a pirata

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Artigo sobre o romance A Pirata, de Luísa Costa Gomes, publicado na Notícias Magazine a 22/10/2006.

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Até os piratas mais expe-rientes ficam, por vezes,desnorteados. Para nãoarriscar perder a batalha,

Grace O’Malley pegou nas armas ainda exaus-ta do trabalho de parto, um dia depois de terposto no mundo um rapaz, e deu o exemplo deresistência à sua tripulação. Descendente deum clã de homens do mar, a única filha de Du-dara O’Malley fintou durante anos o domínioinglês e controlou o tráfego na costa oeste daIrlanda, na segunda metade do século XVI.Dois séculos antes, Jeanne de Belleville, umabeldade da Bretanha, deu caça aos navios dorei de França, por motivos que hoje classifica-ríamos de «passionais». O marido, senhor deClisson, cavaleiro de Nantes, fora acusado deconjura e mandado decapitar por ordem real.Mas aquela a quem chamaram «a leoa sangui-nária» não era adepta da morte rápida e mise-ricordiosa, e na sua demanda cuidou de vin-gar-se com todos os requintes de crueldade.

O coração move montanhas e, às vezes,oceanos. Por amor a um marinheiro, Charlot-te de Berry trocou os vestidos por calças e em-barcou num navio da armada inglesa. Não vi-veu o suficiente para contar histórias aos ne-tos, mas teve tempo de gozar o seu quinhão doséculo XVII e a idade de ouro da pirataria, queabraçou por razões pouco esclarecidas. DoAtlântico para os mares da China, encontra-mos a senhora Cheng I Sao. Quando o maridomorre, em 1807, é ela quem assume o coman-do de milhares de malfeitores que aterrorizame saqueiam as localidades costeiras, subme-tendo-os a uma disciplina draconiana. Nãomuito longe dali, uma figura pequenina e ma-gra, de cabelos pretos e preferência por adere-ços de jade, fez também os seus estragos. Nosanos vinte do século passado, Loi Chai San era«a rainha dos piratas de Macau», assim a des-creveu um jornalista americano que relatouem livro as suas amizades em águas turvas.

A história da pirataria comporta os nomesde dezenas, talvez centenas de mulheres, ain-da que delas às vezes se saiba apenas isso: onome. A mesma margem de incerteza afecta

Feroz, trágica,excessiva:assim é a condição de pirata.¬Luísa Costa Gomes resolveu contar a história de MaryRead,uma inglesa que nunca se deve ter queixado de mo-notonia.¬ Foi soldado nos Países Baixos e flibusteiranas Antilhas.¬Apaixonou-se duas vezes,não teve tempopara mais.¬A sua vida rocambolesca conta-se neste livro:A Pirata.Para ler sem constrangimentos de classe… etária.

LIVRO

daRomancepirataTEXTO

Carla Maia de Almeida

A escritora Luísa Costa Gomes não gostaria que o seu livro A Pirata, sobre a vida de Mary Read [na página ao lado] «fosse catalogado como infantil,juvenil, infanto-juvenil ou… senil. Este romance é um divertimentopara todos».

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a pirataria em geral, dada a facilidade comque verdade e ficção se misturam. No casodas mulheres, acresce um outro factor, o dainvisibilidade social. Só há pouco tempo éque o sentido da revolta e da insubmissão fe-minina começou a ser interpretado, sendode supor a existência de mais mulheres pira-tas, muitas mais do que a história registou.Entre estas, encontram-se Mary Read e An-ne Bonny, que o acaso determinou cruza-rem-se no mesmo barco de John Rackam,um pirata não tão terrível quanto isso.

Um romance para todosOs resumos das suas vidas turbulentas sãonarrados na História Geral dos Piratas do ca-pitão Johnson (ou, para sermos mais rigo-rosos: História Geral dos Roubos e Assassíniosdos Mais Notáveis Piratas). Lá estão Bartho-lomew Roberts, William Kidd, GeorgeLowther, John Rackam, Edward Teach emais uns quantos párias do mar «com quemnão se deve manter nem fé nem juramen-tos». Publicada pela primeira vez em Ingla-terra, em 1724, três ou quatro anos depoisda morte de Mary Read, a obra foi durantemuito tempo atribuída a Daniel Deföe, omesmo de Robinson Crusoe, até que essa hi-pótese se substituiu por outra: talvez o ditocapitão Charles Johnson fosse também eleum pirata, tentado a contar as suas expe-

riências sob pseudónimo. O mistério per-manece, como diria o próprio.

Luísa Costa Gomes pensou traduzir o li-vro de capa preta que a Cavalo de Ferro lan-çou o ano passado, mas acabou por não o fa-zer. Em vez disso, descobriu Mary Read, dequem se propôs reescrever a história, crian-do a biografia romanceada que saiu agorapela Dom Quixote. Surge imediatamente àmemória um título seu de 1991, Vida de Ra-món, sobre o filósofo e místico do sécu-lo XIII, Ramón Llull, mas as semelhançasocorrem apenas «do ponto de vista da in-vestigação», já que A Pirata troca a preocu-pação obsessiva com os pormenores histó-ricos por uma escrita «mais solta», capaz deestabelecer «uma relação mais directa ecúmplice com o leitor». O humor, umas ve-zes picaresco, outras irónico, é um elemen-to estruturante de toda a narrativa.

«É um romance humorístico e nitida-mente um romance de aventuras», comoexplicou à nm a escritora, que muitas vezestomou o modelo de A Ilha do Tesouro. Criti-cando a falta de «uma tradução decente» pa-ra o clássico de Robert Louis Stevenson, Luí-sa Costa Gomes aponta o exemplo de um ro-mance que é «uma leitura extraordináriapara todos». Por isso, manteve também foradas suas apreensões a miragem de um leitorpredestinado: «Não quereria que [A Pirata]

fosse catalogado como infantil, juvenil, in-fanto-juvenil ou… senil. Penso que é uma dasperversidades magnas da indústria livreiracontemporânea, a compartimentação dosleitores dos dez anos aos dez anos, quatromeses, uma semana e três dias e dos seteanos aos sete anos e oito meses! É uma for-ma de menorizar as pessoas. Este romanceé um divertimento para todos.»

Como Mary se tornou MarkEstamos na Inglaterra dos finais do sécu-lo XVII, «em mil seiscentos e muitos», e co-meçamos a perceber a situação logo à pri-meira frase: «A mãe da Mary Read tinhaum problema, que era gostar imenso de ra-pazes.» É o prenúncio de que a heroína dolivro não vai viver uma existência pacata acosturar saias e saiotes. Pelo contrário.Ainda muito nova, Jenny, a mãe da Mary,torna-se «viúva» de um desaparecido; omarido é um dos muitos marinheiros em-barcados de quem nada mais se sabe. Ma-ry nasce fora do casamento e, desde cedo,a mãe decide vesti-la com roupas de rapaz,precisamente do primeiro filho, que mor-re ainda bebé. Seja uma «transferência»,como se diz agora, ou apenas uma manei-ra de poupar no orçamento, a moda pega.E assim Mary Read se torna no seu irmão,Mark Read.

Mary Read e Anne Bonny, duas mulheres que se fizeram passar por homens, e piratas. E cujas vidas secruzaram no navio de Jack Rackam. Há quem diga que foram amantes e as tenha «elevado» a ícones lésbicos.

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O problema inicial de Jenny (gostarimenso de rapazes) não é nada, se compara-do com o problema de não ter dinheiro parasustentar a filha. Ser viúva e mãe solteira nãoé um estatuto favorecido, muito menos pelaépoca. Como a necessidade aguça o enge-nho, resolve pegar em Mary/Mark e levá-laa conhecer a avó, mãe do seu (presume-se)defunto marido, na expectativa de que estaa ajude a criar o «neto». A estratégia resulta,mas o providencial subsídio familiar é inter-rompido com a morte da velhota e a situaçãoagrava-se novamente. Mary emprega-se co-mo lacaio na casa de uma dama francesa,tem então 13 anos.

Era «alta e forte», tinha «as pernas com-pridas, as mãos fortes»; e as roupas de rapazcontribuíam para cultivar uma certa agili-dade, também no plano mental. Se a huma-nidade se divide entre «as pessoas que gos-tam de ver ao pé e as pessoas que gostam dever ao longe», como Mary vai um dia con-cluir, sem dúvida que ela pertence ao segun-do grupo. Não demora muito até deixar a se-nhora francesa e a embarcar como grumetenum galeão, dando provas de – agora a pala-vra ao capitão Johnson – uma «personalida-de ousada e forte, e de mentalidade errantee inquieta». Vai ser assim durante toda a vi-da, que não durará, segundo as contas deLuísa Costa Gomes, «uns trinta anos».

Como Mary começou a aproximar-se dapirataria, depois de se ter destacado como

capacidade de disciplina, no gosto pela vidaregrada e normal, nos louvores que recebeucomo soldado de Cavalaria...»

De resto, a ambiguidade assenta-lhe lin-damente, também como personagem lite-rária – ao contrário de Anne Bonny, a aman-te de Calico Jack, que também passou a in-fância vestida de rapaz para manter asaparências. Entre as duas, justifica-se a op-ção da escritora: «A Anne Bonny é uma per-sonagem um bocado óbvia. Acho-a umaadolescente rebelde, que é sempre uma coi-sa um bocado cansativa. Era uma menina ri-ca e muito mimada pelo pai, que por ela –sua filha única, mas ilegítima – fugiu de In-glaterra e comprou uma plantação na Caro-lina do Sul. Depois fez uma data de malfeito-rias, era uma exaltada, dizem que por ser ir-landesa... No meu livro, não há realmentepaciência para a Anne... A Mary, ao contrá-rio, era uma criminosa que sabia muito bemo que andava a fazer, pois que tinha uma só-lida consciência moral.»

De piratas a ícones lésbicosHá outra nuance nesta história. A par deusarem roupas de homem e de serem pira-tas, Mary Read e Anne Bonny têm sido re-feridas como amantes, o que representariao cúmulo da transgressão. «Os estudos fe-ministas e sobretudo os Gay and LesbianStudiesamericanos transformaram-nas emícones lésbicos, mas a única evidência éque viveram ambas na tripulação de JackRackam», afirma Luísa Costa Gomes. Ape-sar de suspeitar que Anne Bonny «avanças-se sobre tudo e sobre todos», a autora de-marcou-se das intenções programáticas ecingiu-se aos factos.

«Penso que ambas teriam o que hoje sechamaria issues [questões] no campo daidentidade sexual, mas como naquele tem-po não havia issues, cada qual se amanhavacomo podia.»

Quanto à opção por roupas de homem – apartir de certo ponto, voluntária –, seriauma forma de desafiarem as convenções so-ciais da época? Nos séculos XVII e XVIII, a es-tratégia não é de todo invulgar: «Ir à guerracomo os homens; revoltar-se, fazendo-sepassar por homem: o “travestimento” é umadas formas habituais da revolta popular», lê--se na História da Mulheres, de Georges Du-by e Michelle Perrot.

A conclusão à autora de A Pirata: «Não seise haveria um desafio consciente. Anne de-safiou o pai que não a queria casada com ummarinheiro, e Mary, que começou por ser defacto vítima de circunstâncias, elevou-semuito acima do seu estatuto de vítima e tor-nou-se até bastante feroz. Diria que usou eabusou das liberdades do mundo masculino.A certa altura, escolheu lucidamente umavida criminosa e aceitou as suas consequên-cias, até com bastante panache.» E isso, caroleitor, é próprio de quem tem tudo no sítio.«

soldado nos Países Baixos, combatido embatalhas horríveis, apaixonado por outrosoldado, saído do exército, casado na cidadede Breda e governado com o marido a esta-lagem As Três Ferraduras (e, pelo meio, ain-da ter aprendido a usar toucas holandesas,sempre muito brancas e engomadas), é algoque tem de ser aqui resumido. Digamos queteve um grande desgosto e ficou sem sabero que fazer, acontece muito. «É justamentepara estas pessoas que estão numa fase emque não sabem o que querem que se criou oexército. E Mary alistou-se num momento edepois arrependeu-se, mas aí já era tarde.»Fim de capítulo.

Mudar de vida nas CaraíbasAlto, magro, olhos pretos, bem vestido, po-se de dandy e maneiras de bon vivant, dezmulheres em cada porto e a tentação da in-dolência: o retrato que Luísa Costa Gomesfaz do pirata John Rackam está mais pertode Jack Sparrow/Johnny Depp do que des-se Rackam, o Terrível que conhecemos doslivros do Tintim. Na economia paralela dapirataria, John Rackam, ou Calico Jack, sepreferirem, é uma espécie de PMP, um pe-queno e médio pirata; isto é, prefere a ma-nutenção do estatuto adquirido ao risco dasgrandes investidas. A escritora assume a pa-ródia: «Os meus piratas são de opereta, sãoum bando de bêbedos ignorantes, uma gen-te primária e irresponsável... Vão na onda.Os piratas a sério, como ainda os há nos ma-res, não têm graça nenhuma. O que redimeos meus piratas, se há alguma coisa, é o seulado adolescente da procura do prazer semconsequências, a arrogância de se julgareminvencíveis e um certo cavalheirismo des-locado... Uma espécie de mascarada perma-nente, como num espelho perverso do na-vio normal.»

E é neste cortejo extravagante, ao sol dasCaraíbas, sempre a meio caminho entre afesta e a ressaca, que Mary Read vai cair. Semque se perceba muito bem porquê, torna-seuma flibusteira, uma pirata das Antilhas.Mas Mary é maior do que as suas circunstân-cias, chamá-la de «vítima» é quase um insul-to. Desde o princípio, move-a um sentidoimanente de busca, conciliado com o domde manter o equilíbrio entre ambiguidades.Treino de parecer homem em corpo de mu-lher, talvez.

«Mais do que ambígua, foi hipócrita»,afirma a autora, que aqui e ali vai dando(bons) conselhos à sua heroína, sem suces-so. «Queixava-se de ter sido raptada, justifi-cava assim uma vida de pilhagem que terádurado quase dois anos, com pelo menosuma amnistia desperdiçada. O que achei cu-rioso nela, e aparece no livro, é que enquan-to a sua vida se lê como uma fuga para a fren-te, de vitória em vitória até à derrota final,uma vertigem para o abismo, a sua naturezanão seria assim tão aventurosa. Isso vê-se na

A ilustração da capa de A Pirata, ed. Dom Quixote,é um óleo sobre madeira da autoria da artista norte-americana Sally Baker.