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A promoção do desenvolvimento nacional sustentável Por JML Consultoria 1 1. Introdução Em preliminar, não se deve confundir a finalidade material da licitação, que é a consecução do interesse público (por meio da realização de uma obra, execução de um serviço ou fornecimento de um bem), com as suas finalidades legais, previstas no art. 3º da Lei 8.666/93. 2 Em sua concepção clássica, a licitação tinha como finalidades legais a seleção da proposta mais vantajosa para o interesse público e a realização do princípio da isonomia (nos termos do art. 3º da Lei 8.666/93). Considerando que o Estado é um grande consumidor conforme informações veiculadas no Portal de Compras do Governo Federal, as contratações governamentais em 2012 movimentaram cerca de R$ 72,6 bilhões (www.comprasnet.gov.br) não se pode olvidar que a licitação é um importante instrumento de concretização de políticas públicas, na medida em que fomenta o desenvolvimento de microempresas e empresas de pequeno porte, contribui para a geração de empregos, propicia o surgimento de novos negócios e a formalização daqueles que viviam na clandestinidade, além de privilegiar a aquisição de produtos nacionais e fomentar o mercado interno, dentre outros. 3 Por reconhecer este poder de compra do Estado é que a Lei 12.349/2010 incluiu uma terceira finalidade legal à licitação, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, alteração promovida no art. 3º da Lei 8.666/93, em perfeita consonância à Constituição Federal que, em seu art. 3º, alçou o desenvolvimento nacional a objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, ao lado da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização, assim como da redução das desigualdades sociais e regionais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Dessa feita, da interpretação do art. 3º da Lei 8.666/93 é possível concluir que a licitação possui três finalidades legais: seleção da proposta mais vantajosa; isonomia e promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Para a finalidade deste estudo, cumpre analisar com maior cautela o conceito de proposta mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. 2. Conceito de proposta mais vantajosa A seleção da proposta mais vantajosa é, sem dúvida, um dos objetivos precípuos da licitação, conforme anuncia o próprio art. 3º da Lei 8.666/93, para o qual “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa (...)”. O conceito de proposta mais vantajosa deve ser estabelecido em face de cada caso, com a definição de forma clara, adequada e justificada do objeto pretendido, 1 Texto elaborado pelas consultoras: Ana Carolina Machado; Caroline Rodrigues da Silva; Danielle Regina Wobeto de Araújo; Eduardo Meira Ribas; Julieta Mendes Lopes Vareschini; e Nyura Disconzi da Silva. 2 FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 34. 3 SANTANA, Jair Eduardo; ANDRADE, Fernanda Alves. As alterações da lei geral de licitações pela Lei n°. 12.349, de 2010: novos paradigmas, princípios e desafios. Revista JML de Licitações e Contratos nº. 18, março de 2011, Seção Doutrina, p. 33. RJML 33/18/MAR/2011.

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A promoção do desenvolvimento nacional sustentável

Por JML Consultoria1

1. Introdução

Em preliminar, não se deve confundir a finalidade material da licitação, que é a consecução do interesse público (por meio da realização de uma obra, execução de um serviço ou fornecimento de um bem), com as suas finalidades legais, previstas no art. 3º da Lei 8.666/93.2

Em sua concepção clássica, a licitação tinha como finalidades legais a seleção da proposta mais vantajosa para o interesse público e a realização do princípio da isonomia (nos termos do art. 3º da Lei 8.666/93).

Considerando que o Estado é um grande consumidor – conforme informações veiculadas no Portal de Compras do Governo Federal, as contratações governamentais em 2012 movimentaram cerca de R$ 72,6 bilhões (www.comprasnet.gov.br) – não se pode olvidar que a licitação é um importante instrumento de concretização de políticas públicas, na medida em que fomenta o desenvolvimento de microempresas e empresas de pequeno porte, contribui para a geração de empregos, propicia o surgimento de novos negócios e a formalização daqueles que viviam na clandestinidade, além de privilegiar a aquisição de produtos nacionais e fomentar o mercado interno, dentre outros.3

Por reconhecer este poder de compra do Estado é que a Lei 12.349/2010 incluiu uma terceira finalidade legal à licitação, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, alteração promovida no art. 3º da Lei 8.666/93, em perfeita consonância à Constituição Federal que, em seu art. 3º, alçou o desenvolvimento nacional a objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, ao lado da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização, assim como da redução das desigualdades sociais e regionais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Dessa feita, da interpretação do art. 3º da Lei 8.666/93 é possível concluir que a licitação possui três finalidades legais: seleção da proposta mais vantajosa; isonomia e promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Para a finalidade deste estudo, cumpre analisar com maior cautela o conceito de proposta mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.

2. Conceito de proposta mais vantajosa

A seleção da proposta mais vantajosa é, sem dúvida, um dos objetivos precípuos da licitação, conforme anuncia o próprio art. 3º da Lei 8.666/93, para o qual “a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa (...)”.

O conceito de proposta mais vantajosa deve ser estabelecido em face de cada caso, com a definição de forma clara, adequada e justificada do objeto pretendido,

1Texto elaborado pelas consultoras: Ana Carolina Machado; Caroline Rodrigues da Silva; Danielle Regina Wobeto de Araújo; Eduardo Meira Ribas; Julieta Mendes Lopes Vareschini; e Nyura Disconzi da Silva. 2 FERREIRA, Daniel. A licitação pública no Brasil e sua nova finalidade legal: a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 34. 3 SANTANA, Jair Eduardo; ANDRADE, Fernanda Alves. As alterações da lei geral de licitações pela Lei n°. 12.349, de 2010: novos paradigmas, princípios e desafios. Revista JML de Licitações e Contratos nº. 18, março de 2011, Seção Doutrina, p. 33. RJML 33/18/MAR/2011.

com as especificações e características necessárias ao atendimento da finalidade visada.

Diz-se que nesse momento a Administração possui discricionariedade, já que lhe é facultado definir o objeto que melhor atenda ao interesse pretendido, bem como estipular as condições de sua execução, entre outros, sempre justificadamente, de forma a atender o princípio da motivação, inerente a todo ato praticado por agente administrativo ou por quem lhe faça às vezes.

Por certo que a proposta mais vantajosa não precisa ser, necessariamente, a de menor preço. Isso porque o aspecto econômico não é absoluto para definição da vantajosidade, devendo ser atendidos pelo particular os requisitos mínimos de qualidade definidos pela Administração para aferição da proposta mais vantajosa.

Nas licitações do tipo “melhor técnica” ou “técnica e preço”, a preocupação com os requisitos técnicos da proposta fica mais evidente, afinal, prevê a Lei uma fase específica para análise destes requisitos. A proposta mais vantajosa, nestes casos, é claramente vislumbrada como sendo aquela com melhores quesitos técnicos e de valor, de forma concomitante.

Porém, mesmo na licitação do tipo “menor preço”, no qual o valor é o quesito de salutar importância para a escolha da proposta mais vantajosa à finalidade pública almejada, deve a Administração considerar os requisitos mínimos à aferição da qualidade do objeto.

Com efeito, não atende o interesse público proposta que, em que pese ser mais barata, não reúne os requisitos mínimos de qualidade, rendimento, etc., necessários para suprir a demanda da Administração Pública. Por conta disso é que a doutrina alude, a exemplo de Jair Eduardo Santana, a melhor preço e não menor, deixando claro que o aspecto econômico é apenas uma das facetas a serem consideradas no julgamento:

“Mas como guiar o certame para o menor melhor preço?

Certamente a partir da boa especificação/definição do objeto.

Não se pode olvidar, entretanto, da obrigação legal de ter sempre delimitado o objeto em características e processos (de teste, por exemplo) de fácil identificação, de aferição, por meio de técnicas de domínio comum, enfim, dos inafastáveis critérios objetivos de julgamento.

Ou seja, lembremos sempre que o julgamento das propostas, dirigida pelo menor melhor preço, é tarefa que demanda a qualificação prévia do objeto. Tal qualificação do objeto é chamada de classificação. É dizer somente se permite que sejam admitidas à disputa aquelas ofertas (propostas) cujos elementos se mostrem conforme às exigências (objetivas) do edital.

Noutras palavras, se pode dizer que – na dinâmica do processamento de um pregão – a verificação de conformidade do objeto antecede à disputa. E, sendo assim, a qualidade, a eficiência, os caracteres intrínsecos e extrínsecos do objeto são alvo de avaliação preliminar. O preço (o menor) é postergado para a disputa”.4 (grifo nosso)

Nessa linha é a orientação do Tribunal de Contas da União:

“E o que é a proposta mais vantajosa para a Administração? É aquela que ofereça o bem ou serviço requerido na licitação pelo menor preço, sem

4 SANTANA, Jair Eduardo. Termo de Referência: valor estimado na licitação. 2. Ed. Negócios Públicos, 2010, p. 40.

prejuízo da qualidade do produto ou serviço ofertado. Mesmo que a maior vantagem oferecida à Administração não seja, necessariamente, o menor preço, um preço menor representará, inexoravelmente, uma vantagem maior, quando mantidas as demais condições”5. (grifo nosso)

Também sobre o tema, cumpre colacionar doutrina de Marçal Justen Filho, que sintetiza que a proposta mais vantajosa é aquela que garante uma relação custo x benefício:

“A vantagem caracteriza-se como a adequação e satisfação do interesse coletivo por via da execução do contrato. A maior vantagem possível configura-se pela conjugação de dois aspectos inter-relacionados. Um dos ângulos relaciona-se com a prestação a ser executada por parte da Administração; o outro vincula-se à prestação a cargo do particular. A maior vantagem apresenta-se quando a Administração assumir o dever de realizar a prestação menos onerosa e o particular se obrigar a realizar a melhor e mais completa prestação. Configura-se, portanto, uma relação custo-benefício. A maior vantagem corresponde à situação de menor custo e maior benefício para a Administração”.6

Ademais, é preciso relembrar que a proposta mais vantajosa, além de atender as especificações técnicas do objeto, deve ser exequível, ou seja, capaz de ser executada em face dos encargos e respectiva remuneração, conforme conclui o TCU no julgado abaixo:

“O tipo ‘menor preço’ não implica necessária e obrigatoriamente a escolha da menor oferta apresentada pelos licitantes. Esta há de ser exeqüível e apresentar-se como a mais vantajosa para a Administração. De outra sorte, pode ocorrer prejuízo ao Estado, se não observada pela Administração a adequação da proposta com o preço de mercado, seja em relação aos preços irrisórios, simbólicos ou inexeqüíveis, seja em relação às propostas com valor global superior ao limite estabelecido no art. 44, § 3˚ e 48, II, da Lei 8.666/93. Dessa forma, deve ser declarado vencedor do certame licitatório o menor preço, desde que exeqüível e compatível com o preço de mercado”.7

Sob outro prisma, deve-se reconhecer que a modificação preconizada no art. 3º da Lei 8.666/93, ao incluir mais um objetivo à licitação, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, acabou por alterar o próprio conceito de proposta mais vantajosa.

Conforme reconhece Marçal Justen Filho, o contrato administrativo é um instrumento utilizado pela Administração para satisfazer suas necessidades imediatas, a exemplo da aquisição de bens móveis ou imóveis, a obtenção de serviços, dentre outros. Mas, além disso, o contrato administrativo também deve assegurar à Administração a consecução de fins mediatos, de sorte que a avença é um instrumento da realização de políticas públicas mais amplas.8

Essa alteração é paradigmática, porquanto o conceito de proposta mais vantajosa à Administração Pública ganha novos contornos, não podendo mais ser

5 TCU. Acórdão 1317/2013. Plenário. 6 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed. São Paulo: Dialética. 2012. p. 61. 7 TCU. Acórdão 1.629/2004. Plenário. 8 JUSTEN FILHO, Marçal. Desenvolvimento Nacional Sustentado: contratações administrativas e o regime introduzido pela Lei 12.349/10. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini. Curitiba, nº 50, abril de 2011, disponível em http://www.justen.com.br//informativo.php?&informativo=50&artigo=1077&l=pt, acesso em 15/01/2014.

vislumbrada apenas como aquela que propicia maiores benefícios econômicos ao Estado. Ao revés, a proposta mais vantajosa é aquela que, além de atender as necessidades da Administração, a partir de valores condizentes com o mercado, também seja capaz de propiciar o desenvolvimento nacional sustentável, assegurando a isonomia. Nas precisas lições de Daniel Ferreira, “é que o interesse (público) geral exige mais, muito mais”.9

Aliás, muito antes da alteração promovida pela Lei 12.349/10, Cretella Júnior já reconhecia que “nem sempre o preço é fator preponderante para a aceitação da proposta mais barata, pois, confrontando com outros fatores, pode ser por eles superado, desde que apresentem maiores vantagens para o Estado”.10

3. Desenvolvimento nacional sustentável

Por reconhecer o expressivo poder de compra do Estado, a Lei 12.349/2010 incluiu uma terceira finalidade legal à licitação, qual seja, a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, alteração promovida no art. 3º da Lei 8.666/93, em perfeita consonância à Constituição Federal que, em seu art. 3º alçou o desenvolvimento nacional a objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.

Assim, o Estado assume a função de garantir uma justiça social generalizada, propiciando as condições mínimas para a existência digna dos cidadãos. Infere-se, portanto, que há uma vinculação direta entre a concepção de Estado Democrático de Direito e o dever de concretizar políticas públicas, situação que repercute consideravelmente na esfera do direito administrativo, porquanto a Administração Pública deve pautar seus atos no sentido de viabilizar a consecução de tais direitos. E a licitação, por representar um instrumento por meio do qual o Estado adquire seus produtos e contrata seus serviços, deve ser manejada de forma a concretizar as políticas públicas esculpidas na Constituição Federal, especialmente a partir da alteração legislativa ocorrida em 2010, por intermédio da Lei 12.349.11

Não se pode olvidar que o Estado intervém no domínio econômico não apenas quando realiza atividades estatais ou disponibiliza utilidades aos indivíduos, mas também quando contrata com a iniciativa privada para suprir suas necessidades. O poder de compra do Estado, portanto, delineia a estrutura e o funcionamento da iniciativa privada, contribuindo de forma salutar para o desenvolvimento econômico do País. Não a toa, em tempos de crise na economia, há um aumento considerável dos gastos públicos, com o escopo de reaquecer o mercado. 12

Não obstante, é salutar destacar que o crescimento econômico, por si só, não é capaz de propiciar o desenvolvimento. Isso porque nem sempre o crescimento da economia gera igualitária distribuição de riqueza e melhoria na qualidade de vida da população em geral. Para que o crescimento econômico acarrete desenvolvimento é indispensável que ele venha acompanhado de maior oferta de empregos e redução da desigualdade social, com a consequente erradicação da pobreza.13

Resta claro, portanto, que o desenvolvimento nacional não pode ser vislumbrado apenas no viés econômico, ao contrário, a este conceito deve-se acrescentar o cunho social. Nas precisas lições de Daniel Ferreira, a interpretação sistemática do art. 3º da Constituição Federal induz à conclusão de que nossa

9 FERREIRA, Daniel. A licitação..., p. 39. 10 Cretella Júnior, José. Das licitações Públicas. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 241. Apud: MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Eficácia nas licitações e contratos. 10ª ed. Belo Horizonte: Del Rey. p. 77. 11 JUSTEN FILHO, Marçal. Desenvolvimento Nacional Sustentado..., Acesso em 15/01/2014. 12 JUSTEN FILHO, Marçal. Desenvolvimento Nacional Sustentado..., Acesso em 15/01/2014. 13 SACHS, Ignacy. Desenvolvimento includente, sustentável e sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2006, p. 14.

República visa um crescimento econômico socialmente benigno, capaz de propiciar uma transformação social estrutural.14

Por conta disso, interpretando-se o art. 3º da Le 8.666/93 à luz da Constituição Federal, é possível concluir que o desenvolvimento nacional sustentável comporta, ao menos, três vetores: social, econômico e ambiental.15

Fácil perceber, portanto, que a modificação na Lei Geral de Licitações e Contratos teve o condão de concretizar princípios constitucionais – desenvolvimento nacional e fomento do mercado interno – utilizando o poder de compra do Estado para atingir tal desiderato.16

Nessa linha, o agente público, quando da instauração da licitação, deve definir o objeto da contratação com o intuito de atender a necessidade material, direta e imediata da Administração, mas, além disso, deve identificar critérios socioeconômicos ambientais aptos a viabilizar as políticas públicas definidas na Constituição Federal.17 Nessa toada, a economicidade e vantajosidade da contratação passam por uma releitura em face dos objetivos fundamentais da República e do dever do Estado de promover o desenvolvimento nacional sustentável.18

Reconhecendo que a atividade contratual da Administração Pública pode atingir esse objetivo, Jessé Torres Pereira Júnior e Marinês Restelatto Dotti asseveram que o princípio da supremacia da Constituição atrai para seu texto a definição de políticas públicas consideradas indispensáveis para garantir o chamado ‘mínimo existencial’ intrínseco à dignidade da pessoa humana. Para os autores, a atividade contratual da Administração é o caminho necessário e natural para permitir as compras, obras e serviços pertinentes aos projetos e programas que materializarão tais políticas públicas. Nessa toada, a própria legislação tem incorporado estímulos para a contratação de objetos que sejam indispensáveis para tal implementação.19

Nesse sentido assevera o Min. Relator do Acórdão 1.317/13, do Plenário do TCU:

37. As políticas públicas ora em análise, que visam à adoção de medida da restrição entendida como necessária para garantir a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, por envolver aparato normativo complexo para a sua concretização, dependem de regulamentação a fim de afastar qualquer possibilidade de discricionariedade.

38. A peça juntada aos autos pela Advocacia Geral da União (AGU) reproduz entendimento do doutrinador Fábio Konder Comparato, onde esclarece que política pública não se resume a norma e nem a ato jurídico, mas as engloba como componentes, para ser a política antes de tudo, "um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado".

14 FERREIRA, Daniel. A licitação..., p. 59. 15 FERREIRA, Daniel. A licitação..., p. 48. 16 BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. A ressignificação do princípio da finalidade da licitação à luz do desenvolvimento nacional sustentável. Palestra proferida no VIII Congresso Mineiro de Direito Administrativo, nos dias 06 a 08 de maio de 2013. 17 SANTANA, Jair Eduardo; ANDRADE, Fernanda Alves. As alterações..., p. 33. 18 BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. A ressignificação do princípio da finalidade da licitação à luz do desenvolvimento nacional sustentável. Palestra proferida no VIII Congresso Mineiro de Direito Administrativo, nos dias 06 a 08 de maio de 2013. 19 PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 33-34.

39. O mesmo arrazoado da AGU apresenta um pensamento bastante significativo para o deslinde do caso ora em apreciação, ao definir políticas públicas como programas de ação governamental visando a coordenar os meios a disposição do Estado e das atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados e os meios de sua implementação (pg. 4/5, Peça 6).

40. Acompanhando esse raciocínio, é a alteração na Lei de Licitações, pela Lei 12.349/2010, que configura instrumento voltado à concretização da política pública governamental de estímulo a industrialização do País e defesa da produção nacional. Conforme explicitou o eminente Ministro Augusto Shermam, a alteração normativa advinda da referida Lei 12.349/2010 constitui importante diretriz de política pública, pois deixa explícito o poder de compra do Estado para estimular a produção doméstica de bens e serviços.

Em face desses argumentos e como bem destacado pelo Ministério Público e Advocacia Geral da União, fica assente a ideia de que as licitações e os contratos daí decorrentes possuem além de um fim imediato outro mediato. “[o contrato] deixa de ser apenas instrumento para o atendimento da necessidade de um bem ou serviço que motivou a realização da licitação para constituir, também, instrumento da atividade de fomento estatal, voltado, dessa forma, não só para os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado. Se o contrato cumprirá a finalidade de atender duplo interesse da Administração - imediato e mediato - é legítima e adequada a conclusão de que a seleção a ser procedida mediante o certame licitatório resulte na escolha da proposta que ofereça a maior vantagem em relação a ambos objetivos.” 20

Em que pese a alteração legislativa ser relativamente recente, outras normas já contemplavam a licitação como instrumento de políticas públicas, a exemplo da Lei Complementar 123/06, que estabeleceu um tratamento diferenciado na licitação às microempresas e empresas de pequeno porte, em atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179, da Constituição Federal.

Dados divulgados pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e Ministério do Trabalho, em face da pesquisa realizada pelo SEBRAE Nacional em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (DIEESE), atestam que desde o advento da Lei, em 2006, o acesso das pequenas empresas às contratações realizadas pelo Estado aumentou consideravelmente. De 2006 para 2007 houve um crescimento de 8% para 28%; de 2007 para 2008 chegou a 32%.21 Em 2011 esse acesso cresceu 43,36%, em face da aplicação do tratamento diferenciado consignado na Lei Complementar. 22

Utilizando como parâmetro o exercício de 2011, as pequenas empresas foram responsáveis por 99% dos estabelecimentos, 51,6% dos empregos privados não agrícolas formais no país e por quase 40% da massa de salários. No período de 2000 a 2011, de cada R$ 100 pagos aos trabalhadores no setor privado, R$ 40, em média, foram pagos por pequenas empresas. E, no mesmo período, a remuneração média real dos empregados formais cresceu 1,5% a.a. 23

20 TCU. Ac. 1317/13. Plenário. 21 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Como comprar da micro e pequena empresa: o novo papel do comprador; preferência às micro e pequenas empresas; comentários às modalidades de licitação, inclusive pregão; procedimentos exigidos para a efetivação do tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas. SEBRAE. Brasília: 2008. Apresentação. 22 Disponível em: www.comprasnet.gov.br, notícia veiculada em 05.08.11. 23 Anuário do Trabalho na Micro e Pequena Empresa, 2012, p. 29-32. Disponível em www.dieese.org.br.

Especificamente em relação ao governo federal, de 2002 a 2011, a contratação de pequenas empresas teve um crescimento de R$ 2,56 bilhões para 15,29 bilhões, comprovando que o poder de compra do Estado pode fomentar o desenvolvimento nacional, de forma sustentável.24

Em síntese, o poder de compra do Estado pode ser uma estratégia de políticas voltadas ao desenvolvimento econômico sustentável, para a geração de emprego e renda e para a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, concretizando, enfim, as promessas da Constituição Federal. E o fomento às pequenas empresas é uma das vias já previstas em nosso ordenamento jurídico para a consecução desse objetivo.25

Estabelecidas estas premissas, cumpre verificar se o objetivo incorporado à Lei 8.666/93, em seu art. 3º, é autoaplicável ou, ao revés, exige regulamentação específica. Ainda, importa analisar a possibilidade de restringir, no edital, a cotação apenas de produtos nacionais, sob a justificativa do desenvolvimento nacional. Estas questões foram suscitadas nos Acórdãos 2.241/11 e 1.317/2013, ambos do Plenário do TCU, divergindo a Corte de Contas em relação ao tema.

Em concreto a divergência gravitou em torno da possibilidade ou não de gestor, balizado no princípio do desenvolvimento sustentável, restringir ou até mesmo vedar a cotação de produtos importados nos instrumentos convocatórios de licitação e a questão da fixação das margens de preferência.

O Ministro Relator do Acórdão 2.241/11-Plenário entendeu que a norma prevista no art. 3º é autoaplicável por ser finalística, logo seria possível restringir a participação de produtos importados em face do princípio do desenvolvimento nacional sustentável. Entendeu que apenas a margem de preferência disciplinada nos parágrafos 5º a 12 do art. 3º necessita de regulamentação.

Contudo, o Ministro Augusto Scherman Cavalcanti pediu vistas do processo e chegou a uma nova conclusão, diametralmente oposta da do ministro relator, aduzindo que o caput do art. 3º e os §§ 5º a 12, não são autoaplicáveis, vale dizer, dependem de regulamentação, a qual não pode ser feita pelo próprio gestor no edital, mas apenas por Decreto da Presidência da República, visto tratar de política pública, que exige estudo de uma dimensão macroeconômica das contratações públicas; e que não há previsão legal que vede a participação de produtos estrangeiros nas licitações públicas.

Por se caracterizar uma norma que institui políticas públicas prevaleceu no TCU a tese de que o caput da art. 3º não é autoaplicável, mas apenas uma norma finalística, que depende de regulamentação por parte do Poder Executivo Federal, visto que com tal prática (promoção do desenvolvimento nacional sustentável) pode-se até mesmo encarecer as contratações públicas, por consequência não cabe ao gestor fixar caso a caso a margem de preferência. Com efeito, também ficou esclarecido, com fulcro no inc. I do § 1º do art. 3º que, regra geral, é vedada a estipulação de preferência para produtos nacionais, somente sendo crível nas hipóteses expressamente delimitadas na legislação.

Nesse sentido, são os argumentos que deram fundamento ao Acórdão:

“17. Conclui-se, assim, que a "promoção do desenvolvimento nacional sustentável" se trata de princípio e norma jurídica, mas não é regra, porque não prescreve o comportamento a ser adotado para atingir o objetivo

24 Disponível em: www.comprasnet.gov.br, notícia veiculada em 22.11.12. 25 JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Como comprar..., p. 14.

estabelecido. Não há, nesse enunciado legal, a definição da conduta a ser praticada pelo administrador público para concretização do objetivo. E, relembre-se neste ponto que essa conduta deve-se pautar por outro princípio, o da legalidade, isto é, estar adstrita aos exatos ditames da lei.

18. Por conseguinte, não há como considerar autoaplicável essa novel disposição do art. 3º, caput, da Lei 8.666/93.

[...]

34. Em síntese, concluo que "a promoção do desenvolvimento nacional sustentável", conforme preceituado no art. 3º, caput, da Lei 8.666/93, se trata de disposição finalística, mas não se afigura autoaplicável, visto que consiste em princípio desprovido da descrição das condutas que deverão ser adotadas para atingir esse objetivo.

(...)

47. Por conseguinte, a aplicação, em editais de licitação, por administrador ordinário, de algum desses regimes sem que tenha sido editada a devida e prévia regulamentação constitui-se em usurpação da competência do Poder Executivo Federal.

48. Igualmente, a adoção de regimes diferentes dos previstos em lei, como ocorreu no caso concreto em exame, constitui-se em prática de ato ilegal.” (grifou-se)

“32. Sob outro prisma, a Exposição de Motivos considera que a orientação da demanda do setor público deve se voltar preferencialmente a produtos e serviços domésticos.

33. Essa preferência deve ser viabilizada mediante a ação normativa e reguladora do Estado visando a promover maior eficiência e qualidade do gasto público. Nesse sentido, as inovações trazidas dispõem sobre a forma a ser adotada para a promoção do desenvolvimento econômico. Trata-se das margens de preferência instituídas pela Lei.

34. Note-se que o parágrafo 5º do artigo 3º da Lei 8.666, de 1993, permite que o Poder Executivo estabeleça margem de preferência para produtos manufaturados e serviços nacionais que atendam normas técnicas brasileiras. O parágrafo 7º dispõe que a instituição da margem de preferência por produtos ou serviços nacionais seja aliada a estudos técnicos que comprovem, efetivamente, a evolução da atividade setorial e o correlato impacto sobre os indicadores selecionados, quais sejam: (i) o emprego e a renda; (ii) a arrecadação de tributos federais; e (iii) o grau de desenvolvimento e inovação tecnológica do país.

35. Essas afirmativas estão em harmonia com a assertiva de que a preferência por aquisição de bens e serviços nacionais em contratações públicas deve ser foco de uma política pública desenvolvimentista. Constata-se, portanto, que as margens de preferência foram a principal via adotada pelo legislador para viabilizar tal política.” (grifou-se)

Acompanhando esse raciocínio e destacando os riscos envolvidos na adoção de políticas públicas declinou o relator do Acórdão em comento:

“(...) é a alteração na Lei de Licitações, pela Lei 12.349/2010, que configura instrumento voltado à concretização da política pública governamental de estímulo a industrialização do País e defesa da produção nacional. Conforme

explicitou o eminente Ministro Augusto Shermam, a alteração normativa advinda da referida Lei 12.349/2010 constitui importante diretriz de política pública, pois deixa explícito o poder de compra do Estado para estimular a produção doméstica de bens e serviços.

41. Entretanto, na mesma linha de sua excelência, entendo não ser razoável supor que cada gestor público, na atuação em casos concretos, defina, a seu critério, quais seriam as contratações que deveriam restringir a aquisição de bens e serviços àqueles produzidos no Território Nacional.

42. Nesse sentido, não resta dúvida de que a preferência deve ser viabilizada mediante a ação normativa e reguladora do Estado, visando a promover maior eficiência e qualidade do gasto público.” (grifou-se)

Ao reconhecer que a norma não é autoaplicável, manifestou-se a Corte de Contas no sentido de que referido princípio somente pode ser concretizado a partir das hipóteses expressamente previstas na legislação:

“30. A fim de cumprir o objetivo de promover o desenvolvimento nacional sustentável, o gestor, nos editais de licitação, somente poderá lançar mão dos seguintes regimes (ou mecanismos):

a) fixação de margem de preferência para produtos manufaturados ou serviços nacionais (§ § 5º a 10);

b) exigência de cumprimento de medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica ou de acesso a condições vantajosas de financiamento (§ 11);

c) restrição, nas contratações de tecnologia da informação e comunicação consideradas estratégicas, a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país e produzidas de acordo com o processo produtivo básico (§ 12);

d) concessão de preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país ou, em seguida, a bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, em condições equivalentes de prazo, suporte, qualidade, padronização, compatibilidade, desempenho e preço (art. 3o da Lei 8.248/91); e,

e) tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte (arts. 44, 47 e 48 da LC 123/2006).”26

Em outra sede de argumentos, ou seja, no que se refere à possibilidade de se estabelecer em edital a vedação de participação de produtos importados, prevaleceu no Acórdão em exame o entendimento de que não existe previsão legal nesse sentido, exceto a hipótese elencada no § 12 do art. 3º da Lei 8.666. Logo, apenas nesse caso é possível tal vedação, e como norma restritiva deve ser interpretada restritivamente, nas demais hipóteses não cabem discriminações. Não se pode nem sequer por Decreto do Poder Executivo, quiçá por edital excluir dos certames produtos não nacionais, sob pena de inconstitucionalidade:

65. Logo, conforme constatado na análise supra, a Lei 12.349/2010, com exceção das contratações destinadas à implantação, manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação, não previu a possibilidade de licitações restringindo o respectivo objeto a bens e serviços produzidos no País. Mesmo para os bens e serviços de TIC,

26 TCU. Acórdão 2.241/2011. Plenário.

ainda há exigências de serem considerados estratégicos para o País. E mesmo assim, trata-se de restrição a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País e produzidos de acordo com o processo produtivo básico, o que não significa necessariamente produtos nacionais.

Estabelecidas essas premissas, cumpre expor nossa posição acerca do tema. No que tange à autoaplicabilidade do art. 3º, é preciso divergir da tese que prevaleceu no âmbito do TCU, corroborando com a doutrina de Daniel Ferreira, que aduz tratar-se o desenvolvimento nacional sustentável de norma autoaplicável:

“Questão difícil é assumir posição acerca da desnecessidade de expedição de um regulamento para fiel execução da Lei Geral de Licitações, pelo menos no que diz com a satisfação da novel finalidade licitatória: a promoção do desenvolvimento nacional (sustentável).

Ora! Como o caput do art. 3º da Lei nº. 8.666/93 revela-se de cunho substancialmente principiológico e, demais disso, expressamente afirma a vocação legal do processo administrativo para tríplice finalidade (...) não parece faltar nada para que o aplicar do direito aplique ‘o’ Direito.

Melhor dizendo, os três fins reciprocamente considerados expressam, com perfeição, o caráter instrumental da licitação perante os interesses públicos que com ela se pretende satisfazer. Isso não elide, entretanto, a intervenção conveniente daquele que exerce a função administrativa no sentido de priorizá-los em cada caso concreto ou, de preferência, de forma genérica e antecipada. Isto por meio da expedição de ato normativo infralegal, de caráter geral e abstrato.

(...)

Várias leis aqui referidas, em especial a Lei nº. 8.666/93 – com a redação dada pela Lei nº. 12.349/2010 – exigem um regulamento propriamente dito para fins de sua fiel execução, ainda que para atender certas particularidades, apenas.

Como visto, para cumprir a nova finalidade legal do processo administrativo licitatório em sua perspectiva diretiva, substancial, isso não se faz necessário”.27

Na mesma linha foi a orientação do representante do Ministério Público proferida no Acórdão 1.317/13 do Plenário:

“Vislumbro, na situação hipotética acima aduzida, não só a possibilidade de restrição à participação de produtos estrangeiros, como também fundamento até mesmo para a inexigibilidade de licitação, caso não houvesse outro concorrente nacional. Não posso aderir à tese defendida pelo grupo de trabalho, que, a meu ver, subestimou a principal inovação trazida pela alteração do art. 3º da Lei 8.666/93.

Uma vez que a promoção do desenvolvimento nacional sustentável foi incluído ao lado da garantia à isonomia e da seleção da oferta mais vantajosa como propósitos primeiros da licitação, o gestor deverá adotar nova postura, buscando continua e permanentemente alcançar esse novo objetivo, tal como já procedia em relação aos outros dois. A nova finalidade exige que a Administração avalie sempre o efeito que a compra do objeto provocará quanto à promoção do desenvolvimento nacional. O gestor não pode ignorar

27 FERREIRA, Daniel. A licitação..., p. 103-104.

esse aspecto, como não pode ignorar o dever de tratar os interessados com isonomia ou o de selecionar a proposta mais vantajosa.

A nova finalidade fixada para a licitação representa novo propósito para o contrato administrativo. Este deixa de ser apenas instrumento para o atendimento da necessidade de um bem ou serviço que motivou a realização da licitação para constituir, também, instrumento da atividade de fomento estatal, voltado, dessa forma, não só para os interesses imediatos da Administração contratante como também para interesses mediatos, ligados às carências e ao desenvolvimento do setor privado.

Se o contrato cumprirá a finalidade de atender duplo interesse da Administração – imediato e mediato – é legítima e adequada a conclusão de que a seleção a ser procedida mediante o certame licitatório resulte na escolha da proposta que ofereça a maior vantagem em relação a ambos objetivos.

E o que é a proposta mais vantajosa para a Administração? É aquela que ofereça o bem ou serviço requerido na licitação pelo menor preço, sem prejuízo da qualidade do produto ou serviço ofertado. Mesmo que a maior vantagem oferecida à Administração não seja, necessariamente, o menor preço, um preço menor representará, inexoravelmente, uma vantagem maior, quando mantidas as demais condições.

Assim, a Administração, ao descrever o objeto licitado, não pode adotar especificações dissociadas da necessidade a suprir, uma vez que isso poderia conduzir a elevação dos gastos contratados. Não pode também, por outro lado, deixar de fixar especificações mínimas, porque isso, embora possa levar a preços menores, resultaria em contratação inútil em face daquilo que se pretende atender, o que não representa vantagem alguma para a Administração. O dever de buscar a contratação mais vantajosa impõe, portanto, a necessidade de fixação de limites superiores e inferiores para especificação do objeto. Acima deles, o gasto pode ser superior ao necessário, abaixo, a contratação pode resultar inútil.

Essas especificações mínimas, até o advento do dever legal de a Administração buscar a promoção do desenvolvimento nacional sustentável nas suas contratações, deviam respeitar estritamente as características indispensáveis a dotar o bem ou o produto contratado de aptidão para suprir a necessidade que motivou a instauração do procedimento licitatório. Assim, se, por exemplo, a Administração tivesse necessidade de realizar uma escavação para abrir ruas, a especificação do objeto a ser contratado deveria observar as características que tornassem o produto a ser adquirido apto a escavar e movimentar a terra nas quantidades e prazos tecnicamente justificáveis, tais como capacidades volumétrica e de carga, potência, manobrabilidade, consumo etc.

A nova finalidade estabelecida para a licitação pela Lei 12.349/2010 implica, porém, nova necessidade a ser atendida pela contratação resultante da licitação. Tal contratação não servirá apenas ao propósito de a Administração, tomando o mesmo exemplo usado no parágrafo anterior, cavar e movimentar terra, mas, igualmente, ao objetivo de promover o desenvolvimento nacional. Tão importante quanto atender à específica necessidade da Administração que venha a motivar a abertura de procedimento licitatório, é, também, desde a alteração legislativa promovida no art. 3º, o atendimento dos interesses previstos no § 7º do referido

dispositivo legal, a saber, geração de emprego e renda, efeito na arrecadação de tributos e desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país. Em suma, o objeto procurado pela Administração pode não ser apenas uma escavadeira, mas uma escavadeira cuja compra produza os efeitos positivos para a economia previstos na lei.

Assim, do mesmo modo que a descrição do objeto incluía especificações destinadas a garantir a utilidade do bem adquirido frente à necessidade que motivou a abertura do procedimento, deverá, agora, incluir qualidade que o torne apto também a suprir essa nova necessidade. O objeto passou a conter elementos que não dizem respeito estritamente à utilidade que o bem ou o serviço prestará à Administração, mas também que dizem respeito ao resultado da sua compra para a sociedade brasileira.

A tese ora sustentada privilegia o atendimento de duas das três finalidades da licitação previstas no caput do art. 3º da Lei 8.666/93 (proposta mais vantajosa e que promove o desenvolvimento nacional), ao mesmo tempo em que não aniquila a terceira (isonomia), já que impõe distinção que não é irrelevante ao atendimento do interesse público.

Insisto: nos casos em que a vedação ao produto estrangeiro for economicamente justificável, a medida será juridicamente cabível, haja vista que, à luz da nova disposição legal introduzida pela Lei 12.349/2010, ele representará objeto diferente, ainda que intrinsecamente seja igual ao nacional, porquanto respondem a necessidades distintas.

É por isso que, com as vênias do Ministro Augusto Sherman Cavalcanti e do grupo de trabalho que realizou o estudo ora em exame, não vejo a inovação promovida no art. 3º como norma prejudicial à competitividade e que, por constituir exceção à regra, deva ser interpretada restritivamente. O novo princípio não afasta ou mitiga os demais, mas apenas os complementa, orientando sua compreensão de acordo com as razões últimas de ser da própria lei de licitações. Sua aplicação deve, pois, ser sempre a mais ampla possível, cabendo à Administração buscar constantemente os meios de privilegiá-lo. Se não é possível a competição entre produtos que atendem a diferentes necessidades, não há, na vedação a participação na licitação de um deles, restrição à competitividade.

Não é demais, ainda, lembrar, que o novo princípio foi posto na lei ao lado dos seus antecessores, com igual estatura, nem acima, nem abaixo. Sendo assim, é razoável esperar que tenha a mesma densidade normativa, servindo, tanto quanto os outros, para ditar a conduta dos gestores. A lei prevê inúmeras regras que concretizam os princípios da isonomia e da contratação da proposta mais vantajosa para a Administração, nem por isso, porém, é raro acontecer de o gestor ter de lidar com situações não positivadas e cuja solução deva ser ditada pela ponderação direta das normas principiológicas de condutas.

Nesse contexto, atribuo às regras sobre a margem de preferência contidas nos parágrafos do artigo 3º da Lei 8.666/93 a característica de via expedita – porque é solução já previamente motivada pelos estudos que devem amparar o decreto regulamentador –, a ser observada pela Administração nos casos gerais para atendimento ao princípio da promoção do desenvolvimento nacional, mas não tenho dificuldade, por outro lado, em aceitar que o procedimento ali previsto comporta exceções. Apresentando-se ao gestor, no caso concreto, situação em que a promoção do desenvolvimento nacional

não seja suficientemente preservada mediante a aplicação da margem de preferência, a Administração poderá, desde que mediante ato devidamente motivado, adotar medidas alternativas e não expressamente previstas na legislação, inclusive a vedação à participação de produtos estrangeiros.

São, a esse respeito, significativas as abalizadas ponderações trazidas aos autos pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – MDIC, representado pela Advocacia-Geral da União, que não só demonstram a razoabilidade da medida, em face de seu alinhamento com procedimentos adotados em inúmeros outros países, como também evidenciam sua utilidade e adequação ao interesse público, dada sua pertinência com as políticas nacionais em curso sobre infraestrutura e desenvolvimento tecnológico e produtivo.

Ante o exposto, manifesto-me contrário às conclusões do grupo de trabalho expressas nas alíneas a e b do item 88 da peça 1, por considerar que, se for devidamente motivada, é legal a vedação a produtos e serviços estrangeiros em edital de licitação e por entender que a previsão de tal possibilidade em Decreto do Poder Executivo não configuraria hipótese de decreto autônomo, haja vista encontrar amparo no art. 3º da Lei 8.666/93. [...]”.

O desenvolvimento nacional sustentável, portanto, é autoaplicável, impondo-se ao gestor sua consecução, em conjunto à seleção da proposta mais vantajosa e da isonomia.

Ademais, conforme já destacado, restou consignado no Acórdão 1.317/13 que referido objetivo somente pode ser alcançado a partir das hipóteses taxativamente previstas em lei. Em outras palavras, o desenvolvimento nacional sustentável, para a Corte de Contas, deve ser concretizado exclusivamente por meio: do tratamento diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, nos termos da Lei Complementar 123/06; e da margem de preferência prevista no art. 3º, da Lei 8.666/93; exigência de cumprimento de medidas de compensação comercial, industrial, tecnológica ou de acesso a condições vantajosas de financiamento; restrição, nas contratações de tecnologia da informação e comunicação consideradas estratégicas, a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país e produzidas de acordo com o processo produtivo básico; concessão de preferência, nas aquisições de bens e serviços de informática e automação, a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no país ou, em seguida, a bens e serviços produzidos de acordo com processo produtivo básico, em condições equivalentes de prazo, suporte, qualidade, padronização, compatibilidade, desempenho e preço (art. 3o da Lei 8.248/91), não se aventando outra hipótese, salvo se prevista em Lei.

Novamente, é preciso discordar da orientação do TCU, posto que as situações aventadas são apenas exemplos de concretização desse objetivo, não constituindo um rol taxativo, na esteira da posição de Marçal Justen Filho:

“(...) não se afigura cabível subordinar a adoção de tratamento discriminatório à existência de previsão legal explícita e exaustiva. Nenhuma lei pode exaurir a disciplina das providências destinadas a dar concretude ao princípio da isonomia. Existe uma competência infralegal insuprimível nesse campo. Portanto, a orientação adotada equivale a negar efeito ao princípio constitucional da isonomia. Não é compatível com o referido princípio afirmar a ausência de eficácia normativa da lei que autoriza a discriminação. Nem mesmo o argumento da ausência de disciplina legal exaustiva é suficiente para legitimar o raciocínio.

Enfim, o argumento prova demais. Se fosse procedente, ter-se-ia de reconhecer a ausência de eficácia de todas as demais autorizações para discriminação contempladas na Lei nº. 8.666 e desacompanhadas da disciplina exaustiva e completa dos pressupostos e consequências de sua aplicação.

Por todas essas razões, reputa-se que a realização do desenvolvimento nacional sustentável não se restringe às providências previstas no elenco dos §§ 5º a 12 do art. 3º”. 28

Conclui-se, portanto, que o art. 3º, caput, da Lei 8.666/93 é autoaplicável e, ainda, que as hipóteses disciplinadas na norma, para a consecução do desenvolvimento nacional sustentável, não são taxativas, cabendo ao gestor público, à luz da razoabilidade, proporcionalidade, economicidade e eficiência, disciplinar no edital os mecanismos para a realização desse primado, o qual deverá, sempre, ser ponderado com os demais objetivos da licitação: seleção da proposta mais vantajosa e isonomia. Por evidente, atingir o desenvolvimento sustentável a partir das hipóteses previstas na norma é o caminho mais seguro e desejável, por imperativo de segurança jurídica. Não obstante, não se pode olvidar que o legislador não é capaz de prever todas as hipóteses plausíveis para a consecução desse objetivo. Assim, em situações excepcionais, julga-se crível a concretização desse princípio por outras vias, disciplinando o edital tais condições, desde que reste demonstrado no processo, de forma irrefutável, que aludidas exigências são indispensáveis para a realização do desenvolvimento nacional sustentável, ponderando-se este vetor à luz dos demais objetivos da licitação (proposta mais vantajosa e isonomia).

Diferente é a conclusão em relação à margem de preferência, definida nos §§ 5º a 12, do mesmo art. 3º, a qual, por disposição expressa da Lei, requer regulamentação específica, o que ocorreu por meio do Decreto 7.546/2011 e demais decretos específicos que estabeleceram grupos de bens e serviços para a incidência da aludida margem.

28 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários... p. 66.