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A UNIÃO EUROPEIA COMO ESPAÇO DE LIBERDADE, SEGURANÇA E
JUSTIÇA: UMA CARACTERIZAÇÃO GERAL
Nuno Piçarra*
1. Introdução
Foi o Tratado de Amesterdão, entrado em vigor em 1 de Maio de 1999, que
incluiu entre os objectivos da União Europeia (União ou UE) “a manutenção e o
desenvolvimento [dela] enquanto espaço de liberdade, segurança e justiça, em que seja
assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em
matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e
combate à criminalidade”1.
A componente da liberdade de circulação em que se centra o espaço de
liberdade, segurança e justiça (ELSJ) determina a supressão dos controlos de pessoas
nas fronteiras comuns dos Estados-Membros ou, o que é o mesmo, nas fronteiras
internas da UE e pretende expressamente ir de par com o objectivo de “facultar aos
cidadãos um elevado nível de protecção (…), mediante a instituição de acções em
comum entre os Estados-Membros no domínio da cooperação policial e judiciária em
matéria penal e a prevenção e combate do racismo e da xenofobia”2.
Neste estudo, pretende-se identificar as características gerais do ELSJ tal como
decorrem do direito vigente. Tendo em conta as incertezas que ainda pairam sobre a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa, não serão consideradas as significativas
alterações por ele previstas na matéria. Mas a própria análise do direito vigente a que
vai proceder-se fala por si quanto às prementes necessidades de uma revisão no sentido
da simplificação e do aprofundamento, a que o Tratado de Lisboa procura em boa
medida corresponder.
2. Os antecedentes do espaço de liberdade, segurança e justiça * Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. 1 Cf. o artigo 2º, quarto travessão, do Tratado da União Europeia (TUE). 2 Cf. o 11.º considerando do preâmbulo e o artigo 29.º do TUE.
2.1. O ELSJ encontra antecedentes na cooperação nos domínios da justiça e dos
assuntos internos (JAI), regulada pelo Título VI do TUE na sua versão originária (de 7
de Fevereiro de 1992) e, num só aspecto (política de vistos), pelo então artigo 100º-C do
Tratado da Comunidade Europeia (TCE). A cooperação JAI, por sua vez, tinha
resultado da integração no quadro institucional e normativo da UE da cooperação
iniciada pelos Estados-Membros na década de setenta, primeiro, à margem das
Comunidades Europeias e sem nenhuma base convencional específica (Grupo Trevi,
Grupo ad hoc Imigração, Grupo de Cooperação Judiciária, Grupo de Auxílio Mútuo
Aduaneiro, Grupo dos Coordenadores da Livre Circulação) e, a partir de 1 de Julho de
1987, também com base no Título III do Acto Único Europeu3.
2.2. O mais importante antecedente do ELSJ é, no entanto, a cooperação que sete
Estados-Membros puseram em prática no quadro do Acordo e da Convenção de
Schengen, suprimindo, há pouco mais de catorze anos (26 de Março de 1995), os
controlos de pessoas nas suas fronteiras comuns, “em conjugação com medidas
adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de
prevenção e combate à criminalidade”, de modo a assegurar que a nova componente da
liberdade de circulação de pessoas não acarretaria prejuízo para a segurança comum4.
Foi o Tratado de Amesterdão que integrou o acervo de Schengen no quadro
institucional e normativo da UE, com vista “a reforçar a integração europeia e, em
especial, a possibilitar que a União se transforme mais rapidamente num espaço de
liberdade, segurança e justiça”. Tal acervo – transformado em direito comunitário
derivado e em direito (derivado) do III Pilar da União – faz portanto parte integrante do
direito que rege actualmente o ELSJ.
3 Apesar de o Título III do Acto Único Europeu estabelecer as disposições aplicáveis à Cooperação Política Europeia e não especificamente à cooperação JAI, alguns instrumentos relevantes para esta última vieram a ser adoptados com base nele. 4 Os Estados-Membros aos quais o Acordo e a Convenção de Schengen se tornaram plenamente aplicáveis em 26 de Março de 1995 são a Alemanha, a Bélgica, a Espanha, a França, a Holanda, o Luxemburgo e Portugal. À data da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão (1 de Maio de 1999), dos então quinze Estados-Membros da União Europeia, só a Irlanda e o Reino Unido não tinham aderido ao Acordo e à Convenção de Schengen; estes instrumentos já se aplicavam entretanto também à Áustria, à Grécia e à Itália.
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3. O âmbito material compósito do espaço de liberdade, segurança e justiça e a sua
unidade de sentido
3.1. Retomando e desenvolvendo a lógica do Acordo e da Convenção de
Schengen, o Tratado de Amesterdão erigiu em núcleo aglutinador do ELSJ, como se
referiu, “a ausência de controlos de pessoas, quer se trate de cidadãos da União, quer de
nacionais de países terceiros, na passagem das fronteiras internas” (artigo 62.º, n.º 1, do
TCE, na redacção que lhe foi dada pelo Tratado de Amesterdão).
É esta ousada “colocação em comum” dos territórios dos Estados-Membros,
vista, por sua vez, como corolário do mercado interno, que confere razão de ser,
coerência e unidade de sentido às chamadas medidas de acompanhamento ou medidas
compensatórias abrangidas pelo âmbito material do ELSJ, a saber (1) o reforço dos
controlos de pessoas nas fronteiras externas, através de um regime uniformizado
constante do Código das Fronteiras Schengen, a aplicar pelos órgãos competentes dos
Estados-Membros, com a assistência de uma Agência Europeia de Gestão da
Cooperação Operacional nessas fronteiras; (2) uma política comum de vistos assente no
chamado visto uniforme de curta duração concedido pelos postos diplomáticos e
consulares dos Estados-Membros em conformidade com o Código Comunitário de
Vistos; (3) a disciplina comum de uma série de aspectos (substantivos e adjectivos)
relacionados com o tratamento dos pedidos de asilo dirigidos aos Estados-Membros e
com os nacionais de Estados terceiros que apresentam tais pedidos; (4) o
estabelecimento progressivo de uma política comum de imigração englobando não só o
combate à imigração clandestina e à residência ilegal, mas também a disciplina de
diversos aspectos da imigração legal (condições de entrada e de residência,
reagrupamento familiar e estatuto dos nacionais de países terceiros legalmente
residentes num Estado-Membro); (5) o reforço da cooperação policial e aduaneira entre
as autoridades competentes dos Estados-Membros, tanto directamente como através do
Serviço Europeu de Polícia (Europol), já dotado de uma embrionária competência
operacional; (6) o reforço da cooperação judiciária em matéria penal entre as
autoridades competentes dos Estados-Membros, directamente ou por intermédio da
Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (Eurojust), já dotada também de uma
incipiente capacidade operacional; (7) a aproximação/harmonização5 de certos
5 Utilizam-se em sinonímia os dois termos, que implicam uma actividade legislativa dos Estados-Membros, quer adaptando/alargando uma norma penal já existente, quer criando uma nova, quer,
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domínios do direito penal e processual penal dos Estados-Membros; (8) a criação de
sistemas de troca de informações relativas às componentes do ELSJ que integram uma
dimensão operacional, como as políticas de fronteiras, vistos, asilo e imigração e
também a cooperação policial e judiciária em matéria penal; o mais transversal deles é o
Sistema de Informação Schengen (SIS).
Os quatro primeiros tipos de medidas de acompanhamento têm exclusivamente
por destinatários os nacionais de países terceiros, constituindo assim um conjunto
normativo susceptível de ser designado por direito europeu dos estrangeiros6. A ele
estão exclusivamente afectos dois sistemas de troca de informações: o Sistema de
Informação sobre vistos (VIS) e o Eurodac.
Em contrapartida, as restantes medidas compensatórias tanto abrangem cidadãos
da União como estrangeiros.
3.2. Finalmente, o Tratado de Amesterdão inclui ainda no ELSJ um domínio
material que não decorre directamente, na qualidade de medida de acompanhamento ou
compensatória, do seu núcleo aglutinador acima identificado. Trata-se da cooperação
judiciária em matéria civil, cujo reforço, “na medida do necessário ao bom
funcionamento do mercado interno” (artigo 65.º do TCE), exigiu a aprovação, entre
outros, de um regime simplificado de citação e de notificação transfronteiriças dos actos
judiciais e extrajudiciais em matéria civil e comercial, assim como do reconhecimento e
execução destes.
É bom de ver que, ao contrário do regime comum de passagem das fronteiras
externas, de vistos, de asilo e de imigração, ou da cooperação policial e judiciária em
matéria penal, a cooperação judiciária em matéria civil não visa garantir que a livre
passagem das fronteiras comuns se processe sem défices de segurança, mas antes
assegurar a plena mobilidade de pessoas no quadro do mercado interno7. Isto
finalmente, prevendo a aplicação de penas para sancionar certos comportamentos, em cumprimento de um mandato da UE; cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A nova Europa e o velho défice democrático – A matéria penal”, Europa: Novas Fronteiras, n.º 16/17, 2005, p. 189. 6 Nesta acepção, estrangeiro é qualquer pessoa que não tenha a nacionalidade de nenhum dos Estados-Membros da União Europeia. Considerando a afirmação da competência da UE para regular certos aspectos do direito dos estrangeiros e, nomeadamente, o acesso dos mesmos ao território da União como a maior alteração que o Tratado de Amesterdão introduziu no TCE, Rui Moura Ramos, Direito Comunitário, Coimbra, 2003, p. 99. 7 Em sentido semelhante António Vitorino, “A construção de um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça: novas fronteiras da política europeia”, Europa: Novas Fronteiras, n.º 16/17, cit., p. 12. Tal como salienta Neil Walker, “In Search of the Aerea of Freedom, Security and Justice: A Constitutional Odyssey”, in Neil Walker (edit.), Europe’s Área of Freedom, Security and Justice, Oxford, 2004, p. 8,
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demonstra, noutra perspectiva, que, de acordo com o direito actualmente em vigor, o
mercado interno e o ELSJ se sobrepõem e confundem em certa medida8. O próprio
artigo 62.º, n.º 1, do TCE, já citado, é bem ilustrativo disso, ao remeter expressamente
para o artigo 14.º, onde se define o mercado interno como “um espaço sem fronteiras
internas”, no qual é assegurada a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos
serviços e dos capitais.
4. O espaço de liberdade, segurança e justiça entre a integração supranacional e a
cooperação intergovernamental: razão de ser e consequências práticas
4.1. A segunda característica do ELSJ é a dualidade ou a fragmentação da sua
disciplina jurídica. Com efeito, os regimes da livre passagem das fronteiras internas, do
controlo reforçado das fronteiras externas, dos vistos, do asilo, da imigração e da
cooperação judiciária em matéria civil encontram as suas bases jurídicas no Título IV da
Parte III do TCE (“Vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação
de pessoas”), ao passo que os regimes da cooperação policial, da cooperação judiciária
em matéria penal e da aproximação dos direitos penais dos Estados-Membros
encontram as suas bases no Título VI do TUE (“Disposições relativas à cooperação
policial e judiciária em matéria penal”).
Como é sabido, a estranha solução é resultado de uma evolução que encontra a
sua origem na circunstância de, por ocasião da conferência diplomática que, em 7 de
Fevereiro de 1992, culminou na assinatura do TUE, não ter havido acordo entre os
Estados-Membros para alargar a competência da Comunidade Europeia e, por
conseguinte, o âmbito de aplicação material do Tratado de Roma aos domínios da
justiça e dos assuntos internos (com excepção dos vistos de curta duração),
umbilicalmente ligados à soberania estadual.
Entre a “comunitarização” – com a “redução de soberania” que implicaria para
os Estados-Membros – e a manutenção do status quo, consistente numa cooperação “na sua maior parte, a cooperação judiciária em matéria civil é tratada separadamente por uma comunidade jurídica (e académica) bem distinta, cujo âmbito de especialização são os conflitos de leis (direito internacional privado) e de jurisdição”. Para um panorama do acervo neste domínio, ver por último Maria Helena Brito, “Cooperação judiciária em matéria civil. Uma perspectiva geral”, in Marta Tavares de Almeida e Nuno Piçarra, 50 Anos do Tratado de Roma, Lisboa, 2008, pp. 163 ss. 8 Para uma distinção entre ambos, ver os acórdãos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 30 de Maio de 2006, Parlamento/Conselho, C-317/04 e 318/04, especialmente n.ºs 54 e 67, e de 10 de Fevereiro de 2009, Irlanda/Parlamento Europeu e Conselho, C-301/06, especialmente n.ºs 83 e 84.
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essencialmente informal e sem carácter vinculativo, o compromisso alcançado traduziu-
se na submissão de tais domínios (com uma única excepção) a uma forma de
cooperação intergovernamental coordenada a nível da União, baseada no Titulo VI do
TUE, que então tinha justamente por epígrafe “Disposições relativas à cooperação nos
domínios da justiça e dos assuntos internos”. A natureza intergovernamental dessa
cooperação implicava que, nos domínios em causa, o quadro institucional único da
União funcionasse de um modo substancialmente diferente daquele que funciona no
âmbito do TCE, onde a lógica é predominantemente supranacional, em conformidade
com o chamado “método comunitário”.
Assim, no quadro do Título VI do TUE (na sua versão originária) o Conselho
adoptava por unanimidade os actos normativos, sem qualquer condicionamento por
parte da Comissão (que apenas dispunha de um limitado direito de iniciativa) ou do
Parlamento Europeu (que apenas dispunha do direito de ser regularmente informado
sobre os trabalhos realizados nos domínios em causa e de ser consultado “sobre os
principais aspectos das actividades” nesses domínios9). Só as medidas de aplicação ou
de execução de actos normativos de carácter primário poderiam ser adoptadas pelo
Conselho por maioria qualificada, sem qualquer obrigação de delegação na Comissão.
A intervenção do Tribunal de Justiça, exclusivamente a título de interpretação
prejudicial, dependia da previsão, caso a caso, apenas numa das categorias de actos
jurídicos tipificados pelo Título VI (as convenções). Estes, não coincidindo com
nenhum dos actos jurídicos tipificados pelo TCE, caracterizavam-se pela sua menor, e
por vezes incerta, eficácia jurídica. Apenas as convenções poderiam ser
jurisdicionalmente invocadas pelos particulares nos termos em que o admitisse a ordem
jurídica de cada Estado-Membro.
4.2. Mesmo num quadro em que apenas ficava excluído do âmbito de aplicação
do Título VI, na sua versão originária, o domínio dos vistos, chegou a suscitar-se
controvérsia quanto à questão da base jurídica a escolher para a adopção do regime
jurídico do visto de escala aeroportuário: se o então artigo 100º-C do TCE, se o Título
VI do TUE.
9 O então artigo K.6, segundo parágrafo, in fine, vinculava a Presidência do Conselho a zelar por que “os pontos de vista do Parlamento Europeu” fossem devidamente tomados em consideração. O terceiro parágrafo do mesmo artigo autorizava o Parlamento Europeu a dirigir perguntas ou apresentar recomendações ao Conselho e incumbia-o de proceder anualmente a um debate sobre os progressos realizados na aplicação concreta do Título VI do TUE.
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A questão revestia-se do maior interesse prático. Consoante se optasse pela
primeira ou pela segunda base jurídica, assim o acto (1) seria adoptado,
respectivamente, pelo Conselho, deliberando por maioria qualificada depois de 1996,
mediante proposta da Comissão e após consulta do Parlamento Europeu, ou pelo
Conselho, deliberando por unanimidade, eventualmente por proposta de um Estado-
Membro e sem consulta ao Parlamento Europeu, (2) revestiria a forma de um
regulamento directamente aplicável e invocável perante os tribunais nacionais, ou então
a de uma acção comum, sem nenhuma daquelas características jurídicas e (3) seria
sindicável, ou não, pelos tribunais da União10.
4.3. Os fracos resultados da aplicação do método intergovernamental à
cooperação JAI levaram a que, na conferência intergovernamental que, em 4 de Outubro
de 1997, culminou na assinatura do Tratado de Amesterdão, se chegasse a um acordo,
ainda que ao preço do opting out de três Estados-Membros11, para submeter ao TCE
todos os domínios relevando do direito europeu dos estrangeiros assim como a
cooperação judiciária em matéria civil, agrupando-os no já referido Título IV da Parte
III daquele tratado. Apenas se manteve no Título VI a cooperação policial e a
cooperação judiciária em matéria penal, acrescidas da prevenção e do combate do
racismo e da xenofobia e da harmonização de certos aspectos do direito penal dos
Estados-Membros.
Sabe-se que esta nova repartição do enquadramento jurídico de base do ELSJ
pelos dois tratados em que se funda a União, foi acompanhada, por um lado, pela
introdução de disposições no Título IV da Parte III do TCE que atenuaram ou
suspenderam determinados elementos caracterizadores do método comunitário acolhido
por este tratado, fazendo dele, pelo menos provisoriamente, um “título diferente dos
outros”. Por outro lado, ao Título VI do TUE foi lançada uma espécie de “fermento da
comunitarização”12, com vista a torná-lo mais operante.
10 Submetido a questão ao TJ, este decidiu em acórdão de 12 de Maio de 1998, Comissão/Conselho, C-170/96, que, definindo-se o visto de escala ou trânsito aeroportuário como o documento que deve possuir o passageiro de um avião proveniente de um país terceiro para poder permanecer na zona internacional do aeroporto do Estado-Membro no qual o avião aterrou e embarcar no mesmo ou noutro avião com destino a outro país terceiro, sem qualquer direito de circular no território desse Estado-Membro, ele não era abrangido pelo artigo 100º-C, podendo pois ser regulado pelo Conselho através de uma acção comum baseada no Título VI do TUE, sem com isso invadir “a esfera de competências que as disposições do Tratado CE atribuem à Comunidade Europeia”. 11 Ver infra, n.º 5. 12 A expressão pode ver-se em Anabela Miranda Rodrigues e José Lopes da Mota, Para uma Política Criminal Europeia, Coimbra, 2002, p. 81.
7
No primeiro caso, as novas disposições determinaram nomeadamente que (1)
durante um período transitório, automaticamente terminado em 1 de Maio de 2004, os
Estados-Membros dispusessem de poder de iniciativa legislativa concorrente com o da
Comissão (artigo 67.º, n.º 1, do TCE) e (2) o TJ conhecesse e ainda conheça
derrogações à sua competência prejudicial (i) em função da posição do tribunal de
reenvio na hierarquia judicial nacional13 e (ii) em função de determinadas matérias
politicamente sensíveis (como a reposição, pelos Estados-Membros, dos controlos de
pessoas nas fronteiras internas por razões de manutenção da ordem pública ou de
garantia da segurança interna) – que, por sua vez, também restringem a competência do
TJ no âmbito da acção por incumprimento (artigo 68.º). A supressão de todas ou de
parte destas derrogações à competência do TJ depende de uma decisão unânime do
Conselho, após consulta ao Parlamento Europeu (artigo 67.º, n.º 2, segundo travessão,
in fine), que ainda não foi adoptada, apesar de o correspondente procedimento ter sido
desencadeado pela Comissão em Junho de 2006.
No segundo caso, o “fermento da comunitarização” lançado no Título VI do
TUE traduziu-se (1) na generalização do poder de iniciativa da Comissão, embora
sempre partilhado com os Estados-Membros; (2) na generalização do procedimento de
consulta ao Parlamento Europeu; (3) na atribuição ao TJ de uma competência de
princípio no âmbito do Título VI, que engloba (i) a competência prejudicial, embora
dependente da aceitação expressa de cada Estado-Membro, e (ii) o recurso de anulação,
mas não a acção por incumprimento; (4) na tipificação de actos jurídicos dotados de
maior eficácia, um dos quais – a decisão-quadro – com algumas semelhanças com a
directiva comunitária.
4.4. A fragmentação pelos dois tratados de matérias contíguas e profundamente
imbricadas como as que integram o ELSJ tem dado lugar a questões de grande
complexidade, de que não terão estado plenamente conscientes os autores dos Tratados
de Maastricht e Amesterdão quando decidiram estruturar a União em pilares.
A mais comum dessas situações prende-se com a escolha da base jurídica de
muitos dos actos a adoptar em desenvolvimento do ELSJ. A questão decorre, como é 13 Cfr. o despacho de 31 de Março de 2004, Georgescu, C-51/03, em que o TJ, ao abrigo do artigo 68.º, n.º 1, do TCE, se declarou manifestamente incompetente para responder à questão prejudicial de interpretação do Regulamento (CE) n.º 539/2001, de 15 de Março (que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação), com o fundamento de que a decisão do tribunal nacional a quo era susceptível de recurso judicial previsto no direito interno.
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sabido, da exigência, imposta pelo princípio da competência de atribuição, de que os
actos imputáveis à União, em qualquer dos seus três pilares, se baseiem sempre numa
específica norma de competência (que constitui simultaneamente uma norma de
procedimento), extraída dos tratados em que se funda a UE. No quadro dual e
fragmentado do ELSJ, remodelado pelo Tratado de Amesterdão, tal exigência tem
agravado as dúvidas e os conflitos de bases jurídicas (que já se tinham feito sentir na
vigência da versão originária do Tratado de Maastricht) entre o Título IV da Parte III do
TCE e o Título VI do TUE14.
A escolha da base jurídica num ou noutro tratado tem a maior relevância prática
por se repercutir fortemente no conteúdo e na eficácia do acto a adoptar. Sendo
escolhida uma base jurídica no TCE, o acto regulador é normalmente adoptado por
maioria qualificada no Conselho, assumindo a forma de um regulamento ou de uma
directiva, com a eficácia jurídica que os caracteriza. Sendo, ao invés, escolhido como
base jurídica um preceito do Título VI do TUE, o acto deverá ser adoptado por
unanimidade no Conselho, não sendo em caso nenhum susceptível de produzir efeito
directo.
4.5. Em certos casos, porém, é a própria dispersão do regime de base do ELSJ
pelos dois tratados a levar à adopção, para regular a mesma matéria, de dois actos
jurídicos, um baseado no Título IV do TCE e outro no Título VI do TUE, avultando
mais uma vez as consideráveis disparidades jurídicas entre ambos. Entre tantos
exemplos, cite-se o regime relativo ao crime de auxílio à entrada, ao trânsito e à
residência irregulares de nacionais de países terceiros nos Estados-Membros, adoptado
em cumprimento do artigo 63.º, n.º 3, alínea b), do TCE – objecto de uma directiva para
a tipificação do dito crime e de uma decisão-quadro para a previsão das penas
aplicáveis, adoptada com base no artigo 29.º do TUE, por a Comunidade não dispor de
competência para este efeito15. Mas também podem citar-se o Regulamento (CE) n.º
974/98, do Conselho, de 3 de Maio, relativo à introdução do Euro, que teve de ser
14 Para maiores desenvolvimentos sobre o tema, ver por exemplo Jean Paul Jacqué, “La question de la base juridique dans le cadre de la justice et des affaires intérieures”, in Gilles de Kerchove e Anne Weyembergh, L’espace pénal européen : enjeux et perspectives, Bruxelas, 2002, p. 249 ss.; Bruno Nascimbene, “Cooperazione penale, spazio giudiziario e nuova costituzione europea”, in Francesca Ruggieri (org.), La Giustizia Penale nella Convenzione. La tutela degli interessi finanziari e dell’ambiente nella Unione Europea, Milão, 2003, p. 47 ss. 15 Para maiores desenvolvimentos ver Nuno Piçarra, “O espaço de liberdade, segurança e justiça após a assinatura do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa: balanço e perspectivas”, Polícia e Justiça, n.º 5, 2005, p. 26-27.
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completado pela Decisão-Quadro n.º 2000/383/JAI, do Conselho, de 29 de Maio, sobre
o reforço da protecção contra a contrafacção de moeda na perspectiva da introdução do
Euro, através de sanções penais e outras16.
Noutros casos, tem-se entendido que a referida dualidade de bases jurídicas, a
nível do direito primário da União, exige uma dualidade de actos de direito derivado
exactamente com o mesmo conteúdo, um baseado em disposições do Título IV do TCE
e outro baseado em disposições do Título VI do TUE. Esta solução dificilmente
compreensível, tanto do ponto de vista normativo como do ponto de vista prático, tem
sido aplicada sobretudo ao enquadramento do Sistema de Informação Schengen – que,
como se sabe, é um instrumento informático ao serviço, quer da boa execução do
16 Neste contexto, percebe-se que tenha suscitado particular controvérsia entre as instituições da União o recurso apenas a uma decisão-quadro do Conselho para a protecção do ambiente através do direito penal (2003/80/JAI, de 27 de Janeiro de 2003) e não também a uma directiva, em contraste com o precedente constituído pela solução encontrada para a incriminação e a punição do auxílio à entrada, trânsito e residência irregulares. O litígio foi submetido ao TJ, ao abrigo do artigo 35.º, n.º 6, do TUE, no processo Comissão/Conselho, C-176/03, tendo sido pedida, com fundamento em incompetência do Conselho, a anulação da decisão-quadro controvertida, na parte em que impõe aos Estados-Membros a tipificação penal de uma série de comportamentos nocivos ao ambiente. Em conclusões proferidas em 26 de Maio de 2005, o advogado-geral Dámaso Ruiz-Jarabo sugeriu ao TJ que anulasse as disposições da decisão-quadro atinentes à tipificação penal dos comportamentos lesivos do ambiente, da participação e da instigação e da responsabilidade das pessoas colectivas. Tais disposições, comprovado o seu carácter indispensável para assegurar a execução eficaz da política da Comunidade no domínio do ambiente, exigida pelo artigo 174.º do TCE, relevam, por isso mesmo, da competência comunitária, devendo constar de uma directiva baseada no artigo 175.º. A decisão-quadro litigiosa deveria ter-se cingido à previsão das sanções penais para os comportamentos anti-ambientais penalmente tipificados. A solução proposta pelo advogado-geral insere-se na linha da encontrada para o auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares de nacionais de países terceiros, regulado em parte por uma directiva e em parte por uma decisão-quadro. Sem prejuízo da complexidade de que se reveste e dos sérios problemas práticos que suscita, tal solução parece decorrer da própria dualidade que caracteriza actualmente o enquadramento normativo de base do ELSJ. Em sentido semelhante na doutrina, ver Martin Wasmeier e Nadine Thwaites, “The ‘battle of the pillars’: does the European Community have the power to approximate national criminal laws?”, European Law Review, n.º 29, 2004, p. 634, segundo os quais “se estiverem em jogo objectivos de ambos os pilares, pode tornar-se necessário o recurso a dois instrumentos, cada um tratando da matéria relevante”. Em acórdão de 13 de Setembro de 2005, proferido no mesmo processo C-176/03, o TJ decidiu que sete dos nove artigos da Decisão-Quadro 2003/80/JAI, atendendo tanto à sua finalidade como ao seu conteúdo, têm por objecto principal a protecção do ambiente e poderiam ter sido validamente adoptados com base no artigo 175.º do TCE. Consequentemente, ao invadir a esfera de competências que este artigo atribui à Comunidade, a decisão-quadro desrespeitou na sua totalidade, em razão da sua indivisibilidade, o artigo 47.º do TUE (n.ºs 51-53). Acrescente-se, por um lado, que no acórdão de 23 de Outubro de 2007, Comissão/Conselho, C-440/05, o TJ esclareceu que não é da competência da Comunidade a fixação do tipo e do grau das sanções penais a aplicar para assegurar o cumprimento de uma regulamentação comunitária adoptada em matéria de segurança marítima (n.ºs 68-71). Por outro lado, no acórdão de 20 de Maio de 2008, Comissão/Conselho, C-91/05, o TJ precisou que o artigo 47.º, invocado em ambos os acórdãos supracitados, ao prever que as disposições do TUE não podem afectar o TCE nem os tratados e actos subsequentes que os alteraram ou completaram “tem por objectivo, em conformidade com os artigos 2.º, quinto travessão, e 3.º, primeiro parágrafo, do TUE, a manutenção e o desenvolvimento do acervo comunitário” (n.º 59); uma vez que tal artigo se opõe “à adopção pela União, com base no TUE, de uma medida que podia ter sido validamente adoptada com base no TCE”, a União não pode recorrer a uma base jurídica do Título VI para adoptar disposições que são igualmente abrangidas por uma competência atribuída pelo TCE à Comunidade.
10
regime de circulação de estrangeiros, quer das disposições relativas à cooperação
policial e judiciária em matéria penal.
O Manual Sirene (que constitui um conjunto de instruções destinadas aos
operadores dos chamados gabinetes Sirene, que em cada Estado Schengen trocam entre
si as informações suplementares necessárias ao bom funcionamento do SIS) e o seu
procedimento de alteração ilustram de modo particularmente claro o que acaba de
dizer-se. Tem-se considerado, com efeito, que o manual assim como as suas alterações
devem constar de “dois instrumentos separados”, a saber, um regulamento baseado no
artigo 66.º do TCE (o Regulamento n.º 378/2004, de 19 de Fevereiro) e uma decisão
baseada nos artigos 30.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 31.º, n.º 1, alíneas a) e b), do TUE (a
Decisão 2004/201/JAI, da mesma data do regulamento).
De acordo com os 7.º e 8.º considerandos de ambos os diplomas, que vale a
pena transcrever neste contexto, “a razão para tanto é que, tal como previsto no artigo
92.º da Convenção de Schengen, o Sistema de Informação de Schengen deverá permitir
às autoridades designadas pelos Estados-Membros, graças a um processo de consulta
automatizada, disporem da lista de pessoas indicadas e de objectos, aquando dos
controlos nas fronteiras e das verificações e outros controlos de polícia e aduaneiros
efectuados no interior do país ao abrigo do direito nacional, bem como, para efeitos do
processo de emissão de vistos, da emissão de títulos de residência e da administração
dos estrangeiros no âmbito da aplicação das disposições do acervo de Schengen sobre a
circulação de pessoas. A troca das informações suplementares necessária à aplicação
das disposições da Convenção de Schengen (…), efectuada pelos gabinetes Sirene de
cada Estado-Membro satisfaz também esses objectivos, bem como o de apoiar a
cooperação policial de um modo geral”17. “O facto de a base jurídica necessária para
permitir futuras alterações do manual Sirene consistir em dois instrumentos separados
não afecta o princípio de que o SIS constitui, presentemente e de futuro, um único
sistema integrado de informação e de que os gabinetes Sirene devem continuar a
desempenhar as suas funções de modo integrado”.
Em consonância com isto, a versão em vigor do manual Sirene foi objecto de
duas decisões da Comissão datadas de 22 de Setembro de 2006 tendo ambas por
epígrafe “que altera o manual Sirene” – a Decisão 2006/757/CE e a Decisão
17 É manifesto que o considerando transcrito deveria mencionar também a cooperação judiciária em matéria penal, tanto mais que também faz referência ao artigo 31.º do TUE, que a contempla.
11
2006/758/JAI18. Em ambas se pode ler que “o facto de a base jurídica necessária para a
adopção do manual Sirene revisto consistir em dois instrumentos jurídicos não põe em
causa o princípio de que o manual constitui um instrumento único. Por uma questão de
clareza convém, no entanto, que o manual seja reproduzido nos anexos das duas
decisões”. E no anexo 1 de cada uma das decisões, cuja epígrafe é “Manual Sirene
revisto”, adverte-se que “o presente texto é idêntico” ao anexo 1 da outra.
A pouca racionalidade, a roçar o caricato, que daqui resulta não carece de
maiores demonstrações. Apenas importa acrescentar, por um lado, que as revisões do
próprio dispositivo da Convenção de Schengen relativo ao SIS também têm sido
efectuadas através da mesma “técnica do duplo acto” (regulamento comunitário e
decisão do Título VI do TUE)19 e, por outro lado, que o SIS II, ainda não instalado,
também se baseia numa dualidade de actos20.
4.6. Por outro lado, a dualidade de bases jurídicas do ELSJ em análise, com
todos os problemas que cria, reflecte-se ainda em muitos dos acordos de direito
internacional a celebrar, no quadro do ELSJ, com organizações ou Estados terceiros. A
mera transcrição da epígrafe de um desses acordos basta para o ilustrar: “Acordo entre a
18 JO L 317/1 e 41 de 16-11-2006. 19 Ver o Regulamento (CE) n.º 871/2004 do Conselho de 29 de Abril, relativo à introdução de novas funções no Sistema de Informação Schengen, incluindo o combate ao terrorismo (JO L 162/29 de 30-4-2004) e a Decisão 2005/211/JAI do Conselho de 24 de Fevereiro de 2005, relativa à introdução de novas funções no Sistema de Informação Schengen, incluindo a luta contra o terrorismo (JO L 68/44 de 15-3-2005). 20 Trata-se, por um lado, do Regulamento (CE) n.º 1987/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Dezembro, relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen de segunda geração (SIS II) (JO L 381/4 de 28-12-2006) e, por outro lado, da Decisão 2007/533/JAI do Conselho de 12 de Junho, relativa ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação Schengen de segunda geração (SIS II) (JO L 205/63 de 7-8-2007). No 4.º considerando de ambos os diplomas pode ler-se que “o facto de a base legislativa necessária para regulamentar o SIS II consistir em dois instrumentos distintos não afecta o princípio de que o SIS II constitui um sistema de informação único e de que deverá funcionar como tal. Certas disposições destes instrumentos deverão, por esse motivo, ser idênticas”. São-no efectivamente os primeiros dezanove artigos de ambos, dedicados às disposições gerais, bem como as regras gerais aplicáveis ao tratamento e à protecção de dados e à responsabilidade e sanções. Além disso, porque a matéria relativa à emissão dos certificados de matrícula dos veículos não releva do Título IV da Parte III do TCE, considerou-se necessário adoptar, em complemento de ambos, um terceiro instrumento com base no Título V (“Os transportes”) do mesmo tratado: o Regulamento (CE) n.º 1986/2006 de 20 de Dezembro, relativo ao acesso ao Sistema de Informação de Schengen de segunda geração (SIS II) dos serviços dos Estados-Membros competentes para a emissão dos certificados de matrícula dos veículos (JO L 381/1 de 28-12-2006). Registe-se, por último, que o manual Sirene e outras medidas de execução para o SIS II também é em duplicado e contém a mesma advertência do actual quanto à identidade dos dois textos; cf. as Decisões da Comissão 2008/333/CE e 2008/334/JAI de 4 de Março (JO L 123/1 e 41 de 8-5-2008). A novidade em relação ao actual manual Sirene é que se aceita abertamente a extensão do procedimento comunitário de comitologia ao Título VI do TUE, em contradição com o disposto no artigo 34.º, n.º 2, alínea c), in fine – onde a competência para a execução das decisões aí previstas (no caso a citada Decisão 2007/533/JAI) cabe exclusivamente ao Conselho.
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União Europeia, a Comunidade Europeia e a Confederação Suíça relativo à associação
da Confederação Suíça à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de
Schengen”. Trata-se de uma solução que, em rigor, deverá ter determinado o recurso a
dois procedimentos diferentes consoante as partes do acordo em causa: o do artigo 24.º
do TUE (em conjugação com o artigo 38.º), para as matérias relevando do III Pilar, e o
do artigo 300.º do TCE, para as matérias relevando do I Pilar21.
A dualidade em questão reflecte-se enfim nos próprios trabalhos do Conselho, a
começar pelos das suas instâncias preparatórias, conferindo-lhes um carácter por vezes
“esquizofrénico”22. Atesta-o exemplarmente o caso dos trabalhos com vista a uma
gestão integrada das fronteiras externas, que culminou na criação de uma agência
europeia de gestão da cooperação operacional nessas fronteiras (Frontex). Relevando da
competência da Comunidade, os trabalhos prosseguiram totalmente desligados dos
levados a cabo nos diversos grupos do Conselho encarregados das questões policiais –
que actuam ao abrigo do Título VI do TUE. Não é certamente esta a melhor forma de
acautelar a dimensão securitária que o controlo das fronteiras externas também
comporta. Outro exemplo ilustrativo é o da rede de oficiais de ligação criada ao abrigo
do Título IV da Parte III do TCE, para lutar contra a imigração clandestina. Embora
maioritariamente composta por forças de polícia actuando de acordo com uma lógica e
com métodos policiais, a rede prima pela falta de articulação com os instrumentos e as
instâncias criados ao abrigo do Título VI do TUE.
4.7. Apesar da dualidade analisada e de todas as disfunções que tem produzido,
o ELSJ progrediu consideravelmente nos últimos anos23, induzido também por factores
trágicos e inesperados como os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 nos Estados
Unidos, de 11 de Março de 2004 em Madrid e de 7 de Julho de 2005 em Londres. Seis
anos e meio depois da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, a União tinha
conseguido cumprir o essencial do ambicioso programa legislativo constante do Título
IV do TCE e do Título VI do TUE, informalmente revisto e completado pelo Conselho
21 Para maiores desenvolvimentos, ver Jörg Monar, “The EU as an international actor in the domain of Justice and Home Affairs”, European Foreign Affairs Review, vol. 9, 2004, p. 395 ss. 22 A expressão é de Gilles de Kerchove, “Du traité sur l’Union Européenne à la Constitution : vers un espace européen de justice pénale”, Europa: Novas Fronteiras, n.º 13/14, cit., p. 148-149. 23 Sobre o tema ver Sophie Garcia-Jourdan, L’émergence d’un espace européen de liberté, de sécurité et de justice, Bruxelas, 2005; Neil Walker (edit.), Europe’s Area of Freedom, Security and Justice, Oxford, 2004; Joanna Apap (edit.), Justice and Home Affairs in the EU: Liberty and Security Issues after Enlargement, Londres, 2004; Steve Peers, EU Justice and Home Affairs Law, 2.ª edição, Oxford, 2006.
13
Europeu de Tampere24 – sujeita embora, na maioria dos casos, à regra da unanimidade
no Conselho25. Isto sem esquecer que o cumprimento de uma parte considerável desse
programa resultou da mera integração do acervo de Schengen no âmbito da União,
mediante a sua recondução a uma base jurídica num Tratado ou no outro e o seu
desenvolvimento através de actos jurídicos típicos do TCE ou do Título VI do TUE.
A cooperação intergovernamental formalizada em Maastricht e melhorada em
Amesterdão e Nice não só não “contaminou” o método comunitário como acabou por
contribuir substancialmente para demonstrar que este é, nos seus traços essenciais, o
melhor método de levar a cabo a cada vez mais indispensável tarefa de “colocar em
rede” corpos de polícias e de magistrados judiciários, bem como funcionários dos
ministérios da justiça e da administração interna dos Estados-Membros. Assim se
preparou o caminho que conduziu à generalização do método comunitário ao ELSJ,
prevista pelo Tratado de Lisboa.
Em abono da verdade, há no entanto a dizer que o conteúdo de uma série de
actos jurídicos adoptados pelo Conselho em cumprimento do referido programa
legislativo, já de si minimalista nalguns aspectos, não deixou de se ressentir
consideravelmente da regra da unanimidade (em vigor também no Título IV do TCE
nos primeiros cinco anos de vigência do Tratado de Amesterdão), sendo o seu alcance
harmonizador das legislações dos Estados-Membros francamente reduzido, quando não
meramente legitimador das legislações mais restritivas de alguns deles. O exemplo mais
ilustrativo é provavelmente o da directiva relativa ao reagrupamento familiar26.
24 Sobre o Programa de Tampere e o seu significado para o ELSJ, ver Anabela Rodrigues e Lopes da Mota, Para uma Política Criminal Europeia, cit., p. 90 ss., e Nuno Piçarra, “O espaço de liberdade, segurança e justiça após a assinatura do Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa”, cit., p. 37 ss. 25 Na sequência da Decisão do Conselho 2004/927/CE, de 22 de Dezembro de 2004, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2005, a situação relativa aos procedimentos legislativos vigentes no âmbito do Título IV do TCE é a seguinte: tratando-se de adoptar medidas no domínio da migração legal de nacionais de países terceiros para Estados-Membros e entre Estados-Membros [artigo 63º, n.º 3º, alínea a), e n.º 4], o Conselho continua a deliberar por unanimidade, após consulta ao PE. Em contrapartida ficaram sujeitos ao procedimento do artigo 251º do TCE, juntando-se aos vistos e à cooperação judiciária civil não referente ao direito da família, os seguintes domínios: (1) ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas; (2) controlos de pessoas nas fronteiras externas; (3) circulação de nacionais de países terceiros no território dos Estados-Membros durante um período não superior a três meses; (4) repartição equilibrada do esforço assumido pelos Estados-Membros ao acolherem refugiados e pessoas deslocadas e suportarem as consequências decorrentes desse acolhimento; (5) imigração clandestina e residência ilegal. Ao invés, no âmbito do Título VI do TUE, dado o seu carácter predominantemente intergovernamental, continua a prevalecer a regra da unanimidade no Conselho, no quadro do procedimento legislativo da consulta prévia ao PE. 26 Sobre esta directiva, ver por exemplo Elena Pérez Martín, “Libertad de circulación y de residencia: ciudadanía e inmigración en la Constitución europea ”, Coloquio Ibérico, cit., p. 625 ss., e Constança Urbano de Sousa, “Le regroupement familial au regard des standards internationaux”, in François Julien-
14
5. O espaço de liberdade, segurança e justiça como espaço de geometria variável:
os “estatutos especiais” de certos membros
5.1. A terceira característica fundamental do actual ELSJ prende-se com a
circunstância de os Estados que o integram não estarem todos em pé de igualdade
quanto ao estatuto de que gozam perante ele. Os “estatutos especiais” de que aqui se
trata são de quatro tipos.
O primeiro, que faz do ELSJ uma modalidade de cooperação reforçada
predeterminada pelos próprios Tratados27, abrange os Estados-Membros que não
aceitaram o núcleo aglutinador deste espaço – a supressão dos controlos de pessoas nas
fronteiras internas – e, por isso mesmo, apenas pretendem vincular-se selectivamente às
restantes componentes do acervo que o rege (Reino Unido e Irlanda). O segundo,
engloba o Estado-Membro que apenas rejeita a sujeição parcial do ELSJ ao método
comunitário (Dinamarca). O terceiro, engloba os Estados-Membros que, estando
obrigados a integrarem-se plenamente no ELSJ, se vêem sujeitos a formas de controlo
do cumprimento das obrigações daí decorrentes que não vigoram para os restantes (os
“novos Estados-Membros”). O quarto tipo abrange enfim os Estados não membros da
UE que, por isso mesmo, não deveriam poder integrar-se no ELSJ mas que, por diversas
razões, nele foram integrados. Só ficam vinculados, por via do direito internacional
público, ao indispensável para o ELSJ se manter e desenvolver como espaço de
fronteiras internas abertas, a saber, o acervo de Schengen e os actos destinados a
desenvolvê-lo. Trata-se da Islândia, da Noruega, da Suíça e do Liechtenstein.
5.2. A inscrição expressa no TCE da ausência de controlos de pessoas na
passagem das fronteiras internas, enquanto elemento aglutinador do ELSJ teve como
contrapartida inevitável o direito obtido pelo Reino Unido e pela Irlanda, que sempre se
opuseram a tal objectivo, de não se vincularem, nem pelo artigo 62.º, n.º 1, nem por
Laferrière e. a. (org.) La politique européenne d’immigration et d’asile: bilan critique cinq ans après le traité d’Amsterdam, Bruxelas, 2005, p. 127 ss. 27 Na acepção dos Tratados da UE, a expressão “cooperação reforçada” designa aquele domínio material por eles abrangido que não vincula todos os Estados-Membros. Por isso mesmo, qualquer cooperação reforçada carece de uma base legitimadora expressa: ou um preceito dos próprios tratados (incluindo protocolos anexos), ou um acto autorizativo do Conselho, adoptado ao abrigo do artigo 11.º do TCE ou do artigo 40.º do TUE.
15
nenhuma outra disposição relevando do Título IV do TCE. Com efeito, o artigo 69.º
remete expressamente para dois protocolos anexados pelo Tratado de Amesterdão ao
TCE e ao TUE: o Protocolo relativo à aplicação de certos aspectos do artigo 14º do TCE
ao Reino Unido e à Irlanda e o Protocolo relativo à posição destes dois Estados-
Membros relativamente ao Título IV e ao direito comunitário derivado adoptado em seu
desenvolvimento.
Em derrogação do artigo 62.º, n.º 1, o primeiro Protocolo habilita o Reino Unido
e a Irlanda a exercerem os controlos de pessoas que considerem necessários nas suas
fronteiras com os outros Estados-Membros e, reciprocamente, habilita estes últimos a
exercerem idênticos controlos sobre as pessoas que pretendam entrar nos respectivos
territórios em proveniência de um ou de outro Estado-Membro28.
O segundo Protocolo, por seu lado, garante a ambos os Estados-Membros o
direito de escolherem caso a caso as disposições do Título IV e os actos jurídicos
adoptados com base nele a que pretendam vincular-se. Tal opção inclui o direito de
participar no procedimento de adopção, pelo Conselho, do acto jurídico em causa e, em
alternativa, o direito de apenas se vincular a posteriori ao acto adoptado, sem qualquer
participação no respectivo procedimento decisório.
Isto significa, portanto, que cada regulamento, directiva ou decisão adoptados
em aplicação do Título IV do TCE conterão necessariamente uma referência concreta à
posição de cada um desses Estados-Membros, para indicar que o Reino Unido e/ou a
Irlanda (1) notificaram o Conselho do seu desejo de participar na adopção e aplicação
do acto em causa, ou (2) não participaram na adopção de tal acto que, por conseguinte,
não lhe é aplicável29.
O direito de vinculação selectiva destes dois Estados-Membros estende-se ainda
ao acervo de Schengen, nos termos do artigo 4.º do protocolo relativo à integração deste 28 Nos termos do artigo 2.º do Protocolo, este só será aplicável à Irlanda enquanto se mantiverem em vigor os convénios celebrados com o Reino Unido relativos à circulação de pessoas entre os dois Estados-Membros, no quadro da chamada Zona de Deslocação Comum. 29 Para os diferentes casos, ver por exemplo, o 4.º considerando do Regulamento (CE) n.º 539/2001 do Conselho de 15 de Março, que fixa a lista dos países terceiros cujos nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas da UE e a lista dos países terceiros cujos nacionais estão isentos dessa obrigação (JO L 81/1 de 21-3-2001), os 6.º e 7.º considerandos da Directiva 2001/51/CE do Conselho, de 28 de Junho, que completa as disposições do artigo 26.º da Convenção de Schengen (JO L 187/45 de 10-7-2001); o 7.º considerando da Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro, relativa à definição do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares (JO L 328/17 de 5-12-2002); o 25.º considerando da Directiva 2004/114/CE de 13 de Dezembro, relativa às condições de admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos, de intercâmbio de estudantes, de formação não remunerada ou de voluntariado (JO L 375/12 de 23-12-2004); os 11.º e 12.º considerandos da Decisão 2004/512/CE do Conselho de 8 de Junho, que estabelece o Sistema de Informação sobre Vistos (JO L 213/5 de 15-6-2004).
16
na UE, onde se lê que a Irlanda e o Reino Unido “podem, a todo o tempo, requerer a
passibilidade de aplicar, no todo ou em parte, as disposições desse acervo”, deliberando
o Conselho sobre esse pedido por unanimidade. Em execução desta disposição, o
Conselho adoptou duas decisões fixando respectivamente os elementos do acervo de
Schengen a que o Reino Unido, por um lado, e a Irlanda, por outro, aceitaram vincular-
se. Trata-se da Decisão 2000/365/CE, de 29 de Maio, e da Decisão 2002/192/CE, de 28
de Fevereiro30. A partir da data da aprovação das respectivas decisões, ambos os
Estados-Membros ficam obrigados a participar no procedimento de adopção de todos os
actos jurídicos da União que constituam desenvolvimentos do acervo de Schengen por
eles aceite e a vincular-se a tais actos, aplicando-os enquanto tais nos respectivos
territórios.
Em acórdãos de 18 de Dezembro de 2007, o TJ veio esclarecer que o Reino
Unido e/ou a Irlanda só podem participar nas propostas e iniciativas de acto da UE
baseadas no acervo de Schengen se elas se situarem numa área desse acervo em que tais
Estados-Membros tenham sido admitidos a participar nos termos do citado artigo 4.º,
isto é, por decisão unânime do Conselho. O TJ afastou assim uma interpretação literal
do artigo 5.º do mesmo protocolo, cujo teor aponta incongruentemente em sentido
contrário. Para o TJ, uma tal interpretação “teria por consequência esvaziar de todo o
efeito útil o artigo 4.º do protocolo de Schengen”, na medida em que o Reino Unido e a
Irlanda poderiam participar em todas e quaisquer propostas e iniciativas baseadas no
acervo de Schengen, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 1, do referido protocolo, apesar de não
estarem vinculados às disposições relevantes desse acervo nos termos do artigo 4.º31.
5.3. Contrariamente ao Reino Unido e à Irlanda, o estatuto especial da
Dinamarca no ELSJ não foi determinado pela recusa do princípio da supressão dos
controlos de pessoas nas fronteiras internas e das correspondentes medidas de
acompanhamento, mas sim pela recusa da sua transferência de um quadro institucional e
30 JO L 131/43 de 1-6-2000 e JO L 64 de 7-3-2002. Ver também a Decisão do Conselho 2004/926/CE de 22 de Dezembro, relativa à produção de efeitos de parte do acervo de Schengen no Reino Unido a partir de 1 de Janeiro de 2005 (JO L 395/70 de 31-12-2004). 31 Ver os n.ºs 67 e 68 do acórdão proferido no processo Reino Unido/Conselho, C-77/05. O Conselho tinha recusado ao Reino Unido o direito de participar na adopção do Regulamento n.º 2007/2004, de 26 de Outubro, que cria uma Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia (JO L 349/1, de 25-11-2004), por ser pacífico que tal Estado-Membro não estava vinculado à área do acervo de Schengen em que tal regulamento se insere, a saber, a relativa à passagem das fronteiras externas. O outro acórdão foi proferido no processo Reino Unido/Conselho, C-137/05, especialmente o n.º 50.
17
jurídico de cariz intergovernamental como o do Acordo e da Convenção de Schengen
para o TCE, marcado por uma lógica de integração supranacional.
Daí o artigo 3.º, n.º 1, do Protocolo Schengen, no termos do qual a Dinamarca
“conservará os mesmos direitos e obrigações em relação aos outros signatários dos
Acordos de Schengen (…), relativamente às partes do acervo de Schengen que se
considere terem uma base jurídica no Título IV do Tratado que institui a Comunidade
Europeia”. A abstrusa ficção de que este direito comunitário derivado continua a valer
como simples direito internacional público para a Dinamarca leva a que, num
considerando dos actos adoptados ao abrigo daquele Título destinados a desenvolver o
acervo de Schengen32, se inclua, sistematicamente, a seguinte fórmula: a Dinamarca,
nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Protocolo relativo à sua posição face ao Título IV do
TCE, “deverá decidir, no prazo de seis meses, após a aprovação do presente
instrumento, se procederá à respectiva transposição para o seu direito interno”33. E isto
mesmo que o instrumento em causa seja um regulamento ou uma decisão, directamente
aplicáveis por força do artigo 249.º do TCE. Em caso nenhum a Dinamarca poderá
participar na aprovação desses actos pelo Conselho.
Sobre a margem de “liberdade de transposição” de que dispõe a Dinamarca é
eloquente o artigo 5.º, n.º 2, do mesmo protocolo: se a Dinamarca decidir não “transpor”
tal instrumento, os outros Estados-Membros “analisarão as medidas adequadas a
tomar”…
5.4. Por força do artigo 8.º do Protocolo Schengen, os novos Estados-Membros
devem aceitar na totalidade “o acervo de Schengen e as demais medidas adoptadas pelas
instituições no seu âmbito de aplicação”. Mas tal acervo só se torna plenamente
aplicável a cada um deles, incluindo a supressão dos controlos de pessoas nas suas
fronteiras internas, após uma decisão unânime do Conselho, nos termos do artigo 2.º, n.º
2, que certifique estarem reunidas as condições prévias para o efeito34. Uma tal decisão
32 Excepto os actos que determinam os países terceiros cujos nacionais devem ser detentores de visto para transporem as fronteiras externas dos Estados-Membros e os relativos à criação de um modelo-tipo de visto, que já estavam comunitarizados anteriormente à entrada em vigor do Tratado de Amesterdão. 33 Ver por exemplo o 24.º considerando do Regulamento (CE) n.º 2007/2004 do Conselho, cit. 34 São elas (1) controlos efectivos nas fronteiras externas, de acordo com o Código das Fronteiras Schengen; (2) aeroportos internacionais adaptados no sentido de permitir tais controlos especificamente nas fronteiras externas aéreas; (3) postos diplomáticos e consulares preparados para a emissão de visto uniforme, de acordo com normas comuns; (4) autoridades competentes aptas a aplicarem o regime comum da determinação da responsabilidade pelo tratamento de um pedido de asilo apresentado num Estado integrado no ELSJ; (5) integração operacional no SIS; (6) vinculação aos necessários instrumentos internacionais de protecção de dados pessoais.
18
foi recentemente tomada em relação a nove deles, tendo os controlos de pessoas sido
abolidos por último nas correspondentes fronteiras aéreas em 30 de Março de 200835.
A diferenciação em relação aos restantes Estados-Membros encontra-se na parte
em que os próprios Actos de Adesão prevêem que qualquer dos novos Estados-
Membros pode ver-se temporariamente suspenso do ELSJ, se nele “se verificarem ou
houver um risco eminente de se verificarem lacunas graves na transposição, no estado
da aplicação ou na execução das decisões-quadro ou de quaisquer outros compromissos,
instrumentos de cooperação e decisões relativos ao reconhecimento mútuo no domínio
do direito penal, ao abrigo do Título VI do Tratado UE, e das directivas e regulamentos
relacionados com o reconhecimento mútuo em matéria civil, ao abrigo do Título IV do
Tratado CE”36.
Tal possibilidade explica-se pela desconfiança que à partida recaía sobre os
novos Estados-Membros, dez dos quais saídos de regimes comunistas, quanto à sua
capacidade de respeitar os princípios do Estado de Direito que tão essenciais se revelam
para a manutenção e o desenvolvimento da UE enquanto ELSJ.
5.5. A inclusão no ELSJ da Islândia e da Noruega, Estados não membros da UE,
através da sua “associação à execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de
Schengen”, em derrogação ao princípio de que apenas os Estados-Membros têm esse
direito, explica-se pelo facto de eles já constituírem previamente um espaço de idênticas
características com três Estados-Membros (a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia)
denominado União Nórdica de Passaportes (UNP). Por isso mesmo, não era
politicamente aceitável para nenhum deles que a integração dos três últimos primeiro no
Espaço Schengen e depois no ELSJ implicasse a divisão da UNP por uma fronteira
externa da UE. Foi isso que levou a Noruega e a Islândia a assinarem com os Estados
Schengen, em 19 de Dezembro de 1996, um acordo que lhes permitiria integrar-se no
correspondente espaço, e o artigo 6.º do Protocolo Schengen a determinar a associação
de ambos “à execução do acervo de Schengen e ao seu posterior desenvolvimento”.
Em cumprimento do artigo 6.º, o Conselho celebrou com a Islândia e a Noruega,
em 18 de Maio de 1999, um acordo com esse objecto37. E em 30 de Junho celebrou
35 Trata-se da Decisão 2007/801/CE do Conselho de 6 de Dezembro de 2007, JO L 323/34 de 8-12-2007. 36 Ver o artigo 39.º do Acto de Adesão publicado no JO de 23-9-2003, p. 46, e o artigo 38.º do Acto de Adesão publicado no JO L 157/203 de 21-6-2005. 37 O acordo, bem como as Decisões do Conselho 1999/437/CE e 1999/439/CE, de 17 de Maio, a ele relativas encontram-se publicados no JO L 176/31, 35 e 36 de 10-7-1999.
19
também com ambos os países um acordo que define os direitos e as obrigações entre,
por um lado, a Irlanda e o Reino Unido e, por outro lado, a Islândia e a Noruega nos
domínios do acervo de Schengen aplicáveis àqueles Estados-Membros38.
O primeiro acordo criou um Comité Misto, composto por representantes dos
governos da Islândia e da Noruega, do Conselho e da Comissão, que se reúne a nível
dos ministros, altos funcionários ou peritos, consoante as circunstâncias. Os
representantes dos governos de ambos os países têm aí ocasião de expor os seus
problemas quanto a um acto ou medida específica e de exprimir as suas opiniões sobre
qualquer questão relativa ao desenvolvimento de disposições que lhe digam respeito ou
à execução dessas disposições. Também podem apresentar sugestões ao Comité Misto.
Mas a adopção de novos actos ou medidas de desenvolvimento do acervo de Schengen
cabe exclusivamente aos órgãos competentes da UE. Cada um desses actos ou medidas
deverá explicitar num considerando do preâmbulo que constitui um desenvolvimento de
tal acervo, caso em que será vinculativo para a Islândia e para a Noruega39.
Considera-se que cessou a vigência do acordo em relação àquele dos dois países
que não aceitar o acto ou a medida em causa, ou se não for encontrada uma solução
definitiva para o litígio que o oponha à UE. Tal acordo também pode ser denunciado por
qualquer das Partes.
5.6. A inclusão da Suíça no ELSJ igualmente através da sua associação à
execução, à aplicação e ao desenvolvimento do acervo de Schengen, explica-se
fundamentalmente pela sua posição geográfica rodeada por Estados-Membros da UE,
tal como o explicita o acordo com esse objecto, assinado em 26 de Outubro de 2004
entre a União Europeia, a Comunidade Europeia e a Suíça, e entrado em vigor em 1 de
Março de 2008, sem prejuízo da prévia aplicação provisória de diversas disposições40.
38 JO L 15/2 de 20-1-2000. 39 Ver por exemplo, o 6.º considerando do Regulamento (CE) n.º 539/2001 do Conselho, cit.; o 10.º considerando da Directiva 2001/51/CE do Conselho, cit.; o 9.º e o 10.º considerandos da Decisão 2004/512/CE do Conselho, cit., o 6.º considerando da Decisão-Quadro 2002/946/JAI do Conselho, de 28 de Novembro, relativa ao reforço do quadro penal para a prevenção do auxílio à entrada, ao trânsito e à residência irregulares, cit.; o 9.º e o 10.º considerandos da Decisão 2001/886/JAI, de 6 de Dezembro, relativa ao desenvolvimento da segunda geração do Sistema de Informação de Schengen (SIS II), cit. 40 Nos termos da Decisão do Conselho 2004/849/CE (JO L 368/26 de 15-12-2004), tornaram-se provisoriamente aplicáveis a partir da data da assinatura as disposições relativas à criação e ao funcionamento de um Comité Misto composto por representantes do Governo suíço, do Conselho da UE e da Comissão Europeia, assim como as disposições relativas à obrigação de a Comissão consultar informalmente os peritos suíços ao elaborar as suas propostas legislativas relativas ao acervo de Schengen e à obrigação de o Conselho notificar imediatamente a Suíça dos actos ou medidas de direito comunitário e de direito da União adoptados em desenvolvimento desse acervo.
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O próprio acordo refere o imperativo de associar a Suíça, em pé de igualdade
com a Islândia e a Noruega, à execução, aplicação e desenvolvimento do acervo de
Schengen – definido como “uma parte das disposições que visam a realização [do]
espaço de liberdade, segurança e justiça, na medida em que estas disposições criam um
espaço sem controlos nas fronteiras internas e prevêem medidas compensatórias que
permitem garantir um elevado nível de segurança”. Uma análise do seu articulado deixa
claro que as disposições estruturantes deste acordo são idênticas às do acordo supra-
analisado relativo à Islândia e à Noruega.
Apenas há a acrescentar que o artigo 16.º, n.º 1, do mesmo acordo contempla a
adesão a ele do Liechtenstein – por este país formar com a Suíça um espaço de
fronteiras comuns abertas. Em aplicação do n.º 2, a adesão do Liechtenstein deu-se
através de um protocolo assinado em 28 de Fevereiro de 2008, entre a União Europeia,
a Comunidade Europeia, a Suíça e o Liechtenstein, sendo determinadas disposições suas
provisoriamente aplicadas desde essa data41.
Os controlos de pessoas nas fronteiras aéreas comuns da Suíça com os Estados a
que se aplica integralmente o acervo de Schengen foram suprimidos em 29 de Março de
2009, na sequência da supressão dos mesmos controlos nas fronteiras terrestres comuns
em 12 de Dezembro de 2008.
6. Conclusão
Desde a sua inscrição nos Tratados da UE, o ELSJ tornou-se, de algum modo, o
motor da construção europeia, sendo certo que para isso contribuíram decisivamente
acontecimentos tão trágicos e imprevisíveis como os atentados terroristas de 11 de
Setembro de 2001 nos Estados Unidos, de 11 de Março de 2004 em Madrid e de 7 de
Julho de 2005 em Londres.
Independentemente disso, são de extrema actualidade para a UE, os Estados-
Membros e os seus cidadãos todas as políticas que integram o ELSJ. Além disso, parece
não haver grandes dúvidas de que a superação da crise em que a UE vive actualmente
passará em boa medida pelo reforço de tais políticas.
41 Ver as Decisões 2008/261/CE e 2008/262/JAI do Conselho, de 28 de Fevereiro, publicadas no JO L 83 de 26-3-2008 e rectificada a última no JO L 110/16 de 22-4-2008.
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Para isso, impõe-se antes de mais uma adequada reforma do enquadramento
jurídico em que o ELSJ se tem desenvolvido. O Tratado de Lisboa, sobre cuja entrada
em vigor ainda pairam incertezas, dá um contributo claramente positivo para o efeito,
que aqui não foi objecto de análise. Mesmo assim, à luz do que precede, não será difícil
perceber quão bem-vinda é a supressão, operada por aquele tratado, da dualidade de
bases e de fontes jurídicas, sujeitando na generalidade o ELSJ ao “método comunitário”.
Assim como não será difícil perceber, em contrapartida, que só pode considerar-se de
lamentar que o Tratado de Lisboa tenha permitido o acentuar da “geometria variável”
em tal espaço, mediante a concessão de “estatutos especiais reforçados” a certos
Estados-Membros.
Seja como for, ao implicar a UE em domínios tão sensíveis como os que
integram o ELSJ, pretendendo tornar visível a sua acção, criou-se para ela uma
verdadeira obrigação de resultado, que não poderá ser iludida sem implicar uma durável
perda de confiança por parte dos seus cidadãos. Tal como bem se salientou, em tais
domínios não se admite “semi-sucessos”, nem “semi-fracassos”. Isto leva também a
reequacionar a questão dos meios ao dispor da UE para alcançar o crucial objectivo que
consiste na sua “manutenção e desenvolvimento enquanto espaço de liberdade,
segurança e justiça”, independentemente da entrada em vigor do Tratado de Lisboa42.
Outubro de 2009
42 Para maiores desenvolvimentos ver Denis Duez, “La ‘crise’ de l’Union et les apories de la sécurité intérieure européenne”, in Paul Magnette e Anne Weyembergh (edit.), L’Union européenne: la fin d’une crise?, Bruxelas, 2008, pp. 69 ss.
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