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A REFORMA CONSTITUCIONAL PARA A ADEQUAÇÃO AO MODELO DE PRODUÇÃO - O ESTADO LIBERAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO THE CONSTITUTIONAL REFORMATION FOR THE ADEQUACY TO THE PRODUCTION MODEL - THE LIBERAL AND DEMOCRATIC STATE OF RIGHT Adreana Dulcina Platt RESUMO Este estudo pretende analisar criticamente as relações existentes entre a produção econômica e a organização politico-jurídica no Brasil, a partir da década de noventa. Através de uma pesquisa bibliográfica e documental nos propusemos a fundamentar as principais alterações encontradas na Constituição Federal de 1988 – exarada pela legitimidade que oferece a nova ordem interna que se institui -, juntamente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 – que corresponde ao centro nevrálgico de disseminação aos novos códigos de produtividade e ordem social que se opera a todos os indivíduos e em diferentes faixas etárias. Justificam-se tais alterações enquanto decorrentes ao modelo de reestruturação da produção que se desenvolve no país na década investigada. Os dados aqui analisados tiveram como referência os estudos de cientistas sociais, pesquisadores das áreas da Educação e da Economia, doutrinadores e constitucionalistas que se debruçam na investigação criteriosa ao eixo que descortina o liame na objetividade das categorias aqui definidas. O devido trato aos elementos destacados neste estudo se propõe crítico, uma vez que questiona a condição humana, a partir de uma produção de cunho capitalista enquanto pressuposto ao nexo entre os objetos aqui recortados. A pesquisa considera, a partir das análises produzidas, que há uma aguda relação entre o modelo de produção e as alterações que visam o restabelecimento da economia interna e externa do país por meio dos institutos político- jurídicos do Estado, que respaldam tanto a nova ordem que surge, quanto justificam a formação continuada de quadros sociais adequados ao novo consumo e sua reprodução. PALAVRAS-CHAVES: REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA - CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL - DIREITOS SOCIAIS ABSTRACT This study it intends to critically analyze the existing relations between the economic production and the politician-legal organization in Brazil, from the decade of ninety. Through one it searches bibliographical and documentary we considered in them to base the main found alterations on the Federal Constitution of 1988 - engraved for the legitimacy that offers the new internal order that if it institutes -, together with the Law of Lines of direction and Bases of the Education of 1996 - that it corresponds to the center of dissemination to the new codes of productivity and social order that if it 791

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A REFORMA CONSTITUCIONAL PARA A ADEQUAÇÃO AO MODELO DE PRODUÇÃO - O ESTADO LIBERAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO

THE CONSTITUTIONAL REFORMATION FOR THE ADEQUACY TO THE PRODUCTION MODEL - THE LIBERAL AND DEMOCRATIC STATE OF

RIGHT

Adreana Dulcina Platt

RESUMO

Este estudo pretende analisar criticamente as relações existentes entre a produção econômica e a organização politico-jurídica no Brasil, a partir da década de noventa. Através de uma pesquisa bibliográfica e documental nos propusemos a fundamentar as principais alterações encontradas na Constituição Federal de 1988 – exarada pela legitimidade que oferece a nova ordem interna que se institui -, juntamente com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 – que corresponde ao centro nevrálgico de disseminação aos novos códigos de produtividade e ordem social que se opera a todos os indivíduos e em diferentes faixas etárias. Justificam-se tais alterações enquanto decorrentes ao modelo de reestruturação da produção que se desenvolve no país na década investigada. Os dados aqui analisados tiveram como referência os estudos de cientistas sociais, pesquisadores das áreas da Educação e da Economia, doutrinadores e constitucionalistas que se debruçam na investigação criteriosa ao eixo que descortina o liame na objetividade das categorias aqui definidas. O devido trato aos elementos destacados neste estudo se propõe crítico, uma vez que questiona a condição humana, a partir de uma produção de cunho capitalista enquanto pressuposto ao nexo entre os objetos aqui recortados. A pesquisa considera, a partir das análises produzidas, que há uma aguda relação entre o modelo de produção e as alterações que visam o restabelecimento da economia interna e externa do país por meio dos institutos político-jurídicos do Estado, que respaldam tanto a nova ordem que surge, quanto justificam a formação continuada de quadros sociais adequados ao novo consumo e sua reprodução.

PALAVRAS-CHAVES: REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA - CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL - DIREITOS SOCIAIS

ABSTRACT

This study it intends to critically analyze the existing relations between the economic production and the politician-legal organization in Brazil, from the decade of ninety. Through one it searches bibliographical and documentary we considered in them to base the main found alterations on the Federal Constitution of 1988 - engraved for the legitimacy that offers the new internal order that if it institutes -, together with the Law of Lines of direction and Bases of the Education of 1996 - that it corresponds to the center of dissemination to the new codes of productivity and social order that if it

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operates to all the individuals and in different age bands. Such decurrently alterations while to the model of reorganization of the production are justified that if develops in the country in the investigated decade. The data analyzed here had as reference the studies of social, searching scientists of the areas of the Education and the Economy, doctrines and constitutionalists who if lean over in the criterions inquiry to the axle that discloses in the objective of the categories defined here. The had treatment to the elements detached in this study if considers critic, a time that questions the condition human being, from a production of capitalist matrix while estimated to the nexus enters cut objects here. The research considers, from the produced analyses, that an acute relation has enters the production model and the alterations that they aim at reestablishment of economy internal and external of country by means of Justinian codes politician-legal of State, that in such a way endorses the new order that appears, how much justifies the continued formation of social pictures adjusted to the new consumption and its reproduction.

KEYWORDS: PRODUCTIVE REORGANIZATION - FEDERATIVE CONSTITUTION OF BRAZIL - SOCIAL RIGHTS

TÍTULO II Dos Direitos e Garantias Fundamentais

CAPÍTULO I DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (grifos nossos).

INTRODUÇÃO

Nossa intenção no presente estudo, será a reflexão junto às adequações constitucionais que ocorreram desde o período compreendido entre final da década de oitenta e início da década de noventa. Esta abordagem tem por finalidade verificar as mudanças que na Carta Magna brasileira precisaram ser feitas, na perspectiva de

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realinhar o país ao novo panorama político-econômico ventilado pelas diretrizes da Aliança da Nova Direita, e que são postuladas em acordos já sustentados pelos grandes impérios financeiros (Estados Unidos, Canadá, Alemanha, entre outros, cf. ANDERSON, 2000).

a. O que representa a Constituição para um país?

Dentre os conceitos postulados por importantes estudiosos do Direito Constitucional[1] (denominados "constitucionalistas", pelo zelo dedicado em resguardar aquilo que versa a Constituição, seu sentido formal, mas também em sua objetividade material), queremos destacar aquele conceito de "Constituição" que melhor coaduna com o propósito de nossos estudos, a saber, que detenha em seu cerne o entroncamento histórico a partir do apanágio da revolução dos povos contra a tirania dos Estados Absolutistas, assim como a conquista das garantias individuais e coletivas dos sujeitos aos mais amplos aspectos de condição de existência humana e sua reprodução. Deste modo, nos apoiamos nas assertivas de DALLARI (2003, p. 198) de que a construção do texto constitucional deve versar por três grandes elementos: "a afirmação da supremacia do indivíduo, a necessidade da limitação do poder dos governantes e a racionalização do poder".

Em outros termos: a afirmação da supremacia do indivíduo significaria o direito a autodeterminação que os sujeitos exercitariam, diante da coletividade humana, ao afirmarem os aspectos que os organizam por sobre as questões que lhes são colocadas e nas respostas que demandam à sua existência (seriam os direitos fundamentais que se consolidam por serem essenciais à existência humana).

A necessidade da limitação do poder dos governantes seria o aspecto redutor ao ius puniendi enquanto atributo particular do Estado na vigília à ordem social estabelecida. Finalmente, a Constituição deve preceituar toda uma racionalidade, que oriente o organismo interno da gestão do Estado se comporte com tal lógica, que determine os elementos de uso e distribuição do volume arrecadado (pelos tributos; principalmente em bens, serviços e outros) a todo sujeito vivente no país, assim como na composição lógica desta estrutura, com vistas, também, no acesso aos elementos intrínsecos a uma vida cidadã, à justiça, na preconização daquilo que será o ordenamento legítimo à toda coletividade, compondo-se mais da racionalidade do que dos usos e costumes locais (os quais poderiam ferir o princípio de amplitude que uma Constituição possui), entre outros.

DALLARI (2003, p. 200), citando Loewenstein, também elenca os quesitos que um texto constitucional deve minimamente conter em seu conteúdo material e formal, resguardando os elementos acima descritos enquanto garantias fundamentais:

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a) A diferenciação das diversas tarefas estatais e sua atribuição a diferentes órgãos ou detentores do poder, para evitar a concentração do poder nas mãos de um só indivíduo;

b) Um mecanismo (planejado) que estabeleça a cooperação dos diversos detentores do poder, significando, ao mesmo tempo, uma limitação e uma distribuição do exercício do poder;

c) Um mecanismo (planejado), para evitar bloqueios respectivos entre os diferentes detentores de parcelas autônomas do poder, a fim de evitar que qualquer deles, numa hipótese de conflito, resolva o embaraço sobrepondo-se aos demais;

d) Um mecanismo (planejado), para adaptação pacífica da ordem fundamental às mutáveis condições sociais e políticas, ou seja, um método racional de reforma para evitar recurso à ilegalidade, à força e a revolução;

e) A Constituição deve conter o reconhecimento expresso de certas esferas de autodeterminação individual, isto é, dos direitos individuais e das liberdades fundamentais, prevendo sua proteção contra a interferência de um ou de todos os detentores do poder.

Finalmente, o mais importante a assinalar dentre os elementos fundamentais de uma constituição representativa à nação que a desenvolve, é a característica de ser vinculada à "realidade histórico-concreta de seu tempo" sendo uma "entidade viva, que interage com a situação histórica, com o desenvolvimento da cidade, e só assim é que cumpre seu papel regulador" (CUNHA JÚNIOR, 2004, p. 33).

b. E o que representa a Constituição para o Brasil?

DALLARI (1985, p. 113), em texto produzido em plena efervescência da abertura democrática (1985) - período das "Diretas Já" e na pulsação da queda dos Atos Institucionais que vigoravam no país desde idos de 1969 -, pondera quanto à eficácia da Carta Magna de uma nação. Para o autor este será o instituto legítimo e adequado à realidade social requerida, com vistas a assegurar "a permanente possibilidade de mudança social e a revisão periódica (de seus preceitos), bem como a reinterpretação das normas para que elas sejam aplicadas de acordo com os valores vigentes", consolidando assim, as conquistas sociais de modo que "se tornem irreversíveis" a todo o povo, ou justificando sua alteração na garantia da ampliação aos direitos humanos e à dignidade da pessoa.

Segundo MARINI (1985, p. 19 a 21) as modificações que se fizeram necessárias à Constituição brasileira a partir da segunda metade da década de oitenta, não se devem apenas aos auspícios da queda da ditadura no país, mas, ainda, enquanto reformulação ao necessário desenvolvimento social e institucional que se planifica internacionalmente, pois "qualquer processo de mudança e renovação tem como condição sine qua non a supressão dos pontos de amarre dessa ordem opressiva".

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As alterações necessárias, as quais o autor se refere, destina-se àquelas que coadunam com o desenvolvimento político-econômico ventilado principalmente pelas "frações burguesas mais dinâmicas e por isso com maior capacidade de pressão sobre o aparelho estatal" que, prostituído do capital multinacional desde o decênio anterior ao período do "Milagre Econômico", não mediu esforços no que concerne ao espaço que representa a Carta Constitucional para a consolidação do projeto neoliberal e da sustentação ao modelo de produção capitalista (COUTINHO, 2000, p. 96-98).

A composição do texto constituinte se faz por meio do embate de classes que se organizam a partir de interesses antagônicos. São forças políticas e econômicas que, conforme MARINI (idem, p. 30), com voraz apetite, por um lado perseguem o ideal capitalista (elite hegemônica), assim como por outro, buscam ideais sociais, populares, para as questões nacionais e da produção.

No período da "abertura política", o capital nacional ainda se ressentia diante das grandes corporações internacionais, uma vez que o Estado as protegia e não as ameaçava, porquanto não oportunizava ao capital interno, por meio de políticas protecionistas, pelo contrário, aliançava-se cada vez mais principalmente com o novo formato de colonialismo moderno: submeter-se a pesados empréstimos oriundos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e demais organismos multilaterais. Hoje se vê que a internacionalização dos mercados, que desponta de forma maciça, tem promovido internamente às nações, exatamente a fuga de capitais que, segundo TAVARES (1997) tem como principal característica a volatilidade, permitindo que "ao se teclar o 'enter' dos computadores, milhares de dólares se esvaiam dos cofres nacionais, promovendo rombos desproporcionais na economia interna".

É necessário explicitar estes dados da política-econômica, uma vez que os interesses conflitantes na construção da nova Constituição brasileira se deram num período em que não estava em jogo unicamente o elemento da repressão política, mas também do alijamento econômico oriundo da "nababesca" festa com os recursos públicos, oportunizado pela permissividade dos governantes nacionais em silenciar as oposições e as devidas prestações de conta de seus atos e que ainda possui seu rescaldo na atualidade (FARENZENA, 2006).

Conforme FARENZENA (idem, p 32 e 33):

(...) na primeira metade da década de 80 fica manifesta uma potencial instabilidade institucional posta pelos limites da estratégia de repressão e da exclusão política, incapaz de absorver demandas e pressões e resolvê-las ou canalizá-las pela tradicional combinação clientelismos-anel burocráticos do Estado numa sociedade relativamente modernizada. (..). Com o esgotamento do modelo coercitivo, inicia-se a reengenharia institucional da transição negociada do regime, cunhada de 'transição democrática', projetada ainda no curso dos últimos governos militares, que conduziram a 'abertura lenta, gradual e segura'. (..). (Cf. Moisés (1989)) as negociações para a entrega de poder, pelos dirigentes do 'antigo regime' à 'oposição confiável', envolveram acordos sobre quem ocuparia a chefia do Estado, o uso da instituição do Colégio Eleitoral para escolher o presidente civil, garantias de intocabilidade e manutenção dos direitos dos militares, a manutenção de quadros do 'antigo regime' na coalizão governista e o formato da futura Constituinte. Com isto, estabeleceu-se um pacto de não-competição entre as elites dominantes. (grifos nossos)

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Tão desastroso quanto os acordos que velam as atrocidades de um período nefasto da história brasileira, será o conserto que se propaga ao longo das duas últimas décadas para "compensar" uma memória intranqüila pelos assombros que não se resolveram anteriormente - e no tempo que deveria ser próprio para tal[2].

A cultura de não enfrentamento às questões que urgem no espaço social e institucional será uma marca de nosso processo civilizatório, como asserta HOLANDA (1989), uma vez que o baixo grau de organicidade institucional no espaço público brasileiro, já no período imperial, apresenta três conseqüências:

a. Formação da Personalidade Social: a gestão política apresenta-se como assunto de interesse particular;

b. A escolha dos indivíduos aos cargos públicos faz-se de acordo com a confiança pessoal e não por capacidades próprias;

c. A racionalização da atividade pública: falta da ordenação lógica pessoal, sem o devido rigor da burocracia estatal.

Neste mesmo vetor, FERNANDES (1974) destaca quanto à formação da "res publica" no Brasil:

1. Há uma herança do Modelo Escravocrata e Senhorial; 2. Instituições políticas de dominação patrimonialista; 3. Concepção de liderança que convertia a Educação Sistemática em um símbolo

social de Privilégios e de Poder dos membros e da camada dominante; 4. Ausência de um "espírito público constitutivo"; 5. País de estrutura econômica dependente; 6. Devastação com empobrecimento econômico-demográfico das áreas férteis; 7. Expansão desordenada de centros circunstancialmente ativos de produção.

Com a exposição desta geografia que denuncia o histórico de um original descomprometimento com a organização racional do Estado brasileiro, que ocorre assentado em privilégios e hábitos indeléveis ao caminho de um conceito de desenvolvimento mais ampliado, e que se desse em fruição às diversas forças sociais coexistentes, não causa surpresa as análises de FARENZENA (2006) sobre os pactos oriundos da "transição democrática" e que reverberam na confecção da Nova Carta Constitucional.

A autora pondera que a "troca" do governo militar pelo civil, trouxe, na verdade, mais do que "ventos da democracia" que se espraiam pelo país: notabiliza, também, as contradições existentes nos porões do Estado, principalmente pela desarticulação partidária ("com indiferenciação ideológica") que se observa à época, enquanto causa de um grave "vácuo político" (idem, p. 34).

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SADER (1985, p. 131), a partir de Gramsci, conceitua que neste período ocorre a denominada "crise de representação política" onde as representações conservadoras perdem sua legitimidade enquanto "expressão própria (de) sua classe ou sua fração de classe" e na "incapacidade do regime ditatorial para reproduzir-se". O agudizamento nas relações é gerado uma vez que "o velho morre, mas o novo não pode nascer" (idem, ibdem).

O Brasil tem tradição deste elemento sintomático que eclode a partir das crises que se unificam (questões de ordem política, da troca do modelo de produção, administrativa, defesa e na "cobertura" ao corpo dirigente anterior - "antigo regime"). Segundo CURY (1988) a transição, daquilo que poderíamos denominar de um movimento típico da "modernização conservadora"[3], se instala exatamente num recorte de tempo que se caracteriza pelo fenômeno que acima descrevíamos: o vazio político. Um clássico exemplo disto será a transição que ocorre entre o modelo econômico agro-cafeeiro para o industrial[4].

Quando a conjuntura político-econômica não favoreceu a continuidade do modelo de produção agro-cafeeiro (década de 20/30), ocasionado, principalmente, pelo patrolamento de um massivo investimento industrial que desponta pelas "correntes do Pacífico", ocorre uma dispersão das forças conservadoras. Diante disto, não se levantam quadros políticos significativos para compor diligentemente o espaço político-estatal, de tal sorte que proporciona, oportunamente, um atraso na nova recomposição econômico-produtiva que se quer promover e, se abre "ocasião" a uma ocupação não esperada, que tem como conseqüência, o aparecimento de "forças especuladoras" que interpretam esta transição produtiva - entre a tensão "modernização e conservação" -, em benefício privado.

Significativamente, a Constituição Federal brasileira é um importante elemento emblemático para a caracterização das práticas nas democracias hodiernas com vistas à acomodação dos programas econômicos e projetos de nível internacional. E em nome desta "democracia" legitimam-se os atos de vilipêndio às diferentes nações.

Como colocado na referência (à Constituição Federal de 1988) que abre este terceiro item, é depositado no interior do texto constitucional - assim como ocorre hodiernamente nas Constituições de todos os países que se regulam por preceitos democráticos -, uma especial consideração aos tratados internacionais e acordos sobre direitos humanos que receberão, inclusive, status de Emenda Constitucional.

Este dado declara o movimento irreversível da internacionalização da economia (globalização), e sugere a possibilidade de que outras adequações desta natureza - que ocorrem enquanto resultados de negociações que ultrapassam a competência das nações -, venham a perfilar nossa conjuntura presente e futura.

c. O "duplo movimento" constitucional de forças em oposição: sociais e liberais

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Constituinte, sim, mas em termos, sem rupturas e sem radicalismos. (FAORO, Raymundo 1985, p. 11)

Por impulsos liberalizantes, no princípio, e de democratização política, em seguida, com a interveniência da crise econômica e da política econômica do governo central, a partir da segunda metade dos anos 70, a hierarquia federalista que caracterizou a ordem autoritária foi sendo superada.

(FARENZENA, Nalu, 2006, p. 55).

A grande virada que se procurava alcançar com a elaboração de uma nova Constituição Federal (CF) brasileira será entendida neste texto, como um esforço que se debruçava em dois principais eixos, o social e o econômico.

O primeiro dizia respeito ao necessário rol de garantias que precisavam ser resgatadas pela expressiva quantidade de brasileiros abatidos que compunham uma oposição combativa frente à ditadura instalada no país por mais de 20 anos, o que alargou um conceito amargo de impunidade e desvalor ao produto humano, coletivo e histórico. Sobre esta questão, ponderava DALLARI (1985, p. 113) à época:

O espírito que vigora no Brasil como Constituição é essencialmente autoritário e demasiadamente preso aos ideais do capitalismo. Por isso o conjunto das normas constitucionais procura de um lado, centralizar o poder político e armá-lo de instrumentos de repressão, reduzindo a meras formalidades as práticas que, teoricamente, deveriam ser garantias democráticas.

O segundo eixo se expressa pelo esforço concentrado que se opera orquestradamente pelas classes dominantes e seus formadores de opinião, com vistas à garantia de um projeto de Estado, em perspectiva a uma economia dirigida pela sorte do capital financeiro.

Pelo grau de particularidade e conflitos que as perspectivas sociais e as econômicas possuem, fazem-se pertinente tecer as devidas observações sobre ambos os eixos.

Quanto aos dispositivos que justificam o rol de direitos dos indivíduos expresso na Carta Magna, observa FAORO (1985, p. 10):

A Constituinte com idéia, reivindicação e movimento, visava, no seu esboço inicial, reconquistar a democracia pela instauração da soberania popular.

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É certo que ao ser deflagrada a abertura democrática no país - a qual foi possível pelas inúmeras forças presentes e pulsantes em confronto à descontinuidade do regime ditatorial e opressivo no país -, foi mister que se configurasse um novo mapeamento político-estatal que proporcionasse a devida garantia aos direitos humanos fundamentais e a legitimidade de um Estado democrático. Desta forma, nossas representações constituintes, reunidas em Assembléia Originária, descrevem ao longo do artigo 5º da Constituição Federal (CF), de 1988, todo um rol de garantias fundamentais cujo lastro seria de caráter "pétreo", ou seja, tornou-se um direito, um valor, inegociável.

Para COUTINHO (2000, p. 90), essas garantias foram necessariamente expressas para que a patrola militar recuasse do cenário político imediato, achatando-se numa parede de princípios humanitários que seriam superiores a possibilidade de novas investidas. O autor relata ainda que para a materialidade deste, forma-se uma frente coletiva, em contraposição ao regime militar, desde idos de 60/70, denominada "frente política de oposição" por onde (..)

(..) os principais sindicatos (..) ganharam autonomia efetiva ao romper na prática com o corporativismo estatal legalmente estabelecido, surgiram novos partidos criados diretamente a partir da sociedade civil, (..); os parlamentos se tornaram mais abertos às pressões 'de baixo', ganhando um peso efetivo na condução da vida política nacional, etc.

Porém, entendemos que, uma vez expressas estas garantias que se fazem presentes enquanto direitos constantes no corpo dos artigos iniciais da CF, tanto as individuais quanto as coletivas, a manifestação das elites conservadoras - que historicamente fazem oposição ao levante de modificações que se pronunciem amplamente democráticas -, ainda concentraram seu esforço na promoção de um projeto de Estado, em perspectiva a uma economia dirigida pela sorte do capital financeiro. Este será o segundo eixo ao qual nos referimos anteriormente: a transição da organização do Estado brasileiro em volta à rearticulação política interna e a adequação desta aos novos princípios do mercado neoliberal (SADER, 1985, p. 139-141).

Deste período de "transição democrática", é sabido que sua organização demandará da tradição instalada no Brasil da denominada "democracia delegativa". A "democracia delegativa", segundo WEFFORT (1992) diz respeito a:

(...) uma espécie particular de democracia representativa, na qual há uma preponderância de comportamentos e relações delegativas no interior de um padrão institucional definido pelo sistema representativo. Evidencia uma preeminência geral de, por exemplo, lideranças personalistas, eleições plebiscitárias, votos clientelísticos, etc., sobre relações parlamentares, partidárias, etc.(...) (cujos) melhores exemplos disponíveis são o Brasil e o Peru.

Na composição de um perfil de alcunha "democrática", o que importa é a presença de ícones que personalizam a alcunha de "redentores", num sentido "preguiçoso" de garantir, ou manter, conquistas. O autor quer chamar a atenção, na

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verdade, para a análise de que, engana-se aquele que supõe que a superação de um regime ditatorial signifique uma imediata substituição (ou transposição deste) para o processo democrático. Esta composição fragiliza substancialmente as bases democráticas que se quer instalar, uma vez que há um perfilamento da rotina burocrática que engessa ações que se projetam em direção ao enfrentamento das questões. A distância promovida pelo tipo nocivo de representatividade política que se dispõe a garantir "a partir de si mesmo", os direitos sociais mais caros a expressão dos sujeitos, nega a efetiva participação dos mesmos na construção e reconstrução e, por fim a conquista da plena autonomia.

Conforme SADER (1985, p. 139), uma das mais influentes características que se denuncia na história da organização estatal para que este movimento se dê, ocorre pelo oportunismo das elites de seu tempo, que se instalam insidiosamente no aparelho estatal e, desta forma, "consolidam posições, fortalecendo-se economicamente e tece(ndo) relações mais estreitas com o capital monopólico financeiro internacional" (grifos nossos). Portanto, este será o segundo eixo que compõe a estrutura constitucional, que anteriormente citamos: os princípios econômicos e a adequação aos ditames do modelo de produção vigente.

A Constituição se apresenta, assim, como central elemento para que se empreenda no país "o leme da governabilidade", a partir da lógica do processo de reforma do Estado "(..) e de suas elites técnicas (..) de conceber e pôr em prática estratégias de mudança, ao abrigo das pressões dos interesses estabelecidos, (que) tem sido percebida como a variável decisiva nos processos de mudança econômica (..)" (ALMEIDA; MOYA, 2007, p. 1 - grifos nossos); ou como ALMEIDA (citada por COUTO, 1997, p. 34) analisa de forma mais contundente e sucinta:

(no caso da transição democrática, ocorria) a substituição do autoritarismo por um regime democrático, (no caso da transição econômica), iniciava-se uma mudança que deve desembocar numa nova relação entre Estado e Mercado (grifos do autor).

No campo social, BEDIN (2002, p. 175-179) alude que a empreitada neoliberal, na organização dos preceitos constitucionais, esbarrou com o movimento que veio se readequando ao longo da história, denominado de "liberalismo social".

Este movimento será pontuado pelos ideais socialistas que marcaram a determinação de alguns povos frente às ditaduras e governos despóticos (como a Revolução Russa em 1917, por exemplo), tornando os regimes capitalistas modernos numa pulsão entre os princípios do laissez-faire e a conotação de princípios sociais para o rearranjo de um pacto político que permitisse a "sobrevida ao sistema capitalista e que conduziu a uma era de grande crescimento econômico, a um período de relativa distribuição da riqueza e à adoção de políticas sociais compensatórias e de pleno emprego".

E, finalmente, no campo econômico, COUTO (1997, p.46) lembra que as reformas neoliberais apresentam-se de forma contundente no governo Collor que, aproveitando-se do rescaldo que os perfumes emblemáticos da transição democrática ainda exalavam, aplicou uma dinâmica de "dirigismo" no país por meio do "decretismos das medidas provisórias" impingindo reformas econômicas para dar partida ao programa de "liberalização comercial e aprofundamento substancial às privatizações iniciadas no governo Sarney".

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Para o autor, naquele momento, este seria um importante trunfo para as devidas reformas orientadas ao mercado neoliberal, caso o processo denominado de "Emendão", não tivesse naufragado por um conjunto de motivadores: "a) pouca destreza política do chefe do Executivo; b) a fragmentação congressual; c) o empenho das oposições; d) a inexistência (ainda) de um consenso acerca das reformas; e) o fato de estar prevista para 1993 uma revisão constitucional".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo pontuou questões que nos dão possibilidades de considerar a aguda relação que há entre as adequações do Estado Democrático de Direito e o movimento de reestruturação produtiva, e os elementos condicionantes que o modelo de produção capitalista impõe enquanto objetividades aplicadas ao reequilíbrio das contradições internas do próprio sistema.

Assim, partimos do pressuposto de que a possível análise crítica das categorias aqui apresentadas devem se voltar ao campo das reformulações jurídico-políticas, que "acolchoam" relevantes aspectos do comportamento produtivo.

O reequilíbrio que as contradições do modelo de produção demanda, principalmente no alargamento do fosso entre a riqueza produzida e a renda distribuída, também sugere que no esteio do corpo social sejam diluídas uma perspectiva de propulsão ideológica que cautelosamente ampara o movimento de reestruturação por novos signos de convivência (ou códigos). Tais códigos são plasmados na rotina social por meio dos aparelhos estatais que servem tanto à incorporação ideológica quanto à repressão dos conflitos mais emergentes.

Ao longo das décadas de 80 e 90, os Estados Nacionais apresentaram uma nova recomposição de seus núcleos jurídico-institucionais, com vistas à readequação de seus programas de gestão junto aos ditames de cunho internacional. Desta forma, apresentaram-se projetos de governabilidade que alteraria o cerne da legislação constitucional e infraconstitucional em direção a nova realidade econômica: a gestão neoliberal.

No Brasil, a adequação promovida entre o modelo de produção sugere o necessário realinhamento da Constituição Federal para a legitimidade das reformas exigidas pelos princípios neoliberais. Neste sentido, o Estado brasileiro, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, apresenta um rol de emendas que afina os discursos do capital financeiro internacional, do "corpo especulativo" interno e da efetiva execução à uma ampla agenda política a ser conduzida pelo Estado.

Com o realinhamento do Estado Nacional junto à agenda da economia neoliberal, o passo seguinte será a adequação que os aparelhos de disseminação ideológica devem sofrer em promoção dos princípios a serem seguidos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA Maria Hermínia T. de; MOYA, Maurício. ANPOCS. A Reforma Negociada: o Congresso e a política de privatização. Disponível em . Acesso em: 02. jul. 2008.

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[1] Dentre estes podemos citar José Afonso da Silva, Dalmo Dallari, entre outros.

[2] Referimo-nos aos atuais decretos e leis que concedem pensões e indenizações aos sujeitos que uma vez vítimas de tortura e outras, ocorridas durante o período militar, obtiveram, em um momento bem recente, respostas em suas reivindicações como a Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002 que regulamenta o art. 8º da Constituição Federal/88: "É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos".

[3] Conforme FARENZENA (2006, p. 31) expressão "modernização conservadora" diz respeito "(..) a um conceito utilizado por Barrington Moore para designar o modelo de capitalismo tardio do século XIX, que inclui as experiências alemã e japonesa, onde o avanço e sucesso da economia capitalista foram alcançados pelo desenvolvimento da indústria pesada. Apoiado por um Estado autoritário e um projeto nacionalista". FAORO (1985, p. 8-10) possui uma particular leitura deste mesmo movimento: "Cultivou-se a convicção, em outros tempos, de que o conservadorismo 'limitava-se ao papel inglório de incubar no poder os ovos, que são as reformas, depositadas em seu ninho' pelos liberais. Um grupo planta, outro colhe".

[4] A Revolução de Trinta: abriu perspectivas para a concretização deste modelo (lembrar: esta revolução favoreceu o rompimento do país com o modelo oligárquico, e a renovação política da classe dominante, declínio da hegemonia agro-cafeeira e garantia da hegemonia industrial, lembrar da pressão estrangeira em difundir a crise, no BR há um "vazio no poder" por grandes estratos "atrapalhados" no comando, por problemas de

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legitimidade). Problema: o declínio da atividade agro não significou a passagem da cultura mecânica para o modo de produção capitalista urbano industrial (CURY, 1988).

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