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elementos de prestígio social, como paletó, gravata, jóias, uniforme, traje de noiva etc., que não fazem necessariamente parte da vestimenta e dos utensílios comuns da po- pulação carente, possibilitando ao cliente a obtenção de uma imagem que o perpetua em uma representação idealizada e que o coloca em condição isonômica, para com a população mais abastada. A morte transformada em vida: caso da foto-pintura Titus Riedl Doutor em Sociologia pela UFC. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (CE). Autor de 'Últimas Lembranças' ( São Pau- lo, Annablume, 2002) É fácil encontrar fotografias pintadas nas paredes de entrada de habitações rús- ticas, em casas de sítio, em cemitérios e ca- pelas de ex-votos do Nordeste. Vista como produto de uma cultura vulgar, de resumi- do valor material e pouca elaboração ar- tística, a foto-pintura não é apreciada pela elite urbana e, por isto, pouco estudada no Brasil. Hoje, é uma arte em transformação, já que o recente emprego de computadores ameaça a sobrevivência da pintura manu- al. As técnicas de retoque da imagem fo- tográfica e da pintura sobre fotografia, ou seja, o foto-retrato pintado, acompanham a arte fotográfica praticamente desde os seus inícios. Na falta de coloração das imagens, o trabalho do pintor-retocador tornou-se fundamental para dar uma verossimilhan- ça ao retrato em preto e branco, e assim ob- ter maior êxito em sua comercialização. o foto-retrato pintado representa his- toricamente uma democratização na obten- ção de um retrato, no sentido de facilitar por seu baixo custo a aquisição de uma pintura em óleo, ou pastel, nos moldes acadêmicos, antes privilégio de um pequeno grupo. No Nordeste, o artifício da pintura ma- nual exerce um curioso papel social, visto que o retoque permite a transformação, em- belezamento e re-agrupamento da imagem. Freqüentemente acontecem acréscimos de ângulo 109, abr.liun., 2007, p. 23-27 o comércio de foto-pinturas, ainda que nunca tenha sido regulamentado, abarca o trabalho de várias categorias profissionais, começando pelos fotógrafos fixos ou am- bulantes, que tiravam (e tiram) fotografias em preto e branco, como os últimos profis- sionais Lambe-Lambe. Outros profissionais envolvidos são os vendedores ambulantes, no interior chamados bonequeiros, além disso, os puxadores de tela .eos pintores. o vendedor ambulante viaja pelo inte- rior, batendo de porta em porta, no intuito de estimular e convencer a pessoa da casa a obter uma cópia colorida de um original fotográfico existente, guardado geralmente dentro de gavetas ou em caixas. Em suas visitas, este profissional, popularmente co- nhecido como bonequeiro, faz propaganda do baixo custo, da beleza da imagem em óleo, negocia o parcelamento dos paga- mentos e se encarrega de levar a encomen- da até á cidade. Quando recebe as fotogra- fias originais, que podem ser retratos de carteiras, fotografias de álbuns ou outras 23

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elementos de prestígio social, como paletó,gravata, jóias, uniforme, traje de noiva etc.,que não fazem necessariamente parte davestimenta e dos utensílios comuns da po-pulação carente, possibilitando ao cliente aobtenção de uma imagem que o perpetuaem uma representação idealizada e que ocoloca em condição isonômica, para com apopulação mais abastada.

A morte transformada em vida:caso da foto-pintura

Titus Riedl

Doutor em Sociologia pela UFC. Professordo Departamento de Ciências Sociais daUniversidade Regional do Cariri (CE).Autor de 'Últimas Lembranças' ( São Pau-lo, Annablume, 2002)

É fácil encontrar fotografias pintadasnas paredes de entrada de habitações rús-ticas, em casas de sítio, em cemitérios e ca-pelas de ex-votos do Nordeste. Vista comoproduto de uma cultura vulgar, de resumi-do valor material e pouca elaboração ar-tística, a foto-pintura não é apreciada pelaelite urbana e, por isto, pouco estudada noBrasil. Hoje, é uma arte em transformação,já que o recente emprego de computadoresameaça a sobrevivência da pintura manu-al.

As técnicas de retoque da imagem fo-tográfica e da pintura sobre fotografia, ouseja, o foto-retrato pintado, acompanham aarte fotográfica praticamente desde os seusinícios. Na falta de coloração das imagens,o trabalho do pintor-retocador tornou-sefundamental para dar uma verossimilhan-ça ao retrato em preto e branco, e assim ob-ter maior êxito em sua comercialização.

o foto-retrato pintado representa his-toricamente uma democratização na obten-ção de um retrato, no sentido de facilitar porseu baixo custo a aquisição de uma pinturaem óleo, ou pastel, nos moldes acadêmicos,antes privilégio de um pequeno grupo.

No Nordeste, o artifício da pintura ma-nual exerce um curioso papel social, vistoque o retoque permite a transformação, em-belezamento e re-agrupamento da imagem.Freqüentemente acontecem acréscimos de

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o comércio de foto-pinturas, ainda quenunca tenha sido regulamentado, abarca otrabalho de várias categorias profissionais,começando pelos fotógrafos fixos ou am-bulantes, que tiravam (e tiram) fotografiasem preto e branco, como os últimos profis-sionais Lambe-Lambe. Outros profissionaisenvolvidos são os vendedores ambulantes,no interior chamados bonequeiros, alémdisso, os puxadores de tela .eos pintores.

o vendedor ambulante viaja pelo inte-rior, batendo de porta em porta, no intuitode estimular e convencer a pessoa da casaa obter uma cópia colorida de um originalfotográfico existente, guardado geralmentedentro de gavetas ou em caixas. Em suasvisitas, este profissional, popularmente co-nhecido como bonequeiro, faz propagandado baixo custo, da beleza da imagem emóleo, negocia o parcelamento dos paga-mentos e se encarrega de levar a encomen-da até á cidade. Quando recebe as fotogra-fias originais, que podem ser retratos decarteiras, fotografias de álbuns ou outras

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telas já anteriormente pintadas e, no de-correr do tempo, envelhecidas, o vendedorpreenche algumas anotações num envelopecom orientações sobre o acabamento finaldas cópias.

o bonequeiro representa um elo entreo comércio da cidade e os sítios afastados dazona rural; ele costuma viajar para regiõesisoladas, onde a oferta de seus serviços en-contra maior receptividade. Nestes lugares,o seu lucro, apesar dos gastos com o des-locamento, costuma ser maior do que noscentros urbanos. Não é raro que os vende-dores viajantes sejam convidados a almoçare dormir nas casas visitadas, aproveitandoa hospitalidade da população no interior.Alguns bonequeiros ampliam a oferta dosseus produtos, vendendo também quadrosde santos, relógios e utensílios domésticos,ou prestando serviços variados como oafiar de lâminas, conserto de eletrodomés-ticos etc.

Em geral, o bonequeiro não possuiconhecimento qualificado das técnicas fo-tográficas ou da pintura em óleo e o seuofício é delimitado pela busca, recepção eentrega das encomendas e o recebimentodo pagamento.

o puxador de telas, sem necessaria-mente exercer a profissão de fotógrafo é umprofissional que copia e amplia o retrato fo-tográfico dentro de um quarto escuro, equi-pado com ampliador, lâmpadas e produtosquímicos de revelação. O trabalho do pu-xador é especializado, e ele, via regra, nãorealiza outro serviço senão fornecer as ma-trizes que posteriormente servirão de basede foto-pintores. O puxador não precisauma câmara fotográfica, já que a reduplica-ção e ampliação das fotografias podem serrealizadas exclusivamente mediante o usodo ampliador e de uma lâmpada.

A ampliação dos ret~atos procura seadequar às condições de trabalho dos pin-tores, onde são exigidos contrastes suavese telas claras, cujos contornos desaparecemposteriormente atrás da foto-pintura. Ospuxadores reduplicam os rostos, excluin-do detalhes das roupas, do ombro e todoo fundo das imagens. O produto dos pu-

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xadores é algo passageiro, intermediário,e dificilmente é considerado um processoartístico; pois a imagem produzida pelopuxador sempre tem o destino de sumir, nofinal do processo, sob a pintura em óleo oupastel. No entanto, o trabalho do puxadoré fundamental para o posterior acabamen-to das telas, porque ele define as composi-ções das figuras, por exemplo, quando setrata de retratos onde devem aparecer duasou várias pessoas no mesmo quadro. Eletambém é responsável pelo tamanho daampliação do retrato, como pelos detalhesque devem ser acrescidos ou omitidos. Seo puxador errar nas proporções, nos con-trastes ou na composição da imagem, podedificultar ou impossibilitar a finalização dotrabalho por parte do pintor. Em muitos ca-sos, os clientes expressam o desejo de mon-tar uma imagem, a partir de várias figurasque constituem agrupamentos entre pais efilhos, entre casais, ou retratos fictícios, emque aparecem, por exemplo, as figuras dopadre Cícero, de Frei Damião ou de San-tos católicos, ao lado do retratado, como sehouvesse entre eles um convívio, ou fossemcontemporâneos.

O pintor de telas realiza o acabamen-to final da imagem, e para isto depende dotrabalho e da ampliação competente das te-las por parte do puxador, que tem a respon-sabilidade de lhe anteceder na preparaçãoda base sobre a qual trabalhará. Conformeo trabalho do puxador, o pintor recebe asampliações, junto com os envelopes, quecontêm as fotografias originais e as dicasdos bonequeiros para o trabalho do acaba-mento manual. Estas dicas são orientaçõespara a pintura, como a aplicação de certascores para roupa, cortes de cabelo e acrésci-mos como jóias, gravata, etc.

O pintor do retrato, ou retocador éresponsável pela coloração das imagens epelos processos que correspondem maispropriamente ao trabalho artesanal ou ar-tístico.

Em alguns estúdios, há vários pintoresque dividem as funções: cada pintor operaapenas numa tarefa parcial, por exemplo,empastando o fundo, retocando o cabeloou pintando a roupa. O membro mais ex-

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periente da equipe costuma realizar o aca-bamento dos rostos e das fisionomias, oque é considerado a parte mais complexado trabalho.

Os bonequeiros, puxadores e pintoresde telas que entrevistei, afirmaram-me queantigamente recebiam com certa freqüên-cia e ainda hoje, de vez em quando, rece-bem encomendas de retratos do "momentomori". O mesmo é confirmado pelos pro-fissionais que trocaram recentemente o seuofício pelo computador. Trabalhar com es-tes retratos de defuntos é considerado algonormal e recorrente aos seus trabalhos.As informações sobre a incidência destasimagens são vagas; dizem que 'geralmen-te têm', ou, 'sempre têm', mas não sabem'quantificar bem o número; talvez' algo emtorno de uma para cada quinhentas fotos'- o que corresponde aproximadamente auma coleta particular que acabei realizan-do. Os profissionais pouco sabem informarsobre os proprietários e guardiões das fo-tografias, porque os puxadores e pintoresapenas seguem as orientações expressasnos envelopes e não costumam manter re-lação direta com os clientes, às vezes nemcom os bonequeiros, já que alguns destesenviam o serviço, via encomenda postalou através de intermediários, sem que seestabeleça um contato pessoal. Já os bone-queiros pouco costumam se interessar pelamotivação dos seus cliehtes.

Como afirmam, tanto puxadores comopintores, para eles é um serviço comumtransformar a imagem de um defunto naimagem de um vivo, e não costuma causarespanto. Eles gostam de falar destes casos,já que percebem através destes pedidos umdesafio onde aparece uma oportunidadepara mostrar a sua habilidade, maestria eversatilidade mediante o poder de transfor-mação artística.

Os profissionais explicam os pedidosde alterar a imagem de um morto em vivo,com o fato de que imagens fotográficas, emgeral, são escassas nos grotões do sertão;eles afirmam, que na falta de outras ima-gens os remanescentes dos mortos recor-rem ao retrato do já falecido.mos casos emque este seja único recurso disponível para

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obter uma lembrança da pessoa. Se existi-rem outros retratos, em muitos casos, estesse delimitam no seu testemunho apenas auma época em que o falecido era bem maisjovem, o que pouco corresponderia à ima-gem memorizada pelos parentes e amigosmais próximos; enfim, o retrato do mortotem a vantagem de transmitir a lembrançamais recente de sua fisionomia no fim dasua vida. Nem sempre o pedido de pintu-ra em relação ao retrato de um morto ex-pressa o desejo de transformar a imagemnuma lembrança viva. Às vezes trata-seapenas do desejo de colorir uma imagemem preto e branco, inclusive tratando-sedo retrato de um defunto no caixão. Os pu-xadores, e sobretudo os pintores das telas,sabem do seu poder de manipulação e queo grande potencial da foto-pintura consis-te na possibilidade de transformar e ade-quar as imagens aos desejos dos clientes.Eu ouvi vários episódios narrados em quea família do morto expressou o desejo deincluir - embora sendo mais raro, tambémé possível excluir - um membro do grupofamiliar dentro de uma imagem. Isto acon-tece, por exemplo, se alguém não pode sefazer presente ao redor do caixão, duranteum velório. A possibilidade de re-agrupare de reunir pessoas numa mesma imagem,que na realidade não chegaram a se juntarnuma única fotografia, talvez seja um dosrecursos mais procurados e explorados pe-los profissionais da foto-pintura. Freqüen-temente reúne-se o que já não é possível serreunido na convivência, e rejuvenesce-se emelhora-se onde o passar do tempo deixourastros irrecuperáveis. A foto-pintura, nestesentido, é vista, se não como meio de embe-lezamento, como instrumento de (re-)ajusteestético, de reconciliação e de harmoniza-ção da imagem, mesmo como viabilizadorado desejo de eterna juventude.

A morte, indiretamente, pode ser con-siderada presente até em uma boa parte deimagens que não mostram defuntos, masque procuram recuperar a lembrança deentes queridos já falecidos, através da suaimagem viva. Pois, a maior parcela dosclientes da foto-pintura se constitui hojede aposentados, pessoas idosas, em mui-tos casos viúvos e viúvas, que, através dafoto-pintura, costumam recorrer às memó-

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rias do passado e, neste contexto, procuramlembrar-se dos seus mortos.

Na experiência dos bonequeiros, pu-xadores e pintores, apontam-se certos pa-drões estéticos que são definidos como ogosto amplamente compartilhado entre osclientes: segundo eles, 'feios' são sinais derugas e outros marcos da velhice, 'feio' épintar o cabelo dos homens na cor branca,'feias' são as sombras, que possam causaraspectos sinistros, e 'feias' são roupas demodelos avançados sem a devida discriçãoe com apelo sensual exagerado; por outrolado 'bonitas' são consideradas cores cre-mosas, como azul e cinza claro para os ho-mens, e rosa, lilás e amarelo para as mu-lheres, 'bonitas' são roupas sociais, comopaletó e gravata para os homens, blusasmonocromáticas ou com estampas de florespara as mulheres, e 'bonitas' são fisiono-mias rejuvenescidas, cheias de sangue e vi-gorosas para os adultos, e para as crianças,bochechas rosadas e imagens sem contras-tes fortes. O que mais aproximadamenteatinge este ideal são as imagens idealizadasdos Santos católicos, amplamente divul-gadas no interior do Nordeste, e, no casodas crianças, a imagem do Menino Jesus.Por sua adequação ao gosto dos velhos, re-

tratos da foto-pintura podem parecer algoantiquados, pertencentes à estética de umpassado. As preferências estéticas, no en-tanto, parecem amplamente internalizadase socialmente compartilhadas.

O retrato pintado, ao lado de fotogra-fias sem retoque, conquistou o espaço ou-trora exclusivo das pinturas em óleo nasparedes da administração, prefeituras, câ-maras, universidades, etc., onde os retratosdos hierarquicamente superiores costuma-vam repousar, patriarcalmente, sobre osservidores, ao lado da bandeira, das insíg-nias do estado e em ambientes católicos, dacruz cristã.

Eles seguem o mesmo padrão dos re-tratos das carteiras de identidade e pas-saportes, com a sua rigidez e expressãoextremamente estereotipada o que podeser sintetizado nos seguintes itens, conhe-cidos por todos: enfoque na direção facial,enquadrando o rosto inteiro, aparecendo obusto superior com um traje' decente', coma exigência de uma expressão fisionômicaserena e um bom penteado.

O modelo das imagens representati-vas das paredes oficiais é reproduzido no

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ambiente doméstico, onde a foto-pinturapopularizou-se, e pode ser encontrada emboa parte das casas do interior do-Nordes-te - inclusive em ambientes de extremapobreza. A semelhança com as imagensdas carteiras de identidade não é apenasformal, mas se deve à própria origem dasfotografias usadas como matrizes para afoto-pintura, já que em sua grande maioriasão imagens que antes serviram nos certifi-cados de identidade: são fotografias retira-das de antigas carteiras, ou suas duplicatas,comumente guardadas junto com papéiscomo contas, registros, cartas, santinhosetc., em gavetas, caixas, sacos de plástico,etc. e que pretendem assegurar a identifica-ção facial do retratado, através do ideal deverossimilhança.

No entanto, a partir da reduplicação epintura, estas fotografias ganham, além deliteralmente 'engrandecer' em seu tama-nho, um status mais elevado e mais repre-sentativo do que já tinham: geralmente sãoafixadas nas paredes das salas de entrada,num canto privilegiado, como ao lado dooratória, numa alusão à autoridade e emdireta analogia à função patriarcal das ima-gens nas salas de recepção da burocraciapública. Às vezes, encontram-se, de formamais íntima, dentro do quarto do casal enos corredores, ainda assim, transmitindoum ar de autoridade.

Por outro lado, as fotos de identidade,que, em seu princípio, se embasam numpadrão de uniformatização e isolamentoda face individual, ganham uma semanti-zação inusitada, já que passam geralmentepor uma reelaboração de sua pertença noconjunto com as outras imagens expostas.As foto-pinturas costumam-se inserir numdeterminado contexto de espaço e de re-lacionamento social, transmitindo mensa-gens como as que dizem' são estes os donosdesta casa' ou que' são estes que pertencemà família desta casa'!

A foto-pintura, assim, torna-se sempreuma homenagem, um lugar da memória deprestígio, algo que atrai e condensa aferi-vidades. Semelhante ao caso da carteira deidentidade, o foto-retrato pintado, não éapenas visto como uma simples afirmação

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de identidade, mas, serve para constituiridentidades, e ainda mais: é capaz de acres-centar prestígio social. O retratado não émais mero objeto entre iguais, mas, escolhi-do entre outros, artisticamente embelezado,visto serenamente em sua dignidade.

Não é mais um retrato apenas utilitá-rio que possibilita uma identificação quaseque policial, mas, uma imagem' relacionarque se comunica com as pessoas que com-partilham o mesmo espaço. A foto-pinturaé capaz de definir inclusive o relaciona-mento com os ausentes, os que abandona-ram o lar; já a sua presença, ou ausêncianas imagens pode ser interpretada comomeio de inclusão e exclusão simbólica deum membro na comunidade familiar. Ainclusão torna-se notável, quando se tratado caso de alguém que já faleceu. É mui-to freqüente, encontrar, nas casas do Nor-deste, retratos pintados dos que já morre-ram, feitos apenas postumamente, a partirde antigas fotografias. A dor da perda doindivíduo é amenizada pela presença doretrato. Percebe-se o gesto humano de seopor ao esquecimento, de assegurar e per-petuar identidades e pertenças.

Os vínculos relacionais se estabelecemna própria parede, no conjunto de outrasimagens, que foram colocadas no mesmoespaço e que representam um painel de me-mória coletiva - ainda que este não tenhasido explicitamente intencionado por seusdonos, ou guardiãs. Encontram-se agrupa-mentos simbólicos: os antepassados já fale-cidos, no meio dos outros familiares, aindavivos. Aparece uma característica curiosado retrato pintado, já implícito no docu-mento fotográfico: a foto-pintura costumaromper com a temporalidade, não há linhadiacrônica, mas, os motivos costumam serordenados sincronicamente, tudo ao mes-mo tempo. Assim é possível associar umafigura histórica, como Padre Cícero, ou afotografia de um antepassado ao lado deum vivo, sem que haja nenhuma distorçãovisível, numa harmonização de elementosdistintos que, juntos, compõem a iconogra-fia doméstica.

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