatildeo das palavras do proacuteprio Nietzsche Embora natildeo caiba aqui tratar de tal assunto ouso partilhar a opiniatildeo dos primeiros sustentando-me para isso em duas passagens da obra de Nietzsche ldquoDioniso fala a linguagem de Apolo Apolo poreacutem acaba por falar a linguagem de Dionisordquo (NT 153) ldquoO mundo Heleacutenico de Apolo eacute gradualmente subjugado internamente pelas forccedilas dionisiacuteacasrdquo [Die hellenische Welt des Apollo wird allmaumlhlich von den dionysischen Maumlchten innerlich uumlberwaumlltigt] NL 1870 7 [3]

21

permanece impossiacutevel de ser apreendida48 A linguagem conceptual eacute no Nascimento

da Trageacutedia tratada como sendo a mais insatisfatoacuteria forma de representar as laquocoisas

em siraquo em especial quando equiparada agrave muacutesica Tal concepccedilatildeo manter-se-aacute na anaacutelise

de Nietzsche aos conceitos e por consequecircncia agrave metaacutefora anaacutelise que noacutes

estudaremos no capiacutetulo seguinte estava jaacute natildeo obstante subentendida na secccedilatildeo

antecedente aquando nos dedicaacutemos agrave criacutetica de Nietzsche agrave representatividade das

palavras O que o nosso filoacutesofo potildee em evidecircncia na dicotomia desenvolvida no

simbolismo daqueles dois deuses gregos eacute no fundo isso mesmo por um lado a

linguagem apoliacutenea mediante a qual o orador os poetas podem tambeacutem ser artistas e

criadores confiando no principium individuationis por outro lado a verdade metafiacutesica

o impulso dionisiacuteaco que vem romper aquele principium e evidenciar a ausecircncia de

conhecimento real naquelas obras apoliacuteneas Mas eacute exactamente nisso que consiste a

experiecircncia traacutegica do nada na aceitaccedilatildeo total da vida enquanto fissura que jamais

poderaacute ser preenchida enquanto simultaneamente necessidade e impossibilidade de

explicar a unidade do Ser Ora neste momento depara-se-nos uma questatildeo inevitaacutevel

se natildeo haacute nenhuma linguagem apropriada e se a essecircncia e a verdade das coisas nos

permanecem inacessiacuteveis em que eacute que o discurso de Nietzsche difere de todos os

demais Natildeo seraacute a filosofia de Nietzsche por conseguinte em tudo semelhante agrave de

um mosquito que presunccedilosamente sente-se tambeacutem ele como centro voador deste

mundo (VM 215)

I3 Linguagem e Metafiacutesica de Artista

A anaacutelise comparativa entre os antigos helenos e a modernidade leva Nietzsche

a deparar-se com uma tormentosa antinomia enquanto os gregos conheciam os seus

limites e conscientes da sua finitude criaram uma civilizaccedilatildeo iacutempar na Histoacuteria o

homem moderno pelo contraacuterio sujeito agrave mesma inexoraacutevel efemeridade existencial

perdera-se na meta inatingiacutevel de uma suposta transcendecircncia dos valores na crenccedila

numa realidade fictiacutecia quer dizer num mundo por si mesmo criado Eacute nesta medida

que Nietzsche olha a modernidade com grande consternaccedilatildeo e eacute ainda no primeiro

48 Como o proacuteprio autor escreve na preparaccedilatildeo de um dos cursos dados em Basileia ldquoA inteira essecircncia das coisas jamais seraacute apreendidardquo [Das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 22

22

Nietzsche ainda que de forma embrionaacuteria que o niilismo se torna tema central da sua

filosofia Assim Nietzsche comeccedila por ver na aceitaccedilatildeo da representatividade das

palavras de uma suposta adequaccedilatildeo da linguagem um sintoma de fraqueza e de

decadecircncia da modernidade na sua perspectiva era mediante essa crenccedila que o

indiviacuteduo evitava confrontar-se com a complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo

aparente bem como com a impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas O

conhecimento funcionaria pois como um refuacutegio real enquanto tal no sentido em que

natildeo obstante natildeo corresponder ao que dele o homem esperava por tudo o que ateacute aqui

dissemos e sendo portanto meramente fictiacutecio natildeo deixava de servir para confortar o

homem e portanto ter alguma realidade em si O que Nietzsche vem propor natildeo eacute no

entanto um radical abandono dos signos conceptuais jaacute existentes mas sim a criaccedilatildeo

de novas formas de discurso o abandono da crenccedila de que mediante uma linguagem

podemos aceder agrave verdade das coisas e a concepccedilatildeo de uma nova linguagem agrave partida

disso consciente A ldquonovidaderdquo de Nietzsche natildeo passa pois pela criaccedilatildeo de novos

termos de novas palavras e de novos conceitos mas antes por uma linguagem agrave

imagem dos gregos - por exemplo de Tuciacutedides49 - consciente dos seus proacuteprios limites

e que a partir dessa consciecircncia seja capaz de recriar-se e reinventar-se

ininterruptamente ajustando-se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e

originando simultaneamente novas formas de pensar Assim sendo podemos observar

como Nietzsche parte da Greacutecia Antiga do ldquomundo da arte e da filosofiardquo em que ldquoo

homem trabalha para a laquoimortalidade do intelectoraquordquo50 para uma criacutetica agrave modernidade

e agrave ciecircncia [Wissenschaft] por um lado e para uma proposta de superaccedilatildeo do niilismo

mediante a consciecircncia humana dos proacuteprios limites e uma metafiacutesica fundamentada

sobre categorias esteacuteticas por outro devemos ainda no entanto aprofundar o exame

daquela criacutetica a fim de percebermos como o autor parte da recusa do socratismo ie

49 Este exemplo eacute aliaacutes referido pelo proacuteprio Nietzsche ldquoTuciacutedides sentiu que a linguagem comum natildeo era apropriada nem para si nem para o seu tema Ele demonstrou o seu domiacutenio da linguagem em novas e peculiares formas e em construccedilotildees inusuaisrdquo [Thucydides fuumlhlte dass die gemeine Sprache weder ihm noch seinem Thema angemessen sei In neuen und eigenthuumlmlichen Formen in ungebraumluchlichen Construktionen thut er seine Herrschaft uumlber die Sprache dar] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 42 50 ldquoIn der Welt der Kunst und der Philosophie baut der Mensch an einer bdquoUnsterblichkeit des Intellektsrdquo NL 1872 19 [10]

23

do saber racional e da supremacia do loacutegico para uma afirmaccedilatildeo do conhecimento

traacutegico e de uma metafiacutesica de artista

Dominada pelo sentido histoacuterico envolta e adormecida num sentimento de

seguranccedila adquirido a partir da crenccedila cega na razatildeo poacutes-socraacutetica na transcendecircncia

do ldquoplatonismo para o povordquo51 e na ldquoadoraccedilatildeo obtusa de uma mesma aboacutebada celesterdquo

(FETG 18) a modernidade parecia negar-se a aceitar o legado e os sacrifiacutecios dos

Gregos escamoteando arrogantemente a experiecircncia traacutegica do nada o saber traacutegico

da vida enquanto contradiccedilatildeo original e inelutaacutevel limitaccedilatildeo humana que de acordo

com a interpretaccedilatildeo fornecida pelo Nascimento da Trageacutedia a partir de Euriacutepides e

essencialmente de Soacutecrates desaparecera bruscamente Por outras palavras o homem

moderno ao contraacuterio dos Gregos deixara-se dominar simultaneamente por um

sentido histoacuterico excessivo e consequente sobrevalorizaccedilatildeo da ciecircncia deixando que o

seu impulso pela histoacuteria se sobrepusesse agrave proacutepria vida e tambeacutem pela feacute numa

metafiacutesica teiacutesta cujo abrupto final Nietzsche previra postumamente52 O filoacutesofo olhava

o homem moderno e via-o agora crendo-se capaz de tudo alccedilando arrogantemente a

razatildeo em alto e fazendo do nada uma fonte inesgotaacutevel de certezas inatingiacuteveis sendo

que do ponto de vista de Nietzsche era justamente naquela eacutepoca em que os homens

se julgavam imensamente sapientes que eles mais se afastavam do mais elementar

conhecimento o conhecer-se a si mesmo no sentido heleacutenico atraacutes explanado o

conhecer-se no sentido traacutegico Ao prever uma impossibilidade de coexistecircncia entre a

razatildeo e a feacute bem como um esvaziamento de cada uma dessas esferas do valor que entatildeo

lhes era concedido Nietzsche vaticina natildeo sem algum temor o momento em que tanto

a razatildeo sobrevalorizada como a adoraccedilatildeo obtusa daquela aboacutebada celeste tomariam um

valor de nada

51 Esta expressatildeo foi usada por Nietzsche no prefaacutecio a uma obra de um periacuteodo posterior ao que neste estudo analisamos a saber o Para Aleacutem do Bem e do Mal Natildeo obstante pareceu-nos uacutetil utilizaacute-la nesta parte do trabalho Veja-se Friedrich Nietzsche Para Aleacutem do Bem e do Mal (Preluacutedio a uma filosofia do futuro) Traduccedilatildeo e notas de Carlos Morujatildeo Ciacuterculo de Leitores 1996 pp 8 e 9 52 Natildeo cabe neste trabalho analisar o tema da morte de Deus quiccedilaacute um dos mais controversos de toda a obra nietzschiana apesar de incidir essencialmente numa fase posterior agrave que nesta reflexatildeo tratamos Natildeo obstante eacute do meu ponto de vista que foram dados na filosofia primeira de Nietzsche passos que levariam a esse tema posterior Como explica Antoacutenio Ferro ldquoo convite a um regresso agrave mitologia proposto em vaacuterios momentos da filosofia de Basileia constituiria assim uma face um aspecto e uma ilustraccedilatildeo objectiva do grande desiacutegnio de retorno agrave Antiguidade e ao seu universo de valores corpoacutereos e vitalistas ndash como consequecircncia da laquomorte de Deusraquordquo Antoacutenio Ferro op cit pp 189 Sobre a aparente sobreposiccedilatildeo do sentido histoacuterico agrave vida que cabe aqui estudar veja-se em especial a Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva de Friedrich Nietzsche

24

Por outras palavras o niilismo53 emerge entatildeo como resultado directo de uma

cultura historicista e da metafiacutesica corrente na modernidade ou seja daacute-se no exacto

momento em que aquela metafiacutesica se revela vazia e insustentaacutevel momento em que

os mais altos valores se desvalorizam a si mesmos e o laquoveacuteu de Mayaraquo do mundo

empiacuterico se esmaece no culminar de uma histoacuteria bimilenaacuteria que termina com o

ldquoassassinatordquo inevitaacutevel de Deus por parte daqueles que nrsquoEle mais criam Antecipando

o perecimento natildeo apenas da feacute cristatilde mas tambeacutem da ciecircncia [Wissenschaft] numa

eacutepoca em que esta assumira um peso no viver das sociedades nunca antes conseguido54

Nietzsche defende essencialmente duas coisas em primeiro lugar que os valores

morais cristatildeos eram contranatura e por conseguinte contraacuterios agrave vida55 em segundo

lugar que o conhecimento histoacuterico natildeo deve ser tido enquanto capaz de ditar leis agrave

vida como se esta alguma vez se lhe pudesse submeter Ao homem moderno caberia

em sentido inverso conter o seu impulso pelo sentido histoacuterico na medida em que este

fosse prejudicial agrave vida tal qual os antigos helenos que segundo o autor haviam

domado ldquoo seu instinto de conhecimento em si insaciaacutevel mediante a consideraccedilatildeo

pela vida e mediante uma necessidade de vida ideal ndash porque o que aprendiam logo o

queriam viverrdquo (FETG 18) ldquoteodiceia uacutenica e suficienterdquo (NT 36) Em conformidade

escreve Friedrich Nietzsche na segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva

ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o

seu fim e para o juiacutezo final A verdade eacute que a cultura histoacuterica soacute eacute salutar e rica de

promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosa por exemplo

na ocasiatildeo do nascimento de uma civilizaccedilatildeo portanto se for dominada e dirigida por

uma forccedila superior em vez de querer dominar e dirigir por si proacutepriardquo (CE II 114-115)

53 Sobre Nietzsche e o niilismo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 1-17 Robert B Pippin Modernism as a Philosophical Problem Robert B Pippin 1991 pp 78-113 Joatildeo Constacircncio Arte e niilismo Nietzsche e o enigma do mundo Ediccedilotildees tinta-da-china 2013 Viriato S Marques A Caracterizaccedilatildeo Traacutegica do Niilismo em Nietzsche Tese de mestrado apresentada agrave Faculdade de Ciecircncias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 1984 Matthew Rampley op Cit pp 25-34 Gilles Deleuze op Cit pp 221-223 54 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 182 55 Uma vez mais esta problemaacutetica pertence a uma fase posterior da obra de Nietzsche que natildeo cabe aqui tratar Cumpria natildeo obstante enunciaacute-la dada a sua importacircncia e dado o facto de a sua geacutenese poder encontrar-se jaacute do meu ponto de vista nos textos em anaacutelise

25

O que estaacute em causa por conseguinte natildeo eacute um abandono total do sentido

histoacuterico mas antes uma capacidade de estar para aleacutem deste de ser-se supra-histoacuterico

ou seja de encarar o mundo como um todo que a cada instante cumpre o seu objectivo

sendo ldquoo passado e o presente uma uacutenica e mesma coisardquo que ldquoapesar da sua

diversidaderdquo conserva ldquoa unidade profunda de um mesmo tipordquo (CE II 113) Cumpre

notar que o autor natildeo nega ldquoque a vida tem necessidade de ser servida pela histoacuteriardquo

mas afirma natildeo obstante que ldquoum excesso de histoacuteria eacute prejudicial ao ser vivordquo (CE II

117) e que o ldquoinstinto de conhecimento sem discernimento eacute semelhante ao instinto

sexual cego ndash sinal de baixezardquo56 O sentido histoacuterico eacute como tal tido enquanto

necessaacuterio para a sauacutede de um indiviacuteduo de uma naccedilatildeo e de uma civilizaccedilatildeo somente

na mesma medida em que o homem for capaz de fazer servir esse passado agrave vida

presente e futura ie de refazer a histoacuteria com o passado de recriar-se mediante e para

aleacutem do passado ou nas palavras do nosso filoacutesofo ldquoa cultura histoacuterica soacute eacute salutar e

rica de promessas de futuro se se inscrever numa corrente de vida nova e poderosardquo (CE

II 114)

Apesar da possibilidade de utilidade que o autor natildeo deixa de lhe atribuir o

sentido histoacuterico eacute descrito enquanto algo de secundaacuterio desde a primeira filosofia de

Nietzsche sendo ateacute possivelmente perigoso e prejudicial se excessivo57 aleacutem do mais

acrescenta Nietzsche ldquonenhum artista seraacute capaz de realizar a sua obra nenhum

general conseguiraacute a vitoacuteria nenhum povo conquistaraacute a liberdade sem os terem

desejado e procurado fora de qualquer pensamento histoacutericordquo (CE II 111) Estar fora do

pensamento histoacuterico significa no Nietzsche inicial regressar agrave consciecircncia traacutegica

mediante a qual os filoacutesofos Gregos foram tambeacutem artistas criando os seus sistemas a

partir da fissura intransponiacutevel da efemeridade da vida

O filoacutesofo deve reconhecer o que eacute necessaacuterio e o artista deve criaacute-lo O filoacutesofo deve

simpatizar o mais profundamente possiacutevel com a dor universal cada um dos velhos

56 ldquoDer Erkenntniszligtrieb ohne Auswahl steht gleich dem wahllosen Geschlechtstrieb mdash Zeichen der Gemeinheitrdquo NL 1872 19 [11] 57 ldquoA histoacuteria encarada como essecircncia pura e dominadora arrastaria a humanidade para o seu fim e juiacutezo finalrdquo (CE II 114)

26

filoacutesofos gregos exprime uma miseacuteria aiacute nessa lacuna insere o seu sistema Constroacutei o

seu mundo sobre esta lacuna58

A ldquometafiacutesica de artistardquo proposta por Nietzsche eacute pois uma inversatildeo da

metafiacutesica que visa colocaacute-la no domiacutenio da arte [Kunst] que Nietzsche neste caso

interpreta tambeacutem enquanto poder forccedila [Kraft] de certa forma comparaacutevel e

subjugada agrave natureza [ϕύσις physis]) no sentido de forccedila criadora em detrimento da

historiografia icoacutenica e dos valores morais socraacuteticos e cristatildeos frutos de uma longa

convenccedilatildeo [νόμος nomos]59 Quer dizer por ldquometafiacutesica de artistardquo Nietzsche propotildee

uma concepccedilatildeo filosoacutefica segundo a qual a arte eacute a actividade propriamente metafiacutesica

do homem60 a concepccedilatildeo de que apenas a arte possibilita a experiecircncia da vida

enquanto fundo das coisas Assim conveacutem recordarmos o que na secccedilatildeo anterior

escrevemos pois eacute exactamente da compreensatildeo da necessidade muacutetua dos elementos

antagoacutenicos Dioniso e Apolo que como notou Maria Joatildeo Mayer Branco surge a

ldquohipoacutetese metafiacutesicardquo que Nietzsche apresenta no Nascimento da Trageacutedia ldquoo ser

verdadeiro e Uno primordial a eterna dor primitiva fundamento uacutenico do mundo

necessita da lsquodeleitosa aparecircnciarsquo tem diz Nietzsche uma lsquoardente nostalgia de

aparecircnciarsquordquo61

Assim o autor outorga essencialmente duas tarefas agrave sua metafiacutesica de artista

em primeiro lugar ldquoacentuar a relatividade de todo o conhecimento e o seu

antropomorfismo assim como a da forccedila da ilusatildeo que em toda a parte eacute dominanterdquo62

sendo que eacute aqui que se insere numa primeira instacircncia a sua criacutetica agrave linguagem tida

por ldquoapropriadardquo e ldquonatildeo retoacutericardquo e num segundo momento como consequecircncia a sua

criacutetica agrave modernidade que crecirc na adequaccedilatildeo daquela linguagem e forma a partir dela

um conhecimento empiacuterico historicista e uma metafiacutesica absurda que Nietzsche revela

58 ldquoDer Philosoph soll erkennen was noth thut und der Kuumlnstler soll es schaffen Der Philosoph soll am staumlrksten das allgemeine Leid nachempfinden wie die alten griechischen Philosophen jeder eine Noth ausdruumlckt dort in die Luumlcke hinein stellt er sein System Er baut seine Welt in diese Luumlcke hineinrdquo NL 1872 19 [23] 59 Sobre Nietzsche e a laquometafiacutesica de artistaraquo veja-se Arthur C Danto op Cit pp 229-230 Antoacutenio Ferro op cit Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 45-58 Ver tambeacutem Eugen Fink op Cit pp 14-43 Roberto Machado Nietzsche e a Verdade Rocco 1985 pp 33-39 60 Cf Joatildeo Constacircncio Arte e niilismohellip op cit pp 246 61 Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 46-47 62 ldquoJetzt kann die Philosophie nur noch das Relative aller Erkenntiszlig betonen und das Anthropomorphische so wie die uumlberall herrschende Kraft der Illusionrdquo NL 1872 19 [37]

27

ter no final de contas o valor de nada em segundo lugar a metafiacutesica em foco propotildee

a criaccedilatildeo artiacutestica partindo da consciecircncia da relatividade de todo o conhecimento e da

subjectividade inerente agrave linguagem como o haviam feito os preacute-socraacuteticos para a

concepccedilatildeo de novos pensamentos e novas formas de pensar Por outras palavras o

uacutenico conhecimento objectivo acessiacutevel aos homens seria aquele que nascera a partir

da dor universal ou seja o ldquoconhecimento traacutegicordquo e ldquoartiacutesticordquo dos antigos helenos que

nos poria enquanto indiviacuteduos conscientes de sermos meramente parte da experiecircncia

da infinidade da espeacutecie e nos impeliria agrave criaccedilatildeo de uma unidade superior Agrave

semelhanccedila do que aconteceria ldquoAntigamenterdquo em que ldquonatildeo se tratava de indiviacuteduos

mas de Helenosrdquo o sistema de Nietzsche vem reclamar as ldquoinauditas forccedilas da arte para

eliminar o ilimitado instinto de conhecimento para recriar uma unidaderdquo63 O autor natildeo

nos solicita que abandonemos os signos conceptuais jaacute existentes tampouco que nos

livremos em absoluto do nosso impulso pelo conhecimento histoacuterico que aliaacutes

reconhece ter alguma utilidade mas defende que os utilizemos agrave imagem dos Gregos

na oacuteptica do artista traacutegico que consciente de sua finitude temporal cria novas formas

de pensar e afirma a vida em toda a sua plenitude

63 ldquoWenn wir noch je eine Kultur erringen sollen so sind unerhoumlrte Kunstkraumlfte noumlthig um den unbeschraumlnkten Erkenntniszligtrieb zu brechen um eine Einheit wieder zu erzeugenrdquo NL 1872 19 [27]

28

II Metaacutefora e Esquecimento

II1 Siacutembolos e Conceitos

Estudaacutemos no capiacutetulo precedente em traccedilos bastante gerais de que forma

Nietzsche questiona sob influecircncia de Schopenhauer (e de Kanthellip) natildeo tanto a

existecircncia de coisas mas a nossa representaccedilatildeo delas ou seja que as coisas sejam em

si mesmas como noacutes as percepcionamos A partir desta interrogaccedilatildeo Nietzsche

questiona a adequaccedilatildeo e a eficaacutecia da linguagem na tarefa que lhe eacute imposta afirmando

que toda e qualquer linguagem eacute retoacuterica na medida em que natildeo tendo acesso agraves

coisas limita-se a procurar originar uma doxa exercendo-se por conseguinte no campo

do pithanon ie na forma como noacutes nos posicionamos perante as coisas e natildeo da

episteme nem da verdade Vimos tambeacutem como no Nascimento da Trageacutedia a partir

da dualidade e do conflito entre os impulsos apoliacuteneo e dionisiacuteaco o autor aborda e

aprofunda o problema da acessibilidade da laquocoisa em siraquo agrave qual outorga diversos

nomes e como a partir da impossibilidade do acesso agrave essecircncia das coisas e mediante

aquilo a que chama ldquoconhecimento traacutegicordquo empreende um novo sistema metafiacutesico

onde a arte (e nesta a muacutesica) toma lugar central propondo-nos a compreensatildeo e

aceitaccedilatildeo heleacutenica da totalidade da vida empreendendo uma criacutetica agrave modernidade

historicista e ao transcendentalismo teiacutesta cujo abrupto final depois de Kant se tornara

inevitaacutevel Ora depois desta apresentaccedilatildeo geral agrave problemaacutetica em anaacutelise cabe-nos

empreender neste capiacutetulo uma reflexatildeo um pouco mais minuciosa e detalhada das

consequecircncias mais directas dos pressupostos nietzschianos ateacute aqui explicitados64

como sendo numa primeira instacircncia o papel do conceito na filosofia de Nietzsche

Partindo da ausecircncia de loacutegica na geacutenese da linguagem e pressupondo que as

palavras mais natildeo satildeo do que ldquodesignaccedilotildees arbitraacuteriasrdquo siacutembolos que ldquonunca afloram

algures a verdade absolutardquo (FETG 69) Nietzsche procura entender de que forma

podem os conceitos de cuja utilizaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo humana de certa maneira parece

depender65 exprimir e partilhar uma determinada experiecircncia ldquototalmente

64 Aproveito no entanto para lembrar as saacutebias palavras de E R Dodds ldquoThose who find such minutiae unrewarding will I trust practice the art of skippingrdquo E R Dodds Plato Gorgias hellip op Cit p VI 65 Sobre a necessaacuteria dependecircncia da comunicaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo ao processo de conceptualizaccedilatildeo veja-se as seguintes palavras de Sarah Kofman ldquoConsciousness developed under the pressure of the need to communicate it is linked to action its urgency and dangers the origin of conceptual language lies in

29

individualizadardquo Numa primeira anaacutelise o conceito parece surgir a partir da necessidade

de facilitar a partilha quer com outrem quer numa relaccedilatildeo meramente intrapessoal de

uma dada determinaccedilatildeo Ou seja dito por outras palavras quando comunicamos com

algueacutem ainda que esse algueacutem sejamos noacutes mesmos servimo-nos de siacutembolos

conceptuais que pretendemos que sejam representativos para todos os interlocutores

de um mesmo objecto Para que tal partilha seja possiacutevel torna-se imperativo que se

aglomere e junte vaacuterias determinaccedilotildees diferentes numa mesma categoria de

significado dando como tal primazia agraves possiacuteveis identidades e correspondecircncias

existentes entre essas determinaccedilotildees e olvidando as suas possiacuteveis dissemelhanccedilas

Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos em linha com o que agora afirmamos que

ldquoa omissatildeo do que eacute individual daacute-nos o conceitordquo66 natildeo correspondendo natildeo obstante

agrave essecircncia das coisas O conceito surge por conseguinte apenas porque a nossa relaccedilatildeo

com o ser verdadeiro eacute superficial sendo que eacute devido agrave impossibilidade de

transmitirmos e partilharmos uma determinada experiecircncia com total adequaccedilatildeo que

necessitamos de requerer o auxiacutelio de uma ferramenta que se encarregue desse papel

assim falamos a linguagem do siacutembolo da imagem acrescentando-lhe depois ldquoalgo

com forccedila artiacutesticardquo na medida em que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos

os secundaacuterios67

Por outras palavras entatildeo o propoacutesito do conceito parece ser o de partilhar algo

que em uacuteltima anaacutelise eacute uacutenico quer dizer o proacuteprio conceito de conceito parece ser

contraditoacuterio resume-se a uma tentativa de partilha daquilo que natildeo eacute na realidade

partilhaacutevel e que para subsistir requer a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor No limite

neediness it presupposes the need to appropriate the world and to act quickly for men to understand each other by avoiding lsquomisunderstandingsrsquo Men can no more respect the differences which exist between themselves than they have the time to be interested in the differences between things language consigns to concepts average impressions and the evaluations of the greatest number it imposes as a norm the perspective of the herdrdquo Sarah Kofman op Cit pp 36 66 ldquoDas Uumlbersehn des Individuellen giebt uns den Begriffrdquo NL 1872 19 [236] 67 Nas palavras de Nietzsche ldquoA nossa relaccedilatildeo com todo o ser verdadeiro eacute superficial falamos a linguagem do siacutembolo da imagem seguidamente acrescentamos-lhe algo com forccedila artiacutestica na medida que reforccedilamos os traccedilos principais e esquecemos os secundaacuteriosrdquo [Zu jedem wahren Sein verhalten wir uns oberflaumlchlich wir redden die Sprache des Symbols des Bildes sodann thut wir etwas hinzu mit kuumlnstlerischer Kraft indem wir die Hauptzuumlge verstaumlrken die Nebenzuumlge vergessen] NL 1972 19 [67] Veja-se sobre a caracterizaccedilatildeo por Nietzsche do siacutembolo como elo de transposiccedilatildeo Carlos Alfredo do Couto Amaral Natureza e Funccedilatildeo do Siacutembolo na Metafiacutesica Esteacutetica do Jovem Nietzsche Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Filosofia orientada pelo Prof Doutor Leonel Ribeiro dos Santos Universidade de Lisboa 1999

30

utilizando um exemplo desenvolvido pelo proacuteprio autor da mesma forma que natildeo haacute

uma folha totalmente igual a outra tampouco haacute uma experiecircncia totalmente igual a

outra e como tal o proacuteprio propoacutesito do conceito em que qualquer palavra

imediatamente se transforma reduz-se agrave ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo Nas palavras de

Nietzsche

Cada palavra torna-se de imediato conceito por precisamente natildeo dever servir para a

experiecircncia originaacuteria uacutenica e totalmente individualizada agrave qual deve a sua emergecircncia

algo como recordaccedilatildeo mas tambeacutem para inumeraacuteveis casos mais ou menos semelhantes

isto eacute em rigor nunca idecircnticos portanto que devem adequar-se sempre a casos

diferentes Todo o conceito emerge da igualizaccedilatildeo do natildeo igual (VM 220)

O papel do conceito note-se eacute de importacircncia extrema na medida em que

ldquoesconderdquo o caraacutecter a que Nietzsche chamaraacute ldquometafoacutericordquo do processo de

generalizaccedilatildeo e fixaccedilatildeo das palavras que de ora em diante seratildeo utilizadas para

exprimir as mais variadas e desiguais experiecircncias Por outro lado no caso do exemplo

das folhas atraacutes utilizado o conceito laquoa folharaquo permite olvidar o caraacutecter diferenciador

de toda e qualquer folha individual e singular em si mesma possibilitando que se junte

uma infindaacutevel quantidade de objectos dentro de uma uacutenica categoria conceptual como

se existisse algo na natureza que correspondesse integralmente a essa laquofolharaquo

originaacuteria Os exemplos multiplicam-se nos primeiros escritos de Nietzsche salientando

num caso que mesmo o conceito laquohomemraquo teria por noacutes sido criado tambeacutem ele

mediante o abandono de todos os traccedilos individuais e noutro que o facto de uma

aacutervore nos aparecer como uma multiplicidade de qualidades e de relaccedilotildees eacute duplamente

antropomoacuterfico68 O mesmo acontece por exemplo quando a uma pessoa chamamos

laquohonestaraquo ou seja

Perguntamo-nos laquoPorque actuou ela hoje de forma tatildeo honestaraquo A nossa resposta

costuma ser laquoPor causa da sua honestidaderaquo A honestidade Isso significa de novo a

folha eacute a causa das folhas Nada sabemos a respeito de uma qualidade essencial que se

chamasse laquoa honestidaderaquo mas conhecemos inuacutemeras acccedilotildees individualizadas e

68 NL 1872 19 [236]

31

desiguais que noacutes pelo natildeo considerar o desigual igualizamos e que agora designamos

como acccedilotildees honestas (VM 220-221)

Por outras palavras o conceito surge mediante o descurar do individual69 e

singular de cada coisa e como resultado de um duplo esquecimento numa primeira

fase o esquecimento do caraacutecter diferenciador e singular da coisa em questatildeo que nos

permite enquadraacute-la e ldquoigualizaacute-lardquo a outras dela desiguais e numa segunda fase o

esquecimento do caraacutecter metafoacuterico da ausecircncia de rigor e de adequaccedilatildeo do proacuteprio

processo de conceptualizaccedilatildeo que nos permite atribuir-lhe ao conceito um valor que

vaacute aleacutem do valor de nada a que no final de contas parece resumir-se Apenas mediante

este processo podem nascer as formas e os geacuteneros que reconheccedilamos a natureza

desconhece ou seja que satildeo meramente humanos70 Assim se a conceptualizaccedilatildeo

implica uma falta de rigor e o descurar daquilo que eacute uacutenico de cada coisa o material

com que o filoacutesofo trabalha71 incluindo claro estaacute o proacuteprio autor que agora

69 Schopenhauer havia utilizado uma expressatildeo se natildeo igual pelo menos idecircntica agrave que agora utilizamos Assim ao que noacutes chamamos ldquodescurar do individualrdquo Schopenhauer havia chamado ldquoIndeterminaccedilatildeo do individualrdquo [Nichtbestimmung des Einzelnen] WWR I sect9 42 WWV I sect9 50 veja-se Joatildeo Constacircncio ldquoOn Consciousness helliprdquo op cit pp 6 70 Sobre isto escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoTodo o conhecer eacute um reflectir em formas muito especiacuteficas que natildeo existem desde o iniacutecio A natureza natildeo conhece nenhuma forma nenhuma grandeza mas soacute para aquele que conhece eacute que as coisas se apresentam com esta grandeza ou aquela pequenezrdquo [Alles Erkennen ist ein Wiederspiegeln in ganz bestimmten Formen die von vornherein nicht existiren Die Natur kennt keine Gestalt keine Groumlszlige sondern nur fuumlr ein Erkennendes treten die Dinge so groszlig und so klein auf] NL 1872 19 [133] 71 Sobre a linguagem filosoacutefica diz o autor ldquoO filoacutesofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacaacute-la em conceitos para fora de si enquanto eacute contemplativo como o artista plaacutestico compassivo como o homem religioso enquanto espia fins e causalidades como o cientista e se sente dilatando ateacute ao macrocosmos conserva a circunspecccedilatildeo de friamente se considerar como reflexo do mundo guarde aquele sangue-frio que eacute proacuteprio do artista dramaacutetico que se transforma em outros corpos que fala atraveacutes deles e que apesar disso sabe projectar para fora de si essa metamorfose em versos escritos O que aqui o verso significa para o poeta eacute o que o pensamento dialeacutectico significa para o filoacutesofo agarra-se a ele para fixar o seu encantamento para o petrificar E assim como para o poeta dramaacutetico a palavra e o verso natildeo passam de um balbuciar em liacutengua estrangeira para nela dizer o que viveu e o que viu e o que tambeacutem soacute podia traduzir directamente atraveacutes dos gestos e da muacutesica assim tambeacutem a expressatildeo de toda a intuiccedilatildeo filosoacutefica profunda pela dialeacutectica e pela reflexatildeo cientiacutefica eacute por um lado o uacutenico meio de comunicar o que foi intuiacutedo pelo pensador mas eacute ao mesmo tempo um meio miseraacutevel porque no fundo natildeo passa de uma transposiccedilatildeo metafoacuterica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra linguagemrdquo (FETG 29-30) Eacute pois isto que tem estado em causa Nietzsche julga a linguagem conceptual como a mais inapropriada forma de expressar a verdade do mundo a muacutesica dionisiacuteaca ou seja a ldquosinfonia do mundordquo Sobre o problema da representaccedilatildeo conceptual filosoacutefica da muacutesica enquanto sinfonia do mundo em Nietzsche ver Sarah Kofman op Cit pp 6-17 sobre a diferenccedila em relaccedilatildeo ao papel da filosofia no Nascimento da Trageacutedia e nos textos que lhe seguiram Acerca da Verdade e Da Mentira num Sentido Extra-moral e A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos ver Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 128-154

32

estudamos ldquose natildeo se trata de castelos no arrdquo natildeo proveacutem ldquotatildeo-pouco da essecircncia das

coisasrdquo (VM 220) o que natildeo quer necessariamente dizer que natildeo lhes corresponda

nem noacutes o poderiacuteamos afirmar uma vez que como Nietzsche nota tal afirmaccedilatildeo seria

tatildeo indemonstraacutevel quanto a sua contraacuteria (VM 221)

O que estaacute em causa na oacuteptica de Nietzsche eacute que enquanto cada intuiccedilatildeo ou

sensaccedilatildeo eacute necessariamente individual e iacutempar apesar de ser em si mesma

representada por uma imagem de um X para noacutes inacessiacutevel e indefiniacutevel a linguagem

conceptual em sentido inverso constroacutei um grande edifiacutecio esquemaacutetico que amontoa

essas intuiccedilotildees e as cataloga conforme as suas possiacuteveis semelhanccedilas e proximidades

eliminando ou desvalorizando aquilo que as distingue edifiacutecio esse no qual todo o

conhecimento humano em uacuteltima anaacutelise se fundamenta Esta eacute aliaacutes a uacutenica forma

de nos tornarmos ldquosenhores da multiplicidaderdquo ou seja ldquoconstituir categorias por

exemplo chamar laquoousadoraquo a um grande nuacutemero de modos de acccedilatildeordquo procedendo

como tal a uma transposiccedilatildeo um falso silogismo ldquouma abstracccedilatildeo [que] abarca

numerosas acccedilotildees e adquire o valor de causardquo uma espeacutecie de metoniacutemia72 Ora se

todos os conceitos correspondem a uma transgressatildeo um aglomerar e catalogizar

intuiccedilotildees diferentes entre si podemos concluir que ldquotodas as figuras de retoacuterica (quer

dizer a essecircncia da linguagem) satildeo falaacutecias loacutegicasrdquo73 Toda a linguagem conceptual eacute

por conseguinte falaciosa na medida em que toma uma relaccedilatildeo pela essecircncia um

efeito pela causa dizemos que A eacute B por exemplo que um determinado objecto

corresponde a uma folha como se laquofolharaquo fosse a essecircncia desse objecto e natildeo uma

relaccedilatildeo entre definiccedilotildees completamente arbitraacuterias

II2 Linguagem Metaacutefora e Verdade

Ainda que a sensaccedilatildeo primeira forma de conhecimento humano seja em si

mesma somente uma imagem das coisas e que de aqui se possa duvidar da adequaccedilatildeo

72 Nos fragmentos poacutestumos de Nietzsche pode ler-se ldquoMetoniacutemia Uma conclusatildeo falsa Um predicado eacute confundido com uma soma de predicados (definiccedilatildeo)rdquo [Metonymia Ein falscher Schluszlig Ein Praumldikat ist verwechselt mit einer Summe von Praumldikaten (Definition)] NL 1872 19 [215] ldquoMetoniacutemia o substituir um nome por outro tambeacutem chamado cacircmbio a substituiccedilatildeo da causa pela qual dizemos algo em lugar da coisa a que nos referimosrdquo [Metonymia Setzung eines Hauptwortes fuumlr ein anderes auch ἀνταλλαγή Eius vis est pro eo quod dicitur causam propter quam dicitur ponere] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language pp 58

73 ldquoAlle rhetorischen Figuren (dh das Wesen der Sprache) sind logische Fehlschluumlsserdquo NT 1872 19 [215]

33

das palavras que por seu turno natildeo satildeo mais que meras imagens daquelas imagens74

e ainda mais dos conceitos em que todas as palavras se transformam enquanto

transgressotildees iloacutegicas e falaciosas nas quais a proacutepria filosofia se edifica tal natildeo implica

pelo menos no primeiro Nietzsche que duvidemos da existecircncia de coisas agraves quais a

linguagem tenta referir-se petrificando-as e aglomerando-as em conceitos O labor

genealoacutegico a que o autor se propotildee nos seus primeiros textos sobre a linguagem

procura como explicado anteriormente natildeo apenas a origem do valor da linguagem

mas tambeacutem o valor daquela origem trata-se pois de uma desconstruccedilatildeo conceptual

da proacutepria conceptualizaccedilatildeo em que qualquer pensamento se alicerccedila descobrindo

como corolaacuterio na origem da linguagem um sistema fundamentado num duplo

processo metafoacuterico Por outras palavras o que estaacute em causa no Nietzsche inicial em

relaccedilatildeo agrave linguagem conceptual eacute numa primeira instacircncia o processo mediante o qual

um estiacutemulo nervoso partindo para uma causa exterior ao homem eacute traduzido numa

primeira imagem da coisa e numa segunda instacircncia o processo mediante o qual

partindo dessa imagem o homem chega ao som ou seja agraves palavras e com estas

simultaneamente agrave conceptualizaccedilatildeo atraacutes discutida Recorrendo a palavras do proacuteprio

autor este sistema do duplo processo metafoacuterico daacute-se da seguinte maneira

Uma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de novo

transformada num som Segunda metaacutefora (VM 219)

Assim sendo na perspectiva de Nietzsche daacute-se em cada uma destas

transformaccedilotildees uma transposiccedilatildeo entre duas esferas completamente distintas Este

processo de transposiccedilatildeo entre esferas distintas eacute necessariamente esquecido pelo

homem que assume a existecircncia de adequaccedilatildeo e simultaneidade no processo racional

como se o estiacutemulo nervoso acarretasse consigo a essecircncia do objecto em questatildeo e

como se o som em que se transforma a imagem resultante do estiacutemulo nervoso

pertencesse ao mesmo domiacutenio desta Por conseguinte de modo semelhante ao que

acontece com uma pessoa totalmente surda que mediante a confrontaccedilatildeo com as

74 Mais tarde Nietzsche descreveria esta relaccedilatildeo da seguinte forma ldquoAs palavras satildeo sinais sonoros para os conceitos mas os conceitos satildeo imagens mais ou menos definidas para sensaccedilotildeeshelliprdquo Friedrich Nietzsche Para Aleacutemhellip op cit pp 268

34

figuras acuacutesticas chladnianas na areia encontra as suas causas na vibraccedilatildeo das cordas e

julga saber o que eacute o ldquosomrdquo (VM 219) noacutes julgamos saber algo das proacuteprias coisas

quando comunicamos conceptualmente sendo que na verdade natildeo dispomos senatildeo

de metaacuteforas representaccedilotildees75 das coisas que natildeo correspondem nem poderiam

corresponder de forma alguma agraves suas essecircncias

Mas afinal que metaacutefora eacute esta Ou dito de outro modo o que entende

Nietzsche por metaacutefora Torna-se antes de mais imperioso notar que Nietzsche

desenvolve uma interpretaccedilatildeo de metaacutefora um pouco mais vasta (e peculiarhellip) do que

aquela que seacuteculos antes havia sido estabelecida por Aristoacuteteles76 segundo a qual ldquoa

metaacutefora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a

espeacutecie ou da espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outra ou

por analogiardquo77

Ora numa primeira anaacutelise aquando da preparaccedilatildeo de um dos cursos leccionados

em Basileia (Darstellung Der Antiken Rhetorik) Nietzsche comeccedila por tomar a metaacutefora

por uma pequena paraacutebola78 Natildeo obstante tal definiccedilatildeo revelar-se-ia ainda

manifestamente insuficiente perante o papel que viria a assumir nos textos seguintes

em particular no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral e no

Nascimento da Trageacutedia Como eacute descrito por Sarah Kofman79 a teoria nietzschiana da

metaacutefora pode encontrar-se naqueles dois textos fundamentada na perda do

ldquoapropriadordquo [proper] em dois sentidos por um lado natildeo eacute possiacutevel conceber uma

metaacutefora sem que a ela esteja associado um esvaecimento da individualidade quer

75 Parece-me curioso notar como nos fragmentos poacutestumos referentes ao periacuteodo em que Nietzsche se encontrava em Basileia e que agora estudamos o filoacutesofo nota embora natildeo aprofunde uma questatildeo bastante peculiar que a sua filosofia deixa numa primeira instacircncia lsquoem abertorsquo - tendo em conta as representaccedilotildees que segundo temos vindo a defender carecem inelutavelmente de adequaccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves coisas que representam podemos (devemos) ainda perguntar de onde vecircm elas Nas palavras de Nietzsche ldquoMas de onde vem esta representaccedilatildeo Esse eacute o misteacuteriordquo [Aber woher die Vorstellung Dies ist das Raumlthsel] NL 1870 5 [80] Mais tarde embora ainda durante o periacuteodo em que viveu em Basileia Nietzsche responderia agravequela questatildeo a representaccedilatildeo era obra da Vontade Esta resposta seraacute analisada no uacuteltimo capiacutetulo da presente reflexatildeo 76 Como aliaacutes o proacuteprio Nietzsche reconhece nos rascunhos das suas aulas dadas em Basileia Veja-se Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 77 Veja-se Aristoacuteteles Poeacutetica XXI 78 ldquoA metaacutefora eacute uma pequena paraacutebola sendo que a paraacutebola eacute designada como uma metaacutefora exageradardquo [Die Metapher ist ein kuumlrzeres Gleichniss wie wiederum das Gleichniss als μεταφορἀ πλεονάζουσα bezeichnet wird] Friedrich Nietzsche on Rhetoric and Language op cit pp 54 79 Seguirei nesta fase do meu estudo com especial atenccedilatildeo e incidecircncia o laborioso trabalho desenvolvido por Sarah Kofman op Cit

35

dizer para que algo possa ser transposto e tomar o valor de outra coisa os limites da

sua individualidade tecircm de ser ultrapassados Ou seja como defende a mesma autora

Nietzsche descobre na unidade ontoloacutegica da vida representada por Dioniso o

fundamento da metaacutefora ndash eacute porque o Uno primordial se fracciona e se torna

inelutavelmente plural e muacuteltiplo que a metaacutefora assume um importante papel na

reconstituiccedilatildeo de uma nova unidade que na oacuteptica do filoacutesofo dionisiacuteaco passaria por

uma unidade artiacutestica Quer dizer depois de dar-se a inelutaacutevel fragmentaccedilatildeo de Dioniso

em indiviacuteduos a metaacutefora assumiria o papel de possibilitar a reconstituiccedilatildeo da unidade

originaacuteria de todos os seres Por outro lado argumenta Kofman a metaacutefora estaacute ligada

agrave perda do ldquoapropriadordquo entendido como essecircncia do mundo ie agrave indecifraacutevel laquocoisa

em siraquo de que o homem produz somente representaccedilotildees ldquoretoacutericasrdquo quer dizer

inapropriadas Este eacute no essencial o sentido de metaacutefora impliacutecito no passo acima

citado a excitaccedilatildeo nervosa que eacute traduzida numa imagem mediante um processo

metafoacuterico e depois a transformaccedilatildeo dessa imagem mediante outra metaacutefora numa

linguagem sendo a linguagem musical a melhor ou mais apropriada metaacutefora e todas

as demais natildeo mais que fracas representaccedilotildees metafoacutericas dessa metaacutefora primordial80

Note-se por conseguinte que a principal diferenccedila na interpretaccedilatildeo do papel da

metaacutefora entre Nietzsche e a tradiccedilatildeo metafiacutesica herdada de Aristoacuteteles incide na

relaccedilatildeo desta com o conceito jaacute natildeo eacute a metaacutefora que se refere ao conceito

transportando ldquopara uma coisa o nome de outra ou do geacutenero para a espeacutecie ou da

espeacutecie para o geacutenero ou da espeacutecie de uma para a espeacutecie de outrardquo81 mas sim o

conceito que se refere agrave metaacutefora agrave imagem Por outras palavras se o conceito surge

mediante a transformaccedilatildeo de uma imagem num som logo posteriormente agravequela

entatildeo ldquotoda a denominaccedilatildeo eacute uma tentativa para chegar agrave imagemrdquo (FETG 37) que

apesar de referir-se a um X inacessiacutevel natildeo deixa de ser uma representaccedilatildeo mais

80 Relembrando um passo que jaacute haviacuteamos citado anteriormente de acordo com o ponto de vista de Nietzsche ldquoa melodia eacute portanto a coisa primeira e universalrdquo sendo que ldquoa palavra a imagem o conceito procuram uma expressatildeo anaacuteloga agrave muacutesica [hellip]rdquo Como tal ldquohellip a proacutepria muacutesica na sua total ausecircncia de limites natildeo necessita da imagem nem do conceito limitando-se apenas a suportaacute-los junto de si [hellip] O simbolismo universal da muacutesica natildeo pode por isso mesmo ser de modo algum abrangido exaustivamente pela linguagem uma vez que ele se relaciona simbolicamente com o conflito e a dor primordiais no coraccedilatildeo do Uno primordial simbolizando assim uma esfera que se situa sobre qualquer fenoacutemeno e eacute anterior a qualquer fenoacutemeno Perante tal simbolismo qualquer fenoacutemeno eacute inversamente apenas um siacutembolo daiacute que a linguagem enquanto oacutergatildeo e siacutembolo dos fenoacutemenos natildeo possa nunca e em parte alguma exteriorizar o mais profundo acircmago da muacutesicahelliprdquo (NT 50-53) 81 Aristoacuteteles op Cit

36

proacutexima e fidedigna desse X Por fim se agrave primeira metaacutefora (ou seja agrave concepccedilatildeo de

imagens) recorreriam todos os animais a segunda por seu turno seria uma ldquoinvenccedilatildeordquo

do humano enquanto ser racional ou seja seria proacutepria e exclusiva da racionalidade

No Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral Nietzsche escreve

Enquanto cada metaacutefora da intuiccedilatildeo eacute individual e iacutempar e assim sabe escapar a toda a

classificaccedilatildeo o grande edifiacutecio dos conceitos mostra a regularidade estrita de um

columbaacuterio romano e exala na loacutegica esse rigor e frieza proacuteprios da matemaacutetica (VM 222)

Consequentemente o filoacutesofo compara e assemelha as proposiccedilotildees tidas por

ldquoliteraisrdquo e ldquoverdadeirasrdquo agraves declaradamente metafoacutericas defendendo a inexistecircncia de

uma diferenccedila ldquorealrdquo entre elas uma vez que qualquer uma delas parece implicar uma

transposiccedilatildeo entre esferas completamente distintas - isto eacute um transportar para um

determinado domiacutenio algo ou alguma coisa que a esse domiacutenio natildeo pertence - como

nota Maudemarie Clark ldquoos argumentos literais satildeo tatildeo falsos quanto os metafoacutericos

satildeo simplesmente ilusotildees que noacutes esquecemos serem ilusotildeesrdquo82 Sendo o conceito

como tal uma extensatildeo da metaacutefora que alarga aquilo que eacute uacutenico e o generaliza

metonimicamente apoiado por uma pretensa causalidade que note-se eacute tambeacutem ela

metafoacuterica e arbitraacuteria daacute-se mesmo nas proposiccedilotildees tidas por verdadeiras uma

aplicaccedilatildeo do princiacutepio da razatildeo na qual o caraacutecter de semelhanccedila entre distintos

objectos eacute substituiacutedo pela causalidade83

O que vem estando em causa eacute pois uma ausecircncia inexoraacutevel e ineludiacutevel de

correspondecircncia entre a coisa e a coisa-dita independentemente do tipo de proposiccedilatildeo

em questatildeo ou seja tendo em consideraccedilatildeo que ldquotodo o conceito emerge da

igualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) haacute sempre quer no caso de uma proposiccedilatildeo

declaradamente metafoacuterica quer no caso de uma frase tida por ldquoverdadeirardquo uma

ausecircncia de identidade e de correspondecircncia literal daquilo que eacute dito Ora o que eacute

posto em evidecircncia cumpre relevar eacute que a ausecircncia de correspondecircncia entre as

coisas e a linguagem daacute-se porque o homem eacute na concepccedilatildeo do primeiro Nietzsche um

82 Maudemarie Clark tinha no entanto uma perspectiva ligeiramente distinta daquela que neste trabalho eacute defendida Cf Maudemarie Clark Nietzsche on Truth and Philosophy Cambridge University Press 1990 83 Cf NL 1872 19 [209]

37

animal metafoacuterico eacute da constituiccedilatildeo do homem como jaacute haviacuteamos defendido

anteriormente a necessidade de redimir-se mediante a crenccedila no laquoveacuteu de Mayaraquo isto

eacute neste caso a necessidade de simultaneamente criar metaacuteforas e crer na fiabilidade

da conceptualizaccedilatildeo que dessas metaacuteforas emerge84 Assim se designa uma coisa como

laquovermelharaquo uma outra como laquofriaraquo uma terceira como laquomudaraquo etc que Nietzsche

nota serem estranhas agrave natureza (VM 220) e apenas isto distingue o homem do animal

a faculdade de reduzir as metaacuteforas intuitivas a um esquema ou seja de dissolver a

imagem resultante da excitaccedilatildeo nervosa num conceito

No fundo Nietzsche natildeo se limita a fazer depender a linguagem conceptual de

dois tipos de metaacutefora uma primeira que se traduz numa imagem e uma segunda que

se traduz por um som ou uma palavra Nietzsche e eacute isto quiccedilaacute que mais importa faz

depender desta uacuteltima metaacutefora a razatildeo humana aquilo a que chamamos racionalidade

Ou seja dito por outras palavras a racionalidade humana depende da subsistecircncia e da

crenccedila na adequaccedilatildeo da linguagem conceptual Neste sentido o homem tem ao seu

alcance algo que eacute inacessiacutevel sob as primeiras impressotildees

Construir uma ordem em piracircmide segundo castas e graus criar um novo mundo de leis

privileacutegios de subordinaccedilotildees delimitaccedilotildees que agora se contrapotildee ao mundo intuitivo

das primeiras impressotildees como sendo o mundo mais estaacutevel mais geral mais conhecido

mais humano e como tal como o mundo regulador e imperativo (VM 223)

Na melhor das hipoacuteteses podemos admirar o homem enquanto criador e artista85

como aliaacutes Nietzsche sugere na sequecircncia do passo acima citado quer dizer enquanto

84 Mais tarde Nietzsche escreveria ldquoOra a mim parece-me [hellip] estarem a subtileza e a forccedila da consciecircncia sempre ligadas agrave capacidade de comunicaccedilatildeo de uma pessoa (ou de um animal) e a capacidade de comunicaccedilatildeo por seu lado agrave necessidade de comunicaccedilatildeo natildeo devendo esta uacuteltima asserccedilatildeo ser entendida como se precisamente o proacuteprio indiviacuteduo que eacute mestre em comunicar e em tornar as suas necessidades inteligiacuteveis devesse de igual modo tambeacutem para a satisfaccedilatildeo das suas necessidades estar absolutamente dependente dos outros Mas parece-me bem ser assim com respeito a muitas raccedilas e cadeias de geraccedilotildees onde a necessidade a indigecircncia obrigaram as pessoas a comunicarem entre si a compreenderem-se raacutepida e inteligentementehelliprdquo A Gaia Ciecircncia op Cit pp 268-269 85 A metaacutefora note-se possibilita ao homem ser artista Esta concepccedilatildeo torna-se essencial enquanto elo de ligaccedilatildeo entre a linguagem e a metafiacutesica de artista proposta por Nietzsche e discutida no capiacutetulo anterior Assim como nota Carlos Alfredo do Couto Amaral ldquoNietzsche atribui agrave metaacutefora filosoacutefica uma funccedilatildeo especiacutefica que apesar de ser distinta da metaacutefora literaacuteria acaba por partilhar com ela o fundo comum da criatividade [hellip] Valoriza assim a lsquometaacutefora vivarsquo criada na arte que anuncia a presenccedila de lsquoalgorsquo a afectar a sensibilidaderdquo Cf Carlos Alfredo do Couto Amaral op Cit pp 30-31

38

um imenso geacutenio construtor que sobre fundaccedilotildees movediccedilas edificou uma catedral de

conceitos infinitamente complicada (VM 223) O que vem estando em causa

subentendida no problema da linguagem conceptual eacute a questatildeo da inacessibilidade

das coisas ou seja da estrutura do homem enquanto carente da capacidade de aceder

agrave verdade ao fundo metafiacutesico do mundo resumindo-se entatildeo por corolaacuterio as

verdades humanas agrave coincidecircncia de conceitos entre si quer dizer ao estar de acordo

com aquilo que jaacute deles seria expectaacutevel e pressuposto tratando-se essas verdades de

ilusotildees que o homem esquece serem ilusotildees

Cumpre relembrar neste sentido que o presente trabalho tem como foco uacutenico

a filosofia do primeiro Nietzsche normalmente referida enquanto primeira fase da

totalidade da obra do autor e que eacute exclusivamente neste contexto que nos referimos

ao problema da verdade Ainda no Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido

Extramoral Nietzsche escreve

Continuamos sem saber de onde proveacutem o impulso para a verdade porque ateacute agora

apenas ouvimos falar da obrigaccedilatildeo que a sociedade impotildee para existir ser verdadeiro

isto eacute utilizar as metaacuteforas usuais portanto expresso de uma maneira moral da

obrigaccedilatildeo de mentir segundo uma convenccedilatildeo estabelecida de mentir de um modo

gregaacuterio num estilo vinculativo para todos Ora eacute certo que o homem esquece que eacute isso

que se passa com ele ele mente do modo indicado inconsciente e segundo haacutebitos de

seacuteculos ndash e precisamente atraveacutes dessa natildeo consciecircncia e atraveacutes desse esquecimento ele

atinge o sentimento da verdade (VM 222)

Utilizar as designaccedilotildees do modo estabelecido eacute pois uma obrigaccedilatildeo moral E o

impulso para a verdade nasce dessa obrigaccedilatildeo sendo ldquocertordquo segundo o nosso filoacutesofo

ldquoque o homem esquece que eacute isso que se passa com elerdquo Os homens natildeo temem nem

odeiam a mentira apenas os possiacuteveis efeitos negativos e prejudicais que a mentira dos

outros pode ter nas suas proacuteprias vidas e eacute a partir deste temor que a sociedade

marginaliza aqueles que natildeo mentem segundo a convenccedilatildeo estabelecida Por outras

palavras Nietzsche potildee em evidecircncia que o procedimento mediante o qual o homem

chega ao sentimento de verdade parte de tomar-se a si mesmo enquanto medida de

todas as coisas ldquodesse modordquo diz o nosso filoacutesofo ldquoele parte do erro de acreditar que

39

tem essas coisas imediatamente perante si como puros objectosrdquo (VM 223) Por este

motivo o impulso para a verdade cuja existecircncia o autor natildeo nega eacute fundamentado

natildeo por uma necessidade de verdade em si mesma mas antes por uma vontade de

seguranccedila e coerecircncia Consequentemente Nietzsche faz da verdade dos homens mero

resultado do uso pragmaacutetico da linguagem conceptual ie metafoacuterica ldquoum exeacutercito

moacutevel de metaacuteforas de metoniacutemias de antropomorfismos numa palavra uma soma

de relaccedilotildees humanas que foram poeacutetica e retoricamente intensificadas transpostas e

adornadas e que depois de um longo uso parecem a um povo fixasrdquo (VM 221)

II3 Metaacutefora e Esquecimento

Essencial ao processo metafoacuterico que por um lado nasce de um impulso para

um sentimento de verdade e que por outro lado culmina na criaccedilatildeo de conceitos eacute

por conseguinte uma espeacutecie de metafiacutesica do esquecimento As transposiccedilotildees que se

datildeo em tal processo do estiacutemulo nervoso agrave imagem e de esta agrave palavra desvalorizar-

se-iam a si mesmas se o homem natildeo esquecesse a sua iacutendole metafoacuterica ie a

necessaacuteria carecircncia de rigor que possibilita os ldquosaltosrdquo entre esferas e domiacutenios distintos

ateacute que se conclua a conceptualizaccedilatildeo de um X para noacutes inacessiacutevel Mas que

esquecimento eacute este O que entende Nietzsche por esquecimento O filoacutesofo nos

textos escritos no iniacutecio da deacutecada de 1870 refere-se ao esquecimento a partir de

algumas perspectivas distintas que chegam a parecer ser agrave primeira vista paradoxais86

Em primeiro lugar o esquecimento eacute-nos apresentado enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave linguagem uma vez que se o homem natildeo esquecesse qual a verdadeira

origem dos conceitos e por conseguinte qual o verdadeiro valor e grau de adequaccedilatildeo

das representaccedilotildees que faz das laquocoisas em siraquo reconhececirc-las-ia (agraves representaccedilotildees)

enquanto inelutavelmente incapazes de aceder e representar qualquer tipo de veritas

86 Ao contraacuterio do que eacute defendido por alguns autores natildeo me parece que esteja em causa um verdadeiro paradoxo Matthew Rampley por exemplo escreve o seguinte ldquoThe amnesia at the root of metaphysics subscribes to the view that the world can be known and that the knowing subject has no constitutive function in the determination of its character Against this stands Nietzschersquos contention that lsquoPhilosophising is a kind of atavism of the highest orderrsquo in which philosophersrsquo thinking is lsquoless a discovering than a re-cognising recollecting a return and home-comingrsquo (BGE sect20) Yet paradoxically while the forgetfulness of metaphysics is the object of criticism Nietzsche also recognizes the necessity of forgetfulness and the dangers of a surfeit of memoryrdquo Matthew Rampley op Cit pp 23 Trata-se natildeo de um paradoxo de acordo com o meu ponto de vista mas sim de duas dimensotildees distintas do esquecimento tal como tentarei demonstrar nas paacuteginas que se seguem

40

aeterna deixando por conseguinte de acreditar na eficaacutecia da linguagem na tarefa que

lhe eacute imposta Consequentemente ldquosoacute mediante o processo do esquecimentordquo

defende poderia ldquoo homem alguma vez chegar a presumir que possui uma verdade no

grau que acabaacutemos de assinalarrdquo (VM 218)

A par daquela constataccedilatildeo de influecircncia nitidamente kantiana ou em certa

medida como consequecircncia dela Nietzsche desenvolve a criacutetica agrave modernidade e agrave

metafiacutesica estudada no iniacutecio desta reflexatildeo presente com especial incidecircncia do nosso

ponto de vista na Segunda Consideraccedilatildeo Intempestiva e no Acerca da Verdade e da

Mentira segundo a qual o esquecimento seria necessaacuterio aos homens em particular

aos ldquofracosrdquo aqueles que ldquodurante uma vida inteirardquo se deixavam ldquoenganar em

sonhosrdquo ldquoprofundamente submergidos em ilusotildees e visotildees oniacutericasrdquo aqueles cujo

ldquoolhar soacute desliza pela superfiacutecie das coisas e vecirc aiacute laquoformasraquordquo (VM 216 e 217) no fundo

aqueles que servindo-se da capacidade de esquecer evitavam confrontar-se com a

complexidade e inevitaacutevel contradiccedilatildeo do mundo apoliacuteneo bem como da

impossibilidade do acesso agraves coisas

Por outro lado numa perspectiva completamente diferente quase antagoacutenica

o esquecimento parece assumir um papel central na metafiacutesica de artista proposta por

Nietzsche atraacutes estudada na medida em que Dioniso o geacutenio da espeacutecie se serve dos

indiviacuteduos e das suas vontades subjectivas sem que disso eles estejam conscientes com

o intuito de reconstituir a unidade originaacuteria do Ser Ou seja a metafiacutesica de artista que

Nietzsche vem propor pressupotildee no nosso entender tambeacutem um esquecimento

embora de diferente iacutendole uma vez que este ldquoesquecimentordquo natildeo estaria directamente

ligado agrave linguagem conceptual metafoacuterica ie agrave geacutenese do conhecimento humano nem

a uma fuga da complexidade da realidade humana

Assim sendo tal como Friedrich Nietzsche escreve por diversas vezes na primeira

fase da sua obra a reconciliaccedilatildeo perioacutedica da qual havia nascido a trageacutedia aacutetica

requereria tambeacutem ela uma espeacutecie de inconsciecircncia ligada ao elemento dionisiacuteaco em

comunhatildeo com os atributos de Apolo Aquela inconsciecircncia a que podemos chamar

ilusatildeo e que tomava na linguagem do autor o nome de esquecimento eacute-nos

apresentada no Nascimento da Trageacutedia enquanto fundamental aos desiacutegnios da

natureza Por este motivo cumpre relevar que tambeacutem o elemento dionisiacuteaco que

surgia aos olhos do grego apoliacuteneo como laquotitacircnicoraquo e laquobaacuterbaroraquo (NT 40) e que sem que

41

este o pudesse esconder era com ele aparentado presumia uma submersatildeo no

esquecimento no ecircxtase ldquono som extaacutetico da festa dionisiacuteaca em melodias maacutegicas de

crescente seduccedilatildeordquo perdia-se no esquecimento e inconsciecircncia de si proacuteprio o

indiviacuteduo dilacerava-se pois o principium individuationis Eacute em relaccedilatildeo a esta

experiecircncia dionisiacuteaca que Nietzsche se refere a um ldquoesquecimento de sirdquo no qual a vida

apareceria justificada enquanto fenoacutemeno

Nietzsche refere-se a este esquecimento proacuteprio do homem traacutegico natildeo como

possibilitante de uma fuga da realidade mas enquanto capacidade de estar fora da

histoacuteria de ser-se supra-histoacuterico por outras palavras enquanto capacidade de

esquecer-se a si mesmo no processo de metamorfose87 proacuteprio da criaccedilatildeo artiacutestica88

Abordaremos com maior cuidado e pormenor esta aparente dicotomia de significados

da determinaccedilatildeo em causa na proacutexima secccedilatildeo Defenderemos que estatildeo em causa duas

dimensotildees distintas do esquecimento que natildeo implicam necessariamente um

paradoxo Por agora atentemos no papel do esquecimento enquanto ferramenta

necessaacuteria agrave formaccedilatildeo e sobrevivecircncia da linguagem conceptual pressuposto que tem

estado subentendido nas secccedilotildees que a esta se antecederam

Ora impliacutecito no processo duplamente metafoacuterico necessaacuterio agrave formaccedilatildeo dos

conceitos estava por um lado um esquecimento do elemento diferenciador entre as

vaacuterias coisas que o homem aglomera por baixo de uma mesma categoria conceptual e

por outro lado um esquecimento de que o proacuteprio processo mediante o qual o homem

chega agrave linguagem se funda em areias movediccedilas e como sobre aacutegua corrente (VM 223)

sendo que natildeo haacute uma total conexatildeo entre a identidade das coisas e a maacutescara delas a

que o conceito se resume Tal como Nietzsche escreve no Nachlass entatildeo ldquonatildeo haacute

expressotildees laquointriacutensecasraquo e natildeo haacute conhecimento intriacutenseco sem metaacuteforardquo89 Por

conseguinte recorrendo a um exemplo do nosso filoacutesofo quando se daacute uma definiccedilatildeo

de mamiacutefero e depois se declara apoacutes observaccedilatildeo de um camelo laquoEis um mamiacuteferoraquo

a verdade a que se chega eacute pode concluir-se de valor limitado meramente

87 Cf Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211 88 Escreve Nietzsche nos fragmentos poacutestumos ldquoOs Gregos satildeo os artistas da vida eles tecircm os seus deuses a fim de serem capazes de viver natildeo de se alienarem a si mesmos da vidardquo [Es sind die Kuumlnstler des Lebens sie haben ihre Goumltter um leben zu koumlnnen nicht um sich dem Leben zu entfremden] NL 1869 3 [62] 89 ldquoNun aber giebt es keine bdquoeigentlichenldquo Ausdruumlcke und kein eigentliches Erkennen ohne Metapherrdquo NL 1872 19 [228]

42

antropomoacuterfica aleacutem de que natildeo contem um uacutenico ponto que seja laquoverdadeiro em siraquo

(VM 224)

Por outras palavras o que estaacute em causa na formulaccedilatildeo das verdades laquohumanasraquo

acaba por resumir-se a uma simples correspondecircncia entre duas determinaccedilotildees que o

proacuteprio homem delineara agrave partida enquanto correspondentes Para que aquela

correspondecircncia se decirc importa natildeo que as essecircncias das coisas sejam na realidade

correspondentes mas sim que o homem acredite na correspondecircncia dos seus

conceitos o que segundo o jovem Nietzsche eacute apenas possiacutevel mediante o

esquecimento a ilusatildeo O que tem lugar no processo mediante o qual surge a linguagem

eacute portanto uma mera traduccedilatildeo de uma impressatildeo sensorial o que implica que a crenccedila

numa verdade da impressatildeo sensorial90 se decirc somente porque o homem esquece as

metaacuteforas intuitivas primordiais enquanto metaacuteforas tomando-as por conseguinte

pelas proacuteprias coisas Nas palavras do nosso filoacutesofo

Apenas por meio do esquecer desse mundo primitivo de metaacuteforas apenas por meio do

endurecimento e da solidificaccedilatildeo de um fluido originariamente incandescente de uma

torrente de imagens emergentes do poder originaacuterio da imaginaccedilatildeo humana apenas por

meio da crenccedila inabalaacutevel de que este sol esta janela esta mesa sejam uma verdade em

si numa palavra apenas porque o homem se esquece de si enquanto sujeito e enquanto

sujeito criador e artista vive ele com algum descanso seguranccedila e coerecircncia (VM 224-

225)

Cabe destacar por conseguinte o papel activo que eacute incutido na determinaccedilatildeo

em anaacutelise e natildeo passivo como alguns comentadores defendem91 Ou seja o

90 Cf NL 1872 19 [228] 91 Entre estes autores destaco Sarah Kofman que defende que o esquecimento apenas toma um papel activo na filosofia de Nietzsche a partir da Genealogia da Moral Veja-se Sarah Kofman op Cit pp 49 e seguinte Em sentido inverso escreve Cristoacutebal Holzapfel ldquoNo homem segundo Nietzsche haacute uma conveniente lsquocapacidade activa do esquecimentorsquo o que eacute um evidente antecedente da teoria Freudiana da repressatildeo onde as metaacuteforas utilizadas aludem a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar o funcionamento do aparato psiacutequico em consonacircncia com o lsquoespiacuterito do temporsquo (Zeitgeist)rdquo [Y en el hombre seguacuten Nietzsche hay una conveniente lsquocapacidad activa de olvidorsquo que es un evidente antecedente de la teoria freudiana de la represioacuten donde las metaacuteforas utilizadas aluden a elementos mecacircnicos e hidraacuteulicos para explicar el funcionamiento del aparato psiacutequico en consonancia com el lsquoespiacuteritu de los temposrsquo (Zeitgeist)] Cristoacutebal Holzapfel ldquoJuego y Arte Consideraciones Ontoloacutegico-Existenciales del juego en Nietzsche Fink y Delacroixrdquo Seminario lsquoFenoacutemenos Fundamentales de la Existencia Humana La filosofia de Eugen Finkrsquo pp 7

43

esquecimento surge nas paacuteginas em estudo e em particular no passo citado enquanto

determinaccedilatildeo fundamental e actuante na constituiccedilatildeo de verdades bem como

possibilitante de uma vida ldquocom algum descanso seguranccedila e coerecircnciardquo uma espeacutecie

de fuga redentora da realidade como haacute pouco haviacuteamos identificado Assim e soacute

assim pode o homem viver confiando no princiacutepio de individuaccedilatildeo na verdade dos seus

predicados e na subjectividade da sua vontade sendo o esquecimento uma das

ferramentas de que Apolo se serve para a completa ilusatildeo dos indiviacuteduos

Eacute pois ldquoporque Apolo quer tranquilizar os seres individuais precisamente ao

traccedilar limites entre elesrdquo (NT 75) que o homem se esquece do mundo primitivo de

metaacuteforas vivendo no descanso e seguranccedila do sonho da aparecircncia daquilo que era jaacute

de si aparecircncia mundo ao qual por fim podemos atribuir a proacutepria natureza da

linguagem conceptual Eacute Apolo portanto que susteacutem o fraacutegil bote no qual noacutes

indiviacuteduos nos encontramos calmamente sentados no meio de um mundo de

tormentos (NT 26) sustendo tambeacutem o laquoveacuteu de Mayaraquo no qual se incluem todas as

formas do nosso conhecimento Por outras palavras o esquecimento do caraacutecter

metafoacuterico dos conceitos a dimensatildeo do esquecimento em causa na geacutenese e estrutura

da linguagem diz respeito no essencial a uma experiecircncia apoliacutenea de esquecimento

Natildeo obstante cumpre notar que mesmo ldquona suprema vida desta realidade de sonho

transparece-nosrdquo ainda ldquoa sensaccedilatildeo da sua aparecircnciardquo Teria sido esta pelo menos a

experiecircncia do jovem Nietzsche (NT 24)

II4 Esquecimento e Felicidade

Tendo a experiecircncia de que na suprema vida daquela realidade de sonho

transparece natildeo obstante a sensaccedilatildeo da sua aparecircncia ou seja de que o conhecimento

se traduz numa aparecircncia daquilo que eacute jaacute de si aparecircncia depara-se-nos uma vez

mais a incapacidade de o homem aceder agrave essecircncia das coisas Natildeo obstante o

problema de fundo manter-se inalteraacutevel haacute uma questatildeo que Nietzsche de forma cada

vez mais assumida vai pondo em relevo e que tem que ver com a possibilidade de

felicidade Ou seja uma vez que o homem parece natildeo ter acesso directo agrave verdade ao

fundo do mundo como pode se eacute que pode o homem ser feliz De que forma pode a

vida ser suportaacutevel se natildeo temos acesso agrave essecircncia das coisas se a linguagem

conceptual na qual todo o nosso conhecimento se edifica se resume no final de contas

44

a uma tautologia Como pode o homem conseguir e querer viver ao inveacutes de fugir disto

agrave semelhanccedila do filho de Lessing92 Cumpre tambeacutem questionar claro estaacute se haacute

alguma correspondecircncia entre a verdade e a felicidade ou seja se o acesso agrave verdade

bastaria para fazer o homem feliz Por fim e parece-me ser esta de facto a forma como

Nietzsche potildee a questatildeo seria possiacutevel a felicidade se soubeacutessemos a ldquoverdaderdquo Ou

pelo contraacuterio ser-nos-ia esta incomportaacutevel Estas questotildees como verificaremos tecircm

pontos de contacto entre si

Com as perguntas acima enunciadas tocamos no cerne da metafiacutesica de artista e

por necessaacuterio corolaacuterio da criacutetica agrave cultura historicista problemaacuteticas tratadas no

capiacutetulo anterior presentes com particular incidecircncia na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva e a partir das quais quando analisadas em simultacircneo com os textos de

Nietzsche que lhe satildeo contemporacircneos dois tipos de homem resultam distinguidos o

tipo criador e o natildeo criador o artista e o homem do rebanho93 Tambeacutem em relaccedilatildeo agrave

verdade emergem consequentemente dois tipos de disposiccedilatildeo correspondendo a

cada um dos geacuteneros de homem atraacutes identificados por um lado em concordacircncia com

o que haacute pouco concluiacutemos o geacutenio criador e artista consciente da sua fugacidade

intransponiacutevel que dispondo dos mesmos siacutembolos conceptuais serve-se da linguagem

enquanto ferramenta da sua arte enquanto ldquoforccedila plaacutesticardquo e ldquocapacidade de crescer

por si mesmordquo (CE II 108) por outro lado o homem que tem na linguagem conceptual

um porto de abrigo que lhe permite crer para sua proacutepria sobrevivecircncia no laquoveacuteu de

Mayaraquo ou seja neste caso na verdade dos seus predicados como haviacuteamos notado

aquando do olhar que lanccedilaacutemos ao Nascimento da Trageacutedia e em especial ao Acerca

da Verdade e da Mentira no Sentido Extramoral texto no qual o autor defendia que a

predominacircncia da linguagem conceptual

eacute o meio graccedilas ao qual os indiviacuteduos mais fracos os menos robustos se conservam e aos

quais estaacute vedado lutar pela existecircncia com o auxiacutelio de chifres ou de dentes afiados das

feras (VM 216)94

92 Eacute o proacuteprio Nietzsche quem se refere ao filho de Gotthold Ephraim Lessing (VM 216) que teria morrido poucos dias apoacutes o seu nascimento 93 Veja-se Eugen Fink op Cit pp 48 94 Natildeo deixemos de notar que uma das coisas que satildeo postas em evidecircncia eacute a oposiccedilatildeo nomos versus physis Para uma bibliografia sobre esta dicotomia veja-se Danyel Keyt ldquoPlato on Justicerdquo A Companion To Plato Edited by Hugh H Benson pp 432 e 433 aconselho tambeacutem neste caso a leitura do apecircndice

45

Por outras palavras tanto o artista quanto o indiviacuteduo fraco parecem requerer

no decorrer dos textos analisados de uma ldquoespeacutecierdquo de esquecimento Escreveria

Nietzsche noutro passo que ldquoeacute possiacutevel viver quase sem recordar e viver feliz como o

demonstra o animal mas eacute impossiacutevel viver sem esquecerrdquo (CE II 107) O que Nietzsche

potildee em evidecircncia eacute que subjacente a qualquer tipo de felicidade impera

inevitavelmente uma capacidade de esquecer Mas que esquecimento eacute este E seraacute

idecircntico o esquecimento do homem criador ao esquecimento do homem do rebanho

ou trata-se de duas dimensotildees distintas da mesma determinaccedilatildeo

De acordo com o nosso entendimento estatildeo de facto em causa duas dimensotildees

distintas do esquecimento uma da qual se usava inconscientemente o homem fraco

esquecendo que a imagem que detinha das coisas mais natildeo era que uma metaacutefora e

outra a que Nietzsche natildeo obstante conceder tambeacutem o nome de esquecimento

define mais tarde como ldquocapacidade de estar fora da histoacuteriardquo (CE II 111) proacutepria e

exclusiva do homem artiacutestico Cumpre advertir que estando em jogo duas dimensotildees

de esquecimento distintas as suas implicaccedilotildees satildeo tambeacutem elas dissemelhantes pelo

que conveacutem natildeo confundi-las se ao homem do rebanho a felicidade eacute possiacutevel apenas

mediante o esquecimento uma vez que este necessita esquecer que natildeo tem acesso agrave

verdade para conceder algum valor agrave vida para acreditar que isto vale a pena ao geacutenio

criador ao artista pelo contraacuterio era preciso ser supra-histoacuterico isto eacute ser capaz de

estar fora da histoacuteria a fim de construir algo que esteja para aleacutem dela superando-a95

por outras palavras como nos demonstra a geacutenese da arte aacutetica o artista traacutegico

necessita esquecer as normas apoliacuteneas isto eacute ficar ldquosubmerso no esquecimento de si

proacuteprio inerente aos estaacutedios dionisiacuteacosrdquo (NT 41) ldquoem cuja progressatildeo desaparece o

que eacute subjectivo ateacute atingir um pleno esquecimento de si proacutepriordquo (NT 27) O que

do livro de E R Dodds atraacutes citado sobre o Goacutergias de Platatildeo no qual Dodds elabora uma comparaccedilatildeo entre Nietzsche e o terceiro personagem daquele diaacutelogo Platoacutenico Caacutelicles dando especial destaque agrave dicotomia Nomos versus Physis veja-se tambeacutem V Tejera Nietzsche and Greek Thought Martinus Nijhoff Publishers 1987 pp 114-119 95 Em concordacircncia com o que aqui eacute defendido Maria Joatildeo Mayer Branco escreve ldquoO prazer na metamorfose eacute assim o contraacuterio de uma fuga da realidade de um subterfuacutegio para fugir agraves dores de viver ou da invenccedilatildeo de realidades imaginaacuterias criadas pela carecircncia de forccedilas Trata-se antes da afirmaccedilatildeo da vida natildeo fixada onde a individuaccedilatildeo eacute expressatildeo da forccedila de vida que se multiplica e se compraz em crescer em desdobrar-se em aparecircncias que natildeo satildeo cascas vazias mas criaccedilotildees da ldquoforccedila plaacutesticardquo de um homem de um povo ou de uma culturahelliprdquo Maria Joatildeo Mayer Branco op Cit pp 211-212

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Nietzsche quer dizer quando diz que o homem criador e artista necessita esquecer eacute

assim sendo e como jaacute haviacuteamos citado anteriormente que ldquonenhum artista seraacute capaz

de realizar a sua obra [hellip] sem o ter desejado e procurado fora de qualquer pensamento

histoacutericordquo (CE II 111) trata-se de uma ldquoalienaccedilatildeo miacutestica de si proacutepriordquo (NT 29) Eacute neste

sentido que o nosso filoacutesofo escreve que tanto

na mais pequena como na maior felicidade haacute sempre qualquer coisa que faz com que a

felicidade seja uma felicidade a possibilidade de esquecer ou para dizer em termos mais

cientiacuteficos a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da histoacuteria (CE II 107)

O que estaacute a ser posto em relevo neste passo eacute por conseguinte a prevalecircncia

de uma relaccedilatildeo causal segundo a qual eacute a capacidade de estar fora da histoacuteria que leva

o artista a realizar a sua obra o general a conquistar a vitoacuteria e um povo a conseguir a

liberdade estes esquecem ignoram a maior parte das coisas para realizar uma soacute satildeo

homens de acccedilatildeo que desprezam o que vai atraacutes de si e preocupam-se apenas com o

futuro amam de tal forma os seus empreendimentos que estes resultam de um valor

incalculaacutevel (CE II 111) Neste sentido Nietzsche apresenta-nos a sua perspectiva do

que devia ser uma cultura futura tal como jaacute o havia feito no Nascimento da Trageacutedia96

Haacute portanto um ponto de contacto entre aquela obra e a Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva nesta uacuteltima mais importante do que uma criacutetica agrave cultura

contemporacircnea podemos agora encontrar uma proposta de uma nova civilizaccedilatildeo

Ora essa nova civilizaccedilatildeo pode concluir-se mediante a leitura em especial do

Nascimento da Trageacutedia implicava aquele conhecimento traacutegico de que no capiacutetulo

anterior falaacutemos e que seraacute essencial para compreendermos qual o papel que Nietzsche

concede ao homem ao indiviacuteduo enquanto resultado da fragmentaccedilatildeo do Uno

primordial na sua cosmovisatildeo traacutegica Para o nosso filoacutesofo a vontade individual do

homem que a este surgia como inteiramente subjectiva encontrava-se na verdade

subjugada agrave vontade do fundo dionisiacuteaco ie do laquogeacutenio da espeacutecieraquo que daquele se

usava enquanto instrumento enquanto ldquomeio para encontrar-se consigo mesmordquo97

Entender este geacutenio compreender a tragicidade coacutesmica em questatildeo significava

96 Cf Eugen Fink op cit pp 51 97 Ibidem pp 52

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ldquoperceber que o homem natildeo eacute apenas Eu e consciecircncia individualrdquo98 o que implicaria

destruir por consequecircncia a compreensatildeo que os indiviacuteduos tinham de si mesmos

enquanto auto-suficientes99 aquela ldquolaquoingenuidaderaquo homeacutericardquo que Nietzsche afirma

tratar-se ldquode uma ilusatildeo como a que eacute tantas vezes utilizada pela natureza a fim de

atingir os seus propoacutesitosrdquo (NT 37) entender o geacutenio implicaria como tal entender o

homem enquanto ferramenta utilizada pela natureza a fim de atingir os seus propoacutesitos

noccedilatildeo que ldquodespedaccedila a pretensatildeo do Eu de se bastar a si proacutepriordquo100 pondo o Eu em

relaccedilatildeo ldquoiacutentimardquo com a ldquorelatividade do tempordquo e o significado ldquoverdadeiro isto eacute

metafiacutesico da vidardquo (NT 163) que ldquoobscuramente pressentimos na intimidade da nossa

vida fisioloacutegica onde o mais nosso eacute o mais estranho e impessoalrdquo101 Esta eacute a verdade

dionisiacuteaca que Nietzsche defende ser intoleraacutevel que pressupotildee rasgar o laquoveacuteu de

Mayaraquo aniquilar o principium individuationis e evidenciar a ilusatildeo socraacutetica segundo a

qual ldquoo pensamento seguindo o fio condutor da causalidade atinge os mais profundos

abismos do ser e de que o pensamento seria capaz natildeo apenas de conhecer mas mesmo

de corrigir o serrdquo (NT 107) Trata-se acima de tudo como mais tarde escreveria de uma

ldquoafirmaccedilatildeo da transitoriedade e do aniquilamento que eacute o elemento decisivo numa

filosofia dionisiacuteacardquo102 perante a qual o homem nela submerso sente ldquorepugnacircncia em

agir porque a sua acccedilatildeo em nada pode alterar a essecircncia eterna das coisasrdquo (NT 59)

98 Giorgio Colli Escritos sobre Nietzsche Reloacutegio drsquoAacutegua Lisboa 2000 pp 12-14 99 Veja-se Maria Joatildeo Mayer Branco op cit pp 213 100 Giorgio Colli op cit pp 12-14 101 Ibidem 102 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 176

48

III A Vida Como Um Jogo

III1 A Metaacutefora Em Causa

Ao concluir que o homem natildeo tem nem pode ter acesso agrave inteira essecircncia das

coisas [das volle Wesen der Dinge wird nie erfasst]103 e que por isso mesmo a

linguagem eacute inelutavelmente metafoacuterica e por definiccedilatildeo incapaz de representar as

coisas com total adequaccedilatildeo Nietzsche desenha acima de tudo um esboccedilo do homem

enquanto ser incompleto perante a tarefa de conhecer a laquocoisa em siraquo104 o que implica

por seu turno a assunccedilatildeo de uma incapacidade de conhecer-se a si mesmo e de

entender o impulso dionisiacuteaco que o nosso filoacutesofo descreve como sendo o fundo da

vida e enquanto ser que precisa de esquecer tudo isto para poder viver com alguma

serenidade e felicidade Eacute pois como jaacute haviacuteamos defendido de uma ontologia que na

verdade se trata na medida em que os impulsos dionisiacuteacos do mais iacutentimo do ser

implicam uma necessidade um desejo de redenccedilatildeo mediante o natildeo-ser o mundo

apoliacuteneo das formas plaacutesticas e da linguagem conceptual

Assim o conhecimento eacute-nos apresentado de duas perspectivas por um lado eacute-

nos inacessiacutevel na sua totalidade o que leva a que para que consigamos ser felizes

criemos um mundo de verdades que mais natildeo satildeo do que ilusotildees nas quais necessitamos

de acreditar para nossa proacutepria seguranccedila por outro lado o conhecimento total do

fundo dionisiacuteaco eacute-nos alegado como quase indesejaacutevel uma vez que de acordo com o

esboccedilo que dele Nietzsche delineia tal conhecimento ser-nos-ia insuportaacutevel105 agrave

semelhanccedila por exemplo do ocorrido com Eacutedipo Rei106 saacutebio que desvendou o enigma

da Esfinge e que ao conhecer-se de tal forma incomportaacutevel sentiu ser esse

103 Cf nota 48 104 Sobre o proacuteprio conhecimento escreve Nietzsche ldquoPara falar com rigor o facto de conhecer tem como uacutenica forma a tautologia e eacute vazia Todo o conhecimento que nos faz avanccedilar eacute uma forma de identificar o natildeo-idecircntico e o semelhante isto eacute eacute essencialmente iloacutegicordquo [Das Erkennen ganz streng genommen hat nur die Form der Tautologie und ist leer Jede uns foumlrdernde Erkenntniszlig ist ein Identificiren des Nichtgleichen des Aumlhnlichen dh ist wesentlich unlogisch] NL 1872 19 [236] 105 ldquoConsciente da verdade uma vez contemplada o ser humano vecirc entatildeo por toda a parte apenas o lado horriacutevel ou absurdo do ser entendendo agora a dimensatildeo simboacutelica no destino de Ofeacutelia reconhecendo agora a sabedoria do deus da floresta Sileno sente repugnacircnciardquo (NT 59) Por isso mesmo uma vez mais surge a necessidade de Apolo como Nietzsche explica no seguinte passo ldquoDaquele fundamento de toda a existecircncia o subsolo dionisiacuteaco do mundo soacute pode chegar agrave consciecircncia do indiviacuteduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela forccedila apoliacutenea de transfiguraccedilatildeohelliprdquo (NT 171) 106 Soacutefocles Rei Eacutedipo Ediccedilotildees 70 2006

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conhecimento que acabou por arrancar os seus proacuteprios olhos Conhecer a verdade

dionisiacuteaca implicaria pois um destino igual ao de Penteu107 (NT 71) Aquele mito de

Soacutefocles parece ldquosegredar-nosrdquo entatildeo ldquoque a sabedoria e justamente a sabedoria

dionisiacuteaca eacute uma atrocidade que transgride a naturezardquo (NT 71) e que por esse motivo

provoca uma resposta da natureza contra o saacutebio ldquoO cume da natureza volta-se contra

o saacutebio sabedoria eacute crime contra a naturezardquo (NT 71) O geacutenio da espeacutecie a natureza

que atraacutes apresentaacutemos como sendo imoral precisava da crenccedila dos espeacutecimes no

principium individuationis para sua proacutepria subsistecircncia requeria que o homem

acreditasse na subjectividade da sua vontade sendo que esta no fundo sem que ele o

soubesse obedecia aos desiacutegnios misteriosos de uma unidade superior

Ora esta verdade do mundo seria aquela que Nietzsche julgara ter descoberto

na antiga trageacutedia aacutetica expressa mais fidedignamente mediante a muacutesica do que por

palavras e que teria como significado da vida um jogo construtor-destruidor de

Dioniso108 No fundo o que Nietzsche potildee em conflito com as ldquoverdades da ciecircnciardquo ou

seja com a supremacia do loacutegico do saber racional da linguagem socraacutetica eacute uma

concepccedilatildeo da vida109 e do Homem que relega essas verdades a um valor meramente

superficial Por este motivo Dioniso e Apolo resultam ser no Nascimento da Trageacutedia

operadores conceptuais da metafiacutesica de artista que Nietzsche propotildee110 em

consonacircncia com esta visatildeo da vida humana chamemos-lhe agora ldquocosmovisatildeo

traacutegicardquo111 e daiacute a importacircncia da anaacutelise que atraacutes lhes concedemos

107 Veja-se Euriacutepides As Bacantes Ediccedilotildees 70 2011 108 Eugen Fink op Cit pp 20 109 Profiacutecuos apontamentos sobre esta ideia satildeo os outrora escritos por Fink que passo a reproduzir dado o seu interesse ldquoNietzsche encobriu com demasiada frequecircncia o seu profundo e abismal conceito da vida sobretudo com propoacutesitos poleacutemicos sob um banal conceito bioloacutegico As suas alusotildees a Darwin natildeo devem ser tomadas a seacuterio Natildeo se compreende o conceito da laquovidaraquo se natildeo se conhecer o seu conceito-chave do laquotraacutegicoraquo entendido como o contraste entre Apolo e Dioacutenisos em que ele vecirc os poderes fundamentais da realidade e do mundo Embora Nietzsche opere com categorias esteacuteticas e psicoloacutegicas e ainda em 1888 diga do Nascimento da Trageacutedia que ela oferece laquoa primeira psicologiaraquo do fenoacutemeno dionisiacuteaco que eacute uma ponte para a psicologia do poeta traacutegico temos de reconhecer que no fundo se trata de uma coisa inteiramente diferente a saber da experiecircncia original do ser em Nietzsche ndash que ele disfarccedila em psicologia e teoria da arte - da sua ontologiardquo Eugen Fink op Cit pp 21 110 Alexandre Augusto Bellei ldquoNietzsche a trageacutedia como jogo de intemporalidaderdquo Revista Traacutegica Estudos sobre Nietzsche ndash 2ordm semestre de 2009 ndash Vol 2 ndash nordm 2 ndash pp 1 ndash 16 111 Nas palavras de Nietzsche ldquoQuero falar apenas da oposiccedilatildeo mais ilustre agrave cosmovisatildeo traacutegica aludindo com isto agrave ciecircncia optimista na sua essecircncia mais profunda com o seu antepassado Soacutecrates agrave cabeccedilardquo (NT 111)

50

A metaacutefora do jogo construtor-destruidor de Dioniso remonta por seu turno a

um fragmento de Heraclito112 filoacutesofo em cuja proximidade Nietzsche diria ao olhar

numa fase posterior os seus primeiros textos sentir-se ldquoem geral mais agasalhado e

bem-disposto que em qualquer outro siacutetiordquo113 Resulta quiccedilaacute curioso afirmarmos tal

proximidade filosoacutefica entre Nietzsche e Heraclito tendo em conta que do primeiro

dissemos construir uma ontologia afirmando o ser e a sua necessidade de redenccedilatildeo

mediante o natildeo-ser e do segundo disse Nietzsche ter negado o ser em geral (FETG 38)

Pois o uacutenico mundo que ele conservou ndash um mundo rodeado de leis eternas natildeo escritas

animado do fluxo e do refluxo de um ritmo de bronze ndash nada mostra de permanente nada

de indestrutiacutevel nenhum baluarte no seu fluxo Heraclito exclamou mais alto do que

Anaximandro laquoSoacute vejo o devir Natildeo vos deixeis enganar Eacute agrave vossa vista curta e natildeo agrave

essecircncia das coisas que se deve o facto de julgardes encontrar terra firme no mar do devir

e da evanescecircncia Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duraccedilatildeo fixa mas

ateacute o proacuteprio rio no qual entrais pela segunda vez jaacute natildeo eacute o mesmo que era da primeira

vez114raquo (FETG 38)

Por outra parte a representaccedilatildeo intuitiva de Heraclito natildeo deixa de englobar o

mundo presente que o filoacutesofo heleacutenico julga conseguir olhar como mero espectador

e que se comprime ao nosso redor em todas as experiecircncias ou seja que se manifesta

mediante as condiccedilotildees que tornam possiacutevel a experiecircncia do mundo e com ele da

existecircncia ie o tempo e o espaccedilo (FETG 38) Assim sendo o que estaacute em causa eacute em

especial uma concepccedilatildeo do tempo que segundo Nietzsche seria a mesma de

Schopenhauer segundo a qual ldquocada instante do tempordquo diz ldquosoacute existe na medida em

que destruiu o instante precedente seu pai para bem depressa ser ele proacuteprio tambeacutem

destruiacutedordquo (FETG 39) perecendo por conseguinte todas coisas presentes a uma

absolutizaccedilatildeo do devir Assim o papel concedido ao indiviacuteduo nesta cosmodiceia estaacute

subjugado agrave fatalidade de uma temporalidade fugaz semelhante a todas as coisas que

112 Heraclito fragmento CXXXI ldquoO tempo eacute uma crianccedila brincando jogando reinado da crianccedilardquo Cf Heraclito Fragmentos Contextualizados Prefaacutecio apresentaccedilatildeo traduccedilatildeo e comentaacuterios de Alexandre Costa Ediccedilatildeo bilingue Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2005 pp 157 113 Friedrich Nietzsche Ecce Homo op cit pp 175 114 Referecircncia aos fragmentos XLIX L e LI de Heraclito ldquoNos mesmos rios entramos e natildeo entramos somos e natildeo somosrdquo ldquoNatildeo eacute possiacutevel entrar duas vezes no mesmo riordquo ldquoAos que entram nos mesmos rios afluem outras e outras aacuteguas e os vapores exalam do huacutemidordquo Heraclito op cit pp 147

51

a inteligecircncia do homem julga soacutelidas e constantes mas que diz Nietzsche natildeo tecircm

existecircncia real (FETG 41) natildeo se defende neste caso que as coisas (incluindo o ser)

natildeo existam argumenta-se sim que natildeo existem enquanto coisas constantes

afirmando-se pelo contraacuterio que eacute da sua essecircncia a ininterrupta mutabilidade

resultante da sujeiccedilatildeo ao fluxo incontornaacutevel do devir115 A individualizaccedilatildeo as coisas e

os seres resultam entatildeo da fragmentaccedilatildeo do Uno ou seja dito por outras palavras o

principium individuationis apoliacuteneo nasce da multiplicidade do Uno dionisiacuteaco De

acordo com esta perspectiva o indiviacuteduo estaacute sujeito ao tempo e ao devir mas em

sentido inverso aquela unidade da qual o proacuteprio indiviacuteduo havia resultado seria

intemporal Quer dizer trata-se entatildeo de duas dimensotildees diferentes a dos indiviacuteduos

fugaz passageira e a do laquogeacutenio da espeacutecieraquo intemporal assim daquela unidade

fragmenta-se uma multiplicidade de indiviacuteduos que mais natildeo satildeo do que uma pequena

parte de um todo intemporal e enquanto individualidade todos os indiviacuteduos todas as

coisas estatildeo sujeitas agrave inexorabilidade do devir ndash ldquoos indiviacuteduos satildeo as pontes sobre as

quais o devir repousardquo116 escreveria Nietzsche

Esta ideia de que todas as coisas se resumem a um mesmo fundo primordial era

tema central como vimos no primeiro capiacutetulo da presente reflexatildeo da luta dos

contraacuterios que Nietzsche esboccedilara no Nascimento da Trageacutedia representados pelos

impulsos apoliacuteneos e dionisiacuteacos essa era concluiacutera Nietzsche a proacutepria ldquodoutrina dos

misteacuterios da trageacutediardquo ou seja ldquoo conhecimento fundamental da unidade de tudo o que

existerdquo (NT 78) o que natildeo foi dito na altura e que agora cumpre estudar eacute que jaacute

Heraclito o havia afirmado117

115 Cf A Filosofia na Idade Traacutegica dos Gregos pp 39-41 116 ldquoDie Individuen sind die Bruumlcken auf denen das Werden beruhtrdquo NL 1872 19 [187] 117 Cf por exemplo fragmento I ldquoOuvindo natildeo a mim mas ao loacutegos eacute saacutebio concordar ser tudo-umrdquo cf tambeacutem fragmento XXII ldquohellipde todas as coisas um e de um todas as coisasrdquo Heraclito op cit pp 141 e 144 Como nota Joseacute Barata-Moura em relaccedilatildeo agravequele primeiro fragmento ldquoa captaccedilatildeo do fundamento universal ou coacutesmico apresenta-se como a tarefa essencial que deve ser preenchida por um saber radical em cuja prossecuccedilatildeo consiste o caminho da verdadeira sabedoria O saber de que o saacutebio se reveste natildeo eacute o de uma mera acumulaccedilatildeo de conhecimentos na linha da extensatildeo ou da quantidade mas sim o daquela visatildeo unitaacuteria que possibilita a penetraccedilatildeo do diverso a partir da consideraccedilatildeo do seu lugar no todo[hellip] Eacute no entanto muito importante natildeo esquecer que esta consideraccedilatildeo das coisas na sua unidade fundamental ou no seu fundamento natildeo implica verdadeiramente um aniquilamento da sua diversidade (nem mesmo tatildeo soacute no plano da teoria)rdquo Joseacute Barata-Moura Episteme Perspectivas gregas sobre o saber Heraclito-Platatildeo-Aristoacuteteles Dissertaccedilatildeo de Doutoramento em Filosofia apresentada agrave Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa 1979 pp 27 e 28

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De acordo com a leitura que Nietzsche empreende dos fragmentos heracliacuteticos

o devir comeccedilava entatildeo justamente no momento em que as coisas se separavam do

laquoIndefinidoraquo primordial (FETG 45) ou seja quando Dioniso se fraccionava em diversos

indiviacuteduos O tempo entenda-se por consequecircncia do que agora afirmaacutemos existia

apenas na dimensatildeo do indiviacuteduo que era finito mas natildeo do cosmos ou do laquogeacutenio da

espeacutecieraquo que era infinito118 Assim todo o devir teria nascido na perspectiva de

Heraclito a partir do conflito dos contraacuterios e os atributos definidos que nos parecem

ser duradouros e consistentes eram meramente a expressatildeo da superioridade

momentacircnea de um desses opostos (FETG 40) Nietzsche recorre a diversos exemplos

e fragmentos de Heraclito para justificar esta posiccedilatildeo119 como por exemplo o mel que

seria para este simultaneamente amargo e doce e o proacuteprio mundo que seria ldquoum

jarro cheio de uma mistura que tem de agitar-se constantementerdquo (FETG 40) Natildeo quer

isto dizer natildeo obstante que o devir fosse tido entatildeo como mero evidenciar de uma

luta de atributos eternos pelo contraacuterio

Ele [Heraclito] grita pela segunda vez laquoo Uno eacute o muacuteltiploraquo As inuacutemeras qualidades de

que podemos aperceber-nos natildeo satildeo essecircncias eternas nem fantasmas dos nossos

sentidos (Anaxaacutegoras admitira a primeira [destas possibilidades] Parmeacutenides a segunda)

natildeo satildeo um ser riacutegido e arbitraacuterio nem a aparecircncia fugidia que atravessa os ceacuterebros

humanos A terceira possibilidade a uacutenica que restava a Heraclito natildeo poderaacute ser

adivinhada nem calculada antecipadamente por ningueacutem dotado de faro dialeacutectico pois

o que ele inventou aqui eacute uma realidade ateacute no domiacutenio das ideias miacutesticas mais

inacreditaacuteveis e das metaacuteforas coacutesmicas mais inesperadas ndash O mundo eacute o jogo de Zeus

118 Faraacute sequer sentido falar-se de tempo quando se reflecte sobre o infinito Ou seja quando se reflecte sobre aquilo a que por definiccedilatildeo natildeo se pode corresponder uma medida temporal Eacute isso que Nietzsche potildee em evidecircncia o tempo existe apenas para as coisas finitas que natildeo podem deixar de sujeitar-se ao fluxo do devir mas natildeo para o laquogeacutenio da espeacutecieraquo quer dizer natildeo para o Uno primordial No Nachlass por exemplo pode ler-se ldquoO tempo em si eacute um absurdo soacute existe tempo para um ser que sente E o mesmo acontece com o espaccedilo Toda a forma pertence ao sujeito Eacute a apreensatildeo da superfiacutecie atraveacutes do espelho Devemos abstrair todas as qualidades [hellip] O infinito na natureza ela natildeo tem nenhum limite em parte alguma Soacute para noacutes existe o finito O tempo diziacutevel ao infinitordquo NL 1872 19 [133 amp 140] Assim e recorrendo aos fragmentos heracliacuteticos o cosmo para ldquoos acordadosrdquo seria ldquouno e igualrdquo enquanto simultaneamente entre aqueles ldquoque estatildeo deitados cada qual se volta para o seu cosmo particularrdquo (fragmento XXXII) por outra parte sendo o cosmo uma unidade indivisiacutevel e infinita e o loacutegos comum a individualidade vivia natildeo obstante como se tivesse um pensamento particular (nas palavras de Heraclito ldquoembora sendo o loacutegos comum a massa vive como se tivesse um pensamento particularrdquo (fragmento XVIII) Heraclito op cit pp 143 e 145) 119 Veja-se por exemplo o fragmento LII ldquoAs coisas aquecem-se o quente arrefece-se o huacutemido seca o seco humidifica-serdquo Heraclito op cit pp 147

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ou em termos fiacutesicos do fogo consigo mesmo120 o uno soacute neste sentido eacute

simultaneamente o muacuteltiplo (FETG 44)

Sendo o Uno muacuteltiplo a multiplicidade tem de ser encarada enquanto parte

daquele todo estando aquela diversidade em constante mudanccedila e movimento

diferenccedila e auto-contradiccedilatildeo e sendo este todo simultaneamente uma unidade soacutelida

Esta unidade - chamemos-lhe agora ldquodionisiacuteacardquo - que na sua proacutepria constituiccedilatildeo se

revela muacuteltipla eacute entatildeo aquela ldquoforccedila criadora do universordquo que potildee e dispotildee e que

Heraclito compara a uma ldquocrianccedila coacutesmicardquo que joga colocando ldquopedras aqui e acolaacuterdquo

(NT 169) e que com igual passividade indiferenccedila e amoralidade constroacutei e destroacutei

cria e devasta subjugando por consequecircncia os homens e as suas vontades individuais

fazendo-os tanto viver como sucumbir da mesmiacutessima maneira sem qualquer

propoacutesito sem qualquer sentido

III2 O papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso

A visatildeo coacutesmica atraacutes narrada deixa numa primeira instacircncia o indiviacuteduo numa

posiccedilatildeo um tanto ou quanto desesperante natildeo apenas eacute incapaz de compreender-se na

sua totalidade como o sentido da sua existecircncia a haver algum parece ser subjugado

a um sentido superior Este olhar sobre o cosmos e sobre a posiccedilatildeo do ser no cosmos

desagua na filosofia do jovem Nietzsche numa resposta metafiacutesica que entrelaccedila a arte

com a vontade neste sentido natildeo eacute por acaso que Nietzsche recorre aos preacute-Socraacuteticos

quando se questiona sobre o ser ndash natildeo esqueccedilamos que jaacute mesmo os mais antigos

fragmentos filosoacuteficos ainda antes sequer de haver nascido o conceito de metafiacutesica no

leacutexico da filosofia debruccedilavam-se sobre tais questotildees O homem e o Mundo na

interpretaccedilatildeo nietzschiana da cosmovisatildeo Grega satildeo postos sob a fatalidade e

inelutabilidade da dor e do sofrimento mais no Nascimento da Trageacutedia (e tambeacutem em

alguns fragmentos poacutestumos121) a individuaccedilatildeo eacute posta como resultado directo do

sofrimento ie como consequecircncia da dor resultante da fragmentaccedilatildeo dionisiacuteaca e natildeo

120 Veja-se o fragmento XXV ldquoTodas as coisas o fogo sobrevindo separaraacute e conflagraraacuterdquo Heraclito op cit pp 144 121 Cf NL 1870 7 [116]

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como sua causa Esta condiccedilatildeo sofredora do ser - cuja essecircncia como vimos

anteriormente implicava uma redenccedilatildeo na ilusatildeo de si a fim de conseguir suportar essa

sua proacutepria condiccedilatildeo - pode agora ser apontada como cerne do pessimismo da filosofia

nietzschiana de Basileia122 Teraacute sido porventura a sua interpretaccedilatildeo peculiar dos

Helenos (em especial daqueles cujas vidas preencheram a filosofia dos seacuteculos VI e V

antes de Cristo) que de acordo com o jovem filoacutesofo natildeo eram nem pessimistas nem

optimistas123 a incutir no pessimismo nietzschiano um caraacutecter que o diferenciava por

exemplo do pessimismo de Schopenhauer - em particular na medida em que Nietzsche

apela agrave acccedilatildeo neste caso agrave redenccedilatildeo mediante a afirmaccedilatildeo artiacutestica

Eacute Nietzsche pois quem no-lo diz ldquoa uacutenica possibilidade de vida na arterdquo124 Esta

perspectiva justifica de certa forma a geacutenese da metafiacutesica de artista que no primeiro

capiacutetulo desta reflexatildeo consideraacutemos importante estudar e que agora em comunhatildeo

com uma anaacutelise ao sentido que ao ser eacute concedido na cosmovisatildeo traacutegica de Nietzsche

cabe aprofundar Ora na filosofia antecedente a Soacutecrates e ateacute mesmo a Parmeacutenides

o ser [on] era entendido como natureza [physis] e a morte era entendida natildeo apenas

como antecacircmara de uma nova vida mas ateacute em certa media como a sua proacutepria

condiccedilatildeo e justificaccedilatildeo 125 A morte tornava-se pois a proacutepria justificaccedilatildeo da vida e a

individuaccedilatildeo passava a ser agrave semelhanccedila de uma obra de arte entendida por Nietzsche

122 Em Basileia em finais de 1869 Nietzsche escrevia ldquoO pessimismo eacute o resultado do reconhecimento da absoluta falta de loacutegica da ordem do mundo o idealismo mais forte lanccedila-se para a batalha com o iloacutegico sob a bandeira de um conceito abstracto por exemplo lsquoverdadersquo lsquomoralidadersquo etc O seu triunfo eacute a negaccedilatildeo da falta de loacutegica como algo ilusoacuterio natildeo essencial O lsquorealrsquo eacute apenas uma ideiardquo [Der Pessimismus ist die Folge der Erkenntniszlig vom absolut Unlogischen der Weltordnung staumlrkster Idealism wirft sich in Kampf gegen das Unlogische mit der Fahne eines abstrakten Begriffs zB Wahrheit Sittlichkeit usw Sein Triumph Leugnung des Unlogischen als eines Scheinbaren nicht Wesentlichen Das bdquoWirklicheldquo ist nur eine ἰδέα] NL 1869 3 [51] Sobre o conceito de pessimismo na primeira filosofia de Nietzsche Antoacutenio Ferro escreve curiosas palavras ldquoO conceito de pessimismo eacute na filosofia de Basileia ao lado dos conceitos de Vida Ciecircncia e Arte de importacircncia capital Este interesse de Nietzsche pelo pessimismo seria uma consequecircncia da estrutura psicoloacutegica do autor da sua infacircncia da participaccedilatildeo na guerra ndash diratildeo os adeptos da sua biografia seria resultado da influecircncia de Schopenhauer ndash diratildeo aqueles que vecircem a filosofia um simples jogo de influecircncias mais ou menos difusa de autorias Uma coisa eacute certa haacute no pessimismo de Nietzsche uma diferenccedila fundamental eacute activo apela agrave acccedilatildeo eacute afirmativo pois o filoacutesofo considera que na acccedilatildeo o ser humano recolhe a felicidade suficiente para justificar a vidardquo Antoacutenio Ferro op cit pp 211 123 NL 1869 3 [62] 124 ldquoA uacutenica possibilidade de vida na arterdquo [Einzige Moumlglichkeit des Lebens in der Kunst] NL 1869 3 [60] Num outro passo e quiccedilaacute pensando directamente em Schopenhauer Nietzsche escrevia ldquoTem de ser possiacutevel viver por isso o Dionisismo puro eacute impossiacutevel O pessimismo praticamente e teoreticamente eacute iloacutegicordquo [Es soll sich leben lassen also ist der reine Dionysismus unmoumlglich Denn Pessimismus ist praktisch und theoretisch unlogisch] NL 1869 3 [32] 125 Antoacutenio Ferro op cit pp 136 e 137

55

como uma repeticcedilatildeo do processo primaacuterio no qual o mundo teria vindo agrave existecircncia126

Quiccedilaacute por isso num outro fragmento possa ler-se ldquoNatildeo eacute no conhecimento mas sim

na criaccedilatildeo que estaacute a nossa salvaccedilatildeordquo127

A salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos entendamos passava nesta fase do pensamento

nietzschiano pela criaccedilatildeo apoliacutenea que no acto criador e artiacutestico se aproximava e

reconciliava com o impulso dionisiacuteaco128 Natildeo eacute no conhecimento tampouco na

metafiacutesica moderna que Nietzsche reconhece a salvaccedilatildeo dos indiviacuteduos mas sim na

criaccedilatildeo artiacutestica ou seja dito por outras palavras a ldquosalvaccedilatildeordquo a que o autor se refere

toma como pressuposto a libertaccedilatildeo da predominacircncia do desejo de entendimento

teoacuterico [ἄνθρωπος θεωρητικός129] ie do conhecimento histoacuterico libertaccedilatildeo que se

dava mediante a criaccedilatildeo artiacutestica

Assim no entender de Nietzsche apenas enquanto fenoacutemeno esteacutetico poderia

aquele mundo caoacutetico e amoral cuja ordem parecia ser a de absoluta falta de loacutegica

surgir legitimado Eacute por isso que faz sentido o regresso filosoacutefico ao mito traacutegico tal

como o proacuteprio autor explicita no seguinte passo do Nascimento da Trageacutedia

Torna-se aqui necessaacuterio que nos elevemos de um salto ousado a uma metafiacutesica da arte

para o que repito a frase anterior segundo a qual soacute enquanto fenoacutemeno esteacutetico eacute que a

existecircncia e o mundo surgem legitimados neste sentido o mito traacutegico tem precisamente

de convencer-nos de que mesmo o que eacute feio e carece de harmonia constitui um jogo

artiacutestico que a vontade na eterna plenitude do seu prazer joga consigo proacutepria (NT 168)

A arte (natildeo apenas num sentido restrito de artes de belas-artes130) eacute-nos

apresentada enquanto salvaccedilatildeo em detrimento claro estaacute do conhecimento

historicista Tal salvaccedilatildeo seria possiacutevel mediante a criaccedilatildeo artiacutestica mas somente na

medida em que tambeacutem a arte estaria sujeita a uma avaliaccedilatildeo e a um sentido superior

o da vida Creio natildeo cair em exagero ao afirmar que eacute neste exacto ponto que toda a

126 NL 1870 7 [117] 127 ldquoNicht im Erkennen im Schlaffen liegt unsre Heilrdquo NL 1872 19 [125] 128 O Nascimento da Trageacutedia coincide e justifica do meu ponto de vista quase na sua totalidade com esta perspectiva Dito isto cumpre notar que em algumas passagens das uacuteltimas paacuteginas do mesmo livro o exacto oposto parece ser defendido 129 ldquoAlso Befreiung von dem Uumlberherrschen des ἄνθρωπος θεωρητικόςrdquo NL 1869 3 [60] 130 Cf Antoacutenio Ferro op cit pp 152

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filosofia do primeiro Nietzsche converge trata- se de uma posiccedilatildeo sobre a vida Eacute de

facto disso que se trata e por esse mesmo motivo perante a ausecircncia de sentido que

o jogo de Dioniso parece atribuir ao indiviacuteduo (na medida em que o sentido da existecircncia

do ser parece subjugado ao sentido superior do laquogeacutenio da espeacutecieraquo o que anularia

como consequecircncia a possibilidade de existecircncia de uma vontade individual referente

a cada um dos homens) Nietzsche desenvolve um ponto de contacto na sua filosofia

entre o cosmos dionisiacuteaco ou seja o geacutenio da espeacutecie com a sua vontade superior e a

vida dos indiviacuteduos ie a individuaccedilatildeo apoliacutenea os espeacutecimes no fundo todos noacutes O

ponto de contacto que Nietzsche encontra parece-nos eacute o da necessidade muacutetua tanto

da natureza em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo quanto do indiviacuteduo em relaccedilatildeo agrave natureza

Atente-se pois nas seguintes palavras

Pois o facto de na vida as coisas ocorrerem realmente de maneira tatildeo traacutegica seria a

explicaccedilatildeo menos conveniente para a origem de uma forma de arte por outro lado a arte

natildeo eacute apenas imitaccedilatildeo da realidade mas precisamente um suplemento metafiacutesico da

realidade da natureza e a ela adicionado com o fim de superaacute-la Na medida em que

pertence agrave arte o mito traacutegico participa tambeacutem plenamente nessa intenccedilatildeo metafiacutesica

de transfiguraccedilatildeo por parte da arte que transfigura ele poreacutem ao apresentar o mundo

dos fenoacutemenos sob a imagem do heroacutei em sofrimento Tudo menos a realidade desse

mundo dos fenoacutemenos pois ele diz-nos precisamente laquoOlhai Vede com rigor Essa eacute a

vossa vida Esse eacute o ponteiro das horas do reloacutegio da vossa existecircnciaraquo (NT 167)

Os primeiros textos da obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche atribuem assim um

papel bastante claro ao indiviacuteduo no jogo de Dioniso papel esse a partir do qual surge

legitimada e justificada a sua existecircncia na medida em que a arte eacute considerada

enquanto ldquoum suplemento metafiacutesico da realidade da naturezardquo suplemento mediante

o qual surge a possibilidade do proacuteprio indiviacuteduo transfigurar e superar a natureza ndash

trata-se da mesma forccedila plaacutestica de que Nietzsche falava na Segunda Consideraccedilatildeo

Intempestiva (CE II 108) e que citaacutemos atraacutes com o intuito de explicitar de que forma

pode a linguagem ser utilizada pelo geacutenio criador enquanto ferramenta da sua arte131

131 Cf Paacuteginas 44-45 do presente estudo

57

Assim natildeo obstante o mundo dos fenoacutemenos permanecer fora do alcance do

homem e pese embora a condiccedilatildeo inerentemente sofredora do ser a arte aproxima-se

ldquotal feiticeira redentora com poderes curativosrdquo transformando a incomportabilidade

da experiecircncia dionisiacuteaca que inclui a subjugaccedilatildeo das vontades individuais agrave vontade da

natureza em representaccedilotildees que tornam possiacutevel viver ldquoestas constituem o sublime

enquanto dominaccedilatildeo artiacutestica do horriacutevel e o coacutemico enquanto descarga artiacutestica da

repugnacircncia pelo absurdordquo (NT 60)

Por fim se o papel do indiviacuteduo no jogo de Dioniso parecia ser como haviacuteamos

corroborado numa primeira instacircncia o de uma mera e insignificante peccedila num

tabuleiro coacutesmico cuja vontade obedecia a uma vontade superior que do indiviacuteduo se

servia podemos agora observar que Nietzsche pelo contraacuterio lhe concede um

significado distinto natildeo obstante estar sujeito agrave fugacidade que o tempo inexoraacutevel

lhe outorga e apesar da sua vontade individual ser resultado da multiplicidade proacutepria

da unidade dionisiacuteaca o homem tem na metafiacutesica de artista a possibilidade de legitimar

a sua existecircncia e acima de tudo tornar a vida digna de ser vivida

58

CONCLUSAtildeO

O presente estudo incidiu sobre os temas mais importantes da primeira fase da

obra filosoacutefica de Friedrich Nietzsche Reconhecendo a diversidade dos toacutepicos que

decidimos estudar propocircs-se com esta tese tentar demonstrar que os mesmos

partilhavam um ponto de contacto entre si uma espeacutecie de fundo comum neste caso

uma cosmovisatildeo uma perspectiva sobre o mundo sobre o ser e sobre o papel que esse

ser desempenharia no cosmos O caminho ateacute aqui percorrido por entre as paacuteginas que

agora nos antecedem talvez tenha surpreendido pela sua peculiaridade a verdade eacute

que natildeo quisemos construir um argumento sisteacutemico estruturado e ordenado de uma

forma meramente descritiva optaacutemos antes por olhar os aspectos de maior relevacircncia

daqueles primeiros textos do jovem Nietzsche e defender que em todos eles por mais

distintos que fossem entre si poderiacuteamos descobrir uma mesma percepccedilatildeo do Humano

e da sua constituiccedilatildeo Este meacutetodo pareceu-nos ser natildeo apenas o mais apropriado para

a demonstraccedilatildeo do nosso ponto de vista mas tambeacutem o mais adequado para trabalhar

um autor como Friedrich Nietzsche

Com a (inevitaacutevel) sensaccedilatildeo de que muito poderia ainda ser escrito chegamos

agora ao momento (tambeacutem ele inevitaacutevel) em que somos forccedilados a pocircr um ponto final

neste trabalho Para tal parece-nos justificar-se que faccedilamos por fim uma

retrospecccedilatildeo sinteacutetica dos diferentes temas abordados para que de seguida possamos

concluir com a demonstraccedilatildeo final da tese aqui defendida

1 Linguagem e retoacuterica Um dos temas que mais ocuparam o jovem Nietzsche em

especial quando este leccionava filologia claacutessica em Basileia foi o da retoacuterica em

particular o problema da distinccedilatildeo entre uma linguagem retoacuterica tida por artificial e a

que Platatildeo como vimos chamara κολακεία e uma outra linguagem que por seu turno

seria verdadeira Na perspectiva do nosso filoacutesofo uma vez que o homem natildeo tinha

acesso agrave essecircncia das coisas ou seja agrave laquocoisa em siraquo kantiana tal pressuposto implicaria

que toda e qualquer linguagem fosse apenas uma representaccedilatildeo imageacutetica dessas

laquocoisas em siraquo Ou seja Nietzsche questiona a capacidade de o homem aceder agrave laquocoisa

em siraquo e por consequecircncia a fiabilidade e adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo dessa mesma

laquocoisa em siraquo Os conceitos em que qualquer palavra imediatamente se transformaria

natildeo passariam entatildeo de siacutembolos que ldquonunca afloram algures a verdade absolutardquo

59

(FETG 69) e o sentimento de que existiria uma linguagem pura e apropriada seria

resultado de uma longa e duradoura convenccedilatildeo que se sustentaria e desenvolveria

sobre o esquecimento da sua origem e que diria respeito ldquoapenas agravequeles com um

sentido linguiacutestico muito desenvolvido que especialmente nas sociedades grandesrdquo

corresponderiam ldquoaos aristocratas e educadosrdquo132 Ainda em relaccedilatildeo agrave linguagem

Nietzsche nota a possibilidade de o homem mediante a forccedila plaacutestica usando-se dos

mesmos siacutembolos conceptuais recriar-se e reinventar-se ininterruptamente ajustando-

se agraves sempre renovadas necessidades do pensamento e originando novas formas de

pensar

2 Metaacutefora e esquecimento Como consequecircncia do esboccedilo que do homem

Nietzsche delineara ie enquanto incapaz de aceder agrave laquocoisa em siraquo concluiacutemos

acompanhando os seus escritos que as palavras mais natildeo seriam do que ldquodesignaccedilotildees

arbitraacuteriasrdquo incapazes de exprimir uma experiecircncia ldquototalmente individualizadardquo (FETG

69) O conceito de conceito como tal seria contraditoacuterio resumir-se-ia a uma tentativa

de partilha de algo que logo agrave partida natildeo seria partilhaacutevel para subsistir o conceito

requereria a aceitaccedilatildeo de uma carecircncia de rigor tratando-se por conseguinte de uma

ldquoigualizaccedilatildeo do natildeo igualrdquo (VM 220) Como se formariam entatildeo os conceitos Nas

palavras de Nietzsche mediante um processo duplamente metafoacuterico que se

sustentaria naquilo a que chamaacutemos neste trabalho de ldquometafiacutesica do esquecimentordquo

ldquoUma estimulaccedilatildeo nervosa traduzida numa imagem Primeira metaacutefora A imagem de

novo transformada num som Segunda metaacuteforardquo (VM 219) Para que o homem

pudesse crer na adequaccedilatildeo da representaccedilatildeo da imagem em primeiro lugar e do som

seguidamente seria necessaacuterio esquecer a origem metafoacuterica dessas representaccedilotildees A

linguagem conceptual resumir-se-ia segundo o autor a uma imagem das jaacute de si

imagens das coisas sendo como tal a linguagem que mais se distanciaria da ldquoverdaderdquo

das coisas (em particular quando comparada com a muacutesica) Esta ldquoverdaderdquo o ldquofundo

do mundordquo ser-nos-ia inacessiacutevel sendo que o homem esqueceria por necessidade

que era isso que se passava com ele o que levaria Nietzsche a questionar como pode o

homem ser feliz sem acesso agrave verdade E ainda mais como poderia o homem ser feliz

se acaso tivesse acesso a essa verdade

132 Cf nota 22

60

3 Dioniso Apolo e a vida como um jogo O Nascimento da Trageacutedia foi de todos os

textos a que recorremos o mais importante Natildeo apenas serviu de base e fundamento

deste estudo como fez tambeacutem o papel de ldquoponterdquo entre os diversos temas que

abordaacutemos sendo peccedila fulcral para o entendimento da ligaccedilatildeo entre a filosofia da

linguagem nietzschiana que desenha o homem enquanto ser incapaz de aceder agraves

laquocoisas em siraquo e a filosofia do jogo de Dioniso que tambeacutem ela delineia um esboccedilo da

constituiccedilatildeo do homem enquanto ser ao qual o fundo do mundo se encontra inacessiacutevel

Por outro lado eacute tambeacutem no Nascimento da Trageacutedia que Nietzsche propotildee uma

resposta uma alternativa ou como o proacuteprio lhe chama uma ldquosalvaccedilatildeordquo para a situaccedilatildeo

em que o indiviacuteduo fruto dos pressupostos anteriormente descritos acaba por ser

inserido Por outras palavras ao desenhar o ser enquanto ser incompleto incapaz de

conhecer as laquocoisas em siraquo e por conseguinte incapaz tambeacutem de conhecer-se a si

mesmo na sua plenitude ao desenvolver uma ontologia segundo a qual o ser requereria

a redenccedilatildeo da dor (dor que lhe seria inerente logo inelutaacutevel) mediante o natildeo-ser um

mundo fictiacutecio de formas apoliacuteneas Nietzsche parece numa primeira instacircncia pocircr o

homem no centro de uma filosofia tatildeo pessimista quanto a de Schopenhauer mas

Nietzsche como afirmaacutemos apresenta uma salvaccedilatildeo a arte a sua metafiacutesica de artista

Esta metafiacutesica de artista que natildeo pretendia ser a uacutenica soluccedilatildeo possiacutevel para a vida

seria no entanto a uacutenica que agrave vida se submetia

Foi de uma filosofia ldquoda vidardquo no fundo que trataacutemos neste estudo Podemos por

fim afirmaacute-lo o que Friedrich Nietzsche procura nos primeiros textos da sua obra

filosoacutefica eacute encontrar uma soluccedilatildeo para o jogo heracliacutetico em que o ser sujeito ao fluxo

incontornaacutevel do devir objecto de uma natureza amoral que dele potildee e dispotildee cria e

acaba surja legitimado Assim nos textos iniciais da obra de Nietzsche o homem natildeo eacute

visto apenas como um ser cuja vontade individual sem que disso ele esteja consciente

se submete aos desiacutegnios e agrave vontade de Dioniso o ldquogeacutenio da espeacutecierdquo no primeiro

Nietzsche a arte justifica a existecircncia do homem e o seu papel no cosmos mediante a

metafiacutesica de artista o homem pode natildeo apenas justificar a sua proacutepria existecircncia mas

tambeacutem transfigurar e superar a natureza Ao pessimismo eacute contraposto portanto uma

metafiacutesica de artista - acima da qual se encontra a vida e uma vida digna de ser vivida

61

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