a organizaÇÃo curricular de matemÁtica no ensino ... · ensino fundamental e médio, da rede...

12
A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DE MATEMÁTICA NO ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: INTERROGAÇÕES E RETICÊNCIAS Elaine Sampaio Araujo- FFCLRP/USP Ingrid Thais Catanante- FFCLRP/USP Stefanie Lello Wilkins- FFCLRP/USP Resumo Este texto busca apresentar questões relativas à organização do ensino de matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que vem sendo discutidas em uma pesquisa no âmbito do Projeto Observatório da Educação/CAPES. Neste trabalho nosso olhar voltar-se-á, particularmente para duas perspectivas sobre a organização do ensino de matemática: no contexto da ampliação do ensino fundamental para nove anos e na relação com as avaliações externas. Para isso, buscamos analisar como a inserção do Brasil, no cenário das avaliações externas de grande escala - a destacar o PISA, e em âmbito nacional, a Provinha Brasil , pode afetar a organização curricular dos anos iniciais do Ensino Fundamental (EF). A ampliação do EF para nove anos é outro fator que se encontra diretamente relacionado com este proceso. Considerando as especificidades do processo de ensino e aprendizagem para crianças pequenas, quando pensamos em avaliação, reforçam-se as algumas das já conhecidas indagações no ambiente escolar: O que ensinar? Como reorganizar o currículo, de forma que não seja a antiga primeira série para as crianças de sete anos, nem a pré-escola, que, até então, era quem deveria atender as crianças de seis anos? Ao mesmo tempo em que os documentos oficiais, relativos ao ensino de 9 anos, defendem uma nova organização curricular, que considere as peculiaridades da infância nas diferentes áreas do conhecimento, tal defesa não se materializa em documentos que, de fato, subsidiam a elaboração de um novo currículo, muito menos nos instrumentos de avaliação da aprendizagem. Desta forma, fica evidente a necessidade de repensar metodologias e práticas que se mostram deficitárias e pouco têm contribuído para crianças maiores, quanto mais para as crianças menores, bem como a emergência, no âmbito escolar, na produção de projetos político-pedagógicos que neguem a regulação e gerenciamento dos currículos a partir das avaliações externas. Palavras-chave: Ensino Fundamental de 9 anos; avaliações externas; matemática; organização curricular. XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002059

Upload: nguyenliem

Post on 04-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

A ORGANIZAÇÃO CURRICULAR DE MATEMÁTICA NO ENSINO

FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: INTERROGAÇÕES E RETICÊNCIAS

Elaine Sampaio Araujo- FFCLRP/USP

Ingrid Thais Catanante- FFCLRP/USP

Stefanie Lello Wilkins- FFCLRP/USP

Resumo

Este texto busca apresentar questões relativas à organização do ensino de

matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que vem sendo discutidas em uma

pesquisa no âmbito do Projeto Observatório da Educação/CAPES. Neste trabalho nosso

olhar voltar-se-á, particularmente para duas perspectivas sobre a organização do ensino

de matemática: no contexto da ampliação do ensino fundamental para nove anos e na

relação com as avaliações externas. Para isso, buscamos analisar como a inserção do

Brasil, no cenário das avaliações externas de grande escala - a destacar o PISA, e em

âmbito nacional, a Provinha Brasil –, pode afetar a organização curricular dos anos

iniciais do Ensino Fundamental (EF). A ampliação do EF para nove anos é outro fator

que se encontra diretamente relacionado com este proceso. Considerando as

especificidades do processo de ensino e aprendizagem para crianças pequenas, quando

pensamos em avaliação, reforçam-se as algumas das já conhecidas indagações no

ambiente escolar: O que ensinar? Como reorganizar o currículo, de forma que não seja

a antiga primeira série para as crianças de sete anos, nem a pré-escola, que, até então,

era quem deveria atender as crianças de seis anos? Ao mesmo tempo em que os

documentos oficiais, relativos ao ensino de 9 anos, defendem uma nova organização

curricular, que considere as peculiaridades da infância nas diferentes áreas do

conhecimento, tal defesa não se materializa em documentos que, de fato, subsidiam a

elaboração de um novo currículo, muito menos nos instrumentos de avaliação da

aprendizagem. Desta forma, fica evidente a necessidade de repensar metodologias e

práticas que se mostram deficitárias e pouco têm contribuído para crianças maiores,

quanto mais para as crianças menores, bem como a emergência, no âmbito escolar, na

produção de projetos político-pedagógicos que neguem a regulação e gerenciamento dos

currículos a partir das avaliações externas.

Palavras-chave: Ensino Fundamental de 9 anos; avaliações externas; matemática;

organização curricular.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002059

2

Questões primeiras

Este texto busca apresentar questões relativas à organização do ensino de

matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que vem sendo discutidas em uma

pesquisa no âmbito do Projeto Observatório da Educação/CAPES, cujo objetivo

principal é investigar as relações entre o desempenho escolar dos alunos, representado

pelos dados do INEP e a organização curricular de matemática nos Anos Iniciais de

Ensino Fundamental (EF). Neste trabalho nosso olhar voltar-se-á, particularmente para

duas perspectivas sobre a organização do ensino de matemática: no contexto da

ampliação do ensino fundamental para nove anos e na relação com as avaliações

externas.

Considerando as especificidades do processo de ensino e aprendizagem para

crianças pequenas, reforçam-se as algumas das já conhecidas indagações no ambiente

escolar, voltadas agora para os novos sujeitos que frequentam o Ensino Fundamental de

nove anos: o que ensinar? Como reorganizar o currículo, de forma que não seja a antiga

primeira série para as crianças de sete anos, nem a pré-escola, que, até então, era quem

deveria atender as crianças de seis anos?

Com vistas ao ensino da matemática, o cenário também gera incertezas.

Questões se apresentam. Em relação ao currículo poderíamos, entre tantas, interrogar:

quais são as implicações da ampliação do Ensino Fundamental na organização do

currículo de matemática? Há clareza dos conteúdos a serem trabalhados no ensino de

matemática com a entrada de crianças de seis anos no Ensino Fundamental? E em

relação aos instrumentos de avaliação, as avaliações externas têm regulado o currículo?

Qual o sentido dessas avaliações, particularmente nos anos iniciais? E, nesse sentido,

quais os impactos que podem ser previstos em relação ao instrumento “Provinha Brasil”

na versão sobre conhecimento matemático? Quais relações, de similitudes e diferenças,

podem ser estabelecidas entre o primeiro instrumento de avaliação externo com o qual

nossa criança se depara, comumente com seis ou sete anos de idade, a Provinha Brasil,

realizada no segundo ano do Ensino Fundamental das escolas públicas brasileiras e a

avaliação realizada pelo PISA (Programa Internacional de Avaliação dos Alunos),

dirigida a estudantes com idade de quinze anos? O que está sendo avaliado em cada

situação?

Assim, o objetivo deste texto é explicitar as indagações que têm orientado a

pesquisa envolvendo os princípios e as práticas da organização do ensino de matemática

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002060

3

nos anos iniciais do EF e os caminhos que temos percorrido para respondê-las. Trata-se

de um percurso no qual não apenas interrogações se fazem presentes. Exclamações,

vírgulas, reticências também marcam o trajeto. A intenção não é acrescentar um ponto

final, mas contribuir com algumas pontuações. Uma delas refere-se à compreensão de

que a aprendizagem, em situação escolar passa, necessariamente, pelo ensino. Isso

significa que a discussão sobre a aprendizagem das crianças não pode ser feita senão em

sua inter-relação com o ensino, que se objetiva na organização curricular. A outra

pontuação diz respeito ao fato de entendermos que a organização do ensino de

matemática deve ser feita na dimensão horizontal do percurso escolar do estudante,

abrangendo a Educação Básica em sua totalidade, desde a Educação Infantil até o

Ensino Médio. Ou seja, não é possível olhar a organização do ensino de matemática em

um determinado momento do sistema de ensino, no caso os anos iniciais do EF, sem

considerá-la em relação ao que antecede e ao que precede. Daí a razão pela qual neste

texto procuraremos em um primeiro momento contextualizar o PISA em relação aos

programas de avaliação externa de âmbito nacional, e em seguida tratar de um contexto

específico, o da ampliação do EF para nove anos e, por fim, buscamos traçar, ainda que

brevemente, a relação entre avaliação, aprendizagem e organização do ensino.

Do fim para o começo ou do começo para o fim

Em agosto de 2011 a agência de avaliação de risco financeiro Standard and

Poor´s (S&P) rebaixa a nota atribuída à qualificação do crédito da maior economia do

mundo, a dos Estados Unidos, de nota máxima AAA para AA+. Palavras de ordem

como “eficácia”, “estabilidade” e “previsibilidade” serviram como descritores do

enfraquecimento de instituições políticas estadunidenses e o consequente rebaixamento

na avaliação de risco financeiro. O ranking do sistema financeiro mostrava sua face

cruel a então sólida economia americana. Colocava a desnudo a crescente dívida e o

déficit de orçamento não apenas dos Estados Unidos, mas de outros países europeus. O

World Economic Forum (WEF), com a autoridade que lhe foi atribuída pelas maiores

economias do planeta, decreta a existência da crise financeira mundial, que pode ser

caracterizada por letras e sinais.

Como a discussão sobre a crise econômica que assola a economia global,

relaciona-se com as discussões sobre a organização do conhecimento matemático nos

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002061

4

anos iniciais do EF? Não se trata com certeza da linguagem algébrica, nem pela

evidência de que tudo pode ser medido, tudo pode ser ranqueado. Relaciona-se,

outrossim, com a questão dos princípios que conduzem a avaliação, seja dos sistemas

financeiros, seja dos estudantes. Em ambos os casos a avaliação justifica-se como

indicador para o reordenamento de ações. Eficácia, estabilidade e previsibilidade no

campo econômico equivalem à competência e habilidade no campo educacional.

Assim, não é por acaso que o PISA, Programa Internacional de Avaliação de

Estudantes, foi criado em finais do milênio passado e sob a égide da OCDE

(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ele tem por objetivo

estabelecer um ranking mundial da educação e, atualmente, congrega mais de sessenta

países de todos os continentes. Estão inclusos os países considerados economicamente

mais “avançados”, países considerados “emergentes”, como o México, Chile e Turquia,

os “gigantes emergentes” como Brasil, Rússia, Índia China (BRIC) e países em

desenvolvimento da África, Ásia, América Latina e Caribe.

No Brasil a instituição responsável atualmente pela implementação do PISA é o

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP,

responsável também pela organização e manutenção do sistema de informações e

estatísticas educacionais, bem como pelo desenvolvimento de programas de avaliação

educacional.

De acordo com o Projeto Básico PISA (2012), em documento apresentado pelo

INEP, o programa objetiva “produzir indicadores de desempenho estudantil voltados

para as políticas educacionais, fornecendo orientações, incentivos e instrumentos para

melhorar a efetividade da educação, além de possibilitar a comparação internacional”.

Trata-se de uma avaliação trienal, cujo slogan determina “melhores políticas para

melhores vidas”. É uma avaliação por amostragem envolvendo alunos com 15 anos, do

ensino fundamental e médio, da rede pública e privada, de escolas urbanas e rurais.

Estima-se avaliar, então, o desempenho dos alunos no fim do segundo ciclo do Ensino

Fundamental e/ou anos iniciais do Ensino Médio.

A participação do Brasil nessa avaliação tem ocorrido desde o seu primeiro ano

de aplicação, no ano 2000, e nos anos subsequentes (2003; 2006; 2009). No período de

2000 a 2009 foram avaliados cerca de 21.000 alunos brasileiros e 400.000 no cenário

mundial. A cada ano que há a aplicação do PISA uma das disciplinas avaliadas é

privilegiada, isso significa que o aluno fará mais questões dessa disciplina e também

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002062

5

terá mais tempo para resolvê-la. No ano de 2003 enfocou-se a disciplina de matemática,

ou seja, o aluno resolveu 80 questões dessa disciplina, 30 questões referentes à Leitura e

30 da disciplina de Ciências. Seguindo o ciclo das disciplinas enfocadas pelo PISA, o

ano de 2012 terá como privilégio novamente a disciplina de Matemática. Em 2003 o

Brasil ocupou o último lugar no ranking, com a média de 356. Nos anos seguintes, o

país melhorou sua média e foi considerado pelos documentos técnicos da OCDE como

um “gigante emergente”, alcançando em 2006 a média de 370 e em 2009, 386. Vale

lembrar, porém, que nas duas últimas edições da prova a área de matemática não foi a

de maior ênfase. Assim, com os resultados do ano de 2012 poderemos ter uma

comparação mais adequada sobre o desempenho dos estudantes nessa disciplina.

De qualquer modo, o desempenho apresentado pelos estudantes brasileiros no

PISA demonstra algo que infelizmente não pode ser considerado uma novidade: “vamos

mal em matemática”. Não é preciso nenhum instrumento de avaliação externo para

indicar que não sabemos operações matemáticas elementares, como o algoritmo da

divisão, por exemplo, cuja ideia central é a de que “o todo deve ser de todos de forma

igual”. Essa é uma lição que ainda não aprendemos e a desigualdade social evidencia tal

realidade todos os dias, escancarada pelos rankings mundiais: em 2011 o Brasil ocupou

o 6º lugar na economia mundial, superando inclusive o PIB da Inglaterra; 84º em IDH e

88º em educação.

A inserção do Brasil no cenário das avaliações externas de grande escala teve

início da década de 90 com a criação do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação

Básica). As reformas educacionais que foram realizadas desde então estiveram

orientadas sempre na direção do mercado e da competitividade internacional,

sustentadas na estratégia de “desenvolvimento da competitividade para integração da

economia brasileira à globalização econômica” (FIGUEIREDO, 2009, p. 03). No caso

do SAEB, desde sua criação os governos federais que se sucederam o mantiveram,

realizando algumas alterações. No ano de 2005 a Portaria Ministerial nº 931 alterou a

sua estrutura que passou a ser composta por duas avaliações complementares: Avaliação

Nacional da Educação Básica (ANEB) e Avaliação Nacional do Rendimento Escolar

(ANRESC), conhecida como Prova Brasil. Entretanto, o caráter de mensuração do

SAEB não foi alterado, segundo Frigotto e Ciavatta:

Trata-se de uma avaliação que não avalia as condições de produção

dos processos de ensino e que não envolve diretamente o corpo

docente, portanto não é avaliação e sim uma mensuração simples. A

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002063

6

forma de divulgação e o uso desta “medida” como avaliação punitiva pelo Ministério da Educação ou a sua utilização seletiva como critério

de acesso ao nível superior e ao emprego ampliam as suas

deformações. Ressaltamos que não se trata de negar o direto e o dever

do Estado de avaliar, o que está em questão é o método, o conteúdo e a forma autoritários e impositivos de sua implementação (2003,

p.117).

Acrescentaríamos às críticas dos autores a questão de que tais instrumentos têm

servido de regulação das propostas curriculares. E é nessa esteira, de um projeto

econômico para a educação (dado o pouco espaço que dispomos a política do Banco

Mundial para a Educação, embora pertinente ao tema, não será aqui discutida), que

podemos situar a Provinha Brasil. O quadro 1 - Características da Provinha Brasil -

Anexo 1) apresenta uma síntese de sua estrutura.

A matriz de referência é composta por competências e habilidades e os eixos na

área de matemática são: Números e operações; Geometria; Grandezas e medidas e

Tratamento da informação. A matriz de referência, segundo declarado pelo INEP, no

item perguntas frequentes, (http://provinhabrasil.inep.gov.br/provinha-brasil),

configura-se como:

(...) uma referência para a construção do teste, sendo diferente de uma proposta curricular ou programa de ensino, que são mais amplos e

complexos. Desta forma, direcionar as práticas de alfabetização,

para que os alunos obtenham bons desempenhos na Provinha,

constitui um reducionismo pedagógico que deve ser evitado. A matriz da Provinha Brasil pode servir como referência, mas de forma alguma

deve substituir o currículo da escola em relação à alfabetização.

(grifos nossos)

Tal afirmação causa certa estranheza ao analisarmos a proximidade entre tal

matriz e os eixos presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais e, sobretudo, o limite

entre servir de referência para o currículo e substituí-lo. Será que tal reducionismo

previsto pelos próprios idealizadores do instrumento pode mesmo ser evitado? Tal

matriz de referência considerou o Ensino Fundamental de 9 anos?

Somadas a essas indagações, outras diretamente vinculadas surgem em relação à

concepção de ensino e aprendizagem: como a criança aprende? Quem é a criança dos

anos iniciais? O que ela tem aprendido? Quais são os objetivos de se ensinar

determinados conteúdos matemáticos? Quais são as diretrizes e orientações presentes

nos documentos oficiais para o ensino de matemática nos anos iniciais do EF?

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002064

7

Na tentativa de dialogar com algumas destas questões, o Ministério da Educação

por meio da Secretaria de Educação Básica (SEB) e do Departamento de Políticas da

Educação Infantil e do Ensino Fundamental (DEP), elaborou algumas publicações e

documentos sobre o ensino de nove anos. Um primeiro olhar sobre eles nos traz

algumas revelações.

Segundo o documento “Ensino Fundamental de nove anos - Orientações gerais”

(MEC, 2004) – publicação que se constitui como um referencial para as questões

pedagógicas e administrativas no que se refere à inclusão das crianças de seis anos de

idade no Ensino Fundamental – a ampliação desta etapa do ensino para nove anos “leva

necessariamente a repensá-lo no seu conjunto. Assim, esta é uma oportunidade preciosa

para uma nova práxis dos educadores, sendo primordial que ela aborde os saberes e seus

tempos, bem como os métodos de trabalho” (2004, p.18).

Desta forma, fica evidente a necessidade de repensar metodologias e práticas

que, como já afirmamos, se mostram deficitárias e pouco têm contribuído para a

aprendizagem das crianças maiores, quanto mais para as crianças menores. Assim,

parece ser um bom momento para uma nova organização do ensino de nove anos, de

forma que atenda as peculiaridades das crianças menores que ingressam agora nesta

etapa educacional, mas não só delas.

Ao olhar esse cenário indicamos outro ponto de interrogação que se instala em

nosso trabalho: quais ações são possíveis de se depreender dos dados apresentados pelas

avaliações da escola pública brasileira, em especial os da Provinha Brasil, que avalia os

alunos nos anos iniciais do EF? De acordo com o site do INEP, resumidamente,

algumas ações podem ser pretendidas a partir dos objetivos da Provinha Brasil e com

vistas à melhora na qualidade da educação, a saber: o estabelecimento de metas

pedagógicas para a rede de ensino; o planejamento de cursos de formação continuada

para os professores; investimento em medidas que garantam melhor aprendizado;

desenvolvimento de ações imediatas para a correção de possíveis distorções verificadas;

melhoria da qualidade e redução da desigualdade de ensino (informações disponíveis no

site do INEP). A questão que não quer calar, será esse o caminho para se alcançar uma

educação de qualidade e qual qualidade é almejada?

Esta mesma ideia, a da melhoria na qualidade da educação, está presente no

documento: “Ensino Fundamental de nove anos: passo a passo do processo de

implantação” (2009) ao declarar que o ensino fundamental de nove anos “é um novo

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002065

8

Ensino Fundamental, que exige uma proposta pedagógica própria para ser desenvolvida

em cada escola (Parecer CNE/CEB n° 4/2008). Portanto, um novo Ensino Fundamental

requer um currículo novo” (p.14). Poderíamos acrescentar: e instrumentos de avaliação

novos.

O documento (BRASIL, 2009) explicita ainda que a concepção de currículo

adotada deva ser entendida como um conjunto que envolve: os objetivos, as áreas de

conhecimento, a matriz curricular definida pelos sistemas de ensino; oferta equitativa de

aprendizagens e conseqüente distribuição equitativa da carga horária entre os

componentes curriculares; as diversas expressões da criança; os conteúdos a serem

ensinados e aprendidos; as experiências de aprendizagem escolares e os processos de

avaliação.

Um novo ensino fundamental, com um novo currículo que não seja o da pré-

escola, e nem o da antiga primeira série, voltado para as crianças de seis anos, é o que

propõe este documento:

Não se trata de realizar um “arranjo” dos conteúdos da primeira série

do Ensino Fundamental de oito anos. Faz-se necessário elaborar uma

nova proposta político-pedagógica e curricular coerente com as especificidades não só da criança de seis anos de idade, como também

das demais crianças de sete, oito, nove e dez anos de idade que

realizam os cinco anos iniciais do Ensino Fundamental, assim como os anos finais dessa etapa de ensino (BRASIL, 2009, p.25)

Entretanto, ao investigar o ingresso da criança de seis anos no ensino

fundamental, a pesquisa de Pansini e Marin (2011), aponta alguns efeitos negativos que

já podem ser visualizados após a ampliação do ensino fundamental, tais como:

a preocupação com o respeito à infância e com um possível descaso

em relação à EI; a precariedade da formação de professores; as atuais condições das escolas de EF; os aligeiramentos na aplicação e

adequação à Lei e, ainda, a suspeita de que tal política represente

apenas uma medida de interesse econômico em detrimento do

interesse pedagógico (2011, p.91).

Neste sentido, recentes pesquisas têm mostrado as dificuldades que os sistemas

de ensino têm enfrentado no processo de implantação do ensino fundamental de nove

anos, a destacar: a reorganização curricular, a metodologia e os recursos utilizados no

processo de ensino e aprendizagem.

Será que o princípio de um novo currículo, conforme orienta os documentos e

publicações do Ministério da Educação, tem se concretizado nas práticas pedagógicas

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002066

9

nos anos iniciais do EF ou a ampliação significou somente uma antecipação dos

conteúdos às crianças de seis anos? Essas publicações são suficientes para orientar a

elaboração de uma nova proposta de organização do ensino, em especial na área da

matemática? Como deve ser avaliada a criança nos anos iniciais do EF?

Considerações provisórias

Até o momento apresentamos muito mais interrogações que afirmações. Assim,

para continuar o debate, gostaríamos de apresentar alguns pontos que consideramos

relevantes. O primeiro deles, no plano da legalidade, é que não somos contrários ao que

reza a LDB (9394/96), em seu Art. 9º, no qual cabe a União “assegurar processo

nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior,

em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a

melhoria da qualidade do ensino”, porém entendemos que tal processo deve ser

assegurado em consonância com a autonomia que as instituições educacionais gozam,

também segundo a LDB 9394/96 em seu Art. 13, de produzirem seus projetos

pedagógicos e do qual a avaliação deve ser parte integrante.

Em termos teóricos assinalamos a necessidade de compreender a relação

existente entre avaliação, ensino e aprendizagem. A avaliação da aprendizagem é,

igualmente, avaliação do ensino. Isto significa romper com a ideia tão difundida da

avaliação para fins diagnósticos e compreendê-la como instrumento do ensino e como

tal “deve orientar-se não ao ontem, senão ao amanhã do desenvolvimento infantil”

(VYGOTSKI, 2001, p.242). Em termos de teorias de aprendizagem isto significa

considerar a avaliação no âmbito da Zona do Próximo Desenvolvimento (VYGOTSKI,

2001), como um momento também de instrução e não apenas de comprovação, na

perspectiva de que a instrução promove o desenvolvimento:

No momento de assimilação de uma operação aritmética ou de um

conceito científico, o desenvolvimento dessa operação e deste conceito não finaliza, apenas começa. A curva do desenvolvimento

não coincide com a do curso do programa escolar. Nestas

circunstâncias, a instrução se adianta no fundamental ao

desenvolvimento. (VYGOTSKI, 2001, p.237)

Tais considerações possuem algumas implicações, das quais se destacam:

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002067

10

• a necessidade de compreender a (im)posição das avaliações, das diretrizes

curriculares - LEI, em relação a “lei” do mercado, no âmbito de um projeto

capitalista de sociedade;

• o questionamento da estrutura e dos instrumentos de avaliação externa, voltados

apenas ao produto;

• o questionamento de referenciais curriculares com caráter prescritivo;

• a produção de projetos políticos pedagógicos que neguem a regulação e

gerenciamento dos currículos a partir das avaliações externas e

• a garantia, no interior da escola, de instrumentos que permitam acompanhar o

processo de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes, de forma a agir a

tempo.

Refletindo sobre estas questões, podemos visualizar em que medida a

implantação do Ensino Fundamental para nove anos se relaciona com as avaliações

externas e a organização do ensino de matemática.

Segundo dados do Ministério da Educação (www.mec.gov.br) a iniciativa de

ampliar para nove anos o ensino fundamental (Lei no

9.394/1996) veio com a

justificativa de aumentar o número de alunos incluídos no sistema educacional,

oferecendo oportunidades de aprendizagem no período de escolarização obrigatória e a

possibilidade das crianças alcançarem um maior nível de escolaridade, prosseguindo

nos estudos. Em contrapartida, os sistemas de ensino tiveram que buscar diferentes

formas de estabelecer parâmetros que guiassem o processo de adequação à Lei, como a

criação de infraestrutura física e material para a faixa etária, conteúdos, organização do

currículo, planejamento e avaliação da proposta pedagógica.

Em relação ao conhecimento matemático, sabe-se que são muitas as maneiras de

ele ser veiculado em sala de aula e que cada uma delas traz implicitamente certa

perspectiva de ensino e aprendizagem da matemática. Para a perspectiva histórico-

cultural, a qual nos fundamentou, a história da constituição do conhecimento

matemático se desenvolve juntamente com a história da própria humanidade. Partindo

do princípio de que a matemática caracteriza-se como uma ferramenta simbólica e um

produto cultural, essa pode ser considerada como um instrumento criado pelo homem

para satisfazer suas necessidades instrumentais e integrativas (MOURA, 2007). Neste

sentido, devemos ressaltar o importante papel da linguagem a qual permite a

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002068

11

“hominização” da sociedade humana e o desenvolvimento de instrumentos e signos, os

quais se constituem como ferramenta essencial para a aprendizagem. Desta forma,

matemática se constitui no processo de análise e síntese gerado na dinâmica da

construção de respostas a questões que buscam o aperfeiçoamento da vida coletiva e

neste movimento se destaca a necessidade de controlar quantidades, a fim de colaborar

com a ampliação da capacidade humana para manter-se vivo e confortável.

Nesta perspectiva, defender a construção de uma proposta de ensino que atenda

às peculiaridades e necessidades das crianças significa pensar o conhecimento

matemático como produção humana, que pode e deve ser apropriado pelas crianças de

forma a tornar sua a experiência acumulada pela humanidade. Pretendemos desta forma,

mais do melhorar os “números” e estatísticas que denunciam o “fracasso escolar” na

área da matemática, garantir que esta possa ser ensinada para todos com qualidade nos

primeiros e próximos anos da vida escolar.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei n. 9394 de 20/12/1996. Estabelece as diretrizes e bases da Educação

(LDB). Brasília, DF, 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Fundamental de 9 anos: passo a passo do

processo de implantação. Brasília: MEC/SEB, 2009. Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/passo_a_passo_versao_atual_16_setembro.pdf

BRASIL. Ministério da Educação. Ensino Fundamental de 9 anos: orientações gerais.

Brasília: MEC/SEB/DPE/COEF, 2004. Disponível em:

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Ensfund/noveanorienger.pdf

BRASIL. MEC. INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira). Reflexões Sobre a Prática (Provinha Brasil). Brasília, 2011. Disponível em

http://download.inep.gov.br/educacao_basica/provinha_brasil/kit/2011/2_semestre/refle

xoes_sobre_pratica_2_2011.pdf

BRASIL. MEC. INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

Teixeira). Projeto Básico do PISA (Programa Internacional de Avaliação de

Estudantes). Brasília, 2012. Disponível em

http://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/itens/2011/projeto_basico_aplica

cao_pisa_2012_rev2.pdf .

FRIGOTTO, Gaudêncio. CIAVATTA, Maria. Educação Básica no Brasil na década de

1990: subordinação ativa e consentida à lógica do mercado. Campinas: Revista

Educação e Sociedade, vol. 24, 2. 82, p. 93-130, 2003.

MOURA, M. O. Matemática na Infância. In: MIGUEIS, M. R. e AZEVEDO, M. G.

(Orgs.) Educação Matemática na Infância. Abordagens e desafios. 1 ed. Vila Nova

de Gaia: Gailivro, 2007. (p. 39-64).

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002069

12

PANSINI, Flávia e MARIN, Aline Paula. O ingresso de crianças de 6 anos no ensino

fundamental: uma pesquisa em Rondônia. Educação e Pesquisa. 2011, vol.37, n.1,

jan/abr, 2011. Site do Ministério da Educação.

INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira):

http://portal.inep.gov.br/web/provinha-brasil/objetivos, acessado em 04 de março de

2012. VYGOTSKY, L.S. Obras Escogidas. Tomo 2. Antonio Machado Libros: Madrid,

2001.

Anexo 1 - Quadro 1 (Características da Provinha Brasil)

(Informações disponíveis em: http://provinhabrasil.inep.gov.br)

Provinha Brasil

Ano de Criação2008

2011 MAT

AvaliaçãoFederal

Abrangência

2ºs anos do Ensino Fundamental –Alfabetização

alunos matriculados nas redes públicas

Escolas públicas constantes do Educacenso

Características gerais dessa avaliação

AVALIAÇÃO CENSITÁRIA – A Provinha Brasil é uma avaliação diagnóstica do nível de alfabetização das criançasmatriculadas no segundo ano de escolarização. Essa avaliação acontece em duas etapas, uma no início e a outra aotérmino do ano letivo.

INSTRUMENTOS – Os testes são compostos de 20 questões. De múltipla escolha, algumas dessas questões são lidas pelo aplicador da prova – na íntegra ou em parte - e outras são lidas apenas pelos alunos. Em cada ano ocorre um novo ciclo de avaliação da Provinha Brasil.

REFERÊNCIAS DA AVALIAÇÃO – “As habilidades avaliadas por meio da Provinha Brasil estão organizadas na Matriz deReferência para Avaliação da Alfabetização e do Letramento Inicial. Seleção de habilidades passives de aferição por meiodeste instrumento, consideradas também essenciais Cada questão do teste avalia, de forma preponderante, uma dashabilidades descritas na Matriz. A matriz é apenas uma referência para a construção do teste. É diferente de umaproposta curricular ou programa de ensino, que são mais amplos e complexos.

DISCIPLINA AVALIADAS – anualmente Língua Portuguesa e Matemática.

RESULTADOS – São descritos os cinco níveis de desempenho, identificados a partir das análises pedagógica e estatísticadas questões de múltipla escolha. A quantificação de acertos de questões caracterizam cada nível de alfabetização eletramento inicial que as crianças demonstraram. Por isso, cada teste possui um número distinto de questões paraidentificação de cada nível. – Os resultados não são enviados ao MEC e devem ser analisados pelas escolas e/ou SMEs.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.002070