a justiça no centro da política

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A Justiça no Centro da Política – Em Torno do Projecto de Revisão Constitucional da “Ala Liberal”. Por Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque 1. O projecto de revisão constitucional da “Ala Liberal” e todo o processo parlamentar de revisão constitucional do início dos anos setenta e de posterior adaptação do direito ordinário à nova versão da Constituição revelam um aspecto central do pensamento político de Francisco Sá Carneiro e de João Bosco Mota Amaral. Os autores do projecto de lei de revisão constitucional da “Ala Liberal” descortinaram com total clareza que a reforma da justiça constitui o cerne, nas palavras de Sá Carneiro, a “tarefa essencial” do processo reformador do Estado e de desenvolvimento da sociedade na época contemporânea. Os vícios da justiça e, muito particularmente, os da justiça criminal, têm um efeito nefasto que se prolonga muito para além das vidas dos envolvidos no caso sub iudice, para atingir a própria organização do Estado e o desenvolvimento da sociedade. Acresce que nenhuma outra reforma empreendida pelo Estado pode almejar ter sucesso se a reforma da justiça não for encetada, funcionando esta como uma condição sine qua non da própria viabilidade das outras reformas. O sentido que deve ser seguido no processo de reforma da justiça não pode ser deixado ao arbítrio do legislador ordinário, mas antes deve ser coerente com um programa constitucional humanista assente no respeito das liberdades cívicas e na promoção da participação política. Este dever de coerência volve-se, para Sá Carneiro e Mota Amaral, em um imperativo da praxis política quando a Constituição é, ela própria, defraudada por uma lei ordinária que não a concretiza nem garante e por uma prática que não a respeita.

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Page 1: A Justiça no Centro da Política

A Justiça no Centro da Política – Em Torno do Projecto de Revisão

Constitucional da “Ala Liberal”.

Por Professor Doutor Paulo Pinto de Albuquerque

1.

O projecto de revisão constitucional da “Ala Liberal” e todo o

processo parlamentar de revisão constitucional do início dos anos setenta e

de posterior adaptação do direito ordinário à nova versão da Constituição

revelam um aspecto central do pensamento político de Francisco Sá

Carneiro e de João Bosco Mota Amaral.

Os autores do projecto de lei de revisão constitucional da “Ala

Liberal” descortinaram com total clareza que a reforma da justiça constitui

o cerne, nas palavras de Sá Carneiro, a “tarefa essencial” do processo

reformador do Estado e de desenvolvimento da sociedade na época

contemporânea. Os vícios da justiça e, muito particularmente, os da justiça

criminal, têm um efeito nefasto que se prolonga muito para além das vidas

dos envolvidos no caso sub iudice, para atingir a própria organização do

Estado e o desenvolvimento da sociedade.

Acresce que nenhuma outra reforma empreendida pelo Estado pode

almejar ter sucesso se a reforma da justiça não for encetada, funcionando

esta como uma condição sine qua non da própria viabilidade das outras

reformas.

O sentido que deve ser seguido no processo de reforma da justiça

não pode ser deixado ao arbítrio do legislador ordinário, mas antes deve

ser coerente com um programa constitucional humanista assente no

respeito das liberdades cívicas e na promoção da participação política.

Este dever de coerência volve-se, para Sá Carneiro e Mota Amaral, em um

imperativo da praxis política quando a Constituição é, ela própria,

defraudada por uma lei ordinária que não a concretiza nem garante e por

uma prática que não a respeita.

Page 2: A Justiça no Centro da Política

Estas três ideias fundamentais, a da primordialidade da reforma da

justiça, a do condicionamento das restantes reformas pela reforma da

justiça e a do imperativo da concretização do programa humanista da

Constituição da República no plano da justiça, constituem um verdadeiro

plaidoyer em defesa da centralidade da justiça no âmbito da política.

Dito de outro modo, o projecto de revisão constitucional da “Ala

Liberal” e a intervenção parlamentar de Francisco Sá Carneiro e João Bosco

Mota Amaral espelham um pensamento político que põe a justiça no centro

da política.

2.

É preciso conhecer o contexto político e jurídico do processo de

revisão constitucional para se ter uma noção exacta do que estava então

em jogo na sociedade portuguesa.

Portugal vivia sob um regime penal e policial com as seguintes

características fundamentais:

a) a PJ e a PIDE/DGS podiam determinar e manter a prisão

preventiva pelo período máximo de seis meses, apenas

sob controlo ministerial a partir dos três meses, podendo

aquele prazo ser alongado, como o foi algumas vezes, até

aos oito meses através da aplicação no final do período

dos seis meses de uma sanção disciplinar de prisão até

dois meses e podendo até repetir-se a detenção pelo

período máximo de seis/oito meses por uma e mais vezes

em relação ao mesmo suspeito, interrompidas pela

soltura do suspeito quando se aproximava a data limite

daquele período, tudo sem que a detenção e a soltura

fossem sequer comunicadas ao tribunal ou dessem lugar

a abertura de processo judicial (vd. o meu A Reforma da

Justiça Criminal em Portugal e na Europa, Coimbra,

Almedina, 2003, pp. 556 a 560, 576 a 578, onde se

Page 3: A Justiça no Centro da Política

indicam os detidos nestas condições cujas fichas

nominativas foram publicadas pela Presidência do

Conselho de Ministros)

b) enquanto na PJ só o director e os sub-directores exerciam,

em regra, as competências do juiz durante a instrução

preparatória relativas à liberdade ou manutenção da

prisão preventiva e à aplicação provisória das medidas de

segurança, na PIDE/DGS essas competências eram

exercidas pelo director, pelo subdirector e pelo inspector

superior, bem como pelo inspector adjunto, pelo

inspector, pelo subinspector e mesmo pelo chefe de

brigada, quando estes ocupassem cargos de chefia ou se

encontrassem fora da sede, sendo certo que a

confirmação da prisão pelo director da PIDE/DGS dentro

de 48 horas, no caso de ela ter sido decretada pelo

inspector adjunto, pelo inspector, pelo subinspector ou

pelo chefe de brigada, não implicava a realização prévia

de interrogatório do detido, pelo que não constituía uma

verdadeira validação, mas uma mera fiscalização interna

de serviço, e o âmbito da competência própria dos

inspectores adjuntos e dos inspectores que dirigissem

delegações e subdelegações na metrópole ou no ultramar,

dos inspectores adjuntos e dos inspectores do ultramar

quando em diligência fora das sedes das respectivas

delegações e dos subinspectores e dos chefes de brigada

que no ultramar tivessem funções de chefia foi

consideravelmente aumentado, pois todos estes

funcionários não tinham sequer a obrigação de submeter

à apreciação do director as decisões que tivessem

tomado;

c) o conselho de ministros podia determinar a fixação de

residência por período ilimitado em qualquer parte do

território nacional ou a proibição de residência no

Page 4: A Justiça no Centro da Política

território nacional a qualquer indivíduo cuja actividade

fizesse recear a perpetração de crimes contra a segurança

do Estado;

d) o ministro do ultramar podia determinar a proibição de

residência em qualquer ponto do território nacional a todo

aquele cuja presença fosse reputada “inconveniente” ou a

sua expulsão da colónia onde se encontrasse com fixação

de residência noutra colónia e o governador de cada

colónia podia determinar a proibição de residência na

respectiva colónia ou a fixação de residência dentro da

respectiva colónia com os mesmos fundamentos, tendo o

campo de trabalho de Chão Bom, na ilha de Santiago, em

Cabo Verde, entretanto reaberto em 1961, sido de novo

usado para internamento efectivo dos indivíduos

sancionados com a medida de fixação de residência fora

de província (vd. o meu A Reforma da Justiça Criminal em

Portugal e na Europa, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 984

e 985);

e) o tribunal podia aplicar uma medida de segurança de

internamento de seis meses a três anos, renovável por

períodos sucessivos de três anos, aos suspeitos de

actividades subversivas realizadas no âmbito de

associações de carácter comunista ou que tivessem por

fim a prática de crimes contra a segurança exterior do

Estado ou que utilizassem o terrorismo como meio de

actuação, independentemente de condenação em

processo criminal e mesmo quando a acusação deduzida

em processo criminal tivesse sido julgada improcedente;

f) o director da PIDE/DGS tinha competência para aplicar

provisoriamente e propor a aplicação definitiva da medida

de internamento em estabelecimento prisional aos

suspeitos da prática de actividades subversivas, sendo a

medida cumprida em estabelecimentos dependentes do

Page 5: A Justiça no Centro da Política

ministério do interior e estando vedada a impugnação

judicial da medida provisoriamente aplicada, o que,

somando os seis meses da prisão preventiva e os seis

meses da medida de segurança provisória nos processos

em que os arguidos fossem incriminados por crimes

contra a segurança do Estado, permitia a manutenção da

detenção sem controlo judicial por um período máximo de

um ano;

g) a actividade de instrução criminal da PIDE/DGS estava

totalmente subtraída ao controlo do Ministério Público e

do tribunal, encontrando-se sob o controlo do ministro do

interior quando ela tivesse lugar na metrópole e do

ministro do ultramar quando tivesse lugar no ultramar;

h) o tribunal plenário era presidido por um juiz desembargador

nomeado pelo ministro da justiça em comissão de serviço

por três anos e tinha competência para julgar todos os

crimes contra a segurança exterior e interior do Estado e

os de responsabilidade ministerial, os crimes de imprensa,

bem como os crimes de açambarcamento, especulação e

contra a economia nacional e os processos de querela

quando “em virtude da sua importância” a secção criminal

do Supremo Tribunal de Justiça, sob proposta da

Procuradoria-Geral da República, mandasse avocar o seu

julgamento ao tribunal plenário;

i) o tribunal plenário tinha competência para conhecer das

reclamações dos despachos de pronúncia e em matéria de

prisão preventiva, podendo dele fazer parte o próprio juiz

reclamado;

j) a garantia do habeas corpus era duplamente limitada, quer

no que respeita à faculdade de o governo suspender a

garantia quando bem o entendesse, quer no que toca ao

objecto, que só abrangia as limitações ilegais da liberdade

física, não incluindo designadamente o caso da ameaça

Page 6: A Justiça no Centro da Política

séria dessa limitação nem o da detenção ordenada, mas

ainda não cumprida, sendo o efeito prático da medida

muito diminuído pela garantia administrativa em relação à

autoridade administrativa responsável pela detenção

ilegal e à autoridade administrativa desobediente à ordem

do Supremo Tribunal de Justiça para responder à petição

do habeas corpus e, sobretudo, por um esquema de

sanções de pretensões abusivas que incluía no caso de

indeferimento do requerimento por manifesta falta de

fundamento a condenação do advogado subscritor

solidariamente com o reclamante em uma sanção

pecuniária e, se tivesse ou devesse ter tido conhecimento

da falta de fundamento legal da petição, em suspensão

do exercício da advocacia pelo período de três meses a

um ano, sendo o reclamante que se mostrasse ter tido o

intuito de demorar ou prejudicar o andamento dos autos

condenado em prisão correccional por injúria ao tribunal;

k) o ministro da justiça dispunha de um poder considerável de

interferência na gestão das carreiras das magistraturas:

designando directamente o vice-presidente e o

secretário do Conselho Superior Judiciário e indirectamente os

restantes membros, com excepção do presidente do STJ, que

era da escolha do governo,

nomeando os juízes dos tribunais correccionais, de

polícia e de execução de penas de entre os juízes de primeira

classe propostos pelo Conselho Superior Judiciário,

nomeando os juízes presidentes dos tribunais

criminais de Lisboa e do Porto de entre os juízes da Relação

que o Conselho indicasse, sendo estes nomeados para aquela

presidência em comissão de serviço, obrigatória e

prorrogável, de três anos, e

nomeando metade das vagas de juízes do Supremo

Page 7: A Justiça no Centro da Política

Tribunal de Justiça por escolha de entre os juízes das

Relações;

l) o Conselho Superior Judiciário podia propor e o ministro da

justiça determinar a transferência ou a nomeação em

comissão de serviço para outro cargo, sem carácter

disciplinar, de um magistrado judicial quando houvesse

motivos excepcionais, relativos a “circunstâncias

peculiares a determinada comarca ou ao magistrado” que

nela servisse.

A subordinação da administração da justiça ao ministro da justiça e

a concentração de poderes jurisdicionais nas pessoas do ministro da

justiça, do ministro do interior e do ministro do ultramar e em órgãos

policiais hierarquicamente subordinados a estes ministros tinham o seu

reverso no plano político da organização dos outros dois poderes do

Estado. Por um lado, o poder legislativo encontrava-se formal e

substantivamente subordinado ao poder executivo, de sorte que a

Assembleia Nacional se tinha tornado uma “mera auxiliar no desempenho

da função legislativa” pelo governo, nas palavras de Sá Carneiro. Por outro,

ao poder executivo faltava fundamento democrático directo, uma vez que

ele se encontrava concentrado no Presidente da República, que o exercia

através do Chefe de Governo, e o Presidente era eleito desde 1959 por um

colégio eleitoral cuja composição dependia na prática do próprio governo.

A revisão constitucional constituiu o ensejo perfeito para os jovens

da “Ala Liberal” da Assembleia Nacional fazerem ouvir as suas vozes, o que

fizeram com convicção e desassombro, como testemunham à saciedade o

texto do projecto de lei de revisão constitucional da “Ala Liberal” e as

intervenções orais dos seus protagonistas, os deputados Sá Carneiro, Mota

Amaral e Pinto Balsemão, durante a discussão parlamentar e, muito em

especial, nos seus discursos ora publicados.

Neles encontra-se a firmeza da convicção ideológica na

“necessidade imperiosa de politizar o País”, de “assegurar a participação de

todos os cidadãos”, como reclamava o deputado Mota Amaral.

Page 8: A Justiça no Centro da Política

Neles encontra-se o desassombro do discurso político, procedendo-

se à crítica frontal do regime político vigente como uma “autocracia”, uma

“oligocracia”, um regime “opressivo”, uma “ordem legislativa totalitária que

sobreponha os interesses da sociedade aos direitos da pessoa”, um “Estado

policial”, um “Estado totalitário”, como invectivava o deputado Sá Carneiro.

Neles encontram-se sobretudo as soluções reformadoras que a

proposta governamental omitia quanto ao regime dos direitos, liberdades e

garantias individuais, à organização dos meios de comunicação social, à

eleição do Presidente da República e aos poderes da Assembleia da

República, no fundo, quanto aos quatro grandes estrangulamentos do

regime.

Em relação ao regime dos direitos, liberdades e garantias

individuais, consagrava-se o direito de livre deslocação e fixação nas várias

parcelas do território nacional, o direito de emigrar sem restrições, o

direito de livre organização religiosa, a subordinação das medidas de

segurança aos princípios da legalidade e da jurisdicionalização ordinária, a

limitação temporal das medidas de segurança privativas da liberdade, o

controlo judicial da investigação criminal e da prisão preventiva e a

abolição dos tribunais especiais com competência exclsuiva para

julgamento de determinadas categorias de crimes, com excepção dos

crimes fiscais e dos crimes essencialmente militares. A regulamentação

constitucional mais detalhada e abrangente das liberdades cívicas e do

sistema de justiça criminal afigurava-se uma decorrência lógica da própria

defesa da Constituição em face de uma lei ordinária e de uma prática

administrativa que restringiam discricionariamente e, por isso,

desvirtuavam gravemente o programa constitucional, que se pretendia

humanista e assente no respeito daquelas mesmas liberdades.

No tocante à organização dos meios de comunicação social, além da

total liberdade de fundação de empresas jornalísticas, editoriais e

noticiosas e da organização da rádio e da televisão de acordo com critérios

de universalidade, objectividade e educativos, o projecto de lei da “Ala

Liberal” garantia a liberdade de expressão de pensamento sem

Page 9: A Justiça no Centro da Política

subordinação a qualquer forma de censura administrativa, salvo em caso

de guerra e em relação a notícias de carácter militar, e a aplicação

exclusiva das medidas preventivas e repressivas dos crimes cometidos

através da imprensa apenas pelos tribunais comuns.

Quanto à eleição do Presidente da República e aos poderes da

Assembleia Nacional, a opção da “Ala Liberal” ia no sentido claro de uma

maior inclusão do elemento popular na vida política do país, regressando

ao sufrágio directo e universal na eleição do Presidente da República e

reforçando substancialmente os poderes da Assembleia Nacional,

sobretudo em virtude da reserva de lei no tocante ao exercício das

liberdades do parágrafo 2 do artigo 8 e às condições do uso da garantia do

habeas corpus, à eleição do presidente da República e da Assembleia

Nacional, à estrutura e ao modo de funcionamento do Conselho de Estado

e da Câmara Corporativa e às garantias de processo penal enunciadas no

artigo 8. A “lógica da participação”, de que falava Mota Amaral, era,

também ela, a consequência da recusa de um poder concentracionário e

longínquo que dominava na prática o exercício do poder legislativo nos

mesmos termos que controlava o exercício da liberdade de expressão e o

funcionamento do poder judicial e policial.

Não obstante a sua amplitude e a sua coerência intrínseca, ou

talvez por causa delas, a maioria preferiu não discutir sequer estas

soluções inovadoras, restringindo a discussão parlamentar ao teor da

proposta governamental.

Com efeito, a 2 de Dezembro de 1970 o presidente do Conselho de

Ministros apresentou na Assembleia Nacional a proposta de revisão

constitucional do governo, proposta de lei n. 14/X, sob o lema de que “A

vida da Nação exige continuidade e só nela pode inserir-se fecundamente a

renovação”.

Francisco Sá Carneiro, João Bosco Mota Amaral, Francisco Pinto

Balsemão e outros, poucos, deputados apresentaram no dia 16 de

Dezembro de 1970 o projecto de lei n. 6/X da revisão constitucional, em

alternativa à proposta do Governo e a um outro projecto de lei, o n. 7/X,

Page 10: A Justiça no Centro da Política

apresentado pelo deputado Duarte do Amaral e outros.

A Câmara Corporativa não recomendou a aprovação do projecto de

lei n. 6/X, tendo votado vencidos a não aprovação do projecto na

generalidade os procuradores Maria de Lourdes Pintasilgo, Diogo Freitas do

Amaral e André Gonçalves Pereira.

Na Assembleia Nacional, a discussão na generalidade da proposta e

dos projectos de lei sobre a revisão constitucional começou em 15 Junho

de 1971 e terminou em 29 do mesmo mês. Nesse mesmo dia passou-se ao

debate na especialidade, mas, por força da aprovação de um requerimento

apresentado pelo deputado Trigo Pereira e subscrito por este e por outros

deputados (Diário das Sessões da Assembleia Nacional, 1971, p. 2307),

procedeu-se à discussão e à votação sobre o texto sugerido pela comissão

eventual da Assembleia Nacional, que na sua substância perfilhava as

soluções da proposta governamental e rejeitava as do projecto de lei da

“Ala Liberal”. O efeito prático desta opção da maioria foi o de evitar a

discussão pela Assembleia das soluções concretas do projecto de lei n. 6/X.

O debate na especialidade, que decorreu de 29 de Junho a 8 de Julho,

perdeu, por isso, todo o significado em virtude do expediente utilizado pela

maioria, frustrando-se por inteiro a esperança manifestada por alguns,

como o deputado Pinto Balsemão, de que aquele Verão parlamentar fosse

“uma estação produtiva”, um período em que “a coragem das atitudes que

devem ser adoptadas e a eficiência das deliberações que têm de ser

tomadas se sobreponham à incerteza dos expedientes que possam ser

ensaiados e à insuficiência das discussões que venham a ser tentadas”.

3.

As mudanças foram especialmente contidas no âmbito das

liberdades e dos direitos fundamentais.

O novo texto constitucional, que correspondia na sua substância à

proposta apresentada pelo governo, procedeu apenas à revisão do regime

da prisão preventiva em obediência a uma política criminal

Page 11: A Justiça no Centro da Política

compromissória, que visava a liberalização do regime vigente, sem prejuízo

da manutenção de um regime de detenção policial especial vigente para a

criminalidade investigada pela PIDE/DGS e pela PJ.

A abolição dos tribunais criminais extraordinários foi logo chumbada

pela Câmara Corporativa, que entendeu que não era necessária “uma

medida tão drástica” já que havia dois “limites práticos e actuantes à

proliferação” destes tribunais. Por um lado, a criação ou manutenção deste

tipo de tribunais causaria, no entendimento da Câmara Corporativa,

“danos políticos” aos regimes quando eles fossem criados ou mantidos sem

que circunstâncias “muito particulares” os justificassem. Por outro, a

Assembleia Nacional tinha competência sobre a matéria de organização

judiciária, permitindo que os deputados estabelecessem um regime para

aqueles tribunais “que os aproximam, tanto quanto possível e necessário,

do ordenamento judiciário comum” (parecer da Câmara Corporativa n.

23/X, p. 306).

Por seu turno, o regime da prisão preventiva foi modificado, mas

com muitas cautelas. O legislador constituinte consagrou mais abertamente

o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, que não deveria ser

ordenada nem mantida quando pudesse “ser substituída por quaisquer

medidas de liberdade provisória legalmente admitidas”, e restringiu o

âmbito da admissibilidade da prisão preventiva fora de flagrante delito aos

crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a um ano. Mas ficou

muito aquém da solução do projecto de lei n. 6/X, que restringia a prisão

preventiva aos casos de flagrante delito ou crime doloso punível com pena

maior, sendo a duração máxima da prisão sem culpa formada de setenta e

duas horas, improrrogáveis, e mesmo da solução do relator do parecer da

Câmara Corporativa, o Professor Afonso Queiró, que sugeriu uma restrição

mais significativa da prisão preventiva sem culpa formada, prevendo-a

apenas para os casos de crime doloso punível com pena maior e de crime

punível com pena de prisão superior a um ano quando fosse praticado por

pessoa judicialmente declarada como perigosa ou no período de execução

de qualquer medida penal ou ainda quando a conduta do suspeito posterior

Page 12: A Justiça no Centro da Política

ao facto revelasse perigo de fuga (Afonso Queiró, Sobre as garantias

individuais, in RDES, ano XX, 1973, pp. 276 a 278). Deste modo, a prisão

preventiva sem culpa formada dos suspeitos da prática de crimes puníveis

com pena superior a um ano de prisão em relação aos quais se verificasse

perigo de continuação criminosa ou perigo de perturbação da instrução, a

prisão preventiva de delinquentes perigosos sem a suspeita da prática de

crimes puníveis com pena superior a um ano de prisão e a prisão

preventiva de vadios e equiparados sem a suspeita da prática de crimes,

que o direito vigente previa, ficariam desprovidas de fundamento

constitucional. A Câmara Corporativa não acompanhou o relator, omitindo

no parecer final esta sugestão e recomendando a adopção do texto

governamental.

Por outro lado, na nova versão da lei constitucional, a autorização

para prisão fora de flagrante delito ainda podia ser levada a efeito

“mediante ordem por escrito da autoridade judicial ou de outras

autoridades expressamente indicadas na lei”, dando-se assim cobertura

constitucional à previsão legal da competência de quaisquer órgãos

policiais, mesmo subalternos, para determinar a prisão preventiva fora de

flagrante delito. Simultaneamente, a nova garantia constitucional de

revalidação da prisão preventiva sem culpa formada e do controlo

subsequente da manutenção da prisão, com prévia audiência do detido em

ambos os casos, não era ligada à reserva judicial do exercício desta

competência, podendo a revalidação e a manutenção da prisão ser

determinadas por autoridade policial ou administrativa legalmente

competentes.

Com efeito, a Câmara Corporativa reconheceu expressamente que

“tanto vale dizer-se que a prisão poderá ser ordenada pela «autoridade

competente» (segundo a lei ordinária) como dizer-se que o poderá ser

«por ordem de autoridade judicial ou de autoridades expressamente

indicadas na lei». A necessidade de admitir que outras, que não apenas a

autoridade judicial, possam ordenar a prisão preventiva resulta

especialmente de se não preverem providências sucedâneas dessa que

Page 13: A Justiça no Centro da Política

dispensem o mandato judicial, especialmente no domínio dos delitos que

atentem contra a segurança e a ordem pública.” Contudo, esta atribuição

de poderes jurisdicionais a autoridades não judiciais seria compensada pela

consagração de um sistema de “contrôle tanto quanto possível exercido por

autoridades independentes e distintas das que podem decretar a prisão”,

mas não necessariamente por tribunais, admitindo mesmo a Câmara a

verificação de “desvios de uma tal directriz” que só podiam conceber-se

“como excepcionais ante muito sérias razões, todas referidas a

impreteríveis exigências processuais, no específico domínio de segurança e

de ordem pública” (parecer n. 22/X, p. 107). Não foi este, no entanto, o

texto apresentado pelo relator do parecer, que afirmava expressamente a

necessidade de “um contrôle por autoridades independentes e distintas das

que podem decretar a prisão”, pelo que o novo preceito constitucional

devia prever a sujeição obrigatória da manutenção da prisão preventiva

sem culpa formada a decisão judicial no prazo máximo de setenta e duas

horas (Afonso Queiró, Sobre as garantias individuais, in RDES, ano XX,

1973, pp. 279 e 282). O projecto de lei n. 6/X ia ainda mais longe,

vedando a determinação por autoridade não judicial da prisão preventiva

fora de flagrante delito e prevendo que a decretação de todas as medidas

restritivas da liberdade, incluindo a prisão preventiva, dependia de ordem

judicial e que toda a prisão podia ser substituída por caução.

Ao invés, a reforma do regime das medidas de segurança obedeceu

a um desígnio liberal uniforme do Governo e da “Ala Liberal” no sentido de

equiparar, tanto quanto possível, as garantias do cidadão a quem fosse

aplicável uma medida de segurança com as que a lei constitucional previa

para o cidadão a quem fosse aplicável uma pena. Assim, as medidas de

segurança foram submetidas ao princípio da legalidade e o processo de

segurança subordinado à garantia da instrução contraditória. Coroando o

referido esforço de equiparação das medidas de segurança e das penas, o

legislador constituinte proibiu “as medidas de segurança privativas ou

restritivas da liberdade pessoal com carácter perpétuo, com duração

ilimitada ou estabelecidas por períodos indefinidamente prorrogáveis”, com

a ressalva das que se fundassem em anomalia psíquica e tivessem fim

Page 14: A Justiça no Centro da Política

terapêutico.

4.

A “Ala Liberal” não esmoreceu, contudo. A revisão constitucional

desencadeou um processo de renovação do direito ordinário, tendo a

Assembleia Nacional iniciado este processo com a aprovação de uma lei de

bases da organização judiciária, a Lei n. 2/72, de 10.5, que foi seguida pela

publicação de vários decretos pelo governo concretizando aquelas bases

tanto no âmbito do direito penal substantivo e processual como no da

organização judiciária.

O processo de aprovação desta lei constituiu mais uma tentativa, a

derradeira, de liberalização do regime preconizada pela “Ala Liberal”.

A proposta de lei n. 17/X, que esteve na base da referida lei de

bases, foi apresentada pelo Governo na sessão de 23 de Fevereiro de

1972, tendo sido discutida na generalidade nas sessões seguintes. Na

sessão do dia 25, o presidente da Assembleia interrompeu a discussão para

pedir à Câmara Corporativa um parecer “urgente” sobre a proposta de

alteração à proposta do governo apresentada pelo deputado Sá Carneiro

nesse dia na mesa da assembleia (Diário das Sessões da Assembleia

Nacional, 1972, pp. 3262 e 3263). A Câmara Corporativa pronunciou-se no

sentido da rejeição da proposta de alteração na sua generalidade, com

base em “violação da Constituição no aspecto processual”, abstendo-se

deste modo de apreciar as propostas na especialidade.

Na sessão de 17 de Março de 1972, foi reaberta a discussão na

generalidade e o deputado relator da comissão de administração e política

geral e local colocou a questão prévia da não admissão à discussão e

votação na especialidade das propostas de alteração apresentadas por Sá

Carneiro. Depois de um debate aceso, a questão prévia foi aprovada por 65

votos a favor e 20 contra, tendo faltado à chamada para a votação 36

deputados (Diário das Sessões da Assembleia Nacional, 1972, p. 3400).

Na sessão do dia seguinte, foram ainda enviadas à mesa duas

Page 15: A Justiça no Centro da Política

propostas de emenda e aditamento dos deputados Mota Amaral e Sá

Carneiro aquando do início da discussão na especialidade das bases da

proposta do governo. A discussão restringiu-se à primeira proposta sobre a

sujeição dos processos dirigidos pela Direcção-Geral de Segurança aos

futuros juízes de instrução criminal, tendo ela sido rejeitada. A partir desta

votação, a discussão findou praticamente, sendo as restantes propostas de

emenda dos deputados da oposição rejeitadas uma após outra e aprovadas

as bases do governo, com uma pequena emenda sugerida pela Câmara

Corporativa.

A mais emblemática medida defendida por Sá Carneiro foi a da

extinção dos tribunais plenários, passando a sua competência, que já tinha

sido restringida pela base XXXVIII da Lei n. 5/71, de 5.11, para os

tribunais colectivos de Lisboa e do Porto. Só o deputado Pinto Balsemão se

pronunciou em defesa desta proposta na votação na especialidade, embora

com a “convicção de que pouco adiantará ser breve ou não o ser” (Diário

das Sessões da Assembleia Nacional, 1972, p. 3422). A proposta de Sá

Carneiro previa ainda a escolha pela magistratura judicial dos seus

membros para os diversos cargos judiciais e a eleição dos presidentes do

Supremo Tribunal de Justiça e das Relações de entre os juízes que

compunham estes tribunais e por estes juízes, determinava a formação do

Conselho Superior Judiciário com uma maioria de membros eleita pelos

juízes, proibia as comissões de serviço para cargos judiciais e a

transferência do magistrado judicial sem o seu acordo e restringia a

admissibilidade da suspensão, da colocação na inactividade, da

aposentação e da demissão de juízes às decretadas no âmbito de um

processo disciplinar, com a ressalva das normas relativas a promoções e a

limites de idade e incapacidade física (Bases XI e XII da proposta de

alteração à proposta de lei n. 17/X, in Diário das Sessões da Assembleia

Nacional, 1972, p. 3263). Ao invés, a proposta do governo nada mudava a

propósito da independência do poder judicial (Francisco Sá Carneiro, A

proposta de lei sobre a organização judiciária, Porto, Ordem dos

Advogados, 1973, p. 16).

Page 16: A Justiça no Centro da Política

5.

As duas opções fundamentais do legislador consagradas na nova lei

foram a da criação de juízes de instrução criminal, com competência para

exercer as “funções jurisdicionais” durante a instrução preparatória,

conduzir a instrução contraditória e dar a pronúncia nos feitos instruídos

pela Polícia Judiciária, e a da possibilidade de instituição de tribunais

colectivos nos juízos correccionais e de polícia nas comarcas de Lisboa e do

Porto. A primeira opção, que consubstanciava a reintrodução de uma

magistratura já conhecida no processo penal português, tinha um carácter

restritivo, quer no que toca às competências jurisdicionais atribuídas ao

novo magistrado, quer no que respeita ao âmbito territorial da solução, que

se restringia às comarcas de maior movimento processual.

A justificação desta última restrição era a de que nessas comarcas

se concentrava a investigação da Polícia Judiciária, que interessava

especialmente controlar, atenta a atribuição de poderes jurisdicionais

àquela polícia. Contudo, admitia-se que o sistema evoluiria para uma

generalização desta magistratura. Assim se pronunciou a Câmara

Corporativa (parecer n. 33/X, p. 82), como também o fizeram alguns

deputados da maioria e, designadamente, o deputado Cotta Dias (Diário

das Sessões da Assembleia Nacional, 1972, p. 3417). Os procuradores

Adelino da Palma Carlos e Arala Chaves votaram vencidos o parecer da

Câmara, porque entendiam que os juízos de instrução se justificavam não

só para os feitos instruídos pela PJ, mas também para os instruídos pela

DGS e outros organismos com competência instrutória especializada. Esta

opinião foi reiterada pouco tempo depois por Adelino da Palma Carlos

nestes termos: “não há, estou certo disso, um jurista solvável que

compreenda por que se dão aos arguidos de certos crimes garantias que

não são concedidas aos arguidos doutros crimes” (Adelino da Palma Carlos,

Alguns problemas de organização judiciária, Lisboa, Ordem dos Advogados,

1972, p. 27).

Na discussão na Assembleia Nacional, esta questão foi debatida até

Page 17: A Justiça no Centro da Política

à exaustão, tendo-se destacado na defesa das propostas de Sá Carneiro e

Mota Amaral os deputados Homem Ferreira, Pinto Balsemão e Pinto

Machado, e na oposição a elas os deputados Ramiro Queirós e Duarte de

Oliveira. Segundo Sá Carneiro, o propósito do governo era o de cobrir a

“lacuna de constitucionalidade” que constituía a concessão do exercício de

poderes jurisdicionais às polícias, mas a solução dada apresentava-se como

uma “incongruência” por não prever o controlo dos processos instruídos

pela DGS e mesmo por “não cobrirem todas as autoridades instrutórias,

designadamente o Ministério Público” (Sá Carneiro, A proposta de lei sobre

a organização judiciária, Porto, Ordem dos Advogados, 1973, p 19), razão

pela qual o deputado tinha, na sua proposta de alteração à proposta n.

17/X, sugerido a criação de juízos de instrução para a realização da

instrução “de todos e quaisquer processos criminais”, incluindo a prolação

do despacho de pronúncia ou equivalente, sendo a instrução contraditória

em “todas as suas fases” (Base I, ns. 1 e 2, in Diário das Sessões da

Assembleia Nacional, 1972, p. 3262).

Também o deputado Mota Amaral apresentou, sem sucesso, uma

emenda à proposta do governo no sentido de os processos da DGS serem

submetidos ao controlo do juiz de instrução (Diário das Sessões da

Assembleia Nacional, 1972, p. 3409). A ideia subjacente a estas duas

propostas já tinha, aliás, sido defendida no artigo 8, n. 10, do fracassado

projecto de lei n. 6/X, sobre a revisão da Constituição, que previa uma

“instrução judiciária escrita, preparatória e contraditória”, com o direito de

assistência de um defensor (in Actas da Câmara Corporativa, n. 62, de

19.12.1970). Os deputados da maioria invocaram a natureza especial dos

crimes investigados pela DGS para justificar a manutenção do regime em

vigor e a circunstância de esta reforma parcial ir mesmo além da

Constituição, que não exigia a legalização da prisão pelo poder

jurisdicional, sendo “inexigível o óptimo, a perfeição total” por falta de

possibilidades materiais e humanas “de resolver o problema integralmente

dentro do Ministério da Justiça” (Diário das Sessões da Assembleia

Nacional, 1972, pp. 3261, 3411 e 3413), ao que o deputado Mota Amaral

opunha que “o facto de se prescindir da intervenção de um órgão com as

Page 18: A Justiça no Centro da Política

garantias de imparcialidade e independência, como é a do juiz do tribunal

comum, vem deixar um instrumento que é possível utilizar de uma forma

opressiva das próprias consciências totalmente nas mãos do Executivo”

(Diário das Sessões da Assembleia Nacional, 1972, p. 3411).

Esta insistência não caiu, no entanto, em saco roto, como se

verificou pela regulamentação da Direcção-Geral da Segurança aprovada

pelo Decreto-Lei n. 368/72, de 30.9, quatro meses depois da publicação da

lei de bases da organização judiciária.

Com efeito, a instrução preparatória dos processos da competência

da Direcção-Geral de Segurança permanecia à revelia do controlo

jurisdicional e mesmo do Ministério Público, com a circunstância agravante

de que a assistência de advogado constituído aos interrogatórios do

arguido podia ser interdita quando houvesse “inconveniente para a

investigação ou a natureza do crime” o justificasse, devendo o advogado

constituído ser substituído por um defensor nomeado oficiosamente ou por

duas testemunhas “qualificadas” e obrigadas a segredo de justiça (artigo

10 do Decreto-Lei n. 368/72).

O ministro do interior no continente e o ministro do ultramar nas

províncias ultramarinas mantinham, em relação à Direcção-Geral de

Segurança, os poderes que a lei conferia ao ministro da justiça e ao

procurador-geral da República relativamente à Polícia Judiciária, mas as

funções jurisdicionais que a lei comum atribuía ao juiz durante a instrução

preparatória no tocante ao interrogatório de arguidos presos, à validação e

manutenção de capturas e à decisão sobre a liberdade provisória eram

desempenhadas apenas pelo director-geral, pelo subdirector-geral, pelos

inspectores superiores, pelos directores de serviço e pelos inspectores-

adjuntos.

Se os poderes do ministro do interior eram os mesmos que o

diploma regulador da PIDE de 1954 tinha fixado e o de 1961 tinha

mantido, a relação entre os órgãos dirigentes da DGS e os funcionários

subalternos dirigentes da instrução preparatória era distinta da

estabelecida naqueles diplomas, regressando ao modelo inicial de 1945.

Page 19: A Justiça no Centro da Política

Com efeito, a divisão clara de tarefas entre os órgãos dirigentes da DGS,

aos quais incumbia a validação e a manutenção da captura, e os

inspectores, aos quais competia a direcção da instrução preparatória,

permitia de novo a realização do pensamento originário do autor da

reforma de 1945, atribuindo o exercício das funções jurisdicionais a

autoridades distintas da entidade instrutória.

6.

A segunda opção fundamental consagrada na nova lei de bases de

alargamento do tribunal colectivo aos juízos correccionais e de polícia

correspondia ao aproveitamento para o processo penal dos resultados da

experiência da última reforma do processo civil, com base no entendimento

de que “a organização judiciária do sector criminal e o próprio processo

penal estão atrasados relativamente à evolução da organização judiciária

destinada a servir a jurisdição cível e o processo cível” (Parecer da Câmara

Corporativa n. 33/X, pp. 86 a 88.). Esta opção estratégica de aproximação

entre o processo civil e o penal era motivada, por um lado, por uma

associação do princípio da oralidade a um juízo definitivo do tribunal de

primeira instância sobre a matéria de facto e, por outro lado, por uma

apreciação muito crítica das possibilidades técnicas e organizativas de

implementação das alternativas ao tribunal colectivo e, designadamente,

do registo da prova na primeira instância ou da repetição da prova na

segunda instância.

Assim, o tribunal colectivo dos juízos criminais era constituído pelo

juiz corregedor do juízo criminal por onde corria o processo, que presidia, e

por dois juízes adjuntos, que fossem titulares de outros juízos criminais,

dos juízos correccionais ou do tribunal de polícia e, à semelhança do que

ocorria nos juízos dos tribunais cíveis de Lisboa e do Porto, o tribunal

colectivo dos juízos correccionais e do tribunal de polícia era constituído

pelo juiz do juízo por onde corria o processo, que presidia, e por dois

titulares de outros juízos correccionais ou de polícia. No entanto, ao invés

da jurisdição cível, o julgamento da matéria de facto e de direito competia

Page 20: A Justiça no Centro da Política

sempre ao tribunal colectivo e o encargo da elaboração do acórdão ao

presidente do tribunal.

A Câmara Corporativa procedeu a uma crítica muito severa do

tribunal colectivo, imputando-lhe uma “tendência para a autocracia no

domínio das provas”, a “frustração da colegialidade”, “a perturbação no

serviço das comarcas” e a “antecipação do julgamento das questões de

direito”, mas concluiu que “a experiência dos corregedores-adjuntos que

não são titulares de qualquer tribunal resultou numa melhoria da qualidade

do serviço” e, portanto, também na jurisdição criminal, “a intervenção do

tribunal colectivo, acrescida da imposição de justificar as respostas aos

quesitos em termos de representar breve extracto da prova ouvida e da

sua identificação,” constituía a escolha “mais consentânea com as

realidades” (parecer n. 33/X, pp. 57, 85, 88 e 89). A proposta do governo

de alargamento do âmbito de intervenção do tribunal colectivo foi criticada

quer pelo seu carácter vago (Sá Carneiro, A proposta de lei sobre a

organização judiciária, Porto, Ordem dos Advogados, 1973, p. 18), quer

pela “verdadeira omnipotência dos tribunais em matéria de apreciação da

prova” resultante de os Tribunais de Relação estarem “praticamente

inibidos” de sindicar a decisão sobre a matéria de facto da primeira

instância, em processo penal tal como em processo civil (vd. os votos de

vencido dos procuradores Adelino da Palma Carlos e Trigo Negreiros no

parecer n. 33/X, pp. 97 e 98, reiterando o primeiro os votos de vencido nos

pareceres ns. 51/VI, pp. 433 e 434, e 3/VIII, p. 196, com a concordância

do deputado Pinto de Mesquita na sessão de 9.3.1962 da Assembleia

Nacional, in Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n. 43, de

10.3.1962, p. 988). Por outro lado, a ineficácia da obrigatoriedade da

fundamentação das respostas aos quesitos, já experimentada no processo

civil, em face da própria insuficiência das fórmulas utilizadas e da

impossibilidade de a Relação alterar as respostas com base na motivação,

não oferecia “nenhuma espécie de garantia”, sugerindo alguns que se

procedesse ao registo da prova de modo a permitir a sua ampla sindicância

pelo tribunal de recurso ou mesmo à repetição do julgamento (vd. o voto

de Palma Carlos no parecer da Câmara Corporativa n. 33/X, p. 98, Joaquim

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Roseira Figueiredo, Organização judiciária, Porto, Ordem dos Advogados,

1972, pp. 36 a 38, e Sá Carneiro, A proposta de lei sobre a organização

judiciária, Porto, Ordem dos Advogados, 1973, pp. 17 e 18).