a segunda guerra nos games
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A Segunda Guerra Mundial nos GamesProf. Ms. Marsal Alves Branco
Feevale - RS
No artigo Tipologia dos Games, defendemos que a proposição de uma
metodologia de análise dos games passa, em primeiro lugar, pela definição dos critérios
tipológicos dessa mídia. Entre os caminhos propostos por diferentes vertentes dos
estudos dos games e pelos pesquisadores das teorias dos jogos, pensamos que as
características da narrativa sejam esses critérios. Conhecemos, no entanto, o caráter
abrangente da palavra, cuja quantidade de significações e conceitualizações varia
conforme a área ou mesmo conforme a metodologia adotada. Em decorrência disso e
considerando o caráter único dos games enquanto mídia e enquanto singularidade
narrativa, pensamos que esta é formada por três dimensões que são indissociáveis: o
gênero narrativo propriamente dito; seus aspectos de interface e seu caráter tecnológico.
Esse artigo pretende, através da análise de alguns jogos ambientados na
Segunda Guerra Mundial, demonstrar como a narrativa de um sub-gênero tão específico
vai sendo construída e refinada e como vai acontecer na interação entre gênero,
interface e tecnologia, estabelecendo-se até assumir o importante espaço que ocupa hoje
no cenário da indústria de vídeo-games.
Jogos de guerra
A escolha por jogos ambientados na Segunda Guerra Mundial decorre de
uma série de motivos. O primeiro pela grande quantidade de jogos ambientados nesse
período histórico, sejam de estratégia ou FPS1. Mesmo no Brasil seu número é tão
expressivo que é comum que ocupe lugares reservados só pra si nas prateleiras das
lojas. Franquias como Medal of Honor, Call of Duty, Battlefield e Brothers in the Arms
lançam novas expansões praticamente todo o ano: seja para os grandes consoles, para
portáteis, celulares ou para pcs. Nas LAN Houses, o gênero é quase obrigatório e muitas
vezes materializa-se em diversas opções de jogo. É comum encontrarmos grupos de
freqüentadores que se reúnem exclusivamente para jogar Call ou Medal e que raramente
jogam outros jogos. Esse movimento se confirma na quantidade de clãs e campeonatos
1 Dado retirado do site http://www.gamershell.com/articles/975.html em 03/12/2005.
que oferecem esse tipo de modalidade em seus quadros de competição. Pode-se pensar
que, dentro da realidade dessas casas de jogo e de seu mercado, a ausência de pelo
menos uma grande franquia ambientada na Segunda Guerra seja impensável.
Além disso, em um momento em que a comunicação começa se debruçar
sobre os video-games como objeto de estudo, é interessante perceber como esse gênero
de jogo tem condições de ilustrar as profundas mudanças sofridas pelas narrativas dos
games desde o lançamento de Tank, em 1974, e os inúmeros outros representantes do
gênero que se seguiram nas próximas décadas e que ajudaram a estabelecer os jogos de
Segunda Guerra como um importante referencial de gênero dentro dos games.
A amostragem escolhida responde, em primeiro lugar, a um aspecto
cronológico. Os três jogos escolhidos pertencem a diferentes gerações de games: Tank,
1974; Panzer General II, 1994; Medal of Honor, 1999. Cada um dos três jogos
apresenta diferenças de interface que ajudam a esclarecer as negociações que ocorrem
entre as diferentes dimensões de sua narrativa. Em segundo, está o fato de serem jogos
que marcaram sua época e que introduziram inovações dentro da narrativa dos games.
Inovações que foram - com o passar do tempo -, se estabelecendo como padrões
narrativos para os jogos de guerra.
Tank
Lançado pela Kee Games e Atari, o jogo foi o grande hit de 1974. Consistia
em um labirinto através do qual os jogadores poderiam manobrar seus veículos. Era
possível jogar sozinho ou em dupla (sem dúvida um atrativo interessante para a época).
Cada um dos veículos disparava projéteis (pontos vermelhos ou azuis, conforme a cor
do tanque) para tentar acertar o adversário. Cada vez que um dos jogadores acertava o
outro contabilizava um ponto, em uma disputa que podia ser de três ou cinco partidas.
Tank, bem como muitos dos jogos das primeiras gerações tecnológicas,
apresentava muito poucos elementos que fornecessem ao gamer qualquer tipo de
ambientação que ajudasse a introduzir uma narrativa nos moldes de outros produtos
midiáticos. Embora a representação gráfica dos veículos (sua movimentação, sua
capacidade de disparar projéteis), o material promocional do jogo e também seu nome
tornasse evidente que se tratavam de tanques (e de uma guerra, possivelmente), nenhum
elemento do jogo contextualizava a batalha. Os cenários, em duas cores, não fazem
qualquer referência a um espaço conhecido, sendo representado graficamente por
padrões geométricos nos quais não se reconhece nenhuma tentativa de representar o
mundo real. A limitação tecnológica (ligado neste caso específico à falta de capacidade
de processamento) obrigava o uso de quatro cores e apresentava uma resolução muito
ruim, o que tornava o video-game uma mídia cujo referencial estético se construia sobre
uma lógica muito diferente da tv (a quem está ligado por laços indissociáveis). Aliás
pode-se dizer mesmo que o referencial estético do vídeo-game, diferente de outras
mídias que importaram de outras suas estratégias, nasce e se desenvolve, pelo menos
durante a primeira geração tecnológica, dentro do vídeo-game2.
1. Tank. Simples e irresistível. Foi o jogo mais vendido de 74.
Frente a esse duríssimo limitador tecnológico, os jogos eram pensados mais
em termos de estrutura do que em termos da significação de seus elementos. Ao final de
um jogo, se perguntado sobre ele, o gamer podia dizer venci ou perdi, mas dificilmente
descreveria o que se passou lá dentro em termos e na forma de uma batalha. À parte a
diversão, não haviam motivos para que se disparassem os tiros e o gamer apenas
aceitava esse fato.
O comentário de Steve Bristow, um dos engenheiros que criou Tank, ajuda a
compreender o grau de abstração em que se trabalhavam os games nos anos 70.
“We started a football game called Xs and Os, but then we thought a game with tanks would be better, and made Tank instead.”
Essa total subordinação da narrativa frente a uma estrutura organizadora -
que algumas décadas depois se tornará um dos elementos-chave para os ludólogos3 -,
era então menos uma opção metodológica do que uma conseqüência direta da atuação
do fator tecnológico que constitui uma das dimensões de base dos acontecimentos do
vídeo-game.
2 À esse respeito, é interessante notar movimentos que se apropriam da estética dos primeiros games, transformando-a em uma referência cult.3 Para maiores esclarecimentos sobre a corrente ludológica, ver o trabalho de Koster ou Jesper Jull.
Panzer General II
Panzer General II é um game de estratégia ambientado na Segunda Guerra
Mundial. Foi lançado em 1994, pela SSI, conquistando uma legião de fãs à volta o
mundo.
Em PGII o jogador tem a sua disposição os recursos de vários exércitos, que
deve gerir e comandar de forma a obter vitórias nos campos de batalha. Obter essas
vitórias depende de seu conhecimento das rígidas regras que regem os turnos de jogo,
das capacidades de cada unidade disponível e do significado de seus atributos quando
aplicados na batalha.
A tela principal do jogo mostra um grande mapa do cenário de batalha. Logo
no início, o jogador é informado de seus objetivos, que variam conforme a batalha. As
vezes trata-se de conquistar uma
cidade, defender uma estrada,
proteger um vale ou um depósito.
Para alcançar estes objetivos, o
jogador é normalmente obrigado a
articular estratégias e táticas que
atingem altos graus de
complexidade.
General Panzer II não
é um jogo casual. Ao iniciante é
exigido um grande esforço inicial para que consiga apreender os principais conceitos.
Basta uma rápida olhada no manual básico do jogo para desencorajar aqueles jogadores
que querem entretenimento sem compromisso: são 125 páginas repletas de informações,
com intermináveis tabelas de tipos de unidades, suas especialidades e características.
Gênero narrativo
Diferentemente de Tank, GPII faz uso de uma série de características
genéricas específicas. Se no primeiro não havia qualquer contextualização ou referência
externa ao jogo, em GPII o jogador não é apenas imediatamente atirado dentro da
Segunda Guerra Mundial, mas também é dele exigido um domínio sobre a cultura
militar das forças aliadas e do eixo, do conhecimento das capacidades de cada unidade e
também de como usá-las em determinado contexto. Acima de tudo, deve estar apto a
orquestrar ofensivas que articulem as habilidades de cada uma. Pode-se pensar,
2. Tela de jogo de Panzer General II
justificadamente, que estas questões dizem mais respeito à interface que ao gênero
narrativo, mas de fato, quando o jogamos, somos levados a raciocinar em termos da
Segunda Guerra, e o que seria da ordem da interface acaba operando como instrumento
de sedução da narrativa. A começar pelos mapas oferecidos: Salerno, St. Lo, Caen,
Tobruk, etc, que buscam reproduzir as condições históricas das forças envolvidas.
“While it´s probably not possible to provide “truth” about any historical event, PANZER GENERAL II does give the player much the same kind of choices as those facing his or her historical counterpart.” (Manual of Panzer General, 1995)
No manual se encontram as principais estratégias que generais russos,
alemães, britânicos e americanos usaram em batalhas famosas, incitando o jogador a
testá-las e, quem sabe, melhorá-las. O jogo acena com a possibilidade de brincar com a
história. E às vezes o faz de maneiras inesperadas, como a possibilidade das forças do
eixo invadirem a América.
O jogo é permeado por cut scenes que introduzem as batalhas com que o
jogador vai se deparar. Esses filmes são constituídos de filmagens históricas e fotos da
Segunda Guerra, que esclarecem o contexto da guerra naquele momento e o papel -
dentro do teatro maior -, que aquela batalha específica ocupa. Conforme o exército que
o jogador ocupa, o narrador assume as maneiras e o sotaque daquela nacionalidade, ao
mesmo tempo que a música de background também reforça a identidade do país. Essas
características formais tornaram-se padrão em muitos dos jogos de guerra que se
seguiram.
Interface
As principais características da interface de PGII são: seu sistema de turnos e
seu sistema de unidades4. Embora tal estrutura de interface não representasse, à altura de
seu lançamento, uma novidade, é interessante notar como essa opção de interface afeta
outros aspectos da narrativa. No que ela possibilita, por exemplo, em termos de
envolvimento com a história militar do século passado. Se nos RPGs os gamers
estudam sobre o modo de organização da sociedade dos elfos negros, sobre o sistema
tributário de uma economia feudal mágica, dos modos de se fazer uma catapulta e da
importância da batata na culinária dos ogres, em PGII o aprendizado da história,
4 A estrutura turnos/unidades de características únicas já era padrão para a interface de RPGs (Role-playing games). Historicamente, no entanto, os RPGs sempre estiveram associados ao gênero fantasia.
estratégias e táticas dos principais exércitos, divisões e companhias – bem como a
filosofia militar dos principais generais -, é operacionalizado através do modo de
funcionar do sistema de unidades. Cada unidade de jogo representa um tipo de formação
militar cujas características o jogador precisa dominar para ter um bom desempenho no
jogo: saber a diferença entre Aircraft Carrier, Capital Ship, Destroyer, Naval
Transport; saber quais as habilidades e equipamentos especiais de um recon class;
quais as principais características de uma unidade quanto à mobilidade, transportes
disponíveis, níveis exigidos de combustível para cada operação, a capacidade de defesa
no chão, anti-aérea, naval, a quantidade de engenheiros e suas especialidades, a rapidez
de entrincheiramento, tipo de armas, etc. Aliás, apenas em relação aos tipos de armas, o
kit default do jogo apresenta, só referentes ao exército francês, 39 tipos diferentes de
armas. Cada uma dessas armas apresenta 21 características que afetam sua performance
em batalha e que devem ser levadas em consideração em sua escolha pelo gamer. Se
consideramos que cada país envolvido na guerra tem sua própria lista de armas, a
participação dentro do jogo de cinco ou seis países pressupõe a manipulação de
centenas de armas diferentes. Isso se ficamos só com o que está disponível no kit default
e sem levar em conta a quantidade de service packs oferecidos pela SSI que oferecem
outras tantas possibilidades.
Vê-se como a estrutura de interface reforça e condiciona um nível de
envolvimento muito grande entre o jogador e a narrativa. No caso de PGII, é a
articulação entre essas duas dimensões que transforma uma atividade exaustiva de
aprendizado em uma tarefa desafiadora e prazeirosa. Esse relacionamento entre
interface e gênero narrativo parece ter sido um dos principais fatores no sucesso de
Panzer General II. Uma olhada nos numerosos fóruns pode ajudar a evidenciar isso:
milhares de pessoas à volta do mundo discutindo os conceitos de blitzkrieg, articulação
de estratégias navais, aéreas e terrestres, táticas de infantaria, de artilharia, custos de
manutenção e soluções de logística, a história das compainhas e as batalhas pelas quais
ficaram famosas, característica das armas, etc.
Estatuto tecnológico
Além do nível mais evidente da ação tecnológica como possibilitador da
realidade do jogo (até final dos anos 90, era impossível colocar na tela um número
muito grande de animações e unidades de jogo interagindo em tempo real), PGII
apresenta uma série de dispositivos tecnológicos que afetam de maneira fundamental a
maneira pela qual os jogadores se envolvem com o game. Uma das principais é o sua
jogatina on-line. Os jogadores podem combater outras pessoas, e essas pessoas podem
estar em qualquer lugar do mundo. Saber que o inimigo não é orquestrado por
inteligência artificial estabelece exigências especiais no desempenho do jogo. Na
prática, é muito mais difícil prever os movimentos do adversário, que está sujeito tanto a
lances geniais como a tomar decisões estúpidas. PGII proporciona ao gamer a
possibilidade de jogatina por mail, para os que não possuem conexão rápida. Um
dispositivo que lembra muito as partidas de xadrez a distância.
Outra característica muito importante é a possibilidade oferecida pelo jogo
de se fazer as próprias campanhas, bem como acrescentar unidades, armas e outros
elementos de características customizáveis. Os jogadores criam cenários de batalha e
distribuem pela rede para outros jogarem. Algumas dessas fases são tão boas que a
própria SSI as disponibiliza para download no site. Nos fóruns de PGII, os jogadores
criam e trocam novas unidades de combate e novos equipamentos, totalizando milhares
e milhares de opções no desenvolvimento de exércitos e de táticas militares, refinando o
nível de envolvimento do jogador de formas dificilmente imagináveis para aqueles que
não sabem como o game opera.
Medal of Honor
Medal of Honor é uma das franquias de guerra de maior sucesso na história
dos games5. Foi lançado pela Electronic Arts em 1999 e concebido por Steven Spielberg
durante as filmagens de O Resgate do Soldado Rian. Entre expansões e novos releases,
conta com mais de nove jogos, todos ambientados em diferentes teatros de guerra na
Europa, Ásia e África.
3. Aliados desembarcando em Omaha Beach
Gênero narrativo
Do ponto de vista do gênero narrativo, MOH introduz uma série de
elementos que estabelecem novos padrões para os jogos de guerra. O primeiro deles diz
respeito à apropriação da linguagem cinematográfica.
Embora as cut scenes de abertura e as apresentações de fases que introduzem
o jogador a novos teatros de guerra possam ser hoje considerados grosseiros, a música, a
edição, os enquadramentos cinematográficos e o minucioso trabalho histórico
impressionam os gamers, que se vêem imersos em meio a uma espécie de grande filme
de guerra. As cut scenes6 colocam o jogador no clima apropriado para o início do jogo,
por um lado contextualizando a situação dentro do esforço de guerra e por outro
colocando-o, antes do início do jogo, dentro do clima opressivo das batalhas. Muitas
dessas cut scenes, a parte sua baixa qualidade de polígonos e de texturização, podem ser
inseridas dentro de filmes como O Resgate do Soldado Rian, Agonia e Glória ou
Círculo de Fogo sem que haja uma quebra de linguagem. Referências diretas ao filme
5 As vendas da franquia alcançaram 27 milhões de unidades, fazendo desse jogo o maior best-seller dos jogos de guerra jamais feitos. Dados retirados do site oficial da EA Enterteinment (http://www.ea.com/official/moh/airborne/us/index.jsp), em abril de 2006.6 Em relação às cut scenes, quando MoH foi lançado, já existia uma tradição no uso destas no sentido de imergir o jogador no universo do jogo. A Blizzard,, com a franquia de Warcraft (1994), já tinha estabelecido um padrão de linguagem cuja principal referência era cinematográfica.
ou a história são usadas: os soldados passam mal dentro do veículo de desembarque, no
dia D; o paraquedista morto pendurado em uma árvore em Saint-Mére Eglise, etc.
As fases normalmente se alternam em batalhas históricas (o desembarque em
Omaha Beach; a tomada de Carentam; a invasão da chancelaria; a batalha do Bulge, etc)
e variadas missões “secretas” que, a despeito de não respeitarem acontecimentos
históricos específicos, são claramente inspirados por eles: resgatar um piloto abatido e
levá-lo até a resistência; explodir pontes ou colocar canhões fora de ação; conseguir os
planos de uma nova metralhadora alemã; seqüestrar o novo tanque alemão, o Tiger.
Muitos desses acontecimentos fazem parte da literatura de guerra e dos arquivos da
história oral da Segunda Guerra7.
A fidelidade aos detalhes atravessa o jogo e reforça o padrão já iniciado por
alguns games dos anos 80, especialmente aqueles produzidos pela SSI, como Panzer
Still, General Panzer, Kampfgruppe etc. A quantidade de referências concede ao game
uma certa aura histórica que se torna o padrão dos jogos de guerra atuais (independente
da ambientação se passar na Segunda Guerra). Os uniformes disponíveis (no modo on-
line, estão disponíveis dezenas de uniformes aliados e alemães correspondentes à
diferentes divisões, brigadas, teatros); a quantidade de armas e a reprodução, in-game,
de suas características: mira, repetição, dano e os sons que fazem, etc.
Essa alusão à história é tão forte que diversas vezes vira motivo de enganos.
Jogadores procurando mapas de Berlim ou Stalingrado para comparar com os mapas de
fase. Recordo de alguns amigos que ficaram com medo de jogar com um terceiro
porque este teria conhecido, na Normandia, os lugares onde se passam as fases, o que o
daria óbvia vantagem tática. Nesse caso, o grupo assumiu que o jogo é tão fiel que a
topologia da fase seria idêntica á do local original, o que, evidentemente, não ocorre.
O engano é desculpável. Algumas fases ambientadas na Normandia, como
Omaha Beach (MOH Allied Assault) apresentam alto grau de fidelidade topográfica.
Em lugares maiores, no entanto, como Berlim (cujo mapa fiel teria de ser enorme), os
realizadores apresentam, diante da impossibilidade técnica de uma Berlim totalmente
digital, elementos importantes de seu planejamento urbano e de sua arquitetura: a
Chancelaria, a estação de trens, etc. Esses ícones espalhados pelas fases reforçam o laço
histórico do jogo de uma maneira diversa de jogos como General Panzer. Não se trata
mais de esquematizações de terreno, mas de simulações. E, espalhadas durante o jogo,
7 Muitas das referências são facilmente encontradas em alguns dos mais famosos autores da Segunda Guerra, como Cornelius Ryan e Stephen Ambrose.
as referências se multiplicam. Um cenário que sai de uma foto famosa, detalhes de
cartazes em um muro, etc.
No que diz respeito ao papel do jogador também existem novidades. O
gamer assume o papel de Jimmy Patterson, um soldado aliado que precisa cumprir
diversas missões no teatro europeu. Durante o jogo, há vários elementos que reforçam a
identidade desse soldado. As telas de loading mostram documentos assinados por
superiores e endereçados nominalmente a ele; aparecem fotos e objetos pessoais, bem
como os objetivos da fase são escritos na forma de um diário de campanha pessoal;
durante o jogo, npcs interagem com ele e fazem comentários engraçados ou
encorajadores e dão dicas do que fazer a seguir. Esse tipo de estratégia estimula a
valorização de uma personalidade com quem o jogador pode se identificar. É uma
tendência reforçada, desenvolvida e diversificada pelos jogos de guerra posteriores.
Interface
A característica evidente de Medal of Honor em relação à interface é o ponto
de vista em primeira pessoa. É verdade que os first person shooter estiveram presentes
em toda a década de 90, desde o aparecimento de Castle Wolfstein (1992) e
principalmente Doom (1993), que é o jogo que vai começar a estabelecer os first person
como padrão de interface. Mas até 1999, quando MoH foi lançado, não houve nenhum
jogo de guerra expressivo que assumisse esse ponto de vista. Durante os 90, muitos
jogos em primeira foram lançados, cultuados e trocados por outros8, mas foi só com
Medal que o gênero de guerra assumiu de vez o conceito.
Assumir o ponto de vista do personagem implicou mudanças radicais nos
jogos de guerra. Em primeiro lugar, não se fala mais de um jogador externo ao jogo,
controlando de fora as tropas e as escaramuças. Diferente de General Panzer, onde o
jogador controla as tropas como um general, em Medal o gamer imerge em um cenário
de padrão realístico dentro de uma batalha cuja estratégia lhe escapa completamente.
Seus objetivos são táticos: esconder-se, matar os inimigos, roubar os planos, sabotar os
navios, etc. Diferente do general todo-poderoso de General Panzer, Jimmy Patterson
tem preocupações mais imediatas: manter-se vivo.
Conseqüência direta disso, Medal assume um caráter menos reflexivo
(necessário ao se lidar com as complexas batalhas de GP) e mais ativo. O jogo assume-
se como um jogo de ação. O tiroteio é constante e o gamer tem que desenvolver suas
8 Alguns deles foram Heretic, Duke Nukem, Hexxen, Quake, Half-Life (cuja engine se tornou a base de muitos fps), etc.
habilidades espaciais e seus reflexos. Como todos os fps, a destreza no joystick ou no
teclado, bem como raciocínio rápido, assumem fundamental importância na
performance do jogador. A performance, aliás, passa a ser o padrão para o bom
jogador. Atirado dentro de um pequeno mundo frenético - onde o inimigo é mais
numeroso e está melhor posicionado -, o bom jogador movimenta-se como um
bailarino, e estes movimentos serão sua ‘marca’, assumindo um valor estético. Se em
Tank, a descrição do jogo se dava em termos de venci ou perdi, em Medal com muita
freqüência o jogador esquece se tratar de um jogo e o descreve em termos de batalha.
“Fui silenciosamente e peguei ele por trás”, “matei o cara no pulo”, “duas granadas
liquidaram o problema”. É um relacionamento particular entre a simulação que foi
performatizada com o ato propriamente dito. É o que Steuer chama realidade virtual.
“Video game players describe the experience of moving an animated car on the screen as “driving”” (Steuer, 1993).
É o que está por trás da idéia de performance nos atos dos jogos eletrônicos.
Não se quer dizer que antes dos fps este elemento não estivesse presente, mas é possível
que a conjugação entre a interface de primeira pessoa e a possibilidade técnica (o fator
tecnológico) de se jogar em rede, tenha ajudado a fortalecer um movimento que em suas
expressões mais radicais, através dos clãs e das Lan Houses, desembocou no
aparecimento dos cyberatletas.
O estatuto tecnológico
Um bocado de coisas se poderia dizer da influência tecnológica dentro da
narrativa de Medal of Honor. A primeira delas é relativa às características dos cenários.
Em primeiro lugar, são grandes. Muitas ruas, edificações possíveis de entrar,
becos onde se esconder; gigantescas (para os padrões de então) paisagens. Em segundo,
são variadas, cidades, florestas, campos, portos, complexos militares, etc. Todo esse
tamanho, possibilitado pelo aumento da capacidade de processamento e de
armazenamento, leva os game-designers a criarem formas de tutoriar e cercear
constantemente o avanço do jogador, para evitar que ele se perca e fique sem saber o
que fazer ou que ele simplesmente avance para áreas que pertenceriam a fases mais
avançadas do jogo. Qualquer olhar um pouco mais atento percebe que a aparente
liberdade de movimentos do jogador logo desaparece em uma rua disfarçadamente
bloqueada, em um rochedo que impede que se flanqueie o inimigo, etc. Ainda assim, a
impressão de liberdade persiste, seja pela forma sutil como os limites de cenários são
colocados, seja pela maneira como a ação é sabiamente conduzida - de forma que o
jogador não tenha oportunidade de percebê-los -, seja, em última instância, pelo
tamanho dos cenários. As expansões posteriores de MoH refinam essas estratégias. A
idéia de um cenário totalmente aberto, realização técnica formidável e àquele tempo
proibitiva, encontra anos depois seu paradigma em GTA III9 e inaugura um tipo de game
completamente diferente do que conhecia até então.
Outro fator essencial em MoH em relação a outros jogos de guerra é o
abandono dos vetores 2d (Panzer General) pela adoção de vetores 3d, que se torna,
nesses anos, o paradigma de produção de ambientes e imagens nos games. A criação de
engines 3D sobre as quais eram desenvolvidos os jogos possibilitam uma otimização
dos esforços das desenvolvedoras que contam com as facilidades desses sistemas
montadores de jogos. Movimentos de câmera, iluminação, texturização e efeitos
especiais não precisam mais serem feitos do zero, uma vez que as engines fornecem
esses elementos, o que otimiza enormemente o processo de produção.
Em outro sentido, mas relacionado a isso, o aumento da qualidade de
resolução das imagens geradas pelos jogos em tempo real parece não ter sido ainda
discutida em profundidade. É normal que se pense a imagem (seja dos games, seja de
outras mídias) inserida apenas na problemática do gênero narrativo, enquanto estratégia
narrativa. Nos games, no entanto, talvez essa única dimensão não dê conta do papel que
a imagem assume. A imagem dos games, juntamente à dimensão de gênero narrativo,
está indissociavelmente ligada à dimensão tecnológica. A busca de uma representação
mimética do mundo (o mundo como se apresenta aos nossos olhos) como paradigma
estético é sempre uma luta tecnológica: conseguir calcular em tempo real o maior
número de vetores possíveis (incidência de luz, sistemas de partículas como pó ou água,
suavização de sombras, etc). Seja, primeiro, porque se buscam imagens tão reais que
poderiam ser confundidas com filmagens. Seja, em segundo, porque são geradas a partir
de algoritmos específicos (renderers) que vão conformá-la a partir da perícia técnica
com que foram desenvolvidos pelos engenheiros e matemáticos envolvidos em sua
criação. Finalmente, a execução em tempo real desses algorítmos depende sempre, em
última instância, da capacidade de processamento dos circuitos eletrônicos. Quando
comparamos as imagens geradas por MoH com MoH Allied Assault (uma expansão que
9 Grand Theft Auto III, lançado em 2001, pela Rockstar North.
saiu dois anos depois do primeiro) muitos dirão: “trata-se do mesmo jogo, apenas os
gráficos estão melhores”. O “apenas” tende a mascarar ou subsumir o fato de que
alterações nos gráficos, via de regra, vão influenciar a narrativa do jogo e a maneira
como vamos encará-lo. É importante, nesse sentido, lembrar o verdadeiro fascínio que
as imagens realistas exercem sobre os gamers10.
O realismo da modelagem e movimentação dos personagens em MoH
causou sensação em sua época e atingiu patamares de uma escada que Doom tinha
inaugurado alguns anos antes e que todos os futuros jogos teriam que, no mínimo,
igualar.
Considerações finais
Os jogos de guerra nascem com os games. Space Invaders, Tank, Lunan
Lander, Moon Patrol, Atlantis, River Raid, Megamania e uma infinidade de outros
marcaram as primeiras gerações de jogos para vídeo-games. Através do
desenvolvimento dessa mídia, é possível ver como algumas das características que hoje
determinam o gênero de guerra foram construídas no decorrer do tempo. Por outro lado,
é interessante notar como isso se passa graças à confluência de três aspectos
inseparáveis na narrativa dos games: gênero narrativo, interface e a tecnologia utilizada.
Vemos nas primeiras gerações a importância do aspecto de interface atuando
na jogabilidade. Dada a precariedade dos recursos técnicos disponíveis, a representação
das figuras e dos ambientes não tinha muita importância. Os esforços eram
concentrados quase exclusivamente no sistema ludológico: não importa se o
protagonista (representado por um pontinho) é um tanque ou uma lesma cósmica.
Importa quão atraente o sistema se oferece na proposição de regras e dos limites de
jogo.
Nas gerações seguintes, entretanto, a dimensão genérica foi crescendo em
importância, uma vez que já era possível colocar mais informações disponíveis nas
mídias de armazenamento (cartuchos, disquetes, cd-roms, etc). O que antes era um
pontinho agora parece realmente um tanque. E mais: não um tanque qualquer, mas um
10 Apresento uma pequena ilustração desse fato. Participo de um grupo de jogadores que costumava se reunir para jogar MoH pelo menos uma vez por semana. Há dois anos, no entanto, adotamos Call of Duty como jogo preferido. Há pouco tempo atrás, combinamos jogar em uma Lan House que habitualmente não freqüentamos. Chegando lá, descobrimos que apenas o MoH estava disponível. Não tendo opções, jogamos. Medal of Honor, jogo que antes era nossa referência de diversão em Lan House, provou-se intragável, uma vez que já havíamos experimentado o poder da engine de Call of Duty, e que se traduzia, entre outras coisas uma qualidade gráfica muito superior.
Sherman. O que antes era uma mesa verde se transforma em uma vista isométrica de um
teatro de guerra cheio de detalhes topológicos que influem no desenvolvimento do jogo.
Cada objeto manipulável ganha diversas características a partir das quais desenvolve
habilidades únicas. Decorre disso uma busca (que permanece até hoje uma das
principais características do gênero) pela veracidade das referências: generais,
compainhas e divisões históricas; batalhas resgatadas dos arquivos de departamentos
militares; personagens fictícios que atuam em acontecimentos famosos e interagem com
personagens históricos, muitas vezes atuando nas “brechas” não contadas pela História,
ou mesmo (como é o caso de Panzer General II) oferecendo situações do tipo “que
aconteceria se...”: “se os nazistas atacassem a América”, “se a RAF perdesse Batalha da
Inglaterra”, “se Rommel não tivesse vencido na África”, etc.
Com o lançamento das grandes franquias da Segunda Guerra a partir de
1999, vemos o constante reforço no tocante ao papel das referências históricas. No
entanto, essas referências vão se materializar de outras formas dentro dos jogos: o
acréscimo de realismo permite a visualização dos cenários, equipamentos e uniformes
como nunca permitido antes pela tecnologia. Reconhecem-se lugares específicos dentro
dos cenários de guerra (a chancelaria, os ninhos de 64mm falsos em Point du Hoc,
Pegasus Bridge, etc). Os sons dos armamentos são gravados a partir de disparos e
explosões reais, a ponto de se poder identificar qual a arma ou calibre um companheiro
ou inimigo está disparando. Por outro lado, ofertados a partir de um ponto de vista em
primeira pessoa, alguns jogos oferecem uma visão totalmente caótica das batalhas, com
soldados entrando em pânico, uma profusão de amigos e inimigos correndo para abrigos
e balas voando para todos os lados. Antes de descobrir para que lado tem que ir, o
gamer deve tentar se proteger. Qualquer segundo de hesitação pode (e é, na maioria das
vezes) ser fatal. A caracterização dos cenários são tão realistas que fazem com que
jogadores prefiram uma fase ou outra por causa da arquitetura, da beleza da flora ou de
outros aspectos puramente estéticos que compõem o cenário. Toda essa beleza, mais a
fidelidade da modelagem, a movimentação dos soldados e a simulação de física que
jogos como MoH ou Call of Duty apresentam, permitem cut-scenes ou entradas de fase
com longas animações mostrando conversas sobre namoradas, filhos e aventuras
diversas entre paraquedistas que aguardam a ordem de salto. Nas últimas edições das
duas franquias, você já reconhece seus companheiros de compainha, que tem nomes e
vozes próprias, bem como hábitos peculiares nas batalhas. Essas estratégias parecem
responder a uma busca crescente nos últimos anos, de dispositivos (narrativos, de
interface e tecnológicos) que parecem ter um único objetivo: imergir o gamer dentro do
universo proposto.
A dinâmica desses fsp resgatam, de certa forma, a necessidade de perceber
que papel ocupa a performance e como ela se configura neles a partir de diferentes
interfaces. Em jogos como Panzer General II o jogo é mais cerebral, estando a vitória
do lado do jogador mais criterioso. Nos jogos da primeira geração, a performance
assume um caráter mais físico: é a habilidade motora e a rapidez de raciocínio que
permite levar à vitória. Característica que parece ser resgatada nos jogos atuais, onde de
novo é a habilidade motora e a rapidez do raciocínio do jogador que lhe garante a
vitória. Diferente dos jogos da primeira geração, no entanto, nestes últimos o jogador
não pode ignorar a narrativa onde está inserido, que vai fornecer vários dos dispositivos
que o farão avançar no plot. Imagino se a categorização de jogos proposta por Caillois
em 1958 não daria condições para se perceberem as diferenças estratégicas nos tipos de
performance que cada jogo exige.
Uma última consideração é a evidente aproximação entre games e cinema.
Essa aproximação se dá não só pela narrativa – na configuração de diversas estratégias –
mas mesmo entre os profissionais que produzem, dirigem e executam esses produtos,
que transitam entre os estúdios e as software-houses. A cut-scene de abertura de MoH
Pacific Assault tem quase dez minutos e sua edição, enquadramentos, movimentos de
câmeras, vozes e principalmente roteiro parecem ter escapulido de algum estúdio
cinematográfico. Em outro sentido, nas Lan-Houses, é comum encontrar jogadores
assistindo juntos filmes como O Resgate do Soldado Rian, A Queda, Agonia e Glória,
Band of Brothers entre outros. Paralelamente, é comum a adoção de nicknames
referentes à personagens desses filmes.
Bibliografia
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