a importÂncia da disciplina no educar … a importÂncia da disciplina no educar medievo: um estudo...
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A IMPORTÂNCIA DA DISCIPLINA NO EDUCAR MEDIEVO: UM
ESTUDO DA REGRA DE SÃO BENTO.
MARQUIOTO, Juliana Dias – UEM
OLIVEIRA, Terezinha – UEM
Introdução
Realizamos este estudo no campo da história da educação, entendendo a educação
não no sentido restrito a escola, mas a educação enquanto formação humana, de criação de
bons hábitos, costumes, valores, de relacionamento entre as pessoas e das pessoas consigo
mesmas. Resgatamos para tal o que expõe Aristóteles a respeito da formação dos homens.
De acordo com Aristóteles (384 - 322 a.C.) todas as coisas que os homens fazem
têm um objetivo diretamente, mas em uma visão mais ampla de todos os atos existe um
objetivo superior, para o qual todas as ações se voltam, que não é desejado em função de outra
coisa, mas em si mesmo, esse seria o bem maior. Diz ainda que esse sumo bem deve ser
objeto de estudo da mais prestigiosa ciência, a política. Vemos que o autor além de mencionar
que a ciência política se destina aos homens mais maduros em espírito, ainda evidencia a
importância de se conter as paixões para o bom uso da racionalidade.
Aristóteles considera o bem supremo como a felicidade, porém afirma que as
pessoas divergem sobre o que esta seja. Para o autor definir o que é felicidade para o homem
seria mais fácil se soubéssemos sua função, pois para tudo temos como o bem e a perfeição o
cumprimento de sua função. Investigando sobre essa função do homem Aristóteles seleciona
aquilo que é próprio apenas dele, seria este a atividade do elemento racional, "o bem do
homem vem a ser a atividade da alma em consonância com a virtude" (Aristóteles, 2001, p.
27), e para ele esta deveria ser a condição de um homem a vida toda para que o consideremos
venturoso. Sendo então a felicidade essa atividade da alma conforme a virtude cabe-nos
perguntar como esta é conquistada, ao que o autor responde:
É por esse motivo que se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma outra espécie de exercício, ou se ela nos é dada por alguma providência divina, ou ainda pelo acaso. (...)
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Desse ponto de vista, a felicidade também deve ser partilhada por grande número de pessoas, pois quem quer que não esteja mutilado em sua capacidade para a virtude pode conquistá-la por meio de um certo tipo de estudo e esforço. Mas se é preferível ser feliz dessa forma a sê-lo por acaso, é razoável que seja assim que se atinge a felicidade, já que tudo aquilo que ocorre por natureza é tão bem quanto poderia ser, e do mesmo modo acontece com o que depende da arte ou de qualquer causa racional, sobretudo se depende da melhor de todas as causas. Confiar ao acaso o que há de melhor e mais nobre seria um completo contra-senso. (ARISTÓTELES, 2001, p. 31).
Temos então maior clareza sobre a educação em Aristóteles, pois nesta citação fica-
nos claro os seguintes aspectos: o objetivo do homem é uma vida feliz, esta vida feliz depende
da atividade da alma conforme a virtude, esta por sua vez - é de se acreditar – é alcançada por
meio de estudo e esforço.
Segundo Aristóteles, então, os homens deveriam ser formados para agir conforme a
virtude, encontramos correspondência naquela educação recebida pelos monges, que de
acordo com os princípios cristãos desenvolvia a ação virtuosa por meio de muito esforço e
disciplina.
Referencial teórico
Pare realização do presente trabalho utilizamos fontes diversas, que possibilitaram a
compreensão da unidade do nosso tema.
O conceito de educação do qual partiu a análise foi tirado de Aristóteles, que nos
propõe uma educação enquanto formação do ser humano para que possa agir conforme a
virtude e conquistar a felicidade.
A Regra de São Bento é a obra em torno da qual realizamos este trabalho, escrita por
Bento de Núrsia, tornou-se grande exemplo de ordenação para uma vida virtuosa conforme os
preceitos cristãos.
Para compreensão do período em que é criada A Regra de São Bento utilizamos o
livro História da Pedagogia de Franco Cambi. Porém, a compreensão deste período é
auxiliada pelo conhecimento de aspectos importante do fim da antiguidade que encontramos
em A Civilização do Ocidente Medieval de Jacques Lê Goff.
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Objetivos
Compreender da formação dos homens no interior dos mosteiros fundados por Bento
de Núrsia;
Ampliar os conhecimentos sobre a Idade Média e consequentemente sobre a História
da Educação;
Apreender de aspectos relativos à disciplina na A Regra de São Bento, com vistas a
realizar uma reflexão sobre este tema nos dias atuais.
Metodologia
Cabe-nos ainda esclarecer que utilizamos o método regressivo utilizado. A disciplina é
aqui tomada como problema histórico por ser sensível atualmente problemas com esta ou com
sua falta.
Baseamos nossa pesquisa no que expõe Marc Bloch sobre a pesquisa em história,
desta forma o que se encontra em questão aqui não é como algo aconteceu no passado, mas
utilizar os conhecimentos do passado com vistas a compreender o uso presente. Tratamos da
disciplina com vistas a proporcionar uma maior reflexão sobre seus aspectos hoje.
Segundo o autor com o conhecimento das coisas do passado podemos orientar
melhor nossas ações do presente, "a ignorância do passado não se limita a prejudicar a
compreensão do presente; compromete, no presente, a própria ação" (Bloch, 2001, p. 63).
Um outro aspecto de grande importância nos levanta o autor sobre o estudo
histórico, a questão é se o historiador deve julgar a realidade que estuda ou apenas
compreendê-la. "Por muito tempo o historiador passou por uma espécie de juiz dos infernos,
encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos" (BLOCH, 2001, p. 125),
mas o autor condena esta postura.
Segundo Bloch julgar uma realidade na qual não vamos agir e que possui valores
diferentes dos nossos é um empecilho ao nosso conhecimento, não podemos compreender o
outro se julgarmos seu viver de acordo com nossos valores. Cabe a nós o contrário, buscar
compreender a constituição de sua mentalidade de acordo com o meio em que viveram.
Entender e explicar devem ser as metas, não atribuir valor. A compreensão dos aspectos
educativos na obra que nos propomos a estudar não é possível se não aplicarmos este
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principio. Trata-se da organização da vida de homens muito distantes de nós no tempo e até
mesmo no espaço, de valores muito distintos daqueles encontrados em nossa sociedade.
Julgar torna impossível a profunda compreensão.
A Análise tem como objetivo a orientação e tomada de decisões sobre o presente e
não sobre o passado que se toma como base para compreendê-lo.
Vemos ainda de acordo com Bloch que pode-se identificar entre os fenômenos
humanos certo parentesco, ou seja, uma tendência estável para cada tipo de instituição,
crença, prática, acontecimento. Desta forma "compreendemos sempre melhor um fato
humano, qualquer que seja, se já possuímos a compreensão de outros fatos do mesmo
gênero." (p. 129).
O próprio homem que em seus atos parece exprimir personalidades diferentes, não
deixa de ser único, no qual estas aparentemente distintas se completam. Da mesma forma a
sociedade, como produto das consciências dos homens que a compõe, apresenta diferentes
interações, traços diversos entrelaçados, ao que Bloch acrescenta que “não mais que no seio
de qualquer consciência pessoal, essas relações em escala coletiva não são simples.”
(BLOCH, 2001, p. 133) e ainda que “o conhecimento dos fragmentos, sucessivamente
estudados, cada um por si, jamais propiciará o do todo; não propiciará sequer o dos próprios
fragmentos” (BLOCH, p. 134), é preciso conhecer o movimento histórico em que tais
fragmentos se encontram, a dinâmica em que estão inseridos.
Nada mais legítimo, nada mais saudável do que centrar o estudo de uma sociedade em um desses aspectos particulares, ou, melhor ainda, em um dos problemas precisos que levanta este ou aquele desses aspectos, (...). A fim de compreenderem a atitude do vassalo para com o seu senhor, será preciso também informarem-se sobre qual era sua atitude para com Deus. O historiador nunca sai do tempo. Mas, por uma oscilação necessária, que o debate sobre as origens já nos deu à vista, ele considera ora as grandes ondas de fenômenos aparentados que atravessam, longitudinalmente, a duração, ora o momento humano em que essas correntes se apertam no nó poderoso das consciências. (BLOCH, 2001, p. 134 e 135).
Por acreditar nessa utilidade do estudo de fenômenos relacionados ao foco da
pesquisa que não nos dedicamos apenas ao estudo das questões referentes à disciplina na
Regra e muito menos nos utilizamos apenas desta obra para compreensão das mentalidades do
período.
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Desenvolvimento
A Alta Idade Média constitui na história dos homens um período de características
muito marcantes. Uma sociedade em desordem na qual principia o surgimento de novas e
sólidas instituições.
Para melhor entendimento das características do período iniciamos com o estudo de
suas origens. De acordo com Le Goff o povo romano foi conservador e utilizava seu Estado
para assegurar a estabilidade de suas instituições, porém no século II surgem em seu interior
forças de destruição e renovação.
As invasões germânicas não eram novidades, mas se intensificaram no século V.
Causou neste momento grande destruição nos campos, nas cidades, na economia, além de
diminuição demográfica e da urbanização. “Os camponeses viram-se obrigados a se colocar
sob dependência cada vez maior dos grandes proprietários, estes passaram também a ser
chefes de grupos armados, e a situação do colono tornava-se cada vez mais próxima da do
escravo” (LE GOFF, 2005, p. 21 e 22) desta forma vemos surgir as características da
sociedade feudal.
Os Godos iniciaram a incursão pelo oriente e foram seguidos por outros povos
nômades. Le Goff ressalta que os invasores estavam geralmente fugindo de outras mais fortes
e cruéis, apresentando crueldade em função do desespero, como “quando os romanos lhes
recusavam o asilo que pediam em geral pacificamente” (LE GOFF, 2005, p. 22).
Salviano, por volta do ano 440 aponta como causa da ruína romana seus próprios
fatores internos e Le Goff nos confirma que:
A verdade é que os Bárbaros foram beneficiados com a cumplicidade ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do império, em que as camadas populares eram progressivamente esmagadas por uma minoria rica e poderosa, explica o sucesso das invasões. (LE GOFF, 2005, p. 24).
Vemos ainda que muitos cidadãos romanos “para não perecer sob a opressão pública,
procuram entre os Bárbaros a humanidade dos Romanos porque não podem mais suportar
entre os Romanos a desumanidade dos Bárbaros” (LE GOFF, 2005, p. 24). Desta forma
vemos que a falta de humanidade das instituições romanas deram força a seus opositores. O
nome de cidadão romano, outrora tão valioso, passa a ser motivo de vergonha. Como nos
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afirma Le Goff, podemos notar no interior desta relação uma fusão entre Bárbaros e
Romanos.
Os tempos das incursões nômades foram, segundo Le Goff, de confusão acrescida de
terror. Confusão gerada pela mistura entre os povos nômades e destes com os romanos. Terror
gerado por massacres e devastações. E estas características não serão abandonadas no início
da Idade Média, perdurarão por pelo menos dez séculos. Os homens da Idade Média eram
filhos de Bárbaros como os Alanos descritos por Amiano Marcelino: “o prazer que os
espíritos amáveis e pacíficos encontram num passatempo instrutivo eles encontram nos
perigos e na guerra.” (LE GOFF, 2005, p. 27).
Com as diversas conquistas e enfrentamentos o mundo modifica-se politicamente com
a lenta fusão entre nômades e romanos, dando configuração ao cenário da Idade Média.
As características do mundo medieval são marcadamente resultado de uma fusão da
interpenetração do mundo nômade e do mundo romano. Já no século III o mundo romano
abandonava suas características e sua unidade dava espaço à fragmentação. Havia a separação
entre o Oriente e o Ocidente, além do próprio isolamento das partes do Ocidente. O comércio
declinava, a agricultura e o artesanato restringiam sua área de circulação, o numerário se
atrofiava e os campos vazios multiplicavam-se. As populações se agrupavam em células
voltadas para dentro, entre territórios desertos. As invasões faziam com que as áreas urbanas
fossem se extinguindo, pois as cidades eram principal alvo dos nômades, local de acúmulo de
riquezas, e não se mantiveram porque suas populações às abandonavam e migravam para os
campos. Na área urbana principia a faltar mercadorias e os citadinos refugiam-se perto dos
locais de produção, no campo. Por este motivo de acordo com o autor a ruralização é
beneficiada pela ação dos nômades, embora não seja por eles criada. Também vemos que a
ruralização, além de ser um fato econômico e demográfico, é um fato social que marca a
imagem da sociedade medieval e que influi sobre a mentalidade desta era, com as condições
materiais de vida e sua compartimentação profissional e social.
A legislação na Alta Idade Média tendia a compartimentação, que se manteve ao longo
do período medieval, reclamava-se o particularismo jurídico e reforçava-se a mentalidade de
capela e de campanário.
Os homens da Igreja passam a ter papel de destaque.
Na desordem das invasões, bispos e monges – tais quais São Severino – tornaram-se chefes polivalentes de um mundo desorganizado: ao seu papel
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religioso agregaram um papel político ao negociar com os Bárbaros; econômico, ao distribuir víveres e esmolas; social, ao proteger os pobres contra os poderosos; até mesmo militar, ao organizar a resistência ou lutar “com armas espirituais” quando as armas materiais não existiam (...) tentavam lutar contra a violência e moderar os costumes. (LE GOFF, 2005, p. 40).
Vemos então o forte papel desempenhado por bispos e monges, que ultrapassam o
âmbito do puramente religioso e se colocam na defesa de seus fiéis.
Utilizamos o texto de Cambi para nos auxiliar no conhecimento de aspectos
históricos do período que estudamos, da cultura, do modo de produção, da influência que as
incursões nômades tiveram no surgimento das características deste período – a Idade Média –,
da influência da Igreja sobre os homens, e principalmente da educação e das instituições a que
esta era confiada.
Cambi situa a Idade Média entre os anos 476, queda do Império Romano, e 1492,
descoberta da América. Período em que a organização da sociedade se estrutura
predominantemente em torno do feudo, que tem um senhor ao qual os demais habitantes são
submissos em troca de proteção.
No feudo a economia era de subsistência e a produção predominantemente agrícola.
Quanto à cultura vemos que, desenvolve-se somente no castelo do feudatário ou nas igrejas e,
sobretudo, nos mosteiros; ela também se caracteriza por poucos intercâmbios e é toda
devotada à fé cristã, aos seus dogmas, aos seus mitos. (CAMBI, 1999, p. 155). Logo, a
própria estrutura social do feudo dá forma a sua cultura. A mobilidade social na sociedade
feudal era escassa, os estamentos possuíam um papel social fixo de acordo com um modelo
piramidal.
Esse quadro feudal foi determinado, segundo o autor, pelas invasões que tornavam a
rota do mediterrâneo e as rotas terrestres muito perigosas, o que fazia os grupos sociais se
fecharem em si por motivo de segurança.
A queda do Império e a dissolução das instituições romanas também foi fator que
apoiou os reinos bárbaros.
A sociedade e o homem medieval são, também, o produto da mentalidade cristã, que concentra toda a vida do além-túmulo, que torna a vida mundana trabalhada pela consciência do pecado, que vê “o mundo sensível como uma espécie de máscara” que alude a “uma realidade mais profunda”. (CAMBI, 1999, p. 156).
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Assim vemos a disposição de suportar as dores da vida terrestre com a garantia de
uma felicidade futura, após a morte.
No que se refere à educação Cambi explicita que:
Neste tipo de sociedade – hierárquica e estática –, o problema educativo coloca-se de forma radicalmente dualista, com uma nítida distinção de modelos, de processos de formação, de locais e de práticas de formação, entre as classes inferiores e a nobreza, delineando formas e percursos radicalmente separados; do mesmo modo a educação se organiza em instituições – como a família e a Igreja – que têm uma identidade suposta permanente (pelo menos em teoria) e que manifestam uma forte impermeabilidade à mudança, determinando um tipo de educação tradicional, embebida de valores uniformes e invariáveis, ligados à visão cristã do mundo. (CAMBI, 1999, p. 157).
Desta forma a educação se diferencia entre os nobres e o povo. Mantém-se também
valores invariáveis e uniformes.
(...) embora fechado em si mesmo, o Ocidente feudal não é absolutamente impermeável: há todo um pulular de deslocamentos (peregrinações, feiras) e alguns intercâmbios com outras áreas culturais (através de Veneza com Constantinopla; através da Espanha com o Islã), cria fantasias sobre o exótico e o distante etc. (CAMBI, 1999, p. 157).
E esta mesma ambigüidade estará presente nas práticas educativas.
Há também, segundo Cambi, um “monopólio eclesiástico da educação” e “difusão
do modelo cristão, como ideal e como retículo de instituições educativas” (CAMBI, 1999, p.
158).
A formação das elites centrava-se na transmissão de um saber diferente em muitos
aspectos do saber antigo. Vemos o surgimento de
(...) um novo modelo de escola, ligado à vida monástica, que organiza ensinos de alcance sobretudo religioso, segundo regras e procedimentos rigorosamente fixados, dando vida a um tipo de saber bem diferente do antigo, feito de comentários e de interpretações, ligado a textos canônicos, que não “descobre” a verdade, mas a “mostra”: um saber dogmaticamente fixado e que se trata apenas de esclarecer e de glosar. (CAMBI, 1999, p. 158).
O ensino se modifica e, segundo Cambi, torna-se transmissão de um saber fixo,
dogmático.
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Estas escolas eram organizadas pela Igreja e ganham espaço gradativamente. De
acordo com Cambi “já no século V, as escolas monásticas (ou abaciais) vinham
acompanhando as escolas estatais romanas de gramática e de retórica, substituindo-as depois
gradativamente e propondo uma formação não literária, mas religiosa” (CAMBI, 1999, p.
158). Vemos então que a educação medieval a partir do século VII é marcada pelo
monasticismo e cristianização dos nômades, e nos mosteiros a Regra de São Bento torna-se
modelo de comportamentos e organização diária.
Vemos ainda que a paidéia cristã é defendida por vários teóricos do período, cada
qual ressaltando maior inclinação para o lado místico ou para o racional, e segundo Cambi
essa paidéia é o objetivo mais específico e máximo da educação. Então podemos
compreender que apesar da diferente valoração da razão e da fé, sempre se buscará uma
formação religiosa, espiritual e mística como finalidade da educação.
No caso da educação do povo Cambi expõe que dava-se de forma muito diferente,
pois esta se cumpria essencialmente por meio do trabalho, “era o aprendizado, na oficina ou
nos campos, que, desde a idade infantil, dava uma formação técnico-profissional e ético-civil
ao filho do povo” (CAMBI, 1999, p. 166), assim aprendiam não somente a realizar o trabalho,
mas a própria forma de se relacionar socialmente de seu mestre.
O povo também se educava por meio de ritos e festas das Igrejas aos domingos e
dias comemorativos. As imagens nas Igrejas geram sentimentos e comportamentos, agem no
imaginário dos fiéis e nele cria a necessidade de identificação com aquele modelo de vida.
Eram também formadas, as consciências, nestes ideais por meio das orações que se
realizavam em diversas horas do dia e em eventos diversos e ainda por meio dos cânticos. O
cântico se constitui também em outra forma de influir na formação da mentalidade do homem
neste período.
Os esclarecimentos feitos até agora dão base para podermos nos aprofundar no
estudo próprio d' A Regra de São Bento, na qual podemos notar grande clareza e descrição
cuidadosa das tarefas e comportamento adequados, auxiliando o seu devido cumprimento.
A obra se inicia com um convite ao desprezo das próprias vontades e ao combate ao
lado de Cristo, em nome de uma vida após a morte. Diz também que “devemos preparar
nossos corações e nossos corpos para combater dentro da santa obediência aos preceitos” (A
Regra de São Bento, 1993, p. 14). Isso nos evidencia o conteúdo da presente obra, a
ordenação que possibilite ao corpo e a alma uma preparação para uma vida reta.
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Devemos, pois, constituir uma escola do serviço do senhor. Nela nada vamos estabelecer que seja duro ou pesado. Entretanto, se aparecer alguma coisa um pouco mais apertada por questão de conveniência, para emenda dos vícios ou conservação da caridade, não fuja logo, cheio de pavor, do caminho da salvação que não se começa sem passar por certo aperto inicial. (A Regra de São Bento, 1993, p. 14).
Alertando para a dificuldade de adaptação com a vida monástica São Bento aponta que
esta é por vezes necessária.
A Regra distingue entre os monges quatro espécies. Os que vivem sob a Regra e um
Abade são os cenobitas, que por serem uma espécie valiosíssima serão dos que tratará a obra.
Explicita as atribuições do Abade, que deve ter os demais como filhos adotivos e por
eles prestar contas, deve prezar para “que suas ordens e sua doutrina derramem o fermento da
justiça divina na mente dos discípulos” (A Regra de São Bento, 1993, p. 17). Que dê bons
exemplos, ensinando “mais por ações do que por palavras, de tal maneira que, aos discípulos
capazes de compreender, proponha por meio de palavras os mandamentos do Senhor, mas aos
duros de coração e aos simples mostre os preceitos divinos por suas ações” (A Regra de São
Bento, 1993, p. 18), para que Deus não lhe diga que mesmo narrando sua justiça este adiou
sua disciplina e menosprezou as palavras.
O Abade também não deve fazer distinção entre as pessoas como havia na sociedade,
mas se necessário distinguir que não se faça pelas origens dos monges, mas por suas boas
ações. Vemos assim que as questões relativas ao nascimento dos monges, se livres ou
escravos, são de menor (ou nenhuma) importância, mas o que importa mesmo é a disciplina
que este apresenta vivendo sobre a Regra. “Seja, pois, igual a caridade da parte dele para com
todos e uma só disciplina em todas as coisas, segundo o merecimento de cada um” (A Regra
de São Bento, 1993, p. 18).
Ainda orienta o Abade para ser severo como um mestre e afetuoso como um pai
amoroso. “Aos indisciplinados e irrequietos deve questionar duramente; aos obedientes,
mansos e pacientes, deve pedir insistentemente que façam progressos para melhor. Aos
negligentes, porém, e aos que não fazem caso, insistimos em que repreenda e castigue” (A
Regra de São Bento, 1993, p.19). Deve cortar o pecado pela raiz, corrigindo com advertência
uma ou duas vezes os de mais entendimento, reprimindo com varas e castigos corporais os de
má índole logo de início. Ninguém deve seguir no mosteiro o seu próprio coração, nem
discutir com seu Abade.
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Tratando da obediência, a regra explicita que esta é o primeiro degrau para a
humildade, vemos que em São Bento todo relacionamento entre os homens tem bases na
relação entre o homem e Deus, a obediência devida ao superior é em nome daquela que se
presta a Deus. Ao discípulo cabe em tudo obedecer com humildade, submissão e reverência.
São Bento explicita sobre os Ofícios Divinos da noite a sua forma correta de
realização nas diferentes épocas do ano. Faz o mesmo com as Vigílias. Durante o dia serão
prestados louvores em sete Ofícios, são eles: Matinas, Prima, Terça, Sexta, Noa, Vésperas e
Completas. Da mesma forma a Regra também identifica quantos salmos devem ser ditos
nessas mesmas horas e em que ordem devem ser ditos, e ainda sobre o Aleluia e as Orações.
Devem ser escolhidos irmãos de boa reputação, que tenham santa vivência monástica
e saibam dar bons conselhos, para ocupar o lugar de decanos, com os quais, em decanias, o
Abade possa repartir suas tarefas.
Também vemos na Regra especificações quanto ao modo de dormir dos monges. Para
que pecados sejam evitados devem dormir cada um em uma cama, todos no mesmo lugar, ou,
caso não seja possível, em grupos de dez ou vinte, sob os cuidados dos mais velhos, com um
candeeiro sempre aceso. Devem dormir vestidos, com as vestes presas por cintos ou cordões,
sem os facões para que não venham a se cortar. Preparados para que ao sinal não demorem a
se levantar e chegar ao Ofício Divino. Os mais jovens não devem dormir ao lado um do outro,
mas sempre intercalados com os mais velhos.
Quanto aos comportamentos inadequados a Regra esclarece que:
Se houver um irmão teimoso ou desobediente, orgulhoso ou murmurador, ou que contraria em qualquer coisa a Santa Regra e despreza as ordens dos seus superiores, seja advertido pela primeira vez em particular pelos seus superiores, conforme o preceito de Nosso Senhor. (A Regra de São Bento, 1993, p. 53).
Mas esta advertência é vista como oportunidade para que o irmão se emende. Caso
não se corrija e entenda o sentido das penalidades ele deve ser submetido à excomunhão,
porém se for de má índole o castigo deve ser corporal.
Caso um irmão não se corrija com advertências e nem com a excomunhão, deve ser
aplicado a ele castigo mais severo, ou seja, com varas. Mas se mesmo assim o irmão não se
corrigir e insistir em defender seu modo de agir, que o Abade e todos os irmãos orem pode
ele. Se nem assim se corrigir, para que não contamine os demais monges, deverá ser expulso.
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O irmão expulso só poderá voltar ao mosteiro se prometer corrigir-se completamente do erro
que o fez ser expulso, e deverá ser posto em último lugar para mostrar-se humilde. Se
novamente sair só poderá ser recebido pela terceira vez, após isso não será permitido regresso.
Os castigos devem variar de acordo com a idade e a inteligência. Então, as crianças,
adolescentes e aqueles incapazes de compreender o sentido da excomunhão, devem ser
punidos, quando necessários, por jejuns ou varas.
São Bento expõe ainda sobre as atribuições do celeireiro, para esta função deve ser
escolhido um homem sábio, sóbrio, maduro, temente a Deus, que não coma muito, ou seja
orgulhoso, agitado, injusto, lento ou pródigo.
A Regra ainda expõe que as ferramentas e objetos dos mosteiros devem ser confiados
pelo Abade para aqueles que esteja seguro dos bons costumes, para que tomem conta e
recolham. Tenha o Abade um cadastro de controle dos objetos. Que os irmãos que não
tiverem cuidado pelas coisas do mosteiro sejam repreendidos, se não se corrigir seja
submetido a disciplina regular.
Os irmãos devem se servir uns aos outros, todos devem ajudar na cozinha, a menos
que afastado por motivo de doença, não apenas preparando os alimentos e servindo, mas
também limpando a cozinha e os pés dos irmãos. Devem comer pão e beber vinho antes de
servir aos demais irmãos a comida, para que não murmurem.
A Regra especifica sobre a leitura à mesa e na capela.
Quando ouvir o sinal de que é hora do Ofício Divino o irmão deve largar o que está
fazendo e para lá se dirigir, aquele que chegar com atraso não ocupará seu lugar no coro, mas
o último, e deverá no final prestar satisfação. Também devem ser punidos os que se atrasarem
à mesa.
Aquele que errar em leitura na capela deve se humilhar ali mesmo, para não receber
castigo severo. No caso das crianças o castigo deve ser corporal. Deve também sofrer severo
castigo aquele que fizer alguma falta e não buscar o Abade e a comunidade para prestar
satisfação, escondendo o erro. Mas se o pecado for algo na sua alma procure o Abade e seus
diretores espirituais para que peça perdão e auxilio, sem que os demais irmãos precisem ficar
sabendo.
O oratório (capela) do mosteiro não seja destinado a outros fins, que os que ali
permanecerem após os Ofícios Divinos orem em silêncio e não atrapalhem os demais.
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Os monges, segundo a Regra, não devem receber de qualquer pessoa cartas ou outros
objetos, nem enviá-los, sem a permissão do Abade.
As roupas e calçados devem ser distribuídos de acordo com o que o Abade julgar
necessário às condições de temperatura do local em que vivem.
Quando alguém se candidatar a entrar para o mosteiro deve ser provado primeiramente
antes de lhe ser concedido tal coisa, se for persistente poderá inicialmente ocupar a cela de
hóspedes e após isso a cela onde os noviços comem, estudam e dormem, sob os cuidados dos
mais velhos. O candidato deve mostrar seriedade nos Ofícios Divinos, obediência e
perseverança nas provações. A ele deve ser exposto tudo de duro que se deve passar para
chegar a Deus. Se permanecer firme após dois meses será lida para ele a Regra e será
questionado se aceita viver sob esta ou se prefere partir. Se não voltar atrás que seja mantido
na cela dos noviços e novamente provado. Após mais seis meses leia-se novamente a Regra e
se permanecer após mais quatro meses a leiam novamente, e se persistir firme que seja aceito
como membro da comunidade.
Haverá na capela por parte do candidato a promessa de estabilidade e a redação de
documento. E após prostrar-se aos pés de todos da comunidade será tido como membro desta.
Os monges de outros lugares devem ser recebidos por quanto tempo quiserem, porém
que se conforme com as condições do lugar em que é recebido.
A Regra trata ainda da forma de nomeação de um Abade, que seja escolhido pela
comunidade ou por seus representantes mais sensatos. Podendo no caso de escolha
inadequada sofrer intervenção do bispo. O escolhido deve ter boa formação nas Sagradas
Escrituras, ter virtudes admiráveis e amor aos irmãos.
Para porteiro do mosteiro a Regra determina que seja escolhido um monge mais velho
e sábio, que tenha maturidade para não sair frequentemente do seu posto. E tenha cela perto
da portaria, que receba e transmita os recados, se necessário tenha um assistente jovem.
O mosteiro deve ter no seu interior água, moinho, horta e o que mais for necessário
para que os monges não necessitem sair. Os irmãos que saírem de viajem ao regressar não
contem aos demais o que viu ou ouviu fora do mosteiro, para que não contaminem os demais
com as coisas de fora.
Os irmãos devem obedecer ao superior em todas as coisas, mesmo as que parecerem
mais duras. Se lhe parecer impossível comunique ao superior, mas se este não recuar na
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ordem, se esforce em obedecer. A obediência não deve ser prestada somente a Abade, embora
seja superior, mas que os monges se obedeçam uns aos outros.
Por fim a Regra afirma que nem toda observância da vida espiritual está exposta na
Regra.
Conclusões
Se primeiramente temos Aristóteles nos afirmando que o homem deve ser educado
para que viva de acordo com a virtude, sendo desta forma bom e tendo suas ações orientadas
para o bem supremo, a felicidade, temos em São Bento, já cristão, determinações de uma
organização ideal da vida dos monges para que estes atinjam a virtude e sejam formados bons,
de acordo com a comunidade monacal na qual estão inseridos e na intenção de atingir o amor
de Deus.
Notamos então que o estudo de A Regra de São Bento é de grande auxilio para
pensarmos hoje a questão da disciplina. A observância constante de disciplina em
comportamentos e tarefas é comum na nossa sociedade? Vemos a disciplina como elemento
formador do caráter dos homens ou como simples auxílio na organização da vida diária,
podendo inclusive ser dispensável? E ainda: estamos realmente preocupados com a questão da
disciplina para a formação dos homens ou estamos apenas nos aproximando, sem se
aprofundar nem encará-lo de frente, deste assunto quando sentimos a necessidade de tratar da
indisciplina e corrigir os males que esta trás?
O presente trabalho não tem como objetivo dar respostas para a questão da disciplina,
mas abrir caminhos para sua reflexão, por esse motivo as conclusões se apresentam menos em
afirmações e mais em perguntas.
Referências
A REGRA DE SÃO BENTO. Petrópolis: Vozes, 1993. 119 p.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. São Paulo: Martin Claret, 2001. 241 p.
BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001. 159 p.
15
CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp,1999. p.154 – 192.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Bauru: Edusc, 2005. 400 p.