a profecia das pedras
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A PROFECIA DAS PEDRAS Flavia Bujor
ISBN 85-7479-559-3
"Amo quem sonha com o impossível."
Goethe
1 O velho releu o trecho de A Profecia e preocupado balançou a
cabeça.
— Breve, muito em breve — murmurou. Levantou-se da cadeira
com dificuldade e virou-se. O duque de Divulyon estava diante dele, com um
ar preocupado.
— E então? — perguntou.
O velho suspirou profundamente. Parecia estar no limite de suas
forças. Inúmeras rugas cruzavam seu rosto. Mantinha-se de pé com
dificuldade, a coluna curvada e as pernas trêmulas. Deixou-se cair em uma
poltrona e disse com voz fraca:
— Não posso mudar nada. Ela seguirá seu destino.
O duque, cuja angústia era perceptível, elevou o tom da voz:
— Theodon, você é sábio, dedicou toda a sua vida a compreender A
Profecia. Você ajudou meu pai. Ajudou a mim. Você me aconselhou, me
apoiou. Não me abandone agora! É preciso que ela viva. É preciso que ela
vença, aconteça o que acontecer. Ela é tão jovem. E pensar que em
breve... O que posso fazer para protegê-la, Theodon?
O velho mergulhou a cabeça entre as mãos e, após um longo
silêncio, respondeu:
— Eu a amo tanto quanto você. Vi essa menina crescer, apeguei-
me a ela, mesmo sabendo que não devia. Mas ela não escapará à Profecia.
Acredite, se eu pudesse ajudá-la, teria sido o primeiro a fazê-lo. Você me
pergunta como protegê-la, mas sabe que não pode fazê-lo, tente
compreender isso. Tudo o que você tem a fazer é entregar-lhe, amanhã,
o que pertence a ela. Agora vá e aproveite os últimos momentos para ficar
com ela.
Resignado, o duque murmurou:
— Esses catorze anos passaram tão depressa. Em seguida, saiu do
quarto.
O velho olhou para as chamas crepitantes na lareira. A Profecia se
cumpriria. Era questão de poucos dias. Ele tinha esperado por esse
momento, tinha aguardado impacientemente por ele. Em breve, todas as
suas perguntas encontrariam uma resposta. Sentiu um calafrio. Tinha sido
muito estúpido em se afeiçoar à menina. Devia ter evitado isso. A Profecia
tinha tomado outro sentido: em suas páginas obscuras, onde ele havia
procurado tanto ler o futuro e compreender o que estava anunciado de modo
confuso, ele só via o destino de Jade.
Jade estava largada sobre sua cama. Tinha um livro nas mãos,
mas estava agitada demais para ler. Seu olhar se perdia no vazio. De
repente, escutou alguém bater. Pulou da cama e gritou:
— Entre!
Um empregado entreabriu a porta e anunciou:
— Seu pai deseja vê-la. Pode recebê-lo agora?
Espantada com a visita, tão incomum àquela hora do dia,
concordou. O empregado saiu.
Jade alisou seus longos cabelos negros e, depois, jogou-os para
trás. Olhou-se no espelho e pareceu satisfeita. Seu sorriso deixava entrever
os dentes ligeiramente separados. Seus cílios talvez fossem um pouco
espessos demais e ela estava sempre brigando com algumas mechas
rebeldes. Quando ficava nervosa (o que acontecia com alguma freqüência),
sua pele ficava ruborizada e ela perdia o ar afetado que ostentava na maior
parte do tempo. Mas sabia que era bonita, alta, esguia e elegante. Era uma
menina segura de si. O que ela queria, ela sabia que iria conseguir.
Enquanto ela sorria para o espelho, seu pai entrou no quarto. Jade
foi ao seu encontro e ele a abraçou, com um carinho com o qual ela não
estava acostumada. Embora amasse a menina, o duque não costumava
mostrar seus sentimentos de maneira tão expansiva. Possuía uma fleuma
natural e dava mostras de seu sangue frio a toda hora. Portanto, naquele
dia, alguma coisa tinha acontecido para que seu comportamento se alterasse
de tal maneira. Afrouxou o abraço, mas ainda ficou um momento olhando
para Jade, sem dizer nada. Admirou mais uma vez os olhos verdes da
menina, de uma intensidade impressionante. "Ela é corajosa e determinada,
disse para si próprio, e tem uma personalidade forte." Sua fisionomia traía
seu caráter: era possível ler em seu rosto que era uma menina orgulhosa,
decidida, mas também mimada e teimosa. O duque não se atrevia a deixar
de olhar para o rosto de Jade, nem a pronunciar qualquer palavra.
Foi ela quem interrompeu o silêncio.
— Algum problema, papai? Você não tem que fechar um negócio,
ler uma tonelada de documentos, ou fazer mil outros trabalhos, como todo
dia? Deve ter acontecido alguma coisa muito séria para você não estar
trabalhando. Fiz alguma coisa errada?
Jade pronunciou as últimas palavras com uma inocência um tanto
fingida. O duque respondeu, tentando disfarçar:
— Claro que não, não aconteceu nada. Estou com um tempo livre,
só isso. Sei que isso não é comum, mas, como você pode ver, às vezes
acontece. Então, como você está?
Jade respondeu, muito excitada:
— O dia da festa está quase chegando. Vai ser absolutamente
maravilhosa! Ainda não sei se vou vestir o vestido de seda lilás ou o de cetim
branco. Encomendei um terceiro, magnífico, no condado de Tyrel. Se chegar
a tempo, vou usá-lo. Estou ansiosa para o dia chegar. Em vez de contar
os dias, estou contando as horas, até os minutos. Já dei as ordens sobre a
decoração da sala, os pratos, os músicos. Adorei organizar tudo sozinha! E
chamei músicos de uma cidade vizinha.
Jade continuou a falar, mas seu pai não escutava mais nada. "Ela
é tão despreocupada", não conseguia deixar de pensar, "não conhece o
perigo, nem a dor. Não conseguirá sobreviver." Mas logo se censurou por não
confiar o suficiente na menina e tentou concentrar-se no que ela dizia.
— Vai ser grandiosa, maravilhosa, fora do comum! Mal consigo
imaginar. Ainda não resolvi se vou servir o sorvete antes ou depois dos
doces. Melhor antes, não é? E também não sei se a baronesa de Carolynt
virá. Parece que ela andou febril. É a única que ainda não confirmou a
presença. Também, não ligo muito, ela é meio chata.
— Jade, você sabe o que é o medo?
A menina parou, surpresa e impaciente. Por que o pai a
interrompia, e ainda mais com uma pergunta tão sem cabimento? Será que
ele não se animava com a festa? Jade respondeu, irritada:
— Medo? Medo de quê? Nunca tive medo, é um sentimento que
desprezo. Só os fracos e os covardes têm medo. Por que a pergunta, papai?
Jade parou. Acabara de perceber que o duque estava pálido. Como
não tinha observado antes que ele tinha a fisionomia abatida, olheiras e
olhos vermelhos? E, sobretudo, aquela expressão transtornada? Alguma
coisa estava acontecendo. Seria um negócio mal-sucedido?
— Se só os fracos e os covardes têm medo, então eu sou fraco e
covarde — disse o duque. "Afinal, que importância teria isso agora?",
pensou.
— Que idéia, papai! Você é respeitado e admirado por todo mundo,
e não é para menos. Você é o duque de Divulyon!
Jade voltou a se animar e seus olhos verdes brilharam:
— Posso até acreditar que você esteja preocupado com os negócios,
mas com medo não! Se isso for uma piada, não tem a menor graça!
O duque não respondeu. O ânimo de Jade voltou e ela disse com
seriedade:
— E agora, papai, quero saber por que você não está dando a
menor importância para o meu aniversário. Já está chegando. Daqui a
poucos dias farei catorze anos!
— Engano seu, Jade. Eu me preocupo muito com o seu
aniversário. Mas...
O duque mordeu a língua. Já tinha falado demais. Ela não deveria
saber de nada antes da hora. Com medo de trair-se e acabar dando
explicações demais, o duque saiu bruscamente. Subiu para seu quarto e
começou a andar de um lado para o outro. A cada segundo lembrava-se do
momento em que ele deveria contar tudo à menina.
Jade ficou pensativa. O comportamento de seu pai era muito
estranho. Refletiu um pouco e, depois, deu de ombros, decidindo que aquilo
nada tinha a ver com ela. Concentrou-se nos preparativos da festa e logo um
sorriso voltou ao seu rosto.
2 Âmbar estava sentada na relva. Como sempre, sonhava de olhos
abertos enquanto observava os carneiros dos quais deveria cuidar. Outras
imagens ocupavam seus pensamentos. Imaginava que vivia bem perto do sol
e de seu calor aconchegante, que conversava com as nuvens e com os
pássaros. O vento a carregava em maravilhosas viagens. À noite,
deslumbrava-se com o cintilar de estrelas que podia tocar com a mão, e...
— Binha! Binha!
Voltou bruscamente à realidade. Havia se esquecido de que não
precisava cuidar só dos carneiros, mas também de um de seus irmãozinhos.
O menino estava tranqüilamente deitado sob uma árvore e gritava a plenos
pulmões:
— Binha! Vamos! Não tenho nada para fazer! Ninguém a chamava
de Âmbar. Sempre fora Binha. Sem dúvida, seu verdadeiro nome era
pretensioso demais para uma camponesa. Ficaria melhor numa filha de
nobres, em alguém de um outro mundo que não aquele. Sempre se
perguntava por qual motivo seus pais decidiram chamá-la assim. Jamais
encontrara uma resposta satisfatória, mas gostava do nome por sua
originalidade, seu perfume de mistério. Parecia guardar um segredo.
— Binha! Binha! Anda, vem!
Âmbar levantou-se e foi até onde estava o irmão. Sentou-se ao lado
dele, à sombra da árvore.
—Algum problema? — perguntou, com sua voz tranqüilizadora.
O problema é que não tenho nada para fazer! Me conta uma
história?
Âmbar sorriu e fez um carinho no rosto do menino.
— Pode ser. Mas não agora.
— Por quê?
— Quero ficar sozinha, sem falar nada, e escutar o silêncio.
— Eu quero uma história! Você sempre diz isso! — o menino pegou
o braço de Âmbar. — Por favor, Binha! — insistiu.
Ela o despenteou carinhosamente, libertou-se de seus braços e
deu-lhe um beijo na bochecha.
— Mais tarde. Prometo — disse ela. — Agora, vou deixá-lo aqui.
Não gosto de sombra. Vou voltar para o sol.
— Mas lá está quente demais! Como é que você agüenta esse calor?
— Eu adoro. Só isso.
Âmbar voltou para o meio do prado e deixou-se cair sobre a relva.
Ninguém desejaria sair de casa com um tempo daqueles. O calor era
escaldante e o ar queimava. O céu estava azul demais, puro demais, nem
uma única nuvem se via no horizonte. Os raios de sol inundavam de luz o
rosto de Âmbar. Ela adorava senti-los acariciar sua pele, e gostava daquele
calor que diziam ser insuportável. Na aldeia, todos rezavam para que a
canícula passasse logo, para que não começasse um período de seca. Mas,
se dependesse da vontade de Âmbar, o calor seria eterno.
Um vulto despontou na estrada. Âmbar virou-se para olhar. Um
menino vinha correndo até ela. Atravessou o pasto, esbaforido e, já no limite
de suas forças, parou diante dela. Âmbar o conhecia bem, eram amigos
desde crianças. Sorriu para ele.
Mas o menino a olhou com tristeza. Ela estava tão serena. Seus
cabelos, entre o louro e o ruivo, tão dourados quanto o sol, emolduravam o
rosto de pele clara e traços harmoniosos. Os olhos, cor de mel, onde se podia
notar um toque de verde, davam a seu olhar uma doçura e uma placidez
inatas.
Quase sem fôlego, o menino falou:
— Binha, você tem que correr. Deixe que eu fico com seu irmão e
tomo conta dos carneiros, mas vá depressa! Sua mãe... ela está muito mal.
Âmbar pensou que seu coração iria parar de bater. Tudo
desmoronou à sua volta. Sua vista ficou turva. Sentiu medo. Sentiu frio,
apesar do sol escaldante. Não conseguia respirar.
— Ande, Binha! Não perca tempo! Corra!
Parecia que a voz dele vinha de muito longe. A cabeça de Âmbar
rodava, o mundo inteiro balançava. Mas logo se recuperou. Era preciso
chegar a casa antes que fosse tarde demais. Levantou-se de um salto e pôs-
se a correr. Depressa. Mais depressa. As lágrimas toldavam sua visão e
inundavam seu rosto, mas ela nem percebia. Agora, só uma coisa importava:
impedir o inevitável, a morte de sua mãe. Não podia ser! Havia semanas,
meses, que sua mãe estava muito doente e sofrendo muito. Não existia
remédio para aquilo. Mas ela não podia morrer! Âmbar continuava sua
corrida desenfreada contra a morte. Já podia ver a aldeia ao longe. Corria,
corria, sem ter consciência do cansaço, do esgotamento de suas forças. Por
fim, chegou à praça, depois chegou diante da casa. Empurrou a porta,
entrou no único cômodo, escuro e silencioso, e precipitou-se na direção da
mãe. Ajoelhou-se perto dela e apertou sua mão com todas as forças,
sentindo seu calor. Sua mãe estava deitada numa cama de palha, a única da
casa. Sua fisionomia exprimia um sofrimento indescritível e sua pele já
mostrava a palidez da morte. Ela gemia e parecia delirar. Com uma voz fraca
e trêmula, murmurou:
— Você está aqui, Âmbar. Você está aqui. Fez uma pausa, e
continuou:
— Só me restam poucos dias de vida. Então, terei cumprido minha
missão.
— Mamãe, não diga nada. Isso cansa você.
— Só mais alguns dias. Mas não vou conseguir. Estou doente
demais.
Âmbar tentou conter as lágrimas. Precisava mostrar-se forte, como
sempre. Apertou a mão de sua mãe novamente. Um profundo desespero
tomou conta dela.
— Mamãe, mamãe — não pôde evitar balbuciar. — Tudo vai dar
certo.
Esforçava-se para acreditar nas próprias palavras, queria
persuadir a si mesma. Sobretudo, queria crer que tudo aquilo não passava
de um pesadelo, que sua mãe se levantaria da cama de palha e abraçaria
seus irmãos e irmãs, como sempre. Mas não, o pesadelo já durava muito.
Âmbar tentava fugir da horrível verdade. Tinha o hábito de inventar para si
um mundo de sonho, sempre que aquele onde ela vivia ficava cruel demais.
Escondia-se ali, recusando o sofrimento. Mas sua imaginação era frágil, logo
se esvaía para dar lugar à realidade. Então, a dor ficava ainda mais intensa,
como que para se vingar de quem tentava negá-la.
— Âmbar, só preciso viver mais um pouco. Uns poucos
dias, só uns poucos dias. Estou perto do fim.
A voz vacilante fez Âmbar estremecer. Percebeu que seu rosto,
assim como o de sua mãe, estava molhado de lágrimas. A mulher gemia, já
quase resignada. Ela própria não queria se entregar às lágrimas. A menina
era dessas que lutam até o fim, mesmo quando não há mais esperança, nem
futuro no horizonte. Ela era assim, e continuava a buscar um clarão na
noite.
— Âmbar. Âmbar. Minha missão, Âmbar.
— Fique quieta, mamãe. Não fale mais nada. No seu estado, isso
cansa demais. Mas não se preocupe, você vai ficar boa. Isso não passa de
uma gripe. Amanhã, você vai se levantar. Vai ver só, o sol está brilhando. As
cerejas estão maduras. A relva está verde como nunca. Não há nenhuma
nuvem, o céu está tão azul. Vale a pena dar uma saída. Garanto, amanhã
você vai se sentir melhor.
Âmbar tinha a voz trêmula e mal conseguia reprimir os soluços.
— Só quero viver mais alguns dias. Depois, pouco me importa. Mas
tenho uma missão e ainda é cedo demais. Se eu morrer, quem fará o que
deve ser feito? Permanecer viva por mais alguns dias é uma obrigação para
mim. Mas sinto que não vou conseguir. Está além de minhas forças.
— Mamãe, fique calma. Descanse, por favor. É importante.
— Âmbar, me prometa uma coisa. Quando minha hora chegar,
prometa que vai acreditar em tudo o que eu disser. Mesmo se minhas
palavras forem as de uma doente enfraquecida... Prometa.
— Prometo tudo o que você quiser, mamãe, mas agora pare de
falar, isso vai deixar você esgotada.
Âmbar não tinha levado a sério uma só palavra de sua mãe.
Atribuía todas aquelas divagações à febre.
3 — Ficarei no lugar da tia-avó e cuidarei da menina. Ela é tão
fechada, tão solitária...
— Você tem razão. Ela não é normal. Não tem nenhuma amiga e
ninguém consegue adivinhar o que ela pensa.
— Ela jamais sorri, não é incrível? E aqueles olhos, sempre baixos.
Ela tem um jeito tão indiferente e intrigante que chega a ser perturbador.
— É mesmo. Ela tem alguma coisa de incomum, que me deixa
pouco à vontade.
Quando uma das mulheres mais velhas da aldeia se aproximou, as
duas comadres calaram a boca. Ninguém sabia sua idade, nem mesmo ela,
que não tinha mais a força nem a vontade de contar o tempo. Ninguém
ligava muito para o que ela dizia, achavam que não fazia o menor sentido. No
entanto, apesar das aparências, a velha continuava bem lúcida. Tinha as
costas curvadas, o rosto marcado com uma ruga para cada caminho que
havia atravessado, e cada um de seus passos lentos parecia lhe custar um
grande esforço.
Por um instante, ela parou perto das comadres. Era impossível que
tivesse escutado a conversa, porque elas tinham se calado quando a velha se
aproximou. As mulheres deram um sorriso falsamente cordial para saudá-la
e receberam em troca um olhar de desprezo. Então, a velha falou, com a voz
grave:
— Com certeza, Opala não é normal. Sim, ela é diferente. E fará
coisas que vocês nem sequer ousariam imaginar.
Depois, afastou-se lentamente. Embaraçadas, as duas comadres
perceberam, pela primeira vez, a dignidade e a vontade que animavam a tia-
bisavó de Opala.
Desde que se entendeu por gente, Opala sempre viveu com sua tia-
bisavó Eugênia e a filha dela, que tinha o mesmo nome. Para diferenciá-la da
mãe, chamavam-na de Gina. Opala jamais conhecera outra casa além da
rica mansão onde as três moravam. Gina, sua tia-avó, ainda era muito ativa,
apesar da idade. Estava sempre ocupada com a casa e com a educação de
Opala, e tinha ensinado à menina tudo o que sabia: Literatura e História.
Também lhe havia transmitido bons conhecimentos a respeito de plantas
medicinais. Opala era uma aluna séria e aplicada. Nunca se perguntava se
gostava de estudar. Seus gostos, seus sentimentos e suas idéias eram
indefinidos, até mesmo inexistentes. Vários rapazes a achavam bonita, mas
ela parecia feita de pedra, e sua indiferença esfriava rapidamente os ardores
que suscitava. Era bem magra, frágil, seu rosto parecia feito de porcelana e a
pele era branca como leite. Seus traços delicados acentuavam a impressão
de fragilidade. Os olhos eram grandes, de um azul muito claro, com toques
de cinza, e o olhar parecia sempre ausente. Os cabelos lhe caíam sobre os
ombros em grandes cachos, acentuando sua aparência evanescente. Eram
louros, mas cada mecha tinha um tom diferente: palha, mel, acinzentado...
Andava quase sempre de cabeça baixa, com os olhos grudados no chão. Não
era tímida, mas a companhia dos outros não a atraía. Ninguém gostava dela
de verdade e ela não gostava de verdade de ninguém. Apesar da atenção que
sempre recebera de Eugênia e de Gina, jamais tinha conhecido o calor
humano, nem a afeição verdadeira.
Opala procurava alguma coisa para desenhar. Estava sempre
desenhando. Tinha o traço claro e preciso, e tentava reproduzir
perfeitamente aquilo que via. Uma vez ouviu dizerem que a arte era um jeito
diferente de ver a realidade, mas aquilo não fazia o menor sentido para ela.
Gostava de reproduzir o que via e queria sempre se superar. A cada dia,
procurava modelos mais difíceis. Mas agora não conseguia encontrar nada
que lhe agradasse. Já tinha olhado cada canto de seu quarto. De repente,
teve uma idéia. Levantou-se e foi até o quarto de Gina. Embora tivesse
permissão de fazê-lo, nunca tinha entrado ali sozinha antes. Estremeceu.
Teve a impressão de estar cometendo um delito. "Isso é ridículo", pensou.
"Tenho o direito de estar aqui! Gina está na cidade mas, se estivesse aqui,
não me proibiria de entrar." Ainda assim, estava pouco à vontade. Sentou-se
na cama. Não faltavam objetos complicados para serem usados como
modelos. A dificuldade seria escolher um só, mas, no entanto, movida por
um estranho desejo, tentou abrir a gaveta da mesinha de cabeceira. Estava
trancada à chave. Opala ficou surpresa com o que estava fazendo. Nunca
havia sido curiosa. "Alguma coisa está acontecendo comigo", murmurou.
"Não consigo me controlar."
A sensação estranha a perseguia. "Esta gaveta...", pensou. Mas
parou imediatamente. Instintivamente, afastou o lençol e levantou o
travesseiro. Descobriu uma pequena chave, pegou-a e introduziu-a na
fechadura da mesinha de cabeceira. Parou um instante e respirou
profundamente. "O que estou fazendo?", perguntou a si mesma. Então,
rapidamente, abriu a gaveta.
A primeira coisa que viu foi um livro volumoso, cujo título, escrito
em letras douradas, era A Profecia. Uma das páginas, no meio do livro,
estava marcada. Abriu justamente naquela página e leu algumas linhas
antes de fechar o livro com um gesto seco. "Nada interessante", disse. Tentou
raciocinar: o que exatamente estava procurando? Continuou a examinar o
conteúdo da gaveta, quando sua atenção foi atraída por uma bolsinha de
veludo preto, cujos cordões desamarrou. "Tem alguma coisa aqui dentro.
Alguma coisa que me chama." Era um objeto liso e quente ao toque. Uma
sensação desconhecida apoderou-se de Opala: tinha a impressão de estar
em outro lugar. Tirou o objeto da bolsa e o examinou. Era uma pedra
preciosa, não muito grande, redonda. Sua cor era de um verde muito pálido,
de um tom frio e uniforme. Opala segurou-a. "Não é uma pedra", murmurou.
"E alguma outra coisa diferente, poderosa. Uma mensagem." Não sabia de
onde lhe vinha essa certeza, mas sentia que estava perto da verdade.
Entrara num estado alterado de consciência, como se estivesse enfeitiçada.
Não via mais nada ao seu redor. Parecia haver uma ligação quase palpável
entre ela e a pedra. Ela queria dizer-lhe alguma coisa. Opala a apertou com
mais força. Sentiu que a pedra esfriava e que sua superfície tornava-se
áspera. Subitamente, sentiu um vazio imenso, uma intensa melancolia. A
pedra ficara gelada em poucos segundos. Trêmula, Opala foi obrigada a
largá-la. A comunicação que ela acreditava ter acontecido fora bruscamente
cortada. Levou a mão à testa. Estava quente. "Eu jamais deveria ter aberto
essa gaveta", censurou-se. "Não devia ter encontrado essa pedra." Ela sabia
disso, podia sentir. Apressadamente, recolocou a pedra na bolsa e a devolveu
a seu esconderijo original. Pegou o livro, que tinha ficado sobre a cama, e
arrumou-o em seu lugar. Trancou a gaveta e devolveu a chave para debaixo
do travesseiro. Arrumou cuidadosamente os lençóis. Foi o tempo exato.
Gina, sua tia-avó, acabava de entrar no quarto.
— Está tudo bem, Opala? Você está tão pálida!
— Tudo bem. Só estava procurando alguma coisa para desenhar —
respondeu a menina.
Apesar de seus esforços para parecer descontraída, sua voz
deixava perceber sua perturbação.
No exato momento em que Opala tocou a pedra, ele sentiu um
violento sobressalto. Um ricto deformou sua fisionomia malévola. E,
imediatamente, ele convocou o Conselho dos Doze por telepatia. Os membros
já se encontravam na grande sala de reuniões. A sua aproximação, todos
baixaram os olhos, temerosos. Com voz glacial, ele disse:
— Enfim, aconteceu o que já tínhamos desistido de esperar.
Interceptei alguma coisa muito interessante.
Os doze membros do Conselho logo adivinharam do que se tratava.
A satisfação era perceptível em seus rostos. Um deles perguntou:
— Não seria o caso de ordenar que os cavaleiros da Ordem a
tragam logo?
— Não — respondeu ele, com voz autoritária. — Tenho uma idéia
melhor.
— De qual delas se trata? — perguntou, curioso, outro membro do
Conselho.
— Da terceira. Talvez a mais perigosa. Possui tremendos poderes,
ainda adormecidos. Pude percebê-los quando entrou em contato com sua
pedra. Para nossa sorte, ainda é cedo demais para ela. Mais alguns dias e
teríamos perdido a vantagem!
— De qual pedra está falando? — perguntou outro membro do
Conselho.
—Da opala, a mais pura das três. Mas agora que já sei tudo sobre
ela, é também a mais frágil.
Paris, 2002 Dr. Arnon tirou os óculos e fez sinal à enfermeira para aproximar-
se:
— Parece até que está dormindo, não acha?
Ele apontou para o leito, onde uma pessoa encolhida definhava.
Parecia mergulhada num sono profundo, mas seu rosto tinha um tom
acinzentado.
— Não lhe resta muito tempo de vida — acrescentou o médico. —
Na minha opinião, só mais uns poucos dias. Você não se apegou a ela,
espero.
A enfermeira deu de ombros, com um gesto fatalista.
— Não muito. E, depois, ela já sofreu tanto...
O médico ficou em silêncio por um instante. Limpou
cuidadosamente as lentes dos óculos antes de falar:
— De qualquer maneira, não podemos mais ajudá-la. Depois da
morte de seus pais, ela desistiu definitivamente de lutar.
— Ela não tem mais ninguém da família?
— Nem irmãos, nem irmãs — respondeu. — Tem apenas um tio,
que é agora seu tutor legal. Mas ele mal a conhece. É quem paga o
tratamento, com o dinheiro que os pais lhe deixaram.
— A família é rica? — perguntou a enfermeira.
— É. Mas o dinheiro não poderá salvá-la.
— E esse tio, nunca vem vê-la?
— Não — respondeu o médico lentamente. — Ninguém nunca vem
vê-la.
Calaram-se. A enfermeira observou a figura frágil sobre o leito. Não
devia se afeiçoar a ninguém tão próximo do fim. Desviou o olhar.
O Dr. Arnon lhe disse, suavemente:
— Você já deve ter visto muitas histórias tristes. E, acredite, ainda
vai ver muitas mais.
— Eu sei.
— Então, vamos, esqueça isso. Que tal um café?
A enfermeira aquiesceu. Sem um olhar, deixou o quarto e fechou a
porta atrás de si. No quarto, ouvia-se apenas o som dos aparelhos que
mantinham a doente viva.
4 Jade estava magnífica em seu vestido verde-azulado, feito sob
medida no condado de Tyrel. Seus olhos verdes tinham um brilho especial e
um sorriso iluminava seu rosto. Desfilava pelo salão, como uma rainha entre
seus súditos. Todos os olhares concentravam-se nela, a estrela da festa.
Adorava essa sensação. Dançava, conversava com os convidados, ria
despreocupada. A festa parecia ainda melhor do que tinha imaginado. A
comida estava deliciosa, a decoração era suntuosa e o luxo, impressionante.
"Isso é a felicidade", pensava Jade.
Cada minuto que sua mãe ganhava da morte era um pequeno
milagre. Contra todas as expectativas, ela tinha conseguido chegar até ali.
Desde o dia, tão recente, em que Âmbar tinha se debruçado sobre sua
cabeceira, não havia mais dúvidas sobre a proximidade do fim. No entanto,
ela agarrava-se à vida. A menina não saía de perto da mãe. Não dormia nem
comia mais do que um pedaço de pão, quando a fome apertava. Hoje, a
doente parecia ainda pior. Tinha perdido a consciência pela manhã e ainda
não voltara a si. Felizmente respirava, mas com muita dificuldade.
O sol já tinha se posto. Era preciso que sua mãe saísse do terrível
estado de coma. "Ela vai viver. Vai viver", repetia Âmbar com uma convicção
inquebrantável. "Sempre há esperança, sempre! Enquanto estiver
respirando...”.
— Âmbar...
A voz rouca da mãe fez a menina dar um pulo. Tinha saído do
coma.
— Mamãe! Ah, mamãe!
— Vou conseguir, Âmbar. Vou conseguir... Que horas são?
Âmbar respondeu, feliz de vê-la mais lúcida, apesar de seu olhar
cada vez mais vidrado.
— Está bem, filha. Resta-me muito pouco tempo... Terei cumprido
minha missão. Estarei em paz, lá em cima... no céu.
— Mamãe!
— É preciso que você seja forte. Que aceite o seu destino.
— Descanse, mamãe.
— Espero que não tenha esquecido. Você já tem catorze anos.
— Nem me lembrei disso.
— Feliz aniversário.
Desde que Opala descobrira a pedra, tudo em sua vida parecia dar
errado. Tinha perdido o sono e uma febre teimosa abatera-se sobre ela. Nada
contou a Eugênia, nem a Gina, com medo de que elas descobrissem o motivo
da doença. Em segredo, tinha preparado alguns remédios à base de plantas,
mas eles não tinham surtido nenhum efeito. A febre persistia e ela sofria de
náuseas violentas.
Estava com medo de se trair, de deixar escapar que tinha
encontrado a estranha pedra entre as coisas de Gina. "Eu não queria fazer
nada de mal", não cansava de repetir. Desde a descoberta, ela havia se
calado ainda mais, e só falava o estritamente necessário. Estava ainda mais
fechada. "O que terá me acontecido naquele dia?", perguntava ela. "Não
consigo compreender."
— Quer mais um pedaço de bolo? — perguntou Gina,
com um sorriso forçado nos lábios.
Opala estremeceu, arrancada de seus pensamentos.
— Não, obrigada — respondeu friamente.
Opala percebia que sua tia-avó estava tentando desanuviar o
ambiente, mas não conseguia superar o sentimento de culpa. Gina não
conseguia disfarçar seu desagrado diante dos modos da sobrinha-neta. Sua
paciência e diplomacia foram pelos ares e ela elevou o tom da voz, irritada:
— Hoje é seu aniversário! Eugênia e eu estamos tentando fazer o
melhor possível, mas você não ajuda!
— Gina... — tentou intervir Eugênia.
— Ora, me deixe! — continuou Gina, cada vez mais nervosa. —
Opala, será que é pedir demais um sorriso ou um simples agradecimento?
Depois de tudo o que fizemos por você? O que é que você tem no lugar do
coração? Uma pedra?
Opala jogou sobre Gina um olhar incisivo. “Falando de pedras,
você me deve uma explicação", teve vontade de gritar. Mas baixou os olhos e
nada disse.
O duque de Divulyon contemplava Jade com amargura.
“Por quê?", perguntava ele sem cessar. "Por que ela? Por que
agora? Por que tudo isso?" Ele sabia que essas perguntas eram inúteis, que
não mudariam a situação. Sentia-se impotente, incapaz de mudar ou
empreender o que quer que fosse. No entanto, uma voz interior não parava
de lamentar e maldizer aquela profecia. Gostaria de conseguir calar essa voz
tão dolorosa, obrigá-la a silenciar. Mas não conseguia. Só pensava em Jade.
Tristemente, enfiou a mão no bolso de seu casaco e apertou a bolsa de
veludo negro.
Âmbar tinha os olhos vermelhos, os cabelos sujos e embaraçados;
cada um de seus músculos estava tenso; seus lábios, ressecados. Ela mal
percebia e pouco se importava com sua aparência. Precisava velar a mãe.
Seus irmãos e irmãs estavam abrigados em outras casas. Mas ela era a mais
velha e devia permanecer à cabeceira da doente.
O quarto estava iluminado pela débil luz de uma vela. Sua chama
vacilava e ameaçava apagar a todo instante. "Como a felicidade", filosofou.
"Outro dia, eu estava sentada no pasto, toda feliz, e de repente a vida
transformou-se num horrível pesadelo."
— Âmbar... — gemeu a mãe. — Estou me sentindo muito mal.
— Não fale mamãe. Cansa demais. Descanse, durma, já é tarde.
Logo, você se sentirá melhor.
— Sim... quando tudo tiver acabado... quando eu não tiver mais o
que sofrer... quando eu estiver em outro mundo.
— Mamãe, eu suplico, seja corajosa!
— Quase tenho pressa... de partir... de reencontrar meu marido...
de esquecer da dor, da pobreza... da sensação de não ter feito... nada... de
minha vida.
— Nada disso é verdade. Você fez tantas coisas. Olhe só, você me
fez! Sem você, eu não existiria!
— Ah, se você soubesse...
Depois que Gina se acalmou, um silêncio opressivo se instalou no
ambiente. A mesa, todos evitavam se olhar. Eugênia e Gina consultavam
nervosamente o relógio, a intervalos regulares. Opala, normalmente
impassível, não conseguia se conter. Queria se levantar e trancar-se em seu
quarto. Mas continuava sentada, desesperada. A febre fazia sua cabeça
girar. Ao fim de meia-hora, Eugênia pigarreou e disse:
— Está na hora.
Opala a olhou, surpresa.
— Na hora de quê? — perguntou inquieta. Eugênia sorriu
tristemente e respondeu:
— Ainda falta uma hora, mas acho melhor começarmos logo.
— Começar o quê? — perguntou novamente Opala.
Gina limpou discretamente a garganta. Desculpou-se com Opala
por ter se deixado levar pela irritação. Depois, olhou para Eugênia e repetiu:
— Sim. Está na hora.
Em seguida, pegou uma coisa e a depositou sobre a mesa. O
sangue de Opala gelou. Seu rosto empalideceu. Era a bolsa de veludo negro!
"Gina sabe que mexi em sua gaveta e a encontrei", pensou, alarmada. "E
agora quer uma explicação."
Mas, estranhamente, a tia-avó não parecia zangada.
— Essa é uma longa história — disse ela — mas não podemos lhe
contar tudo. O principal, você terá que descobrir sozinha. Não abra essa
bolsa agora. Na verdade, não a abra antes da meia-noite, porque poderá
acontecer alguma coisa muito séria.
Opala escutou, estupefata. Mas, já tendo sentido o poder da pedra,
não duvidou das palavras de sua tia-avó.
— Já está ficando tarde — pensou o duque de Divulyon. Dirigiu-se
a Jade, que conversava com seus convidados.
— Jade — murmurou ele. Ela se voltou, radiante.
— Papai! Ainda não tinha visto você. A festa está perfeita, não está?
O duque de Divulyon sentiu um nó na garganta.
— Sim, a festa foi muito bem organizada — conseguiu articular. —
E você está esplêndida.
Um sorriso voltou a iluminar o rosto de Jade.
— Jade, agora preciso que você deixe seus convidados. Quero falar
com você.
A menina espantou-se.
— Logo agora? Mas é minha festa, papai! Meu aniversário! Seja lá o
que você queira me dizer, não deve ser tão urgente assim!
— É urgente, sim.
Jade não disfarçou sua decepção, nem sua irritação. Afastou-se
dos convidados e seguiu seu pai a contragosto. Ele a conduziu a uma das
salas íntimas do palácio e trancou a porta. Ela sentou-se diante dele,
contrariada. O duque de Divulyon respirou fundo. Era preciso começar, para
que à meia-noite...
— Jade — disse ele — eu não sou seu pai.
A mãe de Âmbar reuniu suas últimas forças e prosseguiu:
— Sei que você não está acreditando em mim... Mas não estou
delirando! Sua verdadeira mãe confiou você a mim no dia de seu nascimento
e pediu para que cuidasse de você até que completasse catorze anos. Âmbar,
eu amei você como meus outros filhos.
A menina não conseguia acreditar. Aquilo era simplesmente
impossível. Mas sua mãe tirou alguma coisa de dentro da roupa: uma bolsa
de veludo negro. Estendeu a mão. Âmbar pegou a bolsa, intrigada.
— Não abra essa bolsa antes da meia-noite. Ela é sua, e seu
conteúdo também. Sua mãe entregou-a a mim juntamente com você.
Âmbar foi tomada por uma sensação de profundo mal-estar.
— Há ainda mais duas meninas — disse Gina gravemente. — São
suas inimigas. Jamais confie nelas. Também foram entregues a outras
famílias no nascimento, para garantir sua segurança.
— Por que segurança? — perguntou Opala. — Que perigo estamos
correndo?
— Você não deve saber — cortou Eugênia. — Ainda não é a hora.
Opala ficou tranqüila. Intuía grandes mudanças para muito em
breve, mas permaneceu impassível. Observou a noite negra e serena. Ela
não tinha medo do amanhã, nem dos dias futuros. Fez apenas uma
pergunta:
— Por que não me contaram nada antes?
Jade pulou da poltrona, com um olhar incrédulo.
— O quê? — exclamou.
Depois gritou:
— Não acredito nisso! Não acredito!
Seu rosto estava rubro e seus olhos brilhavam de raiva. Foram
necessários alguns minutos para que restabelecesse a calma. Uma intuição
a obrigava a levar a situação a sério: seu pai — ou melhor, o duque de
Divulyon, que ela acreditava ser seu pai — não estava mentindo. Ela andava
pela sala a passos largos, uma cólera surda crescendo no peito.
— Estou pouco ligando para essa bolsa de veludo e para essas
duas outras idiotas! Estou pouco ligando que minha mãe tenha me
abandonado quando nasci! E estou pouco ligando para saber o resto dessa
história!
— Jade... — tentava dizer o duque de Divulyon.
— É verdade. Não pedi para você jogar essa história ridícula sobre
a minha cabeça!
— Jade... — interrompeu o duque — ainda não acabei de falar.
— O que é que falta? Outra surpresinha dessas? Se for, eu
dispenso!
— À meia-noite, você deverá encontrar-se com as outras duas
meninas sob uma árvore, no local que indicarei. Você só voltará para casa
depois de ter enfrentado muitas provas. Uma coisa importante: não revele
sua identidade a ninguém e esconda cuidadosamente a bolsa de veludo.
Você encontrará muitos inimigos pelo caminho. Precisa aprender a
reconhecê-los e a desconfiar deles.
—Como? — a garganta da menina estava apertada. — Mas eu não
quero ir embora! Não quero um futuro horrível desses para mim! Quero ficar
aqui! Por favor, papai... quero ficar! — Jade explodiu em soluços.
— Ah, Jade — murmurou o duque de Divulyon. — Eu a amo mais
do que se fosse minha própria filha.
—Agora, você precisa partir. Há algum dinheiro na bolsa. Você se
sairá bem, Âmbar.
— Mas não quero deixá-la, mãe! Você precisa de mim!
— Preste atenção. A árvore fica perto daqui, entre a vila e o castelo
de Divulyon, no meio de um campo onde as flores brotam o ano inteiro, e
que não pertence a ninguém. É um dos últimos lugares encantados do reino.
— Sei onde fica — disse Âmbar, com o coração batendo tão forte e
depressa que chegava a doer.
— É uma árvore alta, com as folhas sempre verdes e frutos sempre
maduros. Ali, você encontrará suas inimigas. Agora, vá. É hora de partir.
Também está chegando a minha hora...
— Não posso ir embora! Você é e sempre será minha mãe. Não vou
abandoná-la. Não agora.
— Seja forte — respondeu sem forças a mãe. Em seguida, fechou
os olhos e sorriu docemente.
— Vou ficar — disse Âmbar, com firmeza. Mas, ao olhar para a
mulher, gritou, desesperada:
— Mamãe! Mamãe!
A enferma parecia dormir tranqüilamente, mas não respirava mais.
Havia deixado esse mundo sem uma palavra, apaziguada, sonhando com a
imagem incerta de um lugar melhor.
— Mamãe — murmurou Âmbar, tomada por uma dor lancinante.
Depositou um beijo sobre a fronte da mulher. Também deveria partir, rumo
ao desconhecido. "Serei forte", prometeu a si mesma. Depois, com o coração
ferido e sofrendo, mergulhou na noite.
5 Sob um céu estrelado, no campo eternamente florido, debaixo da
árvore cujas folhas jamais caíam, elas se viram. Desde o momento em que
tinham se encontrado, poucos instantes atrás, ainda não tinham trocado
uma palavra. Observaram-se mutuamente, com o mesmo pensamento no
espírito: somos inimigas. Jade olhava as meninas com desdém. A cabeça
erguida, o olhar orgulhoso, mostrava ostensivamente que pouco se
importava com elas. "Uma camponesa e uma pequeno-burguesa, grande
coisa", ironizava. No fundo, estava confusa, mas decidida a não deixar que
isso transparecesse. Observou Âmbar que, desfigurada, chorava em silêncio.
"Coitada, chega a dar pena!", pensou. Reparou nas roupas grosseiras, no
rosto sujo e no cabelo enlameado da menina. Embora tivessem lhe dito que
era sua inimiga, não conseguia sentir ódio dela. Em seguida, seu olhar
dirigiu-se a Opala. Sentiu seus músculos enrijecerem. "Essa não faz mesmo
o meu tipo. Somos e seremos inimigas! Mas por que me olha desse jeito? Ela
me deixa nervosa! Sim, me deixa nervosa!"
De fato, Opala fixava em Jade seu olhar ausente. Como de hábito,
não costumava emitir opiniões apressadas. Mas viu logo que ela e a menina
com arzinho superior não tinham sido feitas para se entenderem.
Âmbar estava perturbada demais pela morte da mãe para pensar
claramente. Tentava, sem sucesso, conter as lágrimas. Lançou alguns
olhares distraídos às duas inimigas, mas, deprimida demais para pensar,
contentou-se em observá-las, sem fazer julgamentos. Pedaços soltos de
frases vinham à sua memória e ela via-se novamente ao lado da mãe: "Duas
outras meninas... suas inimigas... um campo... dizem que é encantado... a
bolsa... só depois da meia-noite...”.
Um detalhe tirou Âmbar de seus devaneios. Esforçou-se para
reprimir a dor que oprimia seu peito e repetiu as últimas palavras de sua
mãe: "Seja forte. Seja forte!" Era preciso lutar contra o sofrimento, era
preciso voltar ao presente. Então, ela enxugou as lágrimas e rompeu o
silêncio:
— A bolsa de veludo negro! Alguém sabe as horas?
Jade e Opala, surpresas de que Âmbar tivesse mencionado uma
bolsa, a olharam com curiosidade. Embora não pudessem confessar,
estavam felizes por alguém ter tomado a palavra.
— Alguém sabe que horas são? — repetiu Âmbar. Jade consultou
seu relógio, cuja pulseira cravejada de brilhantes exibia com orgulho.
— É meia-noite e dez — respondeu com um tom agudo. Âmbar
olhou para Jade. Não invejava sua elegância, suas jóias nem seu olhar
ardente, mas, mesmo sem querer, admirava a força que se desprendia dela.
Em seguida, seu olhar pousou sobre Opala. Imóvel, o rosto desprovido de
emoção, ela tinha um sangue frio que, naquela situação, deixou Âmbar
impressionada.
— Meu nome é Âmbar. Perguntei as horas porque minha mãe me
deu uma bolsa de veludo negro que só poderia ser aberta depois da meia-
noite.
— Eu também! — exclamou Jade. — Mas, no meu caso, foi o
duque de Divulyon, que foi meu pai por catorze anos — mas não é mais —
que me deu a bolsa.
— Verdade? — espantou-se Âmbar. — Minha mãe também não era
minha mãe verdadeira. Mas, para mim, ela será sempre minha mãe. Além
disso, ela acabou de morrer...
Novamente tomada pela emoção, Âmbar calou-se. Opala, que até
então tinha se mantido em silêncio, disse com uma doçura que não era
comum nela:
— Lamento muito, Âmbar. Deve ser muito duro passar por tudo
isso no mesmo dia.
— Sim — concordou Âmbar, um pouco confortada por escutar uma
palavra amiga. — E você, também ganhou uma bolsa?
Opala balançou a cabeça, mostrando que sim.
— Temos isso em comum, nós três. Aliás, meu nome é Opala. Em
seguida, com a voz endurecida, completou: — Embora eu não saiba porquê,
nós somos inimigas.
— Totalmente — acrescentou Jade, olhando para Opala com
agressividade.
— Não consigo acreditar — disse Âmbar. — Não faz sentido sermos
inimigas sem nem mesmo nos conhecermos. Sinceramente, nada nos obriga
a isso!
— Mas somos — insistiu Jade. — Meu suposto pai, o duque de
Divulyon, não mente jamais. E se ele disse que somos inimigas, é porque
somos mesmo.
— Seu pai adotivo é o duque de Divulyon? — perguntou Âmbar.
— Sim. Até esta noite, eu era Jade de Divulyon. Agora, não sei
mais. Além de não saber nada sobre minha família, parece que não devo
dizer meu nome por aí, porque existem mil inimigos ocultos etc. etc.
— Me disseram a mesma coisa — confiou Âmbar.
— A mim também — confirmou Opala.
— E agora? O que vai acontecer? Não sei para onde devo ir, não sei
o que tenho que fazer! Além disso, também não sei por que estou junto com
vocês duas. Alguém sabe o que estamos fazendo aqui?
— Não — responderam ao mesmo tempo Opala e Âmbar.
— Estamos bem! — observou Jade. — E por que eu disse
"estamos"? Vocês são minhas inimigas, não são? Então, não tem essa
história de "nós". Por que é que temos que ficar juntas?
— Porque somos mais fortes juntas do que separadas. E ainda
mais se temos inimigos em comum — respondeu Âmbar. — Em princípio,
são eles que representam o maior perigo, não são? Quanto a mim, não
desejo nenhum mal a vocês duas. Nem mesmo sei quem vocês são.
— Vamos abrir as bolsas? — interrompeu Jade. — Talvez tenha
alguma coisa importante dentro delas.
— Boa idéia — concordou Âmbar.
— Ainda assim, somos inimigas — lembrou Opala.
Seu comentário não encontrou eco. Âmbar e Jade estavam
ocupadas abrindo suas bolsas de veludo. Opala fez o mesmo, com um desejo
incontido de rever a pedra.
Âmbar reprimiu um grito ao descobrir uma pedra com as cores do
outono, de um alaranjado-escuro e translúcido, puxando para o vermelho e
para o marrom. Parecia um pôr-do-sol. Foi invadida por uma sensação
apaziguadora. Embora seu sofrimento não se dissipasse, foi ligeiramente
atenuado, dando lugar a um suave calor. Fechou a mão. Podia sentir
claramente que aquilo não era uma simples pedra.
No mesmo momento, Jade tinha, na palma da mão, uma pedra de
um verde profundo, puro e intenso. "É de jade...", murmurou. Seu tom era
tão suntuoso, tão surpreendente, que ela permaneceu um bom tempo
admirando a pedra. Depois, sem saber bem por que, apertou-a na mão.
Nesse meio tempo, Opala examinava a pedra que havia provocado
sua febre. Antes, não tinha percebido seus reflexos azulados, nacarados, que
davam ao verde pálido um brilho complexo e fascinante, como se a pedra
estivesse salpicada de lantejoulas. Instintivamente, apertou-a na mão.
As três meninas sentiam que, pouco a pouco, a angústia as
abandonava. Seus corpos relaxavam e todos os seus pensamentos
tornavam-se agradáveis. Esqueceram que estavam no meio daquele campo,
que tinham sido arrancadas de casa, e que era noite fechada. Esqueceram
tudo e uma nova sensação de liberdade apoderou-se delas. Fecharam os
olhos ao mesmo tempo. Um laço formou-se entre suas almas. Suas pedras
pareciam comunicar-se, misturar-se, confundir-se... E a mesma coisa
acontecia com elas: eram uma só e um milhão, ao mesmo tempo. Pouco
importava: formavam um todo, um conjunto indestrutível. Pouco a pouco,
uma imagem surgiu em seus espíritos, uma imagem complexa e
desconhecida. Flutuou por longos minutos, o tempo suficiente para
impregnar suas memórias, depois se esfumou e desapareceu.
Âmbar, Jade e Opala saíram suavemente do estado em que
estavam mergulhadas. Não havia dúvida: deveriam seguir aquele desenho,
aquele símbolo estranho, cheio de espirais, curvas e arabescos. Ao mostrar a
imagem, as pedras tinham mostrado a elas o que fazer. Entreolharam-se
com um novo ânimo, quase amigável. Com a voz ainda distante, Âmbar
disse:
— Não são pedras. São outra coisa. Uma ajuda. Tenho certeza
disso. E vocês?
— Eu também — concordou Jade. — Agora, já sabemos o que
fazer. Temos que compreender e seguir este símbolo.
— Já é tarde — interrompeu Opala. — Amanhã, veremos o que
fazer. Agora, precisamos encontrar um lugar para dormir.
— Aqui mesmo — propôs Âmbar.
— Como aqui? — indignou-se Jade. — Preciso de uma mansão, de
um belo quarto e uma cama bem macia.
— Jade — disse Âmbar, suavemente. — Já é muito tarde. Quer que
caminhemos horas a fio até a próxima mansão, para chegar na porta e dizer:
"Alô, chegamos! São três horas da manhã e adoraríamos dormir aqui. Claro
que não poderemos dizer nossos nomes, nem dar nenhuma informação a
nosso respeito porque vocês podem ser nossos inimigos. Mas não tem
importância, não é mesmo? Afinal, chegar na casa dos outros no meio da
madrugada e pedir para dormir ali é uma coisa tão normal!"
Jade lançou um olhar raivoso em direção a Âmbar.
— Pois eu não vou dormir aqui — disse, destacando
cuidadosamente cada sílaba. Procurou alguns argumentos convincentes. —
Se nos disseram para partir, para prestar atenção a inimigos desconhecidos,
então deve haver algum perigo aqui.
— Não necessariamente — objetou Opala.
— Claro que sim! — insistiu Jade. — Não podemos voltar atrás e
muito menos ficar aqui. E preciso descobrir o que significa aquele símbolo o
mais depressa possível.
Na dúvida, Âmbar refletiu uns instantes. Depois disse:
— Conheço uma pequena fazenda isolada, a cerca de uma hora
daqui. Lá mora somente uma velha, com suas galinhas e gatos. Poderíamos
dormir no estábulo. Ela nem vai perceber. E estaremos em segurança.
— Um estábulo! Era só o que faltava! — protestou Jade
veementemente. — Meu vestido vai ficar todo amarrotado. E, depois, não
será num estábulo que encontraremos o significado do símbolo.
— Por que não? A fazendeira me conhece. Embora ela não dê
confiança a ninguém, sei que responderá às minhas perguntas. Assim que
amanhecer, vou vê-la como se fosse uma simples visita.
— E falar sobre nós? Nem pensar! — interrompeu Jade.
— Claro que não. Vou fazer de conta que acabei de chegar e não
falarei de vocês. Direi que minha mãe faleceu e me mostrou o símbolo antes
de morrer. Desenharei o símbolo e perguntarei se ela o conhece.
— Em resumo: vai fazê-la engolir uma bela mentira! — exultou
Jade. — Não é má idéia. Mas e se depois a velha falar. E se nossos inimigos
descobrem que estamos procurando o símbolo? Ou, pior, e se a velha for
nossa inimiga?
— Não há perigo — garantiu Âmbar. — Ela já está meio caduca e
vive afastada do mundo. Bom, estamos perdendo tempo. Vamos?
— Não, não e não! — Jade bateu os pés furiosamente.
— Não quero! Isso está fora de questão. Está vendo bem minhas
jóias? Minhas roupas? Pense um pouco! Não sou camponesa para dormir
num estábulo.
— Nós vamos — decidiu Âmbar.
— Não! — teimou Jade. Detestava que a contrariassem.
— O que você acha, Opala? — perguntou Âmbar. Opala que se
mantinha fora da discussão, como sempre, respondeu:
— Também acho que devemos ir. E se a Senhorita Jade
Mimadinha não quiser vir, pode ficar por aqui mesmo.
— Não sou mimada! — gritou Jade, mais furiosa ainda. — Só
para provar que não sou, vou com vocês — disse sem refletir.
Mordeu os lábios de raiva por ter cedido à vontade das outras. E
iria dormir num estábulo! Mas seu orgulho a impedia de voltar atrás. Viu
quando Opala ergueu os olhos para o céu:
— Mudou de idéia finalmente? Estou vendo o que nos
espera!
Jade fulminou-a com o olhar, incapaz de encontrar uma resposta
arrasadora. Âmbar colocou-se entre as duas.
— Parem com isso — ordenou com firmeza. — Está na hora de
partir.
Jade e Opala acompanharam Âmbar sem protestar. Caminhavam
depressa, preocupadas com o adiantado da hora. Ninguém dizia nada, cada
uma perdida em seus próprios pensamentos. Jade pensava num meio de
humilhar Opala. Aquela burguesinha, como ousava bancar a superior com
ela? Era intolerável! Um ódio surdo vibrava em sua alma e fazia seu corpo
estremecer. Além disso, ela teria que se rebaixar e dormir numa fazenda.
Tinha vontade de gritar, de dar uns tapas em Opala, mas a noite já estava
escura demais, e seu futuro, muito incerto.
Opala, por sua vez, pensava no símbolo que precisavam
compreender, nos inimigos escondidos nas sombras e nos dias que viriam.
Sentia que alguma coisa despertava dentro de si: estava interessada em sua
nova existência. Tinha se livrado de um peso. Deixar a casa das tias-avós era
como sair de uma prisão... confortável, mas ainda assim prisão. Por muito
tempo, se sentira acorrentada a um cotidiano banal, à certeza de que jamais
aconteceria nada de novo em sua vida. Agora, a liberdade lhe apresentava
uma nova vida. Descobriria o mundo, conheceria um perigo que sabia
próximo. Não estava excitada, nem assustada. Estava curiosa: finalmente
saberia o que significa "viver".
Quanto a Âmbar, só pensava na mãe. Revia seu sorriso protetor e
escutava sua voz apaziguadora, seu riso aberto. Relembrava momentos de
carinho. O rosto simples da mãe, marcado por tanto sofrimento e tão poucas
alegrias, voltava à sua memória como um símbolo. Sua mãe tinha perdido o
marido, levado por uma doença fulminante, e nunca se recuperara do golpe.
Âmbar também teve que superar essa perda, mas para ela foi mais fácil:
jamais havia realmente amado aquele pai rude e brutal, que nunca tinha se
preocupado com ela. Além disso, era muito pequena quando ele morreu, não
compreendeu direito o que tinha acontecido. Hoje, no entanto, tudo estava
muito claro, definido, e ela devia suportar aquela dor atroz. Lágrimas
rolaram sobre seu rosto.
"Seja forte. Seja forte..." As palavras da mãe ecoavam dentro dela.
"Jade e Opala têm mais personalidade do que eu, pensava. “Elas são
naturalmente fortes, enquanto eu tenho que me obrigar a ser assim”. É
preciso que eu lute. Se me convencer de que posso superar tudo isso, talvez
consiga mesmo." Com essas conclusões, Âmbar acelerou o passo. A fazenda
não estava longe. As três meninas atravessaram vastas planícies, campos,
prados verdejantes e algumas colinas não muito altas. Atrás de uma dessas
colinas, isolada de tudo, surgiu a fazenda semi-abandonada.
— Venham — sussurrou Âmbar.
Entraram no estábulo escuro e agora sem uso, quase em ruínas.
As vigas estavam partidas, teias de aranha tinham invadido todos os cantos
e um cheiro horrível se desprendia da palha. Âmbar não pareceu incomodar-
se. Deitou-se no chão e bocejou:
— Boa-noite!
Opala hesitou um pouco, mas depois deitou-se a seu lado. Jade,
horrorizada com o lugar, decidiu permanecer onde estava.
— Não vou dormir — disse bem alto. — Não vou dormir.
Como suas palavras não provocaram nenhuma reação, continuou:
— Não faz mal, não se preocupem comigo! Vou ficar de pé mesmo.
Garanto que não tem problema.
Nenhuma resposta. De repente, teve uma idéia brilhante.
Aproximou-se de Âmbar, que já estava de olhos fechados, e a sacudiu
vigorosamente. Assustada, Âmbar mal conteve um grito. Percebendo o rosto
de Jade sobre o seu, perguntou o que estava acontecendo.
— Me dê sua roupa — respondeu Jade.
— Como? Pode repetir o que disse?
— Temos que trocar nossas roupas!
— Que idéia é essa? — resmungou Opala.
— Não pedi sua opinião — retrucou secamente Jade. Voltou-se
para Âmbar e falou, apressada:
— Rápido. Tenho um plano. Me dê sua roupa e eu empresto a
minha. Mas tome cuidado. Não pode estragar, nem sujar, nem amarrotar.
— Senão será o fim do mundo — suspirou ironicamente Opala.
— Exatamente! — respondeu Jade no mesmo tom. — Depressa,
Âmbar!
— Já que você insiste — ponderou Âmbar. — Mas gostaria de
saber o motivo da troca.
— Coisa sem importância — garantiu Jade.
Mas, de repente, como se tivesse sido tomada por uma nova idéia,
Jade completou:
— Deixa prá lá. Vou ficar assim mesmo.
— Mas... — balbuciou Âmbar, que não sabia mais o que fazer.
— Até amanhã! — disse Jade alegremente.
— Até amanhã? — repetiu Âmbar, atordoada. — Espere, Jade!
Mas Jade não a escutava mais. Já tinha escapulido para fora do
estábulo.
6 Com passos firmes, Jade dirigiu-se à entrada da fazenda.
Atravessou o jardim abandonado, onde o mato e as urtigas cresciam
desordenadamente. Viu-se diante de uma porta de madeira, meio bamba e,
sem hesitar, começou a bater.
— Abra a porta! — gritou.
Era preciso acordar a dona da fazenda e Jade bateu com mais
força. Continuou esmurrando a porta por mais uns minutos. Finalmente,
quando percebeu que ninguém aparecia e que a mulher continuava
dormindo, resolveu mudar de estratégia. Deu um grito tão agudo e intenso
que Âmbar e Opala puderam ouvi-lo do estábulo. As meninas se
entreolharam, atordoadas. O que Jade estaria tentando fazer? Os gritos
cessaram por alguns instantes, mas depois voltaram, com o dobro da
intensidade. Desse jeito, a velha ia acabar acordando.
E foi o que aconteceu. Ainda meio adormecida, e muito irritada, a
velha abriu a porta. Viu a moça, extraordinariamente elegante, coberta de
jóias dos pés à cabeça.
— Acho que ainda estou sonhando — murmurou a mulher. Mas a
voz de Jade era bem real:
— Boa noite. Meu nome é Jade e gostaria de dormir aqui. O
estábulo é desconfortável demais e não me agrada adormecer ao ar livre.
Como pode imaginar, não faz o meu gênero.
Estarrecida, a velha franziu os olhos. Jade prosseguiu:
— Estou habituada ao luxo, mas uma cama seria suficiente. Já
que perdi meu palácio, tenho que me adaptar. Agora, por favor, mostre o
meu quarto porque estou realmente cansada.
A velha bateu a porta. "Essa menina é maluca", pensou. Mas Jade,
que era teimosa, voltou a bater na porta com toda a força e a gritar:
— Abra!
Embora meio desconfiada, a fazendeira estava curiosa e entreabriu
a porta. Jade a olhou nos olhos, muito séria. Calmamente, continuou:
— Eu tinha pensado em vestir roupas de camponesa e fingir que
era uma pobre menina em fuga. Tenho certeza de que a senhora teria me
acolhido. Mas preferi dizer a verdade e, agora, a senhora não quer me
receber. Estou fugindo, é verdade, e embora não pareça ser pobre, já faz
mais de uma hora que deixei de ser rica.
Novamente, a velha bateu a porta. Não costumava dar abrigo a
ninguém, e aquela menina era tão esquisita! Mas não era mentirosa. Sua voz
tinha um tom verdadeiro e sua expressão era totalmente sincera. A mulher
abriu a porta pela terceira vez.
— Por que você fugiu? — perguntou com a voz autoritária.
— Não foi por minha vontade! Fui obrigada e, ainda agora, não
compreendo o motivo. Se não fosse por isso, a senhora acha que eu viria
pedir abrigo numa fazenda tão miserável quanto a sua? E nem pense em
bater novamente a porta na minha cara. Não é nem um pouco educado e me
deixa nervosa. Seja como for, mesmo que a senhora não me deixe entrar,
não sairei daqui.
A velha ficou abalada com o olhar decidido de Jade. Aquela menina
tinha alguma coisa rara e forte.
— Está bem — disse a velha. — Venha comigo.
Jade reprimiu um sorriso vitorioso. A mulher a conduziu por um
corredor estreito e a fez entrar em um quarto minúsculo, modestamente
mobiliado, mas fresco e agradável.
— Era o quarto de meu filho — disse a mulher, nostalgicamente.
— Serve — respondeu Jade.
— De qualquer modo, é o único quarto além do meu.
— Está certo. Mas, como pode imaginar, preciso de uma camisola
para dormir.
— Lamento, mas isso aqui não é um hotel — resmungou a mulher.
Saiu do quarto sem dizer mais nada. Mas, ao fim de alguns
minutos, voltou com uma camisola branca, amarelada pelo tempo, feita de
tecido barato. Jade a pegou.
— Não é nenhum palácio, mas também não é um estábulo —
declarou, à guisa de agradecimento.
— Por hoje, pode ficar — disse a mulher mal-humorada. — Mas
amanhã você vai embora.
— Oh, só se eu quiser partir. Mas não se preocupe, não poderei
mesmo ficar.
— Melhor assim! Agora durma e me deixe em paz. Você não é
nenhuma rainha para interromper o sono de pessoas honestas no meio da
noite.
— Desculpe, mas fui obrigada a fazer isso. A senhora sabe que
aquele seu estábulo é simplesmente nojento!
A velha esboçou um sorriso fugaz e hesitante. Há muito tempo que
ela tinha esquecido como se sorria. Por anos a fio, tinha vivido totalmente
isolada, na vã esperança de que as desgraças que tinham se abatido sobre
sua vida terminassem. Acabou mergulhando na amargura. Agora, tinha
aparecido alguém. Mesmo que não passasse de uma menina mimada,
autoritária e provavelmente maluca, a companhia servia para tirá-la um
pouco do torpor.
Afastou-se, arrastando os pés, sem dizer mais nada. Voltou para
seu quarto e logo adormeceu, com um sentimento de satisfação guardado no
fundo do coração.
Jade vestiu a camisola com uma careta de desagrado: ficava
grande demais nela, mas era mais quente e menos áspera do que parecia à
primeira vista. A menina enfiou-se na cama. Ainda queria continuar
acordada para pensar em tudo o que tinha acontecido, mas suas pálpebras
fecharam sem que ela nem percebesse.
O galo cantou pela manhã. A luz do sol inundou o quarto onde
Jade dormia. A menina custou a acordar, tinha dormido tarde demais.
Assim que abriu os olhos, já descansada, seu primeiro pensamento foi para
o símbolo, como se tivesse sonhado com ele. Levantou-se de um pulo e
vestiu-se rapidamente. Tinha trazido consigo uma pequena bolsa azul-
turquesa, fácil de carregar e indispensável. Tirou dali uma escova e penteou-
se cuidadosamente. Depois, pegou a bolsinha de veludo negro e tirou a
pedra. Fechou-a na mão, pensando: "Diga o que devo fazer."
Mas nada aconteceu, a pedra continuou sendo um simples jade.
Devolveu-a ao seu lugar, decepcionada. "Sei muito bem o que devo fazer",
disse. "Não preciso desse troço para me ajudar."
Lançou um olhar ao quarto à sua volta. Alguns livros empoeirados
estavam arrumados sobre uma prateleira. As paredes, de um branco
duvidoso, não tinham enfeites. Uma escrivaninha de madeira estava
encostada perto da cama. Jade aproximou-se dela. Não havia nada sobre a
tampa, mas as gavetas estavam abarrotadas de cartas. Tentou ler algumas
delas, mas não conseguia decifrar a letra, emaranhada, que a tinta
desbotada tornava ilegível. Suspirou e colocou as cartas de volta no lugar.
Decidiu que a inspeção do quarto estava concluída. Ali, não havia nada que
pudesse interessá-la. Seguindo a voz da velha, que conversava com seus
gatos, chegou à cozinha, que servia também de sala de visitas e de jantar.
— Até que enfim — disse acidamente a mulher ao ver Jade. —
Sente-se aí.
Jade sentou-se à mesa retangular, feita de madeira sólida e
irregular. Disse:
— Estou com fome. Dê-me qualquer coisa de comer e partirei em
seguida.
A mulher colocou um grande pedaço de pão preto e duro diante
dela.
— O que é isso? — protestou Jade, afastando o pão com uma
careta de nojo. — Quero alguma coisa que preste. Vou logo avisando, não
vou sair daqui sem que a senhora tenha me servido um café da manhã
decente.
— Então não basta vir perturbar o meu sossego?! Ainda faz
exigências! — respondeu a dona da fazenda.
— Claro! Agora, ande! Traga logo alguns ovos, um pedaço de pão
fresco, geléia, leite e chocolate!
— Só isso?
— Não, a senhora tem razão: providencie também uma cesta com
comida suficiente para alguns dias. Lembre-se, sou uma fugitiva, preciso me
organizar para sobreviver. Não quero morrer de fome. Se isso acontecer, será
culpa sua, porque não me ajudou! Agora, vamos, depressa!
— Mas... — gaguejou a velha.
— E já que a senhora ainda está aí parada, aproveite e me traga
papel e caneta.
— Para quê?
— Quer mesmo carregar minha morte em sua consciência? —
perguntou Jade, com um tom falsamente dramático.
A velha compreendeu que de nada adiantaria discutir e curvou-se
às vontades da menina. Serviu um café da manhã reforçado. Em seguida,
preparou refeições frias, variadas e nutritivas, e colocou-as dentro de uma
cesta. Jade a observava trabalhar enquanto comia com apetite. Quando a
anfitriã acabou de providenciar seus pedidos, a menina sorriu e lembrou que
ainda faltava o papel e a caneta. Tinha devorado toda a comida que estava
sobre a mesa e, agora, saciada, só pensava no símbolo e em seu significado.
A velha arrumou a mesa e lhe deu material para escrever. Jade desenhou o
símbolo com a mão firme.
— O que é que você está fazendo? — perguntou a dona da fazenda.
— Você nunca está satisfeita, sempre quer alguma coisa mais? Não posso
fazer mais nada por você.
— Tudo bem — disse Jade. — Mas venha cá, quero mostrar-lhe
uma coisa. Me diga o que sabe sobre esse símbolo.
A velha observou o desenho demoradamente e, depois, balançou a
cabeça.
— Não tenho a menor idéia. Infelizmente, não posso ajudá-la.
— Não tente me esconder nada — respondeu Jade, com um tom
persuasivo. — Preciso descobrir o que significa este símbolo, de qualquer
maneira.
— Nunca o vi antes.
— Tem certeza absoluta?
— Não estou muito segura, mas conheço alguém que saberá
decifrá-lo. Ele mora em um lugarejo que fica a poucas horas daqui, chamado
Nathyrnn.
— Já ouvi falar — disse Jade cora firmeza — mas nunca fui lá.
Quem é esse homem?
— É um vendedor de livros antigos. Um homem muito viajado,
mas...
A velha calou-se. Sem perceber seu embaraço, Jade perguntou:
— A senhora conhece bem esse homem? É honesto? Posso confiar
nele?
— É meu filho — confessou a velha, com a voz embargada.
— Sei. E por que falar de seu filho a faz chorar? De fato, uma
lágrima escorria pelo rosto da mulher.
— Não posso falar.
— Não escondi meu nome da senhora, nem omiti que estou
fugindo. Agora, é sua vez de confiar em mim. A senhora já deve ter percebido
que não sou de desistir facilmente. Vou fazê-la falar, porque sou muito
curiosa.
— Meu filho tem muitos inimigos. Você pode ser um deles.
— Não se preocupe com isso. Também tenho uma boa coleção de
inimigos. Parece que estão em toda a parte. No entanto, não os conheço.
Também, hoje em dia, o que posso querer? — disse Jade com um tom
irônico e casual.
— Já vi que vou ter que contar tudo ou nunca me livra
rei de você! — suspirou a velha.
— Pode ter certeza disso — confirmou a menina.
— Meu filho era uma pessoa excepcional. Desde muito pequeno,
queria estudar. Amava a natureza e tinha um grande coração, como aliás
tem até hoje...
— Pode me poupar dessas explicações. Me conte o que ele tinha de
tão excepcional.
— Éramos muito pobres, muito mais do que hoje — começou a
velha. — Com dezesseis anos, ele partiu para descobrir o mundo. Precisava
de liberdade e de aventura. Foi embora, uma noite, deixando uma carta de
despedida.
— Só uma pergunta — interrompeu Jade. — Como se chama seu
filho?
— Jean. Jean Losserand. Jean, então, virou andarilho. Percorreu o
mundo, solitário e corajoso. Sempre me escrevia. Um dia, ele chegou a um
país estranho, o único país do mundo que não é dominado pelo Conselho
dos Doze.
— Dominado! — exclamou Jade. — Que exagero! Melhor dizer
governado, não?
— O único país do mundo que não é dominado pelo Conselho dos
Doze — teimou a mulher. — Sob o Conselho dos Doze, quem nascer
camponês será camponês a vida inteira. Quem for fraco será desprezado e
esmagado. Quem pensar diferente será obrigado a entrar para o rebanho.
Quem tentar sair do rebanho será pisado e rejeitado. Quem desejar criar
algo novo deverá se contentar em reproduzir o que já existe. Quem tiver um
dom será forçado a tornar-se medíocre. Quem se rebelar será morto. Quem
sonhar com a liberdade será aprisionado. Quem...
— Chega! — gritou Jade. — Isso tudo é um absurdo. Além do mais,
se ninguém pode ser livre, como seu filho é um andarilho?
— Deixe-me prosseguir. Como eu dizia, Jean chegou a esse país
tão diferente. Esse lugar não é governado por ninguém e, segundo ele me
escreveu, cada um pode viver como bem entender. No entanto, poucas
pessoas conseguem atravessar o campo magnético que cerca o território.
Para atravessá-lo, é preciso acreditar na beleza de cada ser, na criatividade,
na liberdade. E preciso acreditar num mundo melhor, na magia de cada
instante e nos sonhos inverossímeis. E preciso poder imaginar o
inimaginável. E preciso acreditar no impossível. Só assim se consegue
penetrar nesse país. E é por isso que ele é inacessível para o Conselho dos
Doze.
— O que é que tem nesse país? Como ele se chama?
— Esse país chama-se Conto de Fadas. Lá, vivem criaturas
mágicas, pessoas afetuosas... Mas não sei dizer exatamente o que existe lá,
porque nunca estive nesse lugar. Isso, você terá que perguntar para meu
filho. Só sei de tudo o que contei por causa das cartas. Ele disse que
qualquer criança pode entrar no país, porque o que é irreal para os adultos é
normal para elas.
— E o que o seu filho fez lá?
— O que ele fez? Ele ajudou pessoas, viveu aventuras incríveis...
Arriscou a própria vida, combateu forças maléficas...
— Isso parece uma história! — disse Jade, incrédula.
— Nada é espantoso em Conto de Fadas. Mas meu filho,
subitamente atacado de saudades, recusou toda a glória e a felicidade que
existiam lá e resolveu voltar para casa. Quase ninguém faz uma coisa
dessas. Alguns deixam de acreditar no que vêem à sua volta, então, um dia,
acordam em sua antiga cama. Não podem mais voltar a Conto de Fadas. Mas
com Jean foi diferente. Ele queria apenas rever a casa onde tinha passado a
infância. Nesse meio tempo, o Conselho dos Doze havia criado uma nova lei,
que proibia andarilhos. Jean foi preso pelos cavaleiros da Ordem e passou
três longos anos na prisão. Depois, foi obrigado a procurar um emprego.
Como a única coisa que o fazia viajar eram os livros, tornou-se vendedor de
obras antigas. Ele sempre me escrevia. Mas, há dez anos, o Conselho dos
Doze proibiu as cartas, e nunca mais tive notícias dele. Ele não pode deixar
a vila de Nathyrnn, onde vive vigiado.
— Eu poderia lhe dar uma jóia muito valiosa como agradecimento
pela hospedagem — disse Jade. — Mas vou fazer melhor: mesmo se demorar
algum tempo, trarei notícias de seu filho.
7 As três meninas continuaram a atravessar o ducado de Divulyon.
Contornavam as aldeias e evitavam as terras onde os camponeses
trabalhavam. Precisavam passar despercebidas. Nathyrnn ainda estava
longe. Âmbar carregava a cesta de mantimentos trazida por Jade. Tinha
passado a noite inteira inquieta. Ela e Opala se perguntavam o tempo todo o
que Jade estaria fazendo. Âmbar, com sua natureza sonhadora, tinha
imaginado mil possibilidades. Estremecia só de pensar nas conseqüências
dos atos que Jade podia ter cometido. Opala mantinha sua calma habitual.
Só vivia o momento presente, não parava para olhar o passado, mas também
não temia o futuro. Jade podia fazer o que quisesse, não adiantava se
preocupar de antemão.
Aos poucos, a conversa começava a fluir. Âmbar falava sem
reservas e com entusiasmo sobre a vida que deixara para trás. Reconstituía
seu cotidiano para Opala, que se espantava com o amor que Âmbar
demonstrava por tudo e por todos. Âmbar contou como observava a Lua e as
estrelas, como aspirava o perfume de cada flor do campo, como corria
descalça pela relva fresca e como nadava na água límpida do lago. Contou
também como gostava do sol, de imaginar histórias fantásticas, de ajudar os
outros, e de ler histórias que, mesmo proibidas, podiam ser encontradas na
casa de um homem generoso e culto que ela conhecia. Contou várias outras
coisas. Opala bebia suas palavras. Embora tivesse vivido na mais profunda
pobreza, Âmbar tinha sido feliz. Ela falara de seus sofrimentos, mas eles
pareciam apenas ter tornado sua felicidade ainda mais rara. Depois, veio a
morte de sua mãe... Âmbar não falou dessa dor, ainda não estava pronta
para isso. Mas agradeceu a Opala por tê-la escutado e percebeu que,
dividindo sua história com ela, haviam criado um laço entre elas, mesmo que
ainda frágil.
Agora que caminhavam rumo a Nathyrnn, Âmbar observava Opala.
Tinha certeza de que a menina não era tão insensível quanto parecia. Na
noite anterior, Opala tivera um pesadelo. Âmbar havia acordado e vira um
olhar apavorado no rosto da companheira, como se ela precisasse de ajuda.
Opala estava sonhando com um perigo muito próximo, com rostos
sombrios e ameaçadores. Febril, murmurava:
— Estão muito próximos. E sabem de tudo por mim. Eu jamais
deveria ter entrado naquele quarto. Agora é tarde demais.
Âmbar acalmou-a, com sua voz apaziguadora. Logo, as duas
voltaram a adormecer.
— Ainda está muito longe? — Âmbar perguntou a Jade, com a voz
queixosa.
— Sim — respondeu Jade secamente. — Já disse três vezes que
precisamos ir a Nathyrnn procurar Jean Losserand, conversar com ele sobre
o símbolo e pedir que nos fale sobre sua viagem a Conto de Fadas.
— Não acredito em histórias, nem nesse país mágico - interrompeu
Opala. — O Conselho dos Doze proibiu as histórias. Nunca li nenhuma e
nem me fizeram falta.
— Eu acredito! — disse Âmbar, enfaticamente. — Sempre inventei
histórias e gosto muito de contá-las. Adoraria conhecer Conto de Fadas. E
você, Jade?
— Claro que já li histórias! Em meu castelo havia um velho filósofo
chamado Theodon. Ele obedecia ao Conselho dos Doze à sua maneira e acho
que ele não tinha muito medo deles. Foi ele quem me deu as histórias para
ler e também me ensinou muitas outras coisas.
— Você aprendeu muitas coisas? — debochou Opala. — Nem
parece.
Jade preparou-se para responder, mas Âmbar foi mais rápida.
— Sosseguem as duas! Não vamos brigar como crianças toda vez
que começamos a conversar! Jade, você não tinha acabado de falar. Afinal,
você acredita nesse país, na magia, no irreal?
— Adoraria acreditar — respondeu Jade depois de uma pequena
pausa. — Estou certa de que esse país existe. Mas quem mora lá? Será que é
mesmo um lugar mágico ou apenas uma lenda? Primeiro, quero ver o que
Jean Losserand tem a dizer. Talvez eu fique realmente convencida depois
disso.
Como ninguém tinha mais nada a dizer, a conversa acabou. Um
silêncio obstinado voltou a instalar-se.
Jade tentava imaginar Nathyrnn e Jean Losserand, mas não
conseguia. Pôs-se a pensar nas perguntas que faria ao velho andarilho.
Ardia de impaciência. A caminhada, longa demais para seu gosto, a irritava.
Âmbar lembrava do que acontecera naquela manhã. Estava
morrendo de preocupação por causa do sumiço de Jade, quando a menina
apareceu, trazendo um cesto transbordante de alimentos e um sorriso
desconcertante.
— Vamos para Nathyrnn — disse ela.
Âmbar cobriu a menina de perguntas. Jade contou toda a história.
Opala escutou tudo sem se espantar, mas Âmbar não conteve a surpresa: a
velha que ela conhecia tinha se comportado com tanta cordialidade?
Inacreditável.
Jade falou longamente sobre Conto de Fadas. Nessa parte do
relato, Âmbar começou a sonhar acordada: imaginava a si própria passando
pelo campo magnético daquele país maravilhoso, com uma paisagem digna
desse nome, e sonhava as incríveis aventuras que viveria nesse mundo
mágico.
— Âmbar!
Aborrecida por ter sido tirada de seus devaneios, a menina olhou
para Jade.
— Âmbar! Você não percebeu que Opala está com problemas?
Opala tinha ficado para trás e estava parada. Seu rosto estava
imobilizado em uma expressão de horror. Seu olhar estava ausente, fixo e
aterrorizado.
— Tentei sacudi-la, mas não adiantou — disse Jade. — E você
continuou andando, como se nada estivesse acontecendo!
— Desculpe, meus pensamentos estavam longe — justificou-se
Âmbar.
— Parece que Opala não está mais aqui. Não que isso me
incomode, mas pode ser alguma coisa grave.
Rodearam a menina, falaram com ela, tentaram tirá-la daquele
estupor. Âmbar sentia-se culpada. Não sabia como ajudá-la e essa
impotência a torturava. De repente, Opala pareceu voltar a si. Sua expressão
retornou ao normal. Tentou falar alguma coisa mas, subitamente, caiu no
chão desacordada. Âmbar deu um grito e ajoelhou-se a seu lado. Jade ficou
de pé, observando a cena, mas seu olhar traía uma inquietude que ela
preferiria não sentir. Felizmente, Opala logo voltou a si.
— O que aconteceu?
Ela demorou para responder. Procurava as palavras certas para
descrever cada sensação.
— Alguém me transmitiu uma mensagem, mas não revelou sua
identidade. No começo, senti uma dor muito forte e meu corpo inteiro se
contraiu. Fiquei entorpecida pelo sofrimento. Escutei uma voz de homem.
Era desagradável e ressoava dentro da minha cabeça. A voz dizia que serei a
primeira a morrer. Cada palavra que dizia me fazia mal. Depois, disse que eu
estava sob seu controle e que nada poderia mudar isso.
— É um de nossos inimigos, que não tem nada melhor para fazer
além de atormentar uma pobre menina — interrompeu Jade. — Lamentável!
— Acho que não — argumentou Âmbar, com um ar muito sério. —
Alguém contactou Opala por telepatia.
— A voz também me enviou imagens — prosseguiu Opala. —
Primeiro, a de uma pequena cidade. Tenho certeza de que era Nathyrnn.
Além da dor inexplicável, comecei a sentir também muita náusea. Então, a
voz falou: nós nos encontraremos neste lugar. Em seguida, vi um livro
enorme, cujo título — A Profecia — estava gravado em letras douradas.
Estava coberto de sangue. A voz invadiu meu espírito: a Profecia não se
cumprirá da maneira como os outros queriam, mas, em um aspecto, ela diz
a verdade. Você morrerá! E o Eleito também sucumbirá. Mas você será a
primeira a cair e é você quem trairá os outros. Você está sob meu domínio e
me obedecerá como um autômato.
— Isso é uma mentira absurda! — gritou Âmbar.
Jade não tentou humilhar Opala, nem lhe dirigiu outra de suas
frases irônicas. Não conseguia sentir nenhuma raiva. Talvez sua inimiga não
fosse tão insensível quanto parecia. Agora mesmo, Opala chegava a comover.
A menina chorava em silêncio.
— Sei que é tudo verdade — disse ela com uma voz cautelosa. —
Estou convencida disso.
— Não é não! — replicou Âmbar. — Opala, você sabe muito bem
que essa voz só queria fazer mal a você e com certeza estava mentindo.
— Não. Adoraria que fosse assim, mas sei que é tudo verdade. A
voz me disse ainda outras coisas.
Opala calou-se. Mais lágrimas correram por seu rosto. Conseguiu
conter um pouco seu abatimento, mas a mensagem a tinha deixado
assustada demais para prosseguir.
— Continue! — ordenou bruscamente Jade. — Conte o que mais a
voz disse para você.
— Se isso não perturbá-la demais — apressou-se a completar
Âmbar.
— A continuação da mensagem é totalmente verdadeira. A voz
adquiriu uma entonação que se pretendia suave, mas era rouca e cortante.
Disse que me conhecia melhor do que eu mesma. Que eu jamais tinha me
destacado em nada que fizesse, que jamais senti amor, tristeza, alegria,
medo ou piedade. Disse também que nunca levei ninguém em consideração
e que não me interesso por nada. Que não passo de um fardo para vocês,
que não sou nada. Nada. Para finalizar, disse que ninguém tinha conseguido
me amar, nem conseguiria. E tudo isso é a mais pura verdade. E a realidade.
Opala não explodiu em soluços. Pelo contrário, enxugou as
lágrimas. Ergueu a cabeça com dignidade e declarou:
— Não sou assim. Se ninguém me ama, paciência! Mas, agora, não
preciso mais fingir que não ligo.
Âmbar e Jade calaram-se, impressionadas e um pouco
constrangidas. Jade tinha vontade de rir daquele tom dramático, mas Âmbar
a fez ficar quieta com um olhar severo.
Finalmente, Jade rompeu o silêncio:
— Isso não muda nada. Vamos a Nathyrnn! E temos que partir
imediatamente. Mais tarde, pensaremos nessa mensagem. De qualquer
maneira, não há nada a fazer.
— Gostaria muito de pedir um conselho a nossas pedras — disse
Âmbar. — Essa história da voz não me agradou nem um pouco.
— Você está com medo! — exclamou Jade com desprezo.
— Estou, e daí? Isso é normal, não é? Acho que tenho boas razões.
Além disso, não sou como você.
— Como assim?
— Não sou orgulhosa ao ponto de jamais confessar meus
sentimentos.
— Não entendi. Estou enganada ou você está me criticando?
— Você está enganada. Só constatei um fato. Bom, vamos pegar
nossas pedras. Fim da discussão.
Os olhos verdes de Jade brilharam com uma raiva que começava a
brotar, mas sua fúria logo se aplacou. Cada uma das meninas tirou sua
pedra de dentro da bolsa de veludo negro e a apertou na mão. Nada
aconteceu. Jade irritou-se. Âmbar e Opala, decepcionadas, não entendiam o
que estava acontecendo.
— Não temos outra opção. Temos que ir para Nathyrnn — repetiu
Jade.
Âmbar concordou, mas Opala gritou no mesmo instante:
— Não! De jeito nenhum. Quem me enviou aquela mensagem foi
muito claro a respeito do que eu encontraria lá. Não posso ir. É impossível.
— É verdade — apoiou Âmbar. — Você pode estar correndo um
risco real. Vamos evitar este lugar.
Jade teve vontade de protestar. Poderia ter se mostrado inflexível,
falar mais uma vez de seu desejo de encontrar Jean Losserand, de
compreender o mistério de Conto de Fadas e o significado do símbolo. Mas
calou-se. Ainda que fosse de fato egoísta (o que ela não acreditava nem
jamais confessaria), não queria botar a vida de Opala em risco.
No entanto, Jade não era apenas fútil. Era também inteligente. E
percebeu que alguma coisa não fazia sentido naquela mensagem.
Permaneceu de pé, pensativa, e não demorou em encontrar a falha. Então,
segura do que estava fazendo, disse para Âmbar e Opala:
— Vamos para Nathyrnn. Confiem em mim, não há
perigo.
Ele tinha pensado naquilo a noite inteira. Não tinha comido nem
dormido. Não sentia necessidade de nada. Precisava elaborar sua estratégia.
Diante disso, nada mais tinha importância. Pela madrugada, usou a
telepatia para pedir novamente uma reunião ao Conselho dos Doze. A sessão
foi curta. Limitou-se a informar que tudo estava em ordem, que o plano era
infalível e que começaria a ser executado em breve. Intimidados, os membros
do Conselho não ousaram perguntar quais eram seus planos. Tinham total
confiança nele. Era seu superior. E ordenou que voltassem ao meio-dia para
uma reunião de suprema importância. Agora que já estava na hora de
reencontrar aqueles incompetentes ávidos de poder e dinheiro, arrumou a
roupa — uma túnica comprida, cor de púrpura e bordada com fios de
ouro — com um gesto seco e dirigiu-se à sala de reunião do Conselho dos
Doze. Abriu a porta com a rudeza habitual. A sua entrada, o silêncio
espalhou-se pela sala. Cada participante foi invadido pelo medo e todos
ficaram imobilizados. Ninguém ousava encará-lo. Satisfeito de ver
sua autoridade respeitada, tomou a palavra. Sua voz cavernosa fez as
paredes vibrarem:
— Opala está sob meu controle — disse calmamente.
— Tudo aconteceu como eu queria. Ela acreditou em cada uma de
minhas palavras.
Entre os membros do Conselho, a admiração se misturou ao
temor. Ele os mediu de alto a baixo por um momento, observando seus
rostos gananciosos, seus cabelos brancos e seus olhos sem brilho. Ele não
conhecia a velhice.
— E agora, o que vai acontecer? — ousou perguntar o Terceiro
membro do Conselho, um homem de idade avançada, mas ainda vaidoso e
influente.
— Não é necessário que você saiba.
— Não... Claro que não... — balbuciou o homem.
Finalmente, os membros do Conselho ousaram levantar os olhos. A
silhueta maciça era envolvida pela escuridão. Só o olhar se destacava da
obscuridade que escondia seu rosto e reluzia com uma cintilação gelada.
— A sessão está encerrada. Manterei vocês informados.
Com essas palavras, abandonou a sala de reunião.
O Conselho esperou que ele saísse. Ele, o Décimo Terceiro
membro, aquele de cuja existência ninguém fora daquelas quatro paredes
suspeitava e que impunha sua vontade a todos. Sua imagem não se refletia
nos diversos espelhos que enfeitavam a sala. Ele não tinha sombra nem
reflexo. Não era um ser humano.
8 Âmbar estava espantada com Jade. Era uma menina que parecia
fútil e mimada, mas acabava de provar que podia ser também muito
perspicaz, pois rapidamente percebera o que ela e Opala nem sequer tinham
imaginado:
— Se essa voz ameaça pegar você em Nathyrnn — disse a Opala —,
é porque ela quer que você fique bem longe de lá — afirmou com segurança.
Foi difícil convencer Opala. Seu belo e pálido rosto estava retorcido
pelo medo. Seu corpo inteiro tremia. Cada passo em direção à cidade lhe
custava um esforço sobre-humano. Uma insuportável angústia a invadia, e
ela implorava que desistissem da viagem. Gritou tão desesperadamente que
até ela própria se assustara. Jade ficou uma fera e ordenou que seguissem
viagem. Como Opala não queria saber de mais nada, Jade terminou por dar-
lhe uma bofetada e puxá-la pelo braço. Ela não tinha paciência, nem
moderação, e Opala sabia disso.
— Você vem conosco, quer queira, quer não queira. Você não está
em seu estado normal! Em outras circunstâncias, eu a teria abandonado
aqui sem nem olhar para trás, mas acontece que você é a portadora de um
inimigo telepático que não tem mais o que fazer na vida além de atazanar
seu juízo!
Contrariada, com o rosto em fogo, Opala acabou obedecendo.
— Está se sentindo melhor? — perguntou Âmbar depois de algum
tempo.
Opala recusou-se a responder. A humilhação que acabara de sofrer
era mais forte do que o medo e ela não queria dar a impressão de precisar da
piedade das outras.
— Está tudo bem — disse com segurança.
— Tem certeza? — insistiu Âmbar.
— Tenho.
— Jade, falta muito para chegarmos a Nathyrnn? — perguntou
Âmbar. — Opala ainda está muito fraca.
— Eu estou bem — retrucou a menina, irritada com a solicitude de
Âmbar.
— Ainda falta uma hora... Ou duas — respondeu Jade.
— Tem certeza de que este é o caminho certo?
— Absoluta — respondeu secamente Jade.
— Estou com fome — disse Âmbar. — Pela manhã, quase não
tocamos na comida. Está na hora de fazer uma pausa, descansar um pouco
e comer alguma coisa.
— Não — disse Jade.
— Vamos parar, sim! — interveio Opala.
Jade lançou-lhe um olhar tão espantado quanto contrariado. Não
esperava por tal oposição.
— Vamos parar — teimou Âmbar.
— Está certo — suspirou Jade resignada.
Elas foram se sentar fora da trilha, protegidas por ervas secas e
plantas selvagens. Âmbar sorriu ao perceber que o sol brilhava em todo o
seu esplendor. Atacou a comida com um apetite que não imaginava possível.
Deu uma espiada em Opala que, desde a mensagem telepática, parecia
outra. Seus grandes olhos azuis transbordavam de angústia e toda cor havia
abandonado seu rosto. Âmbar sabia que sua preocupação incomodava
Opala, mas estava apreensiva. Sentia necessidade da aprovação dos outros e
gostaria de ser amiga de Opala. Mas sabia que a menina era arredia e que
considerava as outras duas como inimigas em potencial.
— Não tenho fome — disse Opala, recusando o cesto de comida
que Âmbar lhe estendia.
— Podíamos tentar mais uma vez usar as pedras — propôs Âmbar.
— Essas pedras não servem para nada — disse Jade. — Mesmo
assim, desamarrou os cordões de sua bolsa e segurou sua pedra na mão.
Âmbar e Opala a imitaram. Dessa vez, o efeito foi imediato. Foram
tomadas por um turbilhão e uma náusea profunda as invadiu. Uma
angústia terrível se apossou delas. As pedras pareciam vibrar e as meninas
foram sacudidas por estremecimentos. Subitamente, a comunicação se
rompeu. Elas permaneceram de pé, vacilantes. Âmbar e Jade sentiam-se
cansadas, totalmente sem forças. Mas Opala havia recuperado sua atitude
normal e todo o seu medo sumira.
Envergonhada de ter demonstrado fraqueza, queria agora se
retratar.
— Vamos partir logo. Fui muito estúpida por não querer ir com
vocês. Fui influenciada pela mensagem e só falei coisas ridículas. Por favor,
esqueçam tudo aquilo.
Queria provar que não era a menina nervosa que tinha falado tanta
bobagem sob o comando da voz. Aquela que ecoou em seu espírito, que a
tinha desorientado e aniquilado com uma facilidade assustadora. Queria
voltar a ser ela mesma. Maquinalmente, as três meninas voltaram a
caminhar.
— Jade, chegando a Nathyrnn, seria bom que você vendesse essas
roupas e jóias e vestisse alguma coisa mais simples — disse Âmbar. — Desse
jeito, você chama muito a atenção.
— Mas eu gosto de chamar muito a atenção — retrucou Jade. — E
não quero ficar parecida com uma camponesa! Se você não tem dinheiro
para comprar jóias, nem um vestido do condado de Tyrel, fique quieta e me
deixe em paz.
Envergonhada, Âmbar não respondeu nada. Era melhor não deixar
Jade ainda mais irritada. Verdade que o vestido, cuidadosamente
confeccionado por hábeis artesãos, caía-lhe muito bem. Transportada pela
imaginação, Âmbar via Jade como uma guerreira, com uma espada
ensangüentada na mão, montada sobre um cavalo branco como a espuma
do mar, o olhar orgulhoso. Dirigiu seus pensamentos para Opala e
imaginou-a como uma princesa dos contos de fada, com um vestido cinza-
perolado, combinando com seus olhos azuis claros e com sua pele pálida.
Ela usava um diadema de ouro que se fundia com sua cabeleira loura e
cacheada. Sob o diadema, Opala mantinha os olhos distantes, como sempre.
Âmbar sorriu com esse pensamento. Mas foi finalmente acordada para a
realidade pela voz de Jade:
— Nathyrnn!
Tinham chegado até ali sem problemas. Pelo caminho,
encontraram apenas camponeses, que podiam até ter ficado espantados com
a presença delas, mas não ousaram nem olhá-las. Mas, agora, os campos e
prados tinham sido substituídos pelas impressionantes muralhas que
cercavam Nathyrnn.
— Como vamos entrar? — perguntou Âmbar, desconcertada.
— Não tínhamos pensado nisso — disse Jade com uma ponta de
aborrecimento. Parecia que o perigo e os imprevistos a atraíam.
As muralhas eram guardadas por cavaleiros da Ordem. Três deles
estavam ali, com seus uniformes cinzentos, montados sobre cavalos da
mesma cor e portando espadas afiadas. Eram irredutíveis e impiedosos.
Perseguiam e castigavam as pessoas, aplicando por toda a parte a terrível lei
do Conselho dos Doze.
Jade dirigiu-se a um dos cavaleiros, e fez sinal a Âmbar e Opala
para que a seguissem. Desconfiadas, as duas ficaram um passo atrás da
menina.
— O que querem? — inquiriu brutalmente o cavaleiro. Era
imponente, tinha o rosto grosseiro e nem um pouco simpático. Sua voz era
dura e seca.
— Precisamos entrar em Nathyrnn — respondeu Jade no mesmo
tom, nem um pouco intimidada.
— Me mostre a autorização.
— Qual autorização? — deixou escapar Âmbar.
Jade fuzilou-a com os olhos.
— Não dê ouvidos a ela — disse ao cavaleiro com um sorriso
sedutor. — É uma de minhas criadas e não tem nada dentro da cabeça.
— Mostre a autorização — repetiu o homem. — Ninguém entra em
Nathyrnn sem autorização assinada pelo duque de Divulyon, eleito pelo
Conselho dos Doze e encarregado de administrar este território.
— Sei disso — disse Jade prontamente.
Gostaria de poder dizer que era a filha do duque, mas conteve-se.
Não podia revelar sua identidade a ninguém. Sorriu novamente para o
cavaleiro e o homem pareceu desconcertado com seu jeito. Podia-se notar
que era uma menina rica e, certamente, vinha de uma família influente. Mas
ele obedecia ordens e não podia deixar ninguém entrar sem autorização.
Então, Jade disse:
— Sou Corali de Mordorais, sobrinha do duque de Divulyon, e
essas duas são minha criada e minha acompanhante.
Jade tinha uma prima da mesma idade com este nome. Corali era
filha da irmã do duque.
— Já ouvi falar da sua família — disse o homem, com a voz mais
suave. — No entanto, sem autorização, não posso deixá-la entrar.
— Meu pai ficará furioso com o senhor — declarou Jade, com toda
a calma.
— O conde de Mordorais?
— Ele mesmo — afirmou Jade. — O senhor sabe muito bem que
ele trabalha com o duque de Divulyon. Tem muita influência junto ao duque
e, por extensão, junto ao Conselho dos Doze.
— Não duvido.
— Meu pai pediu-me que viesse a Nathyrnn para encontrar um tal
Jean de Losserand. Ele deve entregar-me uma encomenda, um livro de raro
valor.
—E por que o conde de Mordorais não mandou um pajem fazer
isso, ou não providenciou uma escolta para a senhorita? — perguntou o
cavaleiro, desconfiado.
— Porque eu estava com vontade de vir a Nathyrnn e não gosto de
andar escoltada. Meu pai deu-me uma autorização de entrada, assinada pelo
duque de Divulyon, mas eu a perdi. Ele ficará muito aborrecido se eu voltar
de mãos vazias.
Não muito convencido, o cavaleiro ficou quieto, e Jade continuou:
— Como pode duvidar de minha palavra? Basta ver minhas jóias.
Em todo esse ducado, apenas eu e a filha do duque de Divulyon possuímos
jóias como estas. Elas provam que sou Corali de Mordorais e que o senhor
deve me deixar entrar.
— Lamento, mas não posso.
Jade irritou-se.
Deixe-me entrar imediatamente ou juro que meu pai vai arrastá-lo
na lama até que peça perdão! — gritou com os olhos chispando de cólera. —
Vai torturá-lo em praça pública como se você fosse um criminoso comum,
vai fazê-lo morrer com os piores sofrimentos. Se não abrir essa porta agora,
vai se arrepender amargamente!
Eu... eu realmente não posso fazer isso, senhorita.
— Obedeça! — rugiu Jade.
Âmbar sugeriu, baixinho:
— Ja... quer dizer, Corali, quem sabe se você oferecesse uma de
suas jóias a ele?
— Parece que sua criada não é tão idiota como a senhorita diz.
— Não vou dar nada para você! — protestou Jade. — Era só o que
faltava, ter que pagar para entrar!
— Então, não vai entrar — concluiu o cavaleiro.
— Isso é o que você pensa. Abra esta porta!
— Não!
— Abra!
— Instintivamente, o cavaleiro levou a mão ao punho da espada.
Foi então que Opala avançou majestosamente, afastando Jade que se
debatia, surpresa. Fixou seu olhar glacial no cavaleiro e dirigiu-se a ele com
um tom calmo e decidido:
— Chega de mentiras. Esta menina não é Corali de Mordorais, nem
eu sou sua acompanhante.
— Então, quem está tentando se passar pela senhorita de
Mordorais?
— Ela é minha acompanhante. Trocamos de lugar para garantir
minha proteção.
— Sua proteção? — espantou-se o cavaleiro, cada vez mais
abismado. — Mas quem é a senhorita?
— Minha família é nobre demais para que seu nome seja
pronunciado diante de um simples cavaleiro — respondeu Opala impassível.
— O Conselho dos Doze me encarregou de uma missão da mais alta
importância. Devo manter sigilo e viajar na mais absoluta discrição.
O cavaleiro olhou para Opala, admirado.
— Mas por que a senhorita não tem a permissão para entrar em
Nathyrnn? — perguntou. — E que missão é essa?
— Estávamos acompanhadas por um guia. Mas, infelizmente, ele
nos traiu. Roubou nossa autorização e fugiu. Quando percebemos, já era
tarde demais. Quanto à minha missão, não posso dizer nada, mas como você
está se mostrando muito compreensivo, vou dizer-lhe uma coisa...
— Diga, diga — pediu o homem, já curioso.
— Minha missão tem a ver com a Profecia e com os três inimigos
do Conselho dos Doze.
O rosto do homem se iluminou.
— Então é verdade? Ouvi falar a respeito...
Opala arrepiou-se. Então, sua intuição estava certa. E continuou:
— O senhor compreende que é absolutamente necessário ajudar-
me nessa missão. O Conselho dos Doze não pode ser atrapalhado numa
questão tão urgente!
Opala falava com seriedade. Seus grandes olhos azuis encaravam o
cavaleiro, sem pestanejar.
— Claro... Compreendo — gaguejou ele.
Chamou seus dois companheiros e, juntos, abriram os portões de
Nathyrnn. Sem uma palavra de agradecimento, Opala, muito digna, entrou
na cidade, seguida por Jade e Âmbar.
— Boa sorte! — gritou o cavaleiro da Ordem.
E a imensa porta de Nathyrnn fechou-se atrás delas.
9 Depois de dez anos, Jean Losserand ainda tentava manter o gosto
pela aventura e pela vida. Mas percebia, amargurado, que sua sede de
absoluto morria pouco a pouco. Muito tempo atrás, tinha sonhado em
escapar da prisão que era Nathyrnn, mas a esperança o abandonara e agora
não encontrava forças para mais nada. Às vezes, pensava em sua velha mãe
com tristeza. Acreditava que nunca mais iria revê-la. A monotonia de sua
existência tinha crescido tanto que ocupava todo o espaço antes dedicado ao
amor e à liberdade. Até mesmo os livros tinham perdido seu encanto. Os
contos, as histórias fantásticas, os romances, tudo tinha sido proibido. Só
livros técnicos ou biográficos eram autorizados, porque eles não
incomodavam o Conselho. Jean Losserand era vigiado vinte e quatro horas
por dia, não havia mais nada que o reconfortasse, e ele já tinha desistido de
lutar contra aquela situação. Sua vida estava reduzida a um interminável e
preguiçoso suspiro. Pelo menos, até o dia em que escutou baterem à porta
de sua loja.
Ele tinha tão poucos clientes que não valia a pena abrir a livraria,
que estava em franca decadência. Livros empoeirados e rasgados se
amontoavam de qualquer jeito e a porta da loja permanecia fechada. Ficou
surpreso ao perceber que alguém ainda se interessava por ele. Dirigiu-se a
passos lentos até a porta e abriu. Ficou espantado com as três adolescentes,
tão diferentes, que o olhavam com curiosidade.
— O senhor é Jean Losserand? — perguntou Jade.
O livreiro observou a menina. Notou sua vivacidade, e percebeu a
determinação que iluminava seus olhos verdes. "Como pedras de jade",
pensou.
— Perdoe-nos por incomodá-lo — disse Âmbar docemente, mas
precisamos saber se o senhor é Jean Losserand, filho de uma senhora que
mora numa fazenda isolada.
— Com um estábulo muito mal conservado — acrescentou Jade.
Sou eu mesmo. Sou Jean Losserand — disse o livreiro, estarrecido.
— Vocês conhecem minha mãe?
— Ah, sim — disse Jade com uma voz brincalhona. — Ela é muito
hospitaleira.
— Minha mãe? — repetiu o homem, incrédulo.
— Ela mesma — confirmou Jade. — Mas viemos até aqui porque
precisamos de sua ajuda. Podemos entrar?
— Claro, por favor!
Jean Losserand conduziu as inesperadas visitantes até uma sala
contígua, convidou-as a se sentarem em gastas poltronas de veludo
vermelho e trouxe-lhes biscoitos e chá. Aproveitou para observá-las melhor.
Todas as três estavam normalmente vestidas, com roupas de qualidade, mas
sem luxo. Mas as semelhanças paravam aí.
Assim que viu Âmbar, foi assaltado por uma dúvida. Sua mão
esquerda começou a tremer descontroladamente, como acontecia sempre
que ficava muito emocionado. Teve que apoiar o bule de chá sobre uma
mesinha baixa.
Âmbar percebeu seu tremor e serviu o chá de menta nas xícaras de
porcelana rachadas.
— Obrigado — murmurou num suspiro. — Agora, digam, o que
posso fazer por vocês?
— É uma longa história — disse Jade.
A menina calou-se, observando o ambiente. Foi tomar um gole de
chá quente e acabou entornando um pouco sobre a calça. Âmbar a havia
finalmente convencido a vender seu vestido e parte de suas jóias. Jade ficou
aborrecida, mas era preciso evitar chamar a atenção dos habitantes de
Nathyrnn. Acabou cedendo aos argumentos de Âmbar e usou parte do
dinheiro obtido para comprar uma roupa mais comum.
Âmbar tirou algumas moedas de cobre de sua bolsa de veludo
preto e também comprou roupas simples e discretas, uma vez que seus
trajes de camponesa também chamavam muita atenção por ali. Também
aproveitou uma fonte pública para lavar o rosto e limpar a mistura de terra,
palha e lágrimas que o cobria. Agora, sentia-se melhor, mais fresca, embora
ainda estivesse cansada: a comunicação estabelecida com a pedra havia
esgotado suas energias. Beliscou um biscoito, sem apetite. Estava aliviada
por ter encontrado Jean Losserand. Tinha sido difícil achar a loja, localizada
numa rua estreita e sombria. Mas tinha que admitir: não gostara de
Nathyrnn. As pessoas pareciam fechadas e mal-humoradas; as ruas, calmas
demais, com raras lojas. Tudo era muito deserto e sem cuidado.
Agora, sentia-se segura por estar na livraria, na companhia
daquele homem que parecia tão gentil e atencioso. Ela o observara com a
atenção de sempre. Jean Losserand era imponente, embora seus ombros se
curvassem um pouco, dando a impressão de que carregava um fardo pesado.
Âmbar imaginava que tivesse entre trinta e quarenta anos. Seu rosto deixava
transparecer bondade e inteligência, mas seus olhos traíam uma espécie de
desespero resignado, misturado com nostalgia.
— Digam em que posso ajudá-las — ele perguntou novamente. —
Quem são vocês? O que estão fazendo em Nathyrnn?
Ele dirigiu a pergunta a Âmbar, mas foi Jade quem respondeu:
— Viemos dos arredores do castelo de Divulyon só para
vê-lo. Só conseguimos entrar em Nathyrnn graças a um brilhante
estratagema de Opala.
Jade indicou a menina com o queixo, deixando entrever uma ponta
de desprezo, que Opala devolveu sob forma de um olhar glacial. Jade
prosseguiu:
— Sabemos que você está do nosso lado e temos inimigos em
comum.
Baixando a voz, acrescentou:
— Parece que o Conselho dos Doze andou se reunindo para falar
de nós. E não foi para falar bem...
— Se vocês são inimigas do Conselho dos Doze, sejam bem-vindas
a Nathyrnn. Aqui é uma verdadeira prisão, onde são trancafiados todos os
que saíram de Conto de Fadas — explicou Jean Losserand.
— Não consigo compreender por que o Conselho se preocuparia
conosco — confidenciou Âmbar. — Além disso, temos inimigos que nem
sequer sabemos quem são. Por exemplo, hoje, Opala sofreu um ataque
telepático, muito maléfico e poderoso. Você sabe quem poderia ter feito isso?
— Só os membros do Conselho dos Doze sabem praticar a
telepatia. Bom, em Conto de Fadas também há muitos feiticeiros, mas eles
não poderiam estabelecer contato de tão longe.
— Então é verdade que o Conselho dos Doze está contra nós! —
constatou Jade. — Que coisa incrível! Sempre me falaram tão bem do
Conselho. Meu pai mesmo foi eleito para cuidar de um território e nomeado
duque pelo Conselho. Ele obedecia a todas as leis e ordens desse bando de
velhacos.
Diante do ar espantado de Jean Losserand, Jade explicou:
— Sou Jade de Divulyon. Eu não devia revelar isso, mas confio em
você. Fui expulsa do palácio e descobri que não sou filha verdadeira do
duque.
O livreiro começou a compreender. Então, os rumores que corriam
há dez anos em Conto de Fadas tinham fundamento. E suas dúvidas com
relação a Âmbar transformaram-se em uma certeza. Ele a tinha reconhecido.
Era ela mesmo! Observou cada traço de seu rosto. Tudo confirmava sua
suspeita. Jean Losserand foi invadido por uma alegria intensa. Ela estava
viva! Um raio de sol iluminou seu coração e ele foi tomado por uma onda de
emoção. A esperança retornou de uma vez só e, com ela, um amor sem
limites pela vida. Ele repetia para si mesmo a frase mágica: Ela está viva! A.
frase queimava seus lábios, mas ele sabia que precisava se conter. Era difícil
segurar a alegria, mas ficou calado.
Nesse meio tempo, Jade procurava o papel onde tinha desenhado o
símbolo. Assim que conseguiu encontrá-lo, estendeu-o a Jean Losserand,
que o olhou com curiosidade.
— O que é isso — perguntou apressadamente. — Pode decifrá-lo?
O livreiro observou o desenho por um curto instante e respondeu:
— É um símbolo escrito numa antiga linguagem de Conto de
Fadas.
— É mesmo? — espantou-se Âmbar. — E o que quer dizer?
— É bastante complexo. Tem a ver com a sabedoria e com o poder
de ler o que os corações escondem... Ao mesmo tempo, pode-se ler este
símbolo como um nome próprio: Oonagh.
— Oonagh? — repetiu Âmbar, imediatamente seduzida pela
musicalidade do nome.
Jean Losserand explicou:
— Oonagh é uma criatura que vive em Conto de Fadas, um país
cujo povo foi, em grande parte, dizimado pelo Conselho dos Doze. É uma
criatura mágica, cuja sabedoria é reconhecida por todos, e que tem o dom de
ler os corações. Todos falam dela com muito respeito.
— Oonagh mora em Conto de Fadas! — repetia Âmbar, com a
imaginação em êxtase.
— Sim, dentro de uma gruta cheia de cristais.
— Parece que precisaremos ir ver essa Oonagh — disse Jade. —
Mas fale-nos mais um pouco sobre Conto de Fadas. Não se trata de uma
lenda?
— De jeito nenhum — assegurou Jean Losserand. — Realmente
estive lá.
— E como é esse país?
Contarei tudo o que sei. Mas, antes, é preciso que vocês acreditem
ilimitadamente no impossível para conseguir transpor o campo magnético
que cerca Conto de Fadas. Precisam ser como crianças inocentes e
confiantes no irreal. Talvez isso seja um pouco difícil para vocês...
— Para mim, de jeito nenhum — disse Jade orgulhosamente,
porque ela não podia imaginar que existisse alguma coisa no mundo que ela
não conseguisse fazer.
— Quem são os habitantes de Conto de Fada? — perguntou
Âmbar. — Princesas em perigo, cavaleiros e feiticeiros?
— Também. Muito tempo atrás, quando o Conselho dos Doze ainda
não tinha o poder que tem hoje, centenas de pessoas com poderes mágicos
viviam livremente pelo mundo. Os humanos eram apenas uma entre as
espécies evoluídas e todos respeitavam as diferenças. No entanto, embora
esses seres fossem muito bem intencionados, o Conselho dos Doze temia seu
imenso poder. Quando se tornou mais influente, começou a semear, no
coração dos humanos, o ódio contra as outras raças. Assim, pouco a pouco,
abusando da confiança total dessas pessoas tão diferentes de nós, conseguiu
destruí-las. Foi um período de barbárie, vergonhoso.
Uma sombra de medo passou pelo doce olhar de Âmbar e ela
perguntou, com a voz embargada:
— E depois, o que aconteceu? Por que ninguém se revoltou? Por
que ninguém tentou salvá-los?
— Ninguém compreendeu direito o que estava acontecendo. As
pessoas confiavam em seus semelhantes e estavam acostumadas à paz.
Tudo aconteceu de maneira muito confusa e dissimulada. Por fim, as
criaturas mágicas, pacíficas por natureza, decidiram evitar mais
derramamento de sangue. Os sobreviventes isolaram-se em um território
recuado e ainda livre da civilização, mas com terra rica e fértil. Chegando lá,
conjuraram seus poderes e criaram campos magnéticos para se protegerem
do mal. E assim nasceu Conto de Fadas, que é hoje um país próspero, de
uma beleza estonteante, onde os homens e seres dotados de poderes
sobrenaturais convivem em harmonia, como em outros tempos. Infelizmente,
lá também há pessoas más. Onde existe vida, não existe apenas o bem. Mas,
pelo menos, o Conselho dos Doze não tem nenhum poder lá dentro. É um
território livre.
— Que história bonita! — murmurou Âmbar emocionada.
— Também acho — disse Jade, sem a mesma emoção.
— Conto de Fadas fica muito longe daqui?
— Não. É até bem perto — respondeu Jean Losserand. — Nathyrnn
fica nos limites do ducado de Divulyon. A fronteira do ducado está a menos
de um quarto de hora daqui, mas é muito bem vigiada. Muito poucos
conseguem atravessá-la. Logo depois, erguem-se os campos magnéticos
que cercam Conto de Fadas.
—Então, é bem perto mesmo. Vai ser fácil chegar lá — animou-se
Jade.
— Não acredite nisso — retrucou o livreiro. — Primeiro, você
precisa de uma autorização para sair de Nathyrnn. E, depois, o mais difícil:
será preciso atravessar a fronteira.
— Para sair de Nathyrnn, não teremos problemas: Opala inventou
uma mentira muito plausível — afirmou Jade, com certa frieza, ainda
chateada por não ter conseguido convencer o cavaleiro da Ordem.
— Foi mesmo! — apoiou Âmbar entusiasmada. — Conte para ele,
Opala!
A contragosto, Opala explicou, com sua voz neutra:
— Uma intuição me levou a dizer que estávamos a serviço do
Conselho dos Doze. Eu estava totalmente convencida de que a mensagem
telepática tinha partido deles. Eu sabia, sentia que éramos inimigas.
Jean Losserand estremeceu ao ouvir essas palavras.
— É claro que, durante as mensagens telepáticas, os espíritos
ficam ligados, mas não se consegue ler os pensamentos do outro! A não ser...
A não ser que o objetivo dessa comunicação seja o de causar sofrimento ou
medo.
O silêncio tomou conta do ambiente.
— A voz também falou de uma profecia, de um livro coberto de
sangue — contou Âmbar, num fio de voz. — Você sabe que livro é esse?
Jean Losserand pesou cuidadosamente as palavras, temendo
revelar o que não devia. Olhou para Âmbar mais uma vez e observou seus
traços doces, seu olhar caloroso, antes de falar:
— A Profecia foi escrita por um filósofo chamado Neophileus,
alguns séculos atrás. Ele fazia parte de um povo alegre, de caráter forte e
indomável, os Clorhyuns. Neophileus tinha o dom de ler o futuro e previu a
destruição parcial de seus descendentes, alguns séculos mais tarde,
pelo Conselho dos Doze. Infelizmente, a paz parecia tão assegurada que
ninguém acreditou nele.
O olhar das três meninas estava fixado em Jean Losserand. O de
Jade brilhava de curiosidade, o de Âmbar transbordava de interesse e
compreensão, e o de Opala permanecia indecifrável.
— Neophileus também previu que chegaria o dia em que os tempos
mudariam e o mundo se transformaria. Vislumbrou um sério problema no
futuro e, depois, pela primeira vez, não conseguiu decifrar claramente o que
viria mais tarde.
— Não entendi — disse Âmbar.
— Isso quer dizer que, a partir de certo ponto da curva do tempo, o
futuro estava indefinido. Em vez de seguir uma linha reta, dividia-se em
vários caminhos. A humanidade escolheria um desses caminhos, que
transformaria o mundo tal como o conhecemos. Então, Neophileus escreveu
A Profecia.
Jean Losserand calou-se. Já tinha dito o suficiente.
— Então, precisamos mesmo ir até Conto de Fadas e falar com
Oonagh — disse Âmbar. — Mas como vamos passar pela fronteira de
Divulyon?
— Não sei — respondeu o livreiro. — Quando fui para Conto de
Fadas, a fronteira só existia na teoria. Agora, as coisas mudaram.
—Daremos um jeito — disse Jade, sem hesitar.
— Como? — perguntou Âmbar.
— Não posso ajudá-las — disse Jean Losserand. — Mas procurem
um rapaz chamado Adrien de Rivebel. Embora só tenha dezesseis anos, já
passou três anos nas masmorras de Nathyrnn. Acaba de ser solto.
— Mas por quê? — espantou-se Âmbar.
— Ele nasceu em Conto de Fadas. Vem de uma família nobre, de
cavaleiros. Com treze anos, Adrien quis descobrir o mundo. Fugiu de casa.
Os cavaleiros da Ordem o pegaram na fronteira de Divulyon e o jogaram na
prisão.
— Isso não é justo! — indignou-se Âmbar.
— Claro que não — concordou Jean Losserand. — Mas correm
rumores. Dizem que ele não é como os antigos prisioneiros. Não se deixou
abater pela prisão. Em vez de destruir seu caráter, as grades da cela o
fortaleceram. Foi condenado a viver aqui, nessa cidade sem brilho, nem
esperança. No entanto, segundo dizem, está tentando organizar uma revolta
para libertar os habitantes de Nathyrnn.
— Gosto muito de revoltas! — exultou Jade. — E uma boa idéia.
— Infelizmente, é impossível — retrucou o livreiro.
— Não existe impossível para quem crê — retorquiu Âmbar.
Jean Losserand sorriu tristemente. Ele não tinha mais forças para
sonhar com o impossível.
— Procurem Adrien de Rivebel — suspirou ele. — Talvez ele possa
ajudá-las.
Jade jogou uma mecha de cabelo para trás e disse:
— Não estamos precisando de ajuda, mas procuraremos Adrien de
Rivebel. E preciso libertar Nathyrnn.
— Já falei: é impossível! — suspirou o livreiro.
— Sua mãe está à sua espera, senhor Losserand — retrucou Jade.
— E prometi a ela levar notícias suas. Não seria melhor se você lhe desse as
notícias pessoalmente?
E, com um ar desafiador, a menina completou: — Nada é
impossível!
10 Âmbar esperava encontrar um príncipe encantado como os dos
contos de fadas, galante e poético, mas Adrien parecia mais um cavaleiro
com traços fechados, nítidos e bem talhados. Tinha um ar pensativo e
ponderado, e apenas os olhos escuros demonstravam a coragem e a paixão
que se agitavam dentro dele.
Os cabelos castanho-escuros, desalinhados, acentuavam seu
aspecto misterioso. Adrien sabia fingir indiferença e trancar seus
sentimentos no fundo da alma. Graças a isso, resistiu a três anos de
reclusão. Era inocente de todas as acusações que lhe tinham feito e essa
certeza o tinha ajudado, em vez de desesperá-lo. Sabia que a raiva não lhe
serviria para nada e a ignorou, embora uma voz clamasse por justiça dentro
de seu coração.
Agora que tinha saído da prisão, deixava que sua verdadeira
natureza voltasse a dominá-lo. Tinha concebido o plano da revolta de
Nathyrnn nos mínimos detalhes. Era preciso libertar a cidade para poder se
libertar também. Procurava aliados para a causa. Criara um estratagema,
mas ainda não tinha encontrado ninguém que pudesse ajudá-lo a pô-lo em
prática. Quase todos os habitantes de Nathyrnn tinham sido aniquilados,
fosse pela prisão, fosse pela resignação ou pelo hábito. Poucos ainda
mantinham vivos seus sonhos e esperanças. Estes simpatizavam com a
revolta de Adrien, mas não ousavam se juntar a ele. Ainda não. Não estavam
inteiramente convencidos, mas poderiam ficar.
Adrien aguardava ajuda, sem se desesperar. E essa ajuda apareceu
na hora em que ele menos esperava, quando encontrou Jade, Âmbar e
Opala. Não ficou nem um pouco surpreso ao vê-las entrar no minúsculo
quarto que ocupava no albergue. Recebeu-as cordialmente e indicou
algumas cadeiras bambas para se sentarem.
Adrien de Rivebel era culto e inteligente: logo percebeu quem eram
suas visitantes. Em Conto de Fadas, várias histórias falavam delas. Ele
próprio tinha consultado Oonagh, ao completar dez anos, para conhecer o
caminho que deveria seguir. A criatura mágica tinha respondido:
— Você não é o Eleito. Mas não poderá ficar na sombra. Seu
coração é orgulhoso e ardente. Procure a água para deter esse calor
devastador, nunca a madeira para atiçá-lo.
— Mas por quê? — perguntou o menino, perturbado.
— Você pode vir a correr grande perigo. E precisará prestar muita
atenção para não colocar outras vidas em perigo. Não dê ouvidos ao seu
coração. Ele é passional demais. Abra bem os olhos e deixe a razão guiar
seus passos.
— Isso é muito confuso — murmurou Adrien.
—Um dia, seu caminho cruzará com o daquelas que todos
esperam, e então você compreenderá.
Agora que as três pedras da Profecia estavam diante dele, não se
sentia completamente seguro sobre o caminho a seguir. Mas percebia
claramente que, juntos, eles poderiam dar um passo na direção correta.
Evidentemente, não disse nada às meninas sobre o que havia compreendido.
No começo, nenhuma delas abriu a boca. Limitaram-se a observá-
lo com atenção. Jade logo compreendeu que tinha encontrado um aliado,
alguém parecido com ela. Podia ver nos olhos de Adrien que, unidos,
conseguiriam organizar a revolta de Nathyrnn. Não prestou atenção à
intensidade do olhar que Adrien lhe dirigia, mas o fato não escapou à
atenção de Âmbar e de Opala.
Âmbar estava assombrada com o rapaz. Percebia que era orgulhoso
e determinado, exatamente como Jade, mas com muito mais controle sobre
suas emoções. "Teremos problemas", pensava ela. "Duas pessoas tão
parecidas, tão ardentes, não podem... não devem... se sentir atraídas, ou
pior, se apaixonarem!"
Um pensamento diferente tomava conta de Opala. No momento em
que seus olhos pousaram sobre o rapaz, uma profunda mudança se operou
dentro dela. Uma forte emoção balançou seu coração. Um calor difuso a
invadiu. Não conseguia lutar contra essa nova sensação, nem desejava fazê-
lo. Perturbada, perguntava-se o que estava acontecendo. Opala encarava
Adrien sem nenhum disfarce. Era como se uma agradável doença tomasse
conta dela. E uma intuição atravessou seu espírito: compreendeu, soube que
tinha sido feita para amar aqueles olhos verde-acinzentados. Teve a certeza
de que ela e Adrien deveriam ficar juntos, não poderia ser de outra maneira.
Logo ela, normalmente tão fria, sufocava de calor. Mas o olhar de Adrien
estava fixado em Jade. Isso, Opala viu bem. Estranhamente, não sentiu
inveja, nem ciúme. Disse calmamente para si mesma: "Está errado. Adrien
não pode olhar para Jade desse jeito. Ele está sentindo por ela a mesma
coisa que estou sentindo por ele... Então, ele terá que mudar".
Nesse meio tempo, Jade, entusiasmada com a idéia de promover
uma revolução, de desafiar a lei e provar sua coragem, estava envolvida em
uma animada conversa a respeito da insurreição da cidade.
— Um amigo nos contou que você está preparando uma revolta em
Nathyrnn — disse ela, dirigindo a Adrien um sorriso cúmplice.
Ela o tratava sem a menor cerimônia. Ele só devia ter uns dois
anos mais do que ela. Além disso, Jade pouco estava se preocupando com a
educação.
— Não quero passar minha vida entre os muros desta cidade tão
triste — respondeu Adrien. — Primeiro, pensei em fugir daqui, para voltar a
Conto de Fadas. Mas quero que todos os habitantes de Nathyrnn sejam
libertados. E tenho uma solução para isso.
— Qual? — perguntou Jade, com os olhos cintilando de interesse.
— É meio complicado. Precisaríamos recorrer à magia e não
encontrei ninguém capaz de realizar o que estou imaginando.
— E o que é? — perguntou Jade, impaciente.
Alguém precisa lançar um feitiço e adormecer profundamente
todos os que estiverem fora do círculo encantatório.
— Círculo encantatório? O que é isso?
— É um pequeno círculo de proteção que se forma em torno do
feiticeiro quando ele pronuncia suas palavras mágicas. Isso o protege de seu
próprio encantamento. Assim, o círculo o manterá acordado. Uma vez que o
círculo seja formado e o feitiço seja lançado, o mágico pode sair dele: o
encantamento não pode mais atingi-lo.
— Acho que seu plano tem um problema — disse Jade. — Desse
jeito, os cavaleiros adormecerão, mas os habitantes de Nathyrnn também!
— Exatamente! Só um mágico muito experiente conseguirá
produzir um círculo encantatório tão grande que proteja todos os habitantes
de Nathyrnn.
— Assim, todos conseguirão escapar sem riscos — completou Jade.
— Não totalmente sem riscos. O sortilégio não dura mais do que
dez minutos. Mal dará tempo de abrir as portas da cidade e escapar. Depois,
para chegar à fronteira do ducado de Divulyon, será preciso repetir o feitiço
algumas vezes. E esse é um problema e tanto: conjurar um encantamento
tão potente já é difícil. Repeti-lo a curtos intervalos de tempo é quase
impossível.
— Quase — sublinhou Jade. — Quase impossível. Isso faz muita
diferença.
De repente, Opala quebrou seu silêncio.
— Adrien, você já encontrou o bruxo capaz de pôr seu plano em
prática?
— Ainda não — confessou o rapaz.
— Nós podemos fazer isso. Pelo menos, acho que podemos — disse
ela.
— Nós? Como? — espantou-se Âmbar.
— Com as pedras! — respondeu Opala. — O que ele precisa não é
uma fonte de grande poder? Pois então...
Adrien nem tentou fingir espanto. Estava justamente esperando
que a conversa chegasse nesse ponto.
— Digamos que seja possível. Mas ainda teríamos outro problema.
Seria preciso avisar à população sobre a hora exata da fuga para que todos
estejam prontos.
O rapaz sabia que a revolta faria correr sangue. Mas não queria
assustar ainda mais suas novas aliadas.
— Quando seria a fuga? — perguntou Âmbar.
— Daqui a um mês, o que vocês acham? — propôs Adrien.
Ele já esperava pela reação de Jade. Foi exatamente a que ele
imaginava.
— De jeito nenhum! — disparou ela. — Não vou esperar um mês.
Quero chegar a Conto de Fadas o mais rápido possível.
— O que você quer dizer com "o mais rápido possível"? —
perguntou Âmbar.
— Hoje à noite.
— Hoje à noite? — exclamaram Âmbar e Adrien ao mesmo tempo.
— Tem que ser possível — disse Jade. — Nossos inimigos
contataram Opala usando a telepatia, não foi? Pois usaremos o mesmo
estratagema para avisar a população!
— Para atingir cada espírito dessa cidade — começou Adrien, seria
preciso que vocês...
— Seria preciso que nós tentássemos! — interrompeu Jade. — De
tanto duvidar, corremos o risco de terminar nossos dias nessa cidade. E isso
está fora de questão!
— Não é tão simples assim — lembrou Adrien. — Isso vai exigir um
grande esforço de vocês e... E sabe do que mais? Você está certa! Se vocês
chegaram até aqui, também conseguirão nos ajudar a sair! — concluiu o
rapaz, contagiado pelo entusiasmo de Jade.
Âmbar deu um profundo suspiro. Não estava totalmente
convencida, mas Jade e Opala já tinham tirado suas pedras das bolsas de
veludo preto. Ela hesitou. Tinham acabado de conhecer Adrien. Não seria
prematuro depositar tanta confiança nele? Mesmo assim, pegou sua pedra.
No fundo, a idéia de ficar prisioneira em Nathyrnn era tão desagradável para
ela quanto para Jade.
— Pensem apenas em seu objetivo: avisar os moradores da fuga —
disse Adrien. — Se a mensagem for bastante clara e sua vontade, bem forte,
as pessoas ficarão convencidas. Concentrem toda a sua energia.
Opala balançou a cabeça em sinal de concordância, mas Âmbar
resistiu, sem saber bem por quê. Segurando as pedras, as três meninas
firmaram seu pensamento na libertação de Nathyrnn. Seus rostos se
tornaram avermelhados pelo esforço que faziam. Então, aconteceu uma coisa
completamente inesperada. As meninas fecharam os olhos ao mesmo tempo.
Sob o olhar estupefato de Adrien, uma esfera translúcida, saída de não se
sabe onde, materializou-se em torno delas e começou a flutuar, levando as
três meninas em seu interior. A esfera parecia frágil como uma bolha prestes
a estourar, mas, na realidade, era mais resistente do que uma armadura de
ferro. As meninas nada percebiam. Uma imagem ocupava suas mentes: a de
uma multidão atravessando as portas da cidade. Elas murmuravam palavras
que não conheciam, projetavam imagens cujo sentido lhes escapava.
Alguma coisa tinha se apossado delas, mas essa coisa parecia vir
do fundo de suas almas. Sem perceber, estavam transmitindo esses
pensamentos para toda a população de Nathyrnn.
Adrien, impressionado, observava a cena. Podia ouvir as palavras
que Jade, Opala e Âmbar transmitiam por telepatia. Elas repercutiam em
seu espírito, persuasivas.
Ao fim de um quarto de hora, a esfera iniciou uma lenta descida e
pousou sobre o chão. A bolha sumiu tão repentinamente quanto havia
aparecido.
Jade e Opala não pareciam nem um pouco afetadas pelo prodígio
que acabavam de realizar. Voltaram tranqüilamente para suas cadeiras.
Jade sorria, cheia de si. Mas os olhos de Âmbar estavam perdidos no vazio.
Sem nem mesmo procurar uma cadeira, ela sentou-se no chão e começou a
chorar:
— Nunca mais a verei... Eu não deveria ter... e sem nem pedir
desculpas... Não sobreviverei...
Bruscamente, sua entonação mudou e Âmbar brandiu o punho
num gesto ameaçador. Sua voz tornou-se violenta:
— Não quero! Deixe-me em paz! Quero ser livre! Pare
com isso!
— Âmbar — gritou Jade. — O que está acontecendo? Adrien
suspirou:
Era o que eu temia. Ao entrar em contato com todos os habitantes,
Âmbar absorveu seus pensamentos. Será preciso sentir as emoções de cada
um deles até conseguir se libertar do transe. Isso vai durar algumas horas.
— Mas por que Opala e eu não fomos também atingidas? —
perguntou Jade.
— Isso quer dizer que Âmbar é dotada de grande sensibilidade —
explicou Adrien. — Mas não se preocupem. Vai passar e deixar apenas uma
lembrança desagradável.
— Tem certeza? — perguntou Jade.
— Absoluta. O mais importante é que vocês conseguiram! Foi uma
proeza. E isso quer dizer que temos uma chance. Genial!
— Obrigada — disse Jade, sem nenhuma modéstia. — Não foi tão
difícil assim.
— Ainda bem, porque o que temos pela frente não será nada fácil.
— Veremos — disse Jade. Depois, com a voz um pouco alterada,
completou: — Não tenho medo.
Paris, 2002 Acordei. Pela primeira vez em muito tempo, escutei as batidas de
meu coração e me senti viva e feliz por isso. Com dificuldade, percebi um
raio de luz no fim do abismo negro da dor, da escuridão cotidiana e sem
esperança. Não podia ignorar que a morte me espreitava, que ela tomaria
conta de mim sem nenhuma piedade. Eu tinha medo. Sentia frio. Minha vida
não tinha sentido. Embora viva, eu já estava morta. Os dias eram todos
iguais, desesperados, inúteis e repletos de sofrimento. A doença me
devorava. Não conseguia mais combatê-la. Esgotei minhas lágrimas e minha
coragem. Nada mais me restava. Tudo parecia sem sentido. No fundo, minha
existência tinha se reduzido a nada; não me sobravam forças nem mesmo
para achar que o desespero era uma injustiça.
Uma noite a mais, igual àquelas que vieram antes e às que viriam
em seguida. Pelo menos, era isso o que eu pensava quando adormeci. Não
costumo sonhar. Durmo pouco e mal. Mas, dessa vez, aconteceu uma coisa
rara. Tive um sonho maravilhoso e incrivelmente real. Deu-me a impressão
de que, num mundo longínquo, ele acontecia de verdade. Como saber se os
sonhos não são mensagens de uma existência real e se minha vida, tão sem
sentido, não é o reflexo desse mundo desconhecido? Tive um acesso de
tosse. Agarrei-me à lembrança do sonho com todas as forças. Jade, Opala e
Âmbar... Estranho! As iniciais de seus nomes formavam meu apelido: Joa.
Antigamente todo mundo me chamava assim, embora meu nome verdadeiro
seja Joana. Tentei engolir o nó que se formava em minha garganta. Julgava
que tinha ultrapassado a fase em que a saudade trazia lágrimas aos meus
olhos. Joa. Isso pertencia ao passado. Um tempo que tinha ido embora.
Agora, eu não tinha mais nome, já que ninguém se dava ao trabalho de falar
comigo. Eu não passava de um corpo inerte, sobre uma cama, em um
quarto. Nada.
Voltei a fechar os olhos. Minhas pálpebras queimavam. A
esperança não me levaria a lugar algum. Ainda assim, eu queria que o sonho
continuasse.
11 Jade e Adrien prepararam cuidadosamente o plano de fuga. Não
pareciam duvidar do sucesso. O rapaz levou um bom tempo procurando a
fórmula mágica em livros ocultos. Finalmente, sacudiu uma folha amarelada
e gasta pelo tempo. Jade a examinou e organizaram um cronograma para as
operações. Por fim, chegou a hora de conjurar o feitiço.
— E tarde demais para voltar atrás — pensou Opala. — Agora,
deveria ir até o fim. No entanto, alguma coisa dentro dela dizia o contrário.
Âmbar já tinha saído do torpor, mas ainda se sentia muito
debilitada. Jade e Adrien estavam impacientes para começar.
Jade pegou a fórmula mágica e Opala aproximou-se. Âmbar
juntou-se a elas, com as pernas ainda bambas e a cabeça enevoada.
— Bom — disse Adrien, com o coração aos pulos. — Vamos lá!
Basta recitar a fórmula mágica sem parar, sem interromper. O círculo
encantatório é invisível. Vocês serão a fonte que alimentará a magia.
As meninas pegaram as pedras.
Os habitantes de Nathyrnn já devem estar a caminho da saída da
cidade — disse Adrien, febril. — Vou encontrá-los lá. Nesse meio tempo,
vocês vão recitar o encantamento. Então, eu abro as portas da cidade, vocês
me encontram lá, e todos estarão livres!
— Já sabemos — disse Jade. — É muito simples.
— Não será muito fácil para vocês chegarem até lá — preveniu
Adrien. — O esforço necessário para fazer o encantamento as deixará muito
enfraquecidas. Espero que o cansaço só as pegue quando já estiverem fora
de Nathyrnn.
— Sem problemas — cortou Jade, com firmeza.
— Concentrem-se bem — insistiu Adrien.
— Chega! Você já explicou tudo! — resmungou Jade, impaciente.
Não chegaram a discutir. Adrien foi ao encontro dos habitantes da
cidade. As meninas apertaram suas pedras nas mãos e começaram a recitar
a fórmula mágica. Nada aconteceu. As palavras não faziam sentido.
Tornaram a ler a fórmula diversas vezes. Seus corpos foram invadidos pela
lassidão. Depois de alguns minutos, pararam ao mesmo tempo,
compreendendo que o feitiço já tinha sido lançado. Não estavam cansadas,
não tinham mais capacidade de refletir ou de falar. Eram apenas corpos
desprovidos de pensamentos. No entanto, sabiam o que deviam fazer, como
se estivessem controladas por uma vontade desconhecida. Correram até a
saída de Nathyrnn, onde Adrien as esperava diante das portas abertas. As
pessoas estavam maravilhadas e agitadas. A liberdade parecia um milagre.
— Chegaram! — exclamou Adrien quando viu as meninas. —
Parece que tudo está dando certo. Agora, é preciso tirar todo mundo daqui.
Alguns virão conosco até Conto de Fadas, outros seguirão para suas
próprias cidades.
Jean Losserand estava entre os últimos. Finalmente, reencontraria
sua mãe e seu lar. Do meio da multidão que se apressava em sair, fez um
sinal para Jade, Opala e Âmbar, com os olhos molhados por lágrimas de
felicidade e incredulidade. Mas as meninas não o viram. E, ainda que o
vissem, não poderiam reconhecê-lo.
Adrien prosseguiu:
— Agora, continuem. Preciso libertar os prisioneiros que estão
trancados nas celas. Sei onde encontrar as chaves, mas isso tem que ser
feito logo. Avancem na direção de Conto de Fadas durante dez minutos,
depois façam uma parada para descansar e esperem por mim.
As meninas permaneceram em silêncio. Seguiram a multidão com
o espírito vazio, sem manifestar o menor espanto diante da inacreditável
cena: a população inteira empurrando-se para fora da cidade enquanto os
cavaleiros da Ordem dormiam tranqüilamente...
As meninas e uma parte dos habitantes de Nathyrnn avançaram
pela noite. De acordo com as instruções de Adrien, pararam ao fim de dez
minutos. Pouco depois, o encantamento acabou. Jade, Opala e Âmbar
desmaiaram sobre a terra seca. A magia tinha esgotado suas energias.
Enquanto durou seu efeito, as meninas não se deram conta, mas agora
percebiam como estavam debilitadas. Todos os esforços para fazê-las voltar a
si revelaram-se inúteis.
Dez minutos mais tarde, Adrien chegou, acompanhado por mais de
cento e cinqüenta prisioneiros.
— Até agora, tudo está indo muito bem — disse o rapaz.
Um dos mais velhos habitantes de Nathyrnn apontou para as
meninas caídas no chão. Adrien sabia que o estado delas não era grave,
mas, vendo Jade imóvel e inconsciente, não pôde deixar de sentir um
calafrio. Logo se recompôs.
— Vamos prosseguir. Eu carrego uma das meninas e vocês levam
as outras. Antes de chegarmos à fronteira, elas já estarão recuperadas.
Estão apenas esgotadas. Foram elas que lançaram o encantamento que nos
permitiu chegar até aqui.
Um murmúrio admirado percorreu a multidão. Com um gesto
brusco, Adrien interrompeu o falatório.
— Elas não terão forças para lançar um segundo encantamento e
adormecer os cavaleiros que guardam a fronteira. Não há escolha: será
preciso provar que nossos sonhos valem a pena, que nossa coragem não é
apenas ilusão. Teremos que lutar.
Um clamor amedrontado elevou-se da multidão. Adrien manteve-se
imperturbável:
— Antes de saírem, os prisioneiros pegaram as espadas dos
cavaleiros adormecidos. Como alguns ainda são crianças e outros não têm
forças para o combate, as armas serão entregues aos mais fortes e hábeis
entre nós. Não fugimos à toa! Temos um objetivo e ele está próximo. Aqueles
que possuem coragem para lutar, dêem um passo adiante. Nada resiste à
esperança!
A fronteira do ducado de Divulyon era fortemente vigiada, mas
diante do ardor de Adrien, de sua vontade inabalável, cada homem forte deu
um passo à frente. Adrien se encarregou de distribuir as armas.
— Nada resiste à esperança — murmurou pela segunda vez, para
tentar convencer a si próprio.
Os habitantes de Nathyrnn retomaram a marcha. Dois homens
carregavam Jade e Âmbar. Adrien encarregou-se de levar Opala. O rapaz
percebeu que uma certa nobreza emanava da menina. Deixou-se levar pelo
calor do corpo que apertava contra si e avaliou a tropa que conduzia. Em
cada olhar, brilhava uma determinação emocionada. Mulheres, velhos,
crianças, todos avançavam corajosamente. A noite estava escura, mas o
caminho pedregoso que atravessavam era o da liberdade. Ninguém falava,
saboreando a frágil tranqüilidade que os envolvia.
As três meninas não demoraram a voltar a si. Estavam exaustas,
com uma forte dor de cabeça, o corpo dolorido, mas lúcidas. Bem que
gostariam de tentar novo encantamento, mas estavam totalmente
incapacitadas. Os homens pousaram-nas no chão, mas elas mal conseguiam
se manter de pé e caminhar. Foi preciso ampará-las por um bom tempo.
Cerca de um quarto de hora mais tarde, os combatentes chegaram
à fronteira do ducado de Divulyon. A escuridão os protegia dos olhares
inimigos. Diante deles, enfileiravam-se centenas de cavaleiros da Ordem.
Logo adiante, o campo magnético que envolvia Conto de Fadas formava uma
abóbada que, embora opaca, emitia uma deslumbrante claridade.
— Lutem com bravura! — disse Adrien aos homens armados. —
Vamos fazer uma bela confusão para distrair os guardas e permitir que os
mais fracos passem primeiro. Só recuem em último caso.
Com essas palavras, o rapaz brandiu sua espada e avançou,
seguido pelos homens. Na falta de armas, alguns entraram na batalha
apenas com gritos de guerra e mãos nuas.
No início, o ataque surpresa funcionou bem. Mães e crianças
correram em debandada para o campo magnético. Ocupados em defender-se
dos atacantes, os cavaleiros da Ordem pouco puderam fazer para detê-las.
As crianças entraram em Conto de Fadas sem dificuldades e suas mães
conseguiram acompanhá-las. Mas, no campo de batalha, o jogo virava
rapidamente. Os cavaleiros da Ordem venciam seus adversários sem
piedade. Apenas uma dezena de homens, entre eles Adrien, estavam
conseguindo desestabilizá-los de fato. Muitos dos antigos habitantes de
Nathyrnn caíam, agonizantes ou gravemente feridos. Protegidos pela
escuridão, restavam apenas uns poucos homens frágeis, alguns idosos,
várias senhoras, Jade, Âmbar e Opala.
— Se esperarmos mais, não conseguiremos passar — disse Jade
repentinamente. — Temos que tentar agora. Corram! Salvem-se! Não parem,
passem entre os cavaleiros. Ainda há alguma esperança. Sigam-me!
Juntando as poucas forças que havia recuperado, Jade entrou na
briga, sem o menor medo, e pegou no chão uma espada manchada de
sangue. Sua educação tinha sido completa. Conhecia línguas antigas, mas
também sabia lutar muito bem. Ergueu a espada. Nesse momento, o tilintar
das armas em choque diminuiu, e depois silenciou completamente.
Tanto os cavaleiros da Ordem quanto os fugitivos não puderam
evitar a perturbação diante da visão da jovem de catorze anos, cabelos
negros e olhar firme. Sua imagem parecia deslocada naquele lugar, onde o
sangue corria em abundância. Os cavaleiros da Ordem hesitaram. Por um
instante, não souberam o que fazer. Foi um erro. Rápida e ágil, Jade atacou
um deles. Âmbar, Opala e os fugitivos, incapazes de lutar, aproveitaram para
tentar atravessar o campo de batalha. Âmbar passou pelo campo magnético
sem nenhuma dificuldade. Outros, depois de intensa concentração,
conseguiram entrar com alguma dificuldade. Mas muitos fugitivos, entre eles
Opala, não puderam atravessar a fronteira que os separava de Conto de
Fadas. De repente, Adrien, que combatia furiosamente, gritou para Jade e
para os homens que restavam:
— Vamos recuar! Se continuarmos, não conseguiremos sobreviver.
Mas Jade não lhe deu ouvidos. Com uma técnica admirável, vencia
os mais experientes cavaleiros da Ordem.
— Anda, Jade! Venha! — Estamos em minoria, não podemos mais
vencer!
Quase a contragosto, Jade recuou na direção do campo magnético
com Adrien e os outros homens. Apertando firmemente sua pedra, tentou
passar pela proteção de Conto de Fadas. "Eu acredito", disse a si própria.
"Preciso ir ver Oonagh. Conto de Fadas existe. O impossível também." Sentiu
uma imensa dor. Seu corpo foi violentamente sacudido por espasmos. Um
vento glacial a invadiu. Tentou avançar, sem sucesso. Fechou os olhos,
cerrou os punhos. Quando os reabriu, percebeu que estava dentro de Conto
de Fadas. Do lado de fora do campo magnético, as coisas estavam
complicadas. Poucos sobreviventes tinham seguido Jade até a fronteira.
Agora, só Adrien e aqueles que não conseguiam acreditar no impossível,
entre os quais se encontrava Opala, ainda estavam do lado de fora.
Percebendo que muitos haviam conseguido escapar, ou tinham fugido da
luta, os cavaleiros da Ordem avançaram sobre os últimos combatentes.
Adrien não se conformava em abandoná-los. Alguns choravam,
desesperados, outros gritavam de pavor.
— Basta acreditar — dizia-lhes Adrien. — Façam um esforço,
lembrem-se de um sonho de criança, não importa qual. Vocês vão conseguir.
Mas ele sabia que não era verdade. Além disso, era tarde demais.
Subitamente, para surpresa geral, Opala avançou na direção dos inimigos.
Com a voz firme e forte, falou:
— Cavaleiros! Não peço para me pouparem. Mas tenham suficiente
justiça no coração para julgar os que me acompanham. O único crime que
cometeram foi o de buscar a liberdade. Os senhores acham que, por isso,
eles merecem a morte?
Adrien olhou para Opala, admirado. Logo ela, que costumava
manter os olhos baixos, fixava nos cavaleiros seu olhar impassível.
Mantinha-se tão firme que dava a impressão de ser invulnerável. Parecia tão
majestosa, tão bonita... Adrien percebeu, então, que tinha estado cego até
aquele momento. Amava Opala. Correu na direção da menina, tentando
protegê-la. Queria dizer a ela o que sentia. Mas um dos cavaleiros foi mais
rápido. As palavras de Opala o faziam rir. Não faziam sentido para ele, um
soldado treinado para ceifar vidas, e não para preservá-las. O homem
desembainhou sua espada afiada e, sem nenhuma piedade, enterrou-a no
coração da menina. Com um brutal sorriso nos lábios, viu a lâmina
trespassar o corpo de Opala.
O corpo inerte desabou sobre os braços de Adrien. O sangue,
escarlate, derramou-se sobre suas roupas. Ela nunca tinha estado tão
bonita, serena até mesmo na hora da morte. Lágrimas transbordaram dos
olhos de Adrien e o rapaz pousou seus lábios na boca, ainda doce e morna,
de Opala.
— Eu a amava — disse Adrien, com simplicidade.
Os cavaleiros da Ordem entreolharam-se. Estavam acostumados às
lamentações, ao choro e às acusações, nada disso os tocava. Era só esperar
acabar. Mas Adrien continuou, com sua voz triste e segura:
— A culpa não é de vocês.
Os cavaleiros viraram a cabeça, surpreendidos.
— Vocês foram educados para a guerra, só aprenderam matar. E
esse o seu ofício e vocês são muito bons nisso. Vocês são homens, sabem
manejar as armas melhor do que ninguém.
Os cavaleiros estavam cada vez mais espantados.
Discretamente, Adrien tirou a pedra de Opala da bolsa de veludo e,
como a tinha visto fazer, apertou-a na mão. Depois, prosseguiu:
— No entanto, esqueceram-se do mais importante. Todos vocês
possuem um coração, também podem amar. E é isso que faz de vocês
homens de verdade.
A assistência balançou lentamente a cabeça. Estranhamente,
ninguém ousava pensar em continuar a luta.
— Vocês mataram a mulher que eu amava — disse Adrien. — Mas
não os culpo.
Seriam as palavras de Adrien que emudeciam os cavaleiros ou a
visão do corpo inerte de Opala? Ou seria o poder mágico da pedra? Ninguém
jamais soube a resposta. Então, Adrien falou, com toda a simplicidade:
— Se vocês são homens, sabem o que devem fazer. Nesse
momento, um dos cavaleiros, hesitante, colocou sua espada de volta na
bainha. Os outros seguiram seu exemplo. Não sabiam se estavam fazendo a
coisa certa, mas uma força interior os obrigava a isso.
Então, dando as costas a eles, Adrien dirigiu-se para o campo
magnético. Apertou a pedra com força, segurando as lágrimas. Ele e Opala
eram um só. Ela o havia amado. Ele a amava.
Passaram sem dificuldades pelo campo magnético de Conto de
Fadas. Assim como a esperança, o amor tinha vencido o impossível.
12 O ferimento era profundo: um talho ensangüentado no antebraço
esquerdo. Na véspera, tinha lutado contra os Bumblinks, criaturas maléficas
que espalhavam-se pela floresta setentrional de Conto de Fadas. Resolveu
atravessar a floresta assim mesmo. Não queria fazer uma longa e cansativa
viagem para contorná-la. Mas não tinha sido boa escolha. A floresta era
povoada por seres malignos, que não toleravam a presença humana. Em
apenas três dias, tinha se metido em duas batalhas e, numa delas, perdera
seu cavalo. Felizmente, a noite já estava chegando; logo, os seres da floresta
adormeceriam.
Parou em uma das poucas clareiras. Não tinha forças para
prosseguir. De repente, escutou um ruído. Rapidamente, usou a mão boa
para empunhar sua espada. Uma silhueta surgiu.
Desconfiado, o rapaz esperou. O desconhecido avançou.
Pequenino, atarracado, estava vestido com uma túnica verde-escura e trazia
uma espada na cinta. Impossível saber ao certo sua idade: apesar de
algumas rugas que riscavam seu rosto, sua expressão era juvenil. Os
cabelos, de um louro muito pálido, caíam em desalinho sobre a testa
proeminente. Tinha um nariz minúsculo e achatado, lábios descoloridos,
mas carnudos. Suas sobrancelhas, assim como o cabelo, eram muito finas,
quase brancas e encimavam dois grandes olhos negros, de olhar
despreocupado, mas experiente. Um grande sorriso espalhava-se por seu
rosto, aparentemente benévolo. No entanto, bastava observá-lo melhor para
perceber que podia tornar-se irredutível, caso a situação assim o exigisse.
Seria humano? A primeira vista, parecia ser. Seu aspecto era bem parecido
com o de um homem. Entretanto, olhando com atenção, percebia-se que sua
pele tinha uma leve coloração de prata.
— Guarde sua espada, estrangeiro! — disse a criatura. — Sou de
paz.
Desconfiado, o rapaz não obedeceu à criatura. Mas, depois de um
momento de reflexão, acabou cedendo.
— Vim de longe para encontrar você — continuou a criatura. —
Meu nome é Elforhys e estou me apresentando para pedir ajuda, não para
brigar.
Elforhys avançou alguns passos. Observou o rapaz. Devia ter cerca
de dezoito anos. Seus cabelos eram castanho-escuros. Os olhos, muito azuis,
com ligeiros tons de esmeralda, deixavam perceber certa melancolia. Seu
rosto era muito sério.
Elforhys sentiu que sua respiração acelerava-se. "Até que enfim",
disse para si mesmo.
— Diga, você é um hovalyn, um cavaleiro errante, como o povo diz?
— Sim, eu sou — confirmou o jovem.
— E qual é o seu nome? — perguntou Elforhys, com o coração aos
pulos. — Diga sem medo.
Não tenho nome — confessou o hovalyn. — Se tenho, não sei qual
é. Há dois anos, acordei no meio de um campo, sem nenhuma lembrança.
Meu passado estava apagado de minha memória. Então, decidi tornar-me
hovalyn e partir à procura de meu nome.
— O Inomeado! — exclamou Elforhys com uma admiração e
entusiasmo sinceros. — Sua reputação é conhecida em todo o Conto de
Fadas! Em toda a parte fala-se de um corajoso hovalyn que procura o
próprio nome. Então, é você o Inomeado?
— Infelizmente, sim. Minha busca parece não levar a lugar algum.
— Posso ajudá-lo. Posso auxiliá-lo a atravessar a floresta e
acompanhá-lo ainda mais longe.
— E por que faria isso?
— Também tenho uma busca a fazer, mas não posso revelar o
motivo nem seu objetivo.
"Procuro pelo Eleito. E acho que já o encontrei" — acrescentou
Elforhys para si mesmo.
O Inomeado não fez objeções. Depois de tudo o que tinha passado,
um companheiro de viagem seria bem-vindo, ainda que fosse um
companheiro misterioso.
O rapaz ficou em silêncio. Como de hábito, seus pensamentos
estavam fixados em seu sonho: encontrar sua identidade. Já tinha
percorrido a maior parte de Conto de Fadas perguntando a cada pessoa se
sabia alguma coisa sobre sua origem. Não conseguiu nenhum resultado
concreto. E verdade que, muitas vezes, foi recompensado por combater
monstros que aterrorizavam a população. Mas o que ele queria não era a
glória. Depois de enfrentar mil peripécias, à noite, antes de adormecer, as
perguntas de sempre voltavam à sua mente: qual seria seu nome, qual seria
sua origem? Dependendo do seu humor, ele inventava um passado diferente.
Mas isso não era suficiente para estancar o desejo; ao fim dos devaneios,
acabava ainda mais frustrado.
Já estava ficando tarde e a fome começava a apertar. O Inomeado
abriu sua pesada sacola e tirou um grande pedaço de pão, um cantil de
água, presunto defumado e uma fruta de aspecto estranho. Ofereceu a
Elforhys, que agradeceu polidamente e tirou, de sua própria sacola, uma
refeição nada comum: uma massa arroxeada, viscosa e gosmenta, que
devorou em poucos minutos. Depois, já satisfeito, esperou pacientemente
que seu companheiro terminasse de comer.
Em silêncio, o Inomeado acendeu uma fogueira, sentou-se, e
mergulhou em seus pensamentos. A situação era inusitada. De uma hora
para outra, passava a ter a companhia de um estranho a respeito do qual
não sabia nada, ou quase nada. Poderia confiar nele?
Elforhys já dormia profundamente. Mas o Inomeado não conseguia
pegar no sono. Estava deitado, com os olhos abertos, observando as estrelas
cintilantes. Tentava reconhecer as diferentes constelações e citá-las pelos
nomes. Uma saudade indefinível invadia seu coração. Quem era ele?... Quem
era ele?... Não possuía nenhuma lembrança, nada que fizesse dele um ser
humano. Era apenas um corpo, uma alma em sofrimento, um estranho para
si mesmo. Tirou a espada da cinta, observou a lâmina comprida, uniforme e
cortante e imaginou-a penetrando seu coração. Sentiria frio? Talvez não, o
inverno já vivia dentro dele, um eterno inverno feito de perguntas sem
respostas. Será que sua presença era necessária nesse mundo?
As estrelas brilhavam mais do que de costume. Levantou-se, com a
espada na mão, e começou a caminhar, sem saber para onde, sem pensar
que poderia se perder. Que importava? Entrou por um caminho sinuoso e
embrenhou-se nas profundezas da noite. Caminhou por um longo tempo,
sem parar e sem prestar atenção a nada. Finalmente, chegou a uma clareira
iluminada pela luz pálida da lua. Encontrou um lago, sentou-se na margem
e contemplou o rosto refletido nas águas. O rosto era o seu, mas, sem um
nome, o que significava? Meditou longamente, com a espada ao lado.
Repentinamente, a água agitou-se e uma criatura parecida com uma sereia
surgiu do lago. Linda, com o corpo de mulher arrematado por uma cauda
coberta com escamas de ouro, só poderia ser uma criatura do mundo das
fadas. Sua pele era de uma brancura e de uma pureza quase perfeita
demais. Seus traços eram bem desenhados e os olhos azuis, salpicados de
ouro. Seus cabelos negros caíam sobre os ombros em cachos grandes e
sedosos, e não pareciam molhados da água de onde ela tinha acabado de
sair. Nas mãos, entre os dedos finos, trazia um estojo de ouro cravejado de
pérolas. Dirigiu-se ao Inomeado sem demonstrar medo:
— Você, mortal, ousou aventurar-se pela margem do lago dos
Tormentos! Apenas as almas que sofrem têm permissão para contemplar seu
reflexo. Aqueles que procuram um consolo, quando não o merecem, morrem
afogados. Eu e minhas irmãs somos as guardiãs do lago. Aparecemos muito
raramente, e apenas para aqueles que são dignos de tal encontro. Vim até a
superfície para encontrá-lo, mortal, pois devo entregar uma coisa que
pertence a você.
— Você está enganada. Só tenho um corpo, uma alma... Não sou
nada, nem sequer tenho um nome. Me chamam de Inomeado.
— Conheço sua identidade, seu passado e até mesmo uma parte de
seu futuro. E não sou a única. Mas, mesmo que você peça, não revelarei o
nome que lhe deram na hora de seu nascimento. Não é essa minha missão.
Só tenho o direito de lhe entregar este estojo. Ele foi confiado, a mim e a
minhas irmãs, alguns anos atrás. Prometemos só entregá-lo a uma pessoa
especial, que estava destinada a aparecer às margens do lago. A pessoa é
você, mortal. Cuide bem do conteúdo deste estojo. Essa era a vontade de
quem o deixou conosco.
O Inomeado pegou o objeto. A sereia mergulhou nas profundezas
do lago sem mais uma palavra, sem nenhum ruído. Sem saber o que pensar
de tudo aquilo, mas tomado pela curiosidade, abriu cuidadosamente a
tampa, com a respiração suspensa e o coração em disparada. A caixa estava
vazia.
Era muito raro que o Décimo Terceiro membro sentisse cólera.
Dessa vez, no entanto, sua fúria era indescritível. Tremia de raiva, seu rosto
estava deformado. Urrava e sua voz repercutia pelos salões do palácio do
Conselho dos Doze.
— O quê? — rugiu. — Está me dizendo que toda a cidade de
Nathyrnn escapou? Você acha que sou imbecil?
Sobre uma grande placa dourada, que flutuava no ar, havia a
imagem de um cavaleiro da Ordem, com a expressão apavorada.
— Sim, todos escaparam — confessou o homem, com a voz quase
inaudível.
— Que explicação você dá para isso? — rugiu o Décimo Terceiro
membro do Conselho. — Vai me dizer que estava dormindo?
— Bom... na verdade... sim — balbuciou o cavaleiro, confuso e
envergonhado.
— Como ousa mentir para mim? Não sabe o que o espera? A morte!
Em praça pública e com desonra!
— Mas juro... não estou mentindo.
— Passe para a fronteira do ducado de Divulyon! Imediatamente!
— Logo, a imagem se embaralhou e deu lugar ao rosto de outro
cavaleiro da Ordem.
— Comandante-em-chefe dos cavaleiros da Ordem de proteção à
fronteira do ducado de Divulyon, às suas ordens! — recitou o homem.
— Comandante — disse o Décimo Terceiro membro, bastante
alterado, por acaso o senhor interceptou um grupo de fugitivos algumas
horas atrás?
— Quer dizer que... — respondeu o comandante com a voz muito
humilde e hesitante.
— O que aconteceu? — gritou seu interlocutor. — Não minta!
De fato, interceptamos algumas pessoas. Mas neutralizamos a
maior parte do grupo. Combatemos bravamente. Nossas tropas foram
duramente testadas. Nós...
— Quero saber se alguém passou para Conto de Fadas!
— Sim — confessou o comandante, baixando o olhar.
— Impossível! — urrou o Décimo Terceiro membro. — Quem
conduziu essa revolta?
— Aparentemente, um rapazinho que não conseguimos identificar.
— Havia também três meninas, em torno de catorze anos?
— Creio que sim. Uma delas lutava especialmente bem.
— Não me diga que ela está morta ou você morrerá!
— Ela não. Mas uma outra.
— Outra? Qual?
— Uma loura, de olhos muito claros, pele leitosa, roupas simples.
— Como? Cavaleiro, você acaba de assinar sua sentença de morte!
— vociferou o Décimo Terceiro membro do Conselho.
Fez um gesto com a mão e a imagem desapareceu. Cerrou os
punhos, furioso. Seu plano tinha fracassado. Não apenas Opala tinha ido a
Nathyrnn como havia morrido cedo demais. Além disso, as outras duas
pedras estavam em Conto de Fadas, fora de alcance. Juntas, as três pedras
representavam uma ameaça, eram poderosas. Com a morte de Opala... tanto
pior. Ele não teria piedade das outras.
Então, teve uma idéia. Seu rosto foi deformado por um sinistro
ricto de satisfação.
13
A paisagem estava mergulhada na escuridão, mas era possível
adivinhar planícies repletas de plantas selvagens e colinas cobertas de
bosques.
Os antigos habitantes de Nathyrnn transbordavam de alegria e
abraçavam-se com o rosto transfigurado de felicidade. Como não acreditar
no impossível, depois de ter visto os impiedosos cavaleiros da Ordem
recolherem suas espadas?
Só Adrien, Jade e Âmbar não partilhavam a euforia geral. Estavam
em silêncio, mergulhados em pensamentos sombrios. A morte de Opala os
havia surpreendido e perturbado. Ela não estava mais entre eles, jamais
voltaria. Ainda não conseguiam aceitar uma partida tão súbita. No entanto,
o corpo inanimado da menina estava nos braços de Adrien. Seus cachos
louros balançavam em vão, seus lábios descoloridos estavam fixados em um
tímido sorriso, o sangue havia abandonado seu rosto pálido. Apesar de tudo,
e a despeito da morte, ela continuava bela e parecia ainda mais inacessível.
Adrien, com o coração repleto de arrependimento, continha a custo
as lágrimas e a tristeza. Embora estivesse muito perturbado, fechou o rosto e
levou Jade e Âmbar à casa de seu amigo Owen d'Yrdhal. A casa era
imponente mas sem extravagância. A porta de entrada estava aberta, já que
ninguém se dava ao trabalho de fechá-la. Adrien entrou e dirigiu-se ao
quarto de hóspedes, onde costumava dormir. Não precisava explicar o
motivo de sua chegada. No corredor escuro, cruzou com alguns rapazes que
estavam se divertindo àquela hora da noite, mas não ligou para eles.
No quarto, deitou Opala sobre lençóis brancos e frescos, ajoelhou-
se a seu lado, segurou sua mão ainda morna, e ficou olhando para ela.
Pouco atrás dele, estavam Jade e Âmbar. Não sabiam que lugar era
aquele, nem o que fazer, nem o que estava acontecendo... Não queriam mais
pensar, nem mesmo se mexer. Opala estava morta. E isso era uma coisa
impossível de conceber.
Âmbar não conseguia evitar o choro. Cega pelas lágrimas,
perguntava-se por que a vida era tão incompreensível, por que não
demonstrava nenhum respeito por aqueles que decidia aniquilar. Ela
acreditava que Opala não podia ser atingida por nada, que era imortal. Por
que partira de maneira tão prematura e cruel?
Jade sentia-se mal. Não conseguia ficar sinceramente triste com a
perda de Opala. Algumas lágrimas rolaram pelo seu rosto, mas eram mais
devidas ao horror que a morte lhe inspirava, à angústia de, um dia, se ver
jogada no vazio sem fundo, sem fim, onde não existia pensamento, nem
sonhos, onde estaria afastada do mundo, esquecida... Um pouco
envergonhada, teve que confessar a si própria: detestava Opala. Nem morta,
conseguia lhe dedicar algum afeto, só um pouquinho de compaixão. No
entanto, sabia que ela, Opala e Âmbar formavam um conjunto, um todo
indefinido, que não deveria ser separado. Opala não podia ter morrido, Jade
tinha certeza, disso. Seus sentimentos eram contraditórios. Por um lado, não
lamentava a morte de Opala; por outro, sentia-se culpada pela própria
insensibilidade. Lembrava-se da frieza e do desprezo que a menina
demonstrava por ela. Mas uma voz lhe murmurava que Opala era
indispensável, e a reprovava por ter sido tão dura e arrogante.
Nesse momento, um homem entrou no quarto. Era bem apessoado,
tinha ombros largos e seu sorriso aberto iluminava um rosto franco e alegre.
Aparentava ter vinte anos. Estava vestido com simplicidade e parecia irradiar
felicidade. Da porta, gritou:
— Adrien! Que bom vê-lo de volta! Vim correndo quando soube que
estava aqui. Conte-me logo: quem são essas lindas senhoritas?
Dirigindo-se a Âmbar e Jade, exclamou:
— Sou Owen d'Yrdahl, amigo de Adrien e estou encantado em
conhecê-las. Sejam bem-vindas à minha casa.
Adrien levantou-se, deixando entrever o corpo de Opala, e falou,
com a voz pouco firme:
— Veja, Owen! Ela está morta! Morta! Por minha culpa. Foi
assassinada por um cavaleiro da Ordem, mas eu podia ter impedido e não fiz
nada!
O sorriso de Owen desapareceu por completo. Precipitou-se para a
cabeceira da cama, tomou o pulso de Opala e olhou o sangue que escorria da
ferida. Sem maiores explicações, abandonou o quarto. Jade e Âmbar
entreolharam-se, espantadas. Ao fim de poucos minutos, Owen retornou,
acompanhado de um homem atarracado, de meia idade, que examinou
Opala em silêncio.
— Este é Loghin, um de nossos curandeiros mais experientes —
disse Owen. — Nesse caso, não sei se vai adiantar, mas é preciso evitar que
a menina perca sangue demais.
— Owen, pare de brincar comigo — disse Adrien com a voz
cansada. — Opala está morta. Não vejo o que um curandeiro possa fazer por
ela. Isso não tem graça nenhuma.
—Graça?
Owen franziu a testa e gritou:
— É verdade! Você não está sabendo!
— Não estou sabendo do quê? — perguntou Adrien, sentindo uma
esperança insensata invadir seu coração.
— Da greve da Morte! Há dois séculos que ela não leva ninguém. E
muito desagradável. Mas sua amiga está viva.
— Muito desagradável? — repetiu Âmbar. — Não vejo nada de
desagradável num milagre. O que é essa greve da Morte?
— Todo mundo sabe que a Morte é uma criatura que habita Conto
de Fadas. Evidentemente, ela mora em lugares aonde ninguém pode ir.
Poucas horas atrás, ela resolveu não trabalhar mais. Então, ninguém pode
morrer.
Jade e Âmbar estavam estupefatas. Adrien, mais acostumado a
Conto de Fadas, não continha as lágrimas de felicidade.
— A Morte está deprimida — prosseguiu Owen. — Acha que
ninguém gosta dela — o que é verdade. Mas ela queria que reconhecessem
seu valor. Dizem que quer se matar. Como isso é impossível, ela fica ainda
mais deprimida. Seus conselheiros estão desesperados.
— Então, Opala está viva! — entusiasmou-se Âmbar.
— Sim, mas levará tempo até ficar completamente restabelecida.
Por isso, não deve perder mais sangue.
Loghin, o curandeiro, aplicou bálsamos e compressas no ferimento
de Opala, enquanto recitava estranhas palavras.
— A última greve da Morte teve terríveis conseqüências prosseguiu
Owen. — Durou dez anos. Durante esse tempo, quem se feria, ou ficava
doente, curava-se rapidamente. Mas aqueles que estavam em pior estado,
continuavam a agonizar sem que a Morte os libertasse do sofrimento.
Finalmente, os conselheiros conseguiram trazê-la de volta à razão. Mas,
desta vez, tenho a impressão de que a coisa é mais séria.
— Que história! — exclamou Âmbar, impressionada.
— Bom. Agora que já estão mais tranqüilos com relação à sua
amiga — Opala, se entendi bem —, o que acham de nos conhecermos
melhor? —- propôs Owen a Âmbar e Jade.
— Bom, faz pouco tempo que conhecemos Adrien. Ainda assim,
nós o ajudamos a libertar uma cidade, e viemos encontrar Oonagh, a
criatura que lê corações ou coisa parecida — disse Jade, tonta de cansaço.
— Eu sou Jade, mas isso é tudo o que sei sobre minha pessoa. Fui expulsa
de meu palácio por meu próprio pai e tenho inimigos por toda a parte. Isso
não era exatamente a idéia que eu fazia de uma vida feliz, mas enfim...
— Eu sou Âmbar — disse a outra menina simplesmente.
— Jade, Opala, Âmbar... — murmurou Owen, como se fizesse uma
constatação evidente.
Jade estava quase desabando. Sentia-se esgotada, sua cabeça
rodava, ela não sabia mais o que dizer.
— Preciso... dormir... — murmurou, percebendo que
suas pálpebras estavam cada vez mais pesadas.
Sim, claro, vou providenciar um quarto para vocês disse Owen. E,
dirigindo-se a Adrien:
— Espere um pouco, já volto.
Pouco depois, já de volta à conversa com Adrien, Owen exclamou,
muito agitado:
— As pedras da Profecia. Você me trouxe as meninas mais
comentadas em Conto de Fadas! Acho que me deve uma explicação!
— São moças inacreditáveis — declarou Adrien. — E não se
espante por Jade estar morrendo de sono. Nas últimas horas, ela esteve
combatendo os cavaleiros da Ordem.
— Mas ela é imprudente demais! Como sai contando assim seu
nome e sua história? Será que não percebe o risco que está correndo?
— Acho que não — respondeu Adrien. — Pelo jeito, nenhuma delas
conhece bem A Profecia.
— Nesse caso, não nos cabe abrir os olhos delas. Mas, me conte,
como é Lá Fora?
— Muito diferente daqui — suspirou Adrien. — Você nem imagina
quanto. São dois mundos quase opostos. Lá Fora é grande e bonito como
dizem por aqui. Mas também é cruel, violento e primitivo. A vida é rude e
arcaica. As pessoas não sabem o que é a liberdade, a sociedade delas é
hierarquizada e injusta.
— Você não está exagerando?
— Talvez... acho que não. Mas, conte-me você: o que aconteceu por
aqui?
O rosto de Owen tornou-se sombrio.
— Estamos ficando desesperados — confidenciou num sussurro.
— Não... Não me diga que o Eleito...
— Exatamente. Não foi encontrado.
— Isso é muito preocupante! De acordo com A Profecia, a batalha
está muito próxima... Se o Eleito não der sinal de vida... como lutaremos?
Em breve, começaremos a reunir o exército, mas, sem ele, isso não levará a
lugar nenhum.
—Todo mundo rumina os mesmos pensamentos que você disse
Owen irritado. — Estamos perdendo a moral. Oonagh está esperando, mas
nada acontece. Até agora, o Eleito não se manifestou.
— E se ele não chegar? Isso significa dizer que Neophileus se
enganou, que A Profecia é falsa e que nossas esperanças são inúteis —
finalizou Owen com um suspiro. — Mas isso não pode ser verdade! Se o
Eleito não existir, talvez as pedras não tenham todo o poder que
imaginamos.
— E então tudo estará perdido — disse Owen, deixando as
palavras caírem.
14 O Inomeado teve dificuldade para encontrar o caminho de volta,
mas, ao amanhecer, estava na clareira, ao lado de Elforhys. Apesar do
campo magnético que cobria Conto de Fadas, a luz do dia era clara, forte e
inundava a floresta. Uma brisa morna balançava as folhas das árvores.
Pássaros cantavam. O Inomeado e Elforhys despertaram junto com a
floresta. Embora ainda estivessem cansados e com o corpo dolorido,
resolveram partir.
De longe, podia-se escutar gritos estridentes. As criaturas da
floresta acordavam também. Eram os Bumblinks e Ghibduls.
Elforhys pertencia a uma raça pouco populosa, os Clorhyuns, da
qual também fizera parte Neophileus. Eles não possuíam verdadeiros
poderes mágicos, mas Elforhys sabia se defender e não tinha medo de lutar
contra um adversário mais ágil. Conhecia um bom caminho para saírem da
floresta, embora jamais tivesse passado por ele — seguia a indicação de um
amigo de confiança. Claro, sempre havia o risco de encontrarem os
Bumblinks ou os Ghibduls. Era preciso ficar bastante atento.
Os dois companheiros seguiram pelo caminho a passos rápidos.
Elforhys embrenhava-se com segurança por atalhos sinuosos, margeados
por plantas espinhosas e pequenos arbustos. O Inomeado não tinha medo.
Dava tão pouca importância à sua vida que não temia perdê-la. Depois de
algumas horas de monótona caminhada, Elforhys abandonou os atalhos
para se aventurar na floresta.
— Não dá para ser de outro jeito — explicou ao Inomeado, que
concordou com a cabeça.
A partir daquele ponto, a floresta parecia ainda mais ameaçadora.
Arvores retorcidas elevavam-se até o céu sem nuvens.
— Quanto mais nos aproximamos do coração da floresta, mais
forte fica a presença de criaturas maléficas — explicou Elforhys. — Já é
incrível que tenhamos chegado até aqui sem problemas.
À medida que o tempo passava, o sol levantava-se, e a atmosfera
tornava-se mais pesada, apesar da sombra das árvores. O Inomeado sentia-
se estranhamente cansado, tinha vontade de parar, deitar-se sob uma
árvore, abandonar-se ao sono. Avançava cada vez mais devagar, com o olhar
perdido no vazio. Quanto mais progredia, mais os sons tornavam-se
indistintos, e as imagens menos precisas. Sentia-se sufocar. Finalmente, o
vazio se impôs: tudo escureceu em torno dele. Seu corpo amoleceu e caiu no
chão. Uma voz anasalada ressoou: "Nada, nada, nada. Você não é nada,
nada". Em seguida, percebeu a voz suplicante de Elforhys, que lhe falava por
telepatia:
— Não deixe que façam isso, Inomeado! É um ataque mental dos
Ghibduls! Desperte, basta um pouco de vontade. Não se deixe abater!
Mas a voz de Elforhys o incomodava. Queria expulsá-la de seu
espírito, impedi-la de continuar ecoando em sua mente Sua boca estava
pastosa. Tentou, com esforço, mandar Elforhys calar-se. E, de repente, sem
querer e sem saber por que fazia aquilo, articulou nitidamente a frase: "O
estojo em minha sacola!", como se tivesse sido ditada por alguém. Depois,
caiu num estado de inconsciência, no qual gostaria de permanecer para
sempre.
No entanto, ao fim de poucos minutos, sentiu que Elforhys
colocava o estojo incrustado de pérolas em sua mão. Movido por um
poderoso instinto, abriu a tampa, e foi tomado por uma forte e imediata
sensação de bem-estar. Voltou a si em poucos instantes.
— Inomeado! Você acordou! — exclamou Elforhys. — Achei que
você estava perdido. A força mental dos Ghibduls é terrível. Sacudi você,
gritei, tentei a telepatia, mas nada funcionava.
— Obrigado — disse o Inomeado. — Se você não estivesse aqui, eu
não conseguiria sobreviver.
— E verdade. Os Ghibduls teriam capturado você, levariam-no
para seu castelo maligno e o torturariam...
— Obrigado — repetiu o hovalyn, sem saber o que mais dizer.
— Ainda bem que você falou no estojo. Estava em sua sacola.
Tentei abri-lo, mas não consegui. Ele é encantado? Só obedece a você?
— Não sei bem. Achei no caminho...
Elforhys não insistiu. Por que, mesmo tomado pelo mais profundo
torpor, o Inomeado tinha pedido o estojo? E como o objeto tinha conseguido
salvá-lo?
— Inomeado, diga-me uma coisa. Aonde você pretende ir quando
sair da floresta?
— Ainda nem conseguimos sair... — disse o rapaz, esquivando-se
de uma resposta direta.
— Os Ghibduls não vão desistir. Você escapou uma vez, mas eles
tentarão uma revanche.
— São inimigos perigosos — zombou o rapaz, querendo mudar de
assunto.
Mas Elforhys insistiu:
— Tirando isso, você nunca me disse para onde está indo.
— Estou... estou pensando em ir a Thaar — respondeu o
Inomeado, visivelmente contrariado,
— A Thaar? — repetiu Elforhys, incrédulo. — A cidade das
Origens? Por quê? Que interesse isso pode ter para um hovalyn? E uma
cidade perigosa, difícil de entrar, e você não tem nada para ajudá-lo em sua
busca!
—Na verdade, não sei aonde ir — confessou o Inomeado. — E
Thaar é um dos poucos lugares onde ainda não estive. E só por isso.
— Você já procurou Oonagh? — perguntou Elforhys, adivinhando a
resposta.
—Não, nunca. O que você acha que Oonagh pode me dizer? Sei
muito bem o que está trancado em meu coração: perguntas e sofrimento,
mas nada sobre meu passado.
— Não sei, não... Eu mesmo, algum tempo atrás, estive na gruta de
Oonagh. E soube de coisas que, embora estivessem inscritas no meu
coração, nem imaginava que existissem.
— Tenho quase certeza de que isso não adiantará nada -— teimou
o Inomeado. — Além disso, Oonagh mora tão longe, numa caverna escondida
em uma montanha escarpada... Pouca gente enfrenta essa viagem.
— Confie em mim. Siga meus conselhos. Procure Oonagh. Se isso
não o ajudar, iremos a Thaar.
Bem, por que não? Se você insiste tanto, irei à casa de Oonagh —
concordou o hovalyn.
Longe dali, no coração da floresta, situava-se o tenebroso covil dos
Ghibduls. Ninguém conhecia verdadeiramente seu estranho caráter. Em seu
próprio território, o modo de ser e de agir dos Ghibduls era muito superior
ao dos humanos: jamais guerreavam, eram tolerantes com as diferenças e
não havia lugar para a discórdia em seus lares. Muitos julgavam que os
costumes daquelas criaturas eram primitivos e que sua sociedade era pouco
evoluída. Puro engano. Os Ghibduls viviam sem conflitos e, assim como
todas as criaturas — ou talvez ainda mais do que as outras — , eram
capazes de sentir amor e piedade. Viviam livres e felizes; a floresta era sua
casa, sua diversão, e seu único limite, pois jamais tinham saído dali. Sua
aparência repulsiva ajudava a criar as muitas lendas que corriam, falando
de sua crueldade. Na realidade, eram leais e afetuosos. Mas também ferozes
guerreiros. Sabiam que eram mais fortes do que a maioria das outras
espécies e, receosos de ver seu território invadido, não poupavam os
intrusos. Para eles, aqueles estrangeiros de aspecto esquisito não passavam
de animais selvagens e cruéis, prontos para serem caçados e mortos. Sim, os
Ghibduls adoravam sentir o sangue quente escorrer pelas suas mãos, e
deliciavam-se com aquele cheiro pesado e doce que impregnava suas
narinas. Para eles, esses animais inferiores, incapazes de pensar ou amar,
deveriam ficar felizes por serem mortos por eles (aliás, os animais em
questão tinham a mesma opinião a respeito dos Ghibduls).
Recentemente, os Ghibduls tinham sofrido a afronta mais grave de
sua história. Havia um homem dentro da floresta, e esse homem os vencera.
Eles o tinham atacado para vingar a derrota que o homem infligira aos
Bumblinks, seus amigos. Mas o homem não apenas lutara valentemente,
como conseguira ferir a maior parte de seus adversários. Manejava com
destreza uma espada que parecia encantada e, sobretudo, não temia a
morte. Até então, os Ghibduls só conheciam homens apegados à vida, que se
debatiam em desespero. Mas esse hovalyn era diferente, tinham que admitir
e reconhecer isto, com uma ponta de despeito. Com o orgulho ferido,
juraram vingança, mas, no fundo, não conseguiam evitar que a admiração se
misturasse ao ódio que sentiam. Tinham tentado desestabilizar mentalmente
o inimigo, o que só costumavam fazer com seus mais valorosos adversários.
Ainda assim, o humano vencera.
Profundamente perturbados, os guerreiros procuraram a ajuda de
seus pensadores: os estrategistas e conselheiros encarregados dos assuntos
da mais alta importância. Os próprios pensadores ficaram impressionados
com o relato dos guerreiros. Mas um deles, o de espírito mais alerta, acabou
encontrando uma solução que causou espanto. No início, a oposição à idéia
foi feroz. Mas, por fim, concordaram. O homem que os derrotara ainda
poderia ser pego de surpresa, e foi o que eles prometeram...
Paris, 2002
O silêncio impenetrável, inalterável, me dava medo. Só escutava o
ruído contínuo dos aparelhos aos quais minha frágil vida estava ligada.
Sempre tive medo do escuro. Por que negar? E, para mim, a morte é isso: a
escuridão total, eterna e insondável. Imaginava-me caindo num abismo, sem
ter onde me segurar. Via-me agarrada pelo vazio, para sempre engolida por
um mundo desprovido de sentimentos, de pensamentos, de cores, de tudo.
Não estaria mais doente. Eu me perderia no nada, tudo seria esquecido,
tudo se esfacelaria, até os vestígios de minha existência. Se a morte era
mesmo assim, então a vida já tinha me abandonado. Mas, não, eu
continuava ali, deitada, imóvel, com o rosto descolorido, tremendo
convulsivamente, aguardando o fim... Sentia tanto medo que achava que ele
me mataria antes da doença. Já conseguia aceitar a dor, sabendo que ela me
devoraria meticulosamente até o fim. Mas nunca esquecia esse medo que,
sempre grudado em mim, me consumia, me perseguia, me submergia sem
descanso. Eu tinha medo do silêncio, do escuro, do tempo, do esquecimento,
da eternidade. Da morte. Queria parar o tempo, ordenar que interrompesse
seu curso, gritar para que voltasse atrás, para devolver minha vida, meu
futuro. Perto de mim, já não existia mais nada que pudesse confortar,
ajudar. Só havia a angústia, cada dia maior.
Então tive o sonho. Ele perturbou minha espera, me transformou,
me projetou para fora do tempo, fora da vida que eu levava, ou da ausência
de vida que constituía meu universo. Queria que ele não acabasse nunca,
que me fizesse esquecer de tudo, que me apagasse do mundo... Cheguei a
acreditar que poderia viver no sonho, fazer dele minha realidade, e de minha
triste realidade um sonho distante e inverossímil. Embora à minha revelia,
ele me devolveu um pouco de esperança. Mas era só um sonho. Essa
constatação estilhaçava minhas ilusões.
Então, respirei profundamente. E tive que encarar a verdade, essa
verdade que eu lia no olhar furtivo das enfermeiras, que se escondia,
morrendo de medo, no fundo de mim. Não dava para continuar acreditando
que minha vida voltaria a ser o que era antes, eu não tinha mais o direito,
nem forças para isso. Joa, a filha adorada, mimada, rodeada de amigos e de
alegria, não existia mais.
Reprimi o medo, estourei a bolha de irrealidade onde tentava me
proteger graças ao sonho. E disse, em voz alta, para melhor compreender
aquilo que me fazia fugir:
— Tenho catorze anos. E vou morrer.
Ponto final. Assunto encerrado
15 Âmbar acordou desorientada e teve um momento de pânico. Onde
estava? O que tinha acontecido? Mas, rapidamente, o dia anterior, carregado
de emoções, voltou-lhe à memória.
Levantou-se depressa, tomou um banho quente na pequena sala
íntima contígua ao quarto e vestiu-se. Provou os delicados perfumes que
estavam numa prateleira e decidiu usar um deles. Penteou-se e, uma vez
pronta, deixou o quarto. Seguiu pelo corredor e, sem saber direito onde
estava, passou diante de várias portas de madeira entalhada, sem ousar
entrar por nenhuma delas. Finalmente, depois de atravessar vários
corredores parecidos, percebeu que caminhava em círculos. Para seu alívio,
encontrou uma mulher de cerca de cinqüenta anos e explicou-lhe seu
problema. A mulher riu de sua desorientação:
— Ora, menina, essa casa não é tão grande assim para alguém se
perder! Venha comigo. Vou levá-la até a sala principal para tomar seu café
da manhã.
— Na verdade — arriscou-se a dizer Âmbar —, eu queria encontrar
Jade, Adrien e Opala. Chegamos ontem à noite...
O rosto da mulher tornou-se subitamente sério.
—Então, é você... — disse, pensativamente.
— Como?
— Nada. Venha comigo. Vou levá-la até seus amigos. Âmbar seguiu
a mulher. Percebeu, então, que ela não caminhava: seu corpo flutuava e
deslizava alguns centímetros acima do chão.
— Você... você faz magia? — perguntou Âmbar desajeitadamente.
— Magia? Era meu sonho de infância, mas não tenho capacidade
para isso. É preciso ter o dom, e eu não tenho.
—Mas esse seu jeito de andar sem andar... — disse Âmbar,
confusa.
—Isso? Ora menina, sou uma Donlusiana. Como você queria que
eu caminhasse?
— Ah, desculpe — respondeu Âmbar, embaraçada. Não
compreendeu direito as palavras da mulher. Poucos metros adiante, a
Donlusiana abriu uma das portas para Âmbar entrar. Adrien estava lá, à
cabeceira de Opala, junto com Jade e Owen d'Yrdahl.
— Âmbar! — gritou Owen. — Até que enfim você apareceu! Que tal
um passeio para conhecer um pouco de Conto de Fadas?
—Claro, eu adoraria! — disse ela, realmente encantada com a
idéia.
—Eu vou ficar — disse Adrien. — Quero estar por perto para o caso
de Opala acordar.
—Jade, Âmbar e Owen saíram. Três cavalos estavam no pátio.
Quando se aproximaram, as meninas observaram que havia pequenas
diferenças entre esses animais e os cavalos que conheciam: os dali eram
recobertos por uma espécie de pelagem castanha, que parecia bastante
macia e espessa, tinham crinas douradas, flamejantes, que pareciam se
consumir em chamas, e seus olhos azuis brilhavam de inteligência.
—Esse cavalos são verdadeiros puros-sangues, impossível
encontrar animais mais mágicos — disse Owen.
— Mágicos? — perguntou Âmbar, desconcertada. — O que eles
fazem? Voam, soltam fogo pelas ventas?
—Claro que não — respondeu Owen, espantado. — Eu não disse
que eles foram enfeitiçados por um mágico.
—Então, como eles são mágicos? — perguntou Âmbar.
—Está decepcionada? Se preferir, posso lhe dar uma montaria
mais comum — disse Owen com uma ponta de malícia.
—Ah, não... não...
Âmbar não insistiu mais. Montaram e puseram-se a caminho.
Owen foi na frente. As duas meninas logo ficaram desapontadas. A paisagem
de Conto de Fadas não tinha nada de surpreendente. O céu, de um azul
imaculado, estendia-se a perder de vista. No horizonte, percebia-se alguns
picos distantes, cobertos de neves eternas. Âmbar olhava os cumes
enfeitados de branco e as colinas que se ofereciam à sua visão. De repente,
Owen disse:
—Oonagh mora naquelas montanhas. E uma viagem difícil. Se
vocês não precisassem mesmo ir, eu desaconselharia, mas, enfim... Só não
devem ir à cidade de Thaar. Nem tentem fazer uma coisa dessas.
—Por quê? — perguntou Jade, surpresa com as recomendações.
—É mais do que arriscado — respondeu Owen. — É mortal. A
cidade é maldita. Já foi batizada, rebatizada, mas nada adianta, jamais
mudará, jamais poderá mudar.
—Mas por quê? — repetiu Jade.
—Bobagem — interrompeu secamente Owen, subitamente nervoso.
Âmbar não prestava muita atenção à conversa. Acariciava o pêlo de
seu cavalo. Imaginava que fosse macio, mas estava áspero. No entanto, mal
ela formulou mentalmente essa observação, a textura sob seus dedos
mudou. Tornou-se lisa, sedosa, infinitamente agradável de tocar, exatamente
como tinha imaginado antes. Intrigada, olhou para a pelagem do animal.
"Seria tão bonita se fosse branca", pensou. Logo, seu desejo tornou-se
realidade. O pêlo do animal foi clareando até chegar à cor que Âmbar tinha
imaginado: um branco puro, uniforme, luminoso.
—Owen — gritou Âmbar —, já entendi! O cavalo adivinha os
desejos do cavaleiro e os satisfaz! E mágico!
—Como é que você queria que fosse? — resmungou Owen,
aborrecido. — Não está bom assim? Esses cavalos sempre me pareceram
excelentes...
—São ótimos! — entusiasmou-se Âmbar. — É que não consigo
acreditar!
Os três seguiram por um caminho sem graça, margeado por casas
simples e prados sem interesse. Âmbar propôs aos companheiros apostarem
uma corrida, e eles aceitaram. Então, ela pensou, com todas as forças, que
queria que o cavalo galopasse até o limite de sua capacidade. Logo sentiu o
ar chicotear seu rosto e a velocidade embriagá-la... O chão parecia
desaparecer sob as patas do animal. Nunca tinha experimentado semelhante
sensação. Depois de alguns deliciosos minutos, Âmbar ordenou
mentalmente ao cavalo que parasse e se juntou novamente aos
companheiros. Jade e Owen vinham bem atrás, ofegantes...
—É incrível, nunca vi uma coisa dessas! — exclamou Owen. —
Normalmente, os cavalos precisam de um certo tempo para se habituarem
aos cavaleiros. Eles só atendem aos seus desejos depois de longos meses de
treinamento e, mesmo assim, é preciso ser um cavaleiro experiente. Eu
mesmo tive muito trabalho para preparar o animal que você está montando.
Levei muito tempo para que ele me entendesse tão bem quanto está fazendo
com você!
—Ele tem nome?
—Como é que vou saber? E lógico que deve ter um, mas cavalos
não falam com homens, mesmo que sejam capazes.
—E você não deu nenhum nome para ele? — perguntou Âmbar.
—Não. Ele ficaria muito chateado, isso é contra os costumes deles.
—Ah! — limitou-se a dizer Âmbar, que não tinha mais palavras
para exprimir seu espanto.
Como o passeio começava a tornar-se cansativo, Owen propôs que
voltassem. Jade perguntou ao anfitrião sobre os costumes do povo de Conto
de Fadas, mas ele respondeu simplesmente:
—Somos livres. Temos responsabilidades, é claro, mas cada um
decide seus atos. Trabalhamos, nos divertimos, vivemos...
—E as criaturas mágicas? — insistiu Jade.
—Elas vivem entre nós. Normalmente.
—Mas, então, o que é que tem aqui de tão mágico? — irritou-se
Jade.
— Conto de Fadas é apenas um nome, um conceito, não um modo
de vida. São palavras, que não ilustram a realidade, nem tentam representá-
la. O irreal acaba fazendo parte do nosso cotidiano: a gente se acostuma com
ele. E nossa existência não é um conto, nós sofremos e temos problemas,
mesmo vivendo entre criaturas mágicas... Owen parou. Depois, prosseguiu:
— ... Lá Fora, onde há a vida normal; lá, onde vivem os
homens, também existe o mal.
Estavam se aproximando da mansão. Deixaram os animais na
estrebaria. Âmbar olhou com certo carinho para o cavalo que tinha montado.
Tinha um ar orgulhoso; sua crina dourada contrastava com o branco
cremoso que seu pêlo havia adotado; seus olhos vivos, muito azuis,
observavam os cavaleiros sem pestanejar. Âmbar o abandonou a contragosto
para seguir Owen e Jade.
Na mansão, tudo estava muito agitado. Mal entraram na casa, um
homem precipitou-se na direção de Owen. Jade e Âmbar o reconheceram.
Era Loghin, o curandeiro que haviam conhecido na véspera.
—Temos um problema muito sério — disse ele, visivelmente
perturbado.
—Calma, Loghin. O que houve?
—Não posso ficar calmo... Logo depois da sua saída, chegou um
mensageiro...
—Um mensageiro? Então, a notícia deve ter sido mesmo
importante!
—Ah, sim — suspirou Loghin, lamentando-se. — Owen, aconteceu
o pior.
—O pior como? Vai me dizer ou não?
—Tomaram a cidade de Thaar.
—O quê? — gritou Owen d'Yrdhal, espantado.
—O mensageiro está na sala principal — disse Loghin. —
Aconselhei-o a esperar seu retorno.
Silencioso, com o olhar perturbado, Owen seguiu o curandeiro. As
duas meninas foram para o quarto onde Adrien velava Opala, mas não
entraram imediatamente.
—Thaar... — murmurou Âmbar, preocupada. Que perigo existe
nessa cidade? Nas mãos de quem ela caiu?
—É esquisito mesmo — respondeu Jade. — Owen e o curandeiro
pareciam muito assustados. Eu achava que não existia guerra em Conto de
Fadas.
—Parece que estou sonhando — disse Âmbar. — Tudo parece tão
irreal...
—E eu! Para mim, chega. Quero saber o que são essas pedras,
quem sou eu, por que me tiraram de casa — disse Jade. — Quero que me
expliquem o que o Conselho dos Doze tem contra nós. Quero viver num
mundo definido, que não seja cercado de mistérios, de sonhos inacreditáveis!
Assim que Opala acordar, temos que procurar Oonagh!
Com essas palavras, entraram no quarto. Adrien não estava mais
ali. Opala tremia violentamente. As meninas correram em sua direção. Ainda
estava inconsciente, mas, do fundo do coma, articulava alguns sons. Não
dava para distinguir nenhuma palavra coerente em meio ao embaralhamento
de monossílabos que ela pronunciava. De repente, Opala calou-se e ficou
imóvel.
Muito zangada, Jade gritou:
—Onde está Adrien? Ele vai embora assim, sem avisar, deixa-nos
trancadas aqui com uma Opala delirante, em uma casa estranha, nessa
maldita cidade!
—Adrien deve ter tido suas razões para sair — disse Âmbar
calmamente. — Podemos procurar Loghin.
—Onde? Estou perdida. Esse não é o meu lugar, aqui tudo é
mágico demais para mim!
—A mansão não tem nada de mágica — disse Âmbar. —Além disso,
podemos tentar encontrar a sala principal.
Nesse momento, Adrien apareceu. Vinha vestido com um uniforme
azul e dourado. Embora sua expressão fosse particularmente determinada,
seu rosto estava pálido.
—Adrien! — gritou Jade, aborrecida. — Onde você estava?
—Thaar foi dominada — disse o rapaz.
—Já sabemos — respondeu Âmbar.
—Então, temos uma guerra? — perguntou Jade.
—Sim e não — respondeu Adrien, muito sério. Sentou-se numa
cadeira e prosseguiu. Vou contar tudo a vocês. É preciso que saibam, para
que expliquem a Opala por que a abandonei.
—Ora, mas você só saiu enquanto dávamos um passeio. Não é tão
grave assim — disse Âmbar.
—Não estou falando disso. Em breve partirei. Definitivamente.
—Mas... — interrompeu Jade.
—Não me interrompa. Escutem, você duas. Thaar não é uma
cidade comum. Alguns dizem que é tomada pelo mal. Ela pertence ao
passado e reflete o passado. E a única cidade que permanece intacta há
milênios, como se estivesse fora do tempo. Também é chamada Cidade das
Origens. Na verdade, Thaar nunca fez parte de Conto de Fadas.
Estranhamente, não é protegida pelo campo magnético, embora fique dentro
dele. Por causa disso, há bastante tempo, os membros do Conselho dos Doze
conseguem penetrar ali por telepatia. Esse é um dos motivos pelos quais o
lugar é tão perigoso. Não há muita gente morando ali. Além disso, nem todos
os habitantes são pessoas honestas e alguns, sedentos de poder, traíram
Conto de Fadas, ajudando o Conselho dos Doze a dominar os espíritos dos
outros. Alguns ainda conseguiam resistir, com muita dificuldade, mas a
força tenebrosa do Conselho dos Doze invadiu a cidade e a submeteu ao seu
domínio. E pior, a partir de Thaar, eles podem entrar em Conto de Fadas. De
repente, os membros do Conselho dos Doze, ou até mesmo os cavaleiros da
Ordem, podem se materializar aqui por teletransporte. Para fazer isso,
precisariam realizar um sortilégio de grande complexidade, que não foi feito
mais do que dez vezes em toda a história. Mas é pouco provável que tentem
uma coisa dessas. A estratégia deles é mais segura: por intermédio de seus
fiéis aliados em Thaar, eles se infiltrarão mentalmente no espírito das
pessoas. Assim, será fácil escravizá-las, destruí-las ou subjugá-las. E vão
conseguir. Em Thaar, todos já desistiram de combater. Não sabemos direito
qual é a situação deles, mas, felizmente, um dos habitantes conseguiu fugir.
Já enviamos mensagens para os quatro cantos de Conto de Fadas.
— Como pretendem combatê-los? — perguntou Âmbar, agitada.
—É simples. Os voluntários cercarão a cidade. Se o Conselho dos
Doze tentar expandir sua dominação, eles lutarão... mentalmente. De
qualquer modo, o exército tentará penetrar no espírito dos habitantes e
ajudá-los, o que é praticamente impossível por causa da força do Conselho
dos Doze. Também tentaremos entrar na cidade, combater, deter o ataque
mental.
—Espere um instante — disse Jade — por que você disse
"tentaremos"?
—Acabo de me alistar no exército — disse Adrien, com a voz
carregada de emoção. — Partirei amanhã.
—Você vai arriscar sua vida!? — exclamou Jade.
—Quero ser útil e não ficar vergonhosamente escondido, apenas
esperando os acontecimentos — replicou o rapaz — Precisamos de
voluntários. Se não for minha vida, irá a de outro.
—Mas você voltará, não? — perguntou Âmbar.
—Talvez — disse Adrien, com um tom evasivo. — Quando tudo
estiver terminado. Mas talvez não. Nesse caso, ao menos terei lutado.
— Adrien, deixe de ser patético — gritou Jade. — Você
fala como se fosse o fim do mundo!
O rapaz esboçou um sorriso.
— Ainda não terminei de falar... Parem de me fazer perguntas.
Acreditem, o que vou dizer agora é muito sério. Eu deveria ficar calado,
mas...
—Diga de uma vez — cortou Jade.
—É preciso que vocês procurem Oonagh. Agora. Sem perda de
tempo.
—E Opala? — perguntou Âmbar.
Loghin, o curandeiro, me deu uma poção, feita por ele mesmo, que
permitirá a Opala voltar a si por poucos minutos. Poderei me despedir dela.
Em seguida, ela voltará ao estado de inconsciência. Será preciso arrumar
um modo de levá-la com vocês. Ela se curará sozinha.
—Isso não faz sentido! Como encontraremos o caminho? — disse
Âmbar, indignada.
—Vocês têm que conseguir... E muito importante. Agora, deixem-
me a sós com Opala. Logo em seguida, devem partir. Owen colocou os
cavalos mágicos à disposição de vocês.
As meninas foram para o corredor e ficaram diante da porta
fechada. Jade estava revoltada.
— Todo mundo nos manda embora! Estamos sempre sendo
expulsas!
Âmbar não respondeu. Jade estava certa. Ela também não
agüentava mais aquilo.
No quarto, Adrien contemplava Opala com um ar cheio de
saudades. "Estou desolado", murmurou. Em seguida, tirou do bolso um
pequeno frasco habilmente talhado, cheio de um líquido azulado que parecia
borbulhar. Adrien destampou o vidrinho. Um cheiro de sangue, de morte,
pesado como carne apodrecida, invadiu o ambiente. O rapaz reprimiu uma
careta de nojo e aproximou a mistura repugnante do nariz de Opala. A
menina entreabriu os lábios e ele despejou o líquido milagroso em sua boca.
Pouco a pouco, ela voltou a si. Suas narinas estremeceram, seus lábios
abriram-se num sorriso e, com os olhos ainda fechados, murmurou:
— Como dormi bem... Então, bocejou e abriu os olhos.
— Opala! — gritou Adrien, com a voz embargada de
tanta emoção.
A menina ainda não conseguia enxergar direito o que se passava
ao seu redor. Levou alguns segundos para despertar completamente. Seu
olhar claro, quase transparente, iluminou-se e, constrangida, deixou escapar
num suspiro:
— Adrien! Você está aqui! O que aconteceu?
O rapaz sentiu as lágrimas inundarem seus olhos, mas conseguiu
conter-se. Com o coração apertado, disse a si mesmo que talvez estivesse
vendo Opala pela última vez.
—Eu te amo — disse com voz trêmula. — Pensarei em você todos
os dias, até que consiga revê-la. Estarei perto de você sempre que sonhar
comigo.
Não conseguiu prosseguir. Opala, com os imensos olhos azuis
pousados sobre ele, parecia aflita e feliz ao mesmo tempo. Recuperou-se,
apertou seu corpo contra o do rapaz e disse:
—Não me abandone... Não vá embora, fique comigo... É muito
perigoso, você está arriscando sua vida... E eu te amo.
Opala ainda queria dizer mais alguma coisa, mas, de repente, seu
olhar turvou-se e sua cabeça afundou-se no travesseiro, novamente
inconsciente.
Adrien jamais conseguiu compreender como ela tinha adivinhado
que ele partiria para uma guerra. No entanto, saber que Opala também o
amava era o mais importante. Agora, ele podia enfrentar o Conselho dos
Doze sem o menor temor. O amor lhe serviria como escudo.
16 Jade e Âmbar, taciturnas, cavalgavam em direção aos picos
nevados. Jade carregava Opala, inanimada, e perguntava-se onde dormiria
na noite seguinte e que nova aventura insensata seria obrigada a enfrentar.
Âmbar observava a paisagem a seu redor. As casas modestas e as
imponentes, os campos cultivados que margeavam o caminho. Mas nada lhe
chamou tanta atenção quanto alguns trabalhadores que cantavam e riam
em vez de lavrar a terra. Pareciam humanos, mas ela podia perceber seus
longos cabelos prateados. Apesar de seus esforços para manter a calma e
concentrar a atenção na paisagem, Âmbar não conseguia evitar a irritação.
Sentia-se impotente, tinha a impressão de não conduzir mais a própria vida,
de avançar em meio à mais absoluta escuridão. O que a esperava agora?
Será que algum dia compreenderia a razão de tudo aquilo?
Jade também resmungava consigo mesma. Sim, ela queria demais
descobrir o mistério que lhe escondiam. Mas bem que gostaria de voltar
atrás, retornar a seu palácio. Sabia que isso era impossível, mas deixar de
seguir cegamente as ordens alheias era uma idéia tentadora.
De repente, ela disse:
— Âmbar, não ria de mim, mas tenho a impressão de que todo
mundo sabe o que devemos fazer, menos nós. Eles nos conhecem melhor
que nós mesmas. Sabe o que estou achando?
—Não — respondeu Âmbar, distraída.
— Se o Conselho dos Doze tem alguma coisa contra as criaturas
mágicas é porque tem medo delas.
—Sim, parece evidente.
—Se o Conselho dos Doze tem alguma coisa contra os que
conhecem Conto de Fadas, é porque tem medo deles também. Imagine se
todos soubessem da existência desse lugar. Haveria rebeliões em toda parte.
Todos iriam querer vir para cá. Agora, pense um minuto... Não acontecem
muitas revoltas porque as pessoas não têm coragem suficiente. Mas é
também porque é inútil tentar: os cavaleiros da Ordem estão por toda parte.
A verdade mesmo é que a maioria das pessoas não compreende nada,
entende o que quero dizer?
— Claro — concordou Âmbar. — As pessoas são privadas de
liberdade, de ambições, de sonhos... Desde o momento em que nascem,
sabem que o futuro não lhes reservará nenhuma surpresa. Meus pais eram
camponeses, eu também deveria ser camponesa e não tinha nenhuma
outra escolha. Com o pretexto de criar uma sociedade estável, o Conselho
dos Doze priva as pessoas da liberdade, mas ninguém se dá conta disso.
Desde que nascemos, esta mos acostumados a isso e seguimos todas as
regras sem jamais perguntar por quê.
—Antes de sair de casa, eu via o mundo como tinham me ensinado
a ver. E você? Já sabia da verdade há muito tempo?
Há muito tempo. Cresci livre, solta, sempre me refugiei nos livros
proibidos. Aprendi neles o que era a vida. Veja o que é o mundo sob o
controle do Conselho dos Doze: os doentes são julgados fracos e inúteis,
todos os desprezam, só falam com eles para censurá-los.
—E verdade. As pessoas só fazem aquilo que ordenam que façam.
Nunca se questionam, esquecem a amizade, o afeto.
—É ridículo — adiantou Âmbar — mas... não, deixa para lá...
Apesar da insistência de Jade, ela não completou o pensamento
que lhe havia surgido.
—O que eu queria dizer — recomeçou Jade — é que se os membros
do Conselho dos Doze têm alguma coisa contra nós, é porque eles também
têm medo de nós, por mais incrível que isso possa parecer. Eles tiveram todo
o tempo do mundo para nos destruir, desde o nosso nascimento. Poderiam
ter enviado os cavaleiros da Ordem em nosso encalço. Se eles nos temem,
devem ter uma excelente razão para isso. Só não consigo imaginar qual
seria...
—Isso mesmo! Acho que somos capazes de fazer alguma coisa
contra eles. Talvez possamos desestabilizá-los ou... sim! Mostrar às pessoas
o que descobrimos!
—Hummm... — respondeu Jade, pouco convencida. — E como é
que você pretende abrir os olhos de milhares de pessoas? Se bem que...
talvez as pedras pudessem nos ajudar.
Foi a vez de Âmbar hesitar.
—Acho que não vai dar certo. Só nos seguirão aqueles que já estão
convencidos.
—É. E depois, por que deveríamos fazer isso? Mas, por outro lado,
se ninguém fizer nada...
—Sim, mas não sabemos se somos mesmo capazes de mudar
alguma coisa.
As meninas voltaram a mergulhar em seus pensamentos.
A tarde já chegava e ainda não tinham comido nada. Decidiram
fazer uma parada. Owen lhes tinha dado bastante comida para levarem na
viagem. Não havia risco de passarem fome. Sentaram-se à sombra fresca de
um carvalho e deitaram o corpo de Opala com cuidado. A menina ainda
estava inconsciente e permanecia inerte. Loghin tinha feito um curativo em
seu ferimento, e ele tinha parado de sangrar.
Jade e Âmbar desembrulharam os mantimentos. Atacaram com
apetite o pão fresco, a carne seca, os queijos gordurosos, e deixaram de lado
algumas coisas de aspecto desconhecido e pouco convidativo.
—Sabe, Jade... no fundo, não lamento estar aqui. Que futuro eu
teria? Nenhum... Sairia da infância e veria o que o futuro me oferecia: nada.
Mas comigo é diferente. Poucos dias atrás, eu teria gritado em alto
e bom som que era a filha do duque de Divulyon. Teria contado a você como
meu palácio era luxuoso. Ao contrário de você, eu achava que o futuro me
traria tudo: riqueza, reconhecimento, tudo o que eu sonhasse. Agora, sinto-
me um pouco culpada por não ter sabido ir além das aparências.
Jade calou-se, ruborizada. Jamais pensara em revelar seus
sentimentos a ninguém. O duque de Divulyon tinha lhe dito que Âmbar e
Opala eram suas inimigas, o que era verdade com relação à segunda, mas
não à primeira. Por que ele teria dito aquilo? Estava com a desagradável
impressão de ter mudado depois de ter abandonado o palácio.
Perigosamente, Âmbar parecia ser sua primeira amiga — uma palavra que
sempre lhe parecera obscura e sem sentido.
Não, não era possível! Ela, Jade, a filha do duque de Divulyon, não
poderia estar pensando tais coisas. Era muito estranho, não fazia tanto
tempo assim que tinha partido. Podia jurar que anos tinham se passado.
Sentia que seu passado era uma coisa definitivamente encerrada.
De repente, Âmbar quebrou o silêncio.
—Tive uma idéia. Por que não tentamos reanimar Opala com
nossas pedras?
—Pode ser.
Âmbar tirou da bolsa de Opala o saquinho de veludo negro.
Colocou a pedra entre os dedos fechados da menina. Depois, pegou sua
pedra de âmbar e apertou-a com força. Jade, distraída, fez a mesma coisa.
Aguardaram um pouco. Nada aconteceu. Âmbar esforçou-se ainda mais. As
meninas sentiam que as pedras tentavam entrar em contato com a de Opala,
mas sem sucesso. Como ela estava inconsciente, ficava impossível
estabelecer a comunicação habitual.
Derrotadas, Jade e Âmbar retomaram viagem. Âmbar instalou
Opala sobre seu cavalo, pedindo mentalmente que ele a desculpasse pelo
peso extra. Sabia que o cavalo a compreendia, mesmo sem nada responder.
— Gostaria tanto de dar um nome a você — murmurou Âmbar por
telepatia —, mas Owen acha que isso o desagradaria.
Nesse instante, o cavalo começou a se agitar e Âmbar sentiu-se
tomada por um ligeiro incômodo. Percebeu que essa sensação era causada
pelo cavalo que, por telepatia, tentava dissuadi-la da idéia.
—Está bem, não precisa ficar nervoso. Não vou lhe dar nome
nenhum. Mas eu não sabia que você conseguia transmitir seus sentimentos
e sensações. É surpreendente!
O cavalo parou. Âmbar compreendeu que ele estava contrariado,
ferido em seu orgulho.
—Me perdoe! É porque ainda não estou acostumada com Conto de
Fadas. De onde eu venho, tudo é tão diferente!
Mais calmo, o cavalo retomou sua marcha. Âmbar tinha a
impressão de que o animal comunicava-se com a ela. Imagens e impressões
tomavam seu espírito. Poderiam até ser frutos de sua imaginação, mas ela
duvidava disso.
Cavalgaram muito tempo, sem interrupções. Não sabiam se tinham
escolhido o melhor caminho. Seguiam pelas montanhas. Ainda estavam
distantes, muito distantes de Oonagh.
A tarde caiu, envolvendo Conto de Fadas em um véu de penumbra
e, depois, a noite tomou seu lugar. Elas não estavam cansadas, mas as
sombras pareciam perigosas, os contornos da paisagem sumiam na
escuridão e as meninas ficaram com medo de se perderem ou de serem
atacadas por inimigos desconhecidos. Decidiram parar. Adrien lhes havia
aconselhado a não pedir abrigo, para evitar surpresas desagradáveis. Elas
sabiam que seus inimigos podiam estar em qualquer parte. Sentiam-se
seguras em Conto de Fadas, mas agora, na escuridão, não sabiam mais no
que acreditar.
Sentaram-se à beira da estrada, sob uma árvore, jantaram e
deitaram-se na relva, com o corpo de Opala ao lado delas.
—Estive pensando — disse Âmbar.
—Eu também.
—Os habitantes de Conto de Fadas acreditam. Eles acreditam no
impossível, em seus sonhos. São livres. Não necessariamente felizes, como
lembrou Owen, mas livres para escolher a vida que quiserem. É estranho
que aqui também existam guerras. É um lugar tão pacífico. Nos lugares onde
reina o Conselho dos Doze, as pessoas não acreditam em nada, não sonham,
não têm esperança. Não sabem se são felizes ou tristes, nem querem saber.
Lá não existem guerras, mas há tantas proibições...
—Engano seu — interrompeu Jade. — Aqui também existe a
maldade, Owen mesmo nos contou. Existiram guerras, há a violência. Não se
pode viver sempre em paz. E lá, Lá Fora, a guerra existe desde muito tempo,
e perdura até hoje. O Conselho dos Doze luta contra a liberdade, contra a
felicidade. Mas jamais conseguirá vencer completamente porque onde há o
mal também há o bem. A guerra existe aqui e lá.
Jade calou-se. Impressionada, Âmbar respondeu:
— Acho que você tem razão... A eterna luta entre o bem e o mal.
As duas riram.
— Lá Fora — prosseguiu Âmbar — as pessoas só pensam em si
mesmas. Esquecem de olhar ao seu redor, esquecem os sentimentos, e não
percebem isso! Quem se revoltará desse jeito? Quem ousará ser diferente dos
outros? E quem tentará mudar os outros?
— É por isso que Conto de Fadas precisa ajudá-los — decidiu
Jade. — Aqui as pessoas compreendem o que se passa do lado de lá. São
capazes de ajudar. Quanto a nós, acho que não temos o direito de fechar os
olhos.
Embalada pelas próprias palavras, Jade estava a ponto de dizer
mais alguma coisa, quando uma voz hesitante a interrompeu:
— O que está acontecendo? Onde estamos?
As meninas sobressaltaram-se. Opala acabava de despertar.
— Estou me sentindo mal — disse com voz fraca.
Âmbar agachou-se a seu lado e a tranqüilizou:
— Estamos em Conto de Fadas. Você está ferida, mas não é nada
grave.
Opala levou a mão ao ferimento, reprimindo um grito de pavor.
Loghin tinha feito um bom trabalho, mas ainda estava muito dolorido.
— Vamos pegar as pedras — sugeriu Jade.
Opala e Âmbar obedeceram maquinalmente. Concentraram-se, e
em breve um suave calor as invadiu. Por um momento, não pensaram em
nada. Sentiam-se relaxadas, seus problemas tinham desaparecido. Pouco a
pouco, a comunicação se estabeleceu. Jade e Âmbar tinham a impressão de
estar transmitindo uma parte de suas forças para Opala. Uma onda de
cansaço as atingiu.
—Estou me sentindo melhor — murmurou Opala. — A ferida está
parando de doer. Mas ainda preciso descansar um pouco antes de seguir
viagem. Aliás, para onde estamos indo?
— Para onde vive Oonagh, é óbvio! — disse Jade, secamente.
— Mas não se apresse — disse Âmbar. — Essa noite, vamos
dormir. Amanhã, contaremos tudo para você.
E as três meninas fecharam os olhos, esquecendo suas angústias.
17 O Inomeado e Elforhys tinham decidido passar a noite numa
minúscula clareira. Depois do ataque mental dos Ghibduls, nenhum outro
incidente voltou a perturbar sua viagem. Só uma vez, Elforhys achou que
tinha se perdido, mas uma hora mais tarde já tinha reencontrado o
caminho.
Antes de se deitar para dormir, o Inomeado perguntou a Elforhys
se faltava muito para saírem da floresta.
— Bom, isso não depende de mim. Se não encontrarmos nenhum
obstáculo, talvez em mais dois dias consigamos sair daqui. Mas também
pode durar semanas...
Depois de jantar e conversar um pouco, os companheiros
deitaram-se. O Inomeado, que quase não tinha dormido na noite anterior,
caiu num sono profundo.
Durante o dia, sem que ele tivesse percebido nada, os Ghibduls
tinham ficado à sua espreita. Assim que perceberam que dormia,
infiltraram-se insidiosamente em seu espírito, anestesiaram-no por algumas
horas e fizeram a mesma coisa com Elforhys. Se o mundo acabasse não
acordariam mesmo!
Satisfeitos, os pensadores Ghibduls esfregaram suas mãos de
dedos tortos. Em meio a risadas zombeteiras, ordenaram aos guerreiros que
trouxessem o Inomeado e Elforhys à sua presença.
As criaturas mágicas atravessaram a floresta como um furacão.
Voavam a cerca de três metros do solo e logo encontraram suas vítimas.
Brutalmente, os Ghibduls os amarraram com fortes cipós e
contemplaram seus prisioneiros sem a menor piedade. Como tinham
chegado a imaginar que aquelas duas pobres presas representavam uma
ameaça real?
Dois dos guerreiros levantaram o Inomeado e Elforhys sem
nenhum cuidado e os carregaram como se fossem pacotes de compras.
Então, dirigiram-se alegremente para sua cidade.
Não conseguia descobrir onde estava. Os contornos do lugar eram
indefinidos. O que teria ocorrido? O Inomeado não fazia a menor idéia.
Esforçou-se para se lembrar dos últimos acontecimentos, mas sua mente
parecia enfumaçada. Estava de olhos abertos e não se lembrava de ter
perdido a consciência. Percebeu que seus braços e pernas estavam
amarrados com cipós e que estava preso a uma espécie de cadeira, coberta
com um musgo esverdeado como líquen. Sentia-se tão sonolento que nem
tentou se soltar. Encontrava-se em um lugar desconhecido, com paredes de
um branco sujo, em companhia de Elforhys, inconsciente e preso pelos
mesmos cipós escuros. Pouco a pouco, despertou completamente. A situação
lembrou-lhe outra ocasião, dois anos atrás, quando tinha acordado
repentinamente no meio de um campo. Mas, da outra vez, ele se lembrava de
cada momento que tinha precedido seu adormecer na clareira.
Observou o aposento com mais atenção. A luz era fraca. Não
existiam móveis e nada deixava adivinhar quem seriam os donos do lugar.
Tentou se mexer e arrebentar os cipós que o prendiam, mas sem sucesso.
Quanto mais se contorcia, mais os cipós se entranhavam na estranha
cadeira.
Elforhys despertou tão desorientado quanto o hovalyn.
—Onde estamos? — perguntou com uma voz aguda.
—Não faço a menor idéia. E você. Não consegue se lembrar de
nada?
— Minha memória virou pó.
O hovalyn suspirou resignado. Não era o único a não guardar
lembrança do que os tinha levado até ali. Devia existir uma explicação para
que ambos tivessem perdido a memória.
A criatura mágica olhava para os aposentos, cada vez mais
intrigada.
— Tudo isso é muito estranho. Estávamos na clareira e, de repente,
nos vemos amarrados neste lugar, prisioneiros de um inimigo desconhecido.
Mal pronunciou essas palavras e a porta abriu-se com um
estrondo. Um Ghibdul entrou no aposento, caminhando com dignidade. Era
pequeno, o que não tornava seu aspecto mais confiável. Seu corpo era
coberto por uma carapaça verde-escura, que só deixava de fora suas mãos
repulsivas, seus pés de garras afiadas, o pescoço e a cabeça arroxeada. Essa
carapaça funcionava como uma armadura natural. O Ghibdul mantinha-se
encurvado e seu rosto era particularmente assustador. Os olhos — que não
passavam de duas fendas estreitas, cor de lama suja — cintilavam com um
brilho duro e inteligente. A boca, do mesmo tom esverdeado da carapaça, era
esquisitíssima, translúcida, quase invisível. O nariz não passava de três
fendas no meio de um rosto amarrotado. Na cabeça, ele trazia uma espécie
de capacete enferrujado, de onde surgia uma cabeleira rebelde, parecida com
os cipós que amarravam o Inomeado e Elforhys. Nas costas do Ghibdul,
podia-se perceber um par de asas escuras, finas e pregueadas.
Era assustador.
A criatura entrou no quarto com um passo duro e pesado.
—Um Ghibdul — constatou Elforhys em voz alta.
—Isso o espanta, prisioneiro? — perguntou a criatura com uma voz
áspera.
—Onde estamos? — perguntou o Inomeado. — Que querem de
nós?
—Cale a boca, seu verme. Animais como vocês não são dignos de
nos dirigir palavra. Nenhuma presa jamais teve essa honra.
—Estou me lixando para sua honra — resmungou Elforhys.
—Cale-se! Aqui, eu falo e vocês escutam. Se desobedecerem,
cortarei suas cabeças e vocês terão que esperar pelo fim da greve da Morte
para que eu acabe definitivamente com vocês.
A perspectiva de ter a cabeça cortada pela repugnante criatura, e
de ter que esperar indefinidamente pela Morte, convenceu o Inomeado e
Elforhys a ficarem quietos.
— Bom, vou explicar a situação — disse o Ghibdul, com sua voz
cavernosa. Vocês são nossos prisioneiros e não têm a menor chance de
escapar. Estão em nossa cidade, um lugar que, com certeza, jamais poderia
abrigar seres inferiores como vocês, incapazes de compreender uma
civilização refinada como a nossa. Daqui a algumas horas, vocês serão
alimentados. Depois, levaremos vocês para um lugar que deixará seus
espíritos incultos realmente encantados...
—Que lugar? — perguntou Elforhys, esquecendo de manter a
boca fechada.
—Silêncio! — rugiu o Ghibdul. — Como ousa me desobedecer, ser
inferior?
—Não era essa minha intenção — respondeu Elforhys, sem sombra
de medo na voz.
—Seu miserável insignificante! Se soubesse a vontade que tenho de
destroçá-lo agora mesmo...
Com essas palavras, o Ghibdul se aproximou de Elforhys e roçou-
lhe o rosto com a mão. Foi o bastante para que suas garras afiadas
dilacerassem a pele do companheiro do Inomeado. O sangue dourado tingiu
a pele prateada de Elforhys, mas ele não deixou escapar nem um gemido.
O Inomeado voltou-se, então, para o Ghibdul:
—Você se arrependerá disso, pode ter certeza.
—Está me ameaçando?
Estranhamente, a criatura tinha um ar pensativo, quase intrigado.
—Não estou brincando — prosseguiu o Inomeado. — Estou
avisando. Não gosto de pegar ninguém desprevenido.
—Já, já, vou lhe mostrar do que sou capaz — disse o Ghibdul.
—E só isso o que espero — respondeu o hovalyn, com a voz grave.
—Vamos lutar com as mãos limpas, mas tenho que preservar sua
vida. Não posso contrariar as ordens que me foram dadas.
—Está bem — disse o Inomeado, nem um pouco perturbado.
Elforhys lançou-lhe um olhar inseguro. O Ghibdul pronunciou
algumas sílabas ininteligíveis e os cipós que prendiam o hovalyn soltaram-
se.
O Inomeado sabia que seu adversário era capaz de vencê-lo com
poucos golpes, usando apenas suas garras afiadas. No entanto, avançou
tranqüilo, com um passo quase relaxado.
Uma expressão ignóbil apareceu no rosto do Ghibdul, uma careta
que podia ser interpretada como um sorriso malévolo. Sem nenhum
movimento preliminar, lançou-se contra o hovalyn que, perto dele, parecia
fraco e inofensivo. Suas mãos rasgaram o ar raivosamente, sucessivas vezes.
Mas, cada vez que julgava ter atingido seu oponente, o Inomeado se
esquivava do ataque. Pouco a pouco, o Ghibdul foi perdendo o fôlego. Mas,
sem querer admitir a derrota, continuava a tentar ferir o hovalyn.
Elforhys olhava, admirado, para o Inomeado. O rapaz movia-se
com destreza e agilidade, aparando os golpes sem se deixar atingir.
Finalmente, o Ghibdul, já ofegante, murmurou algumas palavras
incompreensíveis e o hovalyn foi novamente jogado na cadeira por uma força
invisível e amarrado pelos cipós.
—Homem... — disse o Ghibdul, com uma voz seca que deixava
transparecer uma ponta de admiração — o fato de ter conseguido evitar
meus ataques, mesmo estando desarmado, não faz de você nem um pouco
superior a mim.
—Jamais pretendi tal coisa — respondeu o Inomeado no mesmo
tom — , mas não vejo razão para que me julgue inferior a você.
—Aguarde. Você vai ver do que nós, Ghibduls, somos capazes.
Nossa força telepática é inegável e, armados, somos invencíveis!
— Isso é muito interessante — comentou o hovalyn.
Profundamente envergonhada, a criatura mágica saiu sem dizer
mais nada. O Inomeado e Elforhys ficaram novamente sozinhos.
—Que idéia, enfrentar o Ghibdul! — reprovou Elforhys.
—Eu não podia deixar que ele o agredisse sem fazer nada!
—É muita imprudência por umas poucas gotas do meu sangue!
Meu ferimento fechará logo, nem cicatriz deixará. Tenho ótimas defesas
naturais. Mas você, Inomeado, acaba de ganhar o ódio de um Ghibdul. E
acredite, essa raiva não vai passar tão cedo.
—Seja como for, ele já não parecia nada amigável quando chegou
— respondeu o hovalyn, despreocupado.
O Inomeado e Elforhys viram o tempo passar enquanto lutavam
contra os cipós, mas não encontraram maneira de libertarem-se. Não
conseguiam evitar a ansiedade com relação ao destino que os aguardava.
Finalmente, a porta se abriu. Uma mulher entrou. E era humana!
Elforhys e o Inomeado arregalaram os olhos. Estava vestida com uma roupa
malfeita, de tecido vegetal fabricado a partir das plantas da floresta. Era
suja, e seus pés descalços estavam cobertos de cicatrizes, assim como suas
mãos. Seu rosto era duro, mas mostrava, ainda assim, que era humana.
Tinha as maçãs do rosto salientes, os olhos negros, apertados, com um
brilho agressivo, lábios finos e pele sem brilho. O nariz achatado destacava-
se no rosto melancólico. Os cabelos castanhos, grudados de lama e sujeira,
caíam sobre seus ombros largos.
A mulher aproximou-se e depositou um prato de madeira cheio de
frutas no chão. De má vontade, desfez os nós que prendiam Elforhys e o
Inomeado.
—Podem comer — disse ela com uma voz rouca — , mas não
adianta tentar fugir. Os pés de vocês estão presos nos cipós.
—Você é humana? — perguntou, educadamente, o Inomeado.
—Sou. Os Ghibduls precisam de criados como eu. Eles pegam as
mulheres que se perdem na floresta. Eles são bons para mim.
—Como você se chama? — perguntou o Inomeado, na esperança de
engajar uma conversa e ganhar a confiança da criada.
—Nailde. Coma logo, não fique fazendo perguntas! Não posso ficar
falando com vocês. Gosto daqui e não ajudo os prisioneiros. Vocês acham
que eu quero fugir também, não é? Sinto muito, mas não quero.
—E você consegue ver gente como você morrendo? Consegue ouvir
os gritos dos torturados sem sentir remorso? — perguntou Elforhys.
—Os Ghibduls me tratam melhor do que os seres humanos e eu os
sirvo da melhor maneira possível. Isso é tudo.
Com essas palavras, Nailde praguejou e cuspiu aos pés do
Inomeado. Ainda babando, e com uma expressão muito orgulhosa e segura,
deu meia volta e saiu batendo a porta com um estrondo.
—Que coisa incrível! Essa mulher acabou adotando os costumes
dos Ghibduls — observou Elforhys.
—E quem poderá saber como era sua vida entre os humanos? —
retrucou o Inomeado com indulgência. — Antes de transformar-se em uma
mulher tão rude, ela deve ter sido uma moça simples, talvez
incompreendida. Deve ter sofrido muito... Não sabemos que tipo de conforto
os Ghibduls deram a ela. Segundo diz, gosta da vida que leva aqui...
Elforhys olhou para o Inomeado, surpreso. Ele se compadecia da
mulher que acabava de lhe negar a liberdade! "Decididamente, a natureza
dos homens era ainda mais incompreensível do que imaginava" — pensou
Elforhys.
O Inomeado comeu tranqüilamente as frutas trazidas por Nailde.
Depois de satisfeito, passou o prato a Elforhys, que engoliu o que tinha
sobrado. Com as mãos livres, o hovalyn tentou, sem sucesso, soltar os pés
dos cipós.
— Ah, vocês, os humanos... — suspirou Elforhys, o Clorhyun,
quase resignado. — Sempre tão cheios de esperança... Acho que é isso que
os ajuda a sobreviver. Mesmo que lhes digam que não há saída, vocês vão
insistir.
Nailde retornou para buscar o prato vazio. O Inomeado prendeu a
respiração, esperando que a criada tivesse mudado de idéia, que a piedade
tivesse voltado a seu coração. Elforhys surpreendeu seu olhar iluminado.
"Sempre ingênuo, sempre confiando nos outros", disse para si mesmo com
um suspiro. "O homens se julgam habitados pelo bem, enquanto se ocupam
em destruir uns aos outros. Estranho."
Nailde despejou uma nova saraivada de injúrias sobre o Inomeado.
Parecia sentir um prazer especial em humilhá-lo. Era óbvio que não
pretendia libertá-lo.
O Inomeado compreendeu, desapontado, que não tinha conseguido
fazer Nailde mudar de idéia.
A criada abandonou o quarto, ainda xingando.
Elforhys e o Inomeado começaram a ficar apreensivos. Quase
imediatamente após a saída de Nailde, quatro imponentes Ghibduls
invadiram o aposento. Um deles murmurou algumas palavras e os
prisioneiros foram libertados dos cipós.
— Venham! — ordenou um Ghibdul.
Antes de alcançar a saída, foram levados através de várias peças
sombrias e puderam observar melhor o lugar onde tinham estado
aprisionados. Era um edifício lúgubre, de arquitetura estranha, com uma
aparência de abandono e escuridão. No entanto, seu interior formigava de
Ghibduls.
Foram conduzidos pelos carcereiros por ruas estreitas e sinuosas e
descobriram o que ninguém suspeitava existir: uma cidade ativa e
organizada, rodeada por árvores imensas que funcionavam como muralhas
naturais. O lugar onde a cidade fora construída não tinha sido escolhido ao
acaso.
Um pátio imenso surgiu diante de seus olhos. Parecia um teatro,
com pedras ornamentadas pintadas de preto. Percebendo sua aproximação,
os Ghibduls ostentaram sorrisos orgulhosos. Foram conduzidos por uma
galeria cheia de esculturas e pinturas que revelavam a mestria de uma arte
refinada e original, da qual ninguém imaginava que os Ghibduls fossem
capazes.
Uma multidão de criaturas mágicas aglomerava-se na entrada. Os
carcereiros formaram uma passagem, conduzindo os prisioneiros por ali.
Subiram intermináveis escadas e chegaram a uma porta de cobre, atrás da
qual jogaram o Inomeado e Elforhys. Depois, fecharam a porta e partiram.
Os dois companheiros caíram no vazio, sem compreender o que
estava acontecendo, antes de atravessar uma espécie de bolha esponjosa e
caírem no chão, sem nenhum arranhão. Ouviram uma explosão de aplausos.
Elforhys e o Inomeado apertaram os olhos, impressionados. Uma
visão inacreditável se descortinava diante deles: estavam num teatro
gigantesco, muito elegante e bem iluminado, com milhares de Ghibduls
confortavelmente instalados em poltronas forradas de veludo escuro.
Surgiam novidades por toda parte. O teatro possuía forma elíptica;
inumeráveis fileiras de espectadores elevavam-se até o teto, que representava
a floresta sob um céu azul.
Um espaçoso palco ficava no centro da construção, sobre uma
coluna de mármore curta e grossa, e era cercado de vidro, de modo que os
espectadores podiam vê-lo de qualquer ângulo.
O problema é que Elforhys e o Inomeado estavam justamente no
centro do palco. Erguendo os olhos, puderam enxergar no teto o alçapão,
quase imperceptível, do qual tinham sido jogados.
—Onde estamos? — perguntou o Inomeado.
—Não faço a menor idéia. Não parece boa coisa...
—Mas é tão surpreendente! — exclamou o hovalyn. — Passamos a
vida achando que os Ghibduls eram criaturas bárbaras e, de repente, nos
encontramos num lugar incrível como esse...
—É uma pena, mas você não vai ter oportunidade de contar o que
viu a ninguém...
Os Ghibduls saíram voando para oferecer um lanche aos
espectadores. Não tinham a noção do dinheiro. Comprar e vender eram
coisas desconhecidas para eles. Tudo lhes era fornecido pela natureza.
O Inomeado percebeu que apenas uma pequena parte da platéia
era reservada para algumas dezenas de mulheres desmazeladas, humanas
ou de outras espécies, que não tinham lugar para se sentar. Apesar da
distância, conseguiu reconhecer Nailde, que vociferava e brandia os punhos,
provavelmente para ele.
De repente, as luzes se apagaram. Uma voz possante ressoou:
— Sejam bem-vindos, caros amigos Ghibduls. Hoje, temos a honra
de apresentar a vocês um autêntico exemplar Clorhyun e um humano, diria
mesmo que é um hovalyn. Quem será o vencedor? Quanto tempo ele
conseguirá resistir? Façam suas apostas. Como de costume, eles
se submeterão a provas que preparamos especialmente para o prazer de
vocês. Desejo a todos uma boa tarde. E ótima diversão!
Os Ghibduls aplaudiram entusiasmados. Elforhys e o Inomeado
entreolharam-se, preocupados. Mas, antes que pudessem trocar uma só
palavra, antes mesmo de o público ter terminado de aplaudir o início do
espetáculo, sentiram uma dor aguda atingi-los. Sob o braço esquerdo, bem
no lugar onde o Inomeado tinha sido ferido pelos Bumblinks, não fazia muito
tempo, a ferida abriu-se novamente e o sangue começou a correr. Ele
conseguiu reprimir um grito. Quase que ao mesmo tempo, sobreveio outro
ataque. Dessa vez, atingiu seu corpo inteiro. Embora o golpe não provocasse
nenhum ferimento, o hovalyn precisou reunir todas as suas forças para não
cair, retorcido de dor.
Os espectadores riam da cena e comentavam alegremente cada
detalhe.
O rosto de Elforhys, contorcido, exprimia um sofrimento atroz. Ao
serem atingidos pela terceira vez, o Clorhyun desabou inconsciente.
A platéia vaiou.
O Inomeado cambaleava. Sua perna esquerda tinha sido
profundamente ferida. O cheiro insuportável de seu sangue subia-lhe até a
garganta e o fazia sufocar. Seus olhos estavam congestionados de raiva. Por
que os Ghibduls deliciavam-se com seu sofrimento de maneira tão selvagem?
Ele continuou dignamente erguido, mesmo quando seu braço esquerdo foi
dilacerado por uma força invisível. Murmúrios de espanto começaram a
circular pela multidão.
Novamente, uma descarga de dor envolveu todo o corpo do
hovalyn. Dessa vez, ele foi derrubado no chão. Clamores de decepção
elevaram-se da platéia.
Mesmo abatido, o Inomeado reuniu sua coragem e sua força de
vontade e levantou-se. Seus olhos brilhavam com tal determinação que a
multidão ficou abalada.
Quando sentiu uma punhalada invisível trespassar seu ventre, o
hovalyn não pestanejou. Sabia que não tinha nada a perder, a Morte estava
em greve. Precisava apenas resistir aos ataques. Mas estava difícil. Ele não
agüentava mais. Quando nova onda de dor atingiu seu corpo, teve que
apoiar-se contra o vidro que cercava o palco. Com um último esforço, tentou
recuperar-se. Queria gritar uma ameaça, uma frase digna e pertinente,
qualquer coisa que lhe devolvesse um pouco de orgulho... Mas tudo
começava a se embaralhar à sua volta, as imagens, os sons, os cheiros,
todas as suas sensações se esvaneciam, sumiam, só restava o sofrimento...
Ele ainda resistia quando, subitamente, uma voz ressoou pelo
palco, a mesma que tinha apresentado o espetáculo.
— É chegado o momento da escolha!
Um frêmito de excitação percorreu o público. O Inomeado fez um
esforço sobre-humano para permanecer de pé. Tudo parecia cada vez mais
distante...
— Ajoelhe-se, hovalyn! — prosseguiu a voz. — Renegue tudo o que
você é, desista de lutar. Jamais conseguirá nos vencer. Rebaixe-se e a
tortura cessará, você passará a ser um dos nossos. Conhecemos a
identidade que você procura tão desesperadamente. Nós a revelaremos a
você. Você terá um lugar entre nós. No entanto, se insistir e recusar nossa
proposta, a dor prosseguirá até deixá-lo enlouquecido. Assim que a greve da
Morte acabar, nós o mataremos. Então, admite que foi vencido? Aceita nos
servir?
— Nunca! — disse o Inomeado num sopro de voz. Uma nova onda
de dor abateu-se sobre seu corpo.
Uma voz distante, grave, dura, mas admirada, ressoou pelo teatro:
— É ele... É ele! Parem, é ele! O Inomeado caiu desmaiado.
18 As três meninas despertaram ao mesmo tempo. O sol mal acabava
de nascer. Fizeram uma refeição leve. Âmbar experimentava uma fruta
estranha, que parecia deliciosa. Nenhuma delas falava. Ainda estavam muito
cansadas.
Foi Opala quem percebeu primeiro as duas meninas que vinham
em sua direção. Tinham um rosto fresco e delicado e caminhavam com uma
expressão despreocupada. Mas Âmbar não deixou de notar nelas um jeito
orgulhoso, uma certa arrogância.
No começo, ficaram em silêncio, examinando as viajantes. Era
impossível adivinhar sua idade. Uma delas tinha o cabelo castanho-claro,
bem curto, habilmente despenteado. Seus olhos eram de um azul cintilante e
malicioso. A outra, morena, penteada da mesma maneira, tinha olhos
castanhos e um olhar fluido. Eram bem parecidas. Tinham o nariz pequeno,
fino, ligeiramente arrebitado, lábios carnudos que sorriam inocentemente.
Tanto seus traços quanto seu jeito sugeriam pessoas charmosas e angelicais.
Mas elas não conseguiam esconder um ar de desdém.
—Lorine! — gritou a menina de olhos azuis com uma voz infantil.
— Você acredita que sejam humanas? De verdade?
—É provável — respondeu a outra, com a mesma vozinha aguda.
— Que coisa incrível!
—Eu existo! — disse Jade secamente. — Acho bom levarem isso em
conta quando falarem de nós.
—Tem razão, Mairenith — disse Lorine. — São humanas mesmo!
— Obrigada pela constatação — retrucou Jade, já irritada.
Âmbar e Opala olhavam atentamente para as duas meninas.
Aquelas vozes fininhas lhes inspiravam mais mal-estar do que fascinação.
—Nossa, como estou contente! — exclamou Mairenith, mexendo
seus longos cílios negros.
—Estamos radiantes de encontrar vocês! — disse Lorine,
mostrando no sorriso seus dentes brancos e perfeitos.
—Eu acho vocês lindas — disse Mairenith alegremente. — Não são
bonitas, Lorine?
—Muito bonitas.
—Obrigada — respondeu Jade. — Mas vocês não poderiam ser um
pouco menos debochadas?
—Lindas mesmo — repetiu Lorine. — Como nunca vi antes.
—Nem eu — disse Mairenith. — Diga, Jade. Você me acha bonita
também?
—Como é que você sabe meu nome?
—Ora, eu sou uma Nalyss... E então, você me acha bonita? —
repetiu, modulando a voz.
Jade, Âmbar e Opala perguntavam-se quem seriam as estranhas
visitantes.
—Por que essa pergunta? — inquiriu Âmbar.
—Porque quero saber — respondeu Mairenith, amuada.
—Sim, vocês são bonitas — disse Jade, já chateada. — Mas são
também muito esquisitas. E gostaria que não fossem tão pretensiosas!
Âmbar e Opala trocaram um sorriso discreto ao ouvir Jade falar de
seus próprios defeitos.
—Ela nos acha bonitas! — entusiasmou-se Mairenith, feliz como se
não tivesse escutado o resto.
—E somos mesmo! — disse Lorine.
Foi então que apareceu uma terceira menina, tão bonita quanto as
outras duas. Mas não se parecia com elas. Era mais fácil lhe atribuir uma
idade. Não devia passar de quinze anos. Tinha um aspecto delicado, sem ser
frágil. Uma longa cabeleira, suave como seda, deslizava por seu corpo
esguio. Seus traços resplandeciam de pureza. Tinha a pele fresca e os lábios
vermelhos. Seu olhar inocente causava alguma perturbação em quem a
encarava.
—Ah, Lorine! — gritou Mairenith, assustada.
—Que horror! — exclamou a outra.
—Não posso suportar isso — gemeu Mairenith, à beira das
lágrimas.
—Suma daqui, horrível criatura! — berrou Lorine. — Vá para
longe, não se aproxime delas!
Depois, como se fossem tomadas por um visão repugnante,
Mairenith e Lorine saíram correndo.
—Nossa! Elas são mesmo muito esquisitas — disse Âmbar, dividida
entre a vontade de rir e a surpresa.
—E como! — concordou Jade.
— Como corriam! — disse Âmbar, espantada. — Parecia que
tinham visto uma criatura totalmente horrenda e gritaram tanto que quase
me arrebentaram os tímpanos. Decididamente, não entendi nada.
Jade deu de ombros. A recém-chegada aproximou-se com um
sorriso.
—Meu nome é Janelle.
—Fico feliz em saber — respondeu Jade, com azedume.
—Aquelas meninas eram Nalyss. São um bocado esquisitas, não
são?
Janelle sentou-se ao lado das três e começou a contar a história
das Nalyss, um numeroso grupo de mulheres que habitava Conto de Fadas.
Não passavam dos trinta anos de idade e eram tão narcisistas que se
apaixonavam pela própria beleza e dedicavam toda a sua vida a cuidar dela.
A obsessão era tão intensa que elas não podiam se olhar em espelhos, ou na
água dos lagos, porque corriam o risco de não conseguir mais se separar da
própria imagem.
Janelle, no entanto, não contou tudo o que sabia. Omitiu, por
exemplo, que nem todas as pessoas conseguiam ver uma Nalyss. Esses seres
possuíam um dom muito raro, cujo valor nem todos conseguem perceber:
sabiam julgar a beleza interior das pessoas e a percebiam melhor do que sua
beleza física. As Nalyss só apareciam para as pessoas que conjugavam essas
duas qualidades. Outras pessoas as repugnavam.
As Nalyss passavam a vida em busca de pessoas que pudessem
confirmar sua beleza. Superficiais, eram também desprovidas de
inteligência. Gostavam de encantar homens que julgavam dignos, deixavam-
nos apaixonados e, algumas vezes, acabavam grávidas de novas Nalyss.
Ao fim da vida, eram poucas as que percebiam que tinham corrido
à toa atrás de um ideal sem sentido. Poucas compreendiam que a beleza não
lhes tinha servido para nada, que tinham simplesmente deixado de viver.
Janelle calou-se, deixando um longo silêncio marcar o fim de seu
relato.
—E você, é o quê? — perguntou Jade, rompendo o encanto da
narrativa.
—Sou Janelle. Guio pessoas até seu destino em troca de alimento e
um pouco de consideração.
—Nesse caso, não nos serve — disse Jade, muito antipática, sem
ao menos saber por que reagia de maneira tão desagradável.
— Não! Pelo contrário — indignou-se Âmbar. — Janelle, será que
você poderia nos conduzir até Oonagh? Não conhecemos absolutamente
nada de Conto de Fadas e estamos meio perdidas...
— Mas é claro! — respondeu Janelle, radiante.
Opala observou em silêncio a menina que sorria para ela. Mesmo
sem querer, não sentia mais nenhuma hostilidade contra ela.
Puseram-se a caminho, Âmbar e Opala num cavalo, Jade e Janelle
no outro.
As três meninas estavam pouco à vontade com a nova
companheira. Sem saber se podiam confiar nela, viajavam em silêncio ou
trocavam poucas palavras, sem dizer nada de importante. No entanto, como
a recém-chegada parecia realmente inofensiva, Âmbar começou a conversar
com ela, enquanto Jade e Opala continuavam em silêncio.
Rapidamente, Janelle se revelou uma menina normal e simpática.
Contou a Âmbar que tinha catorze anos e que era muito pobre. Em vez de
passar a vida em sua aldeia natal, tinha preferido descobrir Conto de Fadas
trabalhando como guia.
—Mas você é tão nova! — espantou-se Âmbar. — E eu não sabia
que aqui também existia a pobreza.
—Infelizmente, existe. Onde há vida, não pode existir só felicidade.
Apesar dos olhares fulminantes que Jade lhe enviava, Âmbar
estava tocada pela simpatia de Janelle, e começou a contar sua própria
história desde o início. Quando chegou no ponto em que falaria da pedra,
Jade a interrompeu violentamente:
— Cale a boca, Âmbar! Não toque nesse assunto!
O olhar caloroso de Âmbar gelou instantaneamente. Ela voltou-se,
irritada.
— Jade, não me diga o que devo ou não devo fazer. Sou forte o
suficiente para me controlar. Se você não consegue confiar nas pessoas, é
problema seu. Não meu. Eu respeito seus pontos de vista, então também
respeite os meus. Cuide da sua vida, das suas pretensões de princesa, e
deixe os outros em paz.
Jade dirigiu um olhar ferido para Âmbar, que sustentou o olhar,
ainda espantada com as próprias palavras.
— E incrível como a gente se engana — disse Jade, num tom frio e
pesado. — Já sabe que uma pessoa é inimiga, que pode representar um
perigo, e mesmo assim se arrisca a gostar dela. A gente ignora todos os
avisos, acredita que está construindo uma amizade, mesmo que ainda frágil,
que está existindo um entendimento mútuo. Depois, é obrigada a ver aquilo
que tinha tentado ignorar. Da noite para o dia, descobre-se um inimigo onde
a gente jurava que tinha um amigo.
Surpresa com a discussão inflamada das companheiras, Opala
deixou a indiferença de lado e tentou, desajeitadamente, conduzir a conversa
para um terreno mais seguro.
—O que aconteceu enquanto eu estava inconsciente? Como
consegui sobreviver? Alguém sabe se Adrien está bem? Onde ele está? Tive
um sonho... Ele estava vestido com uma espécie de uniforme e eu sentia que
ele estava de partida.
—Isso mesmo — respondeu Âmbar. — Eu tinha esquecido que você
não sabia de nada.
—E começou a contar a Opala, com a voz ainda alterada, os fatos
que ela ignorava.
Jade mantinha os olhos baixos. Sentia confusamente que não
estava em seu estado normal, mas não queria admitir isso. Janelle a
incomodava cada vez menos. Começava não exatamente a aceitá-la, mas
simplesmente a esquecer sua presença.
As meninas atravessaram algumas aldeias sem maiores incidentes.
Quando Âmbar terminou de contar a Opala tudo o que tinha acontecido,
instalou-se um pesado silêncio no grupo. Janelle tentou desanuviar o
ambiente, sem sucesso. Ao fim de algumas horas, o cavalo de Âmbar enviou-
lhe uma onda telepática, avisando que estava exausto e que precisava
descansar.
— Precisamos parar um pouco — disse ela.
De comum acordo, acamparam numa campina selvagem. Certa
tensão pairava sobre o grupo.
— Você se julga muito importante só porque interpreta os
pensamentos dos cavalos, não é mesmo? — perguntou Jade, agressiva.
—Pelo menos, não acho que sou o centro do universo.
—Acalmem-se vocês duas! — interveio Opala, cada vez mais
espantada. — Está acontecendo alguma coisa muito esquisita. Acho que
devíamos pedir ajuda às pedras.
—A verdade é que você não tem força suficiente para assumir o
que pensa — retrucou Âmbar. — Está sempre pedindo ajuda.
Mais espantada ainda, Opala olhou para Âmbar. O que estava
acontecendo? Mesmo assim, desamarrou os cordões de sua bolsa e segurou
a opala de reflexos nacarados. Mas foi por poucos instantes. A pedra
queimou sua mão. Largou-a com um grito de dor. Depois, com todo cuidado,
pegou-a do chão e recolocou-a dentro da bolsa. Sua mão direita estava
vermelha, queimada. Jade e Âmbar não lhe dirigiram sequer um olhar de
solidariedade. Apenas Janelle perguntou como ela estava.
Opala, que tinha aprendido a suportar Jade e começava a gostar
de Âmbar, sentiu-se novamente distante das duas. Tudo o que tinham vivido
juntas deveria tê-las aproximado, mas a chegada de Janelle tinha tornado
tensa a relação. Agora, uma raiva enorme, sem nenhum motivo, se
interpunha entre elas e destruía a ainda frágil amizade que as ligava.
— Acha que pode me magoar? — perguntou Opala a Âmbar. —
Lamento, mas está enganada. Só espero que não comece a chorar porque sei
bem a menina sensível que você é, tão tocante com todo mundo. Seria triste
ver suas lágrimas correrem. Como é que eu poderia dizer qualquer coisa
desagradável para você, logo para você, que não tem nenhum defeito? Claro
que devo passar por cima do fato de que você é uma camponesa ignorante e
afetada.
A torrente de palavras saía quase que sozinha, viva, incontrolável.
Agora, não se arrependia de tê-las deixado fluir. Uma raiva inexplicável
começava a crescer dentro de si.
As meninas retomaram viagem. Janelle não ousava intervir. Tentou
puxar assunto com sua voz suave, mas foi em vão. As três trocavam farpas
cada vez mais afiadas entre si. A situação começou a degenerar quando, ao
fim de algumas horas, Âmbar e Jade pararam os cavalos a pretexto de
descansar mais um pouco. Mal pousaram os pés em terra, as duas se
atracaram aos tapas. Opala juntou-se à confusão e também saiu
distribuindo golpes.
Janelle não reagiu imediatamente. Acabou descendo de seu cavalo
e tentou chamar as meninas à razão, mas isso não produziu o menor efeito.
Gritou. Tempo perdido. Meteu-se entre as meninas e acabou levando uns
tabefes raivosos. Seu corpo franzino pareceu dobrar-se sob a força dos
golpes. Finalmente, com uma força de que não supunha ser capaz, separou
as três meninas.
Jade, com a cabeleira negra caindo sobre os olhos, toda
descabelada, com as roupas amassadas, parecia fora de si. Seus olhos
chispavam. Seu rosto estava levemente ferido e exibia algumas gotas de
sangue. Opala saiu da confusão com alguns arranhões e um olhar ainda
mais insondável do que de costume. A briga tinha reavivado a dor de seu
ferimento. Mantinha a cabeça baixa para dissimular seus sentimentos.
Âmbar lutava contra as lágrimas. Seu lábio inferior estava partido e ela
sentia o gosto amargo, quente, desagradável, do sangue que escorria por
dentro da boca. Trocaram olhares hostis. A situação tornava-se
insustentável.
Paris, 2002 Eu estava cada vez mais fraca, frágil. Mal tocava na comida que as
enfermeiras me traziam. Havia meses que não me olhava no espelho. Eu me
imaginava magra, trêmula, com os ossos à mostra, os traços abatidos. Não
ousava encarar meu olhar desesperado. Queria guardar a imagem de Joa e
não a de uma doente deformada pelo medo.
Quando fechava os olhos com força, conseguia me rever como eu
era antes. A imagem se materializava lentamente, cada vez menos nítida à
medida que o tempo passava. Eu era outra pessoa. Joa.
Essas lembranças me faziam sofrer e lágrimas quentes inundavam
meus olhos. Tinha tentado esquecer, relegar minha história ao fundo de
minha memória, e achava que estava conseguindo. Queria ser capaz de
aceitar meu destino.
Mas o sonho fez ressurgir o passado, ao mesmo tempo em que
delineava o futuro. Eu pensava que era forte e firme o suficiente para resistir
a ele. Mas não era. Embora não admitisse, sentia um lento renascer da
esperança. No entanto, tudo não tinha passado de um sonho. Desde o
começo, meu espírito atormentado inventou essa história que me devolveu a
vida. Eu chegava a ter medo de pensar nisso, como se minhas lembranças,
meus sentimentos e pensamentos pudessem alterar as cores cintilantes do
sonho esfumaçá-las até que desaparecessem. O sonho me parecia tão
importante que eu tinha medo de deixá-lo escapar da memória. Queria que
continuasse eternamente. Inconscientemente, eu acreditava que ele era
verdadeiro, eu o sentia verdadeiro, eu o queria verdadeiro.
Mas a doença continuava a me consumir. Eu estava muito mal. O
sonho, que me levara para longe da realidade, tornou minha dor ainda mais
viva quando despertei no leito do hospital. Quanto mais eu queria viver,
mais sofria na luta contra a morte. Novamente, comecei a recusar essa
fatalidade e a acreditar na ilusão da esperança. Eu me maldizia por ser tão
ingênua. Contudo, no fundo, estava mais feliz assim.
19 Assim que o sol se pôs, marcando o fim de uma jornada sofrida e
cansativa, as quatro meninas pararam para descansar próximo a uma
campina. Janelle tinha preferido a natureza a uma cidade desconhecida, e
as outras dobraram-se diante de seus argumentos. A tensão no grupo
aproximava-se do paroxismo. Jade, Opala e Âmbar estavam caladas, mas se
continham a duras penas. Mantinham a cabeça baixa, mas seus olhares
estavam repletos de uma raiva destrutiva, incompreensível, que esperava
apenas um sinal qualquer para explodir.
Tanto Âmbar quanto Jade tinham as mãos nervosamente
crispadas sobre as crinas de seus cavalos. Até mesmo Opala, sempre tão
reta e rígida, deixava transparecer uma cólera terrível.
As meninas sentaram-se. Âmbar desfez lentamente o pacote de
mantimentos. Jade e Opala seguiam de perto cada um de seus movimentos.
Âmbar e Jade tentaram pegar a mesma fruta.
—Larga! É minha! — gritou Jade.
—É mesmo? E por quê? — replicou Âmbar. — Seus desejos têm
que estar sempre na frente dos outros?
—O que você está falando? Acha mesmo que vou lhe dar ouvidos?
Para mim, você não existe.
Jade atirou-se sobre Âmbar, dando livre curso a sua raiva. A luta
foi tão violenta, tão furiosa, que Janelle e Opala não ousaram se aproximar.
Jade sabia defender-se muito bem, e possuía uma força felina, mas a cólera
dava um ímpeto temerário a Âmbar. Por fim, a briga cessou.
—O que é que você está olhando? — perguntou Jade a Opala, ao
mesmo tempo em que desferia contra ela um golpe brutal, apesar de seu
cansaço. Opala derrubou Jade que, já machucada, levantou-se com
dificuldade.
—Não pense que vou ficar junto de seres tão desprezíveis quanto
vocês — uivou. — Vou deixá-las entre as pessoas de sua própria espécie!
Jade partiu com passos firmes para o outro lado do campo,
decidida a passar a noite lá. Opala fez o mesmo, mas dirigiu-se para o lado
oposto.
Âmbar ficou sozinha com Janelle. Não tinha raiva da jovem guia e
a presença da menina, se não reduzia sua irritação, também não a
aumentava.
—Posso ajudar? — perguntou Janelle. — Se quiser desabafar,
talvez isso a acalme.
—Acho que não — respondeu Âmbar com uma careta.
—Se você preferir, posso contar algumas histórias. Assim, você
pensará em outras coisas.
—Se quiser...
Janelle começou a falar de si própria, descrevendo detalhadamente
sua infância, sua vida e suas viagens. Ela não sabia definir Conto de Fadas.
Para ela, aquele universo era o cotidiano. Estava acostumada com ele e não
via nada do que acontecia ali como fantástico.
Contou como tinha vivido numa casa decadente. Era a primogênita
de uma família numerosa e miserável. Desde criança, sonhava em viajar, em
escapar daquela existência precária e encontrar uma vida diferente. Apesar
disso, amava muito sua família e tinha prometido voltar para ajudá-los.
— Sua história se parece com a minha — disse Âmbar
com a voz sonhadora, cheia de lembranças.
Janelle sorriu e continuou a falar. Era dotada de uma imaginação
fértil, que lhe permitira manter-se longe da pobreza. Com dez anos, saiu de
casa. Queria descobrir Conto de Fadas. Em apenas dois anos, conseguiu
atravessar vastas e pitorescas regiões e admirar lugares cuja existência e
beleza jamais tinha imaginado. Então, retornou à sua cidade natal para
rever seus parentes. Chegou muito alegre, desejando contar a todos que se
tornaria uma guia. Mas encontrou sua casa devastada por uma epidemia
que tinha dizimado sua família. Suas duas irmãs, as únicas sobreviventes,
aconselharam-na a sumir dali e a nunca mais voltar. Tinha sido difícil
reconhecê-las, o rosto encovado, o corpo definhado... Horrorizada com a
imagem de sua cidade devastada, partiu no mesmo dia, esperando que o
futuro conseguisse fazê-la esquecer esse triste passado.
—Sua vida também não foi fácil — disse Âmbar.
—Não mesmo. Eu tentava me distrair inventando histórias, contos
que eu mesma criava, mas ninguém estava muito interessado neles. Mas
continuei querendo ser guia. Infelizmente, quase ninguém solicita meus
serviços...
—Ao fim do relato, Âmbar sentia-se muito próxima de Janelle. A
menina tinha contado histórias divertidas e poéticas, que ela mesma tinha
inventado. Âmbar escutou com atenção, riu e aplaudiu suas fábulas.
—Você é mesmo uma boa contadora de histórias — exclamou, já
cativada.
—Obrigada — respondeu Janelle. — Mas agora é sua vez. Adoraria
conhecer sua história.
Âmbar concordou. Como Jade não estava mais ali para censurá-la,
contou tudo a Janelle, que a escutava com muita atenção e partilhava de
suas emoções. Seu olhar inflamava-se, suas faces ruborizavam, ela parecia
tão viva, tão animada, tão fascinada.
Quando terminou, Janelle fixou seus olhos em Âmbar.
— Você tem um dom. Sabe contar as coisas de um modo que
envolve quem as escuta.
Âmbar riu novamente, mas, na penumbra, percebeu uma lágrima
furtiva escorrendo pelo rosto da nova amiga.
—Está tudo bem? Posso ajudar? — perguntou docemente.
—Não — soluçou Janelle, visivelmente desamparada.
—O que você tem? Conte para mim — insistiu Âmbar.
—Não é nada... É que me lembrei de meus pais... e não pude
evitar...
As últimas palavras saíram num breve soluço. Mas, rapidamente,
Janelle se recompôs. Emocionada, Âmbar não perguntou mais nada.
Também tinha contado a história da morte de sua mãe. Janelle não se
derramou em condolências. Mostrou-se amiga, sem exageros. Âmbar gostou
dessa reação e isso as aproximou como se partilhassem um segredo, alguma
coisa muito pessoal. Falar de sua mãe era expor uma parte de si própria.
Sentia-se cada vez mais à vontade na companhia de Janelle. Achava que
uma verdadeira amizade estava nascendo entre elas.
No entanto, lá no fundo, a raiva continuava a borbulhar e crescia
lentamente. Só conseguia contê-la enquanto mantivesse distância de Jade e
de Opala.
—Sabe, Âmbar, não sei se isso interessa a você, mas vivo sozinha
há muitos anos — disse Janelle timidamente. — Só tenho companhia por
poucos instantes, e não crio laços com ninguém. Escondo todos os meus
sentimentos, minhas opiniões, sem deixar nada transparecer.
—Deve ser muito duro viver assim — disse Âmbar, adivinhando a
seqüência da conversa.
—É, sim...
Parecia que Janelle ia dizer mais alguma coisa, mas mudou de
assunto. As duas continuaram a conversar e a descobrir afinidades.
— E essas duas meninas, o que você acha delas? — perguntou
Janelle.
Âmbar sentiu a cólera voltar.
— Jade é pretensiosa, disse com a voz já alterada. É egoísta,
completamente absorvida por si mesma. Ela é insuportável, só presta
atenção em si, e julga-se perfeita! Não suporto seu arzinho de princesa
orgulhosa. Quanto a Opala, é uma pedra de gelo, não tem um pingo de
sentimento. Nem sorrir ela sabe. Quando decide emitir um som, pode-se
considerar um milagre. Eu a detesto. Odeio todas as duas!
Janelle olhou para a companheira. O sangue voltara a correr em
seus lábios, e a expressão amável e calorosa de Âmbar tinha sido substituída
por um ar terrível, impregnado de uma raiva infinita.
Janelle conseguiu acalmá-la com alguma dificuldade. A noite
estava ficando muito escura. Mesmo assim, as meninas continuaram
conversando por um bom tempo. Janelle irradiava bondade. Âmbar estava
radiante por tê-la encontrado.
Quando o cansaço se instalou de vez, as amigas decidiram se
deitar, prometendo novas histórias para o dia seguinte. Depois de algumas
boas gargalhadas, acabaram adormecendo. Âmbar caiu num sono pesado e
sem sonhos.
O céu estava salpicado de estrelas. A lua brilhava mansamente. O
silêncio da noite foi quebrado por um grito abafado. Âmbar levantou-se
bruscamente, com a respiração suspensa. No meio da penumbra, distinguiu
o vulto de Janelle, de pé, diante dela.
— O que está acontecendo? — gemeu Âmbar. — Estou
me sentindo tão mal...
A menina não respondeu. Sua expressão tinha mudado, seu rosto
agora parecia maligno, raivoso. Âmbar achou que estava enxergando mal.
Janelle abaixou-se e tentou pegar alguma coisa no meio da relva alta, mas
deu um grito estridente e levantou-se em seguida. Impossível negar: seu
olhar tinha se tornado faiscante e furioso.
—Janelle — murmurou Âmbar, intrigada.
—Deixe-me! — gritou a menina, com uma voz aguda e histérica.
—O que é que você tem?
—Então você não vê? Não compreende?
Janelle estendeu lentamente sua mão fechada, depois abriu os
dedos. Sua palma estava queimada. Nesse instante, Âmbar a viu como as
Nalyss a tinham visto — e como qualquer pessoa a veria, se seu físico fosse o
reflexo de sua alma. Grosseira, os cabelos negros desgrenhados, a pele
oleosa, olhos fundos, cor de carvão, o rosto inchado, um nariz deformado,
uma silhueta desgraciosa, os ombros largos demais. Seu olhar transbordava
de baixos sentimentos, cada um de seus traços era crispado pelo desejo de
destruição. Janelle tinha se transformado na encarnação do ódio.
—A culpa é toda sua! — berrou ela, transtornada.
—Mas... como assim?
—Toda sua! Não quer enxergar? Eu odeio você... Odeio você!
Âmbar sentia-se mal. Seus olhos encheram-se de lágrimas. Não
entendia mais nada, nem queria entender.
—Você tem tudo o que eu nunca tive! — continuou a outra. — Você
roubou o meu lugar! Você roubou a minha vida!
—Isso não faz o menor sentido — balbuciou Âmbar.
—Claro, para você é fácil dizer isso. Sou uma pobre menina, uma
miserável, não tenho o direito de ter importância, não é? É isso o que você
acha?
—Não, de jeito nenhum!
—Ainda não compreendeu? Pois vou ajudá-la. Lembremos dessa
história desde o começo. De repente, cruzo com três meninas no meu
caminho. Paro e, escutando a conversa delas, percebo que acabaram de ver
as Nalyss e que elas fugiram quando cheguei... Sim, elas são suficientemente
perfeitas para ver as Nalyss, mas eu não!
— Eu não sabia... — murmurou Âmbar, sentindo o mundo desabar
à sua volta. A sensação de mal-estar se intensificava.
—Então — prosseguiu — decidi ficar amiga delas. — Queria
mostrar a elas que eu também tenho o direito de existir, de ser apreciada.
—Eu nunca disse o contrário.
—Mas as três meninas me ignoraram.
—Isso não é verdade!
—Elas têm tudo de bom. A vida lhes ofereceu de tudo; a mim, não
deu nada. Então senti a raiva me invadir, violenta, mas boa. Ela me
preencheu, me possuiu, até me invadir completamente. Então, era preciso
que eu a botasse para fora. Concentrei-me e com uma facilidade que nunca
tinha experimentado antes liberei a raiva. Ela transbordou e outra alma foi
banhada por ela.
—Jade! — exclamou Âmbar.
—Mas o ódio continuou crescendo em mim. Para controlá-lo, tive
que passá-lo para a outra menina, Opala, não é? Pouco a pouco, o ódio a
dominou. Depois, dominou você também.
—Mas por quê? Não lhe fizemos nada! — protestou Âmbar, quase
sufocando.
—Mais tarde, você começou a confiar em mim. Inventei uma
história para minha vida, você acreditou em mim, teve pena. Eu detesto seus
sentimentos adocicados, seu arzinho caridoso. Morria de vontade de dizer a
verdade, de contar como transmiti o ódio, e promovi mortes e guerras.
Quando você me falou da pedra, compreendi quem você era. Nesse
momento, achei que minha raiva era plenamente justificada. Eu quis
suplantar, humilhar, destruir você.
—Não! — gritou Âmbar, ainda recusando a verdade.
—Essa noite, tentei roubar sua pedra, mas não consegui. Ela
queimou minha mão. Então, você acordou, confiante, com sua expressão
sábia, perfeita, insuportável.
Âmbar não conseguia dizer mais nada.
—O que você acha? Que eu me preocupo? Que não avalio o mal
que posso causar? Não é nada disso. O mal me alimenta, me traz poder! Sem
ele, não sou nada. Eu sirvo a ele. Ele me reconforta, me transforma, me
deixa invulnerável. Preciso dele. Quando vejo as pessoas sofrendo, quando
sinto o mal me possuir, fico fortalecida! Não tenho mais necessidade de me
esconder atrás de sorrisos angelicais, não preciso mais me forçar a ser outra
pessoa, a parecer gentil... O mal permite que eu seja eu mesma.
—Por que você está me dizendo tudo isso?
—Porque sei que escutar essas coisas faz mal a você. Minhas
palavras atingem, ferem você, tiram sangue de sua alma ferida... E eu adoro
ver isso. Você pensava que era superior a mim? Pois não é. Pensava que eu
era sua amiga? Pois é o contrário: sou uma de suas mais fervorosas
inimigas. Suas lágrimas me proporcionam imenso prazer. Acha que sou
desleal? Pois não me arrependo de nada; sou minha inveja, assumo minha
natureza. Não me curvo ao mundo educadinho que querem me impor. Eu
crio o mal e vivo dele.
Com essas palavras, Janelle sorriu triunfante e partiu satisfeita.
Âmbar julgou vislumbrar ao longe um cavaleiro que observava a cena. Mas
essa imagem só poderia ser uma ilusão, uma miragem na noite.
Pegou sua pedra do meio da relva. Tinha voltado a ser morna e
reconfortante. Com a partida de Janelle, todo o ódio desapareceu de seu
coração. No entanto, as lágrimas continuaram a molhar seu rosto, como
pérolas de desamparo.
20 O Inomeado abriu os olhos. Rapidamente, sentiu-se desperto. Seus
ferimentos tinham desaparecido, não sentia mais nenhuma dor, não havia
mais nenhum traço dos cortes profundos que tinham marcado seu corpo.
Percebeu que estava no mesmo quarto pequeno, de paredes nuas. Embora
estivesse sentado na mesma cadeira de musgo verde, não estava mais
amarrado com os cipós. A seu lado, Elforhys, ainda amarrado, também nem
parecia ter sido ferido.
—Inomeado! Até que enfim, voltou a si!
—Mas... o teatro, a dor...
—Que história é essa? Você ainda deve estar sob estado de choque.
—Eu não estava sonhando — murmurou o Inomeado,
desconcertado.
—Algumas horas depois da saída de Nailde, os Ghibduls vieram
aqui.
—Eu sei.
—Eles rodearam você e começaram a fazer um encantamento
estranho... Você desmaiou. Eles ficaram ao seu lado sem dizer nada. Você se
agitava, balbuciava sons incompreensíveis... A coisa toda durou cerca de
meia hora. Eu já estava ficando preocupado. Depois que eles saíram, você
continuou inconsciente. Eu chamei, gritei, tentei ajudar você. Finalmente,
umas duas horas mais tarde, os cipós soltaram-se sozinhos e seu sono ficou
mais regular.
Impressionado, o Inomeado contemplou seu corpo intacto — com
exceção da antiga ferida no braço direito — sem entender nada. Mergulhou a
cabeça entre as mãos. Será que sua memória andava lhe pregando peças?
Depois de ter apagado seu passado, agora o enganaria novamente, forjando
um presente imaginário?
Mal teve tempo de refletir sobre o assunto. Logo, três Ghibduls
entraram no aposento. Seus rostos monstruosos tinham assumido uma
expressão afável, seus lábios até tentavam esboçar um sorriso. Um deles
aproximou-se do rapaz e, sem uma palavra, estendeu um objeto comprido,
embrulhado em um envelope de um branco imaculado. O Inomeado
estendeu a mão com alguma hesitação e cuidado.
— Pegue, encorajou um Ghibdul, com uma voz rouca,
onde se percebia humildade, respeito e admiração.
O Inomeado apoderou-se do objeto e desfez o embrulho.
Impressionado, reconheceu sua espada encantada.
— Se aceitá-la, respeitável hovalyn, apresentaremos nossas
desculpas — prosseguiu o Ghibdul.
Elforhys caiu na gargalhada. Os Ghibduls lançaram-lhe um olhar
turvo.
—Se é assim, talvez vocês pudessem nos libertar agora — disse
alegremente. — Estamos muito tocados com sua súbita mudança de
comportamento, mas...
—Cale-se, verme! — ordenou aquele que tinha entregue a espada
ao Inomeado, e que era, claramente, quem tinha mais autoridade ali.
—Eu os proíbo de tratar Elforhys dessa maneira! — indignou-se o
Inomeado.
—Se esse é o seu desejo — resmungou o Ghibdul, contrariado.
—Acho que vocês poderiam nos dar algumas explicações —
continuou o hovalyn, ainda perturbado, mas disposto a tirar partido da
inusitada situação.
—Nós penetramos no seu espírito e simulamos uma encenação a
partir das imagens que já existiam no seu pensamento, mas cuja existência
você ignorava. E acrescentamos alguns elementos de nossa escolha.
—Então, tudo o que julguei ver e sentir era falso?
—A partir da sua saída deste aposento, sim. Foi uma prova
necessária e eficaz. Somos particularmente hábeis nesse gênero de
manipulação indolor.
—Indolor! — disse o Inomeado. — Cada um percebe as palavras à
sua maneira, mas não vi a intrusão de vocês no meu espírito como uma
coisa agradável, nem simpática.
O Ghibdul estava tão próximo do rapaz que ele podia sentir seu
hálito fétido. Quando a criatura voltou a falar, teve que virar o rosto.
—Tínhamos dúvidas a seu respeito. O que adivinhávamos nos
parecia improvável, mas somos persistentes. E esta intervenção telepática
confirmou nossas suspeitas, nossas esperanças.
—Então, aprenderam a esperar? Pois nós aprendemos isso todo dia
— ironizou Elforhys.
—Hovalyn, você é aquele que esperamos há muito tempo. Qual é
seu nome?
—Não tenho nome — respondeu o cavaleiro. — Sou o Inomeado.
Os Ghibduls não pareceram perturbados com a revelação.
—Você foi o único a resistir tanto tempo à... humm, à tortura
mental que lhe infligimos. Ficamos muito contrariados, diga-se de passagem,
por fazê-lo passar por aquilo.
—De fato, não foi nem um pouco delicado de sua parte.
—Mas era necessário — desculpou-se o Ghibdul. — Sabe, mesmo
entre nós, ninguém suportou uma prova dessas por tanto tempo. Mas o que
mais impressionou foi a sua escolha. Foi inacreditável. Nunca uma pessoa
escolheu essa saída Ninguém teve tamanha coragem. Só você.
—Então, vocês se divertem torturando mentalmente uns aos
outros? — perguntou Elforhys. — Nossa! Que passatempo mais... agradável!
—É apenas um teste. Todo mundo passa por isso.
—E por que eu sou "aquele que todos esperavam"? — perguntou o
Inomeado.
—Nós vivemos enclausurados há muitos séculos. Criamos uma
civilização que ainda está em seus primórdios. Mas, desde o início dos
tempos, uma tradição, uma crença, vem sendo transmitida. Ela diz que, um
dia, chegaria aqui um homem e nós o reconheceríamos. Este homem
mudaria nosso modo de viver e nos aproximaria das outras criaturas. E nós
o seguiremos, obedeceremos e ajudaremos quando ele pedir nossa ajuda.
Esse homem, Inomeado, é você.
—Ah, não — protestou o hovalyn. — Vocês estão enganados. Como
querem que eu os aproxime das outras criaturas? Além disso, não tenho a
menor intenção de comandar vocês!
— Vamos levá-lo para conhecer nossa cidade. Em seguida, você
partirá. Mas chegará o dia em que você nos chamará — afirmou com calma e
segurança o Ghibdul. — É assim que as coisas são.
Como o Inomeado não parecia convencido e seu rosto conservava
uma expressão cética, outro Ghibdul explicou:
— Está tudo na Profecia, hovalyn. Neophileus escreveu que, no
fundo da floresta, vivia uma civilização escondida e que, um dia, depois de
uma vitória, um homem a descobriria. Ele passaria por uma prova que
revelaria sua identidade àqueles que o mantinham cativo. Depois, esse
homem iria embora. Quando as trevas estivessem prestes
a apagar a luz, ele retornaria, pediria ajuda a esse povo e o
faria sair do desconhecimento. Hovalyn, essa é a sua história. E é também a
nossa.
O Ghibdul fez uma pausa. Uma das criaturas continuou:
— Nós sabemos quem é você. Está na Profecia: nós revelaríamos
sua identidade a você. Por isso, você não descobriu nada até hoje.
Tremendo de emoção, o coração batendo loucamente, a garganta e
o ventre contraídos de ansiedade, o Inomeado esperou pelo fim da história.
Saberia, enfim, quem era? Os Ghibduls o olharam solenemente. Finalmente,
um deles anunciou:
— Inomeado, você é aquele que todos esperam. Você é o Eleito.
21 Âmbar passou o resto da noite acordada, com os olhos cheios de
lágrimas. Não conseguia admitir que Janelle a tivesse enganado. Tinha
imaginado que a menina era sua amiga. Ainda que essa ilusão tivesse
durado pouco tempo, ela tinha confiado em Janelle, tinha aberto sua alma...
Ao amanhecer, Jade e Opala correram para perto dela. Todo o ódio
tinha se dissipado. As meninas tiveram o forte pressentimento de que
alguma coisa horrível havia acontecido com Âmbar. Apressaram-se em
escutá-la e consolá-la.
Foi inevitável que sentissem certo mal-estar ao se lembrarem da
raiva que haviam sentido na véspera. O lábio inchado de Âmbar era a prova
da insanidade que as invadira.
Finalmente, depois de uma série de desculpas, as meninas se
deram conta de que, depois da queda de Nathyrnn, elas tinham ficado muito
mais próximas. Até mesmo a hostilidade reinante entre Jade e Opala tinha
sido consideravelmente atenuada.
Comeram em silêncio, e depois retomaram caminho.
As montanhas, envoltas em nuvens e neve, ainda estavam
distantes e lançavam-se contra o céu colorido com as luzes da aurora. As
meninas continuaram cavalgando em direção à caverna de Oonagh. Ainda
faltava muito para chegarem a seu destino. Jade acreditava que, se
apertassem o passo, chegariam em menos de uma semana. Âmbar ordenou
docemente a seu cavalo que se apressasse.
— Só agora me lembrei — disse Âmbar. — Durante a noite, tive a
impressão de ter visto um cavaleiro. Sei que é improvável, mas achei que
devia dizer isso a vocês.
Jade deu de ombros, mas Opala, que montava o mesmo cavalo que
ela, disse:
— Eu também percebi um vulto, pouco antes de adormecer.
Sua voz estava muito calma, como se aquela informação não
tivesse maior interesse.
— Quem estaria nos espionando? — perguntou Jade. — Detesto
esses mistérios. A última coisa de que precisa mos é de um cavaleiro
fantasma em nosso encalço. Se o virem novamente, me avisem. Acho que um
bom chute no traseiro lhe será muito útil.
Âmbar riu alegremente. Opala a olhava e sorria furtivamente. O
momento em que estivera com Adrien, antes de voltar a perder a
consciência, ainda estava muito forte em sua lembrança e a envolvia com
um calor carinhoso, reconfortante, capaz de adoçar seu olhar sobre o
mundo. Custou a perceber que estava atravessando um lugar cheio de
criaturas diferentes dos humanos. Em vez de intimidá-la, essa perspectiva
fazia com que se interessasse por tudo. Observava a paisagem como se fosse
maravilhosa. Tinha um olhar mudado, um olhar novo. O que a teria feito
mudar: o encontro com Jade, Âmbar e Adrien, seu período de inconsciência,
ou sua sobrevivência miraculosa? É verdade que tinha sentido impressões
estranhas durante seu período de coma. Lembrava-se de ter sonhado muito,
embora não se lembrasse exatamente dos sonhos. Sabia até que tinha
percebido, mesmo desmaiada, que Adrien iria partir e arriscar sua vida. Ao
pensar nisso, sentiu um aperto no coração. Conseguiria revê-lo em breve?
Âmbar tentava distrair-se olhando a paisagem. Novamente, notou
alguns camponeses que não trabalhavam a terra. Eram homens e mulheres,
sem nenhum instrumento de trabalho, com longos cabelos prateados, que
contentavam-se em rir e cantar no meio da colheita. Curiosa, propôs às
meninas que parassem e perguntassem o que era aquilo. Apearam dos
cavalos e embrenharam-se pelo campo de girassóis. Assim que os
camponeses perceberam sua presença, abriram largos e simpáticos sorrisos.
Âmbar cumprimentou-os com amabilidade e seu olhar caloroso os
conquistou imediatamente. Um deles, baixo e robusto, exclamou:
— Seus olhos são de ouro, são de céu, são de flores!
Os outros concordaram, com um olhar malicioso e sorridente.
Âmbar não sabia o que responder àquele cumprimento tão pouco habitual.
Mas logo recuperou-se e perguntou:
— Vocês trabalham a terra? Não conheço nada de Conto de Fadas
e gostaria de saber como vivem os camponeses daqui, se é que vocês são
camponeses...
O grupo riu sem nenhuma maldade. Pareciam pessoas simples,
mas acolhedoras, com seus olhares plenos de alegria.
— Nós compreendemos a terra — explicou uma das mulheres. —
Nossos cantos e risos a alimentam, deixam-na feliz. Nossa maior
recompensa é ver as plantas germinarem. Vivemos em cumplicidade com
elas e com a terra que lhes traz ao mundo. Se isso significa ser camponês,
então somos camponeses.
Vocês são um povo mágico? — perguntou Jade, maravilhada.
Não mais do que os outros, ou do que vocês mesmas — respondeu
a mulher. — Cada qual traz sua magia. Uma semente jamais se parece com
outra.
Diante do ar espantado das meninas, os trabalhadores explodiram
em gargalhadas. Depois, a mulher que estava dando explicações murmurou:
— Estamos muito felizes em conhecê-las.
Como era hora de retomar caminho, as meninas despediram-se
daquele povo jovial, e partiram debaixo de muitos risos, votos de felicidade e
cantos melodiosos.
De volta a seu cavalo, Âmbar disse:
—Quando eu estava indo embora, o homem que tinha dito aquelas
coisas esquisitas sobre meus olhos sussurrou uma frase...
—É mesmo? — interessou-se Jade.
—É. Ele disse alguma coisa como: "A natureza faz milagres com os
quais a magia só pode sonhar".
—Que pessoas mais esquisitas — disse Opala.
Mas são simpáticos — objetou Âmbar.
—De qualquer maneira, parece que gostaram bastante de você —
brincou Jade.
—De mim? — respondeu Âmbar. — Deve ser porque me sinto
próxima deles, porque os compreendo...
As meninas continuaram a cavalgar, fazendo apenas breves
paradas para descansar. Ao fim de algumas horas, surgiu no horizonte o
contorno de uma cidade envolvida numa bruma escura. Apesar da
desconfiança que estavam criando em relação a lugares desconhecidos,
Jade, Opala e Âmbar resolveram atravessá-la para economizar tempo.
À tarde, chegaram à cidade. Apearam e conduziram seus cavalos
pela mão. Elas avançavam, confiantes.
— Acha que há algum perigo aqui? — perguntou Âmbar a seu
cavalo.
O cavalo não respondeu imediatamente. Pareceu farejar o ar antes
de enviar a Âmbar uma impressão de desolação e tristeza, mas não de
perigo.
A cidade estava silenciosa. Todas as casas estavam fechadas.
Opala observou calmamente:
— Algumas casas foram incendiadas recentemente. De fato, no fim
da primeira rua, encontraram algumas casas de madeira reduzidas a montes
de cinza e objetos destruídos.
Âmbar arrepiou-se. Subitamente, um homem saiu de uma das
casas. Tinha um ar desesperado. Era corpulento e vestia-se com um elegante
traje de seda, que lembrava uma toga. Mas seu rosto lívido só mostrava um
imenso pavor. Ele tremia violentamente. Em seus olhos úmidos, percebia-se
um desespero próximo da loucura. O homem atirou-se aos pés das meninas.
— Sejam quem forem vocês, ajudem-nos — suplicou.
— Eu imploro, não nos deixem morrer.
Opala achou que o homem estava apenas fazendo drama e ensaiou
continuar seu caminho. Tinha aprendido a desconfiar de tudo. Mas Âmbar a
reteve e Jade aprovou seu gesto com um breve aceno de cabeça.
As meninas trocaram um olhar de concordância. Uma por
compaixão e a outra por curiosidade, Âmbar e Jade decidiram ver o que
estava acontecendo. Opala não teve outra saída a não ser acompanhá-las.
Âmbar pediu a seu cavalo que a esperasse ali e seguiu o homem até uma
casa de pedra. Dentro da casa, amontoavam-se muitas crianças e uma
mulher descabelada, em lágrimas, que parecia estar em estado de choque. A
casa tinha sido saqueada. Móveis e objetos estavam quebrados e jogados no
chão. Quadros sem valor, mas bonitos, tinham sido rasgados. Antes, a casa
devia ter sido confortável. Agora, não passava de escombros.
—Vejam o que eles fizeram! Vejam! — disse o homem. — E agora, o
que vamos fazer? Além de vocês, ninguém ousa botar os pés na cidade,
ninguém quer arriscar a vida para nos ajudar...
—O que aconteceu? — perguntou Âmbar.
—Eles voltaram — soluçou o homem com os olhos arregalados de
pavor. — Desde a queda de Thaar, eles ressurgiram em toda parte.
—Eles quem? — perguntou Jade.
A mulher, que estava no fundo da peça, soltou um uivo lancinante.
— Não liguem para ela — disse o homem. — É uma louca que
andava pela cidade. Quando eles chegaram, abriguei-a aqui. Fiz isso em
memória de minha esposa, que foi assassinada por eles muitos anos atrás.
A mulher continuava a gritar histericamente.
— Beah Jardun, cale a boca! — ordenou o homem tapando os
ouvidos.
Acalmada pela suave sonoridade de seu nome, a mulher obedeceu
docilmente.
— Quer dizer que vocês não sabem quem eles são? —
espantou-se o homem, voltando à conversa. — Nós sempre os tememos. Já
houve períodos em que eles dominaram quase todo Conto de Fadas. Depois,
passaram-se séculos sem que se ouvisse falar neles. Mas agora eles voltaram
e estão mais poderosos do que nunca. São comandados por uma centena de
encantadores das Trevas. Sempre pretenderam dominar Conto de Fadas. E
por isso que se bandearam para o lado do Conselho dos Doze, que prometeu
a eles esse território em troca de seu apoio e submissão. Mas eles só se
dobraram às ordens do Conselho para melhor o trair depois da vitória.
—Quem são esses encantadores da Trevas? — interrompeu Jade.
—São criaturas maléficas de todos os tipos que passaram para o
lado do mal — respondeu o homem. — Há até homens entre eles. Todos têm
um ponto em comum: o desejo de destruição. Alguns chegam a conseguir
insuflar o ódio entre os inocentes. Eles possuem o Dom do Mal.
—Como Janelle — lembrou Âmbar, com amargura.
—Depois que Thaar caiu em suas mãos e nas do Conselho dos
Doze, eles voltaram a assombrar Conto de Fadas. Saqueiam aldeias,
subjugam os que são mais fracos do que eles... E a maior parte do nosso
exército, que poderia nos proteger, está concentrada em torno de Thaar.
Quanto aos encantadores da Luz, acho que não passam de uma lenda,
jamais existiram de fato. Muitos de nós estamos prontos para combater, mas
como o Eleito nunca chega, as pessoas desesperam-se e acabam ficando
resignadas.
—Quem é o Eleito? — perguntou Jade.
O homem a olhou mais espantado ainda. Depois, pareceu perceber
alguma coisa e recuou, pigarreando:
—Nem sei mais o que digo... Acho que estou divagando, como a
pobre alucinada da Beah. Não levem minhas palavras a sério.
—Não pense que acreditamos nisso. Mas, diga, eles têm um nome?
—Não exatamente... só o exército das Trevas.
—E quem são os encantadores da Luz?
—Caso existam mesmo, são as únicas pessoas capazes de se opor
aos encantadores da Trevas. Em breve, quando o exército da Luz se reunir...
—Que exército? — perguntou Jade. — E por que se reunirá?
Haverá uma guerra?
—Já falei demais — suspirou o homem. — De minha boca não
sairá mais nem uma palavra.
Âmbar tinha se aproximado das crianças e tentava
desajeitadamente reconfortá-las. Enquanto Jade empenhava-se em obter
informações sobre o Eleito com o homem, ela falava-lhes com sua voz suave
e doce. Um clarão de lucidez pareceu passar pelos olhos de Beah Jardun.
Ela ergueu ligeiramente o corpo, puxou Âmbar pelo braço, para aproximá-la
de si, e segredou nervosamente:
— Quando você nasceu, sua mãe ficou tão contente... Assustada, é
claro, mas muito feliz. Eu estava lá. Era uma simples criada, mas estava lá.
Tinha muita gente, até mesmo Jean Losserand, o andarilho, que depois de
muitas peripécias regressou para sua casa, estava lá de passagem. Ele
ajudou sua mãe a fugir e a deixar você em segurança Lá Fora. Depois,
quando tentou trazê-la de volta para Conto de Fadas, eles foram capturados.
Jean Losserand foi mandado para a prisão, mas sua mãe foi morta por
ordem do Conselho dos Doze. Também fui presa. Felizmente, tive mais sorte,
consegui voltar e reencontrar seu pai, que ainda esperava pelo regresso de
sua mãe. Mais tarde, ele também foi assassinado pelo exército das Trevas.
— Isso é verdade?
Foram as únicas palavras que Âmbar conseguiu pronunciar,
tantas eram as emoções que a invadiam.
— Claro que é verdade — indignou-se Beah. — Sua mãe e seu pai
amavam você. Eu, Jean e os outros também, e foi isso que a fez ser
diferente, Âmbar.
Depois, a mulher recaiu num estado de torpor que nada, nem
mesmo as veementes perguntas de Âmbar conseguiram mais penetrar.
Nesse meio tempo, o homem tinha retomado seu relato.
—Esta modesta aldeia é habitada exclusivamente por mágicos
profissionais e curandeiros, como eu. Utilizamos apenas uma forma
rudimentar de magia para dar a nossas poções e ungüentos a força
desejada. Somos corajosos, porém pacíficos. Mesmo assim, eles foram
impiedosos conosco. Roubaram nossa comida, nossas poucas jóias, e
incendiaram as casas. Consegui salvar apenas uma dezena de poções. Hoje,
eles retornaram, destruíram o que restava e selaram a aldeia.
—Selaram a aldeia? O que quer dizer isso? — perguntou Jade.
—É o que eles fazem por onde passam. Marcam as cidades com o
Selo das Trevas. Por um ano, ninguém poderá sair daqui. Estamos
condenados a morrer de fome. Pior, não podemos morrer. Padeceremos até
que a greve da Morte chegue ao fim.
—Isso é ignóbil! — disse Jade.
— Ninguém se aventura a entrar em uma aldeia selada pelo
exército das Trevas por medo de represálias, ou simplesmente porque não
querem ficar prisioneiros aqui dentro.
—Isso significa que estamos trancadas na aldeia — constatou
Opala, com toda a calma.
—Infelizmente... — o homem começou a soluçar. — Não pude fazer
nada para impedir. Quando vi, vocês já estavam aqui dentro.
—Temos alguns mantimentos. Eles nos permitirão sobreviver por
alguns dias — respondeu Opala, com otimismo. Encontraremos uma
solução.
— Caímos numa armadilha — disse Jade irritada. Âmbar, calada,
mal conseguia seguir a conversação. As palavras de Beah Jardun não lhe
saíam do pensamento.
—Mas por que o exército das Trevas atacou vocês? — quis saber
Jade.
—Eles poupam os vilarejos e as aldeias rurais. Acreditam que seria
perda de tempo atacá-los. É gente que jamais se oporia a eles, não
constituem ameaça. Mas aldeias como a nossa são atacadas sem piedade.
Sabem que estamos contra eles. Quando o Eleito chegar, nós nos
juntaremos a ele. Por isso, tentam nos intimidar.
—Você não disse que o Eleito não existia, que só estava divagando?
— ironizou Jade.
—Mas claro! Eu estou... doente — disse o homem tentando se
corrigir. — Falo coisas sem sentido, não consigo me controlar. Que Eleito?
Nem sei de onde tirei essa idéia.
—O homem tentava fingir um acesso de loucura.
—Então, como você se chama? — perguntou Jade, desistindo de
fazer o homem falar do Eleito.
—Amnhor.
—Bom, então agora temos que encontrar um jeito de libertar esta
aldeia — resumiu Jade.
—Não há jeito — garantiu Amnhor. — Pensam que já não
tentamos? Uma aldeia selada pelo exército das Trevas está condenada. O
feitiço deles é muito potente.
—Muito bem. Mas vamos tentar assim mesmo. Não podemos ficar
mais do que algumas horas aqui.
—As meninas trocaram um olhar que dizia tudo e pegaram suas
pedras. Amnhor, certo do fracasso, suspirou profundamente. Jade, Opala e
Âmbar concentraram-se, mentalizando a fina névoa negra que cercava a
aldeia: o Selo das Trevas. A comunicação estabeleceu-se entre as pedras e as
três transformaram-se em uma só. Um suave calor as envolveu.
— Que se rompa o Selo das Trevas. Que se rompa o Selo das
Trevas — repetiam mentalmente as meninas, com força cada vez mais
intensa.
Mas nada aconteceu. O poder do Selo era forte demais para que
pudessem vencê-lo. Confessaram-se vencidas e, muito decepcionadas,
guardaram as pedras.
— Eu avisei — disse o curandeiro.
Opala constatou que estava trêmula. Sentia-se febril. Percebeu
que, desde que tinha pego sua pedra antes da hora, a dor de cabeça jamais a
havia abandonado completamente. Às vezes, diminuía um pouco, e ela
acabava não lhe dando importância, mas agora, por causa de seu ferimento,
a febre tinha uma intensidade dolorosa.
Amnhor percebeu que Opala não se sentia bem. Perguntou o que
estava acontecendo e foi até um cômodo vizinho para buscar um frasco cheio
de um líquido transparente e um pote de ungüento.
— Essa é a poção mais simples que existe — explicou ele. — Mas
cura todas as febres e dores de cabeça.
Opala tomou um gole da poção fresca e revigorante e,
imediatamente, sentiu-se melhor.
— Fique com esse outro para seu ferimento. É um remédio raro e
muito eficaz — disse Amnhor, estendendo o pote de ungüento para a
menina.
Opala agradeceu e passou a pomada no ferimento.
—Vocês têm sorte por terem saído incólumes da luta contra o Selo.
A magia das trevas é muito poderosa.
—Eu nunca desisto — disse Jade com firmeza. — Preciso ir ver
Oonagh e é isso o que vou fazer.
—Antes disso, é melhor procurarem uma maneira de passar um
ano sem comida — respondeu tristemente o curandeiro.
—Procure você, se isso lhe agrada — retrucou Jade. — Quanto a
mim, vou procurar um modo de destruir o Selo.
—Eu também — apoiou Opala.
—Mas... espere! Amnhor, você disse que há muitos feiticeiros aqui
na aldeia, não é? — perguntou Jade, agitada.
—Ah, sim, mas eles utilizam a magia num nível muito superficial
— explicou o homem. — Nenhum deles conseguiria quebrar o sortilégio do
Selo.
— Reuna-os mesmo assim! — exclamou Jade com um ar
autoritário. — Sozinhos, eles não conseguem, mas todos juntos podemos
conseguir.
— É melhor tentar do que se deixar morrer de fome — acrescentou
Opala.
Amnhor partiu e voltou ao fim de uma hora.
— Estão todos reunidos na praça principal. Expliquei a
eles que vocês pretendem destruir o Selo. Não estão convencidos, mas
vieram assim mesmo. Sigam-me.
Na grande praça cheia de homens e outras criaturas reinava um
silêncio aterrador. Uma tensão misturada com a infelicidade e o desânimo
emanavam da multidão. Jade tomou a palavra e falou com a voz bem forte:
— Bem, sei o que vocês sofreram, mas não se pode abandonar a
luta. Podemos tentar destruir o afamado Selo, e vamos conseguir. Sozinho,
ninguém pode nada. Todos juntos, podemos vencer.
As pessoas continuaram em silêncio. Seus rostos mostravam uma
expressão desconfiada.
—Não praticamos sortilégios coletivos — interveio Amnhor. — É
contra os nossos costumes. Ninguém jamais se arriscou a fazer isso.
—Um costume é mais importante do que nossas vidas? — indagou
Jade.
A assembléia nem piscava.
— Tentar destruir o Selo é perigoso e arriscado — continuou
Amnhor.
Jade teve que se esforçar para conter a raiva.
— Eles não me escutam — resmungou em voz baixa.
— Deixe que eu falo como eles — murmurou Âmbar. Deu um passo
à frente, encabulada. Queria mostrar às pessoas que desejava ajudá-las,
compreendê-las, mas não sabia como começar. A multidão a olhava com
severidade. Sua cabeleira ruiva e seu olhar caloroso não lhes inspiravam
nenhuma simpatia. Não queriam mais ouvir falar no Selo, tinham medo dele
e não queriam se opor à sua força.
Âmbar esboçou um sorriso, mas sentiu que seu coração não
acompanhava seu rosto.
— Gostaria de ajudá-los — começou titubeante. Inspirou
profundamente, e prosseguiu com a voz mais firme:
— Temos um inimigo comum. Quer ele se chame exército das
Trevas, quer se chame Conselho dos Doze, tenta nos privar da mesma coisa:
liberdade. Não podemos aceitar ser dominados por eles. Sempre existiram
pessoas que ousaram enfrentá-los e combatê-los. Graças a essas pessoas, a
paz pôde durar alguns anos. Agora, é preciso resistir novamente. Eles
mataram suas famílias, mataram a mãe que jamais cheguei a conhecer. É
em nome dessa injustiça, em nome de todos os que sofreram, que peço a
vocês que tentem quebrar o Selo.
Âmbar tinha se inflamado. Quando falou na mãe, uma lágrima
escorreu por seu rosto. A multidão a olhava, tocada por suas palavras e por
sua expressão sincera e apaixonada. Uma voz elevou-se do meio da
multidão:
— Eles vieram uma semana atrás, mataram e saquearam
a aldeia... Depois, voltaram novamente e, há apenas algumas horas,
incendiaram o que restava de nossas casas e selaram a aldeia. Se, por
milagre, conseguirmos romper o Selo, é possível que voltem mais uma vez e,
então, sua cólera será terrível.
Um murmúrio percorreu a praça.
— Mas recusar a luta é o mesmo que recusar a vida! —
disse Âmbar, com entusiasmo.
A assembléia meditou longamente sobre suas palavras. Depois, foi
atravessada por murmúrios.
— Eles as seguirão — afirmou Amnhor.
Agora, a multidão esperava pelas ordens. Jade cochichou para
Âmbar.
—Eu não sabia que sua mãe tinha sido assassinada pelo Conselho
dos Doze. Achei que tinha morrido de doença...
Minha mãe verdadeira, aquela que me colocou no mundo, foi
assassinada pelo Conselho dos Doze. Foi Beah Jardun quem me contou.
—E meu pai? E minha mãe? — perguntou Jade. — Também tenho
o direito de saber o que aconteceu. Será que ela sabe alguma coisa sobre
eles?
— Infelizmente, acho que não — sussurrou Âmbar. Em seguida,
voltou-se para a multidão:
— Confesso que não sei como venceremos o Selo — disse ela. —
Vamos experimentar algo que vocês conheçam bem. Se todos unirem suas
forças, alguma coisa acontecerá.
A multidão concordou. As meninas pegaram suas pedras, e
dirigiram seus pensamentos para o Selo. Os magos, de comum acordo,
começaram a recitar um encantamento incompreensível.
— O Alipium — disse gravemente Amnhor. — O sortilégio mais
poderoso, o mais difícil de realizar... E também o mais perigoso.
No entanto, mesmo unida à força das meninas, a potência dos
magos não era suficiente para lutar contra o Selo. Nada aconteceu.
— O que aconteceria se, simplesmente, tentássemos atravessar o
Selo? — perguntou Âmbar.
Um murmúrio de pavor percorreu a multidão. Todos baixaram os
olhos. Amnhor disse, num sopro de voz:
—Nós morreríamos!
—Mas a Morte está em greve! — lembrou Jade.
—Isso não muda nada. O que aconteceria é pior do que a morte.
—Tenho certeza de que é possível romper o Selo — afirmou Âmbar.
— E vocês, todos vocês, não acreditam no impossível? Confiem em vocês,
confiem em mim. Prometo que podemos conseguir.
Âmbar calou-se. As pessoas a olhavam fixamente. Ela prosseguiu:
— Tive uma idéia.
A menina aproximou-se de Amnhor e cochichou alguma coisa em
seu ouvido.
—Isso não vai funcionar — disse ele. — Vai ser uma desgraça!
—Se não fizermos nada, vai ser uma desgraça de qualquer jeito.
Resignado, Amnhor curvou-se a seus argumentos. Assim como a
multidão, ele sabia que a menina tinha razão. Era preciso tentar qualquer
coisa. Mas ele também sabia bem qual era a sorte reservada para os que
tentavam se opor ao Selo.
—Você sabe bem o que está fazendo? — perguntou Jade a Âmbar.
—Não.
—Era o que eu imaginava. Bom, vamos lá, não é hora de começar a
questionar nada.
Ao fim de alguns longos minutos, as instruções que Âmbar tinha
dado a Amnhor estavam cumpridas. Todos os moradores da aldeia formavam
uma espécie de roda que incluía as três meninas. Todos deram as mãos, e
elas seguravam as pedras bem firmes em suas palmas.
— O que vamos fazer agora? — perguntou Jade.
—Nada. Nada de encantamentos, nada de magia. Vamos ficar bem
juntos e atravessar o Selo. E como o campo magnético de Conto de Fadas. Se
temos certeza de que vamos passar, passaremos. Se acreditarmos no
impossível...
—Você tem certeza de que isso também se aplica ao Selo?
—Já vamos ver!
Logo, a cadeia humana avançou até o limite do Selo. Dava para
sentir o cheiro acre que se desprendia dele. Faltavam apenas dois passos
para saírem da cidade, mas entre eles e a liberdade, havia o Selo.
— E preciso acreditar — repetiu Âmbar.
Sua certeza propagou-se. Todos os corações encheram-se de uma
louca esperança e o calor das pedras os envolveu. Eram milhares, mas eram
como uma só pessoa determinada a romper o Selo. Primeiro, todos tiveram
que destruir seus medos, depois, todos, ao mesmo tempo, deram um passo
adiante. Uma nuvem de neblina escura os envolveu e paralisou. Em nenhum
instante duvidaram da vitória. Uma luta invisível começou a ser travada. O
Selo era um sortilégio dotado de terrível poder mágico. Normalmente,
qualquer um que tentasse atravessá-lo morreria fulminado. Mas a Morte
estava em greve. Então, o exército das Trevas tinha criado uma coisa ainda
pior.
Nesse instante, Âmbar julgou compreender o Selo. Teve a
impressão de que ele falava com ela, que confiava sua natureza a ela, mas
nunca pôde saber se era isso mesmo.
— Janelle nos transmitiu seu ódio — pensava Âmbar.
— O Selo nos transmite o mal, os sentimentos daquele que o criou. E algo
que traz em si alguma coisa de terrível, de destruidor: o Dom do Mal. O Selo
não passa do reflexo da alma de seu criador...
Sua respiração estava cada vez mais ofegante, e Âmbar sentia que
o ar se tornava diferente, como se estivesse impregnado por um elemento
cruel que invadia a todos. Então, ela viu claramente.
— O Selo insufla o mal naqueles que tentam destruí-lo — disse
para si mesma. — Alguns sofrem até morrer. Mas a Morte está em greve.
Então, em vez de sucumbir, absorvemos a energia nefasta que emana dele.
Ele nos domina até nos transformar, até fazer de nós pessoas habitadas pelo
mal, pessoas a serviço do exército das Trevas. É esse o motivo pelo qual o
sortilégio é tão poderoso!
E, de fato, o mal começava a se infiltrar em cada um. O ódio, o
medo, a inveja, o desejo de poder e, sobretudo, a dolorosa paralisia da
loucura. Mas o combate prosseguia. Como se fossem uma só, as milhares de
pessoas presentes confrontavam suas esperanças, suas convicções, todo o
bem que existia nelas, com o mal que tentava se infiltrar em suas almas.
Jade, Opala e Âmbar começaram a se sentir muito cansadas. O
cheiro pesado e enervante da bruma que as envolvia lhes dava vontade de
abandonar a luta. Suas mãos relaxavam em torno das pedras, suas
pálpebras se fechavam... Mas elas não desistiram, não podiam desistir. O
bem e o mal lutavam bravamente em seus corações, assim como o Selo
lutava contra os habitantes da aldeia. Eram forças iguais. Mas todos
sufocavam, exauridos, e o ataque contra o Selo ameaçava fracassar. A dor
era muito intensa. No entanto, uma centelha de esperança sobrevivia em
cada coração: venceremos o Selo. Não podiam se resignar.
Então, todos concentraram suas últimas forças. O Selo resistiria,
sabiam, mas era preciso tentar. Num mesmo movimento, deram um passo
adiante.
O Selo não resistiu, dissipou-se, rompeu-se num repente. Tinham
acreditado que podiam vencê-lo. E venceram.
Jade, Opala e Âmbar caíram desmaiadas, totalmente esgotadas.
— Olhe, ela está acordando! Até que enfim!
Âmbar abriu os olhos e viu os rostos de Amnhor e Jade sobre o
seu. Tudo rodava. Levou longos minutos para voltar a si. Levantou-se e
perguntou:
—O Selo... ele se rompeu? Conseguimos?
—Acalme-se — disse Amnhor.
Ele colocou um pequeno frasco sob seu nariz. Ela o pegou, tomou
um gole de um líquido nojento e sentiu-se mais calma.
—Você esteve desacordada quase um dia inteiro — explicou Jade.
—Um dia inteiro? E a aldeia, ainda está selada? Âmbar não tinha
nenhuma lembrança a partir do momento em que atravessara o Selo.
—Claro que não — assegurou Jade. — Nós vencemos. Como você
disse, era preciso que acreditássemos e lutássemos todos juntos.
—-E você? E Opala? Vocês não desmaiaram quando atravessaram
o Selo?
—Desmaiamos, sim, mas graças aos cuidados de Amnhor,
despertamos em poucas horas.
— Quando o Selo se rompeu, muitas pessoas caíram desacordadas,
esgotadas, e ainda não voltaram a si — explicou Amnhor. — Mas estamos
cuidando delas, estão fora de perigo. Graças a você, tudo voltará ao normal.
Opala entrou no quarto e sorriu ao ver Âmbar acordada.
—Acho que podemos partir à tarde — decidiu Jade.
—Em agradecimento pela libertação da cidade carregamos seus
cavalos com alguns mantimentos — disse Amnhor.
Depois de uma longa conversa, as meninas e o curandeiro fizeram
uma deliciosa refeição.
—O que aconteceu com Beah Jardun e as crianças? — perguntou
Âmbar.
—Ninguém sabe ao certo — respondeu Amnhor. — As crianças
eram órfãs e foram acolhidas por famílias da aldeia. Beah Jardun deve ter
partido, logo depois da ruptura do Selo. Na confusão geral, ninguém prestou
atenção. Não sei de mais nada.
A refeição terminou e as meninas acharam que estava na hora de
partir. Amnhor foi buscar seus cavalos e lhes fez a surpresa de trazer
também um magnífico garanhão, presente dos magos da vila.
— Há também roupas costuradas pelas mulheres da aldeia, em
agradecimento a vocês — disse Amnhor.
Cada uma recebeu um elegante vestido de seda. Em seguida, o
curandeiro lhes estendeu um minúsculo frasco de vidro azulado com o
restinho de um líquido espesso.
— Essa poção é presente dos curandeiros. Foi a única
que permaneceu intacta depois da devastação da aldeia. Sua preparação
leva meses de trabalho. Infelizmente, este frasco contém apenas duas doses.
—Obrigada — disse Jade, segurando o frasco. — Para que serve?
—Vocês disseram que iriam ver Oonagh. Essa criatura mágica
habita uma montanha cercada de perigos. Em torno da montanha, há
gigantescas aves de rapina. A presença delas é suficiente para inspirar
terror. Se vocês não sentirem medo, elas não as perturbarão. Mas como
conseguem angustiar e apavorar qualquer pessoa, é muito provável que
vocês se assustem também. No entanto, para sobreviverem, será preciso que
se mantenham impassíveis. É esse o papel da poção. O efeito de uma dose
dura apenas poucos minutos. Infelizmente, uma de vocês terá que ficar sem
a poção.
—E como essa poção conseguirá nos ajudar? — quis saber Jade.
—Ela transformará você em um ser que não é nem humano e nem
mágico — respondeu Amnhor. — Felizmente, sua ação é limitada a menos de
cinco minutos. Nesse lapso de tempo, ela apagará todos os seus
sentimentos, desde o medo até mesmo a sensação de estar viva.
Jade deu de ombros, negligentemente. Opala permaneceu
imperturbável. Só Âmbar arrepiou-se e perguntou:
—Esses seres de rapina são perigosos mesmo?
—Eles se alimentam do medo. Adoram ver as pessoas apavoradas,
deliciam-se com isso. De tão assustadas, as pessoas nem tentam fugir.
Então, eles atiram-se sobre as pessoas, carregam-nas para seu covil e fazem
uma deliciosa refeição.
—Obrigada pela poção — disse Jade, reprimindo um calafrio.
— Cuidem-se bem e não confiem em ninguém.
As meninas despediram-se. O curandeiro disse-lhes adeus com a
voz embargada de emoção.
— Vocês sempre poderão contar conosco.
Jade, Opala e Âmbar sorriram, agradeceram a hospitalidade e
partiram.
De comum acordo, tentaram recuperar o tempo perdido e fizeram
apenas breves pausas para descanso. Não cruzaram com quase ninguém no
caminho. Mais uma vez, atravessaram campos tranqüilos e ensolarados.
Passaram por pequenas aldeias e vilas sem perceber sinal do exército das
Trevas. Âmbar ficou intrigada.
—Nem parece que acabamos de deixar um lugar devastado. Tudo
está tão tranqüilo... Afinal, Conto de Fadas não está era guerra?
—Não — respondeu Jade. — Enquanto você estava desacordada,
Amnhor nos contou que nesse momento o exército das Trevas está deixando
um pouco de lado os campos e pequenas aldeias e concentrando seus
ataques nas cidades inimigas. Essas vêm sendo sistematicamente
destruídas. Mas eles estão evitando atacar os lugares onde vivem cavaleiros
ou criaturas que utilizam a magia num nível muito elevado. Aqui, eles são
chamados de hovalyns.
—Mas o que o exército das Trevas pretende? — perguntou Âmbar.
—Dominar Conto de Fadas, evidentemente. Mas ainda não
passaram ao ataque pesado. Estão avançando aos poucos.
—Amnhor acha que eles estão esperando alguma coisa — interveio
Opala. — Mas ele não quis nos dizer o que é.
As meninas cavalgaram o dia inteiro. Falaram pouco e fizeram
apenas refeições frugais. Quando a noite chegou, pararam numa campina.
— Ainda bem que, ontem, dormimos na aldeia. Desse jeito, vou
acabar parecendo uma camponesa suja e desmazelada — comentou Jade.
Âmbar não gostou da comparação. Mordeu o lábio inferior para
disfarçar a irritação e percebeu que o machucado tinha desaparecido, sem
dúvida graças aos cuidados de Amnhor.
A noite estava agradável e destravou a língua das meninas, que se
puseram a conversar animadamente. Âmbar contou mais uma vez o que
Beah Jardun tinha lhe dito. Jade e Opala escutaram atentamente e
começaram a sonhar com seus próprios pais. Quem seriam eles? Ainda
estariam vivos? Por que as teriam abandonado?
Jade queria tanto saber quem eles eram... Mas por outro lado,
pensar em seus pais provocava-lhe uma raiva amarga. Por que teriam se
separado dela quando ainda era um bebê, sem deixar nem ao menos uma
lembrança, um sinal de afeto? Sabia que eles a tinham entregue ao duque de
Divulyon para protegê-la de um "perigo", mas não conseguia evitar de pensar
que, na verdade, não a queriam, não a amavam. No fundo, não queria amá-
los nem odiá-los. Era mais simples acreditar que eles não a tinham amado.
Seu pai verdadeiro tinha sido o duque de Divulyon.
Opala nunca tinha se interessado por seus pais. Uma vez, quando
era pequena, perguntou alguma coisa a Eugênia e Gina e elas lhe
responderam com evasivas. Então, não se preocupou mais. Não sabia o que
significava ter pai e mãe. Agora, pela primeira vez, começava a pensar no
assunto. Muitas perguntas vinham à sua mente, mas ela não conseguia
imaginar as respostas.
Quando chegou a hora de se deitarem, Jade não conseguiu pegar
no sono. Não se sentia à vontade naquela campina, perdida num mundo que
ela não conhecia. Sentia falta de sua vida fácil, de seu palácio luxuoso, da
admiração que provocava... Também sentia falta do duque de Divulyon.
Mesmo não sendo seu pai, o duque a amara mais do que qualquer outra
pessoa, cuidara dela. Será que estaria pensando nela? Estaria preocupado
com seu destino?
— Eu estou bem papai. Um dia, vou voltar e dizer como o amo.
Sentiu-se mais tranqüila, como se o duque pudesse ouvir suas
palavras afetuosas. Depois de tudo o que tinha acontecido, quem sabe?
Por outro lado, Jade gostava da aventura. Descobria coisas que
jamais suspeitara que existissem, aprendia a usar poderes que nem sonhava
possuir. Gostava também da sensação de perigo, de encontrar-se diante do
imprevisto.
Tomada por uma fome repentina, Jade levantou-se, sacudiu o
vestido sujo de terra e foi até a cesta de mantimentos. Subitamente, sem
saber o motivo, sentiu-se indisposta, sua vista escureceu e suas pernas
cederam. Estremeceu, mas conseguiu recuperar os sentidos.
Tinha certeza: ao longe, desenhava-se a silhueta imprecisa de um
cavaleiro. Sem hesitar, Jade correu em seu encalço, maldizendo-se por não
ter pego um cavalo. Viu o vulto desaparecer na escuridão e soube que não
conseguiria alcançá-lo.
Na manhã seguinte, contou às meninas sua aventura noturna.
—Você sentiu que iria desmaiar perto dele? — perguntou Âmbar,
pensativa.
—Sim, por um momento, meu estômago ficou embrulhado e não vi
mais nada à minha volta. Senti que ia desfalecer.
—Então, deve ser um inimigo — concluiu Âmbar com amargura.
—Mais um — ironizou Jade.
Depois de comer algumas frutas e pães, as meninas retomaram o
caminho. Forçavam os cavalos a correr. Pouco a pouco, cada uma
mergulhou em seus pensamentos.
Âmbar repassava as palavras de Beah Jardun, como se algum
detalhe tivesse ficado esquecido. Lembrava-se do rosto bom e carinhoso de
Jean Losserand. Por que ele não tinha dito nada? Queria tanto que alguém
lhe falasse de sua mãe... Sentia a indignação contra o Conselho dos Doze
crescer dentro de si. Seus pensamentos tornaram-se sombrios e seu rosto se
contraiu. Por que não podia viver normalmente, numa família normal, num
lugar normal, com problemas normais?
Jade e Opala tentaram distraí-la. Não era difícil adivinhar o que a
preocupava. Mas suas tentativas não deram resultado.
Por volta do meio-dia, as meninas fizeram uma parada à sombra de
uma árvore frondosa. Nenhuma delas se sentia muito bem ali. Comeram
pouco, preocupadas em poupar os mantimentos. Na hora de retomar a
estrada, Opala apontou para um bosque distante e disse calmamente:
— Olhem. Parece um cavaleiro...
De fato, uma silhueta vestida de preto desenhava-se, imprecisa.
Sem hesitar, as meninas montaram seus cavalos e partiram em disparada.
Mas o cavaleiro já havia desaparecido.
Jade, Opala e Âmbar retomaram caminho. O inimigo desconhecido
ocupava seus pensamentos. Embora nenhuma ousasse confessar, ele lhes
inspirava um medo terrível, irracional.
O Décimo Terceiro membro sorriu na escuridão. A crueldade
marcava seus traços, um poder terrível, maléfico, impregnava seu rosto. Seu
plano estava funcionando às mil maravilhas. Dessa vez, ele controlara tudo.
Era bem verdade que Opala não tinha morrido. As três pedras da Profecia
tinham se refugiado em Conto de Fadas, onde não podiam ser alcançadas
por telepatia. Mas nada disso o aborrecia mais. Tinha encontrado uma
solução muito melhor.
Uma risada de escárnio atravessou o silêncio da sala.
Fez um gesto com a mão e uma placa dourada, flutuando no ar,
emitiu um zumbido antes de fazer surgir a imagem de um homem de rosto
duro, marcado por cicatrizes. Os olhos azuis e a cabeleira negra davam a seu
rosto um ar decidido. Vestia-se com um luxuoso uniforme negro.
—Ah, é você, Décimo Terceiro membro? — disse com a voz
cortante. Enviei um de meus homens. Não se preocupe, tudo está indo muito
bem.
—Confio em você, encantador. Mas um de seus homens... será
prudente?
—Não é apenas um homem. É um soldado das Trevas. Não falhará.
—Muito bem.
—Ele as está vigiando. Até agora, tudo se passa como o previsto.
—Não esqueça: o momento decisivo se aproxima.
—Não esquecerei, Décimo Terceiro membro. Esteja atento para
quando o momento chegar. Nossa vitória depende do senhor.
—Não é você quem tem que me lembrar disso.
O Décimo Terceiro membro fez um gesto e interrompeu a
comunicação. As novidades eram boas. Mas não gostava desse cavaleiro das
Trevas. Era o único que ousava lhe falar de igual para igual. No momento,
não podia fazer nada contra isso. Precisava dele para destruir as pedras e
para assegurar a vitória do Conselho dos Doze...
Dessa vez, iria funcionar. Seu plano não fracassaria.
Paris, 2002 Acabava de dizer para mim mesma que eu podia viver, que tinha
esse direito. Sabia que era impossível ordenar à Morte que recuasse, que me
deixasse em paz, mas gostava de acreditar que podia. Minha realidade
misturava-se com o sonho. Ingenuamente, achava que se suplicasse à Morte
que me deixasse ficar, ela, como qualquer criatura dotada de sentimentos,
me escutaria e seguiria seu caminho. Além disso, ela não poderia estar em
greve? Não poderia se comover com meu desespero? Eu deixava as lágrimas
escorrerem. Quando não estava dormindo, estava chorando — de raiva, de
desespero, de tristeza, de medo... Tentava acreditar que um dia eu não
acordaria mais, que mergulharia no sonho e viveria ali feliz para sempre. Se
quisesse verdadeiramente, se acreditasse intensamente, não era possível que
esse desejo insensato se realizasse e me deixasse entrar num conto de
fadas?
A cada noite, eu voltava para o universo mágico de meu sonho. Eu
vivia à minha maneira. As imagens e sentimentos me pertenciam tanto
quanto as personagens daquele mundo irreal.
Passava os dias à espera de que a noite trouxesse a continuação do
sonho da noite anterior. Uma voz mesquinha e desagradável insinuava que
eu criava uma ilusão. Eu sabia disso, mas não ligava. O sonho não era
mesmo real.
No entanto, eu esperava. Novamente. Como nunca tinha me
permitido fazer antes. Lembranças surgiam do fundo de minha memória.
Tinha tido tanto trabalho para relegá-las ao esquecimento. Agora, estavam
de volta, arrogantes, mas também esplêndidas e perigosas como sempre.
As imagens vieram à tona. Tentei afastá-las, devolvê-las ao nada
no qual achava que estavam guardadas. Mas estavam ali, vivas, coloridas,
rodopiando à minha volta. Compreendi que a única maneira de me livrar
delas era aceitá-las. Lembro-me de ter começado a chorar. Depois, olhei para
elas, para os fantasmas do passado.
Os primeiros eram meus pais. As lágrimas inundaram meus olhos
avermelhados. Eles estavam mortos e eu não podia fazer nada. No entanto,
sua imagem continuava a se impor, sorridente, carinhosa, encantadora.
Parecia real e eu chorava ainda mais. Ali, meus pais riam, brincavam
comigo, me faziam carinho. Eu era novamente Joa.
Lembro-me de ter gritado para afastar as imagens. Elas foram
embora, perturbadas, assustadas, mas eu sabia que voltariam, que
continuariam a me atormentar...
23 Os Ghibduls levaram o Eleito e Elforhys para visitar a cidade, que
era modesta e curiosa. As construções eram feitas de madeira e não muito
sólidas. Algumas estavam desabando.
— Não somos um povo de artesãos — explicou humildemente um
Ghibdul. Somos bons na luta e na telepatia, mas não em outras coisas.
Nossa civilização é bastante rudimentar.
Ainda assim, o Eleito e Elforhys estavam impressionados. Os
Ghibduls revelaram-se muito hospitaleiros e, por trás de sua feiúra e
maneiras ameaçadoras, conseguiam ser bastante agradáveis. O hovalyn foi
tratado com um respeito que nunca tinha encontrado antes. Na rua, todos o
saudavam com deferência e admiração.
Já estava ali havia uma semana, a pedido das criaturas mágicas,
que lhe rogaram insistentemente para prolongar sua permanência.
Ele e Elforhys foram alojados em uma das mais bonitas cabanas,
enfeitada com entalhes de madeira. Dormiam em camas forradas de musgo e
cobriam-se com lençóis tecidos de folhas.
A comida era deliciosa. Cada refeição era um banquete organizado
em torno do Eleito. Serviam-lhe carne fresca, legumes e frutas que ele não
conhecia. Para agradá-lo, os Ghibduls traziam a melhor caça da floresta. As
mulheres cozinhavam favas e traziam as frutas e legumes mais saborosos de
seus quintais.
O Inomeado estava mudado. Seus traços estavam mais definidos e
seu olhar tinha perdido um pouco da melancolia. Ainda que continuasse
ignorando seu nome e sua origem, agora sabia que era o Eleito. Tinha uma
identidade. Sabia que era esperado por milhares de pessoas. Tinha um lugar
no mundo. No entanto, ainda desejava recuperar a memória para se tornar
uma pessoa inteira.
Ao fim do dia, um pensador Ghibdul veio encontrá-lo.
—Hovalyn, não podemos mais retê-lo. Você deve realizar grandes
coisas. Mas, para encontrar a si mesmo, você deve ir ver Oonagh.
—Eu sei — respondeu o cavaleiro.
—Perto da gruta dos cristais, onde mora Oonagh, existem
perigosos rapinantes do medo. Leve isso para se proteger.
—O Ghibdul estendeu-lhe dois cipós verdes, na ponta dos quais
estava pendurada uma pequena bola preta.
—São dois amuletos, um para você e outro para seu amigo.
Quando os rapinantes se aproximarem, basta pendurá-los no pescoço. Esse
pingente enfeitiçado os protegerá do medo durante uma hora. Depois
desaparecerá.
—Obrigado — disse o hovalyn pegando o amuleto.
—Você ainda não sabe qual será seu verdadeiro papel — continuou
o Ghibdul num suspiro. — Mas não esqueça. Basta que você diga que é o
Eleito para despertar tanto o ódio quanto a felicidade.
O Inomeado balançou a cabeça.
— Alguns de nossos guerreiros vão acompanhá-lo até a
floresta — continuou o Ghibdul. — E também lhes daremos dois cavalos
selvagens. Infelizmente, não são mágicos, mas são muito vigorosos.
O Eleito exprimiu toda a sua gratidão e, naquele mesmo dia, partiu
acompanhado de Elforhys. As mulheres lhes deram mantimentos para a
viagem e eles embrenharam-se na floresta, escoltados por guerreiros
Ghibduls que voavam à sua volta.
Os viajantes precisavam parar freqüentemente para que os
Ghibduls descansassem. Quanto mais entravam dentro da floresta, mais
precisavam prestar atenção ao caminho. Galhos secos arranhavam seus
rostos. Os Ghibduls tentavam tornar a viagem mais agradável, mas eles não
podiam mudar a floresta.
—A casa de Oonagh ainda está muito longe — disse um dos
Ghibduls. — Depois de sair da floresta, ainda terá que viajar duas semanas.
—Conheço mais ou menos o caminho — disse o Inomeado.
—Não é muito perigoso. É a parte mais inofensiva de Conto de
Fadas, a menos afetada pela magia.
—Mesmo assim, é preciso estar atento — disse outro Ghibdul. — O
exército das Trevas está de volta. Não se pode ignorar seu poder e sua
crueldade.
Quando o sol já se punha, chegaram ao limiar da floresta.
— Nossos caminhos se separam aqui — disse um Ghibdul. — Não
se esqueça, Eleito: esperaremos pelo seu retorno.
Um dos guerreiros tirou de sua sacola o estojo, enfeitado de
pérolas, que o hovalyn tinha esquecido de pedir de volta.
— Isso é seu.
O Eleito olhou para o estojo com uma curiosidade renovada. Ainda
não sabia exatamente para que servia aquilo.
—Adeus — disse ele aos Ghibduls. — Obrigado por tudo.
—Até breve.
Elforhys e o Inomeado atravessaram o limite da floresta. Cansados
da viagem, deitaram-se sobre a relva fresca e adormeceram.
Assim que acordaram, comeram, desamarraram os cavalos e
partiram a galope.
—E então, Inomeado, agora que você já sabe que é o Eleito, no que
está pensando?
—Sei que tenho um dever a cumprir, mas ainda não sei qual é.
Sinto-me diferente. Agora, minha vida passa a ter sentido.
Elforhys sorriu, com um ar cúmplice.
A campina ainda estava adormecida. Muito longe, podia perceber
os cumes nevados onde morava Oonagh.
O Eleito e Elforhys conversaram bastante. Lembraram-se da
espantosa estada com os Ghibduls e conversaram sobre o futuro incerto que
os aguardava.
Logo, estavam amigos. Mas, repentinamente, o Inomeado
interrogou Elforhys, com uma expressão inquieta:
— Agora me diga: o que você está procurando? Por que está me
ajudando?
— Acho que agora já posso contar — respondeu Elforhys. — Muita
gente já está desesperada em busca do Eleito. Você é importante. Você é
esperado. Então, decidi encontrar você e ajudá-lo a descobrir quem é. E
consegui!
—Mas... — balbuciou o Eleito, perturbado. — O que esperam de
mim, exatamente?
—Isso, só Oonagh poderá revelar. Está escrito na Profecia que você
não pode saber de nada antes da hora. Neophileus, o autor do livro, era um
Clorhyun como eu, e acredito nas palavras dele.
—Mas já faz séculos que ele morreu, não se pode seguir suas
palavras ao pé da letra! — protestou o Inomeado.
Elforhys sorriu, mas manteve a boca fechada. Ao fim de algumas
horas, uma aldeia modesta surgiu no horizonte. Um véu de neblina negra a
envolvia.
—Uma aldeia selada pelo exército das Trevas — murmurou
Elforhys.
—Precisamos ir até lá e salvar as pessoas!
—Não — disse Elforhys calmamente. — Não podemos fazer nada
por elas. É tarde demais. Não se pode quebrar um Selo. Conheço esse lugar,
é uma aldeia de mercadores. São gente corajosa, simples e honesta. O
exército das Trevas só ataca aqueles que são frágeis demais para se
defender.
Elforhys deteve o Inomeado, que queria a todo custo correr em
direção à aldeia. Mas logo o rapaz compreendeu que não poderia fazer nada
por seus habitantes. Sentiu-se inútil, culpado. Elforhys tentou reconfortá-lo,
mas foi em vão.
Cavalgaram por mais uma hora quando perceberam, ao longe, os
contornos de um castelo, de onde se elevava uma nuvem de fumaça. Dessa
vez, de comum acordo, eles meteram as esporas nos cavalos e correram em
socorro dos moradores.
Chegando lá, constataram, tarde demais, que a fumaça negra não
era causada por um incêndio. Tratava-se de um Selo das Trevas em
formação.
Diante deles, perfilavam-se centenas de cavaleiros vestidos de
preto, montados sobre cavalos igualmente negros. Eles rodeavam o castelo e
pareciam unidos pela mesma força, pelo mesmo pensamento. Seus lábios
mal se moviam enquanto recitavam o encantamento do Selo.
O Eleito tinha, diante de si, uma parte do exército das Trevas. Nem
pestanejou. Elforhys deu um grito apavorado quando ele desembainhou sua
espada. O Inomeado pegou apressadamente o estojo em sua sacola, lançou-
se contra um dos soldados das Trevas e decepou sua cabeça, que rolou no
chão e ficou olhando para ele com ar de reprovação.
Alguns soldados desviaram sua atenção do Selo, que,
imperceptivelmente, começou a se dissipar.
—Como ousa atacar um dos nossos? — rugiu uma criatura de
rosto disforme.
—Como ousa destruir a vida de pessoas inocentes? — respondeu o
Eleito.
—Quem é você?
—Sou o Eleito.
Logo, uma dezena de soldados atirou-se sobre ele. Elforhys
também atirou-se à batalha. Mas o estojo dava ao Eleito uma força
impressionante. Sempre tinha sido bom lutador, mas agora manejava sua
espada com rara habilidade. Seus gestos eram precisos e sua espada
penetrava a carne dos inimigos com eficácia e rapidez. Além disso, os golpes
mal o atingiam e não deixavam em seu corpo mais do que cortes
superficiais.
Ainda assim, os soldados das Trevas eram fortes, bem treinados e
numericamente superiores. Acabariam levando vantagem, mas um homem
de estatura imponente ordenou que interrompessem o combate. Os soldados
guardaram as espadas e fizeram um círculo em torno do Eleito e de Elforhys.
O recém-chegado, de autoridade incontestável, era humano.
Montava um garanhão negro enfeitiçado, cujas narinas soltavam chamas.
Vestia um luxuoso uniforme cor de azeviche e a bainha de sua espada era
incrustada de safiras.
Ele tinha um ar implacável, impressionante, e seu rosto, de traços
duros, era marcado por numerosas cicatrizes. Os olhos eram dois pedaços
de aço azulado, impiedosos, e brilhavam sob as espessas sobrancelhas.
Tinha o queixo forte, voluntarioso, nariz reto e lábios finos. Seus cabelos
eram negros.
— Venha até aqui — ordenou ao Eleito, com uma voz grave.
O Eleito não se moveu. O homem não pareceu impressionado com
aquilo.
— Você luta melhor do que os mais fracos de nós, o que já é uma
proeza.
O Eleito não respondeu.
— Sou um encantador das Trevas, comando esse regimento de
incapazes.
Elforhys lançou um olhar inquieto para o Inomeado, que
mantinha-se calado.
— Sem nenhuma dúvida, você é um hovalyn. Onde aprendeu a
lutar?
O Eleito continuou em silêncio. Montado sobre seu cavalo, tinha os
olhos fixos no olhar duro de seu inimigo.
—Por que está contra nosso exército? Ninguém se arrisca assim.
Você é um bocado corajoso.
—Ele disse que é o Eleito — interveio um soldado.
—O Eleito? — repetiu o homem com um ar glacial.
—Eu mesmo — afirmou tranqüilamente o hovalyn.
—Ora, você é tão eleito quanto eu!
Com um gesto, o homem levantou o Eleito a poucos metros do
solo. O jovem hovalyn não demonstrou medo.
— Você conhece o signo do exército das Trevas? — perguntou o
encantador.
Sem esperar pela resposta, ele desnudou seu tornozelo esquerdo. A
marca de uma lua negra, encimada por alguns números, estendia-se sobre
sua pele. Com um novo gesto seu, o Eleito avançou no ar até que seu
tornozelo esquerdo estivesse à altura do homem. Com um estalar de dedos,
levantou a ponta da calça do Inomeado. Não havia nenhum sinal ali.
— Oh! — exclamou o encantador, sarcástico. — Então, temos aqui
um desertor...
Com a ponta de sua espada, roçou a pele do tornozelo do rapaz.
Para surpresa geral, um filete de sangue negro escorreu e formou a lua
acompanhada por alguns números em código.
— Eu tinha razão. Um desertor — constatou o encantador das
Trevas.
Difícil saber quem estava mais aterrado, se Elforhys ou o
Inomeado.
— De acordo com esse código, faz dois anos que você
abandonou o exército.
O Inomeado não conseguia acreditar no que ouvia.
— Ah... Agora estou me lembrando — disse o homem. — Sua
história ficou conhecida naquela época. Seus pais tinham morrido poucos
anos antes e você vivia com seus avós. Uma noite, você partiu, queria deixar
para trás aquela existência sem graça. Ficou errando de aldeia em aldeia até
que o encontramos e recolhemos, embora você não tivesse mais do que
dezesseis anos. Mas, ao fim de poucos meses, você desertou. Nós o
capturamos rapidamente. Normalmente, quem deserta é morto. Mas, como
você era muito jovem, apenas apagamos sua memória. Integralmente. Você
foi anulado como gente.
Com um gesto, deixou que o Inomeado caísse ao chão. Mortificado,
o rapaz levantou-se, reprimindo a custo lágrimas de dor e desespero.
O homem gargalhou sarcasticamente.
— Eu deveria matar você. Mas a maldita Morte está em
greve. Então, deixarei que viva sua existência insignificante.
Vivo, o Inomeado estava condenado à própria vergonha. Aonde
chegasse, a esperança se apagaria, os olhares se desviariam. Sua existência
seria vagar pelo mundo, sem sentido, desonrado.
O encantador das Trevas sabia que tal existência era muito pior do
que a morte. E começou a rir novamente:
— E você queria me convencer de que é o Eleito?
Em seguida, fez sinal para que o Inomeado e Elforhys fossem
embora.
Eles obedeceram.
24 As três meninas não voltaram a ver o estranho cavaleiro. Tinham
cavalgado através dos campos sem encontrar nenhum obstáculo. Passaram
o dia dedicadas a avançar na direção das montanhas nevadas e só pararam
para pedir informações às criaturas de longos cabelos prateados. A noite,
apearam numa campina acolhedora. Não tinham visto mais nenhuma aldeia
selada pelo caminho. Tudo à sua volta parecia próspero e tranqüilo.
À medida que os dias passavam, as plantações tornavam-se mais
raras, e as aldeias espaçavam-se. Ao fim de uma semana de viagem, numa
manhã as meninas chegaram ao sopé das montanhas de cumes eternamente
nevados. Mais próximas de seu objetivo, começaram a perguntar onde
poderiam encontrar Oonagh. Felizmente, vinha passando um velho montado
num burro.
—Por favor, poderia nos dizer onde fica a casa de Oonagh? —
perguntou Âmbar.
—Estou vindo de lá — disse o homem com um sorriso desdentado.
— Tive um bocado de trabalho para escapar dos rapinantes, mas consegui.
—Como é que se chega até lá? — perguntou Âmbar.
O homem mostrou uma montanha cujo pico se perdia nas nuvens.
— É naquela montanha, mas não lá em cima — garantiu ele. —
Basta seguir uma trilha que existe ali. Vocês vão ver. A única dificuldade é
escapar dos rapinantes. Felizmente, eles só perturbam quem está subindo, e
deixam em paz quem está voltando, como eu.
As meninas agradeceram e dirigiram-se para a montanha indicada.
Uma trilha conduzia pelo lado menos escarpado. Primeiro, elas atravessaram
um bosque denso. O caminho sinuoso desdobrava-se por entre as árvores.
Até ali, nenhum rapinante tinha aparecido. Mas, quando o caminho se
tornou mais íngreme e imponentes pinheiros substituíram a agradável
floresta, os cavalos começaram a ficar nervosos, a se agitar e relinchar em
pânico. Âmbar tentou ler os pensamentos de seu cavalo. Sentiu seu medo,
mas não percebeu o motivo.
Depois de muitas tentativas, conseguiu entrar em contato com o
animal.
— O que há com você? — perguntou.
O cavalo só conseguiu responder alguns minutos depois. Sob efeito
do terror, tinha esquecido suas habilidades. Finalmente, anunciou com toda
a clareza:
— Não vou conseguir ir muito longe. Se prosseguir, sucumbirei aos
rapinantes. Vá você. Esperarei aqui.
Âmbar percebeu que não adiantava insistir. Explicou a situação a
Jade e Opala, que concordaram em subir à pé.
— Vamos carregar apenas o essencial, só a comida —
decidiu Jade. — O resto, pegaremos mais tarde.
Cada uma pegou um pequeno saco com mantimentos. Depois,
recomeçaram a subida.
Viajando a pé, o cansaço chegava mais rapidamente. Ainda assim,
fizeram o menor número de paradas possível. Subiram em silêncio,
economizando fôlego. Jade queimava de curiosidade à medida que se
aproximavam da casa de Oonagh e as outras partilhavam de sua ansiedade.
Estavam quase chegando a seu objetivo e isso fazia com que redobrassem os
esforços. Só tinham pensamentos para a criatura mágica e para as
revelações que ela lhes faria. Âmbar lembrou-se do símbolo que as pedras
haviam transmitido e de Jean Losserand, que o tinha traduzido dizendo que
elas precisavam ir ver Oonagh. Lembrou-se de tudo o que tinha vivido nos
últimos tempos, desde que tinha cruzado o caminho de Jade e Opala.
Finalmente, a noite caiu sobre a floresta de pinheiros. Jade achou
que era impossível continuar na escuridão e as meninas instalaram-se numa
ampla clareira. Quando começaram a jantar, a tensão se fez sentir. A
floresta, mergulhada na escuridão, parecia ainda mais ameaçadora e hostil.
Âmbar julgou escutar gritos terríveis ao longe. Lobos, talvez. Começou a
tremer. As sombras debruçavam-se sobre todos os lugares. Âmbar achava
que um par de olhos amarelos cintilava atrás das árvores. Seu brilho cruel,
maligno, dirigia-se diretamente para ela.
Quando Jade deixou cair uma maçã de sua sacola, Âmbar deu um
grito, pois estava com os nervos à flor da pele.
—Acalme-se — disse Jade com a voz ligeiramente trêmula. —
Desse jeito, você me assusta.
—Fique tranqüila, Âmbar, está tudo bem — disse Opala para
deixá-la mais segura.
—Mas... e se os rapinantes aparecerem durante a noite, quando
estivermos dormindo? — balbuciou Âmbar.
—Essa idéia gelou o sangue de Jade e até mesmo Opala sentiu um
calafrio.
—Não podemos nos privar de sono — argumentou Jade.
—Nada vai acontecer — afirmou Opala, com a voz bem menos
segura do que antes.
Sem apetite, as meninas deitaram-se e respiraram profundamente,
procurando o sono. Ninguém conseguia dormir. Uma angústia desmedida
estava tomando conta delas. O silêncio era insuportável. Finalmente, Jade
propôs conversarem para relaxar um pouco. Âmbar e Opala acharam ótima
a idéia.
A noite dissimulava as expressões dos rostos e era propícia para
confidencias. As palavras vinham com facilidade. Jade falava de sua vida no
palácio de Divulyon. Assim como as outras, ela esquecia sua aflição e
confessava a saudade e o desamparo que sentia. Âmbar contou pela
primeira vez como tinha sido a morte daquela que julgava ser sua mãe.
Contou como a revelação de Beah Jardun a tinha perturbado. Depois,
narrou em detalhes a traição de Janelle.
Quando chegou a vez de Opala falar, Jade e Âmbar imaginaram
que ela fosse ficar calada. Mas, primeiro hesitante, quase tímida, acabou
contando como era sua antiga vida sem surpresas. Depois, mais animada,
disse que, apesar de parecer indiferente, gostava bastante de sua nova vida.
Umedeceu os lábios, fez uma pausa, e encerrou comentando como tinha
"apreciado" a companhia de Adrien.
Jade e Âmbar foram gentis: fizeram de conta que jamais tinham
percebido nada.
Quando as pálpebras começaram a pesar, a angústia já havia
abandonado as meninas.
À revelia delas, alguma coisa tinha mudado naquela noite. Depois
de terem falado tão abertamente de seus sentimentos, não poderiam nunca
mais ser inimigas. As pedras e a aventura em comum já as tinham
aproximado, mas foi essa conversa que as ligou definitivamente.
As meninas continuaram a jornada na ampla floresta de pinheiros.
O ambiente entre elas estava mais leve do que o habitual. Volta e meia, um
acesso de riso quebrava o silêncio. Jade, Opala e Âmbar contavam piadas e
brincavam umas com as outras. O cansaço as fazia sofrer e a subida
continuava íngreme. Mas, até o momento, parecia não haver perigo à vista.
Âmbar acabou se convencendo de que os uivos que escutara eram fruto de
sua imaginação. Chegaram a se perguntar se os rapinantes existiam
mesmo...
Assim, o dia transcorreu tranqüilamente.
A noite as encontrou sob uma clareira onde, exaustas,
mergulharam no sono.
No dia seguinte, Opala levantou-se de madrugada. Tinha tido um
pesadelo horrível. Embora não se lembrasse direito dele, o medo ainda
estava bem forte. Seu rosto estava molhado de lágrimas e ainda sentia o
coração disparado. Levou longos minutos para se recuperar.
Jade e Âmbar acordaram em seguida. Também tinham um ar
assustado.
— Não estou me sentindo bem — disse Âmbar. — Estou enjoada,
com calafrios... E não sei o motivo.
Jade pensou um pouco e depois falou, num tom fatalista:
— Acho que estamos nos aproximando dos rapinantes.
Amnhor disse que eles emitem ondas que provocam o terror. Mas não devem
estar muito perto, já que ainda não estamos em pânico.
Âmbar achou que ia desmaiar. Tinha acreditado que era capaz de
enfrentar os rapinantes. Mas, agora, que estava quase na hora de enfrentá-
los, sua determinação ia por água abaixo.
As meninas levantaram-se e trocaram olhares apreensivos.
— Vamos voltar? — propôs Âmbar de repente.
Jade e Opala pensaram um pouco. Era uma proposta tentadora.
Quase concordaram. Mas Jade suspirou:
— Lutamos tanto para chegar até aqui! Desde a libertação de
Nathyrnn até hoje, arriscamos nossas vidas tantas vezes só para ver
Oonagh. Agora, que estamos tão perto de conseguir, não podemos
simplesmente abandonar tudo e dar meia volta.
As outras duas tiveram que reconhecer a justeza de suas palavras.
—Bom, de qualquer maneira, temos a poção...
—Mas só podemos usá-la em último caso — lembrou Jade.
E assim prosseguiram viagem. Dessa vez, nervosas, não
conseguiam nem sequer entabular uma conversa. Avançavam lentamente,
oprimidas pela imagem que faziam dos predadores. Opala guardava o frasco
de Amnhor em sua sacola. Pegou-o, olhou-o e tornou a colocá-lo no mesmo
lugar, tranqüilizada pelo contato com o vidro liso.
Os minutos pareciam mais longos, como se o tempo tivesse ficado
preso em algum lugar, e cada momento trazia uma angústia mais
insuportável do que o anterior. As meninas esperavam o ataque dos
rapinantes a qualquer instante. Eles surgiriam do nada, rasgariam o ar e se
atirariam sobre elas. No entanto, nenhum deles apareceu.
Quando o sol já estava a pino, deixaram a floresta. Arbustos
substituíram os pinheiros e a subida tornou-se ainda mais escarpada. Pouco
a pouco, os arbustos tornaram-se mais raros, e, finalmente, deram lugar a
uma vegetação rasteira, salpicada por algumas flores mirradas. Âmbar
olhava ansiosamente para o céu. Ofuscada pela claridade do sol, esfera de
fogo no meio de um oceano de intenso azul, não viu nem sombra dos
temidos predadores.
Mesmo assim, as meninas sentiam o medo crescer dentro delas.
Pouco tempo depois, mal conseguiam suportar o terror que as sufocava.
Caminharam ainda por uma hora, mas seus passos tornavam-se cada vez
mais lentos.
Subitamente, Âmbar percebeu silhuetas ameaçadoras com
imensas asas abertas recortadas contra o céu claro. Os rapinantes voavam
muito alto, mas era fácil identificá-los. Quando as meninas os viram,
sentiram-se envolvidas por um turbilhão de pavor.
Eles não pareciam ter percebido a presença delas e continuavam a
planar no céu. Mas seu poder logo se fez sentir. Opala conseguiu, por
milagre, manter alguma calma. Mesmo arrepiada, tentava se convencer de
que não podia deixar que o medo tomasse conta dela.
Jade cerrou os punhos, jogou os cabelos negros para trás e se opôs
firmemente ao terror que a assaltava. Ela tremia, seu coração batia
furiosamente, mas ainda era dona de si.
Âmbar, no entanto, estava aterrorizada. Não conseguia parar de
imaginar que os rapinantes iriam atacá-la e devorá-la. Seus joelhos tremiam,
seus membros eram percorridos por tremores convulsivos. Não conseguia
tirar os olhos dos rapinantes.
— O frasco... — conseguiu balbuciar. — Preciso dele, Opala.
Mas Opala não cedeu. Os rapinantes ainda não estavam atacando
e Amnhor recomendou que só utilizassem a poção no último momento.
Os rapinantes iniciaram uma lenta descida. Eram mais de
cinqüenta, uma nuvem que cobria o céu. Já era possível perceber sua
plumagem acinzentada e, sobretudo, seu porte assustador. Eram duas ou
três vezes maiores do que um homem.
Âmbar gritou, certa de estar vivendo seu pior pesadelo.
Até mesmo Opala se sentiu fraquejar.
Os rapinantes concentraram-se, unindo suas forças. Eles
alimentavam-se do medo. Por isso, era preciso que o terror de suas presas
atingisse o paroxismo. E, para isso, existia um meio quase infalível.
As meninas não demoraram em descobrir qual era. Os rapinantes
mergulharam a cerca de dez metros de onde elas estavam. Desde que eles
tinham se aproximado, elas já não conseguiam mais caminhar. No entanto,
agora, diante de seus longos bicos curvos e das garras afiadas, o pânico
tomou conta delas.
Mas o pior ainda estava por vir. Os rapinantes despertaram os
medos mais apavorantes que existiam dentro de cada uma, aquilo que elas
mais temiam. Agora, a maior parte deles estava a uma distância de apenas
cinco metros. Seus olhares agudos refletiam a concentração, a avidez e a
vontade de vencer.
A imagem de Adrien à beira da morte atingiu brutalmente a mente
de Opala. Parecia que ela estava vendo o rapaz morrer. Tinha o torso
ensangüentado, os olhos revirados e ela não podia falar com ele, nem fazer
nada. A dor e a raiva invadiram seu coração.
Jade foi confrontada com o nada, com a eternidade infinita. A
menina vacilou, cegada pelo abismo escuro, sem fundo. Em seguida, surgiu
a imagem de seu pai adotivo, velho e doente, sobre seu leito de morte. As
lágrimas inundaram seus olhos quando a menina o viu tão magro e
vulnerável. Logo, a imagem se desvaneceu e o Conselho dos Doze
materializou-se diante dela, com todo o seu maléfico poder. Eles planejavam
sua morte em detalhes e enviavam o exército das Trevas em seu encalço.
Jade deixava-se vencer sem reagir.
Âmbar viu surgiram tantas imagens, tantos sentimentos, que tudo
se confundiu. Sentia que era impossível ir até onde estava o horror.
Então, milagrosamente, sentiu que o medo a abandonava. E teve
presença de espírito suficiente para lembrar que os rapinantes absorviam
todo o medo de suas vítimas antes de atacá-las. Debilmente, conseguiu
pedir:
— Opala, a poção...
A voz de Âmbar sobressaltou Opala e a levou a recuperar seus
sentidos. Vasculhou nervosamente sua sacola, encontrou o frasco de vidro
azul e jogou-o para Âmbar. A menina o segurou com firmeza. Percorrida por
um espasmo de terror, destampou o vidro e bebeu um gole do líquido. Mas
tremia tanto que o vidro escapou de suas mãos, caiu no chão e partiu-se em
mil pedaços. O gole que restava perdeu-se na vegetação.
Opala lançou um olhar desesperado na direção de Âmbar. A única
chance que tinham de se salvar estava perdida.
O efeito da poção foi imediato. Os rapinantes sentiram que a presa
lhes escapara. Pouco a pouco, todos os sentimentos de Âmbar
desapareceram. Ela ficou de pé, com o rosto sem nenhuma expressão,
observando os arredores com indiferença. Viu os rostos convulsionados de
Jade e Opala, mas a idéia de ajudá-las não passou por sua cabeça. Não
pensou em ir embora, nem em se refugiar em algum lugar, nem sequer
percebia o perigo que corria.
— As pedras! — gritou Opala. — Peguem as pedras!
Jade obedeceu maquinalmente. Âmbar a seguiu por reflexo. Mas,
como ela não estava realmente humana, nem exatamente viva, nada
aconteceu. Sem sentimentos, ela não era uma pessoa real.
No entanto, do fundo de seu torpor, Âmbar percebeu uma brecha
no solo. Aproximou-se e viu um caminho estreito, que mergulhava na
direção das entranhas da terra. Opala a viu embrenhar-se pela passagem
subterrânea e abandoná-las. Sentiu que o pânico a invadia, mas tentou
afastar o medo com todas as suas forças.
Olhou para Jade e percebeu que o medo da menina tinha sido
absorvido pelos rapinantes. Jade sorria com um ar beatífico. Um predador,
que se mantinha mais afastado dos outros, lançou-se sobre a menina com
uma velocidade estonteante. Opala não hesitou nem um segundo. Sentiu
que triunfaria sobre seu medo, que o esqueceria, caso se concentrasse em
salvar Jade. Jogou-se sobre a companheira a tempo de evitar que as garras
do rapinante a capturassem. Com o forte empurrão, as duas
desequilibraram-se e caíram. Opala levantou-se e mandou que Jade a
seguisse.
Mas a menina não escutava mais nada. Não entendia por que
precisava fugir. Opala jamais soube como conseguiu carregá-la nos braços.
O predador, no entanto, havia retomado altitude, como se a cena o
divertisse muito e quisesse aproveitar melhor o espetáculo. Não admitiria
perder uma presa. Os outros permaneceram imóveis. Apenas o líder tinha o
direito de ficar com a caça, os outros contentavam-se com o medo de suas
vítimas. Mal Opala havia avançado alguns passos, percebeu que o rapinante
iria atacar novamente. Dessa vez, ele não se deixaria enganar.
Ela não tentou correr. Continuou a caminhar com dificuldade e
criou um vazio dentro de si. Não procurou o cálido contato com sua pedra.
Contava apenas consigo mesma, numa derradeira tentativa. Pouco lhe
importava que os outros entregassem os pontos e achassem que não
adiantava resistir. Ela lutaria. Concentrou-se e reuniu todas as suas forças.
Os rapinantes não podiam vencê-la, repetiu-se em silêncio e com crescente
convicção. Uma esperança louca começou a crescer em seu coração. Pouco a
pouco, um suave calor a envolvia. Parecia que estava em contato com sua
pedra. Sentiu as garras afiadas cravarem-se em sua carne, feri-la, e viu-se
lentamente erguida no ar. Continuou a segurar Jade com firmeza. Não tinha
mais medo. Pelo contrário, um sorriso espalhava-se pelo seu rosto. Seus
cachos louros embaraçavam-se, ela sentia-se mal, o sangue jorrava de sua
pele pálida onde o rapinante tinha cravado suas garras, mas ela não se
preocupava. Impassível, fechou seus olhos de um azul mais puro do que o
céu e continuou a esperar.
O rapinante começou a perder altitude. Opala não reagiu, nem
manifestou nenhum tipo de alegria. Apenas a esperança ocupava seu
coração. Quando reabriu os olhos, o rapinante estava parado a cerca de dois
metros do solo. A contragosto, muito lentamente, afrouxou a pressão que
suas garras exerciam sobre Opala e deixou que a menina caísse no chão,
juntamente com Jade, que continuava a não esboçar nenhuma reação.
Tomados por um mal-estar inexplicável, pouco a pouco, os
rapinantes começaram a desaparecer no céu. Jade voltou a si. Opala
indicou-lhe o caminho por onde Âmbar havia enveredado. Antes de segui-la,
Opala lançou um último olhar para o céu agora tranqüilo e esboçou um
sorriso.
25 Jade e Opala avançaram tateando pelo túnel escuro. Mal tinham
atravessado alguns metros, esbarraram com uma forma encolhida. Apesar
da escuridão, imediatamente reconheceram Âmbar, sentada no chão, com os
joelhos dobrados e a cabeça entre as mãos. Seus soluços ecoavam pelo
subterrâneo.
— Âmbar! — exclamou Jade. — Está tudo bem com você?
Âmbar levantou-se num salto.
—Vocês estão aqui! — gritou a menina, secando as lágrimas. — Eu
abandonei vocês! Achei que as tinha perdido para sempre!
—E por que não voltou para nos ajudar quando passou o efeito da
poção? — inquiriu Jade.
—Não consegui — choramingou Âmbar. — Só agora voltei ao
normal e achei que já seria tarde demais para salvá-las. Como conseguiram
chegar até aqui?
Jade contou o que tinha acontecido desde que Âmbar as tinha
abandonado. Opala completou o relato, sem conseguir explicar o motivo pelo
qual os rapinantes tinham fugido.
Jade agradeceu imensamente a Opala por ter salvo sua vida.
Âmbar, ainda sob efeito da emoção, abraçou as companheiras, aliviada por
tê-las encontrado.
—E agora, o que vamos fazer? — perguntou Jade, preocupada. —
Se os rapinantes voltarem...
—Eles não podem nos atacar duas vezes — lembrou Opala. — Mas
gostaria de seguir por esse caminho subterrâneo. Ele deve levar a algum
lugar e estou curiosa para saber qual é.
Depois de uma rápida discussão, decidiram seguir a opinião de
Opala e, ainda perturbadas pelos acontecimentos recentes, as meninas
embrenharam-se nas profundezas da terra. Estranhamente, em vez de ficar
mais escuro, o túnel tornava-se cada vez mais claro. Era possível enxergar
claramente tudo o que as cercava. Não era apenas uma brecha que deixava
passar um raio de sol. Forte, potente, sobrenatural, a luz parecia emanar de
todos os lugares ao mesmo tempo.
Ao fim de uma longa caminhada, as meninas pararam,
apavoradas. Um som de passos, cada vez mais próximos, ressoava pelo
túnel. Com o coração disparado, esperaram ver surgir uma criatura terrível,
mas quem apareceu foi uma menina. Não devia ter mais de cinco anos, e o
fato de não ser humana não a tornava menos encantadora. Uma candura
refrescante emanava da menina. Tinha a pele de um azul muito pálido; o
vestido branco, rodado, deixava seus graciosos braços e as perninhas curtas
à mostra. Imensos olhos violeta destacavam-se em seu rosto sério e inocente.
Uma cascata de cabelos louros derramava-se sobre seus ombros e ia até os
pés descalços.
—Bom dia — disse a menina, com uma voz cristalina.
As meninas sorriram para ela.
—Quem é você? — perguntou Âmbar gentilmente.
— Você mora aqui?
A menininha contentou-se em rir alegremente, deixando à mostra
dentes de um branco imaculado.
— Como é o seu nome? — tornou a perguntar Âmbar
com sua voz suave.
Mas a menina teimava em manter-se calada, com um ar
desembaraçado e misterioso.
—Estamos à procura de Oonagh — disse Jade. — Sabe dizer se
estamos no caminho certo?
—Oonagh, Oonagh — repetiu a menina com um ar malicioso. —
Posso ajudá-las.
—Obrigada — disse Âmbar. — Mas como vai nos ajudar?
—Basta me seguir. Conheço Oonagh. Venham.
Com essas palavras, a menina saiu saltitando. Sem hesitar, Jade,
Opala e Âmbar seguiram-na. Ela cantarolava alegremente uma musiquinha
cuja letra era apenas "Oonagh, Oonagh", como se fosse o nome mais
engraçado do mundo. De vez em quando, lançava olhares divertidos na
direção das meninas, que a seguiam, curiosas.
O túnel subdividia-se em muitas passagens, mas a menina andava
por ali com segurança, tomando caminhos que lhe eram visivelmente
familiares. Enfim, uma hora mais tarde, chegaram diante de um muro muito
pouco comum, que resplandecia de tanta luz. Jade, Opala e Âmbar,
ofuscadas, escutaram a voz límpida da menina convidar:
— Podem entrar na luz. Ela não fará nenhum mal a vocês.
Dito isso, a menina atravessou o muro de luz.
—O que vamos fazer? — perguntou Âmbar, alarmada.
—Não temos escolha — disse Jade. — Ou voltamos sobre nossos
passos, sem a menina, e corremos o risco de nos perder, ou a seguimos e
tentamos atravessar o muro.
Âmbar nem teve tempo de protestar. Jade avançou e desapareceu
na luz. Opala tentou segui-la, mas Âmbar a reteve:
—Ninguém sabe o que existe atrás dessa passagem! Acho que não
devemos entrar!
—Não podemos abandonar Jade — retrucou Opala. — Se ela
estiver em perigo, deveremos estar com ela.
Resignada, Âmbar avançou e a luz a engoliu, ao mesmo tempo que
engolia Opala.
Atravessaram o muro como se ele fosse impalpável. Do outro lado,
um espetáculo inacreditável as esperava. As paredes eram forradas de
cristais multicoloridos, cujas luzes e cores resplandecentes iluminavam o
ambiente.
Opala e Âmbar viram Jade, que estava tão maravilhada quanto
elas.
— E daqui que vem toda a luz que ilumina o túnel — observou
Âmbar, encantada.
Olharam em volta, procurando a menina que as tinha trazido até
aquele lugar feérico, e a viram atrás de uma árvore.
— Oonagh, Oonagh, é aqui que ela mora.
— É mesmo? — entusiasmou-se Jade. — E onde está ela?
A menina caminhou em sua direção, com o olhar subitamente sério:
— Oonagh sou eu — disse ela simplesmente.
Era impossível duvidar de suas palavras. Sua voz era franca e
direta. As meninas a olharam de um modo diferente e perceberam melhor a
expressão refletida em seu sorriso infantil. Jade olhou dentro de seus olhos e
logo compreendeu que ela não mentia. Nos grandes olhos violeta refletia-se
um turbilhão de anos, pensamentos, alegria, sabedoria, experiência,
felicidade e infelicidade... Jade achou que poderia se perder nesse olhar de
quem tanto viveu. Compreendeu que, sob a aparência frágil e infantil,
Oonagh tinha visto passar mais tempo do que ela jamais chegaria a ver.
— Já estava na hora de vocês aparecerem — disse a criatura
mágica. — Eu estava esperando por vocês.
Os corações das três meninas começaram a bater como tambores.
Subitamente, Jade tomou a palavra:
— Quem são nossos pais? Por que fomos expulsas de nossas
casas? Que perigo nos ameaça? Por que o Conselho dos Doze está à nossa
procura?
Com o rosto em fogo, ela preparava-se para continuar quando seu
olhar encontrou-se com o de Oonagh. Jade calou-se.
Então, a voz clara de Oonagh elevou-se e encheu a sala inteira:
Das trevas surgirá o Eleito
Para unificar o Reino
E conduzi-lo à luz.
O rei que não reinará
Será consagrado em nome do Dom
Três pedras, três meninas
Uma descobrirá o Dom
Uma reconhecerá o Rei
Uma convencerá as outras a morrer
De três pedras restará apenas um destino.
— Já faz séculos que as pessoas repetem esse trecho da Profecia —
acrescentou Oonagh. — Esperamos pacientemente por vocês. Seu destino
está traçado. Só o seu fim é que é incerto.
Um calafrio percorreu as três meninas.
—Não entendi nada — disse Âmbar.
—Uma convencerá as outras a morrer — exasperou-se Jade. — O
que quer dizer isso? Que uma de nós vai levar as outras à morte?
Perturbada por suas próprias palavras, Jade calou-se. Um silêncio
pesado abateu-se sobre o ambiente. Então, era por isso que deveriam ser
inimigas: uma delas trairia as outras e as levaria à morte.
— Que horror! — exclamou Jade. — Isso não pode ser verdade!
— Nenhuma de nós vai fazer isso!
Oonagh permaneceu em silêncio.
—Quem é o Eleito? — perguntou Opala para mudar de assunto.
—Daqui a menos de duas semanas, haverá uma grande batalha —
explicou Oonagh. — Neophileus fixou a data. O mal e o bem irão se
confrontar nos campos de Lá Fora, diante do campo magnético de Conto de
Fadas. De um lado, estará o exército das Trevas, acompanhado pelo
Conselho dos Doze e pelos cavaleiros da Ordem. De outro, estará o exército
da Luz.
—Quem faz parte desse exército? — perguntou Âmbar.
—Todos os que querem lutar pela liberdade. Cavaleiros, homens,
criaturas... O exército da Luz está prestes a reunir-se. Mas não poderá
combater enquanto o Eleito não aparecer. É ele quem deverá conduzir o
exército da Luz à vitória e, se preciso, dar sua vida para isso. No entanto, o
Eleito ainda não apareceu. Ninguém sabe quem ele é, talvez nem mesmo ele
saiba... Vocês devem ir ao Palácio de Yrianz de Myrnel. Uma parte do
exército está lá, esperando pelo Eleito. Está dito na Profecia que uma de
vocês o reconhecerá. Talvez, ele já esteja lá. Se não estiver, procurem-no e
encontrem-no!
—Como vamos chegar até esse palácio? — quis saber Jade.
—Não se preocupe. Um homem de confiança guiará vocês. Seu
nome é Rockdar. Ele é um dos conselheiros da Morte.
As meninas trocaram olhares espantados.
— E preciso que vocês procurem a Morte — declarou Oonagh. —
Para que a batalha ocorra, ela precisa encerrar sua greve. E só vocês são
capazes de trazer essa criatura teimosa à razão.
Enquanto Oonagh procurava alguma coisa num canto da sala, as
meninas permaneciam inquietas. Procurar a Morte? Trazê-la de volta à
razão? Como conseguir uma coisa dessas? Oonagh voltou trazendo um mapa
para guiá-las até o sombrio país da Morte.
De repente, Jade falou, com a voz estranhamente séria:
— Toda essa história de Eleito e de batalha é muito bonita, mas
gostaria de saber o que eu tenho a ver com isso. Quero saber quem sou eu.
— Vocês são as três pedras da Profecia — explicou Oonagh. — São
aquelas que farão o mundo inclinar-se para o lado do bem ou para o lado do
mal. Enquanto os dois exércitos estiverem se confrontando, vocês irão a
Thaar, a cidade das Origens, onde ocorrerá seu último combate.
— E também é lá que uma de nós vai levar as outras à morte? —
perguntou Jade com um tom agressivo. — Pois para mim chega! Por que eu
deveria ir conversar com a Morte e depois procurar o Eleito? Por que ir a
Thaar para me bater no "último combate", o que significa, falando
claramente, me deixar massacrar? Por que eu não poderia simplesmente
voltar para minha casa? O que me obriga a arriscar minha vida desse jeito?
Não quero mais ter medo! Estou cansada de me fazer perguntas sem
resposta!
Ela parou para recuperar o fôlego.
—Agora — disse ela mais calma — diga o que me impede de
retornar tranqüilamente a meu palácio, de rever meu pai e viver em paz.
—Jade, o exército da Luz precisa de vocês três para vencer o
combate. Se não lutarem, o mal vencerá.
—E daí? O que é que eu tenho a ver com isso?
—Você tem que ir a Thaar — prosseguiu Oonagh — porque seus
pais sacrificaram-se por você. Eles deram a vida para protegê-la porque
sabiam que, um dia, você lutaria contra as Trevas. Você não tem o direito de
traí-los.
—Eles morreram? — gritou Jade. — Estão mortos?
—Eles deixaram você num lugar seguro antes de serem executados
pelo exército das Trevas, ou pelo Conselho dos Doze. Pelo Mal.
—Mas quem eram eles? Como se chamavam?
—Do que adiantaria saber agora? Você não deve viver no passado.
Não sofra pelo que é irremediável. Dedique sua energia àquilo que ainda
pode mudar. Você não tem o direito de renunciar ao combate.
—E meus pais? — perguntou Opala.
—Infelizmente não foram poupados — murmurou Oonagh. —
Foram obrigados a fugir para esconder você. O exército das Trevas e o
Conselho dos Doze eram muito fortes e os perseguiram. Seus pais não
conseguiram escapar. Tinham adivinhado qual seria o destino deles. Por
isso, entregaram você a pessoas nas quais eles depositavam inteira
confiança.
— Até agora, você não respondeu à minha pergunta — interveio
Jade. — Quem somos nós? Por que temos tantos inimigos?
—O Eleito e vocês... são os encantadores da Luz — explicou
Oonagh, muito seriamente.
Um profundo silêncio acompanhou a revelação.
—Sei! — disse Jade, por fim. — E daí?
—Escutem. Vocês já nasceram com essas pedras nas mãos. Elas
lhes conferem um poder considerável, mas só pertencem a vocês, fazem
parte de vocês. Até completarem catorze anos, o Dom estava adormecido.
Ainda não estava pronto para ser revelado. Era fundamental que vocês só o
descobrissem na hora certa e, sobretudo, que o descobrissem juntas.
Sozinhas, vocês são vulneráveis e seu Dom não lhes serve para nada.
Opala estremeceu. Tinha encontrado sua pedra antes da hora, mas
jamais tinha pensado que aquilo teria alguma conseqüência. Oonagh franziu
as sobrancelhas.
— Opala, seu coração me revela o que você está tentando esconder.
O que eu vejo é ruim, muito ruim. Se você tiver pego sua pedra cedo demais,
seguramente atraiu a atenção do Conselho dos Doze. Talvez eles tenham
conseguido acesso a seu espírito por telepatia...
Oonagh suspirou profundamente:
—Paciência. O que está feito, está feito. Então, eu dizia que, desde
o dia em que completaram catorze anos, seu Dom vem se desenvolvendo.
Mas era preciso que passassem por diversas provas para amadurecê-lo. Vir
até aqui foi a última etapa necessária para que ele chegasse à sua plenitude.
Se vocês tivessem descoberto seu papel cedo demais, seu poder pararia de
crescer.
—Resumindo — disse Jade — , fomos expulsas de nossas casas
porque, aos catorze anos, nosso pretenso Dom deveria se manifestar e
precisaríamos estar juntas para descobri-lo. Em seguida, precisávamos viver
uma aventura apavorante para, no fim, decidir o destino do mundo. Você
não acha que é um pouco demais? Ainda mais porque o fim da história não
parece lá muito feliz, já que duas de nós devem morrer.
—É assim — disse Oonagh.
—É mesmo? — berrou Jade. — Você acha que somos malucas?
Não vamos viajar até Thaar, para, deliberadamente, nos deixar matar!
—Você tem alguma outra escolha? Se preferir, volte para casa.
Tanto o Conselho dos Doze quanto o exército das Trevas a encontrarão e
matarão. Vocês três são capazes de mudar muitas coisas. É questão de
decidir se vale a pena ou não. Mas, saiba, Jade, que se você não for a Thaar
e sobreviver, talvez não seja odiada pelos outros, mas terá vergonha de si
mesma.
Jade não pôde contestar Oonagh. Sabia que ela dizia a verdade,
mas tentara se persuadir do contrário.
— E esse famoso Dom, o que é? — quis saber Opala.
— Uma descobrirá o Dom — respondeu Oonagh. — São as
palavras de Neophileus. Não sou eu quem deve explicar o que uma de vocês
deve compreender.
A despeito da avalanche de perguntas das meninas, Oonagh não
disse mais nada. Voltou a seu sorriso inocente de menina e começou a
cantarolar:
Das trevas surgirá o Eleito
Para unificar o Reino
E conduzi-lo à luz.
O rei que não reinará
Será consagrado em nome do Dom.
Três pedras, três meninas
Uma descobrirá o Dom
Uma reconhecerá o Rei
Uma convencerá as outras a morrer
De três pedras restará apenas um destino.
Jade, Opala e Âmbar compreenderam que Oonagh não diria mais
nada e, movidas por uma vontade comum, fizeram o caminho inverso e
atravessaram o muro de luz que as levaria a seu destino.
Paris, 2002 Acordei ofegante, ainda perturbada pelo sono agitado da noite
anterior. Lembrava-me em detalhes das revelações da criatura mágica de
olhos violeta, e as emoções de Jade, Opala e Âmbar me atingiam como se eu
as estivesse vivendo.
Novamente, o sonho interrompeu-se, devolvendo-me ao universo
frio e sombrio que era o meu. Lembro de ter chorado, revoltada contra a
injustiça que sofria, porque o sonho jamais conseguia me arrancar da
desesperada realidade em que eu vivia. Minhas lembranças escolheram esse
momento para voltar à superfície, enganosas e sofridas por trás de sua bela
aparência.
Dessa vez, eu me sentia desamparada demais para afastá-las. Elas
me invadiram, cintilando com uma alegria amarga. Eu me via como Joa.
Lembrava como era admirada. Era rica, pretensiosa. Minhas roupas faziam
todas as outras meninas morrerem de inveja. Todos toleravam meus
caprichos; eles eram obedecidos como se fossem ordens. Joa tinha péssimo
caráter, mas era mais sensível do que parecia. Recordava-me claramente dos
olhares fascinados que acompanhavam meus gestos, mas me lembrava
também dos poucos que zombavam de mim. Quando isso acontecia, eu me
refugiava num canto escuro e chorava No fundo, embora dissimulasse, eu
era muito frágil. Adorava me divertir à custa dos outros e é verdade que
estava longe de ser sensata e madura. Mas, às vezes, acontecia de conseguir
pensar seriamente, de me mostrar atenta. Eu era pura vitalidade, mas meu
coração era tenro. Só demonstrava minhas emoções quando não havia
ninguém por perto, quando estava bem longe da efervescência que eu
mesma suscitava.
Tinha acreditado na felicidade eterna. Os amigos que me rodeavam
pareciam sinceros e apegados a mim. Mas seus sorrisos só tinham a
aparência do mel. Quando a doença destruiu minha vida perfeita, eu achava
que encontraria apoio e companhia entre eles. Todos fugiram covardemente.
Estendida sobre um leito de hospital, com o corpo destruído pelo mal que me
devora, que interesse tenho eu para eles? Só meus pais continuaram a
cuidar de mim, mas a vida julgou que até mesmo esse consolo era supérfluo
e um acidente de carro os fez desaparecer para sempre. Que meus amigos
tivessem me abandonado, pouco a pouco aceitei. Mas entre eles encontrava-
se aquele que eu amava e que me amava. Também desapareceu. Eu não
sabia o que significava amar. Mas isso não me impedia de gostar dele, de
amá-lo à minha maneira, com minha inconsistência de então. Ele era
parecido com o Eleito do meu sonho, mas, como ele, não passava de um
desertor, um traidor que queria a luz quando só servia às trevas. Visitou-me
uma vez, uma única vez, e depois se foi para nunca mais voltar. Para mim,
isso é inaceitável.
26 Ao lado de Elforhys, o Inomeado cavalgava, arrasado pela horrível
notícia que acabara de receber. Ainda não compreendia como tinha podido
entregar sua alma ao mal. Até onde conseguia lembrar, sempre tinha
considerado as Trevas um inimigo temível, mas também repugnante. E, no
entanto, ele tinha feito parte das Trevas! O sinal do sombrio exército estivera
marcado em seu tornozelo esquerdo, e seu sangue ainda formava,
claramente, a lua encimada pelos números.
Por mais vis que fossem as intenções do cavaleiro das Trevas, sabia
que ele não tinha mentido. Agora, tinha saudades do tempo em que
desconhecia seu passado. A certeza de ter servido ao mal o atormentaria até
o fim de seus dias.
Profundamente perturbado com a revelação do encantador das
Trevas, Elforhys não conseguia dirigir palavra ao Inomeado. Continuaram o
caminho, abatidos e silenciosos. Finalmente, ao fim do terceiro dia de
entristecida cavalgada, ao cair da noite, Elforhys decidiu falar.
— Como é possível que um homem que eu julgava ser meu amigo
tenha sido um soldado das Trevas? Como é possível que tenha as mãos
sujas com o sangue de gente inocente?
O Inomeado não respondeu. Elforhys lançou-lhe um olhar oblíquo
que deixava à mostra todo o seu desespero. A voz da criatura mágica tornou-
se ligeiramente mais suave:
— Sei que você não se lembra de nada, mas eu acreditei em você.
Estava certo de que você era o Eleito. E, no entanto, você destruiu as vidas
que deveria salvar. Como posso crer que você mudou, que sua alma,
alimentada pela escuridão, acabou sendo inundada pela luz?
O Inomeado sustentou o olhar acusador de Elforhys, que
prosseguiu:
— Agora, que sentido existe em procurar Oonagh? O que ela
poderá ver dentro de seu coração cruel? Acho que nossos caminhos se
separam aqui. Espero nunca mais ouvir falar de você. Se um dia eu voltar a
cruzar seu caminho, espero que sua imagem já tenha desaparecido da
minha memória.
Com essas palavras, Elforhys deu meia volta e partiu a galope. Mas
o Inomeado chamou-o com voz rouca e gritou:
— Antes de decepcionar você, eu traí a mim mesmo. Nunca
imaginei ter servido às Trevas. Não tenho a menor idéia de como isso
aconteceu, mas posso assegurar que hoje eu preferiria morrer a me juntar a
esse tenebroso exército. Não sei se minha alma mudou de repente do mal
para o bem, mas o sangue que suja minhas mãos me faz sofrer mais do que
qualquer coisa que você possa imaginar.
Ao ouvir essas palavras, Elforhys voltou-se. Perscrutou os olhos
azuis-safira do hovalyn com seus olhos negros. Por trás de sua imensa
tristeza, podia-se perceber a força e a nobreza.
—Vamos admitir que isso seja verdade — disse secamente
Elforhys. — Por que eu deveria segui-lo? Você não é o Eleito e devo continuar
a procurá-lo. Para mim, é impossível estar perto de você sem pensar nas
atrocidades que deve ter cometido. Você é um assassino, não posso
esquecer.
—Segundo a sua opinião, portanto, devo carregar o peso de meus
erros até a morte?
—Você merece mesmo morrer.
—Mas eu mudei! — exclamou o hovalyn. — E não vou passar o
resto da minha vida carregando a vergonha do passado. Tenho remorsos, me
arrependo de tudo o que fiz, mesmo sem lembrar do que foi. Por que não
teria o direito de superar as faltas que cometi?
—Porque seu arrependimento não devolverá as vidas dos que
suplicaram não ser mortos por você — retrucou Elforhys, com desprezo. —
Ninguém muda da noite para o dia. As mortes que você provocou atrairão
sua própria morte!
—Então, deverei sofrer até o fim de meus dias?
—Não será mais do que justo.
O Inomeado se viu sozinho e abandonado ao próprio desespero.
Cavalgou assim por mais uma hora. Por fim, viu os contornos de uma casa
imponente, que se recortava contra a escuridão, e decidiu pedir abrigo ali
durante a noite. Apeou do cavalo e bateu à porta. Uma mulher robusta e
jovial o atendeu.
— Sou um hovalyn pobre e faminto e peço humildemente que me
dê abrigo.
—Seja bem-vindo — exclamou a mulher. — Está escuro demais aí
fora. Dormir ao relento numa noite dessas é perigoso. Entre e sente-se à
mesa, enquanto levo seu cavalo para a estrebaria.
O Inomeado agradeceu e sentiu-se melhor no ambiente acolhedor
que reinava na casa. Seguiu por um corredor de paredes brancas, repletas
de retratos, e escutou o barulho alegre que parecia vir de uma sala. Guiado
pelo som, foi parar num cômodo amplo, onde acontecia um animado
banquete. Cerca de cinqüenta pessoas riam e conversavam, enquanto
criados lhes serviam apetitosos pratos. Quando os convidados perceberam
sua presença, foram se calando pouco a pouco. Finalmente, um homem de
rosto largo e simpático, vestido com simplicidade, levantou-se e falou com
bonomia:
—Temos um convidado de última hora! Deixe que eu me apresente,
sou Tivann de 1'Orleys. Seja bem-vindo, sente-se conosco. Você não é um
hovalyn?
—Sou — respondeu o Inomeado.
— Ora, mas que interessante! Aproxime-se, sente-se. Vamos
conversar um pouco!
O Inomeado sentou-se ao lado de Tivann de 1'Orleys e serviu-se.
Naquele ambiente descontraído, tentava esquecer sua infelicidade.
—Então, você é um hovalyn — repetiu o homem que, visivelmente,
era o dono da casa.
—Sou — respondeu novamente o rapaz.
—Então, veja. Temos aqui uma coisa que, seguramente, chamará a
sua atenção — prosseguiu Tivann, com um ar misterioso. — Na minha
família, ele é transmitido de pai para filho... Trata-se de um anel encantado,
que não tem nada de original além de... Tivann de 1'Orleys interrompeu a
frase, saboreando seu efeito. Depois, baixando a voz, prosseguiu:
— Além de ser capaz de...
Mas o homem pareceu lembrar-se de alguma coisa e interrompeu o
que ia dizer.
— Amanhã você saberá — concluiu.
Intrigado, o Inomeado terminou de comer em silêncio, enquanto
observava os outros convidados. A sua frente, estava uma moça frágil e
delicada, mais elegante do que o resto dos hóspedes. Um longo vestido azul
celeste moldava graciosamente seu corpo. Seu rosto pálido era iluminado por
olhos de um verde muito claro, quase irreal. Seus lábios finos abriam-se
num vago sorriso. Seu olhar cruzou com o do Inomeado. Ela o examinou
com atenção e sorriu.
— Esta é minha filha, Orlaith — disse o dono da casa
ao hovalyn. — É a mais jovem de meus filhos, e também a mais sensível. Ela
é meu orgulho e também meu desespero. Uma tradição ancestral reza que
sua mão deve ser dada àquele que está destinado a possuir o tal anel
encantado de que lhe falei, a não ser que o dono do anel não a queira. Mas
duvido muito que isso aconteça. Orlaith é uma pérola.
O Inomeado calou-se, sem saber o que dizer. Quando acabou de
comer, confessou a Tivann que estava muito cansado e o anfitrião conduziu-
o até seu quarto. O Inomeado vestiu uma roupa de dormir muito bem
passada, deitou-se e sentiu o cheiro dos lençóis limpos. Mergulhou a cabeça
em um travesseiro de plumas e tentou pegar no sono, mas seus problemas
não o deixavam repousar. Sonhou com Tivann de l'Orleys, que lhe dizia "É
um anel encantado, capaz de... É um anel encantado, capaz de...". Depois, o
rosto de Orlaith aparecia e Tivann repetia: "É uma pérola".
Ao clarear do dia, o Inomeado foi acordado por vigorosas
sacudidas. Abriu os olhos e viu o rosto de Tivann de 1'Orleys debruçado
sobre o seu.
—Acorde, hovalyn — disse o homem animadamente. Aguardamos
sua presença na sala em dez minutos.
O rapaz vestiu-se apressadamente. Pegou sua espada encantada e
pensou em enterrá-la no coração. Não podia suportar o peso de seu passado.
Mas a curiosidade o salvou. Recolocou a lâmina na bainha e dirigiu-se
rapidamente à sala onde Tivann o aguardava. O que iria ele revelar? Seria
alguma coisa relacionada ao estranho anel?
Chegando ao salão, o Inomeado não pôde reprimir a surpresa. A
grande mesa de madeira retangular estava rodeada de pessoas, humanos e
criaturas mágicas. Alguns portavam imponentes armaduras, outros traziam
cicatrizes de feridas de guerra. Todos tinham uma expressão solene e
traziam a espada embainhada. Rapidamente, o Inomeado percebeu que
aquela era uma assembléia de hovalyns. A bela Orlaith também estava
presente. Parecia ainda mais frágil e luminosa no meio de todos aqueles
soldados.
A um sinal de Tivann, o Inomeado aproximou-se e tomou seu lugar
entre os homens. Perguntava-se o que aconteceria ali. Mas não demorou a
saber. Com seu rosto alegre e a voz calorosa, Tivann declarou:
—Amigos, essa assembléia reúne o número exato de hovalyns que
é necessário para perpetuar o costume que se transmite nesta casa há
muitas gerações. Cada um de vocês terá a oportunidade de experimentar o
anel encantado. Mas devo lembrá-los de que esta é uma empreitada
arriscada. Depois de uma pausa, Tivann prosseguiu:
— Há muitos séculos, desde que o primeiro voluntário se propôs a
experimentar o anel de 1'Orleys, a tradição pede que se faça uma reunião de
hovalyns, de acordo com ritos precisos. Hoje, o jovem corajoso que se
arriscará primeiro será Arthur de Farriéres.
Um jovem hovalyn, com ar auto-suficiente, apresentou-se.
— Se ele conseguir, terá a mão de minha filha e meu afeto. Se
fracassar, o voluntário que estiver ocupando o lugar seguinte na mesa
tentará sua sorte.
Cada vez mais intrigado, o Inomeado observava Tivann
atentamente. Este pigarreou e fez sinal à filha. Orlaith mergulhou a mão em
seu decote e tirou dali uma corrente de prata, onde cintilava um anel.
— Orlaith é a única pessoa que pode encostar este anel na pele
sem sofrer terríveis queimaduras. De acordo com a tradição, só a mais pura
das filhas de Orleys tem o privilégio de guardar o anel.
Depois, jogou um olhar para Arthur de Farriéres, que o sustentou
com fanfarronice.
—Hovalyn, está mesmo decidido a experimentar este anel
enfeitiçado por encantadores de tempos imemoriais? Aceita o risco que isso
envolve? Pense bem antes de responder, pois uma vez anunciada nessa
assembléia sua decisão será irreversível.
—Eu assumo o risco — respondeu Arthur de Farriéres, com um
sorriso orgulhoso dirigido a Orlaith, que desviou os olhos com um ar
intimidado.
—Antes de começar a prova, devo algumas explicações aos poucos
hovalyns aqui presentes que ainda não foram advertidos das propriedades
do anel de 1'Orleys. Neste anel reside um sortilégio muito poderoso: ele sabe
distinguir as almas impregnadas pelas trevas dos corações que só acolhem o
bem. Quanto mais as trevas tomarem conta de um homem, mais o anel se
mostrará impiedoso com ele, pois esta é uma jóia que só tolera a inocência e
a justiça. No entanto, mesmo homens honestos e de vida irrepreensível
podem ser submetidos a danosas conseqüências. Por isso, é preciso refletir
bastante antes de se candidatar a experimentar o anel de 1'Orleys.
Uma sombra misteriosa passou pelo olhar de Tivann:
— Este anel foi forjado com uma única finalidade: reconhecer
aquele que esperamos ao longo dos séculos. Quando encontrá-lo, o anel
desaparecerá. Trata-se de um anel encantado. Ele é capaz de encontrar o
Eleito.
O Inomeado sentiu um calafrio. Pensou em fugir da sala, mas suas
pernas se dobraram sozinhas, sua visão escureceu. Mas conseguiu se
recompor e sua fraqueza passou despercebida.
Orlaith tirou o cordão de prata de seu pescoço e colocou o anel na
palma da mão.
— Eu sempre soube que sou o Eleito — disse Arthur de Farrières.
—Jamais me considerei um simples hovalyn. A prova não me assusta nem
um pouco.
Orlaith botou o anel no dedo de Arthur. O aro de ouro branco,
habilmente cinzelado, logo se liquefez num turbilhão que começou a girar em
torno do dedo do rapaz. Seu rosto mostrava um pavor crescente. Seus olhos
arregalados traiam a dor que sentia. Pouco a pouco, o anel se transformou
num círculo de chamas prateadas com reflexos nacarados. Com os traços
contorcidos pelo sofrimento, o hovalyn gritou, segurando a mão:
—Tirem esse anel de meu dedo! Não suporto mais! Piedade, eu
suplico, ajudem-me!
—Impossível — murmurou Tivann, decepcionado.
As chamas poderosas continuaram a multiplicar-se, lambendo
avidamente a mão do rapaz. Pedaços de carne calcinada começaram a cair
do dedo mutilado. O Inomeado estava fascinado pelo espetáculo. Era
repulsivo, mas ele não conseguia desviar os olhos.
— Raros são aqueles que o anel pune com tanta crueldade —
suspirou Tivann.
Finalmente, a tortura cessou. O dedo do hovalyn não passava de
um monte de cinzas enegrecidas. O anel, tão perfeito como quando pendia
do cordão de Orlaith, caiu no chão com um ruído cristalino. A menina
apressou-se em pegá-lo de volta. Arthur de Farrières retornou a seu lugar,
gemendo de dor.
—Alguém mais deseja se arriscar a experimentar o anel? —
perguntou Tivann de 1'Orleys.
—Eu quero.
—Se esse é seu desejo — aprovou Tivann. — Você tem muito
mérito, Gohral Keull. Se você não for o Eleito, ninguém mais será digno de
sê-lo.
—Gohral Keull manteve a expressão impassível. Estendeu a mão
cheia de cicatrizes à Orlaith e o horrível fenômeno repetiu-se. A chamas
contornaram seu dedo num círculo frenético. O rapaz não emitiu um grito
sequer. Pelo contrário, parecia feito de pedra, como se o sofrimento não
tivesse nenhuma importância. Apenas seu olhar turvo deixava transparecer
uma sombra de dor. Logo, o anel tilintou no chão e Orlaith recuperou-o,
rapidamente. Estupefatos, todos os hovalyns observaram o dedo que tinha
estado envolto em chamas: estava intacto.
— O anel julgou que você não é o Eleito, mas é um homem de valor
— explicou o anfitrião.
Gohral Keull não manifestou nenhuma reação diante do
cumprimento.
—Algum outro voluntário deseja experimentar o anel de 1'Orleys?
— perguntou Tivann, certo de que ninguém se apresentaria.
—Eu quero — respondeu o Inomeado, surpreendendo-se a si
mesmo.
—Você? Mas você ainda é muito jovem! Como é seu nome?
—Não tenho nome — respondeu o hovalyn, sorrindo com a
pergunta que o tinha atormentado por tantos anos.
Um murmúrio percorreu a assembléia.
—O Inomeado — murmurou Arthur de Ferrières com desprezo. —
Então é você! E quer nos fazer crer que é o Eleito?
—Não — respondeu o Inomeado. — Só quero saber se minha alma
pertence ao bem ou ao mal.
Os olhos de Gohral Keull franziram-se com severidade.
Desconcertado, Tivann respondeu:
— De acordo com a tradição, não posso lhe negar essa chance.
Mas, se eu fosse você, retiraria a candidatura.
—Pois eu a mantenho — replicou o jovem hovalyn, com firmeza.
Os cavaleiros que cruzaram seu olhar perceberam ali a
determinação e o poder. O Inomeado dirigiu-se para Orlaith e pousou sua
mão de dedos longos e ágeis na palma gelada da moça. Observou o anel. Era
simples, porém belo. A primeira vista, parecia feito simplesmente de ouro
branco. De perto, porém, percebia-se que a textura lisa, cintilante, era
incrustada de minúsculos brilhantes. Lentamente, Orlaith botou o anel no
dedo do Inomeado e dirigiu-lhe um olhar de encorajamento.
O anel de 1'Orleys transformou-se num líquido prateado que corria
cada vez mais rapidamente em torno do dedo do rapaz. Ele conseguiu
reprimir um gemido. No entanto, a dor era terrível. Em pouco tempo, as
chamas prateadas devoravam impiedosamente sua carne. O rapaz quis
gritar, quis fugir, mas resistiu, reprimindo sua fraqueza, a despeito do cheiro
de carne queimada que se espalhava pelo ambiente.
Os hovalyns o olhavam com comiseração. A tortura durou mais
tempo do que a de Arthur e Gohral juntos. O Inomeado obrigava-se a manter
a cabeça erguida, sem olhar para o dedo ferido. Era a confirmação do que ele
se recusava a admitir: uma dor tão forte, tão insuportável, era sinal de que o
anel tinha visto o mal em seu coração e queria puni-lo.
Sentiu todos os olhares sobre si, sem ousar encará-los. Um
murmúrio elevou-se do meio do silêncio e foi seguido de outros, que o
Inomeado interpretou como uma forte repreensão. Tomou a palavra, com a
voz fraca e cheia de amargura:
— Vocês tinham razão. Eu fracassei, o mal penetrou em meu
coração. O anel de 1'Orleys confirmou o julgamento de vocês. Está na hora
de Orlaith pegar seu anel e passa-lo a outro candidato. Por favor, esqueçam-
me, esqueçam a desfeita que fiz a vocês, esqueçam até do meu rosto...
O rapaz não sabia mais o que dizia. Por sorte, suas palavras,
pronunciadas num fio de voz, não tinham sido ouvidas por ninguém. Ele
procurou o anel no chão e não o viu em parte alguma. Olhou cada canto da
sala à procura de seu brilho prateado. Nada. Então, arriscou um olhar
hesitante na direção de sua mão machucada.
Não havia ali nenhum ferimento.
Orlaith sorria-lhe, radiante. Os cavaleiros o observavam com
humildade e admiração, embora alguns deles lhe lançassem olhares
invejosos.
— Não há nenhuma dúvida, Inomeado, você é o Eleito, aquele que
todos sonhamos encontrar um dia! — declarou Tivann de 1'Orleys,
emocionado até as lágrimas.
A assembléia ovacionou o Inomeado, que ainda não acreditava no
que tinha acontecido.
Então ele era mesmo o Eleito, homem cujo nome fazia palpitar a
esperança no coração do mundo?
27 As três meninas faziam o caminho de volta por dentro da caverna,
para chegar até onde estavam seus cavalos. Ainda estavam perturbadas
pelas revelações de Oonagh. Âmbar e Opala estavam preocupadas. Saber
que eram tão importantes as apavorava e fascinava ao mesmo tempo. Jade,
angustiada demais com a conversa, não sabia mais o que sentia. Antes de
tudo, estava revoltada com um futuro tão sombrio. As novas
responsabilidades eram pesadas demais. Mas precisava ir até o fim. Afinal,
as pessoas tinham passado os últimos séculos à espera delas... Não podiam
abandoná-las sem mais nem menos. No entanto, como aceitar caminhar
direto para o perigo, sabendo o que iria acontecer? Embora não admitisse,
estava morrendo de medo. De repente, ela quebrou o silêncio:
—Juro que jamais trairei vocês. A Profecia só pode ser falsa.
Nenhuma de nós vai conduzir as outras à morte. Nunca!
—Juro que jamais farei tal coisa. Prefiro morrer a matar vocês! —
disse Âmbar.
—Também juro — disse Opala. — Esse Neophileus enganou-se. Já
faz muitos séculos que ele morreu. Não há nenhuma razão para fazermos
tudo o que ele escreveu.
—Não consigo acreditar — murmurou Jade. — O que está
acontecendo é tão...
—Esquisito, inimaginável, imprevisível — completou Âmbar. — E
dizer que estamos indo ao encontro da Morte!
—É apavorante, mas também é excitante — disse Jade.
—Além disso, centenas de pessoas estarão com os olhares fixados
em nós — observou Opala, pensativa. — Oonagh disse que somos esperadas
há muitos séculos!
—Eu tenho medo — confessou Âmbar. — Como podem nos pedir
para decidir o destino do mundo? Não faz o menor sentido. Eu adoraria fazer
de conta que não sei de nada e voltar para minha vidinha tranqüila.
—Eu também. Não quero, não posso ir a Thaar... Sabendo o que
vai acontecer quando chegarmos. Mas sei que tenho que ir — acrescentou
Opala, deprimida.
—Se você for, eu vou com você — prometeu Âmbar.
—Eu também — declarou Jade, muito séria. — Temos que ficar
juntas. É impossível adivinhar o próximo horror que nos acontecerá. Mas, se
tantas pessoas dependem de nós, não podemos decepcioná-las. Se nossos
pais deram suas vidas por nós, se realmente somos capazes de mudar
alguma coisa, de enfraquecer o Conselho dos Doze ou as Trevas, devemos
fazer isso.
Jade calou-se. Não podia abandonar Âmbar, Opala e todos aqueles
que acreditavam nela. Âmbar, nostálgica, lembrava-se dos dias
despreocupados que tinha vivido até seus catorze anos, sem saber que
deveria enfrentar aquele inacreditável destino.
Opala mantinha seu ar misterioso e impassível, mas seus
sentimentos e pensamentos estavam em ebulição. Antes de encontrar Jade e
Âmbar, sua vida corria lentamente e sem surpresas. Levava uma existência
rotineira, sem paixão nem aventuras. De tanto ver os dias se repetirem,
sempre iguais, tinha se esquecido de sonhar, de rir, de chorar, de se
emocionar. Tinha rejeitado a amizade, o amor, para se fechar em si mesma.
Ao cruzar o caminho de Jade e Âmbar e, mais tarde, de Adrien, tinha
descoberto um novo mundo: espantoso, belo, suave e rude ao mesmo tempo.
E agora que essa vida recém-descoberta parecia ameaçada, cada um de seus
momentos tornava-se ainda mais precioso.
—Como é que Oonagh acha que vamos convencer a Morte a não se
suicidar? — choramingou Jade, de repente. — Por que é que seríamos mais
capazes do que qualquer outra pessoa de trazê-la de volta à razão?
—O simples fato de ir ver a Morte já é... terrivelmente anormal! —
espantava-se Âmbar.
As meninas conversavam sobre suas dúvidas. Também não
conseguiam compreender direito o episódio dos rapinantes. Por que eles
teriam soltado Jade e Opala? E por que fugiram, expulsos por uma força
desconhecida que parecia feri-los?
A descida era mais fácil, quase agradável. Em menos de dois dias,
as meninas encontraram seus cavalos, que as esperavam pacientemente.
Âmbar acarinhou demoradamente seu animal, contente por revê-lo. Ele
tinha adotado a pelagem branca preferida da menina e a olhava com alegria.
Antes de seguirem caminho, Jade estudou atentamente o mapa
que Oonagh lhes tinha dado.
Se entendi direito, os campos que atravessamos pertencem a uma
região chamada Hornimel, que é cheia de bosques e florestas. A cadeia de
montanhas onde estamos agora não é muito importante. Chama-se Irog e,
segundo o mapa, marca os limites de Hornimel. Adiante, se encontram os
planaltos e as montanhas mais antigas, que se estendem por uma região
chamada Ellrog. Por ali, aparentemente, não há nenhuma aldeia.
—Deixe-me ver o mapa — pediu Âmbar, aproximando-se de Jade e
dirigindo um olhar interessado ao pergaminho.
—Era o que temia — suspirou. — Conto de Fadas é imenso!
—Mas estamos perto do território da Morte — replicou Jade. —
Olhe bem, basta seguir esse rio, o Tanathos, que atravessa Ellrog... Ele
conduz a uma grande planície, e margeia um imenso lago onde, muito
estranhamente, deságua. Basta atravessar a planície ou o lago que
chegaremos lá.
Jade apontou uma inscrição feita com tinta preta e letras bem
traçadas: Okdrull, país da Morte.
— Se pretendemos mesmo ir até lá, temos que partir
imediatamente!
— Okdrull — repetiu Âmbar. — Que nome horroroso!
As meninas retomaram a viagem e voltaram pela mesma floresta por onde já
haviam passado. De repente, um pensamento desagradável atravessou o
espírito de Opala.
—Quando estivermos ao pé da montanha, atravessando Ellrog,
pode ser que nossos inimigos estejam à nossa procura...
—Sei disso — respondeu Jade, arrepiada diante da idéia.
— Mas eles não sabem onde estamos, nem como somos...
— Sim, mas e aquele cavaleiro que apareceu tantas
vezes? Chegamos à conclusão de que era um inimigo. E se
ele fizer parte do exército das Trevas? E se for um espião? — continuou
Opala.
—Acho melhor nem pensar nisso — disse Âmbar.
—Mas e se for isso mesmo? — insistiu Opala.
—É provável — disse Jade. — Além disso, diversas pessoas que
não conhecíamos pareceram nos reconhecer com facilidade. Acho que temos
uma espécie de sinal que permite aos outros nos identificar... E que nos põe
em perigo.
—Calaram-se, cada vez mais angustiadas. Se o exército das Trevas
as encontrasse, quem sabe a que tipo de tortura as submeteria?
—Se, pelo menos, eu tivesse uma espada me sentiria mais segura
— disse Jade. — Temos nossas pedras, mas será que elas bastam para nos
defender?
—Ainda assim — insistiu Opala — , não entendo uma coisa. Se
somos tão facilmente reconhecidas e temos tantos inimigos, por que eles
ainda não nos atacaram?
O dia passou sob a ameaça de um assalto do exército das Trevas.
Âmbar esperava que, a qualquer momento, os cavaleiros negros se atirassem
sobre elas com suas cintilantes espadas em punho.
— Se o pior acontecer e o exército das Trevas nos encontrar, será
que terei coragem para lutar ou serei medrosa como fui diante dos
rapinantes — perguntava-se Âmbar, trêmula.
Percebendo seu nervosismo, seu cavalo tentou acalmá-la com
suaves ondas telepáticas. Mas Âmbar continuava ansiosa.
A noite caiu quando as meninas já deixavam a montanha para
trás. Olharam por um instante para a cadeia de montanhas de Irog, que
tinham acabado de atravessar na saída de Hornimel. Tinham seguido o
Tanathos, um rio de águas turbulentas, através da floresta. Agora, as colinas
de Ellrog estendiam-se à sua frente a perder de vista. Confusamente,
perceberam que aquela região abandonada lhes era hostil.
Cansadas, Jade, Opala e Âmbar sentaram-se às margens do rio,
que corria com um barulho cristalino. Jantaram frugalmente, sem ousar
beber da água turva do rio. Em seguida, deitaram-se sobre a relva. Apesar
da tranqüilidade reinante, estavam preocupadas. Não precisavam de
palavras para se comunicar. Contemplavam um espetacular céu estrelado,
sabendo que estavam sentindo a mesma coisa: que a natureza, imensa e
generosa, atenuava seus tormentos, as unia em um mesmo
deslumbramento, uma mesma poesia. Ninguém ousava emitir um som, de
medo de quebrar a magia daquele momento. Jade, Opala e Âmbar estavam
segurando suavemente suas pedras...
Na manhã seguinte, estavam transbordantes de vitalidade e
voltaram à estrada logo depois da aurora. Enquanto cavalgavam,
observavam a paisagem desolada de Ellrog: colinas cobertas por um mato
raso, seco e amarelado. Uns poucos arbustos raquíticos, espalhados aqui e
ali. Raríssimos cumes, destruídos pela erosão, pouco mais altos do que as
colinas ao redor.
No início, a viagem transcorreu tranqüilamente. O ar matinal,
fresco, trazia o perfume que se desprendia das flores e o canto alegre dos
pássaros. Um animal atravessou correndo o caminho e as meninas
admiraram sua pelagem aveludada. Acabaram espantadas por achar Ellrog
tão agradável. Empurrando a imagem de seus inimigos para o fundo de seus
pensamentos, começaram a falar de amenidades.
Âmbar observava o Tanathos que, graças a numerosos afluentes,
tinha se tornado largo e imponente. O rio serpenteava com rapidez. Suas
águas, agora mais claras, pareciam prateadas à luz do sol. No entanto,
movidas pelo instinto, as meninas não relaxaram.
O sol subiu no céu e o calor ficou mais forte. As meninas pararam
de falar. Um estranho mal-estar começou a tomar conta delas. De repente,
Âmbar falou o que nenhuma das outras duas estava ousando admitir:
— Esse lugar não é normal.
Pouco a pouco, a paisagem se transformava. As flores tinham
desaparecido. Os cavalos mostravam-se mais tensos e nervosos. Um silêncio
total, inquietante, tinha se abatido sobre a terra. Não havia mais nenhum
animal. À medida que avançavam, toda forma de vida parecia fugir de Ellrog.
—Talvez isso queira dizer que estamos nos aproximando de
Okdrull, o país da Morte — arriscou Jade.
—Será que devo ficar feliz por isso? — ironizou Âmbar. — Estou
com medo. Sei que vocês são corajosas, e jamais confessariam que estão
com medo. Mas eu não tenho nenhuma vergonha de dizer que estou com
medo. Não tenho a menor vontade de ir ver a Morte e essa região me deixa
meio apavorada.
—Pois não fique — assegurou Opala. — Não corremos risco
nenhum.
—É mesmo? — exclamou Âmbar, com a voz trêmula. — Bom,
tirando o risco de sermos destroçadas pelo exército das Trevas ou por outro
inimigo louco pela nossa pele, de fato, não há perigo nenhum. Se
sobrevivermos, depois de fazer uma visitinha à Morte, podemos seguir até
Thaar, de onde não temos a menor chance de sairmos ilesas.
Jade e Opala tentaram acalmar Âmbar, mas sem muita convicção.
Felizmente, nenhum cavaleiro vestido de preto estava à vista naquele
instante. E as meninas começaram a falar muito para evitar o medo. Agora,
toda a paisagem lhes parecia ameaçadora. Até mesmo o sol tinha sido
absorvido por nuvens cinzentas, e o ar tinha se tornado frio e úmido.
Quando a noite caiu sobre Ellrog, as meninas pararam às margens
do Tanathos, cujas águas tinham se tornado sujas, escuras e barrentas.
Na escuridão, Âmbar, angustiada, procurou as mãos frias de
Opala.
— Quando eu era pequena, minha mãe sempre segurava minha
mão para que eu dormisse — disse ela. — Quando ela estava a meu lado, eu
tinha a certeza de que nenhuma sombra malévola, nenhum pesadelo
chegaria perto...
Âmbar calou-se, mas Opala, compreensiva, apertou suavemente
sua mão e não a soltou mais. As meninas acabaram dormindo.
No dia seguinte, acordaram sem a menor vontade de prosseguir.
Era penoso seguir o curso do rio cavalgando pela paisagem sombria e hostil.
Os cavalos relinchavam assustados e progrediam muito lentamente. As
meninas sentiam-se cada vez mais cansadas e abatidas. Ao fim de algumas
horas, foram envolvidas por uma bruma que de início era leve, mas que se
tornou cada vez mais pesada e sufocante. As viajantes não conseguiam ver
mais nada, nem mesmo umas as outras. Agora, só o Tanathos,
estranhamente brilhante, podia ser visto. Jade, Opala e Âmbar se forçaram a
continuar, falando num tom tranqüilo, para não se perderem de vista. Não
tinham mais a noção do tempo. Cegas pelo nevoeiro, geladas pelo vento seco,
elas tremiam.
Finalmente, o nevoeiro se dispersou. Perceberam que estavam
diante de uma planície florida, margeada por um imenso lago.
—Já sei onde estamos! — disse Jade, entusiasmada. — Agora,
temos apenas que atravessar essa planície para chegar a Okdrull!
—Já? — espantou-se Âmbar.
—Ellrog é uma região pequena. Não vamos discutir por isso.
Apressaram-se a atingir a planície quando uma voz de homem,
forte e potente, as reteve. No entanto, não viam ninguém por perto.
—Pela planície ou pelo lago?
—Dois caminhos levam a Okdrull.
—Se seguirem pela planície, os sonhos as perseguirão até a morte.
Se escolherem a barca, o lago mostrará o seu passado.
A voz calou-se. Após uma breve discussão, as meninas resolveram
prosseguir pelo lago do Passado. Âmbar mandou que os cavalos as
esperassem ali com a bagagem. Não levariam mais do que o necessário.
Instalaram-se em uma barca de madeira, que parecia estar ali a esperá-las.
A embarcação era precária e vacilava sob o peso das meninas. Mas deslizou
sobre as águas límpidas e azuladas, movida por uma força que ninguém
sabia de onde vinha. As meninas trocaram olhares desconcertados. Os
contornos do rio já se perdiam na bruma de Ellrog. De repente, Âmbar
gritou. As águas claras tinham se tornado sanguinolentas. Jade,
horrorizada, também não conseguiu conter um berro. Em seguida, uma
forma sombria surgiu das águas turvas. Âmbar foi a primeira a percebê-la. A
barca parou. Mas o susto da menina logo deu lugar à alegria. A sombra
tomou a forma de uma jovem de olhar doce e amoroso e ela soube que estava
vendo sua mãe. A mulher acariciou seus cabelos afetuosamente.
— Venha comigo — disse a mulher com uma voz melodiosa. —
Sinto tanto a sua falta. Junte-se a mim, Âmbar.
A mulher estendeu a mão e Âmbar a segurou, encantada com sua
presença e doida de vontade de obedecê-la. No entanto, a aparição era
invisível para Jade e Opala. Quando viram Âmbar levantar-se, pronta para
se jogar na água escura, deram um grito e a puxaram para trás com toda a
força. Âmbar caiu sobre elas, fazendo o barco virar. Agora, as três estavam
dentro d'água. Jade e Opala seguraram-se nas bordas da embarcação
enquanto Âmbar, com os olhos perdidos no vazio, submergia. Jade hesitou.
Olhou para Opala, que murmurou:
— Me sinto fraca demais... Não consigo procurá-la.
De fato, Opala sentia a cabeça rodar. As sombras que a envolviam
formavam o teatro da cruel morte de seus pais. Viu o sangue jorrar do
coração de sua mãe, ouviu-a pedir misericórdia, e distinguiu o rosto
impiedoso de um encantador das Trevas.
Jade afundou e acabou engolindo um pouco da água
sanguinolenta. Conseguiu ver onde estava Âmbar e tentou salvá-la. Mas a
imagem perturbadora de milhares de rostos sorridentes a assaltou num
repente. Quem seriam? Parecia que queriam lhe dizer alguma coisa.
Abandonando Âmbar, aproximou-se deles, escutou seus murmúrios: "Nós
vivemos para que você viva... Nós combatemos para que você lute a última
batalha... Nós estamos em você, estamos com você... Se você estiver lá,
também estaremos lá...".
Jade começou a sentir falta de ar, mas estava consciente. De
repente, sentiu que segurava sua pedra. Uma voz no fundo de si lhe dizia:
"Essas sombras pertencem ao passado. Agora, você deve salvar Âmbar, deve
continuar viva!". Então, desviou-se dos rostos sorridentes e nadou o mais
rápido que conseguiu na direção de Âmbar, com os pulmões a ponto de
estourar. Acreditava que conseguiria, que salvaria Âmbar. Acreditava que a
companheira, num último esforço, também havia pego sua pedra... Mas não
podia mais. Já estava resignada a abandonar a luta e a se deixar levar para
o fundo do lago do Passado, quando uma nova energia a atravessou e ela
percebeu que Opala também tinha pego sua pedra. "Você está viva", disse a
voz de Âmbar ou de Opala, não conseguia mais saber qual das duas. "Você
está viva, e ainda viverá muito."
Só então Jade encontrou forças para levar Âmbar até a superfície.
Respirou avidamente. Âmbar voltou a si, mas Jade percebeu que ela ainda
estava fraca demais para nadar e continuou a segurá-la.
Sua cabeça rodava. Sua vista se embaralhava. Exausta, Jade
estava quase se deixando novamente engolir pelas águas rubras do lago do
Passado.
Subitamente, sentiu dois braços fortes segurá-la, puxá-la, e teve a
certeza de que seu corpo encontrava-se em terra firme.
Paris, 2002 Abri os olhos perturbada. Meu coração batia depressa demais,
forte demais. Dessa vez, eu tinha certeza de que o sonho pertencia à ficção,
que não passava de produto de minha imaginação desvairada.
Eu tinha me deixado levar pela ilusão, estava quase convencida de
que o sonho existia mesmo em algum lugar longe daqui. Mas agora eu sabia,
tinha me enganado. Meus esforços tinham sido em vão.
Nas águas profundas do lago do Passado, entre todos os rostos que
se dirigiam a Jade, estava o meu. Ou melhor, o de Joa. Joa, mais bonita e
sorridente do que nunca. Essa visão acabou comigo. No entanto, era eu
quem a criava, tinha achado necessário colocar minha própria imagem
dentro do sonho para me lembrar de que ele não passava de reflexo da
minha imaginação... E Joa continuava a sorrir para mim com complacência,
seus cachos ruivos emoldurando seu rosto, seu olhar verde-azulado
luminoso, vibrando com uma alegria desmedida. Ela estava calada. No
entanto, seus lábios fechados pareciam murmurar até que ponto eu tinha
sido ingênua.
Então, o sonho era nada. Eu o controlava, eu o inventava... Não
era nada, nada... além de uma tentativa de continuar viva. A verdade surgia
brutalmente diante de mim. Por que eu teria feito questão de me mostrar
minha própria credulidade? Por que fiz questão de destruir a única chance
que me restava?
A Morte, que eu esperava afastar, me espreitava novamente. Desta
vez, era impossível escapar dela. O sonho, minha última defesa, tinha se
desfeito covardemente. Eu não sentia mais nada além de uma dor infinita. A
Morte conhecia muito bem o seu ofício e costumava executá-lo sem demora.
Trêmula, fechei os olhos, mas a visão da tenebrosa criatura, vestida de
preto, me perseguia cada vez mais nítida. Real.
Eu queria que o sol dispersasse as nuvens pesadas de meu
coração. Queria ouvir o vento murmurar sua doce melodia. Queria sentir o
cheiro revigorante da primavera e o odor pesado do verão. Queria gostar da
vida como nunca tinha conseguido antes.
Eu tinha acreditado que seria corajosa quando chegasse a hora da
partida. Mas não era isso o que acontecia. E como ser corajosa? Existiam
tantas coisa que eu não tinha feito quando ainda era capaz de fazê-las.
Agora eu me arrependia por tudo o que não tinha realizado. As lágrimas
turvavam minha visão, mas eu não me sentia chorar. Se meu sonho teve a
audácia de acabar, de me dar um último prazo... "Eu suplico", falei para a
Morte, "me dê um pouco mais de tempo. Só mais uma noite."
28 Jade e Âmbar não tardaram a voltar a si. Opala estava a seu lado.
—Que coisa inacreditável — disse ela. — Quando peguei minha
pedra, senti uma força poderosa tomar conta de mim e consegui nadar até
aqui. Estávamos no meio do lago, mas pareceu que eu mal tinha atravessado
alguns metros quando cheguei em terra firme.
—Já estamos em Okdrull? Do outro lado do lago do Passado? —
perguntou Jade, sem conseguir acreditar.
—Estamos — respondeu Opala.
—Como é que saímos do lago? — perguntou Âmbar, ainda tonta.
Eu cheguei logo — disse Opala. — Estava me perguntando como
iria salvá-las, quando vi vocês duas. Âmbar estava inconsciente nos braços
de Jade. Quando chegaram a menos de um metro da margem, vi que Jade
não agüentava mais. Vocês estavam ao alcance de minha mão e eu as puxei
até aqui.
—Mas como é que saímos do meio do lago? — perguntou Jade.
—Este lago é encantado — respondeu uma voz grave que vinha de
trás das meninas. — Uma vez vencidas as imagens do passado, chega-se
facilmente a Okdrull.
As três meninas voltaram-se num sobressalto. Diante delas
encontrava-se um homem vestido de preto, com uma expressão lúgubre,
montado num cavalo negro.
— Cuidado! — gritou Âmbar. — Um soldado das Trevas!
— Não temos medo de você — disse Jade com um tom
inseguro, porém orgulhoso. — Nós lutaremos!
O homem deu um sorriso divertido.
—Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, mas não é o caso.
Sou Rockdar, conselheiro da Morte, e estou aqui para conduzi-las até ela.
—Ah, sim! Oonagh nos falou a seu respeito — disse Jade. — Ela
também disse que você nos levaria ao palácio de Yrianz de Myrnel.
—Por hora, é até a Morte que levarei vocês... Enfim, isso é apenas
um jeito de dizer.
Com alegria e surpresa, Âmbar viu seu cavalo pastando
calmamente a alguns metros dali. Rockdar seguiu seu olhar e explicou:
— Tomei a liberdade de trazer seus cavalos até aqui. Podem
montar. O castelo da Morte não é longe. Vou levá-las até lá.
Ainda desconfiadas, as meninas montaram seus cavalos em
silêncio. O conselheiro da Morte partiu a galope e elas o seguiram. A
paisagem era espectral e desértica, com poucos arbustos nascidos na terra
negra e seca. Por fim, um imponente palácio surgiu das sombras de Okdrull.
— E aqui que mora a Morte — murmurou Rockdar.
As meninas levantaram os olhos e viram uma construção escura,
rodeada de torres tão altas que seu cume perdia-se no céu. O castelo
emanava uma impressão de sinistro poder. A sua volta, reinava um silêncio
macabro. Era protegido por um regimento de soldados vestidos de preto, que
reconheceram Rockdar, saudaram-no e abriram passagem. Ele entrou,
seguido pelas meninas. Criados, também vestidos de preto, apressaram-se
em levar os cavalos à estrebaria, enquanto Jade, Opala e Âmbar seguiam os
passos de Rockdar por corredores intermináveis, escuros e inquietantes.
— Não duvido do poder de vocês — disse o conselheiro. — Mas,
ainda assim, tomem cuidado. Trazer a Morte à razão não é tarefa das mais
simples.
Um som de soluços fez as meninas inquietarem-se. Agora que
estavam tão perto de seu objetivo, sentiam-se perto de desfalecer. Rockdar
parou diante de uma porta de ébano, de onde vinham os lamentos. Entrou
sem bater e foi seguido por Jade, Opala e Âmbar. O ambiente era muito
amplo e totalmente mobiliado de preto. Pesadas cortinas de veludo impediam
a luz de entrar pelas estreitas janelas. Dez homens, com ar muito sério e
vestidos como Rockdar, estavam em volta da cama. Deitada sobre os lençóis,
uma forma negra chorava de um jeito que faria partir o coração de qualquer
pessoa.
— Visita para a senhora — anunciou Rockdar.
As meninas fecharam os olhos aterrorizadas, esperando ver surgir
uma criatura saída de seus piores pesadelos. Quando os abriram, uma moça
olhava-as e soluçava ao mesmo tempo. Tinha os cabelos castanho-claros e
lisos, cortados bem curtos; sua pele era de uma palidez extrema. Seus olhos
amendoados brilhavam de tristeza. Seu rosto era redondo, e os lábios finos e
rosados. Era um pouquinho gorda e vestia uma saia preta, rodada, até os
joelhos, e uma bonita blusa da mesma cor. No conjunto, era até bonita, mas
de seu rosto transbordava um desespero absoluto, que traía a dura tarefa
que há tanto tempo ela cumpria.
— Vocês têm medo de mim, todas vocês — disse ela, com uma voz
clara, entrecortada de soluços. — E me jogam pragas, suplicando noite e dia
para que eu não apareça na frente de vocês...
Jade, Opala e Âmbar, desconcertadas, não sabiam o que dizer.
— O que é que estão fazendo aqui? Minha greve agrada
todo mundo. Você mesma, Opala, sabe muito bem que já era para termos
nos encontrado há algum tempo. Você acha que estar viva é um milagre, não
é mesmo? Ninguém gosta de mim. Só alguns suicidas desesperados, mas até
mesmo alguns deles tentam fugir de mim quando chega a hora.
Em seguida, com um gesto nervoso, a jovem ordenou:
— Saiam todos. Quero ficar sozinha com as três meninas.
Os conselheiros da Morte obedeceram. Jade, Opala e Âmbar
ficaram sozinhas com a Morte.
— Realmente, não sei por que todo mundo me detesta tanto. Até
mesmo os privilegiados, aqueles que me dou ao trabalho de procurar, saem
berrando quando me encontram
pela frente. Os outros, aqueles que me buscam em pensamento, ficam ainda
mais apavorados de ver o fim chegar.
—Para onde você leva os mortos? Existe alguma vida depois da
morte? — atreveu-se a perguntar Âmbar.
—Quando chegar a sua vez, você verá — respondeu a Morte. — A
vida, a vida! Vocês só pensam na minha irmãzinha querida, paparicada por
todo mundo! Mas não esperem que eu lhes revele para onde vão os que
morrem. Vocês podem ser as três pedras do destino, mas nem por isso eu
deixo de ser a criatura mais misteriosa, a mais temida pelos homens. Não
posso revelar a vocês os segredos que o mundo vem tentando desvendar há
tanto tempo...
—Eu queria tanto saber notícias de minha mãe... — suspirou
Âmbar — minha mãe que você roubou antes que eu pudesse conhecer...
—Pronto! É sempre a mesma lengalenga. Todo mundo diz que sou
cruel, todos querem rever seus pais... Mas não tenho nada a ver com isso,
apenas cumpro o meu papel. Desde que o mundo é mundo, muito antes de
as criaturas mágicas aparecerem na face da Terra, os homens dedicam-se a
matar uns aos outros. Foram eles que criaram o mal, eles o alimentaram
com sangue. Não fui eu que mandei que se matassem. Limito-me a levar o
repouso àqueles que agonizam. Tudo o que fiz foi seguir os caminhos
traçados pelo homem.
—Mas por que a senhora resolveu entrar em greve? — perguntou
Jade. — Nós precisamos da senhora. Sem a sua presença, não existe mais
vida, o mundo fica perdido na eternidade...
—Ah! Obrigada! — respondeu a Morte, lisonjeada e esboçando um
frágil sorriso. — Há um bocado de tempo que ninguém reconhece meu valor.
Todos escrevem poemas em louvor à vida, mas eu só recebo pêsames. Por
quê? Acham que sou horrível? Respondam!
—Ninguém a detesta — explicou Opala. — O que acontece é que
temos medo, nós nos perguntamos quem é a senhora e o que é que nos traz.
Nós a rejeitamos porque não a conhecemos. Tudo que é desconhecido
provoca medo.
—A senhora nos separa de nossa família, de nossos amigos —
prosseguiu Âmbar. — E por isso que a maldizemos. Achamos que isso é
injusto, que é cruel. Mas, no fundo, sabemos que, cedo ou tarde, a senhora
tem que vir. A morte é uma etapa incontornável, mas é o que nos permite
avançar, refletir.
—Mas, então, por que me consideram uma desgraça, uma
fatalidade? — gemeu a Morte secando as lágrimas.
—Porque gostaríamos de manter nossos entes queridos perto de
nós para sempre — respondeu Jade tristemente.
— Sabemos que isso é impossível, mas o desaparecimento
das pessoas que amamos nos faz sofrer muito.
—Então, minha greve é boa. É como eu dizia: ninguém me quer por
perto.
—Isso não é verdade — insistiu Âmbar. — Muitas pessoas a
aguardam para encontrar repouso, mesmo sem saber o que você lhes
reserva para o futuro. E você deve continuar a cumprir sua tarefa para que o
mundo consiga sobreviver. Você colabora com a vida, faz parte dela!
— É mesmo? — entusiasmou-se a Morte, mais segura. — Por que,
então, todos se apavoram tanto quando apareço? Talvez seja essa roupa
preta... Vocês acham que fico bem de preto? Bom, não tem jeito. Se vestir
outra cor, perco a credibilidade.
Jade, Opala e Âmbar começaram a rir, divertidas.
— Acho que estou gorda demais — disse a Morte repentinamente.
— Talvez seja esse o problema. Tentei fazer um regime, mas não funcionou.
Sou gulosa. Mas preciso mesmo emagrecer um pouco...
As meninas deram uma gargalhada. Surpreendida por uma alegria
que nunca tinha provocado antes, a Morte também começou a rir.
—Não se preocupe — disse Jade. — Acho que, mesmo gordinha,
você está muito bonita.
—É mesmo? Você me acha bonita? E simpática também?
—Eu acho — disse Âmbar.
—Mas que coisa incrível... Ninguém nunca me tinha dito uma coisa
dessas antes. E olhem que fazia séculos que eu esperava por isso!
A Morte, agora feliz da vida, batia palmas e ajeitava o cabelo,
enquanto um largo sorriso iluminava seu rosto ainda jovem e bonito.
—Bom, então agora você vai acabar com a greve, não é? —
perguntou Jade.
—Claro que não. Se eu voltar ao trabalho, em três dias todos
estarão me odiando novamente.
—Mas as pessoas estão agonizando, padecendo todo o tipo de
sofrimento enquanto esperam por você — lembrou Âmbar. — É gente que
estava quase morrendo quando você entrou em greve, e que precisa muito da
sua presença.
—Precisam muito de mim? — repetiu a Morte, surpresa. — Então,
está certo. Se eles querem que eu vá, eu vou. Voltarei ao trabalho. Mas com
uma condição.
A Morte dirigiu seu olhar profundo para as três meninas.
— Nunca nenhum mortal veio me procurar antes. Só suspenderei a
greve se vocês me prometerem que, quando nos encontrarmos novamente,
talvez daqui a muitos anos, vocês me seguirão sem lamentar nem chorar.
Será como um alegre reencontro de amigas, que irão juntas para um lugar
agradável.
—Está prometido — disseram as três ao mesmo tempo.
— Então, agora, não vou mais retê-las aqui. Posso ler seus
pensamentos e sei que estão com pressa. Rockdar conduzirá vocês até as
fronteiras de meu reino. Mesmo sem saber ler o futuro, pressinto que o
perigo está rondando vocês. Saberei esperar com paciência o momento de
revê-las e espero que a vida lhes ofereça longos e felizes anos.
A Morte fez uma pausa e depois prosseguiu, muito séria.
— Sempre fui associada ao mal e, no entanto, estou muito longe
dele. Não pertenço nem ao bem, nem ao mal, e não julgo nem um nem outro.
No entanto, eu os conheço, vejo, sinto. Saibam que seu poder atingiu seu
ponto máximo e que a luta está muito próxima. Ou um ou outro será
provisoriamente derrotado, mas ambos são fortes demais para abandonar
completamente o mundo. Esses dois inimigos coabitarão o coração do
homem por toda a eternidade.
De repente, a Morte mudou de assunto e sua voz tornou-se
inquieta:
—Vocês têm certeza de que não preciso mesmo de um regime?
—Claro que temos! — respondeu Jade com firmeza, antes de
começar a rir de novo.
Depois de carinhosas despedidas, as meninas deixaram a Morte,
que sorria tristemente:
— Fico desolada de vê-las partir. Se o destino não fosse sempre tão
apressado, tentaria retê-las aqui por mais tempo. Mas sei que voltarão...
29 Era óbvio, mas o Inomeado não conseguia aceitar. Como poderia
ser o Eleito, logo ele, que tinha servido às Trevas? Impossível. O anel de
1'Orleys tinha se enganado. Durante o dia inteiro, Tivann tinha organizado
festas em sua homenagem. Mas, apesar da insistência dos hovalyns, tinha
ficado trancado em seu quarto, pensativo.
A noite chegou. Alguém bateu à sua porta e, a despeito de sua
recusa em abrir, meteu a mão na maçaneta e entrou. Era Gorhal Keull, com
sua expressão dura e seu olhar destemido.
— Eu sei o que está atormentando seu coração — disse o hovalyn.
— Procure Oonagh. Ela vai ajudá-lo.
O Inomeado não respondeu. Estava perdido em seus pensamentos.
—Tivann de 1'Orleys já está preparando seu casamento com
Orlaith, mas sinto que você não a ama.
—Vou embora daqui — disse o Inomeado. — Vou procurar Oonagh.
Todas as pessoas nesta casa acreditam em mim. Não mereço tamanha
confiança. Preciso sair daqui.
O Inomeado parou, depois completou:
— Eu não sou o Eleito.
— Sei disso — declarou Gorhal Keull. — Conheço o seu passado.
Surpreso, o Inomeado ergueu seus olhos azuis na direção do
hovalyn.
—Você sabe quem eu era? — murmurou.
—Sim. E também sei que você mudou. Se permitir, vou
acompanhá-lo até a casa de Oonagh. Sei de muitas coisas a seu respeito que
você mesmo ignora.
O Inomeado hesitou um instante.
—Vou partir assim que a noite estiver bem escura. Fugirei
covardemente. Se quiser me acompanhar, pode vir comigo.
—Eu vou com você — garantiu Gorhal Keull.
Na hora seguinte, os dois hovalyns prepararam a bagagem. Em
seguida, se esquivaram discretamente da casa de Tivann de 1'Orleys.
Procuraram seus cavalos na estrebaria como dois ladrões protegidos pela
noite, montaram e fugiram a galope. O Inomeado lançava olhares curiosos
para Gorhal Keull, que se contentava em respirar o ar revigorante da noite
sem abrir a boca. Por fim, Gorhal disse:
—Conheço um caminho que nos levará mais rapidamente até
Oonagh. Quando chegar lá, você compreenderá o seu destino e terá que se
submeter a ele.
—O que é que você sabe a meu respeito? Conhece meu verdadeiro
nome?
—O que faz com que você exista não é seu nome. É o que você é, o
que faz, o que sente — respondeu Gorhal Keull. — Já atribuíram muitos
nomes a você, mas não sei qual foi o que seus pais lhe deram.
—Diga o que você sabe sobre o meu passado.
—O presente é muito mais importante.
Gorhal Keull calou-se e recusou-se a falar por horas a fio. Os dois
hovalyns cavalgaram em silêncio pelo Hornimel durante toda a noite.
Quando chegou a aurora, resplandecente com as cores de um novo
dia, o Inomeado perguntou em voz baixa:
—Você sabe o que eu era, antes... Sabe que já servi às Trevas?
—Sei — confirmou Gorhal Keull.
—E não me odeia por isso? Mesmo sem ter nenhuma lembrança
desse tempo, minhas mãos estão sujas de sangue. Sou um criminoso.
—Você é um homem. Eu também. Quem sou eu para julgá-lo?
—Antes de me tornar um homem, fui um monstro. Eu era um
soldado das Trevas!
—Mas não é mais. Quando desertou, você renunciou ao mal.
Quando perdeu a memória, tornou-se outro homem. Agora, você é o
Inomeado, um hovalyn a serviço do bem. Você sofreu, você combateu. Hoje,
ainda que o mal esteja em seu coração — ele está em cada um de nós — o
bem venceu.
—O que é que você sabe? O que sabe a meu respeito?
—Encontrei você alguns anos atrás. O que sei... Nunca vi seus
pais, mas você disse que eles tinham morrido quando você era criança.
—Morreram — repetiu lentamente o rapaz.
— Você vivia com seus avós — prosseguiu Gorhal Keull,
imperturbável. — Nunca quis falar muito a respeito dessa época, nem
mesmo seu nome de batismo queria dizer para a gente. Com dezesseis anos,
saiu de casa, estava louco para descobrir o mundo. Foi aí que o encontrei.
Você irradiava uma força tamanha, uma coragem que me deixou
impressionado. Queria lutar, combater a injustiça, e não se importava em
arriscar a vida por isso. Surpreso, o Eleito bebia as palavras de Gohral Keull.
— Você era audacioso, demonstrava tanta bravura, que todos os
que o encontravam o chamavam de Elyador: "o que foi eleito". Mas você
achava graça. Não estava em busca de glórias.
O Inomeado não conseguia acreditar. O tom de Gorhal Keull era
sincero, mas a marca em seu tornozelo esquerdo ainda estava bem fresca em
sua memória.
— E foi então que seu caminho se cruzou com o do
exército das Trevas.
Depois disso, Gorhal Keull calou-se novamente, recusando-se a se
lembrar dos soldados das Trevas. O Eleito ardia de curiosidade, queria saber
porque tinha escolhido o lado das trevas. Queria, enfim, conseguir lançar
um olhar claro sobre seu passado, deixar de lado as dúvidas, as perguntas,
conhecer as faltas que tinha cometido, para conseguir pagá-las.
Durante o dia inteiro, os viajantes percorreram o Hornimel. As
montanhas onde vivia Oonagh surgiam no horizonte. Só pararam para
descansar tarde da noite, quando o cansaço já tornava a viagem impossível.
Dividiram a comida e falaram pouco. Depois, deitaram-se para dormir. O
Inomeado não tinha mais coragem de fazer perguntas ao companheiro.
Sentia que ele só voltaria a falar quando estivesse com vontade. Será que
conseguiria descobrir tudo sobre seu passado?
Finalmente, os dois hovalyns chegaram à cadeia de montanhas de
Irog e começaram a subir a imponente montanha onde vivia Oonagh.
Fizeram uma parada na floresta de pinheiros. A noite escura envolvia-os e já
começavam a sentir a angústia provocada pelos rapinantes. O Inomeado, no
entanto, não se deixou intimidar. Trazia consigo os amuletos dados pelos
Ghibduls e sentia-se protegido. Já estava quase mergulhando no sono
quando Gohral Keull decidiu falar:
—Ninguém sabe por que você se bandeou para o lado do mal.
Naquela época, eu era seu amigo, éramos inseparáveis. Um dia, nossos
caminhos cruzaram com os do exército das Trevas... Não sei o que deu em
você. Ficou fascinado pela potência daqueles soldados tenebrosos, alguma
coisa o atraiu para o Mal... Então, você, que era tão bom como voltou a ser
agora, engajou-se no exército das Trevas. Ainda tentei dissuadi-lo da idéia,
mas você não queria escutar ninguém. Por quê? Você era tão jovem, ainda
tão inocente. Por que será que o Mal é tão tentador? Uma vez que se prove
do seu gosto, uma vez que se tenha conhecido seu ódio, é muito difícil voltar
para a luz... As Trevas carregaram você para suas profundezas e eu perdi
você de vista.
Mortificado por essas revelações, o Inomeado disse:
—Se eu era tão bom, e ainda assim me tornei um soldado das
Trevas, isso quer dizer que, mesmo agora, o Mal pode voltar a me tentar. Se
já cedi uma vez, quem me garante que resistirei agora?
—Esse é um combate que todos nós travamos o tempo todo.
Jamais estamos totalmente livres das Trevas.
—Por que você resolveu vir comigo até Oonagh?
—Em memória daquele que você foi, daquele que chamávamos de
Elyador. Você não é o Eleito. Mas também você não é mais um soldado das
Trevas. Todo mundo sabe o que aconteceu com você. É uma história que
corre de boca em boca. Você acabou desertando. Por quê? Talvez por não
suportar mais matar. Talvez porque desejasse voltar à luz. Mas eles o
pegaram. Como castigo, apagaram sua memória e você voltou a ser o que
sempre tinha sido: um hovalyn.
— Mas como poderei expiar as faltas que cometi? O sangue que
derramei? Você acha que as pessoas poderão confiar em mim quando
souberem quem fui?
Gorhal Keull não respondeu nada.
Com um nó na garganta, o Inomeado fixou o olhar no céu sem
estrelas. Então, o encantador das Trevas tinha dito a verdade. Tinha sido um
criminoso, depois um desertor... Mas uma coisa continuava a intrigá-lo.
Tirou da sacola o estojo que as sereias do lago dos Tormentos tinham lhe
dado e mostrou-o a Gorhal Keull.
—Tem idéia do que seja isto?
—Não. Não mesmo. Mas pergunte a Oonagh. Ela poderá dizer
alguma coisa.
O Inomeado concordou. Passou uma noite tempestuosa, sonhou
com sangue e violência.
Na manhã seguinte, os cavaleiros retomaram caminho. Assim que
perceberam os rapinantes, que lotavam o céu azul de verão, colocaram os
amuletos dos Ghibduls no pescoço e o medo desapareceu imediatamente.
Gorhal Keull, que já tinha ido antes à casa de Oonagh, dirigiu-se para o
caminho certo com segurança. O Inomeado seguiu-o, melancolicamente,
pelos meandros do túnel. Levaram mais de uma hora até chegar à parede
luminosa que ocultava a passagem da gruta de Oonagh. Atravessaram-na
sem medo e entraram na ampla sala dos cristais.
—Ah! Então é você que chamam de Inomeado — disse uma vozinha
fina.
O rapaz voltou-se e encontrou-se diante de Oonagh.
—Ajude-me, por favor — pediu ele com a voz calma. — Diga qual é
o meu nome. O que estou destinado a fazer?
—Quer se redimir? Muito bem. Apresse-se. Vá ao castelo de Yrianz
de Myrnel. E lá que os mais bravos hovalyns estão se reunindo para lutar
contra as Trevas, no dia do solstício do verão, e se tornarem soldados da
Luz.
—Mas... não compreendo — confessou o Inomeado. — O que farei
lá?
—Você serviu às Trevas. Agora serve à Luz. Engaje-se como
soldado. Quando o tão esperado momento chegar, lute. Será daqui a menos
de duas semanas.
—Mas as pessoas do castelo... Jamais me aceitarão. Quando
souberem quem sou, terão ódio de mim.
—Se você quer enfrentar as Trevas, comece por enfrentar o ódio
dos homens.
—Eu vou com você — disse Gorhal Keull. — Também quero me
alistar no exército da Luz. E todos os que tiverem forças para tanto se unirão
a nós. Conto de Fadas aguarda esse combate há muito tempo. Finalmente, o
Conselho dos Doze e o exército das Trevas estarão diante de nós. E nós os
venceremos. No dia do solstício do verão, milhares de pessoas estarão lá.
Eles virão de todas as partes e lutarão pela Luz!
—Sim, mas não se esqueça de que o Eleito ainda não apareceu —
disse Oonagh com sua voz doce. — É ele quem tem de conduzir o exército da
Luz. Sem ele... temo que não haja combate. O Inomeado baixou os olhos. O
Eleito não era ele.
— Vá ao castelo de Yrianz de Myrnel — insistiu Oonagh. — Talvez
você encontre lá o Eleito. Ou talvez encontre a você mesmo.
— O que isso quer dizer? Lá, vou descobrir meu nome? Ou o que
devo ser?
— Só leio os corações, não o futuro — respondeu Oonagh.
O Inomeado desistiu de saber mais. Tirou lentamente o estojo de
sua sacola e estendeu-o a Oonagh.
— Eu estava esperando por isso — disse a criatura mágica. — Já
faz muito tempo, quando você não passava de uma criança, seus pais
sentiram que seu destino seria ameaçado por perigos e trevas. Guiados pelo
instinto, souberam que o mal espreitava você e temeram por sua vida.
Então, vieram me procurar e contaram o que pretendiam fazer. Tentei
impedi-los, mas não me escutaram. Foram até o canto mais profundo da
floresta e encontraram o lago dos Tormentos.
O Inomeado tremia, quase sem fôlego.
— Chegando lá, pediram às sereias, que são poderosas
feiticeiras, para fazer um sortilégio que só elas poderiam executar. "Está
certo", disseram elas, cruelmente. "Mas vocês terão que pagar com a vida." E
seus pais aceitaram.
O Inomeado achou que iria sufocar.
—Que sortilégio era esse? — perguntou, com a voz trêmula de
emoção.
As sereias prometeram que, quando você passasse pelo lago dos
Tormentos, lhe entregariam esse estojo. Aí dentro, elas guardaram todo o
amor que seus pais tinham por você. O Inomeado sentiu que as lágrimas
escorriam de seus olhos. Seus pais tinham se sacrificado por ele... Tomou o
estojo das mãos de Oonagh e o acariciou com as mãos trêmulas.
—Cada vez que você abrir essa caixa, será protegido pelo amor
infinito de seus pais — disse a criatura mágica.
—Que coisa incrível! — murmurou Gorhal Keull.
—Olhe, Inomeado, não lamente a escolha que seus pais fizeram —
disse Oonagh com uma voz tranqüilizadora. — Eles não estão mortos, não
estão verdadeiramente mortos. A cada vez que abrir essa caixa, o amor deles
reviverá. Eles estarão sempre a seu lado.
O hovalyn deu um sorriso triste.
—Agora, você precisa partir — disse Oonagh. — Atravesse o Ellrog
e contorne o País da Morte. Nem mesmo o exército das Trevas ousa
aventurar-se por ali. Vá à casa de Yrianz de Myrnel. Se você encontrar as
três pedras da Profecia pelo caminho, convença-as a ir a Thaar. A luta que
elas enfrentarão por lá será decisiva para todos nós.
—Mas... — começou a falar o Inomeado.
—Boa sorte — interrompeu Oonagh. —Talvez nos vejamos na
batalha final!
—O quê? — espantou-se Gorhal Keull diante da criatura tão frágil.
— Você também vai lutar no solstício do verão?
—Não confie tanto nas aparências — disse Oonagh, secamente. —
A magia é uma arma poderosa...
A menina interrompeu o que iria dizer. Em seguida, concluiu:
— Não percam tempo.
O Inomeado e Gorhal Keull fizeram meia volta em direção à parede
de luz.
30 Rockdar conduziu as três meninas até os limites de Okdrull e
prosseguiu até perto da casa de Yrianz de Myrnel. Então, uma tarde, o
palácio onde eram esperadas ergueu-se diante delas e Rockdar despediu-se.
Depois que ele partiu, as meninas esconderam-se atrás de uma árvore e
vestiram os belos trajes de gala que tinham ganho das mulheres da aldeia de
Amnhor. Lavaram as mãos e o rosto num riacho e Âmbar pediu aos cavalos
que as esperassem ali.
Radiantes com a nova aparência, as meninas atravessaram um
portão dourado e entraram no palácio de Yrianz de Myrnel. Os vestidos
tinham ficado lindos. Embora elas não soubessem, as costureiras tinham
enfeitiçado as roupas, que as deixavam ainda mais bonitas do que já eram.
Passaram por um caminho de seixos brancos, que atravessava um imenso e
bem cuidado jardim. Flores coloridas, com detalhes sutis, inebriavam as
passantes com seu perfume raro e envolvente. Árvores carregadas com
frutos maduros rodeavam a alameda.
As meninas riam alegremente. Tinham esquecido o perigo. Jade
parecia mesmo a filha do duque de Divulyon, com o vestido de seda azul-
petróleo ondulando em torno de suas pernas. Seus cabelos negros e revoltos
emolduravam o rosto altivo, onde brilhava seu olhar de jade. No entanto,
nem todos a reconheceriam. A aventura a havia transformado. Não tinha
mais o jeito orgulhoso, nem os modos pretensiosos. Seus traços estavam
mais maduros e sérios, mas o brilho rebelde não tinha abandonado seus
olhos verdes.
As meninas bateram à porta. Uma criada abriu e ficou
boquiaberta. Diante dela, estavam três criaturas envolvidas numa luz
brilhante.
— Vocês vieram... — murmurou a mulher, admirada. — As três
pedras... Entrem!
A criada conduziu-as até um salão imenso, iluminado por
imponentes lustres de cristal, onde centenas de convidados, com espadas na
cinta, conversavam animadamente. Entre eles, encontravam-se muitos
homens, mas também criaturas mágicas e mulheres que tinham se alistado
no exército da Luz. Nem todos os futuros combatentes estavam ali.
Mensageiros tinham sido enviados aos quatro cantos de Conto de Fadas
para reunir o exército e conduzi-lo à batalha anunciada na Profecia. Os mais
corajosos e respeitados hovalyns já estavam na casa de Yrianz de Myrnel,
prontos para a luta contra as Trevas. Todos aguardavam a chegada do Eleito
e que as pedras, enviadas por Oonagh, conseguissem identificá-lo.
Neophileus tinha escrito que o Eleito era um encantador da Luz, assim como
as três meninas. Jade, Opala e Âmbar deveriam seguir até Thaar. Restaria
apenas o Eleito para se opor aos encantadores das Trevas. Nenhum outro
poderia fazer tal coisa. Sem ele, não haveria combate.
Assim que as três meninas entraram no salão, fez-se um silêncio
imediato. Todos se imobilizaram, maravilhados. Alguns admiravam Jade,
cujos olhos irradiavam o brilho das estrelas. Outros não tiravam os olhos de
Âmbar, envolta em um flamejante vestido de musselina vermelha. Outros,
ainda, impressionavam-se com Opala, resplandecente em um vestido de tule
branco, como a própria encarnação da pureza. Sua aparência frágil e os
olhos sempre baixos tinham dado lugar a uma expressão segura. Agora,
mantinha a cabeça erguida, mas o ar frio e distante tinha desaparecido.
Gritos e saudações elevaram-se:
— Salve as três pedras da Profecia Viva a liberdade! Viva o exército
da Luz!
Jade, Opala e Âmbar sorriram.
Neste momento, duas silhuetas surgiram na porta. A primeira era
a de um cavaleiro de ar severo e destemido. A segunda, a de um jovem mal
vestido, com cabelos castanhos em desalinho e rosto todo arranhado, mas
que irradiava uma força indefinível. Embora ele dirigisse à multidão seu
olhar grave, podia-se imaginar que não via nada à sua frente. Sua expressão
parecia devastada por um dor indecifrável. Uma melancolia profunda
emanava de seus olhos.
Um hovalyn que tinha estado na casa de Tivann de 1’Orleys o
reconheceu e exclamou:
— E o Eleito! Este homem é o Eleito!
Um outro, que também tinha assistido à cerimônia do anel, gritou:
— Viva Elyador, aquele que foi eleito! Combaterei a seu lado!
Suas palavras foram seguidas por um verdadeiro tumulto. Gritos
de alegria ecoaram. Mas uma voz alertou:
— Este homem não é o Eleito! E um soldado das Trevas!
Um pesado silêncio caiu sobre a sala. Todos os olhares voltaram-se para a
criatura de cabelos louros, olhos negros e pele prateada que tinha feito tal
declaração. Era Elforhys. Ele dirigiu-se ao Inomeado:
— Vamos, diga a eles quem é você. E um assassino!
A multidão esperava que o rapaz negasse as acusações. Mas ele
disse:
—É verdade. Fiz parte do exército das Trevas. Fui um assassino,
mas não sou mais. Eu mudei. E gostaria de me tornar um soldado da Luz.
—E acha que vamos confiar em você? — gritou um hovalyn, cheio
de ódio. — Como saber se você mudou mesmo? Não se pode passar das
trevas para a luz! Você derramou sangue...
—Agora, é o seu sangue que deve ser derramado — apoiou outro.
A multidão começou a vaiar o rapaz e a cobri-lo de injúrias. Jade
juntou-se aos cavaleiros. Opala concordava com eles, mas ficou calada.
Âmbar olhava para o jovem, penalizada. Pálido e digno, ele
mantinha-se em silêncio. Não tentava se defender. Embora seu rosto
estivesse marcado pela tristeza, limitava-se a olhar para a multidão com um
ar ausente. Num determinado momento, seu olhar cruzou com o de Âmbar.
Uma compreensão mútua estabeleceu-se imediatamente. Tinham a
impressão de que se conheciam desde sempre, como se toda a vida deles
tivesse sido uma espera pelo momento daquele reencontro. O Inomeado só
tinha olhos para Âmbar e seu vestido de fogo. Ele a via, enxergava seu
coração e soube imediatamente que ela ocuparia o seu. Só existia uma
palavra para descrever aquilo. Trêmulo e assustado, apoderou-se dessa
palavra. Impalpável, mais forte e louco do que qualquer outro sentimento, a
palavra que repousava em seu estojo estava agora em seu coração,
despertada pelo olhar de Âmbar. Essa palavra era Amor.
Das trevas surgirá o Eleito
Para unificar o Reino
A voz de Oonagh ressoava na memória de Âmbar.
Das trevas surgirá o Eleito
Pensativa, Âmbar baixou os olhos. Esse rapaz... Ele tinha
derramado sangue... Certo, tinha mudado... Certamente, queria esquecer
seu passado, expiar suas faltas... Mas, ainda assim... Seria mesmo um
assassino?
Uma reconhecerá o Rei
A voz de Oonagh ocupava sua mente.
—"Das trevas surgirá o Eleito" — murmurou Âmbar, sem prestar
muita atenção no que dizia. Depois, subitamente, compreendeu o sentido
daquelas palavras e gritou:
—Das trevas surgirá o Eleito!
A assembléia, estarrecida, calou-se.
— Você está se sentindo bem? — perguntou Jade. Âmbar ignorou-
a. Foi até o Inomeado e, então, dirigiu-se à multidão.
— O homem que foi eleito, Elyador, o Rei, aquele que todos vocês
aguardam... É ele. Esse assassino, o desertor que vocês tanto desprezam. É
justamente porque vem das trevas que é o Eleito.
Jade e Opala olhavam-na, impressionadas. Âmbar tinha
transformado-se completamente: sua voz vibrava de maneira apaixonada e
seu olhar estava inflamado.
— Isso é impossível — gritou Elforhys. — Um soldado das Trevas
não pode ser um encantador da Luz.
Um murmúrio de aprovação percorreu a multidão.
— Está escrito na Profecia: "Das trevas surgirá o Eleito" — repetiu
Âmbar. — Este homem fez parte do exército das Trevas, mas teve forças para
abandoná-lo. Quem de vocês teria sido capaz de sair da escuridão para ir ao
encontro da Luz?
A assembléia ainda não estava convencida.
— Este homem merece a admiração de vocês e não suas injúrias.
Ele ousou vir até aqui para se alistar no exército da Luz. Não tentou mentir.
Confessou ter servido às trevas. Sabia que ninguém acreditaria nele, que
seria odiado. Mas veio assim mesmo. Quem mais faria uma coisa dessas?
Âmbar interrompeu-se antes de concluir, gravemente:
— Aqueles que sempre estiveram do lado da luz são bons. Mas
aqueles que conheceram a escuridão, que sofreram, que suportaram olhares
de desprezo... E que continuaram a caminhar na direção da luz... Esses são
grandes.
Um silêncio seguiu-se a essa declaração.
Subitamente, um som metálico fez a multidão estremecer. Elforhys
tinha tirado sua espada e caminhava na direção do Inomeado. Âmbar, que
estava ao lado do rapaz, quis gritar, mas nenhum som saiu de seus lábios.
Diante do Inomeado, Elforhys fez uma coisa que espantou a assembléia.
Dobrou um dos joelhos e depositou sua espada aos pés do jovem:
—Elyador, àquele que foi meu amigo, apresento minhas desculpas.
Aquele que é meu Rei apresento minhas homenagens.
—Levante-se, Elforhys. Não sou Rei. Sou apenas um homem. E
perdôo você.
Elforhys levantou-se lentamente. Ergueu sua espada e gritou:
— Juro lutar contra as Trevas! Juro servir à Luz e a seu Rei!
Todos os homens ergueram suas espadas e disseram, numa só voz:
—Eu juro!
—Não fui feito para ser Rei — disse o Eleito, debilmente.
Mas só Âmbar o escutou.
— Até poucos minutos atrás, você era um assassino. Agora é Rei. É
melhor assim, não é? Não se lamente. Aceite as homenagens.
Elyador sorriu. Agora, ele tinha um nome. E sua vida tinha um
objetivo. Olhou para Âmbar, depois para a multidão. Oonagh tinha razão.
Naquele castelo, ele encontraria o Eleito. E, na mesma ocasião, encontraria a
si próprio.
— Nós venceremos — prometeu ele à assembléia. — O exército das
Trevas e o Conselho dos Doze são poderosos. Mas podemos ser ainda mais
poderosos do que eles. Basta acreditar. Reunidos na Luz, nós os
venceremos.
Gritos entusiasmados ecoaram pela sala. Opala, que não tinha
lembrança de ter derramado uma única lágrima em toda a sua vida, chorava
de felicidade.
—Hoje é dia! — constatou Jade, quando a viu chorando. Primeiro,
Âmbar. Agora, você. O que está acontecendo?
— Eu compreendi — disse Opala entre dois soluços. — Eu
compreendi!
A menina interrompeu o choro e, com o rosto banhado em
lágrimas, e disse:
— Como conseguimos quebrar o Selo? Você se lembra? É porque
acreditamos. Tínhamos certeza de que conseguiríamos. E os rapinantes? Não
tínhamos nenhuma chance, mas eu acreditei que sairíamos ilesas dali... Eu
acreditei nisso. E o lago? Foi a mesma coisa! E será assim com a batalha, é
assim que venceremos! E evidente!
Jade olhou para Opala, preocupada:
—Opala, você não está em seu estado normal.
—Você não compreende!
—Não compreendo o quê? Que basta acreditar? Bom, se você fizer
muita questão...
—Não! — irritou-se Opala. — Isso é o Dom!
—Que história é essa, Opala?
— É o que nos permite acreditar. O que pode transformar qualquer
homem. Fazer de um assassino um Rei. Você não percebe?
— Não. O que eu percebo é que você não está nada bem.
Opala respirou profundamente antes de dizer, de um só fôlego:
— Nosso Dom... é a Esperança.
Uma descobrirá o Dom
Uma reconhecerá o Rei
Uma convencerá as outras a morrer.
31 Âmbar e Elyador permaneceram juntos a noite inteira. Falaram de
tudo e de nada, partilharam seus temores com relação ao futuro. O Eleito
arriscaria sua vida no campo de batalha, Âmbar arriscaria a sua em Thaar.
Prometeram se reencontrar quando tudo estivesse terminado. Orgulhosa, a
menina conteve as lágrimas.
Na manhã seguinte, Elforhys chamou Elyador para acompanhá-lo
à floresta. Os Ghibduls tinham dito que queriam se juntar à causa. Assim, o
Eleito foi forçado a abandonar Âmbar. Com o coração apertado, eles fizeram
de conta que nenhum dos dois corria perigo, e que em breve se reveriam.
Jade, Opala e Âmbar partiram à tarde. Thaar ficava muito longe, a
muitos dias de viagem, e era preciso que se apressassem. As meninas
retomaram caminho. Dessa vez, sabiam que o fim de sua aventura estava
perigosamente próximo. Opala contou a Âmbar sobre sua descoberta.
—Então, nosso Dom é a Esperança? — espantou-se Âmbar. — Que
coisa incrível. Como você conseguiu descobrir?
—Estava evidente. E você, como conseguiu saber quem era o
Eleito? Como adivinhou que era aquele rapaz?
Âmbar não respondeu. Jade dirigiu a elas um olhar dolorido.
Durante toda a noite, a frase da Profecia tinha assombrado seus sonhos:
Uma convencerá as outras a morrer. Âmbar tinha reconhecido o Rei. Opala
compreendera o Dom. E ela parecia evoluir dentro de um pesadelo.
Impossível, era impossível! Nunca conduziria Opala e Âmbar para a morte.
No entanto, até o momento, a Profecia tinha se revelado verdadeira.
Um silêncio embaraçado acompanhava as meninas. Opala e Âmbar
adivinhavam os pensamentos de Jade. Sem saber como ajudar, não
ousavam tocar no assunto. Sabiam que Jade jamais as conduziria à morte.
Mas, diante do silêncio delas, Jade suspeitava do contrário.
Cavalgaram através de planícies monótonas, parecidas com as do
Hornimel, mas pontuadas por aldeias e pequenas vilas que atravessaram
sem parar para descanso. Aquela região chamava-se Lioneral.
Uma tarde, Jade não agüentou mais e disse, de repente:
—Nunca trairei vocês. Acreditem no que quiserem, mas nunca...
—Nós sabemos disso — interrompeu Opala.
—Deve haver algum erro na Profecia — disse Âmbar com sua voz
tranqüilizadora. — Deve ser isso.
Jade explodiu em soluços.
— Não tem erro nenhum e vocês sabem muito bem disso. Ainda
assim, não posso nem imaginar... Enfim, eu nunca...
A menina calou-se, sacudida pelos soluços.
— Vamos desistir de ir a Thaar — disse Jade num repente. —
Prefiro ser odiada por todos do que ficar com essa frase martelando minha
cabeça: Uma convencerá as outras a morrer.
—Elyador vai arriscar a vida à frente da batalha — disse Âmbar,
suavemente. — Não tenho o direito de deixar de ir a Thaar. Seria como se eu
o abandonasse, como se eu o traísse. Se lutarmos, estaremos unidos no
mesmo combate contra o Conselho dos Doze, contra o exército das Trevas...
—Como é que é? — espantou-se Jade.
—Deixe para lá, Âmbar está apaixonada — interveio Opala. —
Mas ela tem razão. Depois de tudo o que passamos, não faz sentido desistir
tão perto do fim. Se precisam de nós para vencer o mal...
—Sim, mas pelo menos Elyador sabe o que deve fazer — objetou
Jade. — Ele vai combater, liderar seu exército. Mas, e nós? O que faremos
em Thaar?
—Você tem razão — concordou Âmbar. — Por mais simpática que
seja a Morte, eu preferia não ter que encontrá-la tão cedo. Ainda me restam
tantas coisas para fazer... Tenho muito medo de ir a Thaar. Mas vou assim
mesmo.
—Está bem — disse Jade, resignada. — Mas... se a Profecia for
verdadeira...
—Você não nos trairá — disse Opala. — Sabemos disso.
As meninas tiveram a sensação de que, se estivessem realmente
unidas, nada de mal lhes aconteceria. E talvez tivessem razão.
Atravessaram o Lioneral. Por toda parte, o exército da Luz reunia-
se, sob o comando dos mensageiros, e essa visão deixava-as mais seguras e
dava-lhes coragem para prosseguir.
Uma vez, Âmbar julgou perceber um vulto, como um cavaleiro
negro. Fechou os olhos, amedrontada. Quando os abriu novamente, o
homem tinha desaparecido. Contou o que tinha visto para Jade e Opala,
mas, como a sombra Não tornou a aparecer, esqueceram-se do assunto.
Na manhã do solstício do verão, depois de terem cavalgado a noite
inteira, as meninas chegaram a Thaar. Ao ver a cidade das Origens, elas
pararam, estupefatas. Imponente, a cidade erguia-se entre imensas
muralhas, que rodeavam edifícios ainda mais altos, com incontáveis janelas
que resplandeciam sob o pálido sol da manhã. As meninas jamais tinham
observado espetáculo parecido. Até aquele dia, jamais tinham visto um
edifício.
Avançaram na direção das muralhas, apearam dos cavalos e os
deixaram lá. O grupo de soldados que antes cercava a cidade — do qual
Adrien fazia parte — tinha abandonado o lugar para se juntar ao exército da
Luz. Percebendo que um dos portões, que se recortava na muralha, estava
entreaberto, as meninas esquivaram-se para dentro da cidade de Thaar,
tentando controlar a angústia.
Naquele mesmo momento, o exército da Luz atravessava o campo
magnético que cercava Conto de Fadas. Elyador à frente, com sua espada
cintilante, abriu seu estojo. Imediatamente, sentiu uma energia invisível
envolvê-lo e fortalecê-lo. Pensou em Âmbar. A seu lado, Gohral Keull e
Elforhys ficaram surpresos de vê-lo, repentinamente, mais majestoso do que
jamais tinha sido. Atrás do Eleito, o exército da Luz cobria todo o Hornimel,
tão longe quanto a vista podia alcançar, e até além. Os Ghibduls, seus
amigos Bumblinks, os curandeiros e feiticeiros da vila de Amnhor, os
camponeses de cabelos prateados, Owen d'Yrdhal, Adrien... Tanta gente
pronta para o combate. Um pouco atrás, vinham poderosos feiticeiros, entre
os quais encontrava-se Oonagh, prontos para recitar seus encantamentos.
Quando Elyador avançou, todos o seguiram com igual bravura.
Assim que o exército da Luz saiu de Conto de Fadas, encontrou-se diante do
terrível exército das Trevas, acompanhado de milhares de cavaleiros da
Ordem e comandados por uma dezena de tenebrosos encantadores. O mal
expandia-se dissimuladamente sobre suas faces. O número deles era tão
impressionante quanto o de seus adversários. Os dois exércitos encararam-
se um momento, antes de se atacarem ferozmente.
— Venceremos! — gritaram, numa só voz, Elyador e seus homens.
Um silêncio opressor reinava sobre a cidade das Origens. As três
meninas seguraram suas pedras e a angústia que as afligia cedeu
ligeiramente.
— Aconteça o que acontecer, nós venceremos — disse Jade.
Âmbar e Opala concordaram, invadidas pela Esperança. No
entanto, naquele exato momento, sentiram alguma coisa maligna invadir
seus espíritos. Sem que tivessem o menor controle sobre a própria vontade,
dirigiram-se a um edifício e entraram por um corredor fortemente iluminado.
Estavam totalmente conscientes de que o Conselho dos Doze havia se
apoderado de seus sentidos, mas não conseguiam resistir. Sem poder reagir,
subiram por uma escadaria interminável, até o último andar, onde
encontraram-se numa sala espaçosa, rodeada de janelas sem vidraças. Um
homem, com um cruel sorriso sobre os lábios, estava sentado numa poltrona
de couro. Vestia uma ampla túnica púrpura bordada de ouro e dele emanava
um terrível e absoluto poder.
— Bom dia. Sou o Décimo Terceiro membro do Conselho dos Doze.
Petrificadas de terror, as três meninas apertaram suas pedras com
toda a força.
— Vejo que estão assustadas, e também que se fazem perguntas...
Não sou um homem, é verdade, sou um espírito. O espírito dos doze
membros do Conselho reunidos.
As meninas não podiam reagir.
— Ah, como vocês foram ingênuas! Chegaram a Thaar com tanta
facilidade e nem desconfiaram de nada! O exército das Trevas segue seus
passos desde que vocês entraram em Conto de Fadas. Meus soldados
chegaram ao ponto de velar por sua segurança... E sabem para quê? Para
que chegassem até aqui. Sou o único capaz de aniquilá-las. Aliás, o esforço
valeu a pena. Vocês fizeram todo o trabalho em meu lugar.
Os dois exércitos confrontaram-se ferozmente. Os encantadores
das Trevas recitavam seus feitiços maléficos, que os encantadores da Luz
encarregavam-se de destruir. Combatentes enfrentavam-se em todos os
lugares. Gritos dilacerantes ecoavam por Lá Fora. Elyador batia-se com uma
força sobre-humana. Gorhal Keull e Elforhys estavam sempre a seu lado.
“Aposto que Âmbar e as duas outras duas meninas conseguiram
vencer o mal em Thaar — dizia para si mesmo o Eleito”. “Aqui, não sei se
conseguirei destruí-lo.”
O exército da Luz lutava com valentia, mas faltava treinamento a
seus combatentes e, pouco a pouco, eles iam perdendo terreno.
*
—Milhares de anos atrás, a violência e o ódio tomavam conta do
mundo — explicou o Décimo Terceiro membro do Conselho. — As criaturas
mágicas escondiam-se, amedrontadas, e os homens nem suspeitavam de
sua existência. Mas, um dia, elas resolveram ajudar os homens a resolver
seus conflitos e surgiram diante deles. Durante alguns séculos, a paz
prevaleceu. Diga-se de passagem, essa foi a época do nosso caro
Neophileus... No entanto, a baixeza da natureza humana recuperou o espaço
perdido e o mundo foi novamente tomado pela guerra. Foi nessa época que o
Conselho dos Doze foi eleito, com o objetivo de transformar o mundo em um
só país... Um país pacífico.
—Isso não é verdade — contestou Jade. — O Conselho dos Doze foi
instaurado numa época em que reinava a paz entre os homens e as
criaturas, com o único propósito de destruir a paz.
Foi isso o que Jean Losserand dissera às três meninas.
— Não — retrucou o Décimo Terceiro membro. — Não
estou tentando enganar vocês. Aliás, nem valeria a pena.
Fez uma pausa antes de prosseguir:
— Quando o Conselho dos Doze chegou ao poder, havia armas
demais, tecnologia demais para que a paz fosse possível. Para evitar as
guerras, pouco a pouco o mundo moderno foi sendo varrido do mapa. Tudo
regrediu. As cidades de antigamente desapareceram. Thaar é a única que
guarda lembrança de seu passado glorioso. Trêmulas, as meninas o
escutavam.
— O poder do Conselho dos Doze foi passado de pai para filho. A
despeito de todas as mudanças promovidas, ainda existiam revoltas, gente
que semeava a discórdia. Mas, pouco a pouco, o Conselho dos Doze foi
dominando o espírito do povo por telepatia e subtraindo sua liberdade, sem
que ninguém percebesse... Era tão melhor assim! A calma e a prosperidade
reinavam. No entanto, as criaturas mágicas também sabiam praticar a
telepatia. Perceberam o que estava acontecendo e rebelaram-se. E, as
sim, Conto de Fadas foi criado. Foi nosso único fracasso
em todos esses anos.
O Décimo Terceiro membro fez uma pausa.
— De geração em geração, o Conselho dos Doze assegurou seu
reinado. Por fim, sua força tornou-se cada vez mais incontestável. Com o
povo controlado pelo Conselho, o mundo antigo foi esquecido e deu lugar a
um modo de vida sem revoltas e sem guerras...
As meninas sentiram seu sangue gelar.
— Thaar é a única que permaneceu tal como era há milênios. Nós a
chamamos a cidade das Origens, mas já teve muitos nomes. Por muitos
séculos, quando os homens se julgavam sós sobre a terra, também era
chamada de Paris.
*
A batalha seguia seu ritmo furioso. A vista do sangue excitava o
exército das Trevas, ávido pelo mal, enquanto Elyador, coroado de amor,
encorajava o exército da Luz a continuar sua luta. Mas começavam a
fraquejar. Rios de sangue corriam pela terra, cadáveres mutilados
espalhavam-se pelo campo de batalha, centenas de feridos agonizavam,
padecendo de atrozes sofrimentos. O sangue corria de todas as partes, a
espada de Elyador estava vermelha, mas, ainda assim, continuava a cintilar.
O Eleito só pensava em Âmbar. Era a imagem dela que o encorajava a
continuar lutando.
De repente, um de seus adversários conseguiu desequilibrá-lo. O
Eleito caiu de seu cavalo e sua espada escapou-lhe. O medo deixou-o gelado.
Ergueu os olhos na direção do soldado que estava prestes a matá-lo a tempo
de vê-lo cair, trespassado por uma espada. Elyador recuperou sua arma e
agradeceu a seu salvador. Era um rapaz muito jovem, de cabelos castanhos,
olhos escuros e ar determinado. Chamava-se Adrien de Rivebel.
O Eleito tinha perdido Elforhys e Gorhal Keull de vista, e
continuou a combater ao lado de Adrien, que lutava com uma agilidade
surpreendente. Nenhum de seus adversários tinha conseguido feri-lo ainda.
No entanto, a vitória do exército das Trevas parecia inevitável. Seus
soldados, movidos pelo ódio e treinados para matar, atiravam-se contra os
adversários com selvageria, ao contrário dos numerosos camponeses e
burgueses do exército da Luz, que não sabiam lutar.
— Preciso rever Opala — dizia-se Adrien. — Não tenho o direito de
morrer.
Elyador estava no limite de suas forças. Mas não desistiria jamais.
*
—Então, vocês, as três pedras da Profecia, ousaram ameaçar a
supremacia do Conselho dos Doze! — prosseguiu o Décimo Terceiro membro.
— Por causa de vocês, e desse maldito Neophileus, a revolta germinou no
coração das pessoas, e muitos espíritos escaparam ao nosso controle... No
entanto, vocês não são nada! Eu poderia acabar com vocês agora mesmo.
Mas, primeiro, quero aproveitar melhor sua derrota.
— Você nunca nos vencerá! — exclamou Jade. — Nosso Dom, a
Esperança, é mais forte do que tudo.
O Décimo Terceiro membro teve um acesso de riso, que reverberou
pelo aposento.
— E mais forte do que o quê? — perguntou ele entre duas
gargalhadas.
Com um gesto, ele apontou para uma larga janela, de onde se
podia observar toda a batalha. As meninas deram um grito de horror. O chão
estava forrado com milhares de cadáveres. Os cavaleiros da Ordem e os
soldados das Trevas estavam vestidos de preto e cinza. Os do exército da Luz
traziam armaduras prateadas. Em meio a uma massa negra, formada por
milhares de combatentes das Trevas, os soldados da Luz não passavam de
uma pequena mancha clara, composta por poucas centenas de pessoas.
—O que é que vocês acham? — perguntou o Décimo Terceiro
membro com sua voz glacial. — Vocês não podem vencer o mal. Ele está em
toda parte: no coração de cada um, no ar, na vida.
—O bem também — replicou Âmbar.
Mas quando a menina olhou para o campo de batalha, seu coração
disparou. Será que Elyador ainda estaria vivo? O fim da batalha estava
muito claro agora: a Luz seria derrotada.
—Obrigado, meninas, muito obrigado — continuou o Décimo
Terceiro membro. — Sem vocês, o Eleito não teria sido reconhecido e essa
batalha não teria acontecido. Eu jamais teria conseguido acabar com todos
os meus inimigos de uma só vez. Foi muita gentileza de vocês reuni-los e
enviá-los para a morte. Matarei todos, não restará nenhum. Como é que
puderam imaginar que venceriam meus cavaleiros da Ordem e o exército das
Trevas? A partir de amanhã, e por toda a eternidade, o poder do Conselho
dos Doze será absoluto. Nenhuma ameaça voltará a nos fazer sombra.
Nunca mais.
As meninas olharam para o Décimo Terceiro membro
desesperadas. O que poderiam fazer?
Os soldados da Luz sabiam que estavam perdendo a guerra. Quase
não lutavam mais. Os encantadores das Trevas continuavam murmurando
seus sombrios feitiços, mas, graças aos esforços concentrados de Oonagh e
de outros feiticeiros, eles não faziam efeito. No entanto, apenas cerca de cem
valorosos hovalyns ainda lutavam com energia, acompanhados de uns
poucos guerreiros. Elyador, Elforhys, Gorhal Keull e Adrien eram os que
mais trabalho estavam dando para os soldados das Trevas. Para surpresa
geral, os Ghibduls revelaram-se ardorosos combatentes. Voavam a poucos
metros do chão, escolhiam um soldado das Trevas e caíam sobre ele com
suas garras afiadas, antes de voltar ao ar e escolher uma nova vítima. O
exercito das Trevas só havia conseguido ferir poucas dessas criaturas. Mas,
infelizmente, não havia Ghibduls suficientes para causar um estrago real
nas hostes inimigas.
O Eleito ainda combatia, mas já fraquejava. Sabia que não
agüentaria muito tempo. De repente, viu-se cercado por um numeroso grupo
de inimigos. Reunindo suas últimas forças, preparou-se para a luta.
—Então o Eleito é você? — riu uma das criaturas das Trevas. —
Parece que, antes, era um dos nossos, não?
—Antes de desertar — debochou outro soldado. — O exército da
Luz pegou justamente o mais covarde de nós para transformar em Rei.
—Um Rei, isso aqui? — perguntou um homem de ar cruel. —
Então, vamos matá-lo logo. Pelo menos, poderemos dizer que derramamos
sangue de um Rei. Aposto que não é muito diferente do nosso. Seja Rei ou
Eleito... vai morrer do mesmo jeito!
Vendo Elyador em perigo, os Ghibduls reuniram-se rapidamente e
voaram em seu socorro. Impiedosos, destroçaram os soldados que o
ameaçavam. Depois, um por um, pousaram em terra firme. Tinham decidido
combater a pé para poupar forças, mesmo sabendo que assim seriam mais
facilmente atingidos.
— E agora, o que vou fazer com vocês? — perguntou o
Décimo Terceiro membro. — Devo matá-las?
A criatura fez de conta que refletia sobre a questão antes de
prosseguir.
— Não. Tenho uma idéia melhor. Podem ir embora. As meninas
tiveram um sobressalto e trocaram um olhar espantado.
—Sim, podem partir — disse o Décimo Terceiro membro com um ar
vitorioso. — O que existe de pior do que uma Esperança derrotada? Vocês
não entenderam nada, guardaram seu Dom para si próprias. Quando o Mal
tiver triunfado, quando vocês afundarem na amargura, seu Dom
afundará junto com vocês. A Esperança se transformará em desesperança. A
simples visão de vocês provocará o desencorajamento. Todos as desprezarão
por terem fracassado. O desespero as seguirá por onde quer que vocês
forem... Até que a Morte as liberte.
Âmbar sentiu as lágrimas subirem a seus olhos. Mas Jade gritou:
— Você disse que não tínhamos entendido nada, que tínhamos
guardado nosso Dom só para nós... Isso quer dizer que bastaria oferecê-lo
aos outros para ganhar a guerra? Deveríamos ter-lhes dado a Esperança que
está em nós?
O Décimo Terceiro membro mal conteve a irritação. Em seu
entusiasmo, tinha falado demais. Mas, de todo modo, agora isso não
mudaria mais nada.
—É tarde demais para compreender — disse ele a Jade.
—Não acredito nisso — interveio Opala.
Como Jade e Âmbar, ela estava com sua pedra na mão. As
meninas dirigiram-se à janela sem vidraça, sem que o Décimo Terceiro
membro tentasse impedi-las. Quando as pedras ficaram devidamente
energizadas, apressaram-se em atirá-las ao campo de batalha. Tentaram
ignorar a dor. Mas logo perceberam que alguma coisa as impedia de lançá-
las. Sentiam uma espécie de ligação invisível entre as pedras e elas mesmas,
um laço que não podia ser rompido.
O riso lúgubre do Décimo Terceiro membro ressoou:
—Ainda não compreenderam? Suas pedras fazem parte de vocês.
Elas representam o seu Dom. Jamais poderão se separar delas. Estão
ligadas a elas como estão ligadas entre si. Se uma de vocês morrer, a
Esperança se extinguirá. Sabem como isso aconteceu com vocês? Desde a
noite dos tempos, sempre houve quem detivesse este poder que vocês agora
possuem. No começo, era frágil, mas à medida que o tempo foi passando, ele
foi se fortalecendo.
—Os rostos... Os rostos no lago do Passado... Então, eram as
pessoas que nos transmitiram o poder que temos hoje — pensou Jade.
—A cada geração, uma única pessoa detinha o Dom — prosseguiu
o Décimo Terceiro membro. — Dizem que essa pessoa tinha uma cicatriz em
forma de sol na palma da mão. E seu poder acabou atingindo a plenitude e
dividindo-se em três. A cicatriz transformou-se em pedra. Depois de tanto
tempo, a Esperança escolhia quem a carregaria, e essa pessoa estaria
encarregada de transmiti-la aos outros por toda a sua vida. Se essas pessoas
tivessem falhado em sua missão, se tivessem guardado a Esperança para si,
ela se extinguiria. Mas, à custa de grandes esforços, ela chegou até vocês. E
dizer que tudo isso não serviu para nada, porque vocês fracassaram! Seu
Dom só as abandonará quando morrerem, mas quem sabe no que vai
transformar-se agora... Com certeza, a Esperança se extinguirá. Ou,
transformada em desespero, se abaterá sobre o mundo. Nesse caso, vocês
me terão feito dois grandes favores: reuniram meus inimigos para que eu
pudesse acabar com eles tranqüilamente, e garantiram o reinado do Mal por
toda a eternidade.
Um sorriso cruel espalhou-se sobre o rosto da criatura.
—Agora, vão embora.
As meninas não disseram nada. Sabiam que tudo estava perdido,
mas não conseguiam admitir a derrota.
Então, apertaram suas pedras com mais força. Âmbar pensava em
Elyador, porque apenas a imagem dele poderia ajudá-la. Opala via a imagem
de Adrien desenhar-se à sua frente.
Jade, preocupada, escutava a voz de Oonagh, cada vez mais clara:
Uma convencerá as outras a morrer. E, pouco a pouco, compreendeu que
não teria escolha. Se obedecesse ao Décimo Terceiro membro e partisse, o
Mal triunfaria. Seu Dom se transformaria em desespero e, quando ela
morresse, provavelmente se espalharia pelo mundo. Era preciso dar a
Esperança, imediatamente, ao exército da Luz. Mas não podia se separar de
sua pedra. Só quando morresse...
Jade tentou desviar-se da verdade que começava a emergir de seus
pensamentos. Mas não conseguia. Respirou profundamente e depois
confessou a si mesma: se morresse agora, num sacrifício voluntário, talvez
seu Dom se derramasse sobre o exército da Luz e o Mal seria vencido. Mas
talvez também se extinguisse com ela. Como saber? E como aceitar morrer?
Não tinha o direito de partir sem fazer nada. O que seria de sua
vida? O Mal estaria em toda parte. Os raros sobreviventes da Luz a
detestariam e, deprimidos, não poderiam fomentar novas revoltas. Ela
carregaria o peso de seu fracasso pelo resto da vida. Se arrependeria de não
ter agido enquanto era tempo. Não podia partir covardemente. Seria bem
mais simples. Mas já sentia o remorso a espreitá-la.
Dirigiu um olhar resignado a Âmbar e Opala. Sozinha, não era
nada. Sua morte não serviria para grande coisa. Se tivessem que transmitir
seu Dom, teriam que fazer isto juntas. Mas isso Jade era incapaz de aceitar.
Jamais pediria a Opala e Âmbar para sacrificar suas vidas, mesmo que
estivesse prestes a sacrificar a sua.
Jade caminhou decididamente até a janela sem vidraça, ainda
segurando sua pedra. Um brilho estranho cintilava em seus olhos. Parecia
um soldado que fosse lutar sua última batalha, ou melhor, um encantador
da Luz diante de seu pior inimigo: o medo. E tinha tanto medo de pular, de
rever a Morte e de deixar a vida...
Embora sem compreender o motivo, Opala e Âmbar adivinharam
suas intenções e correram em sua direção.
O Décimo Terceiro membro não interveio. Tinha certeza de que
meninas de catorze anos não teriam coragem suficiente para se sacrificar.
Depois, isso não mudaria nada. Estava certo de ter ganho a batalha.
—Ganhou a batalha, mas não a guerra — murmurou Jade para as
duas outras.
—Você não está pensando em pular, está? — perguntou Âmbar em
voz baixa.
—Estou — respondeu Jade reprimindo um arrepio.
—Ontem, você disse que eu não estava no meu estado normal —
disse Opala. Mas agora, é você que não está bem.
—Centenas de pessoas viveram com o único objetivo de nos
transmitir o Dom — replicou Jade. — Milhares de outras aguardaram que
trouxéssemos a Esperança para vencer o Mal. Nossos pais foram
assassinados. O exército da Luz foi dizimado diante de nossos olhos. A
liberdade e felicidade vão desaparecer da face da Terra. Até agora, ainda
existia uma chance de que as coisas mudassem. Amanhã, não existirá mais.
Diante disso tudo, nós vamos ficar de braços cruzados?
—Não seja tão fatalista — disse Âmbar. — Nada disso é razão para
pular da janela.
—Você não entendeu nada — cochichou Jade. — A guerra não
acabou. Ainda não. Nós três estamos aqui, e tudo depende de nós. Ou
escutamos esse monstro e aceitamos a derrota, ou oferecemos nosso Dom
aos outros, à Luz. Se fizermos isso, eu garanto: a vitória é certa.
— Tudo isso é muito bonito — disse Opala no mesmo tom. — Mas
não podemos nos separar de nossas pedras!
Jade olhou pela janela.
— Eu sei — respondeu ela.
Opala e Âmbar seguiram seu olhar, horrorizadas.
—Você não está querendo dizer... — começou Âmbar.
—A única maneira de abandonar as pedras é morrendo —disse
Jade. — Então, talvez nosso Dom derrame-se sobre o campo de batalha.
Com um sorriso amargo — ela completou:
—Com isso, a Profecia se cumpre...
—Pelo menos, a Morte ficará contente de nos rever — ironizou
Opala.
Mas elas ainda não conseguiam decidir-se pelo sacrifício.
Elyador não tinha mais forças. No entanto, não podia aceitar a
idéia de baixar as armas. Seus pais o tinham amado e o amariam para
sempre. Âmbar o amava, ele a amava e o Amor o sustentava, dava-lhe forças
para continuar.
Subitamente, o céu escureceu. Todos os combatentes olharam
para cima. Imensos pássaros de plumagem cinzenta planavam sobre o
campo de batalha. Eram os rapinantes. Ao sentir as torrentes de medo que
emanavam do combate, correram para deleitar-se e acabar com os últimos
sobreviventes.
Âmbar e Opala deram um grito agudo quando viram os rapinantes.
Se Elyador e Adrien tivessem sobrevivido até aquele momento, certamente
sucumbiriam aos monstros.
Olharam para Jade. As três seguraram firmemente suas pedras.
Nunca tinham sentido tanto medo. Nunca tinham sido tão determinadas.
Esboçaram um sorriso crispado. Em seguida, sob o olhar incrédulo do
Décimo Terceiro membro, jogaram-se no vazio.
Então, as pedras desapareceram de suas mãos, o Dom
desprendeu-se delas. Uma luminosidade intensa as ofuscou. Sentiram-se
cair, cair...
A Esperança que tinham, enfim, dado aos outros, transformou-se
numa chuva de ouro que se derramou sobre o mundo, inundando o coração
de cada ser vivo. Tanto os soldados das Trevas quanto os da Luz pararam de
lutar e elevaram seus olhos em direção ao céu, deixando que seus rostos
fossem banhados pela felicidade.
As três meninas já se encontravam a poucos metros do solo, do
fim. Tinham se sacrificado, tinham perdido o Dom... E no entanto estavam
mais repletas de Esperança do que jamais tinham estado antes.
Subitamente, sentiram que poderosas garras penetravam sua
carne. Os rapinantes as tinham pego no ar. Mas não sentiam medo. Pelo
contrário, todas as suas angústias desapareceram e perceberam, aliviadas,
que estavam bem vivas. A chuva da Esperança tinha tingido de dourado a
plumagem dos pássaros e os tinha transformado. Jade, Opala e Âmbar
sentiram que eles não lhes fariam mal. Estavam apenas salvando suas
vidas.
Os pássaros planaram até o campo de batalha e ali depositaram
suavemente as três meninas, antes de alçar vôo novamente.
Jade, Opala e Âmbar não conseguiam compreender o que tinha
acontecido. Elyador, Adrien e Oonagh vinham em sua direção. Ao redor
deles, todos os adversários haviam parado de lutar e pareciam tomados por
uma repentina beatitude.
Opala e Âmbar estavam explodindo de felicidade. Correram para os
dois rapazes, emocionadas. Jade dirigiu-se a Oonagh.
—Conseguimos? — perguntou ela. — Vencemos o mal?
—Sim — respondeu a criatura mágica. — Vocês expulsaram o mal.
Mas, um dia, ele voltará. Não é possível exterminá-lo definitivamente.
—Mas então tudo o que fizemos não adiantou nada! — balbuciou
Jade.
—Graças a vocês, o mal foi afastado. Agora, a paz reinará durante
alguns séculos. Se continuarmos a lutar, a cada momento, contra o ódio, o
medo e a intolerância que habitam nossos próprios corações, talvez ele
jamais consiga voltar.
Jade estava quase chorando. Tinha acreditado ter varrido as
Trevas da face da Terra.
—E agora, o que vai acontecer?
—Lá Fora e Conto de Fadas serão unificados em um só país: o
Reino.
—E o Eleito será nosso Rei?
Ouvindo falarem seu nome, Elyador aproximou-se, seguido de
Âmbar.
—Não — disse ele com doçura. — Não quero ser rei. Não quero
governar.
—Dizem que, no começo, antes do surgimento do Décimo Terceiro
membro, o Conselho dos Doze queria realmente instaurar a paz — explicou
Jade. — Mas, pouco a pouco, os membros do Conselho, seduzidos pelo
poder, acabaram tirando a liberdade do povo. Não sei se isso é verdade,
mas...
—É verdade, sim — disse Oonagh. — E é precisamente por isso
que Elyador tem razão. Ele foi Rei durante a batalha e o será até a unificação
do Reino. Depois, dará a liberdade a todos aqueles que jamais a conheceram.
Não é preciso repetir o erro do Conselho dos Doze. O poder transforma os
homens. Elyador não será Rei.
—E eu? E Âmbar e Opala? O que será feito de nós? — perguntou
Jade.
—Vocês farão o que quiserem — disse Oonagh. — Agora, estão
livres para decidir o seu destino.
—Jade queria reencontrar seu pai, o duque de Divulyon.
De repente, uma pepita de ouro caiu aos pés de Elyador. Parecia
uma semente. Ele a mostrou a Âmbar e perguntou:
—Essa é a sua pedra?
—Não — respondeu a menina rindo. — Nossas pedras não existem
mais. Transformaram-se na chuva de ouro.
Opala e Adrien aproximaram-se.
—O que está acontecendo — perguntou Opala.
—Encontramos isso aqui — disse Adrien mostrando a semente de
ouro. Oonagh observou a pepita com um ar pensativo.
—Ponha-a dentro do seu estojo — disse ela a Elyador.
—O que é isso?
—Uma semente de Esperança — murmurou Oonagh.
Elyador seguiu suas recomendações.
— Agora, enterre o estojo — continuou Oonagh.
Cada vez mais intrigado, Elyador obedeceu.
Imediatamente, uma árvore começou a crescer. Seu tronco tinha a
cor da prata. Em poucos minutos, brotaram longos galhos, nos quais
balançavam-se cintilantes folhas de ouro.
— Graças a esta árvore, a lembrança do combate travado aqui
atravessará os séculos — explicou Oonagh. — Enquanto ela resplandecer, o
Reino estará em paz. Quando seu tronco ressecar e suas folhas caírem, as
Trevas estarão próximas. Hoje, o bem foi vencedor. Alegremo-nos.
Jade, Opala e Âmbar olharam a árvore da Esperança, que
resplandecia em sua aura de gotas douradas.
Paris, 2002 Acordei. Agora, sei que é o fim. A Morte virá me buscar. No
entanto, é preciso que eu viva. Para que meu sonho transforme-se em
realidade.
Olho, pela última vez, para minha mão direita. No centro da palma,
um pequeno sol exibe seus raios majestosos. A Esperança. Guardei-a só
para mim. Deixei que a doença me vencesse. Vou morrer, a Esperança se
extinguira. Fecho os olhos. E tão difícil partir.
Aí vem ela. Já escuto os passos da Morte. Seu hálito frio gela meu
rosto. Tenho vontade de chorar, mas não tenho lágrimas. Tenho vontade de
gritar, mas não tenho mais forças.
Gostaria de partir sem medo, sem arrependimentos. Impossível.
Estou sufocando. Tudo se desfaz ao meu redor. Só existe a Morte
em mim. Ela me estende a mão. Sinto-me muito mal...
As enfermeiras entram correndo no quarto, seguidas pelo Dr.
Arnon. — O que está acontecendo? — ele pergunta.
—É a menina órfã — responde uma das enfermeiras.
—Está muito mal.
O Dr. Arnon vai até o leito onde está deitada a doente. Seu corpo
descarnado é sacudido por espasmos, gemidos escapam de seus lábios
secos.
—É o fim — diz o médico gravemente.
Subitamente, um clarão de lucidez atravessa o espírito da
moribunda e ela grita:
— O telefone!
Em seguida, com a voz hesitante, murmura:
— Preciso... falar... com uma... pessoa.
O Dr. Arnon faz um sinal para as enfermeiras.
— É seu último pedido — cochichou ele. — Não podemos recusá-lo.
Não tenho o direito de morrer! Preciso transmitir a Esperança. E se
ainda não for tarde demais? A Morte está aqui, mas continuo a acreditar no
meu sonho, no impossível. Só me resta a Esperança. Deveria tê-la dado aos
outros. Não fiz isso. Mas por que não acreditar nela? Enquanto a Esperança
estiver em mim, será que a Morte pode me levar?
O médico e as enfermeiras saíram do quarto. A doente pegou
febrilmente o telefone e discou um número que sabia de cor. A mesma voz
que assombrava seus sonhos e pesadelos atendeu.
— Vou morrer — disse ela debilmente. — Eu perdôo você. Agora,
você escolhe. Ou me esquece ou... Você sabe o que precisa fazer.
— Joa? É você, Joa?
Mas a doente já tinha desligado.
Agora, está feito. Chamei Eli Ador, aquele que eu amava e que me
abandonou. Por que fugiu da primeira e última vez que veio me ver? Achei
que não tinha mais importância para ele. Mas talvez ele simplesmente
estivesse com medo. Medo de hospital, da Morte que ronda seus corredores,
daquilo que me tornei.
Agora, nada mais importa.
O Inomeado saiu das Trevas. O sangue que manchava suas mãos
não o impediu de transformá-lo no Eleito. Se as pessoas conseguiram
perdoá-lo, fazer dele um Rei... por que eu não perdoaria Eli?
Minha respiração está cada vez mais ofegante. Quase não ouço
mais os batimentos de meu coração. A Morte me espera, impaciente.
—Ela está muito fraca — disse a enfermeira. — Esses são
provavelmente seus últimos momentos.
—Mas não pode me impedir de entrar! — insistiu o rapaz. —
Preciso estar ao lado dela! É preciso que ela viva!
— Temo que seja tarde demais — replicou a enfermeira. Ela
observou o rapaz. Tinha os cabelos castanhos em desalinho, um olhar
desesperado.
—Você já veio vê-la alguma vez? — perguntou a enfermeira.
—Só uma vez — disse o rapaz com amargura. — Deixe-me vê-la —
implorou.
A enfermeira pensou um instante.
—Então vá. Mas seja breve.
Não sei se Eli virá. Mas olho para o sol na palma da minha mão e
acredito. Acredito no impossível, acredito no meu sonho. Acredito em
Elyador. Eu espero. Simplesmente.
A Morte está aqui perto. Pior para ela. Que me espere...
Eu vou viver. Porque é preciso. Porque eu quero. Porque sonhei.
Agora, prefiro viver, ainda que tudo dê no mesmo.
Meu sonho me devolveu a vida. Agora, eu tenho que devolver o
sonho à vida.