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A MATÉRIA DA FÉ EM VOTOS E EX-VOTOS NO CÍRIO DE NAZARÉ (BELÉM-PA): Estudo Sobre Cultura Material e Religião

Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.2, jul./dez.2013, p. 11-31 www.fabelnet.com.br/ensinagem 11

Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém Ensinagem: Faculty of Belém Journal V. 2, n. 2, Julho/Dezembro 2013, p. 11-31ISSN 2238-4871

A MATÉRIA DA FÉ EM VOTOS E EX-VOTOS NO CÍRIO DE NAZARÉ (BELÉM-PA): Estudo Sobre Cultura

Material e Religião

A MATTER OF FAITH IN FORMER VOWS AND EX-VOTOS IN THE CIRIO OF NAZARETH (BELÉM-PA): Study on Material

Culture and Religión

LA MATÉRIA DE LA FE EN VOTOS Y EX-VOTOS EN EL CÍRIO DE NAZARÉ (BELÉM-PARÁ): Estudio sobre Cultura

Material y Religión

Anselmo do Amaral Paes1

RESUMO

O artigo busca seguir os objetos chamados de “ex-votos”, contex-tualizando-os e buscando suas lógicas ao considerá-los como parte da performance ritual na paisagem da procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará (iniciado em 1793), um dos acontecimentos religiosos católicos mais importantes e signifi cati-vos do Brasil. Neste evento os artefatos votivos são levados durante procissão por devotos como pagamento de “promessas” visando à re-cuperação da saúde, obtenção e recuperação de bens, dentre outras “situações-limite”. Como método, investe-se em revisão bibliográfi ca e em breve trabalho de campo, no qual é produzido registro fotográ-fi co. A consideração é da necessidade de dissolver as fronteiras dos objetos ao considerar “corpo” e “paisagem”, de forma a nos aproximar destes artefatos em sua complexidade.

1 Bacharel em Direito (UNAMA-BELÉM/PA). Especialista em Ciências da Religião (UCAM-RJ). Mestre e Doutor em Ciências Sociais-Antropologia (PPGCS/UFPA-BELÉM/PA). Professor Adjunto da Faculdade de Belém – FABEL. Pesquisador no Sistema Integrado de Museus e Memoriais do Pará (SECULT-SIM/PA). E-mail: [email protected].

Anselmo do Amaral Paes

www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 2, jul./dez. 2013, p. 11-3112

Palavras chave: Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Ex-votos. Cor-po. Performance. Cultura material religiosa.

ABSTRACT

The article seeks to followobjects called “ex-votos”, contextualizing them and seeking their logicalto consider them as partof the ritual performance in the landscape ofthe Círio Processionof Our Lady of Nazarethin Belém (startedin 1793),one of the most important and signifi cant events of thebrazilian catholic religion. In this eventthe votiveartifacts are carried by devoteesduring the procession aspay-ment “promises”for the recovery of health, procurement andasset recovery, among other”extreme situations”. As a method investsin briefl iterature review andfi eldwork, which is produced photographic record.The consideration is the need todissolve the boundaries of the objectsconsidered “body” and “landscape” in order tobring us the-seartifacts in their complexity.

Keywords: Círio of Our Lady of Nazareth. Ex-votos. Body. Perfor-mance. Religious Material culture.

RESUMEN

El artículo busca seguir los objetos llamados de “ex-votos”, contex-tualizandolos y buscando sus lógicas al considerarlos como parte del performance ritual en el paisaje de la procesión del Círio de Nuestra Señora de Nazaré en Belém de Pará (iniciado en 1793), uno de los acontecimientos religiosos católicos más importantes y signifi cativos de Brasil. En este evento los artefactos votivos son llevados durante procesión por devotos como pagamento de “promesas” refrendando la recuperación de la salud, obtención y recuperación de bienes, de entre otras “situaciones-límite”. Como método se invieste en revisión bibliográfi ca y en breve trabajo de campo, en lo cual es producido re-



gistro fotográfi co. La consideración es de la necesidad de disolver las fronteras de los objetos al considerar “cuerpo” y “paisaje”, de forma a acercarnos de estos artefactos en su complejidad.

Palabras-clave: Círio de Nuestra Señora de Nazaré. Ex-votos. Cuer-po. Performance. Cultura material religiosa.

1 BREVE APROXIMAÇÃO: Ciência(s) da(s) Religião (ões)

O presente artigo busca, dentro de seus limites, propor en-saio sobre o tema da cultura material religiosa, em uma perspectiva das Ciências da Religião, concentrada no aspecto compreensivo que marca a Antropologia. No campo da cultura material, os artefatos chamados de ex-votos estarão em foco para permitir a devida refl exão sobre uma concepção de Ciências da Religião, nas quais o papel da cultura material apresenta-se como uma via (entre outras) possível de desenvolvimento de compreensão dos fenômenos religiosos, em geral, e do catolicismo devocional, em específi co.

O documento consiste em breve revisão conceitual e bibliográ-fi ca, somada a trabalho de campo e registro fotográfi co, encerrando com refl exões voltadas ao desenvolvimento potencial de questões le-vantadas. De início cabe apresentar a percepção do campo discipli-nar da especialização, que neste caso se apresenta como “Ciências da Religião”. Seguindo as proposições de Marcelo Camurça em seu livro “Ciências Sociais e Ciências da Religião” (2008), este nos alerta so-bre a necessidade de marcar o lugar de nossa fala, que em meu caso, situa-se junto às perspectivas das Ciências Sociais, em específi co a Antropologia Cultural.

Camurça (2008) demarca que a Antropologia tem desenvol-vido como operação metodológica valorizar o nome, a denominação do objeto, as concepções êmicas do grupo em estudo, portanto a ne-cessidade de dar atenção às denominações que marcariam os trajetos



de legitimação e consolidação do campo disciplinar da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) em específi co, assim distinguir se “ciência” ou “ciências”, “religião” ou “religiões”.

Desta forma, o movimento perspectivo que assume o universa-lismo ou diversidade do fenômeno religioso, sua autonomia relativa ou não no campo científi co, no qual em sua concepção o termo Ciên-cias da Religião: “[...] termina por sugerir a fundação de uma nova instância substitutiva aos critérios e parâmetros de validação cien-tífi ca, pertinentes a cada área acadêmica ou comunidade científi ca particular” (CAMURÇA, 2008, p. 28).

Assim, em perspectiva que assumo em minha aproximação do campo em questão, uma ciência: “[...] ao eleger um nível de abor-dagem e renunciar aos demais, busca alcançar a universalidade do fenômeno, todavia circunscrita ao nível operado; chegar a uma vi-são panorâmica apenas pela comparação e diálogo entre os resultados alcançados por cada ciência” (CAMURÇA, 2008, p. 28), portanto valorizando a disciplina como “campo disciplinar” com estrutura aberta e dinâmica, sem receios demasiados de esvaziamento.

Em consonância com minha própria experiência enquanto pes-quisador é importante assumir o campo das Ciências da Religião sem reifi car o termo, mas permitindo-nos um constante repensar, consi-derando a perspectiva antropológica, a religião como meio, porta de entrada que funciona: “[...] mais como uma via, para se compreender, por meio dela, ordens sociais e culturais mais amplas, nas quais a religião se insere, compõe e articula” (CAMURÇA, 2008, p. 33), abandonado a apreensão de uma essência imutável e a-histórica.

Assim, assumo meus esforços direcionados às Ciências da Re-ligião como parte de um campo múltiplo e interdisciplinar voltado para a compreensão dos fenômenos religiosos em toda sua complexi-dade e diversidade, especifi camente em meu caso, tendo como pon-to de apoio aos métodos e questões levantadas pela Antropologia, não perdendo de vista a vocação histórica e epistêmica desta mesma



disciplina antropológica em investir em constante estranhamento, relativismo e, portanto, diálogo com determinações êmicas e possibi-lidades metodológicas na Filosofi a, Psicologia, História, Economia, entre outras (PENNA, 2012).

2 CULTURA MATERIAL RELIGIOSA, CATOLICISMO DEVOCIONAL E EX-VOTOS

Morgan (2010a, 2010b), contribuindo com a linha de refl exão apre-sentada, quer enfatizar perspectiva de trabalhar crença e materialidade da religião, considerando que a religião não consiste exclusivamente de razão e abstração, porém nas instâncias da vida material que desenha o mundo espiritual, pois: “[...] [t]he transcendence does not come to them as pure light or sublime sensations in most cases, but in the odor of musky shrines or moldering robes or the pantry where they pray” (MORGAN, 2010a, p. 8). Daí o corpo e a corporeidade como instrumentos para o estudo do que chama de “cultura material religiosa”:

Material culture consists of the things, the practices of using things, and the forms directing their uses on which we build and maintain the worlds about us, and thereby encounter and value ourselves and others. The three dimensions of material culture are things, uses, and paradigms. Material culture is not just objects, not just architectural foundations or jewery or paintings because, as we saw above, things are more than things (MORGAN, 2010b, p.73).

Coisas são mais que coisas. A crença não está na “cabeça” das pessoas, mas vestida nelas, elas as habitam, a executam e as expressam e reconstituem cotidianamente por meio de performances e rituais. As-sim, os ex-votos nos permitem aproximação e compreensão do catoli-cismo popular ou devocional, dentro da perspectiva da complexidade e multiplicidade que marca a identidade religiosa e, especifi camente, a identidade católica no Brasil (ALMEIDA, 2012a, 2012b).



Maués (1995) em trabalho referencial sobre o Círio de Nazaré e a constituição das tensões próprias à religiosidade popular brasileira, apresenta-nos o catolicismo popular como pensado: “[...] em oposi-ção ao catolicismo ofi cial, isto é, àquele que é professado pela Igreja como instituição hierárquica estabelecida, que o procura incutir no restante da população” (MAUÉS, 1995, p. 17), assim construído a partir de uma identidade hierárquica e restritiva. O catolicismo de-vocional ou popular considera as lógicas próprias voltadas à devoção aos santos e ao cosmos que se apresenta difuso no: “[...] conjunto da população católica [...], [este que] independentemente de sua con-dição de classe, professa alguma forma de catolicismo popular, que, às vezes, é partilhada mesmo pelos clérigos, assim como os leigos também partilham do catolicismo ofi cial” (MAUÉS, 1995, p. 17).

Neste contexto, apresenta-se o ex-voto (ex-voto suscepto - voto realizado) é o que se promete ao santo de devoção para se receber uma graça, ou o que se oferece por tê-la alcançado. Porém, a prática não é exclusiva do mundo católico, pois se encontra generalizada, tendo registro desde a remota antiguidade. Também chamadas de “promessas” (promissum) confundem-se como o próprio ato criador de prometer (CASCUDO, 2012, p. 582-3).

É sobre estes objetos sagrados que circulam durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará, e os muitos ângulos e diálogos a serem produzidos em busca de sua compreensão, que o presente artigo apresenta (longe de esgotar sua potencialidade) o “estado da arte” de minhas refl exões e inquietações sobre os mes-mos, em diálogo com autores que buscam construir referenciais para a compreensão das relações paisagem-corpo-objeto. Assim, é neces-sário logo de início apresentar o Círio, aqui considerado a “paisagem devocional” que inclui os ex-votos.

Desde 1793, acontece em Belém do Pará (Brasil), um dos even-tos religiosos católicos mais signifi cativos do catolicismo brasileiro, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, cuja procissão principal que ocorre no segundo domingo de outubro, percorre as ruas da cidade¹.



São várias romarias, missas e procissões no período de 15 dias. Em destaque a Trasladação e o Círio que recontam a lenda do milagre da santa cuja imagem insistia em retornar ao local da descoberta, nos arredores de núcleo mais antigo da cidade.

O movimento das procissões ressoa o movimento da cidade em seu eixo de expansão do bairro da Cidade Velha, núcleo antigo da cidade, para a área do bairro de Nazaré e do centro para a área metropolitana, através da rodovia BR 316 para a Rodovia Municipal (atual Avenida) Augusto Montenegro e seguindo para o distrito de Icoaraci, de onde parte, em seguida, retornando à Cidade Velha em percurso fl uvial (no chamado Círio fl uvial). Assumindo a perspectiva apresentada por Maués (2012) como auxiliar em nossa compreensão, o Círio apresenta-se como:

[...] um conjunto de rituais que incluem várias ‘romarias’ (pequenas procissões), a Trasladação, o Círio propriamente dito, a Festa de Arraial, as Novenas, as Missas, as manifestações paralelas, mas integradas a ele, como a Festa das Filhas da Chiquita, o Auto do Círio, a Feira de Brinquedos de Miriti, os fogos, a Procissão da Festa, o Recírio e muitas outras formas de celebração religiosa ou rituais paralelos. Como acontece em algumas festas religiosas católicas, o Círio se compõe de duas procissões principais: a primeira, a chamada Trasladação, é aquela que ocorre na noite anterior, que transporta a imagem de um lugar para outro: ela segue das imediações da Basílica de Nazaré, onde fi ca a maior parte do ano, para a Catedral, mais conhecida como Igreja da Sé. Por ser noturna, essa procissão é feita à luz de velas (círios), embora as luzes elétricas da cidade não se apaguem. No dia seguinte, pela manhã, é que se faz a procissão principal, o Círio propriamente dito (MAUÉS, 2012, p. 164.).

O Círio é oportunidade de se renovar pedidos e pagar promes-sas, superando situações que se apresentam como limítrofes e que



requisitam a tomada de medidas como a busca da cura através de engajamentos nos quais o corpo participa das dimensões do sagrado (PAES, 2012). Surgem os ex-votos, objetos sagrados que circulam pela paisagem da cidade, junto aos corpos e espelhos de corpos, antes doentes, agora sarados, mãos, pernas, cabeças de cera ou madeira, muletas, bengalas, entre outros pedidos e desejos urgentes.

A procissão principal do Círio de Nazaré é um desfi le etnográ-fi co. Diante do descaso dos poderes constituídos à profunda desigual-dade social que marca o país, muitos buscam auxílio na fé e na ex-periência religiosa. A religiosidade que caracteriza o Círio de Nazaré também é marcada pela experiência da angústia, da dor, assim como também da esperança, da fé no poder supra terreno da “Senhora de Nazaré”, nossa “mãe amorosa”.

Sem desconsiderar relatos mais antigos, a presença dos ex-vo-tos é apontada como parte da devoção a Nossa Senhora de Nazaré desde seus primeiros registros, como já o descreve Arthur Vianna (historiador paraense, 1873-1911) ao apresentar relato sobre a his-tória da festa maior paraense, citado em Montarroyos (s/d). Assim nos diz Vianna no artigo “O Círio” (Jornal O Pará, 9 de outubro de 1898), nos termos:

[G]rande número de devotos, uns que iam implorar-lhe a proteção, afl itos por sentimentos próprios ou de pessoas caras, outros que iam levar-lhe ofertas de cera por pedidos já satisfeitos [...] inúmeras promessas, então feitas de madeira, pés a escorrerem sangue, mãos mutiladas, muletas, braços cobertos de chagas, objetos em geral mal trabalhados a demonstrarem os conhecimentos rudimentares de escultores não profi ssionais e a demonstrarem também os benefícios da desvelada protetora dos pobres (MONTARROYOS, s/d, p.238-9).

No que se refere a estes artefatos, na percepção de Maria Au-gusta Machado da Silva (1981), museóloga, autora de obra consi-



derada referencial sobre ex-votos e seus sentidos no Brasil, estes são produzidos como:

[...] prática desobrigatória posterior à graça ou mercê alcançada, como testemunho público contemporâneo, não só da força milagreira da divindade (ou seus agentes), mas também da gratidão do milagrado. Tem, como componente subjacente, a divulgação vaidosa do mérito do agraciado que, entre tantos fi éis são atendidos, obteve uma graça especial da divindade (ou de seus agentes). O que dá mais ênfase a este aspecto de eleição é o fato de a maioria absoluta das graças alcançadas estar relacionada como problemas comuns a toda gente: risco de morte, doenças, perigos, difi culdades da vida etc. (SILVA, 1981, p. 17).

Neste “grande espelho” a que chamamos de religião, DaMatta (1986) nos aproxima da lógica da dádiva (MAUSS, 2003) e de uma religiosidade brasileira de intermediação e circulação, que impõe fl uidez e desafi a fronteiras rígidas entre o sagrado e o profano:

As súplicas acompanhadas de objetos, na forma de promessas, ofertas e sacrifícios, são naturalmente mais fortes que um simples pedido verbal, pois que elas implicam um ato de cometimento muito mais denso e dramático, às vezes exigindo o gasto e parcelas de dinheiro que são críticas em termos da economia doméstica e pessoal do ofertante (DAMATTA, 1986, p. 111).

Os ex-votos são “artefatos-testemunhas”, “artefatos-orações”, “artefatos-performances”, neles se encontram as dimensões “mate-riais” e “imateriais” da crença de forma dramática, inseridas na paisa-gem da devoção do Círio.

Além disso, a promessa é um pacto que obriga os dois lados a alguma ação positiva no sentido de resolver o



problema apresentado. Se eu, assim, peço uma graça e logo em seguida me sacrifi co com a oferta de algo precioso para o santo (ou santa) de minha devoção, a lógica social faz com que ele (ou ela) também se obrigue a resolver meu problema, atendendo cortesamente a minha súplica (DAMATTA, 1986, p. 111).

O sentido de cada voto (e ex-voto) é, ao mesmo tempo, único e coletivo, tanto expressa o conjunto dos problemas e das afl ições que marcam a trajetória do devoto, quanto às questões comuns à expe-riência e sentidos referidos à coletividade dos paraenses e dos brasilei-ros. Identifi cam-se na devoção elementos comuns à cultura nacional, tais como a religiosidade popular marcada por característica relação sagrado-profano, público-privado, junto ao culto dos santos, um mis-to de distância respeitosa e íntima familiaridade (MONTES, 2012).

A primeira proposição que surge do esforço de pesquisa sobre os ex-votos é que estes consistem uma etapa de um processo ritual e performático que envolve o voto, sendo os ex-votos uma etapa de sua “biografi a” (KAPYTOFF, 2011). Isto considerado, para melhor compreendê-los é necessário pensar estes artefatos em conexão com sua paisagem e corporeidade.

Como parte e etapa de um processo, a circulação de votos e ex-votos se dá no espaço urbano de Belém, durante as procissões e festas devotas do Círio, no qual se destaca como “principal” a pro-cissão do segundo domingo de outubro. A grande multidão que se reúne diante da Catedral da Sé para o início da caminhada que levará a Santa e seus fi éis até a Basílica de Nazaré, agora Santuário, no bairro de Nazaré, muda o “clima” da cidade. Podemos nesta direção falar em uma “paisagem devocional” do Círio. Para tanto, devemos pensar na própria categoria “paisagem” e em como ela instrumentaliza nossa compreensão sobre o Círio e seus ex-votos.

Na procissão veem-se os promesseiros carregando ex-votos re-presentando casas, barcos, animais, materiais de construção, os cor-



pos e partes do corpo (esculpidas em cera, miriti, gesso ou em madeira) mostrando ao mesmo tempo os males e as alternativas en-contradas para a resolução de seus problemas. Como instrumental para desenvolver devidamente a refl exão, investe-se na produção de dossiê fotográfi co durante trabalho de campo (realizado duran-te a principal procissão, em outubro de 2012). As imagens sele-cionadas visam apresentar o encontro entre “corpo”, “paisagem” e “artefatos/coisa”.

Figura 1 – ‘Rio de gente’ e suas margens - (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012).

Fonte: @Anselmo Paes, 2012.



Figura 2 – Diversidade de votos e ex-votos (em primeiro plano à direita: vela “de metro”; no centro: réplica de assento escolar; no centro à esquerda: pacote de livros ou cadernos?) (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.

Figura 3 – Paisagem – espaço vivido/experenciado (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.



Figura 4 – Distribuição de água para os devotos na corda (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.

Figura 5 – Os corpos dos devotos na corda (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.



Figura 6 – Casa e corpo (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.

Figura 7 – A parte contém o todo - Tijolo (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.



Figura 8 – Berlinda e imagem de N. S. de Nazaré (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.

Figura 9 – A Santa e suas dádivas (Círio de Nazaré-PA em 14/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.



Figura 10 – Tempo cíclico (promessas e fi tas de Nossa Senhora de Nazaré no Centro Arquitetônico de Nazaré-CAN) (Círio de Nazaré-PA em 19/outubro/2012). Fonte: @Anselmo Paes, 2012.

As lógicas suscitadas são a da simpatia, do contato e do duplo (FRAZER, 1982). Uma paisagem devocional aprecia e amplia a per-cepção da paisagem cultural em perspectiva fenomênica, consideran-do a paisagem fl uída e efêmera do movimento processional e devocio-nal que transforma o espaço, o sacraliza, o desacraliza, impõe tempos diversos, sobrepõem experiências espaciais e temporais e constrói-se sob a marca dos corpos, como dito, produzindo corpografi as (JAC-QUES, 2009).

Memórias dos corpos que se movimentam no cumprimento do voto e em performance realiza o ex-voto, o publicizando, ao pagar a promessa, apresentando o corpo curado para satisfação de homens e divindade, em uma relação que é literalmente “visceral” como é visto na corda, “artefato-ação”, referência na caminhada atualizadora e nas memórias do caminho.



3 BREVE CONCLUSÃO

Conclui-se do estudo preliminar apresentado que, ao pensar-mos cultura material e religião, é essencial que a concepções do “ob-jeto” ensimesmado seja substituída por tessitura teórica na qual a fenomenologia dos artefatos culturais se destaque. Morgan (2010a) propõe compreensão da cultural material sob este aspecto: perfor-mance, corpo, espaço e coisa, a materialidade da fé assim se apresenta.

No âmbito do chamado catolicismo devocional os ex-votos são artefatos que expressam relação de agradecimento ou pagamento de graça pedida à divindade e seus agentes, santos ou santas de devoção, apresentando-se sob a lógica da dádiva (ALVES, I, 1980). Ora, qual-quer artefato pode ser transferido à esfera do ex-voto. Não são ex-vo-tos, tornam-se ex-votos. Ao ponderar sobre os ex-votos, refl etimos sobre os votos, ações que vinculam, transformam e acionam corpo e alma do devoto, modifi cam e constroem paisagens, produzindo um imaginário, materializando a memória.

Os variados votos nos apresentam quais são as situações limi-te da vida dos brasileiros: são casas (ou partes destas, como tijolos) (que denotam a necessidade de moradia), livros, apostilas, monogra-fi as (que denunciam as difi culdades em ingressar no ensino superior brasileiro), barcos, ônibus, caminhões, taxis e outros veículos (ins-trumentos de trabalho e busca de autonomia fi nanceira), partes de corpos representados em cera, muletas, próteses, bonecas, peças de vestuário (o corpo, primeiro instrumento do homem), que traduzem o desejo de saúde, bem nem sempre disponível a todas as classes so-ciais, igualmente como, em uma tipologia sempre em crescimento, cruzes, mantos decorados, terços, fi tas, pedras, bilhas de água em cerâmica, que conformam e conformam-se ao corpo no lento movi-mento e tempo da procissão.

Registre-se, ainda que brevemente e sem intenção de extra-polar a proposta deste artigo, que o campo de circulação dos ex-vo-



tos não se limita, nem ao universo do próprio catolicismo, nem se restringe à própria procissão do Círio. Por exemplo, quanto à área simbólica, os ex-votos estarão presentes igualmente nos espaços de expressão das devoções populares do “culto às almas” (MONTEIRO, 2012), em cemitérios e igrejas de Belém (partilhado com o universo cosmológico da umbanda). No que se refere à vida social dos arte-fatos (KAPYTOFF, 2011), o esforço compreensivo sobre os ex-vo-tos, estes considerados como etapa de um processo que se inicia com o voto/promessa, requisita que se registre etapas de suas trajetórias possíveis: como o local de origem, que pode ser uma loja de artigos religiosos, o momento posterior à procissão, e mesmo seu retorno ao universo “profano” como mercadoria.

Escardó (2013) nos diz que o ex-voto dá o que pensar. Seja por remeter à religiosidade popular, por investir nas dimensões estéticas e lúdicas que desafi am o “logocentrismo” de nossa sociedade, por expressar projetos de vida e expectativas sociais, assim como reve-lar dores, mazelas e necessidades no exercício de uma religiosidade popular (e suas profundas dimensões políticas) (DAMATTA, 1986), estes artefatos estão sempre apresentando novas “camadas”, requisi-tando novas aproximações.

Não só ação, ou função, mas refl exão, apropriação e refl exão so-bre o mundo. A consideração é da urgente necessidade de dissolver as fronteiras dos objetos ao considerar “corpo” e “paisagem”, de forma a nos aproximar destes artefatos em sua complexidade.

NOTA

1 O Círio tem sido intensamente analisado e apresentado nas últimas déca-das sob várias ênfases: seja em suas dimensões geográfi cas e da mobilidade regional (MOREIRA, 1971), políticas, religiosas e rituais (ALVES, I., 1980; MAUÉS, 1995, 2009, 2012; PANTOJA, 2006), identitárias, históricas e patrimoniais (IPHAN, 2006; COELHO, 1998; HENRIQUE, 2011) e mi-diáticas (MONTARROYOS, s.d.; ALVES, R. 2012), entre tantos.



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