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A imagem-testemunho: práticas de documentação, memória e processos criativos na produção em super-8 de Euvaldo Macedo Filho
Elson de Assis Rabelo* [email protected]
Uma empregada doméstica negra e idosa limpa o terraço de uma casa, num
povoado distante, na Bahia. Amigos conversam, comem e bebem num bar, em
ambiente festivo. Um homem passeia pelas ruas, beija pessoas, inventa trejeitos,
chama a atenção. Essas cenas aparentemente corriqueiras de cidades do interior do
Brasil podem tomar significados distintos, a partir de quando elas se tornaram
imagens em movimento, captadas pelo artista Euvaldo Macedo Filho.
Nascido na cidade baiana de Juazeiro, em 1952, Euvaldo aí passou grande
parte de sua vida, morrendo ainda jovem, aos 30 anos, no auge de uma carreira
artística inquieta. Desta, resultou um diversificado acervo particular de imagens
(fotografias, contatos, rolos de super-8) e textos (cadernos de poesias, projetos e
notas de trabalho, citações e reflexões sobre a arte), cuja datação mínima indica
que, nos últimos anos de vida, sua produção fora mais intensa.
O presente texto tem como objetivo analisar um parte do processo criativo da
captação de imagens em movimento pelo artista baiano, no final dos anos 1970, a
partir de um dos artefatos produzidos. Trata-se especificamente de um conjunto de
cenas filmadas em bitola super-8 e, posteriormente, recuperadas e reunidas sob o
título Pessoas. Para nossa análise, o recurso à metodologia da história oral foi
pensado não exatamente para completar uma interpretação que faltaria à imagem,
mas para indagar, em especial, sobre a margem de usos do super-8 como
ferramenta expressiva de acordo com as concepções sobre a imagem por parte do
artista, seja dentro de um projeto artístico com elementos performáticos, seja na
linha do documentário com traços antropológicos (SANTHIAGO, 2013). Para situar
tal uso, narraremos brevemente a trajetória do realizador e de sua obra, para, em
seguida, debruçarmo-nos sobre o artefato fílmico.
* Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
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A poesia da luz
No começo da década de 1970, o então jovem estudante do interior Euvaldo
Macedo Filho abandonou o Curso Superior em Economia, na capital baiana, para se
dedicar à produção artística, inicialmente na poesia, e, depois, predominantemente,
na fotografia. Ao retornar a sua cidade natal, integrou dois coletivos de artes, o
Círculo de Convivência Cultural, dedicado à poesia, e o Grupo Êxodus, que tinha
como característica o trânsito entre linguagens, como a música, as artes visuais e o
teatro. Essa geração de jovens artistas vinha se inteirando da recente produção
cultural brasileira, em particular do tropicalismo e da bossa nova, com base numa
admiração comum pela música de seu conterrâneo João Gilberto, que, àquela
altura, gozava de projeção internacional (ASSIS, 2014).
Euvaldo, inicialmente poeta, era leitor assíduo de poesia modernista e
regionalista, e tanto recebia sugestões desses grupos quanto interferia nas suas
atividades, compondo canções, tomando parte em publicações e promovendo
eventos, como os festivais de música de Juazeiro. A proposta de vários desses
artistas era entrecruzar suas referências nacionais e internacionais com a releitura
das culturas locais, motivo pelo qual alguns vieram a privilegiar, como tema de suas
obras, o rio São Francisco – espaço que, naquele período da ditadura militar
brasileira, passava por um ciclo agitado de transformações, com o avanço da
eletrificação via construção de barragens e a consequente transformação das
práticas econômicas e dos modos de sociabilidade dos agentes sociais que
habitavam suas margens (CUNHA, 1978; RABELO, 2014).
Conhecedor das histórias que cercavam o rio e observador dos seus fluxos e
práticas sociais, Euvaldo igualmente buscou matéria para sua criação nessa
configuração social, dando ênfase a temáticas como a infância, a velhice, a
navegação em decadência e circunstâncias como as feiras, festas e religiosidades
populares. E da mesma forma como os artistas daqueles grupos, o jovem poeta era
aberto a várias referências artísticas, para afirmar que procurava ver a sociedade
juazeirense de uma forma singular, através da composição de sua “poesia com a
luz”, que fosse sofisticada como a música de João Gilberto, complexa como a prosa
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de Guimarães Rosa, certeira e espontânea como a fotografia de Henri Cartier-
Bresson.
A fotografia tomou quase todo o tempo criativo de Euvaldo, a partir de meados
daquela década até a sua morte. De uma descoberta praticamente espontânea, no
manejo da câmera do pai, aprendido com o irmão, o artista levaria o fabrico de
imagens a ambiciosos projetos que propunham lhes dar um lugar de crítica e de
observação da sociedade, em projetos que foram por ele chamados genericamente
de “documentação” ou de elaboração de uma “memória visual” das culturas locais.
Para tanto, em sua trajetória, estão intercalados: exposições em Juazeiro e em
Salvador; envio e aceite de fotos e ensaios inteiros para revistas especializadas, em
São Paulo e no México; experimentações com equipamentos próprios e suas
diferentes possibilidades, como uma Rolleiflex e uma Nikon; brincadeiras de
revelação em grandes dimensões, ou em cor única, para as quais pedia ajuda aos
fotógrafos comerciais que atuavam em estúdios na cidade. Isso sem mencionar as
viagens de barco, subindo o rio São Francisco até o Oeste baiano, com o objetivo de
fotografar as margens e os grupos ribeirinhos, o percurso de famílias de imigrantes,
a agitação dos pequenos entrepostos comerciais que, à força da construção de
barragens, tendiam a desaparecer, em breve.
Esse processo criativo que supõe um gesto de deslocamento supõe um
transitar pelas histórias particulares da navegação fluvial, da fuga do sertão por parte
de muitos ribeirinhos e pessoas de outros Estados e da transformação daqueles
espaços, o que confere às imagens produzidas um caráter de testemunhas das
práticas, da presença dos agentes sociais e de suas mutações (BURKE, 2004).
Através das fotografias, o que se nota é uma atenção particular para com o
banal cotidiano, ao qual o artista tentava transmutar para outras formas – e é nesse
sentido que ele se filia, em seus manuscritos, à teoria fotográfica do instante
decisivo de Cartier-Bresson. Exemplo disso é seu gesto de reinvenção do gênero do
retrato fotográfico, pela aproximação do enquadramento até às linhas dos rostos
cansados e das rugas da pele, gerando fotos com considerável nitidez – o que
avizinha seus trabalhos da tradição da fotografia antropológica e artística brasileira
de seu tempo (Figura 1). Democratizado desde o século XIX, pela rápida expansão
da fotografia e de seus usos familiares e comerciais, o fotojornalismo internacional
viera retirar esse gênero posado do estúdio e atrelá-lo à investigação sobre a
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sociedade, o que não foi diferente Brasil. E embora o artista juazeirense não se
dedicasse ao fotojornalismo, suas referências assumidas e a visualização dos
retratos que ele produziu, indicam mais uma variável histórica do gênero do retrato,
como produto de uma investigação artística difícil de abordar em relação ao seu
tempo: com efeito, não se pode lançar apressadamente esses retratos no campo do
anedotário, isto é, da imagem tipificadora dos agentes sociais, como muitas
daquelas engendradas pelo folclore e pela antropologia nascente; mas tampouco se
pode dizer que essas imagens fazem a denúncia das condições sociais dos
indivíduos fotografados, mesmo que o próprio artista tenha admitido sua admiração
pela obra do principal nome do cinema baiano de então, Glauber Rocha, que, em
dado momento fora representante de certa perspectiva de esquerda no cinema
nacional.
Nas suas viagens pelo rio, foram produzidas também, em número
considerável, fotografias de paisagens, outro gênero bastante experimentado e que
demanda sua investigação própria, especialmente porque o olhar de Euvaldo parece
carregado de certo romantismo e apego antropológico às paisagens pouco
transformadas pela sociedade, sobretudo numa época em que elas sofriam drásticas
mutações. O filme Pessoas, que abordamos no presente texto, estaria mais próximo
do gênero do retrato, pelo projeto experimental de privilegiar indivíduos e grupos, a
dimensão expressiva do corpo e da face, a circunscrição social conotada por gestos,
cenários e idumentárias, a dialética do olhar que, frequentemente, é devolvido para
a câmera.
Figura 1
Retrato de idoso por Euvaldo Macedo Filho. (SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO, 2014).
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O super-8: experimento visual na fronteira dos gêneros
Em nossa pesquisa, experimentamos a metodologia de entrevistar a esposa do
artista à época, a professora Odomaria Macedo, tendo diante de nós as imagens
produzidas por Euvaldo e guardadas no acervo particular da família. Na trilha de
pesquisadores que têm usado as fotografias como disparadoras dos relatos dos
sujeitos, a partir da premissa de que essas imagens foram suporte de relações
sociais no passado e contribuem para a construção da memória no presente,
direcionamos essa ferramenta para o uso do super-8 (MAUAD, 2008, p. 57-63; DEL
CASTILLO TRONCOSO, 2011, p. 9-23). Tratando-se de imagens em movimento,
recorremos ao expediente de fazer pausas, recuos, avanços, durante a entrevista,
de modo a abrir esse vestígio, numa trama intertextual, à porosidade das camadas
de lembranças suscitadas pelas cenas e personagens visualizadas.
No final da década de 1970, Euvaldo Macedo Filho adquire uma bitola em
super-8, e logo começa a realizar seus projetos paralelos de captação de imagens.
Sua morte repentina impediu a conclusão daqueles projetos, incluindo a própria
edição das imagens. Recentemente, no entanto, elas foram recuperadas,
compiladas e convertidas ao formato DVD, e, a partir dos critérios de semelhança
temática e de coincidência temporal em sua captação, resultaram em três títulos: Rio
São Francisco, Pessoas e Curral das Barcas. Não obstante a interrupção do
processo criativo pela desaparição do artista e a presença posterior de determinadas
interferências arbitrárias na edição e, portanto, na forma do material, entendemos
que, pelo menos, o conteúdo das imagens carrega determinadas constelações de
sentido referentes à experimentação da linguagem naquele momento. É mirando
essas constelações que nos deteremos sobre o filme Pessoas.
Desde os anos 1950, o super-8 era uma ferramenta acessível às classes
médias, recebendo, privilegiadamente, usos como o registro dos eventos familiares,
como casamentos, batizados, aniversários etc. No Brasil, no começo dos anos 1970,
porém, uma geração de artistas nomeados de marginais, notadamente nas capitais
dos Estados de Pernambuco, Bahia e Piauí, decidiram usar o super-8 como
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ferramenta de possibilidades artísticas. Tendo em vista a leveza e o menor preço do
equipamento, bem como o reduzido custo com montagem e edição, a produção de
imagens com a bitola passou a propor o diálogo com o cinema brasileiro moderno,
sobretudo o Cinema Novo e, em alguns casos, propôs-se a contestar as
interpretações vigentes sobre a cultura nacional (SANTOS FILHO, 2012, p. 23-72;
CASTELO BRANCO, 2005).
Euvaldo Macedo Filho chegara fazer cursos livres de fotografia e
documentarismo, em Salvador, e, sem dúvida, estava inteirado dessa produção, e
inclusive das margens de experimentação, que iam do documental, como alguns
realizadores de Pernambuco, que pretendiam fazer o registro das culturas populares
tradicionais, ao ficcional que deslizava para o desbunde, como na obra do piauiense
Torquato Neto, cuja trajetória o fotógrafo baiano acompanhara à distância, com certa
paixão. Da mesma forma, em sua estada em Salvador, Euvaldo certamente tomara
conhecimento das famosas Jornadas de Cinema que agitaram a cidade nos anos
1970. Entre os artistas baianos, estava em pauta, dentre outras questões, a herança
do Cinema Novo, as políticas públicas para a produção cinematográfica e a
viabilidade da renovação do que se entendia por “cultura baiana” (MELO, 2009, p.
97-104).
Igualmente, aquele momento é marcado por certa diversificação das
representações visuais sobre a sociedade brasileira, com destaque para os grupos
sociais do campo, do sertões e do interior do Brasil, a par da leitura que o Cinema
Novo e produções como as da Caravana Farkas fizeram, mas pontuando as
temporalidades que, constrangedoramente, pareciam teimar em conviver com o
impacto das práticas desenvolvimentistas intensificadas pelo regime militar. É isso,
pelo menos, que se deduz de filmes filccionais como Bye bye Brasil (1979), de
Carlos Diegues, O homem que virou suco (1981), de João Batista de Andrade,
Coronel Delmiro Gouveia (1978), de Geraldo Sarno, como também da produção em
documentário.
Odomaria Macedo lembra como algumas dessas referências convergiram no
processo criativo de Euvaldo – atravessado entre diferentes linguagens – nas
circunstâncias em que o diretor do filme Gitirana, Orlando Senna, estivera em
Juazeiro:
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Eu acho que na verdade ele queria, tanto na fotografia como no cinema, registrar esse episódios, esses acontecimentos que o tocavam muito, me parece que ele era muito fotógrafo, mas ele também queria, com o cinema, registrar de uma forma mais inteira, porque as coisas se movimentavam, eu acho que tinha essa relação mesmo [...]. Mas ele acabou encontrando na fotografia e declarando isso que: era a fotografia realmente a grande paixão dele. Acho que ele queria ser na verdade um fotógrafo fazendo cinema algumas vezes. Quando o pessoal de Orlando Senna veio aqui gravar a o filme Gitirana, que foi um filme premiado e tudo, a gente andou muito com eles na época. E eu me lembro muito da atenção de Euvaldo para o fotógrafo do filme, ele tinha uma identificação muito grande com o cara que estava na fotografia do filme. [...] a questão dele com o cinema tinha muito a ver com esse olhar fotográfico, essa coisa dos enquadramentos, os ângulos, que na verdade passava por todos os crivos do imaginário dele (MACEDO, 2015).
O ato cinematográfico buscado no super-8 parecia uma ferramenta adequada
para completar o ato fotográfico do artista, a partir de pressupostos de linguagem
documental muito parecidos, sintonizados com a tendência corrente de desenvolver
certa empatia pelos personagens do interior do país. No entanto, pelas condições
técnicas de sua feitura, o filme não se encaixa completamente nas definições usuais
sobre as imagens cinematográficas de caráter documental, pois, por exemplo, não
há o uso de voz over fazendo asserções sobre o mundo filmado nem ocorrem
entrevistas ou exibição de dados e informações sobre determinada situação; por
outro lado, o artefato permite certa “leitura documentarizante” pela ausência de
atores profissionais e de efeitos cinematográficos programados que pudessem levar
à interpretação de que se trata de ficção (ODIN, 2012, p. 25).
A entrevista permitiu levantar as informações de que as imagens do filme
Pessoas, que fazem um total de cerca de 16 minutos, foram captadas em diferentes
lugares: a casa dos pais de Euvaldo, no povoado de Carnaíba, zona rural de
Juazeiro; um bar; um pátio; um ambiente festivo onde os indivíduos estão bebendo,
estes três últimos lugares situados no perímetro urbano do município. Para além
disso, o relato dá acesso à interpretação da entrevistada sobre a motivação do
artista ao selecionar esses espaços como locação, isto é, espaços que, ao mesmo
tempo que não fossem encenados, tampouco seriam o centro da agitação e da vida
social urbana, considerando haver em Euvaldo um “gosto muito, muito marcante
assim pelas coisas da rua, pelas situações, digamos assim, de marginalidade, ele
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tinha esse gosto assim de querer ir destacar o que tinha de interessante dentro dos
cabarés [...]” (MACEDO, 2015).
Assim, grande parte das imagens, desde o começo do filme, é dedicada à
empregada doméstica apelidada de Santa, que vivia e trabalhava havia décadas na
casa situada em Carnaíba. O cotidiano dessa mulher negra e idosa parecia
hipnotizar a câmera: em diferentes tomadas, de frente, de lado, de costas, aí, se vê
Santa varrendo o quintal, Santa arrumando a casa, Santa descansando. Como
personagem de si mesma, ela parecia completamente à vontade diante da
curiosidade algo exotizante desse olhar-outro (Figura 2). Em seus manuscritos, o
artista anotara a ideia de fotografar Santa de vários ângulos e com várias facetas
psicológicas. Atenderia o super-8, como imagem em movimento, a essa demanda?
Com efeito, Odomaria Macedo alude à existência de
fotos impressas mesmas, todas são assim de vários ângulos do rosto, testa, boca, olho, torso dela, esse que ela usa. Assim realmente dá um tema bem forte do trabalho dele, e aí [na imagem] você vê que ele acompanha o movimento dela. Na verdade, eu acho que Euvaldo ficava muito curioso sobre a figura de Santa como pessoa, porque ela caminhava bem devagar, ela já era bem velha, caminhava bem devagar. Ela era meio aluada, ela vivia no mundo dela, tinha uns resmungos, ela conversava com ela mesma. [...] acho que esse tempo dela era o que fascinava ele. E ela refletia tudo no rosto, nas expressões do rosto.
Figura 2 Figura 3
Recortes de imagens: Santa e Euvaldo junto ao grupo de amigos. In: PESSOAS. Dir.: Euvaldo Macedo Filho. Juazeiro, s/d. 1 DVD (14 min), son. color. [Captação original em 197?, Super-8].
Nas demais sequências, Euvaldo continua com o registro documental, como
quem parecia carregar constantemente a filmadora, captando imagens de pessoas
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com as quais convivia nos diferentes lugares que frequentava. Por vezes, o
propósito se assemelha ao da função de registro das memórias familiares, como nas
cenas de um espaço festivo, onde um grupo de homens come e bebe em torno de
uma mesa, servidos por uma mulher que traz os alimentos. A presença da câmera e
a situação de filmagem, inclusive, parecem estar francamente diluídas na
espontaneidade com que as pessoas se comportam. A discrição da captura se
quebra quando, ao encontrar um espelho, no canto do cômodo, o artista se detém,
desmanchando a invisibilidade do realizador do que seria mais um registro
doméstico, e brincando com os sentidos da imagem narcísica que apela para a
metalinguagem (Figura 3), ou antes, que se torna uma metaimagem, trazendo para
o super-8 a explicitação aguda da imagem-testemunha.
Para Odomaria Macedo, de certo modo, o olhar desse “fotógrafo fazendo
cinema algumas vezes”, procuraria – para além da própria fotografia que procurava
dignificar personagens comuns do cotidiano – desbordar sua banalidade e a
transformar em irreverência, por isso a opção predominante pelos espaços
domésticos como locação: “Então, são todos ambientes domésticos, mas [...] são
ambientes domésticos mostrando o que ninguém mostraria assim, sobre o ambiente
doméstico. E eu acho que tem muito a ver com o significado dessas figuras pra ele,
né? Porque eram figuras irreverentes, Euvaldo era a irreverência” (MACEDO, 2015).
Essa irreverência fica explícita nas imagens de Pedro Pirulito, proprietário de um
famoso bar da cidade, naquele período, que reunia intelectuais e artistas: em uma
das poucas cenas nas quais aparece, Pedro Pirulito faz um gesto obsceno para a
câmera (Figura 4).
Mas Euvaldo parecia mais à vontade para fazer experimentações que
ultrapassassem o registro do documental na abordagem de outro personagem local,
conhecido como João Doido, com quem, segundo Odomaria Macedo, o fotógrafo
sempre que podia conversava e brincava. Nas imagens, ele aparece se exibindo
jocosamente com um pandeiro à cabeça, segurando livros, como A ideia do cinema,
Argumento e roteiro e A dor humana, encarando a câmera, demonstrando
claramente ter sido dirigido, enquanto elenco, em termos de atuação (Figura 5).
Diferente da figura da desrazão encenada por Jomard Muniz de Brito, por exemplo,
que coloca, na boca de seu personagem ficcional do palhaço, palavras de crítica às
interpretações de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna sobre a cultura brasileira – no
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seu filme em super-8 O palhaço degolado (1976-1977), – aqui, a figura da desrazão
é chamada a posar como que coroado pelo pandeiro – seria um rei louco? – e a
ironizar, folheando seriamente livros, inclusive sobre cinema, com ar de intelectual.
Figura 4 Figura 5
Recortes de imagens: o gesto obsceno de Pedro Pirulito e a leitura de João Doido. In: PESSOAS. Dir.: Euvaldo Macedo Filho. Juazeiro, s/d. 1 DVD (14 min), son. color. [Captação original em 197?,
Super-8].
O procedimento de Euvaldo em relação à atuação de João Doido, inclusive, em
que pese a historicidade da margem ética da manipulação da imagem do doente
mental, que, em nossos dias, decerto, não seria a mesma, lembra a proposição do
cineasta e etnólogo francês Jean Rouch, quando pediu aos indivíduos que
escolhessem personagens para interpretar, os quais seriam filmados e integrariam a
película Eu, um negro (1958), famosa pela transgressão da fronteira entre o
documental e o ficcional. Ao procurar captar a própria dimensão imaginária dos
sujeitos daquela sociedade, na forma do documentário, Rouch levava à radicalidade
seu projeto de cinema-verdade, indicando que o que entendemos por “real” é
também composto pela ficção que cada um faz de si mesmo, sejam cineastas ou
atores (GONÇALVES, 2008).
De acordo com Odomaria Macedo, como vimos, Euvaldo Macedo era
fascinado pelo “tempo de Santa”, isto é, uma temporalidade particular, relacionada,
até mesmo, ao lugar ermo em que ela vivia, uma casa no povoado rural, distante,
inclusive, das transformações urbanas por que passava Juazeiro. Nessa mesma
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perspectiva, João Doido parecia ser o portador “natural” do tempo da ficção, do
tempo do imaginário, de um tempo “não-real”, vivido na experiência da loucura, de
modo que, além de personagem de si mesmo, ele pudesse encarnar, em sua
performance constante, qualquer personagem que o artista lhe indicasse. Seja qual
for a mensagem, alegórica decerto, que Euvaldo estaria construindo com essas
cenas, resta que elas não são apenas a documentação da loucura de João Doido,
tornada risível pelo absurdo de sua suposta leitura dos livros, mas outra margem de
uso da ferramenta do super-8.
Verificamos, assim, no mesmo artefato, usos distintos do equipamento de
captação de imagens que oscilavam entre a prática experimental e a documental,
singularizando o artista entre os superoitistas que lhe precederam. O relato de
memória entrecruzado com a visualização das imagens permite construir diferentes
leituras sobre os artefatos, sobre as circunstâncias e o processo da produção
artística remetendo, ainda, de forma mais ampla, à dimensão visual da sociedade,
ela mesma atravessada de memórias.
Referências
ASSIS, Antonio Carlos Coelho de. Euvaldo Macedo Filho: um olhar para além da fotografia. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Artes Visuais), Juazeiro: Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2014.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004.
CASTELO BRANCO, Edwar. Destruir a linguagem e explodir com ela. In: ______. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália, São Paulo: Annablume, 2005.
CUNHA, João Fernandes da. Memória histórica de Juazeiro, Juazeiro, s. e., 1978 [Versão digitalizada por OLIVEIRA, Albano de Souza. Salvador, 2012].
DEL CASTILLO TRONCOSO, Alberto. Rodrigo Moya. Una mirada documental. Ciudad de México: Instituto de Investigaciones Estéticas (UNAM); El Milagro; La Jornada, 2011.
GONÇALVES, Marcos A. T. O real imaginado. Etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.
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MACEDO, Odomaria Rosa Bandeira. Entrevista concedida a Elson de Assis Rabelo e Gledson Wilber de Souza. Juazeiro, 22 de março de 2015.
MAUAD, Ana Maria. Poses e flagrantes. Ensaios sobre história e fotografias. Rio de Janeiro: EDUFF, 2008.
MELO, Izabel de Fátima Cruz. “Cinema é mais do que filme”: uma história do cinema baiano através das Jornadas de Cinema da Bahia. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História). Salvador, UFBA, 2009.
ODIN, Roger. Filme documentário, leitura documentarizante. Significação. São Paulo: USP, ano 39, n.º 37, 2012.
PESSOAS. Dir.: Euvaldo Macedo Filho. Juazeiro, s/d. 1 DVD (14 min), son. color. [Captação original em 197?, Super-8].
RABELO, Elson de Assis. Al margen del desarrollismo: flujos y contra-flujos de las reconfiguraciones espaciales del río São Francisco, Brasil, 1930-1970. Patrimonio: economía cultural y educación para la paz. Cidade de México, v. 1, p. 45-68, 2014.
SANTHIAGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidades e desafios. História Oral, v, 16, n. 1, jan-jun. 2013.
SANTOS FILHO, Francisco Aristides de Oliveira. Jomard Muniz de Britto e o palhaço degolado: laboratório de crítica cultural em tempos de repressão no Brasil pós 64. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História), Teresina, UFPI, 2012.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO. Catálogo da Exposição “Imagens, vestígios do tempo: fotografias de Euvaldo Macedo Filho”, Petrolina: SESC, 2014.