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    A "natureza humana" do comportamento individual nos primrdios do pensamento econmico:uma comparao entre Hume, Smith e Bentham.

    Glaucia CampregherLucas Schonhofen Longoni

    A Natureza Humana a nica cincia do homem; entretanto, at aqui tem sido a mais negligenciada.

    David Hume (1739)

    1) Introduo

    A aurora do pensamento racional coincide com a perda da unidade (e at identidade), um tantomstica ou mgica nos povos primitivos, entre parte e todo, os homens (e seus grupos) e o universo inteiro(cus, terras e seus habitantes). Uma vez perdido esse elo mgico com o todo, contudo, a histria dafilosofia e da cincia no deixa de ser a histria da produo de outros conjuntos de partes e todos, e dediscursos que os conectem. Assim, se criar objetos de reflexo subtra-los a um todo natural, tambminstal-los numa relao outra entre todo e partes componentes. Pode-se dizer tambm que objetoscientficos novos nascem quando o que era parte, numa construo anterior, ganha tanta ateno que

    passa a se constituir num novo todo1. Assim, nem bem nasce um objeto para o pensamento cientfico,definir o que a parte e o que o todo deste - e como se relacionam, e se transformam seu primeirogrande desafio. Muito provavelmente, os mtodos de investigao se distingam uns dos outros a partirdesse primeiro procedimento, de seco e reunio. Perguntamos-nos, e no caso da economia, o que a

    parte e o que o todo? Podemos dizer que a parte a unidade de ao/deciso, as pessoas - mais oumenos individualizadas2-, ou simplesmente, o indivduo; e o todo a sociedade - eventualmente a tribo, ocl, ou cidade, o imprio, a nao, geogrfica, mas tambm historicamente (e at politicamente)delimitados? E como se d a relao entre partes e todo neste caso? Ou, at que ponto as aes dosindivduos "fazem" o todo (suas instituies, valores, leis), e at que ponto o todo que "faz" osindivduos? Alm disso, se ocorre inventarmos uma cincia nova para a parte que "cresceu", como a

    psicologia para o estudo do indivduo, como as novas descobertas desta vo ser compreendidas pelacincia j estabelecida? No corremos o risco de que o indivduo se torne cada vez mais soberano e, portabela, as determinaes prprias do todo da qual este parte? Ou, ao contrrio, as contribuies de umacincia dedicada ao estudo do indivduo podem cobrir lacunas dentro das teorias que, centrando-se notodo, esvaziavam o seu papel?

    de amplo conhecimento que a bifurcao do pensamento econmico a partir de Ricardo noslegou uma corrente (o marxismo) mais focada no todo, seja este a sociedade e suas classes em conflito,seja ele o capital e seus interesses, em grande medida tambm conflituosos; e uma outra (oneoclassicismo) mais focada no indivduo, e nas articulaes entre estes mais harmnicas. Entretanto,

    podemos dizer que nem marxistas, nem neoclssicos, se dedicaram a pensar mais cuidadosamente oindivduo como seus predecessores, Hume, Smith e Bentham, para ficarmos com os mais importantes.

    Marx porque parte de que no existe nada fixo no indivduo, dada a mutabilidade do todo do qual ele parte - ou seja, no h qualquer essncia, qualquer "natureza humana" que nos caracterize a priori, forada sociedade, ou, como dizia ele, fora do "conjunto das relaes sociais" 3. E os neoclssicos porque, aocontrrio, no existe nada mvel; ou ainda, aquelas motivaes que so mutveis (gostos, tradies,valores) e que podem ser mesmo teis para entender as aes do indivduo em todas as reas 4, na rea que

    1 Obviamente esta no a nica circunstncia requerida, nem queremos disputar aqui quo central seria. Para maioresaprofundamentos acerca do surgimento de novas cincias, novos objetos, teorias e paradigmas cientficos, vide KUHN, 1989;POPPER, 1993; e LAKATOS, 1979.2 Assim posto, descremos de um "individualismo metodolgico" que se instaure a priori. Acreditamos que, quanto mais atrsna histria menos os indivduos aparecem enquanto tais, unidades de deciso e ao, e mais as pessoas se vm presas s suas

    comunidades e mesmo ao ambiente natural, como nos mostram os antroplogos. Apenas para citar um destes cujos trabalhosso bastante conhecidos entre os economistas, vide POLANYI et al., 1957.3 Isso porque, como ele explica na sexta tese contra Feuerbach, a essncia humana no algo abstrato inerente a cadaindivduo. , em sua realidade, o conjunto das relaes sociais. (MARX, 1996: 180).

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    interessa economia so dispensveis. Ou seja, para entender o comportamento econmico basta supor aescolha racional como fazendo parte da "natureza humana".

    Esta discusso, da natureza humana, no ficou, contudo, abandonada desde os primrdios daeconomia, de fato, deu origem a toda uma leva de pesquisas dedicadas ao papel do indivduo nas vriasescolas do pensamento econmico. Mas nossa impresso que a maioria dos estudos est mais focada noindividualismo como ponto de partida metodolgico (sobre o que abundam trabalhos em todas as

    tradies do neoclassicismo ao marxismo)5 do que sobre seu aspecto ontolgico. Podemos dizer quedurante anos, entre marxistas, bastou a meno sexta tese sobre Feuerbach, para negar qualquer"natureza" ao homem; e mesmo quando veio luz a ousada obra de Lukcs, sua Ontologia do Ser Social,ela no ter seguidores na economia que explicitem melhor como a histria se faz uma "segundanatureza" (como dizia Marx) a dirigir as aes dos indivduos. De outro lado, neoclssicos continuavam aafirmar o homem econmico racional, hedonista, calculador de utilidades, como sendo esta a sua naturezasem mais investigaes. Mas o interessante que, nos anos recentes, os progressos da biologia, da

    psicologia, da antropologia, das neurocincias (ainda mais atuais), trouxeram de novo baila tal questo.Assim que existe hoje todo um novo ramo na economia dedicado a observao emprica docomportamento dos indivduos (denominado psicologia econmica ou economia psicolgica, ouneuroeconomia, conforme se definam seus protagonistas)ao qual nos dedicaremos em breve. Mas no

    poderamos faz-lo sem antes checar os primeiros economistas (de fato, os fundadores de nossa cincia)que justamente tinham na observao emprica a base de suas concepes sobre o comportamentoindividual.

    Logo, o que segue resulta de nossas reflexes acerca de como consideraram os indivduos aquelesque os olharam mais de perto via especulao filosfica - os citados Hume, Smith e Bentham os dois

    primeiros tentando se entregar observao mais que a deduo. Interessa-nos, particularmente, sabercomo a partir desta preocupao, estes filsofos/economistas concebem o que da natureza e o que dasociedade, uma vez que, a despeito das dificuldades, esta ltima se dava mais sua observao.Principalmente nos interessa checar como estes observam o ambiente (as circunstncias, como diriaHume) ou o todo complexo de relaes (materiais e subjetivas, diramos ns) influindo na, e mesmoalterando a, natureza; transformando-a em algo menos fixo, e mesmo, menos natural.

    Dito isso, este artigo conta, alm desta Introduo, com uma Seo 1 para tratar de Hume, umaSeo 2, para tratar de Smith e uma Seo 3 para tratar de Bentham. As comparaes entre os autoresacontecem em meio apresentao de suas teorias. Ainda assim, fazemos uma Seo de Concluso, pararepisar o que consideramos principal reter para que possamos todos ns construir uma compreenso maisrica e mais determinada da relao parte/todo, indivduo/sociedade.

    Seo 2) A simpatia pela observao levando Hume a observao da simpatia

    David Hume (1711-1776) considerado um dos precursores da cincia econmica, tendoinfluenciado particularmente a Adam Smith. Em ambos as discusses acerca da natureza do

    comportamento dos indivduos pretende ser uma nova base para a defesa da moralidade, despindo-a depressupostos religiosos6 ou, como diria Hume, dogmticos e metafsicos que este supe como a priorisda razo absolutamente no experienciados pelos homens. Segundo Hume, sua tarefa era justamente"tentar introduzir o mtodo experimental de raciocnio nos assuntos morais"7; assuntos estes que estariama cargo, entre outras cincias em seus primeiros passos, da economia. Sua viso de nossa cincia assim

    4 Nesse sentido, Mill (indo no sentido oposto de Hume e Smith, como veremos aqui) ir separar o que da natureza e o que da sociedade no comportamento humano, e dir que nao interessa economia poltica o todo do comportamento humano, masapenas aquela parte que diz respeito a seu desejo de possuir riquezas e a sua capacidade de julgar os meios eficientes paratanto (MILL, 1974: 299) No mesmo sentido vide PARETO, 1996.5 Vide LEVINE, A. et al., 1987; e PRADO, 1989.6

    importante ressaltar que no adentraremos as discusses sobre o tipo de influncia que o discurso religioso adquiriu naviso terica de Smith. Para tal, ver CERQUEIRA, 2006.7 De certo modo a questo que nos colocamos no deixa de ser uma avaliao de at que ponto ele o consegue, uma vez quenos interessa perscrutar se a sua noo de natureza humana est ou no, e sob que tipo de, investigao.

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    de que ela seria emprica por excelncia, isso porque teria por objeto questes de "fato e existncia", squais no se podem sustentar exclusivamente pela razo8.

    Contudo, em Hume, e tambm em Smith como veremos, h no que a experincia (hbitos,circunstncias) nos informa algo que se mantm e mais claramente identificado ao que "da natureza"-, e algo que muda, sem sequer sabermos por que (porque no acessamos as causas ltimas de coisaalguma). No essa mutabilidade que diz que impossvel conhecer a natureza das coisas, mas as

    insuficincias da razo. No se trata pois de abstrair o movimento e temos lmpida a essncia (o que faz ofalso empirismo do neoclassicismo mainstream). Estas circunstncias no so acidentes a seremdescartados; ao contrrio, so elas, ou por meio delas 9, que se evidencia o que da essncia, mesmo queassim esta se veja reduzida a poucos princpios. Vejamos de perto como isto se passa em Hume, semantm e at se radicaliza em Smith, at comear a se perder em Bentham.

    Em Hume, a natureza humana aparece, via de regra, como um substrato comum, um pano defundo sobre o qual o conjunto das experincias pode se desenvolver; o que muitos comentadores irochamar de uma "realidade ltima e definitiva" (CERQUEIRA, 2006), que escapa ao entendimento

    possvel no terreno da moral, que no poderia ser por esta "ultrapassada", ou, como preferimos,alcanada. Esta base seria pois original, estvel e imutvel; correspondendo ao que os homens seriam nasua "essncia" fora da histria; ou ainda, o que todos teramos em comum, a despeito das nossas

    diferenas de temperamento e carter. Nas palavras do autor:

    Existe um curso geral da natureza nas aes humanas, assim como nas operaes do sol e doclima. Existem tambm caracteres peculiares a diferentes naes e a diferentes pessoas, e outrosque so comuns a toda a humanidade. O conhecimento desses caracteres se funda na observaoda uniformidade das aes deles decorrentes; e essa uniformidade constitui a prpria essncia danecessidade (HUME, 2009: 439).

    Mas essa base muito limitada dada a importncia que Hume d a diversidade das circunstnciase ao seu poder de determinar mesmo a "constituio interna" de um homem, como pode ser visto nacitao abaixo:

    A pele, os poros, os msculos e os nervos de um trabalhador so diferentes daqueles de umhomem de qualidade; assim tambm seus sentimentos, aes e maneiras. As diferentes condiessociais influenciam toda a constituio, externa e interna; e essas diferentes condies decorremnecessria, porque uniformemente, dos princpios necessrios e uniformes da natureza humana .Os homens no podem viver sem sociedade, e no podem se associar sem governo. O governo criadistines de propriedade e estabelece as diferentes classes de homens. Isso produz a indstria, ocomrcio, manufaturas, aes judiciais, guerras, ligas, alianas, travessias, viagens, cidades, frotasde navios, portos e todas as outras aes e objetos que causam uma tal diversidade, e ao mesmotempo mantm uma tal uniformidade na vida humana. (HUME, 2009: 438, grifos nossos)

    Mas se interessante ver como Hume no faz tabula rasa do todo social e mutante, o que restauniforme, por trs deste emaranhado, no fica to evidente. Em parte isto se passa por causa da

    prpria proximidade da moral com a natureza. Como salienta Kiraly (2010), "no h nada de natural namoral" justo porque "no h nada de natural na natureza". Ou, tomando todo o raciocnio de Kiraly:

    8 Para os no entendidos, Hume dividiu as possibilidades do entendimento em dois tipos de operao: i) raciocniodemonstrativo, concernente a relao de idias e ii) raciocnio moral ou provvel, referente as questes de fato e de existncia;onde o primeiro tipo comporta a Matemtica e as demais relaes formais de idias abstratas e o segundo comporta disciplinasempricas como a Economia, que depende do estudo histrico - campo das experimentaes de onde o conhecimento provm

    (KUNTZ, 1983). Sendo uma cincia humana a Economia depende da compreenso de quem comporta as estruturas sociais poronde os eventos econmicos percorrem - o indivduo.9 Mesmo que estas no sejam tratadas rigorosamente, ou seja, historicamente, como faz ao seu modo um outro "tipo deempirismo", que ao nosso ver o materialismo histrico.

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    "A moral inafastvel da natureza humana, pois no nos dada a experincia de homens que nose preocupem, em alguma sorte com suas aes. Contudo, a moral no um construto lgicoobediente aos princpios da razo. Se na primeira acepo a moral natural, na segunda, no hnada de natural na moral". (KIRALY, 2010)

    Ou seja, se da moral o julgamento do que bem e mal, justo e injusto, e se no h nada na

    prpria razo que oferea uma base transcendente a estes julgamentos, h que procur-los na natureza,mas a natureza tambm no no-los d. A natureza d a capacidade de julgar, mas s. Ou, como dizHume, "a natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolvel, impele-nos a julgar, assim como arespirar e a sentir" (HUME apud KIRALY, 2010), mas os critrios do julgamento vm do hbito. No hnada de substantivo no julgar, e sua naturalidade repousa nos sentidos sem maiores consideraes sobrese o que os provoca, "os objetos no possuem absolutamente nenhum valor em si mesmos, seu valorderiva exclusivamente da paixo" (HUME apud CONTE, 2006). No mximo, consideramos, ou devemosconsiderar segundo os nossos sentidos. Estes nos do a base para aquela avaliao por aproximao, umavez que aspaixes derivam de uma busca direta do bem e averso ao mal. Assim,

    Aprovar um carter sentir um deleite com o seu aparecimento, e desaprov-lo ser sensvel a

    um desgosto. Portanto a dor e o prazer, sendo de certo modo a fonte primeira da censura ouelogio, devem ser tambm as causas de todos os seus efeitos, sendo portanto tambm as causas doorgulho e da humildade, inevitveis acompanhantes dessa distino. (HUME,2005: 18)

    Conclui-se que a natureza no est amordaada pela, nem amordaa a, moral. Esto ambasconectadas por redes parciais de simpatias que vo sendo estruturadas, reforadas e expandidas. As aeshumanas resultariam assim de uma cadeia de relaes entre informaes do exterior com o que possibilitao sentir, de modo que, em ltima instncia, so sempre essas informaes adquiridas pelas experinciasque do base para o agir. As simples funes, ou princpios da natureza, no possuem esse poder. Essessomente permitem o acendimento das paixes pelas impresses externas. Portanto, as paixes queconstituem o princpio ativo do sujeito10, e atuam como intermedirio entre a pura natureza e as peculiaresexperincias, sem atribui maior importncia a uma ou outras no que diz respeito formao do indivduo.

    Resta-nos considerarmos por fim o modo como Hume encara o(s) indivduo(s) de quem fala. E,nesse quesito, a questo da simpatia fundamental. Seja a simpatia no seu parentesco com a capacidadede raciocinar ou julgar11, seja a simpatia naquilo mesmo que identifica um homem a outro homem, e quefaz o universo do indivduo falando no se restringir a ele prprio.

    Dito isto, nos parece interessante a interpretao de que Hume no seria um empirista radicalsolipsista (que fala s de si mesmo), mas teria uma teoria psicolgica visto que nela as definies de"bom" ou "mau" relacionam hbitos estabelecidos socialmente, estados mentais, emoes, e impresses

    primrias. A questo que se colocaria a se essa teoria psicolgica seria subjetivista (e relativista) outeria um fundamento objetivo, e de que tipo de objetividade se trataria. Conte (2006) vai apresentar

    defensores de todas estas leituras possveis. Particularmente interessante, a recusa do merosubjetivismo:

    "Uma das razes para rejeitarmos a interpretao subjetivista o fato de Hume, mesmo afirmandoque os juzos morais dependem de nossos sentimentos que so variveis, acreditar que podemos

    10 O juzo, ou a considerao racional, seria o princpio inativo, "a razo, em sentido estrito e filosfico, s pode influenciarnossa conduta de duas maneiras: despertando uma paixo ao nos informar sobre a existncia de alguma coisa que um objeto

    prprio dessa paixo, ou descobrindo a conexo de causas e efeitos, de modo a nos dar meios de exercer uma paixo qualquer.Esses so os nicos tipos de juzos que podem acompanhar nossas aes, ou que se pode dizer que as produzem de algumamaneira; e preciso reconhecer que esses juzos podem frequentemente ser falsos e errneos. (...) Por exemplo, se vejo aolonge uma fruta que na realidade desagradvel, posso, por um engano, imaginar que agradvel e deliciosa. Eis aqui um

    erro. Escolho certos meios para alcanar essa fruta, mas esses meios so inadequados para meu objetivo. Eis aqui um segundoerro. (HUME, 2009: 499-500)11 Quase um sexto sentido dos homens ao lado da viso, tato, paladar, olfato, audio e que pra muitos o mesmo que razo,da a frmula, o homem um animal racional.

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    superar o relativismo dos juzos de valor que isso parece implicar. Hume na verdade tem umamaneira de explicar a existncia de conflitos morais na sociedade. Ele acredita que ascontrovrsias morais surgem devido a um conhecimento imperfeito sobre o caso em questo; oudevido possibilidade de distorcer os fatos se no assumimos um ponto de vista imparcial que

    preserve a objetividade. A fim de fazer um juzo moral adequado, devemos estar certos de que noestamos pervertendo o modo como vemos os fatos ao deixar nossos prprios interesses

    interferirem. Hume nota que somente partilhamos o sentimento comum de humanidade quando o"interesse, o desejo de vingana ou a inveja no pervertem nossa disposio. (CONTE, 2006)

    Contudo, a tese oposta, do objetivismo, chamemos "puro", pode carregar justamente a noo, queconsideramos ruim, de uma natureza humana eterna e imutvel que , de fato, bastante presente emHume, como por exemplo:

    "to prontos so todos os homens a reconhecer uma uniformidade nos motivos e aes humanasquanto nas operaes do corpo" (...) quereis conhecer os sentimentos, inclinaes e gnero de vidados gregos e romanos? Estudai bem a ndole e as aes dos franceses e ingleses: no podereisenganar-vos muito se transferirdes para os primeiros a maioria das observaes que tiverdes feito

    sobre os segundos." (HUME apud CONTE, 2006)

    Esta objetificao pode levar, a nosso ver, a uma posio, no mnimo ingnua e no mximoperigosa, se acreditar que possvel um conhecimento perfeito dos fatos e uma imparcialidade perfeitados sujeitos12.

    Mas h, segundo Conte, outras alternativas a leitura de que Hume no um subjetivista, dado queno defende que "a distino entre virtude e vcio meramente uma distino subjetiva ou baseada emfatores psicolgicos privados". Seriam elas o "realismo"13, muito enftico na defesa de uma objetividadefundada na existncia prvia, externa, de valores morais compartilhados pelos indivduos, e o"intersubjetivismo" que teria vantagens sobre o realismo onde no h uma existncia prvia do que compartilhado, mas uma sua recriao permanente, pois, segundo o prprio Hume:

    "(...) as mentes dos homens so como espelhos uma das outras em que cada uma reflete asemoes das demais e as paixes, sentimentos e opinies podem se irradiar e reverberar vriasvezes, de modo que constitumos o mundo como um mundo partilhado, ainda que todos tenhamosexperincia dele a partir de perspectivas diferentes." (CONTE, 2006)

    Isso quase dizer que a natureza inventa o hbito que inventa a natureza! Isto porque, como dizKiraly:

    "A natureza humana se habitua a experincia que a constitui. Nesse processo a imaginao

    estabelece conjunes constantes entre idias e fenmenos que reconhece. Em ltima instncia anatureza humana, pelo hbito, inventa a experincia que a constitui. (KIRALY, 2010)

    Isto quer dizer, para ns, que s o que da natureza ento se adaptar. E, no processo deadaptao, ainda inventamos que h uma natureza, que esta seria estvel e mesmo imutvel, o que no

    12 Como o prprio Hume que, por veze, parece acreditar em que "sob certas condies, se ns tivssemos um conhecimentoperfeito de todos os fatos, e olhssemos todos os fatos de um ponto de vista objetivo, nossos sentimentos comuns nos levariama um padro similar de julgamento moral e todos chegaramos s mesmas distines morais. Um ponto de vista objetivo seria a

    perspectiva de um agente que pudesse sair de sua "situao privada e particular", abstraindo situaes e sentimentos pessoaisparticulares para alcanar uma perspectiva imparcial. (CONTE, 2006)13

    Onde, "no somente que virtude e vcio existem como entidades separadas, mas tambm que os valores morais atribudos aessas entidades no so derivados de elementos subjetivos de nossa conscincia. Em outras palavras, mostrar que Humeacredita que virtude e vcio existem como entidades separadas na ausncia de nossos sentimentos a seu respeito. Virtude evcio neste sentido seriam "descobertos" por nossa conscincia, no "criados" por ela". (CONTE, 2006).

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    temos a menor condio de afirmar, mas temos necessidade de afirmar. Logo, a la Hume, o que seria danatureza carecermos pensar assim.

    Resumindo, os homens seriam para Hume, por natureza (imutvel), apenascapazesde processarsensaes, como a sensao de proximidade, identidade ou simpatia, cuja forma e contedo (mutvel) vosendo construdos intersubjetivamente. O que percebemos a partir de nossos sentidos, o como o

    percebemos e julgamos, muda. Sobre o que a necessidade de proximidade ir atuar, muda. A questo

    que se introduz ento todo o mundo da representao em geral (e da linguagem em particular) que, seHume j intua naquilo que afirma que as ideias se ligam s sensaes pela imaginao, s vai avanarcom a filosofia (e a psicanlise) do sculo XX14. Assim, se temos por natureza a capacidade de sentir e

    julgar o que bom, aprazvel, podemos dizer com Cerqueira (2006) que "o senso da virtude, danatureza", mas as "virtudes artificiais evoluram ao longo da histria com base na natureza humana e nasrelaes interpessoais", portanto, vamos, junto com nossos contemporneos, por meio da nossa prpriaimaginao, mas tambm por meio de todo um universo de representaes que compartilhamos, criandovirtudes outras, como o que o justo ou o belo. Da natureza mesmo s nossa propenso a simpatizarcom os outros e a receber por comunicao suas inclinaes e sentimentos, por mais diferentes ou atcontrrios aos nossos (HUME,2009: 351).

    Seo 2) A imploso da diviso natural e artificial na sympathy de Smith

    Pois bem, daqui pra frente veremos como em Adam Smith(1723-1790) tais concluses seroainda mais radicalizadas. Para tanto, consideramos que muitos so os pesquisadores que desde h muito, eainda hoje, se debruam sobre sua obra Teoria dos Sentimentos Morais (TSM), cujas teses seriam vistas,ora como afins, ora como incongruentes, com sua Riqueza das Naes (RN) 15. Justo por isso, podemosabrir mo de apresentarmos a TSM tambm ns16, e recorreremos a ela apenas quando necessrio para acompreenso do nosso ponto central: o que o indivduo e em que medida seu comportamento se deve auma pretensa "natureza humana". Assim sendo, partimos de onde chegamos com Hume, e que aconcluso de muitos especialistas no pensamento filosfico de Smith, que salientam que este no defendiaser a moralidade nem algo natural aos homens, nem artifcio por estes criado para controlar suas paixes;e isso porque ele implodia com "a linha divisria entre natureza e artifcio" de modo ainda mais radicalque Hume:

    "Radicalizando o argumento de Hume, Smith argumentou que no apenas a justia, mas oconjunto da moralidade sobrevm natureza humana de uma maneira semelhante quela descrita

    por Hume ao explicar o surgimento da justia. Neste sentido, Smith rejeita a distino entrevirtudes naturais e artificiais e associa intimamente a moralidade sociabilidade." (CERQUEIRA,2006)

    Ou ainda Haakonsen (e quase nos mesmos termos que nossa concluso sobre Hume):

    Pode-se dizer que Smith sugeriu que a moralidade em geral era artificial mas que ela era umartifcio que, por assim dizer, era natural para a humanidade. (...) No mago do complexoargumento de Smith estava a idia de que a personalidade das pessoas, sua habilidade de seremagentes autoconscientes vis--vis outras pessoas e vis--vis a seu prprio eu passado e futuro, eraalgo adquirido no intercurso com os outros. (HAAKONSEN, 2003: 211-2)17

    14 Por isso diz Kiraly (2010) ser Hume um dos pilares da modernidade junto com Kant/Weber de um lado e Hegel/Marx deoutro. Por isso ele, mesmo sem ser um filsofo da linguagem, ir "inaugurar a preocupao com as regras e com as convenesque afetar a filosofia analtica". Mas, no que nos diz respeito aqui, o mais interessante destas releituras de Hume elasapontarem para que, em sua obra, "o sujeito relevante, mas a sua soberania relativa" (grifos nossos).15 Por exemplo CAMPBEL, 1975 e EVENSKY, 1989, HAAKONSSEN, 2002 e 2003, FLEISCHACKER, 2004.16

    Para tanto ver GANEN, 1999, CERQUEIRA, 2006, ou PASSOS, 2006.17 Ou ainda, como o diz o prprio Smith, "Cada faculdade do ser humano a medida com a qual ele julga a faculdade do outro[...] Julgo seu dio pelo meu dio, sua razo pela minha razo, seu amor pelo meu amor. No tenho e no posso ter outra formade julgar" (SMITH apud GANEN, 1999:20).

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    Isto significa que insuficiente a compreenso de que a natureza nos dotou de um sentido deidentificao com o outro que seria base do comportamento social, incluindo os julgamentos morais,como o faz o prprio Smith nas primeiras linhas da TSM:

    Por mais egosta que se suponha o homem, evidentemente h alguns princpios em sua natureza

    que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessria para simesmo, embora nada extraia disso seno o prazer de assistir a ela. (SMITH, 2009: 5)

    Mas veremos como o prprio Smith vai, alm disso, respondendo, seno todas, ao menos algumasdas questes que nos surgem. Assim, e considerando que a capacidade de nos importarmos com o outro um dom "natural", como opera essa "sympathy"18? Quais seus contedos concretos em cada tempo elugar, como so apropriados pelo conjunto dos indivduos (ou como so distintamente apropriados porestes)? Como so herdados de uma poca a outra, e at, possvel tomar conscincia crtica dos mesmos?Estas questes esto no horizonte da filosofia moral dos nossos pensadores mas apenas ligeiramentedesenhadas. Seno vejamos...

    sabido que Hume e Smith substituem o "desejo de glria" - que coloca os homens em guerra

    fratricida em Hobbes - pelo "desejo do ganho" - que acaba por instituir uma certa harmonia entre eles. Eisto porque o desejo do ganho universal. Mas se mantemos o que tnhamos concludo, esse carter deuniversalidade no necessariamente torna o desejo de ganho algo natural; ele faz parte, isto sim, doscontedos que qualificam a simpatia/identificao - no mais, mecanismo concreto da universalizao deum dado comportamento. Por isso mesmo, como diz Ganem (1999), Smith compreende "em toda aextenso e complexidade", a soluo hobbesiana da emergncia da ordem pelo contrato - contedo daordem mercantil, diramos ns, nem sempre compreendido pelos que vem na "mo invisvel" domercado mais um conjunto de vetores matemticos do que um conjunto de normas e instituies. O queestamos salientando que h uma combinao prvia entre os indivduos em Smith, sua base a de quetodos devem se especializar e assim trocar entre todos. Desde logo, os homens no seriam naturalmenteegostas, mas naturalmente "tendentes s trocas", o que tem tudo a ver com naturalmente tendentes a sever nos outros19.

    Vejamos mais de perto ento o que essa capacidade de simpatia, base de toda esta construo emSmith. Ele a define como "o nosso sentimento de companheirismo com qualquer paixo" (SMITH, 2002:5). Mas um sentimento que exige uma mediao: a tentativa do expectador por se colocar na perspectivadaquele que sofre diretamente a dor ou prazer, e que a responsvel pela criao deste que seria um "euimaginrio" base adiante do "expectador imparcial", quando se passar da solidariedade primria ao

    julgamento moral. Mais ainda, para que esta operao seja possvel exige-se certo conhecimento, ereconhecimento ou compartilhamento, da causa geradora. Quanto mais interpessoais as paixes (como araiva entre os indivduos) mais requerido um compartilhamento de contextos para uma respostasimptica forte. Por sua vez, o julgamento moral s pode ser a posteriori, no podendo descender

    naturalmente da solidariedade mesma, sentida a priori. Enquanto o julgamento depende de convenes18 Quer nos parecer que o sentido em portugus da palavra sympathy como Smith a utiliza cobre tanto o significado desimpatia como o de empatia, principalmente se entendermos o primeiro como mais ligado a uma dimenso afetiva (ou s

    paixes como fala Smith), e o segundo a uma dimenso cognitiva. Assim que h algo de cognitivo no modo como podemosnos colocar no lugar do outro, nos imaginando a ns mesmos neste lugar. Para se ter uma ideia, este espelhamento usado nas

    pesquisas das neurocincias atuais como demarcador de nveis de inteligncia entre os animais. Na mesma linha da nossareflexo, mostrando que a simpatia nada tem a ver com benevolncia, uma vez que contm mesmo a inveja - confirmando anossa impresso de que empatia capta melhor estas dimenses de identificao de um no outro, mais que doao desentimentos de um vide DUPUY, 1992 e MORROW, 1924.19 Por isso mesmo no acreditamos haver descompasso entre a TSM e a RN, ligadas ambas por um nico axioma, como dizVernon Smith: "one behavioral axiom, 'the propensity to truck, barter, and exchange one thing for another,' where the objectsof trade I will interpret to include not only goods, but also gifts, assistance, and favors out of sympathy ... whether it is goods

    or favors that are exchanged, they bestow gains from trade that humans seek relentlessly in all social transactions. Thus, AdamSmith's single axiom, broadly interpreted ... is sufficient to characterize a major portion of the human social and culturalenterprise. It explains why human nature appears to be simultaneously self-regarding and other-regarding"(VERNON, 1998:3).

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    sociais mais ou menos elevadas acima da base natural, a solidariedade sustenta esta base. Como sintetizao prprio Smith:

    "Primeiro, simpatizamos com os motivos do agente; segundo, participamos da gratido dos querecebem benefcio de suas aes; terceiro, observamos que sua conduta obedece s regras gerais

    por meio das quais essas duas simpatias geralmente agem; e, por ltimo, se considerarmos tais

    aes como parte de um sistema de conduta que tende a promover a felicidade do indivduo ou dasociedade, ento dessa utilidade poder resultar certa beleza, no muito distinta da que atribumosa qualquer mquina bem engendrada. (SMITH, 2002: 406)

    Assim como Hume, Smith no v na simpatia nenhum princpio utilitrio atuante, uma vez quepodemos nos simpatizar e torcer por heris de romances ou tragdias que jamais teriam alguma ligaoutilitria que nos favorecesse no presente (ou futuro). A simpatia somente uma capacidade decompartilhar sentimentos e que nada diz sobre os fins ltimos da ao. Mas j a parcialidade queacompanha os homens em Hume um tanto relativizada em Smith, se estes a apresentam"habitualmente"20, o hbito e a experincia fornecem tambm material para reflexes imparciais -motivadoras de condutas em consonncia com uma existncia virtual (imaginria) do eu. Assim, se

    Hume parte de uma abordagem utilitria para s ento resgatar a simpatia como fonte da aprovaomoral21, Smith, ao contrrio, no pode diferenciar as aes motivadas por interesses prprios das aesmotivadas por influncia simptica, porque os interesses dos primeiros esto necessariamente mescladoscom os interesses da sociedade. A virtude, assim como o vcio, deve provir originalmente do senso deconvenincia e no da percepo de um prazer ou uma dor22.

    Fruto da reflexo simptica de sua paixo no outro, a paixo dominada e posta em concordnciacom a viso do expectador deve conduzir o indivduo ao comportamento virtuoso, tendo em vista que,

    para o expectador, a paixo que lhe alheia no pode ser sentida de todo vigor seno de modo fraco e nodiferente entre a satisfao presente ou futura.23 O reconhecimento do esforo da conteno da paixo

    20 Depois de si mesmo, os membros de sua famlia, os que habitualmente vivem em sua casa, seus pais, seus filhos, irmos eirms, so naturalmente objetos de seus mais clidos afetos. So natural e comumente as pessoas sobre cuja felicidade oudesgraa a sua conduta deve ter maior influncia. Est mais habituado a simpatizar com elas; conhece melhor como

    provavelmente tudo as afetar, e sua simpatia por elas mais precisa e determinada, do que pode ser com a maioria das outraspessoas. Em suma, mais prxima do que ele sente por si mesmo. (SMITH, 2002: 274-275). Pelos mesmos princpios desimpatia e solidariedade com o prximo, os indivduos esto inclinados a preferir sua sociedade e sua ptria a outras. Sua vida -a ideia que o indivduo faz dela - facilmente colocada em sintonia com a dos seus compatriotas, de modo que seu senso de

    justia e dever o impele a passar por cima de si em favor do que maior (o que considerado de modo imparcial), a saber, asociedade em que vive.21 (...) mesmo quando a injustia to distante que no afeta nosso interesse, ela ainda nos desagrada, pois a consideramos

    prejudicial sociedade humana e perniciosa para todas as pessoas que se aproximam do culpado de t-la cometido.Participamos, por simpatia, do desprazer dessas pessoas; e como tudo que produz um desprazer nas aes humanas, examinadode maneira geral, denominado vcio; e tudo que produz satisfao da mesma maneira dito virtude, essa a razo por que o

    sentido do bem e do mal morais resulta da justia e da injustia. E embora, no caso presente, esse sentido seja derivadounicamente da contemplao das aes alheias, no deixamos de estend-lo a nossas prprias aes. A regra geral ultrapassa oscasos que lhe deram origem; ao mesmo tempo, simpatizamos naturalmente com os sentimentos que as outras pessoas tmsobre ns. Assim, o interesse prprio o motivo original para o estabelecimento da justia, mas uma simpatia com o interesse

    pblico a fonte da aprovao moral que acompanha essa virtude. Este ltimo princpio, da simpatia, fraco demais paracontrolar nossas paixes; mas tem fora suficiente para influenciar nosso gosto, e para nos dar os sentimentos de aprovao

    ou de condenao. (HUME, 2009: 539-540) (grifos nossos).22 A mais heroica bravura pode ser empregada indiferentemente, ou na causa da justia, ou da injustia (...) Nessa e em todasas demais virtudes do autodomnio, a qualidade esplndida e deslumbrante parece ser sempre a grandeza e constncia doempenho, e o forte senso de convenincia necessrio para fazer e manter esse empenho. Muitas vezes os efeitos so pormmuito pouco considerados. (SMITH, 2002: 330).23 O homem que, relatando a outro a ofensa que lhe infligiram, sente imediatamente a fria de sua paixo esfriar e acalmar-se

    por simpatia com os sentimentos mais moderados do seu companheiro o qual de imediato adota esses sentimentos mais

    moderados e passa a ver a ofensa, no nas cores negras e atrozes em que contemplara originalmente, mas luz muito maisbrande e clara em que seu companheiro naturalmente a v; assim no apenas refreia, como ainda em certa medida subjuga asua ira. A paixo realmente se torna menor do que era antes, e menos capaz de aular nele a violenta e sanguinria vinganaque a princpio pensara realizar. (...) Todas as paixes refreadas pelo senso de convenincia so, em certo grau, moderadas e

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    presente ser assim digno de aplauso pelo expectador. Esse comportamento no caracteriza to somenteuma troca de utilidade presente por uma utilidade futura, mas tambm um princpio de ao reconhecido edesejado internamente24. Da, o comentrio de Cerqueira (2006) de que em Smith cada indivduo temem si um motivo para observar as normas de comportamento adequadas.

    Dessa comparao se evidencia que em Smith impossvel um indivduo exclusivamente voltado busca de prazer e ao afastamento da dor uma vez que esses dois princpios comportam seu contrrio

    imaginrio, portanto, construdo pelo externo. Passar por cima do sentimento simptico para Hume umaquesto de pesagem utilitria e para Smith uma questo de imposio imaginria, uma vez que oindivduo aqui (desde que inserido em sociedade) no s julgado por uma jurisdio externa, ou seja, a

    populao em geral que lhe pode censurar to logo o fato aparea ao conhecimento do pblico, comotambm ele julgado inevitavelmente por uma jurisdio interna, fundada na experincia, que faz oindivduo ser avesso a todo comportamento censurvel, ou seja, por princpio censurvel. Smith chama o

    juiz interno dessa jurisdio de expectador imparcial, ou ainda o grande morador do peito, grande juize rbitro da conduta (SMITH, 2002: 328). Tendo os olhos para esse segundo tribunal, Smith podeafirmar que

    naturalmente o homem no apenas deseja ser amado, mas amvel; ou ser objeto natural e

    apropriado de amor. Naturalmente no apenas teme ser odiado, mas ser odioso; ou ser objetonatural e apropriado de dio. No deseja apenas louvor, mas o que digno de louvor; ou, aindaque no louvado por ningum, ser objeto natural e apropriado de louvor. Tem horror no apenas censura, mas ao que digno de censura; ou, embora ningum o censure, ser, contudo, objetonatural e apropriado de censura. (SMITH, 2002: 143)

    Tudo isto significa que, ao mesmo tempo, que o indivduo a medida de todas as coisas(funcionando como juiz externo), a sociedade experimentada por ele, e ainda por seus antepassados, amedida da qual ele parte para fazer seu julgamento (juiz interno). Os dois juzes devem ser concordantes,a no ser em casos especiais quando um julgamento deslocado de seu plano verdico (exemplo:acusao sobre um inocente) ou quando a experincia radicalmente transformada em outro tipo(exemplo: o homem solitrio e isolado que se confronta com a sociedade). Ao dizer que empenhamo-nos em examinar nossa prpria conduta como imaginamos que outro expectador imparcial e leal a faria(SMITH, 2002: 140), Smith deriva sua idia do autodomnio: o homem que se tornou social reconhece,nos outros, as suas prprias paixes, que, por sua vez, sero alvo de censura ou louvor, direcionando-osassim quele comportamento comedido e virtuoso, aceito por no ferir e nem abusar dos sentimentossimpticos que todos ns possumos e gerimos permitindo o convvio entre diferentes. Qualquer destoarde solidariedade adequada, a depender dos tipos de paixes prazerosas ou dolorosas, insulta ou incomodaos expectadores ou o indivduo que sofre com a paixo original. Aqueles, por no compartilharem de

    paixes alheias, e esses, por no comedirem suas paixes em nvel razovel, sero reprovados. Porm,

    esse desejo de aprovao e essa averso desaprovao de seus irmos no seriam suficientespara torn-lo adequado sociedade para a qual fora criado. A natureza o dotou, pois, no apenasde um desejo de ser aprovado, mas de se tornar objeto de aprovao necessria , ou de seraprovado pelo que ele mesmo aprova em outros homens. O primeiro desejo apenas o faria esperarmostrar-se adequado sociedade. O segundo foi necessrio a fim de faz-lo preocupar-se em serrealmente adequado. O primeiro apenas poderia t-lo motivado a afetar virtude e a ocultar o vcio.

    subjugadas por ele. (SMITH, 2002: 329).24 O prazer que usufruiremos em dentro de dez minutos nos interessa to pouco em comparao com o que talvez gozemoshoje; a paixo que o primeiro desperta , naturalmente, to fraca em comparao com a violenta emoo que o segundo podeocasionar, que um jamais poderia compensar o outro, a no ser amparado pelo senso de convenincia, pela conscincia de quemerecemos a estima e aprovao de todo mundo ao agirmos de um modo, e de que nos tornaramos, ao nos portarmos do outro

    modo, objetos apropriados de seu desprezo e escrnio. (SMITH, 2002: 233).O respeito pelo que so ou deveriam ser ou seriam, em certas condies, os sentimentos de outras pessoas o nico princpioque, na maioria das ocasies, mantm em temor reverencial todas aquelas paixes rebeldes e turbulentas, adequando-as modulao e temperamento de que o espectador imparcial pode partilhar, e com que pode simpatizar. (SMITH, 2002: 328).

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    O segundo foi necessrio para inspirar-lhe o verdadeiro amor virtude e o real horror ao vcio. Emtodo esprito esclarecido, esse segundo desejo parece ser o mais forte dos dois. Apenas os maissuperficiais e mais fracos dos homens podem se deliciar com o louvor que sabem em tudoimerecido. (SMITH, 2002: 146-147, grifos nossos)

    Nesse sentido, a natureza do homem possui princpios os quais direcionam seu julgamento para o

    outro, para em seguida refletir-se no nosso julgamento de nossa prpria conduta, uma vez que naimaginao os motivos so to fortes para evitar a censura quanto no real. Desse modo, enquanto o louvordireciona parte da deciso de ao, outra parte direcionada pelo louvvel, dado que o expectadorimparcial reprime ameaando com sentimentos no prazerosos (remorso) as aes censurveis. Nessesentido, a natureza humana dupla:

    O homem que deseja praticar ou realmente pratica uma ao louvvel pode [...] desejar o louvorque devido ao, e s vezes talvez mais do que o devido. Nesse caso, os dois princpios (amorao louvor e amor ao louvvel) se mesclam um ao outro. Em que medida sua conduta foideterminada por um, e em que medida foi determinada pelo outro, eis o que o fundamento elemesmo desconhece. Quase sempre os outros tampouco o sabem. (SMITH, 2002: 157-158)

    Isso implica que Smith v na conciliao entre indivduo e sociedade a maior perfeio danatureza humana, onde os indivduos so submetidos prtica constante e sob a necessidade permanentede visualizar seus atos e regul-los por intermdio do expectador imparcial; de fato, eles quase se tornamesse expectador imparcial, e at mesmo quase sentem o que esse grande rbitro de suas condutas comandaque sintam (SMITH, 2002)25. Por isso, por mais que o amor prprio contenha foras que sobrepujamoutras paixes menos fortes, o direcionamento da ao para fins sociais benficos estaria assegurado umavez as regras dos homens e os interesses do indivduo devem se ajustar, pois esse ajuste conforme natureza. De fato, este se parece com o melhor dos mundos, pois a natureza moral, alm de direcionar aconduta econmica dos homens para o correto, no permite o descaso dos assuntos morais nos assuntoseconmicos26 e ainda castiga os sem moral:

    na corrida por riqueza, honras, e privilgios, poder correr o mais que puder, tensionando cadamembro e cada msculo, para superar todos seus competidores. Mas se empurra ou derrubaqualquer um destes, a tolerncia dos espectadores acaba de todo. uma violao equidade, queno podem aceitar. (SMITH apud AVILA, 2010)

    Por fim, importa lembrar que Smith estava consciente de que os hbitos podiam mudar destruindoeste estado de coisas ideal. A super especializao oriunda dos progressos da diviso do trabalho,derivada por sua vez daquela competio conforme natureza (e s regras de equidade) da situaoanterior, pode levar ao embrutecimento, equivalente a enfraquecimento do juiz externo e, assim, tambm,

    do juiz interno. Para que isso no ocorresse assim como para que nossas paixes no tentassemdemasiadamente nosso mandamento moral imparcial as regras gerais da justia e do artifcio deveriamguardar, sob ltimo caso, o dever moral dos indivduos, assim como na religio a figura ideal de

    25 Aqueles grandes objetos de interesse prprio, cuja perda ou aquisio muda inteiramente a posio social de algum, soobjetos da paixo propriamente chamada ambio, paixo que, quando mantida dentro das fronteiras da prudncia e da justia, sempre admirada no mundo, mas, quando ultrapassa o limite dessas duas virtudes, assumindo um esplendor irregular queofusca a imaginao, torna-se no apenas injusta, mas extravagante. (SMITH, 2002: 210).26 (...) as leis humanas, conseqncia de sentimentos humanos, privam o diligente e cauteloso traidor de sua vida e posses,enquanto do extraordinria recompensa fidelidade e ao esprito pblico do bom cidado, o qual, no entanto, imprevidentee descuidado. Assim, a natureza ordena ao homem que corrija em certa medida essa distribuio das coisas, pois do contrrio

    ela mesma teria corrigido. (...) As regras que a natureza segue lhe so adequadas, as que o homem segue so adequadas para simesmo; mas ambas so calculadas para proporcionar a mesma grande finalidade: a ordem do mundo, a perfeio e a felicidadeda natureza humana. (SMITH, 2002: 203).

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    expectador imparcial se faz presente pelos mesmos meios, como ltimo recurso, apesar de tambm sofrerdesvios.

    Tais mudanas de hbitos e costumes aparecem tambm nas anlises comparativas entre asnaes. Quanto mais brbaros os costumes e difcil a sobrevivncia, mais fraca a simpatia entre osindivduos - nossa prpria misria nos agulha to severamente, no temos vagar para cuidar da misriaalheia". (SMITH, 2002: 246). So as circunstncias que possibilitam aos homens tanto perpetuar e

    reproduzir o embrutecimento como a polidez. O costume torna-se habitual e pode ser percebido, comomuitos o chamam, de jeito do mundo, algo que pode ou deve ser praticado para impedir que sejamoslogrados por nossa prpria integridade (SMITH, 2002: 247). Em suma:

    Toda poca e pas considera o grau de cada qualidade que habitualmente se encontra nos homensrespeitveis como o ponto mdio do talento ou virtude particular, e, como isso varia conforme asdiversas circunstncias tornem diferentes qualidades mais ou menos habituais, por conseguintevariam os sentimentos relativos exata convenincia de carter e comportamento. (SMITH,2002: 252)

    Todavia, apesar dessa incrvel capacidade de distoro dos sentimentos, jamais sero alvo de

    costume aquelas aes que contradizerem nossos sentimentos relativos ao estilo e carter gerais daconduta e comportamento, do mesmo modo como os relativos convenincia ou ilegitimidade de usos

    particulares (...) [se assim fosse] nenhuma sociedade poderia subsistir por nenhum momento (SMITH,2002:60). O mecanismo de aprovao e desaprovao segundo a convenincia ou inconvenincia da ao

    permanece constante apesar das diferentes costumes e culturas, o que permite certa concordncia deprincpios morais, mas muita diferena entre as regras a depender dos nveis de satisfao dasnecessidades bsicas como a conservao e o estado saudvel do corpoetc. (SMITH, 2002: 265) muito embora essa busca primeira no apague a paixo pelo reconhecimento e pelo alcance de posio nasociedade"27.

    Retomando os pontos principais da reflexo smithiniana, mas j apontando desdobramentosnossos que acreditamos em conformidade com o seu pensamento, diramos que o mais importante adestacar : i) se a capacidade humana de simpatizar com o outro um dom da natureza, esta no suficiente para fazer a natureza humana egosta e auto-interessada ou altrusta e benevolente; ii) j ohbito, em conformidade com as condies objetivas e subjetivas de dada poca e lugar, sim capaz defaz-lo; iii) a capacidade de simpatia, entendida em toda a sua dimenso de identificao com o outro viaimaginao e sob o julgamento de um terceiro ("expectador imparcial") reafirma, como diz Ganem (2002)uma incompletude ontolgica (definidora, substancial) do homem; iv) ou seja, antes de ser a princpio,dado, isolado, auto-suficiente e sozinho, o indivduo a sua relao com o outro e se este se v dessa oudaquela maneira (inclusive quando o indivduo se v como algo dado, isolado e sozinho), que as suarelaes (intersubjetivas) o permitem; v) isso significa que, como dissemos atrs, h uma sociedade portrs do indivduo em Smith, ou seja, a natural necessidade da aprovao do outro (explorada como vimos

    na Teoria dos Sentimentos Morais), bem como a natural necessidade de expanso das trocas (toconhecida naRiqueza das Naes), no so um natural fora da histria, mas so resultado mesmo desta.Explorando um pouco mais este ltimo ponto, o que estamos a dizer que, o ponto de partida de

    Smith, menos o indivduo em si, digamos naturalizado, como "um da espcie", fora de qualquerconsiderao da sociedade, da cultura e da histria, e mais uma possibilidade a partir desta. O aspecto de

    27 Embora seja para suprir as necessidades e convenincias do corpo que as vantagens da fortuna externa nos sooriginalmente recomendadas, no podemos viver muito neste mundo sem perceber que o respeito de nossos iguais, nossocrdito e posio na sociedade em que vivemos, dependem muito do grau em que possumos, ou em que se supe possuirmos,essas vantagens. Os desejos de nos tornarmos objetos apropriados desse respeito, de merecer e alcanar esse crdito e posioentre nossos iguais, talvez o mais forte de todos os nossos desejos; e, por conseguinte, esse desejo suscita e exaspera nossa

    preocupao de alcanar as vantagens da fortuna mais do que o desejo de suprir todas as necessidades e comodidades do corpo,

    quase sempre muito fceis de se suprirem. (SMITH, 2002:265/266) Dessa busca, no por prazer, mas por glria, nodesenfreada, mas comedida e respeitosa que Smith poder afirmar que o cuidado da sade, da fortuna, da posio ereputao do indivduo objetos dos quais se supe que dependam principalmente seu conforto e felicidade nesta vida considerado a empresa prpria daquela virtude comumente chamada de prudncia. (SMITH, 2002: 266).

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    naturalidade (e mesmo harmonia) devm de uma generalidade, que ele precisa corretamente na Riquezadas Naes: a generalizao das trocas, ou mais precisamente em Smith, o desenvolvimento da tendnciahumana s trocas28. E, quer nos parecer, que esta generalizao das trocas econmicas, anda de par com oigualitarismo (social e poltico) entre indivduos, uma vez que o jogo de identificao, a partir dacapacidade de simpatia (base da sua filosofia moral), bastante ampliado neste tipo deeconomia/sociedade. Ou seja, os indivduos no so capazes de se "colocar no lugar do outro" por uma

    deciso pessoal, natural, mas moral, na medida em que moral implica o jogo de reconhecimento quevimos atrs. Ou seja, se so capazes de faz-lo, o so em determinada poca, onde isto se tornou umhbito, e mais uma necessidade! E acrescentaramos um hbito possibilitado pela igualdade real (diriaformal um marxista, sem negar, contudo, a radicalidade desta igualdade vis a vis os outros temposhistricos) de posio dos homens na sociedade.

    Est implcito nos pargrafos anteriores o quanto cremos que esta postura da filosofia moralsmithiniana no est em desacordo com sua Economia Poltica, o que nos coloca ao lado daqueles que nodebateDas Adam Smith problem defendem no a ruptura mas a unidade entre a Teoria dos Sentimentos

    Morais e aRiqueza das naes29; e ainda que tudo que nesta ltima obra se diz sobre a natureza egosta eauto-interessada do homem s faz sentido se se ver esse comportamento como (contraditoriamente)natural em determinada poca a burguesa. A seguir veremos como em Bentham, justo esta contradio

    h de se perder...

    Seo 3) O abandono da simpatia intersubjetiva pelo clculo "objetivo" em Bentham

    Jeremy Bentham (1748 1832) reconhecido por muitos como primeiro desenvolvedor eprincipal expoente do pensamento utilitarista, aplicando seus princpios nos campos da moral e dapoltica. Herdeiro de Hutcheson, como Hume e Smith, Bentham adota a mxima deste de que a melhorao a que proporciona a maior felicidade para o maior nmero de pessoas. Tal modo de pensar sercondizente com sua idia de moral fundamentada nos princpios utilitrios que regem a natureza humana,onde apenas os pilares de dor e prazer sustentam as motivaes individuais ou coletivas, em regra, aexistncia humana.

    A princpio, a concepo de indivduo em Bentham no parece muito distante das de Hume eSmith. Bentham tambm se considera um empirista que capta o seu objeto (o comportamento dosindivduos) em sua experincia concreta, seus hbitos cotidianos. Ele tambm no rejeita os sentimentosderivados da simpatia, assim como no nega a existncia de comportamentos altrustas. O que ele diz,contudo, que estes constituem "termos ficcionais" os quais ele, com seu mtodo consegue associar aos"termos reais", dor e prazer30. este mtodo de Bentham que capaz de separar a naturalidade (dos

    28 Ainda que chamar assim o resultado da tendncia humana s trocas seja uma alterao possvel apenas no linguajarmarxista, no acreditamos que isto altere o significado de fundo na obra de Smith, apenas faz dialogar a sua denominao aoconceito de fato. Hegelianamente falando, isto se passa como se o conceito, fosse maior e mais real que suas elucubraes pordiferentes autores em suas obras ao longo da histria; o que no o torna uma obra do Esprito fora do mundo, mas no mundo. O

    conceito o que ele vem a ser no somatrio do dilogo entre todos, e na lgica que tornou esse dilogo possvel.29 "Das Adam Smith Problem" como chama a escola histrica alem esta questo da embricao das duas obrassmithianianas. Para uma exposio resumida da polmica e uma defesa da posio unitria vide GANEM, 2002. Vide ainda oscomentrios feitos por SEN, 2010 sobre o equvoco da viso do indivduo smithiniano como egosta e auto-interessado.30 Tal mtodo, denominado parfrase, consiste, resumidamente, em: encontrar uma sentena que contenha o termo ficcionalcomo sujeito, um predicado que designe uma propriedade do sujeito e um termo de ligao entre eles, denominado cpula,achar uma traduo para tal sentena em uma ou mais sentenas em que o termo ficcional que se deseja explicar no aparea eque contenha uma concepo de relao com um termo real e construir uma imagem a partir de um arqutipo que exprima otermo ficcional, em termos de sensaes que se traduzam, especialmente, em prazer e dor. Ou seja, o objetivo desta forma deexplicar termos ficcionais sempre ter em vista sua relao com termos reais como prazer e dor, pois sem esta relao torna-seimpossvel estabelecer uma real compreenso destes termos. Em outraspalavras, s faz sentido falar de entidades fictciasquando associadas s entidades reais como prazer e dor: () of any such fictitious entity, or fictitious entities, the real entitywith which the import of their respective appellatives is connected, and on the import of which their import depends, may be

    termed the real source, efficient cause, or connecting principle (Bentham,)". Ou seja, "a explicao dos termos ficcionais deve,em todos os casos, manter uma relao com os termos reais, para que as conseqncias dos primeiros termos possam sertraduzidas pelas conseqncias dos segundos" ( DIAS, 2011:16/17).

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    termos reais) e a artificialidade (dos termos ficcionais). Diviso esta que vimos que tinha sido implodidaem Smith. Ou seja, em Bentham os construtos humanos prticos, onde so aplicados os princpios damoral (regras, obrigaes, tica), so pertencentes ao que mvel, e, se devem ser modificados de acordocom o princpio efetivamente natural sempre que a ponderao entre dor e prazer o exigir no socapazes de mudar nada nesta, que permanece assim, fixa. Se, de um lado, a natureza fixa e real, deoutro, a sociedade ou comunidade, um corpo fictcio.

    (...) A comunidade um corpo fictcio, composto de pessoas individuais que so consideradoscomo seus membros constitutivos. O interesse da comunidade , ento, o qu? - A soma dosinteresses dos diversos membros que a compem. (BENTHAM, 1974: 4)

    Interessante destacar de imediato que, sendo a comunidade apenas "soma das partes", no serequer nenhuma naturalidade para a comunidade de interesses, como a mo-invisvel de Smith. Aharmonia entre todos objeto apenas da artificialidade das formas de gesto do bem comum, construdas

    para limitar, mediar, os excessos individuais que prejudiquem o bem estar geral. Por isso a "misso dosgovernantes" deve ser "punir e recompensar" (ou seja, gerar prazer e dor) de modo a proporcionar omximo de felicidade para a sociedade, no submetendo impositivamente a definio de prazer dos

    indivduos, mas antes reforando as escolhas racionais individuais dos agentes no que tange aocomportamento otimizador. Da ser:

    "o objetivo geral que caracteriza todas as leis - ou que deveria caracteriz-las - consiste emaumentar a felicidade global da coletividade; portanto, visam elas em primeiro lugar a excluir, namedida do possvel, tudo o que tende a diminuir tal felicidade, ou seja, tudo o que pernicioso."(BENTHAM, 1974: 60)

    A harmonia entre indivduo e sociedade viria de seguirem, a tica pblica e a privada, a mesmanorma calculadora, da busca da felicidade pela maximizao do prazer, de todos ou de si. A tica pblicatendo pois por objetivo "construir o edifcio da felicidade atravs da razo e da lei". Mas sendo a esfera

    pblica definida como ficcional, Bentham pode restringir suas anlises natureza (absolutamente natural)dos indivduos.

    Em termos bastante resumidos, o indivduo definido por Bentham como aquele: "a) que busca oprazer e foge da dor, pois esta uma caracterstica da sua natureza; b) alm disso, ele a entidadeontolgica fundamental para anlise poltica, pois o nico que possui existncia na realidade, sendo queas sensaes que busca tambm so denominadas sensaes reais; e c) possui uma razo denominadarazo calculadora que prev as consequncias das aes. (DIAS, 2012: 489). Mas vejamos como o autorchega a estas simplificaes, para ns, to insatisfatrias.

    Os indivduos querem por natureza sobreviver, querem o maior bem para si, mas, tambm emBentham, querem ser amados por outros e querem estimar-se a si prprio. Essa compreenso dada de

    imediato, para Bentham, para o indivduo que sofre a falta de qualquer destes elementos. E este mesmosofrimento que o leva a se solidarizar, com mais vigor e com mais constncia, por si mesmo. Seria muitodifcil (ou conflituoso, sofrido) fazer uma avaliao que no fosse viesada por seus prprios interesses. 31

    Sendo assim, no lugar de um terceiro, um "expectador imparcial" com quem o eu possa dialogar e mesmose apaziguar, o que tem lugar que na maioria dos comportamentos, os reais motivos da ao sofremrecalque pelo prprio agente, tendo em vista adequar-se moral vigente e a sua prpria estima. Logo, acompatibilizao entre o melhor para si e a busca da estima do outro s possvel base do conflito entremeus motivos e minha estima. Onde o indivduo toma como mxima: o maior bem para mim mesmo; amoral fala: o maior bem para o maior nmero de pessoas. Da que uma sobreposio completa entreelas sempre improvvel e requer uma perfeita estruturao da sociedade, entre governantes egovernados. Alm disso, sendo que apenas em homens de elevada educao e refinamento, esta harmonia

    31 Ressaltamos que a mesma observao tambm feita por Smith, mas que em seu discurso a vontade individual autnoma srepresenta parte do reconhecimento de vontade total do indivduo e no contm vis preponderante ou capacidade de observaro autointeresse em si.

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    seja provvel, seria prudente para as anlises tomar o homem mdio, autointeressado, como regra geral docomportamento mdio32.

    Dessa forma Bentham simplifica a natureza humana de maneira explcita, retirando todo tipo devariaes (inclusive as de tempo e lugar) para dispor o indivduo como vetor utilitrio frente ao bemabsoluto. Fora a angstia de cada um frente a sua escolha, moral versus particular, os indivduos nocomungam de nenhum processo de identificao (como em Smith) e mesmo de comunho de hbitos

    locais-temporais (Smith e tambm Hume). Nesse universo reina apenas o princpio de utilidade comoguia comum da ao natural.33

    Nota-se como Bentham procurando se antecipar a qualquer considerao histrica das valoraes,encontra no "princpio utilitarista" uma base neutra (e "positiva"), um fundamento extrnseco para o

    julgamento humano, chega ao oposto, a uma posio normativa. Isso por afirmar que a moral deveidealmente (ou seja, para todas as pocas) basear-se unicamente no princpio da utilidade, pois podemossempre afirmar ou que a ao conforme esse princpio deve ser praticada, ou, no mnimo, que no

    proibido pratic-la (BENTHAM, 1974: 11).Bentham se afasta assim de toda verdade construda na histria. Para ele toda verdade percebida

    como mutvel inverdade. Neste caso, as aberturas histria que vimos em Hume e Smith, seriam merasimprecises. E mais, da impossibilidade de derivar de seus sistemas um princpio universal das aes,

    Bentham deriva que a aprovao ou a reprovao constituem uma razo suficiente em si mesma(BENTHAM, 197: 15). Isso apenas mostra que a necessidade desesperada de Bentham por umfundamento extrnseco o conduz a uma reduo empobrecedora da natureza e da situao humanas,uma vez que aniquila o todo relacionado entre julgamento moral e estrutura social historicamenteconstruda.

    Mas voltando ao "princpio utilitarista", como vamos ele funciona porque costura os indivduos eseu auto-interesse com algo que os limita (desde fora) mas cujo funcionamento pautado pelo mesmo

    princpio. Ou seja, se no h um espao para o julgamento moral num terceiro entre mim e o outro(terceiro este que no imune aos hbitos e costumes) h apenas o regime de punies imposto pelogoverno para refrear os abusos (com penas duras, mas nem tanto que criem um sofrimento intil)34. Se umsistema moral com base no princpio da simpatia varivel demais, para o estabelecimento de regrasgerais, leis e conseqentes estatutos de punio; o princpio de utilidade sim possui a capacidade racionale a amplitude universal para abarcar um sistema geral, poltico e jurdico, sem distores provocadas porvalores culturais, gostos ou por demais deformaes entre a hierarquia entre os indivduos.

    Isso implica reconhecer que o princpio de maior felicidade para o maior nmero de pessoas deveseguir ainda outra mxima: Cada um deve ser contado como um, e ningum como mais de um(MAGEE, 2001). O que significa que Bentham no est fundamentando a moral nas suas diversasformas e funes histricas mas sim a purificando de digresses parciais e, assim, tornando conscienteum modelo ideal-prtico a ser seguido como nico princpio moral universal confivel. Ou seja, estsendo puramente normativo. Bentham escreve:

    O nico fundamento correto da ao , em ltima anlise, a considerao da utilidade, a qual, sefor um princpio correto da ao e da aprovao em um determinado caso, s-lo- em todos.32 Assim, se querermos falar em natureza humana egosta em Bentham, temos de falar de natureza em termos de probabilidade,de algo como sendo somente o mais comum, o que no elimina mas reduz enormemente a possibilidade de uma sociedadeser plenamente educada e esclarecida a ponto de agir sempre conforme o princpio moral utilitrio Si en cualquier comunidad

    poltica hay algunos individuos que, por constancia, prefieren los intereses de todos los dems miembros juntos al inters queforma la suma de sus propios intereses individuales y el de las pocas personas relacionadas, particularmente, con ellos, estosindividuos de espritu pblico sern tan escasos y, al mismo tiempo, tan imposible de distinguirse de los dems, que paracualquier objeto prctico, sin cometer un positivo error pueden no tenerse en cuenta. (BENTHAM, 1965: 13).33 Por princpio de utilidade entende-se aquele princpio que aprova ou desaprova qualquer ao, segundo a tendncia que tema aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse est em jogo, ou, o que a mesma coisa em outros termos,segundo a tendncia a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ao, com o que tenciono dizer que

    isto vale no somente para qualquer ao de um indivduo particular, mas tambm de qualquer ato ou medida de governo.(BETHAM, 1974: 10).34 A est umas das crticas do autor ao sistema moral baseado no princpio da simpatia e da antipatia, pois esse tende aomximo a pecar por severidade excessiva. (BENTHAM, 1974:16).

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    ainda via hbito ou averso ao desenvolvimento de um que seja censurvel 37, mas em ambos os casos oindivduo que considera sua reputao o faz em um quadro de isolamento e solido.

    Nota-se a diferena entre a argumentao de Bentham sobre a benevolncia e o querer seramvel de Smith. Neste, a considerao moral naturalizada (mas, como vimos, porque herdada dascircunstncias), quase no raciocinada e sim interiorizada nos seus aspectos gerais, sendo assim tambmdificilmente manipulada ou ensinada. Se se quer atuar sobre a benevolncia, h que se alterar as condies

    objetivas nas quais os indivduos esto postos (para que a sua verdadeira natureza se possa desenvolver).Estas teses so refutadas por Bentham que acredita ter descoberto o princpio moral imparcial, atravs doexerccio da razo, que nega o alcance da imparcialidade para o homem mdio assim como nega o sensode justia inato. Isso se passa porque em Smith, ao contrrio de Bentham, o eu s em parte um euindividual, que ainda desconhece grande parte do que seja o seu querer, e cujo julgar diz respeito quela

    parte de si que participa do eu social que a espectador imparcial. Por essas vias, Smith entende que umato que agrida a sociedade mesmo que na ausncia dela agride o prprio agressor, porque o desvirtuada imagem que faz de si (a nica que possui como indivduo concreto). Ou seja, o aprofundamento dosnveis de conscincia que tem lugar quando se abre o raciocnio entre indivduos inviabiliza assignificaes prticas da utilidade racional.

    Feitas essas observaes fica mais claro que o conflito existente entre natureza humana e moral em

    Bentham se d num mesmo terreno, o da individualidade sem sociabilidade. No um conflito entreinteresses individuais, egostas, e a moral resultante das relaes entre indivduos. A moral utilitria damesma natureza da natureza humana utilitria, trata-se pois de uma confrontao entre motivos mais oumenos dispostos entre um plo e outro do mesmo escalo de consideraes. Um conflito entre os motivosde autopreservao (disposio sobre a felicidade prpria) e os motivos de boa vontade ou benevolncia(disposio sobre a felicidade dos outros), deve, via de regra, ser vencido pelo primeiro, sob a ameaa deextino da espcie e sobre a maior parte da vida de um homem, entendendo o motivo da auto-

    preservao como um motivo ideal dentre o conjunto de motivos pessoais.

    Cul es el idioma de la verdad sencilla? Que a pesar de todo lo que se ha dicho, el predominiogeneral de la propia estimacin sobre cualquiera otra clase de consideracin, queda demostrado

    por todo lo que se ha hecho: o sea, que en el curso ordinario de la vida, en los sentimientos de losseres humanos de tipo comn, el yo lo es todo, comparado con el cual, las dems personas,agregadas a todas las cosas juntas, no valen nada; y eso, aceptando, como quizs pueda serlo, queen un estado de extrema madurez de la sociedad se pueda encontrar, de vez en cuando, una mentevastsima cultura y de amplitud de miras que, bajo el influjo de un estmulo extraordinario, haga elsacrificio del inters de su propia consideracin en aras del inters social, en escala nacional; deesto no ha dejado de haber algn ejemplo; la virtud pblica de esta naturaleza, razonablemente no

    puede considerarse, porque se toma muy frecuentemente como ejemplo de locura. (BENTHAM,1965: 12)38

    Pois esse mesmo princpio, apenas aparentemente, emprico, positivo e rigoroso, que Bentham entendeser uma base firme para a cincia econmica recm nascida:

    37 Se um ato for desonroso, no existe garantia alguma que se possa ter acerca do carter secreto do ato particular em questoque naturalmente superar as objees que ele pode ter contra a prtica desse ato. Embora o ato em questo devesse

    permanecer secreto, tender a formar um hbito, que pode dar origem a outros atos, os quais no podem ter a mesma boa sorte.Talvez no haja homem algum, na idade da discrio, sobre o qual consideraes desse tipo no exeram alguma influncia;essas tm maior peso sobre uma pessoa em proporo fora de suas potncias intelectuais e firmeza de sua mente. A isto seacrescenta a influncia que o hbito, uma vez formado, tem no sentido de demover uma pessoa de atos em relao aos quaiscriou averso, em razo da desonra que os caracteriza, bem como em razo de qualquer outra causa. (BENTHAM, 1974: 50).38 E "En cada pecho humano, con excepcin de entusiasmos raros y de otra duracin, resultantes de algn fuerte estmulo oincitacin, el inters de la propia consideracin predomina sobre el inters social: el propio inters particular de cada persona,

    sobre los intereses de todas las dems personas juntas. En los pocos casos en que, en todo curso general de su vida, unapersona sacrifica su proprio inters individual al de cualquiera otra persona o personas, stas sern algunas con las que estrelacionada por algn estrecho vnculo de simpata domstica o de otra ndole particular; no a la totalidad o mayora de losindividuos que constituyen la comunidad poltica a la que l pertenece. (BENTHAM, 1965: 12-13).

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    Deber dependerse siempre del principio de accin cuya influencia sea la ms poderosa,constante, uniforme, permanente y ms generalizada entre la humanidad. Ese principio es elinters personal; el sistema de economa que se construya sobre cualquiera otra base, se edificasobre una base falsa. (BENTHAM, 1965: 13)

    4) Concluso

    Como dissemos na Introduo a este trabalho, o papel do indivduo na economia basilar para aconstruo desta cincia desde seus primrdios (com Hume e Smith) at os atuais sofisticados modelosneoclssicos passando mesmo pela discusso marxista (nem que seja evidenciando, na sua ausncia, umseu ponto cego). Como diz Paulani (1996) sem o indivduo no haveria "propenso troca, preo demercado girando em torno de preo natural, maximizao sujeita a restries, preferncias reveladas,

    propenso a consumir e a poupar, decises de investimento, demanda efetiva, antecipao racional demedidas de poltica econmica, progresso tecnolgico, concorrncia, crises, e... mercado"; eacrescentaramos ainda, acumulao, fetiche e superao do capitalismo.

    Contudo, as concepes acerca do que o indivduo no so ainda suficientemente claras pra ns.

    Assim que, em Smith, por exemplo, e ao contrrio do que afirma Paulani (1996), o indivduo, em suanatureza autointeressada, no , pelo menos no simplesmente, condio das trocas, mas resultado delas.Para ns, a famosa sentena de que "no da benevolncia do aougueiro, do cervejeiro ou do padeiroque esperamos nosso jantar, mas da considerao que eles tm pelo seu prprio interesse. Dirigimo-nosno sua humanidade, mas sua autoestima" (SMITH, 1996) no mostra que Smith assente a "propensonatural troca na considerao que cada um tem pelo seu prprio interesse" (PAULANI, 1996). Tudo oque vimos mostra como o "interesse prprio" no emerge de um indivduo considerado isoladamente, masdo seu autoreconhecimento no outro com o qual convive. As trocas so assim, de certo modo,

    pressupostas a ele e no postas por ele. porque h um desenvolvimento da diviso do trabalho que oshbitos mudam. por causa da especializao posta como regra geral (no mercado) que o melhor quecada um pense em si. E por isso pode mudar, pois Smith alerta que uma super-especializao do trabalho

    pode dar origem a hbitos perniciosos que levam ao embrutecimento, o que poderia tornar o autointeresseno mais naturalmente interessante.

    Interessante seguirmos a concluso de Paulani ao comentrio sobre Smith, uma vez queconcordamos com ela integralmente: "Como poderia um ser humano atado a outros por relaes dehierarquia e dependncia pessoal lutar pelo seu prprio interesse? E como poderia faz-lo se suaidentidade fosse antes comunitria do que individualmente definida? No primeiro caso faltar-lhe-ia aigualdade; no segundo o direito privado de posse" (PAULANI, 1996). Certo, Smith no est respondendoa isto, no est fazendo como Marx, a gnese da economia que observa. Mas o indivduo que ele observano est mais sob o jugo dos laos de dependncia pessoal, tem j uma identidade menos atrelada comunidade, e j vigora a liberdade e a propriedade (ainda que formal, diria Marx). Mais ainda, Smith

    no est generalizando, como muitos depois dele, tais condies para um todo o sempre natural. Se noh em Smith (e diramos tambm em Hume) esta histria com o H maisculo (de um materialismohistrico a la Marx, ou de uma histria que devm dos avanos da pesquisa antropolgica e histrica que

    bebem em outras metodologias) h, e esta a primeira concluso que apresentamos aqui, que a histriano se ope mais ao natural. As definies humenianas e smithinianas da natureza humana no sodefinies de uma natureza fora da histria, mas de uma histria limitada pelo escopo mesmo de suaobservao.

    A segunda concluso que devemos marcar segue o raciocnio acima, uma vez que poderamosdizer que o comportamento utilitarista e a sua operacionalizao pelo clculo (tendo o dinheiro comoelemento prtico), como analisado por Bentham, tambm poderia ser defendido por ser o que havia dereal e observvel em sua poca39. Contudo, como mostramos, isso no possvel justo por Bentham

    39Como, de resto o que mostra Marx com toda a sua analise do fetichismo nO Capital que no um desmentido disso, mas

    um porqu disto, e mesmo as observaes feitas no Manifesto Comunista acerca da substituio dos laos pessoais por laosmonetrios-financeiros.

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    fechar a porta intersubjetividade e, decorrente desta, construo de uma artificialidade (o terceiro que o espectador imparcial) que se torna natural. Ou seja, o momento que ele observa no tem qualquerconexo com outros, o que ele deseja de fato sair da histria.

    Por fim, h que comentarmos algo sobre a harmonia (intra e entre indivduos) como condionatural da existncia humana em Hume, Smith e Bentham. Se se pensar no indivduo, a imploso entre onatural e o histrico em Smith e Hume insuficiente para justificar a sua defesa, mesmo que parcial, da

    harmonia, vis a vis o conflito, como condio natural do homem. E aparentemente h certa agonia (masno conflito) no indivduo benthaniano. Isso porque, na frmula humeniana e smithiniana, no apenas omercado que o conciliador de interesses, mas h todo um processo de internalizao do Outro moral (oque os psicanalistas chamam de o Superego), que os faz dividirem suas responsabilidades frente a prpriaconstruo da harmonia. J em Bentham, os indivduos vivem isolados na sua racionalidade utilitria (eainda ameaados, desde fora, por um grande Outro que pouco os conforta 40) e ao mercado deve caber aharmonizao automtica, ou seja, sem participao efetiva dos indivduos. Se pensamos na harmoniasociedade/indivduos, vemos que enquanto esta "natural" em Hume e Smith, sendo assim, ontolgica:em Bentham resulta de um princpio metodolgico41. No caso de Bentham, um "governo contador", cujatica pblica consiste no clculo da maior felicidade possvel para a maior parte, que coincide (mais queharmoniza) com um indivduo contador, cuja tica privada consiste no clculo da mxima felicidade

    possvel para si. So suas metodologias que os aproximam.Ocorre que as contradies a esta harmonia social sero mais gritantes em Bentham que em Hume

    e Smith. Bentham sabe que no basta ao governo a administrao governo de regras e penas que limitemos abusos do auto-interesse, pois, se os indivduos se igualam na sua natureza hedonista, no so iguais nadistribuio de seus talentos, e "dado que os homens diferem entre si em capacidade e energia, algunsobtero mais propriedade que outros" (BENTHAM, 1974: 38). Da, a civilizao ser impossvel sem "asegurana da propriedade dos frutos do prprio trabalho". O que implica que as leis devam "garantir a

    propriedade individual", e se abster de querer igualar a propriedade, uma vez que "qualquer pretenso dalei de reduzi-las igualdade destruiria o incentivo produtividade" (Idem). Mas Bentham, denunciandoseu ahistoricismo interessado, entende tambm que no bastaria garantir a propriedade dos frutos do

    prprio trabalho, mas garantir a segurana de "qualquer espcie de propriedade existente, inclusive aquelaque talvez no seja dos frutos do trabalho de cada um" (BENTHAM, 1974: 36).

    O que isto denuncia? Que por trs do projeto de transformar a "tica numa geometria" fica aquesto da nada natural igualdade entre os homens. Menos exigentes em suas pretenses cientficas,Hume e Smith, mesmo defendendo: a harmonia de interesses via mercado, os direitos de propriedade, etc.no chegam a afirmar que os homens sejam igualmente proprietrios e igualmente usurios das coisas queseu trabalho lhes pode prover (cujo valor ainda por cima, seria avaliado conforme os graus de utilidadeque tem para ns).

    evidente para qualquer leitor da Riqueza das Naes que comandar trabalho alheio umarealidade posta pela apropriao de recursos antes livres, que a diviso em classes (dos indivduos quedispem de "riqueza acumulada" e daqueles "indivduos industriosos" que s dispem da sua fora e

    habilidade de mos (SMITH, 1996)) a condio da economia de mercado. Se que as nossas"tendncias e esforos" so dons naturais que nos colocam em p de igualdade, Smith bem sabe que h aum condicionante histrico que nos torna diferentes, pois, no permitido a todos os indivduosexercerem nas mesmas condies de "liberdade e segurana" (SMITH, 1996).

    40 No toa o grande conto de Machado de Assis, O Alienista, uma stira acerca do indivduo calculista e utilitarista. Noentanto, como dir Zizek (2008) nos dias de hoje, a internalizao que tem lugar com o superindividualismo tambm tortura eaprisiona.41 "Para Smith, e tambm para Hume, a solidariedade humana natural e evidente, percepo contrria a do abstrato estadooriginal de guerra entre os indivduos (Hobbes, 1997). O sumo bem do utilitarismo foi fixado como o objetivo a ser alcanado,

    dado a relevncia que se confere necessidade de se buscar o estado de felicidade. No entanto, para Smith e Hume o estado defelicidade corrente na vida humana, sendo o objetivo se manter nele, e no busc-lo. por isso que os rebaixamentos dacondio original de felicidade influenciam mais o sofredor do que os melhoramentos ao beneficiado." (MARIN,QUINTANA, 2012).

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    "O esforo natural de cada indivduo para melhorar a sua prpria condio, quando lhe permitido exerc-lo com liberdade e segurana, um princpio to poderoso que s por si e semqualquer outro contributo no s capaz de criar a riqueza e prosperidade de uma sociedade comoainda de vencer um grande nmero de obstculos com que a insensatez das leis humanas tantasvezes cumula as suas aes." (SMITH, 1996: 44, grifos nossos).

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