a intencionalidade da obra de arte na educaÇÃo … · diante disso, suscitam ... 1997). outro...
TRANSCRIPT
A INTENCIONALIDADE DA OBRA DE ARTE NA EDUCAÇÃO DE
CRIANÇAS PEQUENAS
Kátia Batista Martins1
Universidade Federal de Lavras
Gislaine de Fátima Ferreira da Silva2
Universidade Federal de Lavras
EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL
Neste artigo, no qual temos como lente os referenciais críticos e pós-críticos, busca
problematizar o fazer artístico com as crianças pequenas e os discursos que transitam na
escola acerca dessas relações. Para tanto, refletimos sobre o material empírico decorrente de
pesquisa realizada com crianças de cinco anos, numa escola da rede pública do interior de
Minas Gerais. Procurando compreender e problematizar a educação do sensível de forma
intencional, estética, ética e política e, como nos instiga Silva “uma teoria define-se pelos
conceitos que utiliza para conhecer a ‘realidade’. Os conceitos de uma teoria dirigem nossa
atenção para certas coisas que sem eles não veríamos” (SILVA, 2011, p.17). Assim, na
escrita deste artigo, no qual focamos em referenciais que abordam a educação do sensível,
percebe-se os sujeitos imersos em uma cultura mercadológica e consumista, na qual perde-
se a beleza da vida (DUARTE JÚNIOR, 2004). Entretanto, problematizamos essa lógica, à
luz dos estudos culturais e dos estudos pós-críticos, tendo como princípio a concepção de
infância enigmática que nos escapa (LARROSA, 2013) e o conceito de dispositivo nos quais
os discursos são (re)produzidos e circulam (FOUCAULT, 1993).
Com as transformações científico-tecnológicas que ocorreram nas últimas décadas, a
educação vem sendo estruturada com a finalidade de formar pessoas para atuarem no
mercado de trabalho. Mercado esse que vem se expandindo cada vez mais com o aumento
1Mestranda em Educação (Ufla); Coordenadora do curso Gênero e Diversidade na Escola–Ufla .Integra o
Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e Educação para a Sexualidade na Contemporaneidade: a
problemática da formação docente (Fesex) coordenado pela professora Dra. Cláudia Maria Ribeiro.
2Mestranda em Educação (Ufla); Pedagoga (UFSJ). Coordenadora pedagógica–Cead/Ufla. Integra o Fesex.
excessivo do consumo. Desse modo, encontramos na contemporaneidade acelerada, de
fronteiras fluidas3 um consumismo acelerado, em que as imagens tomam formas e
comportamentos normativos que absorvem as relações e as substituem de forma a anestesiar
os sujeitos. Neste contexto, é imprescindível buscar práxis educativas voltadas ao
desenvolvimento emocional, sensível e criativo das crianças nos espaços da Educação
Infantil.
Como estudiosas das sexualidades, das relações de gênero e da Educação Infantil,
refletimos que o fazer artístico, algumas vezes, não é tratado com intencionalidade nas
instituições de educação. Percebemos que a arte assume na escola o objetivo de desenvolver
capacidades relativas à psicomotricidade, ao desenvolvimento cognitivo “gráfico e em
particular, no caso do desenho, da pintura e da escultura, como formas de registro e
comprovação das atividades que as crianças têm realizado nas instituições [...]”
(OLIVEIRA, 2009, p. 1) no período que ali permanecem.
Isso remete a pensar: como as crianças vêm experienciando esse fazer artístico? E
ainda como se apropriam dele? E as professoras e professores dessas instâncias, que
formação possuem no âmbito das artes e do fazer artístico? Que contribuições esse saber
artístico pode trazer na e para a formação da Educação Infantil?
Pupo (2006) explicita que a arte/fazer artístico ensina as diferentes formas de se
relacionar e interagir com os elementos da cena e da vida, tornando a atmosfera do trabalho
e a vivência significativos à experiência. De acordo com Almeida (1992), ao conhecer e
compreender melhor as artes, as crianças tornam-se pessoas mais sensíveis, capazes de
perceber, de modo acurado, modificações no mundo físico e natural, e também de
experimentar diversos sentimentos que simbolizam o campo afetuoso de ternura, de
simpatia e de compaixão. Nesse cenário, no presente artigo buscamos problematizar o
material empírico decorrente da pesquisa: “A intencionalidade da arte na Educação Infantil”
considerando uma atividade desenvolvida em uma instituição pública de Educação Infantil,
visando sensibilizar o olhar das crianças e da instituição educativa. A pesquisa previu a
construção de um espaço que denominamos oficina, para a qual selecionamos uma obra de
arte e instigamos, intencionalmente, a observação, discussão e problematização da pintura
intitulada O casal Arnolfini, de Jan Van Eyck (figura 1).
3Cf. Bauman, Zygmunt. Tempos Líquidos (2007)
Figura 1 – O casal Arnolfini – 1434
Fonte: The National Gallery4
De acordo com Venson (2011), no início do século XV Jan Van Eyck destacou-se
pelo realismo pictórico, alcançando sucesso com a pintura de retratos. O Casamento de
Arnolfini, datado de 1434, pintado com óleo sobre madeira com medidas de 81,8 x 59,7 cm,
representa Giovanni de Arrigo Arnolfini, um mercador italiano, na companhia de sua noiva,
Giovanna Cenami. A obra é rica em detalhes, apresentando objetos e personagens que
propiciam a interpretação da cena e dos símbolos. Beckett (1997) detalha a cena:
O leito, a solitária vela acesa, o solene momento de união em que o jovem
noivo está prestes a pousar a mão direita na de sua prometida, as frutas, o
fiel cãozinho, o rosário, os pés descalço (pois se trata do chão em que se
dará uma união sagrada e até mesmo a distância respeitosa entre Giovanni
Arnolfini e Giovanna Cenami) todos esses elementos unificam-se no
reflexo do espelho (BECKETT,1997, p. 64 apud VENSON, 2011, p. 23).
A pintura representa o casamento dos Arnolfini. Cumming (1998) descreve que no
século XV, o matrimônio não requeria a presença de um sacerdote cristão, no entanto, a
autenticação da união exigia o comparecimento de duas testemunhas. Diante disso, suscitam
pensamentos de que a obra “O casamento de Arnolfini” seria um autorretrato de Van Eyck, 4Disponível em: http://www.nationalgallery.org.uk/paintings/jan-van-eyck-the-arnolfini-portrait Acesso em 9.
Abr. 2015.
o qual apareceria no espelho, junto à outra pessoa (BECKETT, 1997). Outro fator que
instiga essa reflexão é a assinatura acima do espelho- “Johannes de Eyck fuithic1434”
(CUMMING, 1998). Atualmente a pintura encontra-se em National Gallery de Londres, e é
considerada uma das obras mais notáveis de Van Eyck.
A obra de arte suscitou a fala das crianças sobre os seguintes temas: família,
moradia, gênero, casamento e outros temas que foram inusitados para as pesquisadoras. As
crianças propuseram ainda, a produção de uma história; texto coletivo produzido pelas
crianças.
ARTE, EDUCAÇÃO E A CRIANÇA PEQUENA
Ao iniciarmos esta discussão, torna-se necessário e de suma importância, refletirmos
o que prevê a legislação em relação à arte na Educação Infantil. Nos PCNs5 está proposto o
ensino de arte em todos os anos do ensino fundamental. Nos RNCEIs6, a arte é prevista como
“artes visuais”. Englobando e atribuindo
Sentido a sensações, sentimentos, pensamentos e realidade por meio da
organização de linhas, formas, pontos, tanto bidimensional como
tridimensional, além de volume, espaço, cor e luz na pintura, no desenho,
na escultura, na gravura, na arquitetura, nos brinquedos, bordados, entalhes
etc. O movimento, o equilíbrio, o ritmo, a harmonia, o contraste, a
continuidade, a proximidade e a semelhança são atributos da criação
artística. A integração entre os aspectos sensíveis, afetivos, intuitivos,
estéticos e cognitivos, assim como a promoção de interação e comunicação
social, conferem caráter significativo às Artes Visuais (BRASIL.
MEC/SEF. 1998, p, 84).
Cabe salientar que a arte está presente nas diversas formas de expressar das
infâncias: desenhar, rabiscar, amassar, riscar o chão, modelar. E como forma de expressão
humana, as artes visuais também são formas de linguagem. Entretanto, percebe-se que essas
práticas têm sido pouco recorrentes nas instituições de Educação Infantil de forma
intencional. Assim como os jogos e brincadeiras, a arte também possui uma dimensão
lúdica, poética, estética, política, possibilitando à criança criar e recriar seu mundo,
(re)pensa-lo de forma crítica e (re)produzi-lo. Como forma de linguagem e expressão a arte
5Parâmetros Curriculares Nacionais– Arte (BRASIL. MEC/SEF. 1997). 6Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil (BRASIL. MEC. 1998).
também liberta e alarga fronteiras, conduzindo os sujeitos a viajarem no imaginário e
materializarem suas invenções.
A arte aproxima as pessoas, assim, através das interações as crianças constroem
conhecimentos a partir das experiências com os outros. Logo, a arte torna-se ferramenta
essencial no processo de aprendizagem e formação humana desde a Educação Infantil. O
objetivo aqui não é somente discutir os benefícios da arte na Educação Infantil, mas,
também problematizar e dialogar a educação do sensível e das sexualidades, partindo das
experiências e falas das crianças e, de processos educativos que intencionalmente, provocam
problematizações sobre conceitos fundamentais ao cotidiano da educação. Uma vez que na
contemporaneidade vivenciamos mudanças nas composições familiares. A obra nos
apresenta um casal heterossexual. O que dizem as crianças sobre as famílias? Quais as
configurações familiares que atualmente se encontram nas escolas?
OFICINA DE ARTE EOS INUSITADOS DAS CRIANÇAS
Para suscitar as falas das crianças, a pesquisa realizada previu e foi desenvolvida
uma oficina para apreciação e observação da obra O casal Arnolfini. Analisando a obra do
ponto de vista simbólico, encontram-se várias denotações cabíveis de serem
problematizadas. Aprimeira impressão obeservada foi: um casal, aparentemente um homem
e uma mulher de mãos dadas em um quarto. A conotação que temos é a representação7 de
uma família nuclear. Isso porque temos um casal de mãos dadas com os pés no chão, uma
cama, o que leva a interpretar que estão à vontade e em casa. Embora em tempos e culturas
diferentes, de acordo com algumas análises, a cena presente representa uma cerimônia de
casamento. Ainda assim, percebe-se certa frieza nas expressões do e da modelo. Outro
destaque é a mulher segurando o vestido na altura do ventre. Qual o significado presente
nessa postura?
Cabe ressaltar que a problematização feita, não contempla uma análise profunda e/ou
detalhada do ponto de vista artístico, pois, o que objetiva-se coma oficina é refletir sobre as
falas das crianças quanto àobra, embora se perceba as muitas formas de olhar e analisar, os
7Conceito central em campos como a Filosofia e a Psicologia Social, nos quais tem conotações bastante
diferentes. Na análise cultural mais recente, refere-se às formas textuais e visuais através das quais se
descrevem os diferentes grupos culturais e suas características. No contexto dos Estatutos Culturais, a análise
da representação concentra-se em sua expressão material como “significante”: um texto, uma pintura, um
filme, uma fotografia. Pesquisam-se aqui, sobre tudo, as conexões no pressuposto de que não existe identidade
fora da representação (SILVA, 2000. p.97).
significados e temáticas envolvidas, bem como o contexto histórico social e cultural de sua
criação, o que resultaria em outro trabalho.
Assim, foi realizada no dia quatro de setembro de 2013, uma oficina intitulada O ficina
de Arte, com dezessete crianças de cinco anos em uma instituição de Educação Infantil no sul
de Minas Gerais. Sentadas em roda com as crianças iniciamos os trabalhos, nós e a professora
regente que foi parceira na realização da oficina. Nos apresentamos às crianças e iniciamos
nossos diálogos.
Na roda de conversa dialogamos sobre arte. Lançamos algumas questões:
Pesquisadora: Quem sabe o que é arte? O que é arte? Quem gosta de arte?
(Diário de campo (transcrição de registro auditivo): 04/09/2013).
As crianças foram se familiarizando com a nossa presença e ficando à vontade para
responderem e debaterem. Assim para aquelas crianças, arte seria:
Crianças:“Pintar”,“Brincar no parque”,“Fazer dever”,“Brincar de
massinha”, “Colorir”, “Escrever”...
Após essas falas, conversamos um pouco com as crianças sobre o que é arte, quem
as produz e indagamos: quem já viu uma obra de arte? As crianças silenciaram e então uma
respondeu, “eu já vi um homem pintando no Art Attack8
”. Em seguida expusemos em
retroprojetor algumas obras de arte: pintura, escultura, música e uma poesia. As crianças
observavam.
Ao terminar a exposição oral, apresentamos às crianças uma reprodução da obra “O
casal Arnolfini” em papel A3 e as convidamos para se aproximarem da reprodução e a
observarem. Observaram por alguns minutos e foram novamente confrontadas com outras
perguntas.
Pesquisadora: O que vocês estão vendo?
8Art Attack é um programa infantil de televisão, originalmente britânico, sendo transmitido pela primeira vez
em junho de 1990 pela Independet Television, por Neil Buchanan. O objetivo do programa é fazer com que os
telespectadores (crianças) façam arte com coisas muito simples. A primeira temporada do programa, em
versão brasileira foi produzida em 2000. Atualmente, a nova temporada é transmitida todos os dias pela manhã
no Disney Channel. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Art_Attack> Consultado em set. 2013.
Crianças:“Uma pintura”, “Uma moça”, “Cama”, “Sapato”, “Um
cachorro”, “Chifre” (se referindo ao penteado da modelo), “Chapéu”,
“Um moço”,“Uma janela”, “Um espelho! E dá pra ver gente no espelho”.
A instituição de Educação Infantil tem como uma de suas finalidades oportunizar o
acesso ao mundo da cultura para que a criança se aproprie dele. Entre esses conhecimentos,
encontra-se a linguagem, e é através dela que “o ser humano se comunica, tem acesso à
informação, expressa e defende seus pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo,
produz conhecimento” (NEDER; POSSARI; SOUZA, 2008, p.15). Desse modo, utilizando
a linguagem e o relato verbal - material empírico constituído pelas falas das crianças, as
quais expressaram e falaram sobre suas concepções e opiniões – nós problematizamos as
referidas falas. É importante destacar que as falas, sentimentos, e formas de perceber e estar
no mundo, é uma construção social, histórica e cultural.
Percebemos na Educação Infantil, através de nossas experiências profissionais e de
nossos estudos, uma práxis educativa na qual muitas vezes as professoras e professores
falam pelas crianças e/ou não oferecem oportunidades e possibilidades para que elas
mesmas falem por si. Numa atividade de releitura antes de apresentar uma obra, suas
características e seu contexto, porque não oportunizar às crianças de expressarem suas
impressões, seus sentimentos e sua imaginação?
Pesquisadora: Onde eles estão?
Crianças: “No quarto”
Pesquisadora: E onde fica esse quarto?
Crianças: “No castelo”
Pesquisadora: Por que no castelo? Crianças:
“Porque tem chão de madeira”
“Chão de madeira... castelo...” Concepções de moradia que as crianças conhecem
advinda da clássica literatura infantil e de desenhos animados embasados nesses clássicos. As
crianças criam novas possibilidades articulando suas realidades e os textos culturais9
.
Pesquisadora: E as roupas?
9Nas análises culturais de inspiração pós-estruturalista, que dão grande importância à linguagem, a expressão
textos culturais é utilizada para se referir a uma variada e ampla gama de artefatos que nos ‘contam’ coisas
sobre si e sobre o contexto em que circulam e em que foram produzidos. Filmes, obras literárias, peças
publicitárias, programas de rádio e TV, músicas, quadros, ilustrações, bem como livros didáticos, leis,
manuais, provas e pareceres descritivos, ou mesmo um museu, um shopping center, um edifício, uma peça de
vestuário ou de mobiliário, etc., são textos culturais (COSTA, 2002, p. 138).
Crianças: “A mulher está de vestido verde e ele está de roupa azul”, “O
homem está de vestido! Eu nunca vi homem de vestido”, “Ele é mulher”,
“Não! Ele não pode ser mulher. Nunca vi mulher casando com mulher!”, “A
mulher está grávida!”
Pesquisadora: Por que você acha que ela está grávida?
Crianças: “Porque eles querem ter filhos”, “Porque eles vão casar”,
“Porque são namorados” “Porque são uma família, igual a mim, minha
mãe e meu pai. Eu adoro minha família”.
Pesquisadora: O que vocês sentem ao observá-la?
Crianças:“Um tanto de coisas boas”, “Felicidade”, “Alegria”.
Nesse diálogo as crianças explicitam sua concepção de feminino, de masculino e de
família; trazem nessas falas a família dita ‘ideal’ e/ou ‘nuclear’, composta por um casal
heterossexual com filhos e/ou filhas.
Após a observação da obra foi proposto às crianças fazerem a sua releitura em papel
A3 com lápis de escrever e de colorir. Durante a releitura as crianças levantavam de seus
lugares iam até a reprodução da obra e observavam. Uma criança perguntou “Posso
desenhar a filhinha deles?” Reafirmamos a importância da criação livre de acordo com a
sua imaginação.
Figura 2
Releitura da obra O casal Arnolfini.
“Ela estava grávida. Agora os filhinhos já nasceram”.
Autora: Raissa, 2013
Figura 3
Releitura da obra O casal Arnolfini
“[...] são uma família, igual a mim, minha mãe e meu pai. Eu adoro minha família”.
Autora: Emily, 2013
Analisando as últimas falas e as produções das crianças (figuras 2 e 3), evidencia-se
a concepção normativa de família. Concepção essa que foi construída ao longo da história,
nos dispositivos10 e discursos produzidos social e culturalmente. Cabe salientar que as
normas contribuem para a produção de hierarquias a partir de determinados valores. Desse
modo, os sujeitos são posicionados de acordo com os padrões de legitimidade: alguns com
mais privilégios e outros com menos.
A ideia de família ideal ou nuclear, composta por pai, mãe e filhos/as, atípica “família
doriana” é uma concepção produzida culturalmente.
Os indicativos dessa idealização são facilmente encontrados em
propagandas e outros artefatos culturais produzidos socialmente [...] É
comum observamos imagens que contemplam casais felizes –em sua
maioria de pele branca– crianças obedientes alegres e bem nutridas. Esta
cena que compõe a “família doriana” destoa da realidade vivida pelas
famílias reais com as quais convivemos e até mesmo com a nossa
(XAVIERFILHA, 2012, p. 314-315).
Desse modo, a norma diz respeito a um padrão pré-estabelecido pela sociedade, uma
norma/regra a seguir e desejada pela cultura dominante. Mas, sabemos que esse modelo de
família tido como ideal é apenas um dentre tantos outros arranjos familiares existentes na
10Um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais
filantrópicas [...] o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer
entre esses elementos (FOUCAULT, 1993 apud LOURO, 2010, p. 12).
sociedade. Podemos citar aqui os arranjos familiares compostos por famílias amplas, na qual
se tem pai, mãe, filhos/as, avó, avô, tios/as, primos/as e agregados/as.
Temos também as famílias de casais que optaram em não ter filhos/as, famílias de
casais separados/as compostas por pai e filhos/as e talvez um/a companheira/o, ou a mãe e
filhos/as e um/a companheiro/a. Famílias sem laços sanguíneos, que adotam uma ou mais
crianças. E as famílias homoafetivas, formadas por dois homens ou duas mulheres. Esta
última concepção de família tem sido a mais criticada, por fugir à regra normativa de família
estabelecida pela sociedade. Assim, os arranjos que fogem a essa norma são ditos anormais,
pois, estão fora do padrão desejável.
A norma, em primeiro lugar, é testemunho de um facto pode ser também
um valor [...]. A norma, enquanto média, provém de uma constatação.
Mas, esta média, na medida que é a expressão estatística daquilo que é
vivido como saúde, exprime um valor: o ponto de equilíbrio pressentido
por um sujeito como seu bem. [...] A norma é, em consequência,
polaridade. [...] Com efeito, como já pudemos observar, o anormal não
encontra fora do normal; a partilha do normal e do anormal é uma espécie
de partilha interna, que procede sem exclusão e por inclusão (EWALD,
2000, p.116).
A escola, através de seus discursos normativos, tem reforçado a representação de
família nuclear. Quando a escola identifica uma dificuldade ou comportamento dito anormal
da criança, geralmente busca conhecer o relacionamento e a vivência familiar, não para
culpabilizar a criança, mas, para encontrar um problema nessa família que justifique seu
comportamento ou atitude fora do desejado pela escola, que pode estar relacionado a
motivos diversos (XAVIERFILHA, 2012). “Assim, cabe pensar que a escola contribui para
a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as
crenças que nos fazem ver os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis” (SILVA,
2011. p. 32).
Segue a história criada pelas crianças, a partir da observação e problematização da
obra:
Era uma vez um casal bem bonito que queria ter muitos filhos. Eles
moravam em um castelo com muitas flores em volta. O casal tinha muito
amor e era muito feliz. A esposa se chamava Tifani Arnolfini e seu marido
se chamava Alenilson Arnolfini. Eles tinham um cachorro que se chamava
Bilu. Eles se casaram na igreja. Alenilson deu uma flor para Tifani e foram
comemorar o amor deles.
As crianças têm um jeito singular de se expressarem. São destemidas e falam a partir
da cultura em que estão inseridas, considerando
[...] os relatos construídos pelas crianças. Parto do princípio que uma
criança, de qualquer grupo social, após breves espaços de tempo, já
construiu algum tipo de identidade, tem uma memória construída (FARIA;
DEMARTINI; PRADO, 2005, p.7).
O texto, as falas e releituras produzidas pelas crianças nos instigam a pensar em
como essas ideais e concepções de família têm sido reproduzidas pela escola e pelos
diversos aparatos culturais presentes no cotidiano. Pensar a ideia de amor, casamento e
felicidade. É preciso casar na igreja para se constituir uma família? Ao problematizar as
falas das crianças, questiona-se: quais outros aspectos da realidade se relacionam?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dessas linhas tentamos chamar a atenção para as relações estabelecidas
entre a arte presente na Educação Infantil e os processos de subjetivação que aos poucos vão
dando forma às várias subjetividades que a criança constrói processualmente ao longo do
tempo, através das diversas interações sociais e da cultura em que está inserida. Vimos que é
possível (des)construir discursos normativos e expandir olhares no sentido de problematizar
normas pré-estabelecidas gerando mais perguntas.
Precisamos revisitar nossas concepções, sensibilizar o nosso olhar, pensar na
complexidade das relações e assumir cotidianamente práticas que possibilitem novas formas
de perceber o mundo, de se relacionar com as pessoas e alargar as fronteiras do
conhecimento. E a arte, enquanto saber e fazer artístico afirma-se como instrumento de
reflexão, questionamentos e novas possibilidades. A arte possibilita a educação do sensível.
Educar para o sensível implica em (des)educar nosso olhar de educadoras e educadores.
Nossa formação deu-se a partir de uma educação tecnicista em que o saber sensível tinha
pouco valor.
Aqui se insistirá, pois, na necessidade atual e algo urgente de se dar maior
atenção a uma educação do sensível, a uma educação do sentimento, que
poder-se-ia muito bem denominar educação estética. Contudo, não nesse
sentido um tanto desvirtuado que a expressão parece ter tomado no âmbito
escolar, onde vem se resumindo ao repasse de informações teóricas acerca
da arte, de artistas consagrados e de objetos estéticos (DUARTE JÚNIOR,
2004. p. 15).
A arte, como componente curricular, é uma ferramenta que possibilita a educação
sensorial e crítica. Ela permite formar cidadãos e cidadãs críticos/as e questionadores/as.
Permite perceber o mundo com uma lente diferenciada daquilo que é produzido pelos
discursos normativos.
(...) professores e professoras ainda têm medo do desafio, ainda deixam que
suas preocupações sobre perda de controle prevaleçam sobre seus desejos de
ensinar. Ao mesmo tempo, aqueles e aquelas de nós que ensinamos os
mesmos velhos assuntos das mesmas velhas maneiras estamos, muitas
vezes, intimamente aborrecidos, incapazes de reacender paixões que um dia
podíamos ter sentido. Se, como sugere Thomas Merton, em seu ensaio sobre
pedagogia Aprendendo a viver, o propósito da educação é demonstrar aos
estudantes como definir a si mesmos "autêntica e espontaneamente em
relação" ao mundo, então professores e professoras podem ensinar melhor se
são auto-realizados (BELL HOOKS apud LOURO, 2010, p. 122-123).
Retomando a obra aqui exposta, salientamos que a mesma foi utilizada para suscitar
as falas das crianças de modo que estas pudessem expressar suas concepções e capacidade
de análise crítica. Aqui a arte foi ferramenta e metodologia para o exercício da livre
expressão e para a educação do sensível.
Alvarenga (2010) e Cruz (1998), reafirmam que a escola pode ser um lugar onde
novas práticas e novas (re)construções sejam possíveis. Mas como intervir? Onde intervir?
Para que intervir? Deve-se intervir? E quanto aos saberes que estão presentes no currículo?
Quem dita esses saberes? Para quem? E para quê? Nesse sentido, Tomaz Tadeu (2011), traz
questões em relação ao currículo e à diversidade existente na sociedade. Por que o currículo
privilegia alguns saberes e exclui outros? Como educar para o sensível? Como promover a
educação dos sentidos? Como sensibilizar profissionais da Educação Infantil para
acessarem obras de arte percebendo a educação sensível como um dos caminhos para a
formação de sujeitos politicamente críticos, pensantes, democráticos e ativos na sociedade?
Há inúmeros desafios a serem problematizados e intermináveis processos de
(des)construções para serem vivenciados. É preciso sensibilizar o olhar para quebrarmos
antigos paradigmas e tecermos novos aprendizados.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Célia M. de Castro. O trabalho do artista plástico na instituição de ensino
superior: razões e paixões do artista-professor. Tese de doutorado. Campinas: Faculdade
de educação, Unicamp,1992.
ALVARENGA, Carolina. Faira. A (re)construção de novos saberes e fazeres sobre as
relações de gênero na educação infantil. Teares, Lavras: v. 1, n. 3, p. 3, ago. 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
BRASIL. Referencial curricular nacional para a educação infantil. 3 v.:Il.
Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BECKETT, Wendy. História da pintura. São Paulo: Ática, 1997.
HOOKS, Beel. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, Guacira Lopes. (Org.)
O corpo Educado: pedagogias da sexualidade. 3ª ed. Belo Horizonte. Autêntica Editora,
2010. p. 113-126.
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência. In: I Seminário Internacional de
Educação de Campinas,Trad. GERALDI, J. W., 2001.
COSTA, Marisa. Vorraber. Poder, discurso e política cultural: Contribuições dos Estudos
Culturais ao Campo do Currículo. In: LOPES, Alice Casimiro.; MACEDO, Elizabeth
(org.). Currículo: debates contemporâneos... Cultura, Memória e Currículo, vol. 2,
Editora Cortez, 2002.
CRUZ, Elizabete. Franco. “Quem leva o nenê e a bolsa?”: o masculino na creche. In:
ATILHA, M. ; RIDENTI, S. G. U.; MEDRADO. B. Homens e Masculinidades: Outras
Palavras. . p. 235-254. São Paulo: Ecos/Ed.34.,1998
CUMMING, Robert. Para entendera arte. São Paulo: Ática, 1998.
DUARTE JÚNIOR. João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. 3ª
ed. São Paulo: Criar Edições, 2004.
EWALD. François. Foucault, a Norma e o Direito. 2.ed. Lisboa: Vega, 2000.
FARIA. Ana L. G. de.; DEMARTINI. Zélia de B. F.; PRADO. Patrícia D. (orgs) Por uma
cultura da Infância: metodologias de pesquisa com crianças. 2ª ed. Campinas, São
Paulo: Autores Associados, 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 11ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
LARROSA, Jorge. O enigma da infância. In: _____. Pedagogia profana: danças piruetas e
mascaradas. Tradução Alfredo Veiga Neto. 5 ed. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2013,
p. 183 – 198.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: _____. (Org.) O corpo Educado:
pedagogias da sexualidade. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p. 8-34.
NEDER, Maria Lúcia C.; POSSARI, Lucia Helena.V.; SOUZA. Regina Aparecida M. de.
Linguagens na Educação Infantil I. Pensamento e Linguagem. Fascículo 1. Cuiabá: Ed.
UFMT, 2008. 92p.
OLIVEIRA, Alessandra S. Mara R. de. Das águas onde nadam um tubarão as
esculturas de gelo feitas por crianças no contexto da educação infantil. In: 32
REUNIÃO ANUAL ANPED. Caxambu, 2009. Anais... Caxambu: 2009. Disponível
em: http://32reuniao.anped.org.br/arquivos/trabalhos/GT24-5419-- Int.pdf Acesso
em 05 set. 2013.
PUPO, Maria Lúcia. Sinais de teatro-escola. In: Humanidades, Edição Especial Teatro Pós-
Dramático. Brasília: UNB, n. 52, Nov. 2006, p. 109-115.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução as teorias do
currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
_________Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. 128p.
VERSON, Luana Gonçalves. O amor entre casais na arte. [Trabalho de Conclusão de
curso] Criciúma: Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2011. Disponível em:
http://repositorio.unesc.net/bitstream/handle/1/402/Luana%20Gon%C3%A7alves%20Venso
n.pdf?sequence=1 Acesso em: 09. Abr. 2015.
XAVIER FILHA, Constantina. Sexualidades, gênero e diferenças na educação das
infâncias. Campo Grande: UFFMS, 2012. 375p.