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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
Atividade Curricular de Integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão – ACIEPE
“Direitos humanos pelo cinema”
Trabalho final
“A história oficial: o Direito à Memória e à Verdade e o papel dos meios de
comunicação”
Autora: Dra. Carolina Isabel Miño
Artigo apresentado como requisito parcial para a aprovação da ACIEPE.
Professores responsáveis: Prof. Dra. Maria Inês Rauter Mancuso
Prof. Dr. Jorge Leite Júnior
São Carlos – SP
Agosto de 2011
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
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1. APRESENTAÇÃO
O presente trabalho forma parte dos requisitos para a aprovação da Atividade Curricular de
Integração entre Ensino, Pesquisa e Extensão – ACIEPE “Direitos humanos pelo Cinema”,
oferecida durante o 1º semestre de 2011 (entre os dias 01/03 e 27/06), pelo Departamento
de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Essa atividade teve como objetivo
principal estabelecer um diálogo entre as temáticas que norteiam os eixos do 3° Plano
Nacional de Direitos Humanos no Brasil (PNDH3) e a linguagem cinematográfica, na
procura de um melhor entendimento dessa temática tão complexa como são os Direitos
Humanos (DDHH).
Durante o decorrer da ACIEPE, tive a oportunidade de me re-conectar com temas
que eu considero muito interessantes no contexto de vários movimentos e reivindicações
que se desenvolvem atualmente na Argentina, país no qual nasci, e que estão estreitamente
relacionados com as diretrizes do PNDH3, em particular o Direito à Memória, o Direito à
Verdade e do Direito à Comunicação. O presente texto tem por objetivo estabelecer um
diálogo entre esses três direitos, analisando especificamente o contexto atual da Argentina,
mas tendo sempre como base o estabelecido no PNDH3, em diálogo com um dos filmes
debatidos durante a ACIEPE (ver mais abaixo). Apresenta-se também um caso específico
acontecido na Argentina como exemplo real do apresentado no filme. Faz-se,
seguidamente, uma análise do papel dos meios de comunicação no encobrimento de crimes
contra a humanidade na Argentina. Nesse contexto, apresenta-se um caso representativo do
que acontece atualmente na Argentina. Além disso, oferece-se uma pequena análise de uma
situação que se deu recentemente no Brasil: a decisão da presidente Dilma Rousseff de
adiar a abertura dos arquivos da ditadura que vigorou nesse país entre 1964 e 1985.
Finalmente, discorre-se sobre a nova Lei de Meios de Comunicação Audiovisual na
Argentina, no contexto do PNDH-3 e se apresentam as considerações finais da autora sobre
o tema do trabalho.
O que motivou a escrever sobre essa temática foi, principalmente, o interesse da autora
no papel dos meios de comunicação na construção de uma “história oficial” que, muitas
vezes, e não sem objetivos específicos (e non-sanctos), dista muito da “história real ou
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verdadeira”. Além desse motivo principal, a autora gostaria de render uma humilde
homenagem, através deste artigo, às Abuelas e Madres de Plaza de Mayo, que há 35 anos
lutam pelo esclarecimento dos crimes cometidos durante o golpe cívico militar na
Argentina, pela aparição dos mais de 400 filhos apropriados pelo regime militar e seus
cúmplices e pela aparição das pessoas ilegalmente seqüestradas nesse período.
O elo deste artigo teve como base a temática apresentada no filme “A história
oficial” (La historia oficial, 1985; Fig. 1) dirigido por Luis Puenzo, com roteiro de Aída
Bortnik e Luis Puenzo, e Produzido por Marcelo Piñeyro; o filme conta com a atuação de
Norma Aleandro (interpretando a Professora de História, Alicia), Héctor Alterio (no papel
do Roberto, o marido de Alicia), Chunchuna Villafañe (interpretando a Ana, amiga de
Alicia), Hugo Arana (cunhado de Alicia, irmão de Roberto), Analia Castro (como Gaby, a
filha adotiva de Alicia e Roberto), entre outros. No filme, assistimos à tomada de
consciência de Alicia, que através da sua amiga Ana, dos seus alunos e de um colega da
escola aonde trabalhava, começa a perceber que Gaby, a filha adotiva que tanto ama, pode
ter sido “adotada” irregularmente, e pode ser, na verdade, filha de pessoas desaparecidas
(seqüestradas durante a ditadura militar na Argentina no período de 1976-1983). Alicia, que
pertence à classe média argentina – classe essa que foi cúmplice dos militares num processo
agora (e melhor) conhecido como „golpe cívico-militar‟ – acredita, em princípio, na história
que lê nos livros que usa como material didático para as suas aulas e na história que os
jornais e revistas contavam nessa época: “a história oficial”. Alícia, aos poucos e com ajuda
das pessoas acima mencionadas, começa a suspeitar que o seu marido possa ter
“conseguido” Gaby por meio dos seus contatos com a máquina repressora do regime militar
e seus cúmplices civis. Num ato de coragem, contrário ao silêncio da maioria das famílias
que adotaram bebês (ou meninos/as) entre 1976 e 1985, Alicia começa a investigar a
origem de Gaby (perante o silêncio ou as respostas evasivas do marido) recorrendo
hospitais, igrejas (a cena em que ela e o padre conversam sobre o caso, e o padre evidencia
sua cumplicidade com a “falsa adoção” de Gaby é particularmente forte e causou
problemas aos responsáveis do filme) e participando de uma manifestação das Madres de
Plaza de Mayo.
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Figura 1. Cartaz promocional do filme “La Historia Oficial” (1985), do diretor argentino Luis Puenzo.
Como se pretende analisar neste artigo, a história que Alicia acreditava ser a
verdadeira, foi construída pelos militares, com a cumplicidade, sem limites e sem
escrúpulos, dos meios de comunicação hegemônicos e monopólicos da época, alguns dos
quais ainda existem na Argentina e os que, lamentavelmente, ainda exercem o papel de
cúmplices dos militares e da oligarquia racista, classista e discriminadora ao ajudar a
ocultar crimes contra a humanidade.
2. INTRODUÇÃO
Na Argentina, durante o golpe cívico militar de 1976-1983 houve um plano sistemático
para o roubo de bebês, sempre negado pelos seus proponentes e executores, mas
comprovadamente existente. O exército havia difundido, através de seis manuais,
instruções sobre as ações a serem executadas no caso de se ter acesso a crianças ou bebês
durante o seqüestro dos seus pais, ou se um bebê nascia em cativeiro. O manual intitulado
“Instrucciones sobre procedimiento a seguir con menores de edad hijos de dirigentes
políticos o greminales cuando sus progenitores se encuentran detenidos o desaparecidos”
(de abril de 1977) é especialmente ilustrativo do horror (Quadrat 2003). Nesse manual,
davam-se instruções para que os militares entregassem as crianças com até quatro anos de
idade para famílias de militares ou orfanatos, já que elas estariam ainda “livres da má
influência” política de seus pais. Porém, as crianças em torno de 10 anos deveriam ser
mortas, pois já estariam “contaminadas” pela “subversão” de seus pais (Quadrat 2003).
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Cerca de 400 bebês, crianças e jovens tiveram sua identidade roubada na Argentina entre
1976 e 1985 (ver no Apêndice o depoimento de uma sobrevivente de um centro clandestino
de detenção).
Na maior parte dos casos de apropriação de crianças, os militares ou civis que
ficavam com elas as registravam como sendo filhos naturais ou adotivos e se eliminava
qualquer registro anterior da criança. Uma nova identidade, falsa, foi dada às crianças, em
muitos casos pelo responsável direto da morte de seus pais, ou por pessoas a eles
diretamente relacionadas (Quadrat 2003). Crianças foram abandonadas em instituições sem
nenhum tipo de identificação, vendidas, mortas ou entregues em adoção a famílias civis que
nada suspeitavam da sua origem. Muitas das crianças que foram entregues a famílias de
militares nunca tiveram uma vida feliz, já que além de ter sua identidade substituída,
sofreram abandono e maus tratos. É importante ressaltar que nesse processo de apropriação
de pessoas e de substituição de identidades muitos civis estiveram envolvidos, desde os que
aceitavam as crianças para adoção sem questionar a sua origem, até funcionários de
cartórios e hospitais, que falsificaram documentos, e médicos obstetras, que trocavam as
identidades das crianças após o seu nascimento (Quadrat 2003).
A organização de DDHH Abuelas de Plaza de Mayo preocupou-se sempre pela
identificação das crianças apropriadas, sem se ter informação sobre seus pais. Isso fez com
que viajassem pelo mundo todo solicitando ajuda de expertos internacionais em análises
genéticas perguntando sobre a possibilidade de se identificar um vínculo biológico do tipo
“neto-avós”. Após um longo e desesperante processo de busca, científicos internacionais
desenvolveram as fórmulas matemáticas e estatísticas necessárias para ajudar às Abuelas a
encontrar a seus netos. Esse enorme esforço das Abuelas permitiu que hoje se possa usar o
material genético dos avôs e avós, ou parentes próximos, para identificar os laços
sanguíneos que os unem aos supostos netos (ver livro “Las abuelas y la genética, editado
pelas Abuelas de Plaza de Mayo). Atualmente, através do avanço das metodologias
moleculares da genética pode se utilizar o DNA tirado de fontes diversas (sangue, cabelo,
saliva, células deixadas numa escova de dentes ou na roupa, etc.) para identificar
adequadamente a uma pessoa e comparar o seu perfil genético com o das famílias que
procuram parentes desaparecidos. Com o fim de manter armazenados os perfis genéticos
das famílias que procuram pessoas desaparecidas foi criado na Argentina, em 1987, o
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Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), aprovado pela Lei Nacional nº 23.511/87. O
BNDG funciona atualmente no Hospital Durand da Cidade de Buenos Aires e nele se
encontram trabalhando pessoas adequadamente capacitadas e treinadas (Equipo Argentino
de Antropologia Forense, EAAF), além dos aparelhos e materiais necessários para
centralizar as provas de laboratório e do arquivo de material genético para que a
comprovação dos vínculos biológicos possa ser realizada (ver livro “Las abuelas y la
genética, editado pelas Abuelas de Plaza de Mayo).
Figura 2. Foto ilustrativa do movimento pela busca das crianças desaparecidas na
Argentina durante o golpe cívico-militar de 1976-1983.
3. O DIREITO À MEMÓRIA, À IDENTIDADE E À VERDADE
A Convenção sobre os Direitos da Criança, da Assembléia-Geral das Nações Unidas,
adotada e ratificada pelo Brasil em 1990 e pela Argentina em 1994, inclui o Direito à
Identidade. Informar ao jovem o seu passado é, de acordo com essa convenção, um dever.
Ao não fazer isto, as pessoas responsáveis pelas crianças violam essa convenção. As
organizações defensoras dos direitos humanos têm nessas convenções ferramentas legais
para que os crimes cometidos por civis e militares durante as ditaduras sejam condenados.
No Brasil, o Plano Nacional de Direitos Humanos em atual vigência (PNDH-3), no
Eixo Orientador VI, trata especificamente do Direito à Memória e à Verdade. O PNDH-3
trata desses direitos como temas transversais. Segundo expressou Paulo Vannuchi “A
memória histórica é componente fundamental na construção da identidade social e cultural
de um povo e na formulação de pactos que assegurem a não-repetição de violações de
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Direitos Humanos, rotineiras em todas as ditaduras, de qualquer lugar do planeta. Nesse
sentido, afirmar a importância da memória e da verdade como princípios históricos dos
Direitos Humanos é o conteúdo central da proposta. Jogar luz sobre a repressão política
do ciclo ditatorial, refletir com maturidade sobre as violações de Direitos Humanos e
promover as necessárias reparações ocorridas durante aquele período são imperativos de
um país que vem comprovando sua opção definitiva pela democracia.” (Vannuchi, P.
prefácio ao PNDH-3, pág. 19).
Segundo o próprio texto do PNDH-3: “A investigação do passado é fundamental
para a construção da cidadania. Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona
seus acontecimentos, caracterizam forma de transmissão de experiência histórica que é
essencial para a constituição da memória individual e coletiva. O Brasil ainda processa
com dificuldades o resgate da memória e da verdade sobre o que ocorreu com as vítimas
atingidas pela repressão política durante o regime de 1964. A impossibilidade de acesso a
todas as informações oficiais impede que familiares de mortos e desaparecidos possam
conhecer os fatos relacionados aos crimes praticados e não permite à sociedade elaborar
seus próprios conceitos sobre aquele período. A história que não é transmitida de geração
a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries
geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional.
Resgatando a memória e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua própria
identidade, a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e
crescem as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período
sombrio, como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro. O
trabalho de reconstituir a memória exige revisitar o passado e compartilhar experiências
de dor, violência e mortes. Somente depois de lembrá-las e fazer seu luto, será possível
superar o trauma histórico e seguir adiante. A vivência do sofrimento e das perdas não
pode ser reduzida a conflito privado e subjetivo, uma vez que se inscreveu num contexto
social, e não individual. A compreensão do passado por intermédio da narrativa da
herança histórica e pelo reconhecimento oficial dos acontecimentos possibilita aos
cidadãos construírem os valores que indicarão sua atuação no presente. O acesso a todos
os arquivos e documentos produzidos durante o regime militar é fundamental no âmbito
das políticas de proteção dos Direitos Humanos”...”Importância superior nesse resgate da
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história nacional está no imperativo de localizar os restos mortais de pelo menos 140
brasileiros e brasileiras que foram mortos pelo aparelho de repressão do regime
ditatorial.”...”As violações sistemáticas dos Direitos Humanos pelo Estado durante o
regime ditatorial são desconhecidas pela maioria da população, em especial pelos jovens.
A radiografia dos atingidos pela repressão política ainda está longe de ser concluída, mas
calcula-se que pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de
1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos
cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas
não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra
incalculável de exílios e refugiados políticos. As ações programáticas deste eixo orientador
têm como finalidade assegurar o processamento democrático e republicano de todo esse
período da história brasileira, para que se viabilize o desejável sentimento de
reconciliação nacional e para se construir consenso amplo no sentido de que as violações
sistemáticas de Direitos Humanos registradas entre 1964 e 1985, bem como no período do
Estado Novo, não voltem a ocorrer em nosso País, nunca mais.”
Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania
e dever do Estado. Objetivo Estratégico I: Promover a apuração e o esclarecimento público
das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no
Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito
à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Diretriz 24: Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade. Objetivo
Estratégico I: Incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção
pública da verdade sobre períodos autoritários.
Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com a promoção do direito à memória
e à verdade, fortalecendo a democracia. Objetivo Estratégico I: Suprimir do ordenamento
jurídico brasileiro eventuais normas remanescentes de períodos de exceção que afrontem os
compromissos internacionais e os preceitos constitucionais sobre Direitos Humanos.
Por outro lado, o Eixo Orientador IV – Segurança Pública, Acesso à Justiça e
Combate à violência, na ação programática i) do objetivo estratégico III propõe: “Realizar
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campanhas de prevenção e combate à tortura nos meios de comunicação para a população
em Geral”.
Já o “Eixo Orientador V – Educação e Cultura em Direitos Humanos” discute “ o
papel estratégico dos meios de comunicação de massa, no sentido de construir ou
desconstruir ambiente nacional e cultura social de respeito e proteção aos Direitos
Humanos. Daí a importância primordial de introduzir mudanças que assegurem ampla
democratização desses meios, bem como de atuar permanentemente junto a todos os
profissionais e empresas do setor, buscando sensibilizar e conquistar seu compromisso
ético com a afirmação histórica dos Direitos Humanos.”
Diretriz 22: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a
consolidação de uma cultura em Direitos Humanos. Objetivo Estratégico I: Promover o
respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na
promoção da cultura em Direitos Humanos.
4. A HISTÓRIA OFICIAL: OS MEIOS MONOPÓLICOS E O SEU PAPEL NA
APROPRIAÇÃO DE CRIANÇAS DURANTE O GOLPE CÍVICO-MILITAR NA
ARGENTINA (1976-1983)
4.1 A adoção ilegal dos filhos da diretora do maior grupo multimídia da Argentina: Clarín
No dia 15 de março de 2006, a Presidência da República Argentina instaurou o feriado
nacional do dia 24 de março, declarado “Dia Nacional da Memória pela Verdade e a
Justiça” (Fig. 3). Num artigo recente, a Presidência da Nação informa “Há 35 anos, as
corporações econômicas, os setores civis a elas subordinados e os grandes meios
monopólicos de imprensa, conjuntamente com as Forças Armadas, assaltaram os poderes
do Estado para instaurar a ditadura terrorista mais cruel e homicida de toda a história
nacional. Com o fim de disciplinar ao povo argentino e desarticular toda resistência à
opressão, eliminaram aos homens e mulheres que encarnavam os anseios transformadores
por um país de igualdade e equidade e a todos aqueles que constituíam os elementos mais
ativos das organizações obreiras e as redes sociais solidárias. Sua ação criminosa
estendeu-se a todos os setores sociais, educativos, culturais, políticos, intelectuais,
profissionais e religiosos, seletivamente, para fazer desaparecer a quem manifestava
abertamente o não-acordo com o modelo do Estado Militar em benefício exclusivo do
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neoliberalismo selvagem. O saldo desse golpe foi um país submetido ao terror em todo o
seu território, com 30.000 detentos-desaparecidos e assassinados, com 500 crianças
nascidas no cativeiro e apropriados, com 15.000 cidadãos encarcerados, com Miles de
exilados e com profundas marcas traumáticas coletivas, com o esvaziamento do Estado e o
brutal empobrecimento da sua população. O Movimento dos Direitos Humanos, com as
Madres e as Avós de Plaza de Mayo na liderança, foi a encarnação da luta pela memória,
a verdade e a justiça, que colocou em xeque permanentemente à ditadura terrorista e
fustigou aos governos civis posteriores que não se atreveram ou não quiseram romper os
muros da impunidade. Desde 25 de maio de 2003, com a assunção de Néstor C. Kirchner à
Presidência da Nação Argentina, as políticas públicas estabeleceram o combate à
impunidade, resgataram o valor ético do Estado e colocaram em vigência os Direitos
Humanos em todas as suas dimensões, através de um modelo de país em transformação no
caminho de uma democracia plena. Nesta nova Argentina re-nascida das suas cinzas, os
responsáveis desses crimes contra a humanidade estão sendo julgados e condenados pelos
tribunais competentes no país inteiro. Hoje, a presidenta da Nação, Dra. Cristina
Fernández de Kirchner, aprofunda esse modelo com diárias medidas concretas. Sigamos
no caminho dessa democracia ética e inclusiva, respeitosa dos Direitos Humanos, com o
povo e o governo juntos, sem olvidar o passado opressor, construindo cidadania no
presente e olhando a um futuro cada vez mais promissor.”1 (Presidencia de la Nación,
2011).
Figura 3. O dia 24 de março foi declarado, na Argentina, Dia
Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça.
1 Tradução livre de Carolina I. Miño
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No comunicado
acima citado, mencionam-se aos meios monopólicos como cúmplices dos ditadores
terroristas e genocidas. Atualmente há provas suficientes que permitem assegurar que os
meios de comunicação de maior influência na opinião pública da Argentina, como o Jornal
Clarín, foram cúmplices diretos dos militares que dirigiram o golpe de 1976. Um exemplo
disso é o “Caso Papel Prensa” (ver seção 4.2 deste texto) como ficou conhecida a
apropriação, pelo grupo Clarín, dessa fábrica de papel para imprensa dos seus legítimos
proprietários, o Grupo Graiver, depois do seqüestro da sua apoderada, Lidia Papaleo
(Fuertes, 2011). Esse caso não foi um fato isolado, senão que formou parte de um plano
sistemático para que os grupos monopólicos pudessem se apropriar das empresas que
consideravam que deviam ser suas. O Grupo Clarín e dono dos jornais, canais de televisão
e emissoras radiais que mais influenciam a opinião pública na Argentina (ver seção 4.1).
No que respeita à apropriação ilegal de crianças durante a ditadura de 1976, tema no
qual se baseia este artigo, a diretora atual do Grupo Clarín, Ernestina Herrera de Noble
(Fig. 4) está acusada penalmente pela adoção ilegal (já comprovada) de duas crianças
suspeitas de serem filhos de desaparecidos. A diretora do Clarín mentiu sobre o processo
de adoção das crianças, apresentando testemunhas falsas e falsificando documentação. A
juíza Ofelia Hejt, que teve participação em outros processos ilegais de adoção de crianças
durante a ditadura, deu em adoção as crianças batizadas com os nomes de Marcela e Felipe
a Ernestina Herrera de Noble em 1976 e 1978, respectivamente.
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Figura 4. Fotografia na qual se observa à diretora do Grupo Clarín,
Ernestina Herrera de Noble (à direita da imagem), brindando com o
ditador Rafael Videla e outros genocidas por motivo da “inauguração”
de uma planta da empresa Papel Prensa (ver mais abaixo neste
artigo).
Um caso específico exemplifica bem o que tentamos discutir neste artigo sobre o
papel dos meios no ocultamento da verdade: em 1991, sob democracia e durante a terrível
presidência de Carlos Menem, Ernestina H. de Noble e Carlos Magnetto, CEO de Clarín,
tiveram uma reunião com o presidente. Nessa reunião, ambas as partes acordaram, como
troca de favores, que cada uma “faria calar” a dois jornalistas, um de Canal 7 (do governo)
e outra de Canal 13 (do Grupo Clarín) que vinham fazendo declarações que poderiam
prejudicá-los (sobre a origem dos filhos de Ernestina e o papel do Menem na venda ilegal
de armas para a Guerra do Golfo Pérsico). Como resultado dessa reunião, os jornalistas
foram severamente punidos pelos seus “chefes” e até perderam os empregos. Em 1996
Ernestina H. de Noble foi novamente denunciada, por outra pessoa, e dessa vez com provas
contundentes, por falsificação de documentação conducente à adoção de Marcela e Felipe.
Um juiz amigo da acusada recusou a denuncia. Em 1998, o diretor de uma consultora
especializada em preparar empresários para o contato com jornalistas em situações críticas
recebeu um “convite” do diretor de Comunicações do Grupo Clarín para que fizesse um
curso específico para que os empresários dos canais de TV TN e Canal 13 (desse grupo)
pudessem lidar com as perguntas de jornalistas de rádio e TV sobre o caso dos filhos da
diretora do Grupo Clarín. Por decisão própria, acertada aos olhos da autora deste trabalho,
o diretor da consultora nunca ofereceu esse curso (Cecchini, 2011).
Segundo Daniel Cecchini (Miradas al Sur, 2011) no dia 30 de abril de 2001, a então
presidente da associação Abuelas de Plaza de Mayo, Estela Barnes de Carlotto, realizou
uma apresentação judicial pedindo que se investigasse a filiação dos filhos adotivos da
diretora de Clarín porque as Abuelas tinham indícios de que podiam ser filhos de
desaparecidos a quem se havia roubado a identidade. O juiz Marquevich se expediu na
época sobre o caso, estabelecendo que Ernestina Herrera havia apresentado falsas
testemunhas durante o processo de adoção das crianças; havia falsificado o nome e o
número de RG da suposta pessoa que deu o Felipe em adoção; não corroborou que a
suposta mãe biológica de Felipe fosse realmente mãe dele e mentiu sobre o seu próprio
endereço residencial. Com essas provas, Ernestina Herrera de Noble foi detida o dia 17 de
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dezembro de 2002, sob os delitos de “falsificação de documentos públicos, inserção de
dados falsos e uso de documentos públicos falsos” durante os trâmites de adoção dos seus
filhos. Ernestina H. de Noble permaneceu detida por três dias na sede da Policia Federal,
mas depois foi beneficiada com prisão domiciliaria e 15 dias depois foi liberada. O Juiz,
que tinha feito justiça, pagou cara essa acusação à dona do poderoso grupo mediático: foi
suspenso e depois processado pelo Conselho da Magistratura da Argentina, em manifesta
pressão do Grupo Clarín (por meio de “visitas” aos juízes por parte do diretor de Relações
Institucionais do Grupo). Finalmente, o juiz a cargo da causa, Bergesio, amigo do Grupo,
arquivou o expediente e a causa ficou estagnada durante sete anos (Cecchini, 2011).
Em 30 de dezembro de 2009, obrigado pela Sala II da Cámara Federal de San
Martín, o juiz Bergesio teve que chamar a Marcela e Felipe para que deles fossem extraídas
amostras de sangue como mandava a Lei. Porém, essas amostras iam ser extraídas
irregularmente e não no Hospital Durand aonde a Lei indicava, mas no Corpo Médico
Forense, que tinha sido acusado anteriormente pela cumplicidade de alguns dos seus
membros na falsificação de provas em outros crimes. Mas as Abuelas de Plaza de Mayo e a
fiscal Rita Molina agiram rapidamente e finalmente isso não foi feito. A causa ficou
finalmente em mãos da juíza Sandra Arroyo Salgado, quem primeiro apartou a dois dos
advogados defensores do Grupo pelo delito de prevaricato e ordenou a toma de amostras de
Marcela e Felipe maneira compulsiva, como a Lei argentina o indica. Para isso,
funcionários da Polícia Federal entraram na casa das vítimas, que já haviam sido avisadas
por outros funcionários da polícia, e levaram peças íntimas que resultaram estar
contaminadas com material genético de três pessoas diferentes e não serviram para traçar o
perfil genético de Marcela e Felipe.
No dia 24 de junho de 2011, surpreendentemente, Marcela e Felipe Noble Herrera
foram por própria vontade ao BNDG a tirar sangue para que os seus perfis genéticos
fossem traçados. Foram extraídas quatro amostras, duas encontram-se no BNDG, uma em
mãos da fiscal Rita Molina e a outra em mãos da juíza Arroyo Salgado. No dia 08 de julho
deste ano, a juíza Sandra Arroyo Salgado ordenou que os perfis genéticos de Marcela e
Felipe fossem comparados com todas as famílias presentes no BNDG, como marca a Lei
(Página 12, 08/07/2011). No dia 11 de julho esse procedimento foi realizado no BNDG,
primeiro compararam-se os perfis com as famílias que apresentaram a denúncia
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(Lanouscou-Miranda e Gualdero-García) e depois com as famílias cujos filhos foram
sequestrados entre 1975 e 1976; por último, o cotejo foi feito com todas as famílias cujos
dados estão no BNDG. A primeira comparação de perfis genéticos indicou que os dados
genéticos de Marcela e Felipe Noble Herrera não são compatíveis com os das famílias
Lanoscou-Miranda nem Gualdero-García. Contudo, houve quatro famílias cujos perfis
genéticos não puderam ser excluídos como pertencentes ao grupo familiar de Marcela e
Felipe (Kollmann & Hauser, 18/07/2011, Página/12). No momento, espera-se obter maiores
informações genéticas das famílias que não puderam ser excluídas e para isso estão se
buscando novas amostras dessas famílias (tios, irmãos, primos dos desaparecidos e/ou
exumação dos corpos dos seus pais, falecidos, para extração de DNA).
Independentemente de qual for o resultado final, a Lei argentina indica que os perfis
genéticos de Marcela e Felipe devem ser armazenados no BNDG para poder ser
comparados com famílias que forem se somar à base no futuro. Está totalmente
comprovado que as adoções de Felipe e Marcela pela senhora Ernestina Herrera de Noble
foram feitas com documentação falsa e testemunhas falsas e cheias de mentiras. A juíza que
deu os bebês em adoção, Ofelia Hejt, já havia atuado em outros casos de adoção ilegal de
bebês nascidos em cativeiro. Enquanto isso, o maior grupo mediático da Argentina continua
usando todo o seu poder, lobby e desinformação para manter a identidade real de Marcela e
Felipe na escuridão (Cecchini, 2011). Resumindo, entre as diversas estratégias usadas pelo
grupo podemos mencionar: a destituição do juiz original da causa e a nomeação de um juiz
amigo que arquivou o processo por mais de oito anos; várias apresentações e reclamos
judiciais de duvidosa legitimidade para atrapalhar o processo de obtenção de DNA que já
foi estabelecido pela justiça argentina conforme o que descreve a Lei desse país e uma
recente e injusta campanha para sujar a reputação de outro juiz do Superior Tribunal de
Justiça, Eugenio Zaffaroni. Além disso, a ex-diretora do BNDG atuou como perito de parte
de Felipe e Marcela, e comprovou-se que ao abandonar o BNDG (contra a sua vontade,
mas obrigada porque já tinha superado a idade de aposentadoria) levou-se um computador
no qual ainda existiam armazenadas informações dos perfis genéticos das famílias que
procuravam bebês desaparecidos. Por isso, é necessário ainda se verificar que nenhum dos
perfis que se encontram no banco de dados tenha sido alterado e que tudo esteja de acordo
com o que no seu devido momento foi traçado (Página 12, 08/07/2011). Seja qual for o
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resultado, o que as Abuelas sempre reclamaram é que o Direito à Verdade seja final e
devidamente garantido.
4.2 O monopólio dos meios gráficos: o caso “Papel Prensa”
“Papel Prensa” é o nome pelo qual se conhece à maior empresa produtora e principal
fornecedora do papel para impressão de jornais na Argentina. Segundo Osvaldo Papaleo,
ex-secretario de imprensa da ex-presidente argentina Maria Estela Martínez de Perón,
seqüestrado e torturado durante a última ditadura e atualmente empresário teatral e da
indústria cinematográfica, o monopólico Grupo Clarín cresceu sob o amparo do poder
durante os últimos 30 anos (Deslarmes F, Miradas al Sur, 2011). O Grupo Clarín (que
inclui, entre outros meios, os jornais Clarín, La Razón e La Nación) apropriou-se de Papel
Prensa durante o regime ditador comandado por Jorge Rafael Videla (Fi. 4). Papel Prensa
era uma sociedade de propriedade da família Graiver (75%) e o Estado Nacional (25%),
criada nos finais da década de ‟60. Em 1977 foram detidos quase todos os integrantes da
família Graiver: o pai, a mãe e a esposa de David Graiver, que tinha falecido em 1976
durante um acidente aéreo no México. A mesma tarde em que a família foi detida, os
representantes legais de Clarín, La Razón e La Nación tiveram uma reunião com Lidia
Papaleo de Graiver, a representante de Papel Prensa, para obrigá-la a vender a empresa. Em
aqueles dias, também, a ditadura acionou contra o jornal La Opinión, que era de Graiver e
que dirigia Jacobo Timerman; um tribunal de guerra condenou à família Graiver com base
em declarações falsas tiradas sob tortura e Osvaldo Papaleo foi detido e passou nove meses
sob tortura, depois do qual se exilou. A familia Graiver foi incluída no que se chamou “ata
institucional”, pela qual as pessoas perdiam os direitos civis e econômicos, e todos os bens
da família passaram às mãos do Estado (a Junta Militar) (Fig. 5). No final de 1978, as ações
da empresa passaram às mãos de Clarín, La Razón e La Nación. Dessa maneira, Clarín
“comprou” Papel Prensa, com a família detida e “julgada” pelo tribunal de guerra, e
começou a exercer o monopólio da venda de papel para jornais.
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Figura 5. Capa do jornal Clarín, de 1978, anunciando a inauguração da
planta de Papel Prensa. Na foto à esquerda pode-se ver o ditador Rafael
Videla falando ao microfone e, à esquerda dele, a Ernestina Herrera de
Noble, dona do Grupo Clarín.
Em junho de 2011, a Argentina recebeu a visita dos delegados da Sociedade
Interamericana de Imprensa. Os meios dominantes confluíram numa série de notas e artigos
de jornal para assinalar, com várias falácias difundidas através de polidas ferramentas
discursivas, os argumentos pelos quais acusam ao governo de Cristina Fernández de
Kirchner de atacar a “liberdade de imprensa” (Jornal Tiempo Argentino, 04/05/2011). Mas,
por meio de uma “solicitada” (http://tiempo.elargentino.com/), centenas de periodistas,
profissionais e trabalhadores de meios escritos, radiais e televisivos, representantes da
cultura, docentes e pesquisadores de comunicação social de universidades da Argentina,
declararam no seu ponto N°5 que “o manejo oligopólico arbitrário da produção e
distribuição de papel para jornais, principal insumo da imprensa gráfica, hoje em mãos de
uma maioria privada constituída após uma transferência de ações feita por pessoas físicas
que estão sendo investigadas pela justiça por ter cometido crimes contra à humanidade,
viola o artigo 13 do Pacto de San José de Costa Rica, de hierarquia constitucional no nosso
país, que assinala: „ Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios
indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel para jornais, de
freqüências radioelétricas ou de insumos e aparelhos usados na difusão de informação ou
quaisquer outro meio cujo objetivo seja o de impedir a comunicação e circulação de idéias
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
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e opiniões‟.”2 (Jornal Tiempo Argentino, 04/05/2011). O fato de que o grupo Clarín-La
Nación tenham em mãos o monopólio de produção de papel para jornais é atualmente um
condicionante para que os demais meios possam expressar livremente a sua opinião.
Por outro lado, o Grupo Clarín tem omitido sistematicamente que mantém
atualmente um conflito com os trabalhadores da empresa Artes Gráficas Rioplatense
(AGR) pela injusta demissão de 119 empregados, não-liberdade à organização sindical e
outros assuntos. Os grandes meios também omitem que a nova Lei de Meios de
Comunicação Audiovisual na Argentina exigiu às emissoras televisivas do Grupo Clarín
que cumprissem a Resolução 296 dessa Lei, incluindo sinais públicos como INCAA TV,
Telesur, Paka Paka e CN 23, mas que eles se negaram em várias oportunidades. Isso tudo
exemplifica que os meios monopólicos de comunicação da Argentina exercem uma pressão
direta para que não sejam garantidos os Direitos à Comunicação, à Memória e à Identidade,
entre outros.
5. A HISTÓRIA REAL? : A NOVA LEI DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO
AUDIOVISUAL NA ARGENTINA (2009)
No dia 10 de outubro de 2009, a Presidente Cristina Kirchner promulgou a Lei nº 26.522,
que regula os serviços de comunicação audiovisual no território da República Argentina. O
texto da Lei foi aprovado pelo Congresso daquele país após rápida e virulenta batalha
política, que envolveu de modo contundente os principais veículos de imprensa e de
radiodifusão (Estellita Lins, 2009). Pelas diversas inovações previstas em suas disposições,
a Lei é referência em termos de democratização da mídia e de instrumento de combate à
concentração do setor embora tenha sido injustamente apontada por alguns setores (com
claros interesses comerciais e políticos) como uma ofensa à liberdade de expressão e como
fundamento a uma maior intervenção do Estado na comunicação social. A nova Lei de
Meios de Comunicação Audiovisual da Argentina abre o caminho para que os meios
possam ser devidamente regulamentados. Essa lei foi injustamente chamada de “Lei
mordaça” pelo grupo Clarín que foi a grande mordaça dos meios gráficos argentinos
durante os últimos 30 anos (Papaleo, Miradas al Sur).
2 Tradução livre de Carolina I. Miño
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
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5.1 Breve resumo da situação atual dos meios gráficos e audiovisuais na Argentina
Na Argentina, o setor da mídia reproduz uma estrutura de concentração de mercado, como
acontece na maior parte dos países da América Latina, incluído o Brasil (no qual essa
concentração é ainda mais significativa). Na imprensa escrita, os principais jornais pagos
são Clarín, La Nación e Diario Popular, todos de Buenos Aires (Tabela 1). As maiores
cidades do interior da Argentina têm ainda um jornal principal (Estellita Lins, 2009).
Tabela 1 – Principais jornais diários da Argentina.
Título Tiragem média
semanal
Tiragem média
dominical
Localidade
Clarín 350.000 703.000 Buenos Aires
La Nación 152.000 253.000 Buenos Aires
El Argentino
(gratuito)
150.000 --- Buenos Aires
La Razón (gratuito) 97.000 --- Buenos Aires
Diario Popular 89.000 136.000 Buenos Aires
La Voz Del Interior
58.000 101.000 Córdoba
La Gaceta 53.000 62.000 S. Miguel de
Tucumán
Olé 51.000 46.000 Buenos Aires
El Día 41.000 38.000 La Plata
La Capital
40.000 83.000 Rosario
Diario de Los Andes
31.000 81.000 Mendoza
Fonte: IVC Argentina: disponíveis em www.ivc.org.ar. O jornal Perfil, com cerca de 54.000 exemplares
dominicais, só circula nos fins de semana. Os demais diários auditados têm tiragem média inferior a
30.000 exemplares semanais (tirada de Estellita Lins, BF. 2009. Página 4. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/4023/argentina_nova_lins.pdf?sequence=1).
O mercado de televisão aberta é relativamente concentrado na Argentina, situação
semelhante à de outros países da América Latina. As duas redes mais importantes são
Telefe, do Grupo Telefónica, e Canal 13, do Grupo Clarín. Existem outros canais
pertencentes aos mesmos grupos, que são especializados em notícias, como Todo Noticias
(TN), do Grupo Clarín, ou esportes, como TyC Sports, do mesmo grupo. As principais
redes têm cobertura nacional, seja por repetidoras próprias, seja pela reprodução em
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
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provedores de TV a cabo. No mercado de radiodifusão há uma concentração mais elevada
em AM, com duas redes que se destacam: a Radio 10 (do Grupo Infobae S.A., segundo
multimeios da Argentina) e a Mitre (do Grupo Clarín). Em FM há mais competição, com
seis emissoras destacando-se em Buenos Aires (Pop, LA 100, Metro, Principales, Vale,
Rock & Pop e Mega). No mercado de provedores de televisão por assinatura há elevada
concentração de mercado: As operadoras Multicanal e Cablevisión, ambas do grupo Clarín,
atendem a 50% dos assinantes. As demais operadoras apresentam, cada uma, uma
participação inferior a 8% do segmento. O Grupo Clarín é também importante no
provimento de banda larga, com participação de 20%. Portanto, deduz-se que o Grupo
Clarín, fundado pelo jornalista Roberto Noble em 1945 e dirigido hoje pela sua viúva,
Ernestina Herrera de Noble, é o principal conglomerado de mídia argentino. Clarín
responde por cerca de metade da tiragem de jornais de Buenos Aires e 60% da receita
publicitária a eles destinada. O grupo possui ainda títulos de menor circulação em Buenos
Aires e em outras províncias da Argentina, diretamente ou por intermédio do grupo
Cimeco, em sociedade com La Nación: La Razón, La Voz del Interior, Los Andes, Olé. O
controle dos insumos para o mercado de edições de jornais e revistas é assegurado pela
participação na fornecedora nacional de papel de imprensa, a empresa Papel Prensa (cuja
suposta apropriação ilícita está atualmente na justiça, como discutido acima) (Estellita Lins,
2009). Representando 95% do mercado interno, a Papel Prensa tem como sócios a Clarín
(49%), La Nación (22,5%) e ao governo nacional argentino (27,5%), além de acionistas
menores. Papel Prensa controla os custos de papel oferecido aos concorrentes de maneira
indireta mediante a limitação do volume de papel que esses podem comprar da empresa.
Além do descrito acima, no interior do país, Clarín, tem gerado verdadeiras cadeias que
impedem a livre expressão de organizações, ONGs, setores empresariais e universidades
(Osvaldo Papaleo, entrevistado em Miradas al Sur). Portanto, Clarín tem transformado aos
meios de comunicação da Argentina numa atividade sem nenhum tipo de ética profissional.
5.2 Meios e alinhamento político
O Grupo Clarín manteve-se alinhado aos governos até 2008. Pesa em sua trajetória o apoio
ao regime militar a partir de 1976, período durante o qual teve a oportunidade de
consolidar-se como um grupo multimídia e expandir significativamente seu porte e sua
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
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qualidade editorial (Estellita Lins, 2009). A ditadura militar havia mantido um controle
estatal das emissoras de radiodifusão e decidiram sua privatização depois da Guerra das
Malvinas para preservar esses canais nas mãos de empresários e saldar as dívidas. No final
do processo de privatização, no início do governo de Carlos Menem (1989), durante a
licitação final, o grupo Clarín logrou obter o controle do Canal 13 de televisão e das
emissoras de rádio Mitre e FM100. No início do governo de Néstor Kirchner (2003), o
grupo Clarín buscou manter-se próximo do governo, embora sem qualquer entusiasmo ou
alinhamento ideológico, o que lhe assegurou a renovação da licença de Canal 13 e a
aprovação da fusão entre Cablevisión e Multicanal. Já o grupo La Nación teve sempre
perfil conservador, mantendo-se relativamente alinhado ao pensamento liberal de centro-
direita, servindo de apoio, em especial, à UCR (Unión Cívica Radical), principal
agremiação antiperonista do país até o fim dos anos noventa.
Tanto o presidente Néstor Kirchner quanto sua esposa e sucessora, a presidente
Cristina Fernández de Kirchner, mantiveram uma estratégia de distanciamento em relação à
mídia, caracterizada pela parcimônia de declarações e de interação direta e por uma
administração política das verbas publicitárias e do direcionamento de recursos aos
veículos e por uma administração conservadora das outorgas. O grupo Clarín, evitou
embates diretos contra a política de governo durante o mandato de Néstor Kirchner
(Estellita Lins, 2009). O confronto iniciou-se em março de 2008, quando os veículos do
grupo posicionaram-se contra a decisão do governo de elevar as retenções compulsórias
que devem ser pagas pelos exportadores de soja e girassol (que ganham milhões). Essa
medida era de extrema necessidade para a manutenção das políticas de assistência social
que o governo Kirchner tinha começado. A disposição, regulamentada pela Resolução nº
125/08, resultou em uma agressiva mobilização das entidades patronais representativas do
setor empresarial rural (mas não dos pequenos produtores, que não se veriam afetados pela
medida). O conflito durou quatro meses, com greves, bloqueios de rodovias e
manifestações públicas, até que o governo revogou a medida, numa história votação
contrária ao governo pelo próprio vice-presidente do país, Julio Cleto Cobos. O Clarín foi
claro porta-voz do movimento contra o governo. Nesse embate ocorreu a quebra dos
contratos de exclusividade para a veiculação de jogos de futebol, a vedação ao processo de
fusão das operadoras Cablevisión e Multicanal, o debate da lei de meios, a pressão por
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mudanças no controle de Papel Prensa, greves motivadas por conflitos sindicais entre os
trabalhadores de jornais e as padronais, e um novo impulso à ação civil relativa à adoção
fraudulenta dos filhos de Ernestina de Noble que se arrasta há mais de uma década.
5.3 Lei argentina de Meios de Comunicação Audiovisual
A Lei argentina de Meios de Comunicação Audiovisual (Lei nº 26.522, de 10/10/2009)
dispõe sobre a prestação de serviços de comunicação audiovisual unidirecional, sem
restrição da tecnologia utilizada. Destina-se tanto à radiodifusão terrestre e por satélite
como à oferta de conteúdo por meios físicos (arts. 1º e 2º). A lei pretende regular os
critérios de outorga de licenças de operação, o monitoramento da qualidade do serviço e o
atendimento a critérios de pluralismo, de ética, de divulgação de informações de interesse
público, de respeito à Constituição e às leis, de proteção especial a crianças e jovens e de
garantias à produção local (art. 3º; art. 9º; art. 12; art. 17). A lei admite a livre prestação de
serviços conexos pelo outorgatário, diretamente ou mediante autorização particular a
terceiros. Entre esses serviços conexos encontram-se a provisão, transporte e acesso a
informação, os serviços telemáticos em geral e a prestação direta pelo licenciado de
serviços de teletexto e de guia eletrônica da programação (art. 6º). O texto dispõe sobre a
estrutura e operação de uma autoridade de aplicação da lei, a Autoridad Federal de
Servicios de Comunicación Audiovisual, de uma comissão mista permanente para
acompanhar o setor no Congresso argentino e de dois conselhos assessores vinculados à
autoridade de aplicação, o Consejo Federal de Comunicación Audiovisual, composto de
quinze membros, para acompanhar a evolução da política de comunicação audiovisual,
relatando anualmente à comissão mista o desenvolvimento do setor e o cumprimento da
norma legal, e o Consejo Asesor de la Comunicación Audiovisual y de la Infancia para
estabelecer critérios de qualidade da programação audiovisual e fomentar a produção de
conteúdo adequado a crianças e jovens. É criada, uma defensoria pública dedicada à
comunicação audiovisual, com funções de ouvidoria (arts. 10 a 20). A lei consolida,
também, a estrutura de serviços de radiodifusão estatal, mediante a criação da entidade
Radio y Televisión Argentina Sociedad del Estado (RTA-SE), empresa pública destinada a
operar os veículos de radiodifusão estatais, produzir conteúdo audiovisual de interesse do
governo e difundir programação regional (arts. 119 a 144).
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Segundo o consultor da legislatura brasileira, Felipe B. Estellita Lins (2009), a lei
argentina oferece alternativas interessantes para o Brasil em três aspectos: i) a construção
de um marco legal que seja relativamente independente de tecnologia e natureza do serviço
de comunicação audiovisual, de modo a ficar preservado diante do avanço da tecnologia e
do surgimento de usos mais eficazes do espectro radioelétrico; ii) uma simplificação dos
procedimentos administrativos e da concepção regulatória dos serviços, para reduzir o
emaranhado de leis, normas e cadastros que regem as atividades de transporte e de
formatação do conteúdo audiovisual em nosso país; e iii) uma regulação que limite a
concentração de mercado e promova o pluralismo sem criar empecilhos a uma atividade
empresarial saudável, competitiva, que mantenha uma relação equilibrada com o regulado.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo descrito acima, pelo discutido durante a ACIEPE, particularmente durante a exibição
do filme “A história oficial” (debate orientado pela Dra. Adriana M. Bogado) e pela minha
própria experiência como cidadã argentina, consumidora de notícias, usuária de páginas
web argentinas e membro de um grupo familiar que foi diretamente afetado pelos sucessos
acontecidos durante a ditadura militar (além de amiga de pessoas que tiveram seus parentes
sequestrados e ainda desaparecidos) considero que o papel dos meios de comunicação na
Argentina foi, e ainda o é, determinante para a não garantia do Direito à Verdade e à
Justiça. Desde meu ponto de vista, a Lei de Meios de Comunicação Audiovisual vêm
contribuir para a mudança positiva desta realidade, mas enfrenta atualmente alguns
empecilhos, diretamente relacionados com a adequada implementação e fiscalização do
cumprimento do que marca a Lei pelos grupos hegemônicos e monopólicos. Exemplo disto
é a negativa desses grupos a veicularem certos canais de TV, públicos e abertos, como, por
exemplo, o canal Paka-Paka (infantil) e o INCAA-TV (que difunde produções
cinematográficas nacionais e latinoamericanas).
Considero, finalmente, que para que o Direito à Verdade e à Justiça seja
devidamente garantido nos nossos países é imprescindível que se continue avançando na
direção de possibilitar que a “história oficial” se corresponda com a “história real” e para
evitar que os grandes meios enganem as pessoas e as façam acreditar num filme de ficção.
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7. AGRADECIMENTOS
Agradeço aos Professores Maria Inês Rauter Mancuso e Jorge Leite Júnior do
Departamento de Sociologia da UFSCar pela oportunidade oferecida a mim de participar de
uma atividade na qual convergiram vários olhares sobre a temática dos Direitos Humanos, a
través da estética cinematográfica. Agradeço também à Terui, bolsista de extensão da
ACIEPE “Direitos humanos pelo cinema”, pela sua disposição e trabalho, que ajudaram a
garantir o sucesso da ACIEPE. Agradeço aos professores que participaram dos debates
durante a ACIEPE. Agradeço também ao meu companheiro Sergio Daniel Quintana pela
leitura crítica deste artigo, pelas sugestões e pelo amor. A minha gratidão e reconhecimento
aos 30.000 detentos/desaparecidas desde o último golpe cívico militar na Argentina.
Agradeço às Madres e Abuelas de Plaza de Mayo pelo exemplo diário de luta e trabalho.
Hasta la victoria!
8. FONTES CONSULTADAS
Abuelas de Plaza de Mayo. Las abuelas y la genética: el aporte de la ciencia en la
búsqueda de los chicos desaparecidos. Livro editado pela associação de Direitos Humanos
Abuelas de Plaza de Mayo. Disponível em: http://www.abuelas.org.ar
Cecchini D. 2011. La peor mentira de Clarín. Diario Miradas al Sur, año 3, Ed. 154, 30 de
abril de 2011.
Estellita Lins, BF. 2009. Argentina: nova Lei dos Meios Audiovisuais. Biblioteca Digital da
Câmara dos Deputados. Centro de Documentação e Informação. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br.
Jornal Página/12 03/08/2011. La ESMA era una verdadera maternidad. Por Alejandra
Dandan. http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-173638-2011-08-03.html
Jornal Tiempo Argentino 26/09/2009. http://www.elargentino.com/nota-59632-Clarin-
compro-Papel-Prensa-con-la-familia-Graiver-secuestrada.html
Jornal Tiempo Argentino 04/05/2011. http://tiempo.elargentino.com/notas/cuando-libertad-
de-expresion-se-vuelve-orquesta-de-mentira
Jornal Miradas al Sur. 26/09/2009. Clarin compro Papel Prensa con la familia Gravier
secuestrada. Entrevista a Osvaldo Papaleo, por Felipe Deslarmes. Disponível em:
http://www.elargentino.com/nota-59632-Clarin-compro-Papel-Prensa-con-la-familia-
Graiver-secuestrada.html
Kollman R, Hauser I. 2011. Un paso en el camino a la verdad. Diario Página/12,
08/07/2011.
Presidencia de la Nación Argentina. 2009. Lei nº 26.522 (10/10/2009). Regula os serviços
de comunicação audiovisual no âmbito territorial da República Argentina.
Presidencia de la Nación Argentina. 2011. 24 de Marzo: Dia de reflexión por la memoria,
la verdad y la justicia. Tiempo Argentino, no. 310, pág. 21.
Carolina I. Miño ACIEPE DDHH 2011
24
Quadrat, S. V. 2003. O direito à identidade: a restituição de crianças apropriadas nos
porões das ditaduras militares do Cone Sul. História, São Paulo 22(2): 167-181.
APÊNDICE
Depoimento da premiada jornalista Miriam Lewin, sobrevivente do centro clandestino de
detenção conhecido como ESMA (Ex-Escola de Mecânica da Armada), sobre o plano
sistemático de roubo de bebês durante a ditadura de 1976-1984. Transcrição direta (em
espanhol) da matéria publicada no dia 03 de agosto de 2011 no jornal Página/12 da
Argentina e assinada pela jornalista Alejandra Dandan. A ESMA foi reconstruída e
inaugurada como Centro Cultural durante o governo de Néstor Kirchner.
“La ESMA era una verdadera maternidad” por Alejandra Dandan
La periodista Miriam Lewin, que estuvo secuestrada en el centro clandestino de la Marina, contó
cómo funcionaba la enfermería y cómo actuaban los represores con las embarazadas para
quedarse con los bebés.
Miriam Lewin habló de la enfermería en la Escuela Mecánica de la Armada, del
parto de Patricia Roisinblit, de cómo cubrieron al bebé con una frazada y lo pusieron sobre
el pecho de su madre. Dijo que todavía cree que las dos compañeras que la atendieron
asistieron más de quince partos ahí. Explicó cómo el represor Héctor Febres pedía a las
parturientas cartas con indicaciones y consejos, convenciéndolas de que los niños iban a ser
entregados a las familias. “Treinta años después –dijo Lewin– todavía me reprocho cómo
no nos dábamos cuenta de que se iban a quedar con los bebés. Si se quedaban con las casas,
las vidas, con nuestros cuerpos, quedarse con nuestros bebés era algo natural para ellos,
pero, para nosotros, pensarlo era algo monstruoso. A ninguna se le hubiese pasado por la
cabeza que un ser humano quisiera hacer tanto mal a otro al punto de quedarse con su hijo.
Yo no lo podía concebir.”
Lewin dejó de hablar en ese momento. La jueza María del Carmen Roqueta, a cargo
del Tribunal Oral Federal 6, llamó a un cuarto intermedio. Sobreviviente pero a la vez
testigo e investigadora del terrorismo de Estado, Lewin reconstruyó durante cuatro horas
los días en el centro de extermino y, especialmente, el destino de las embarazadas. Su
testimonio hizo eje esta vez en el robo de bebés y abrió un nuevo tramo del juicio por el
plan sistemático de robo de niños durante la dictadura, que a partir de ahora ingresa en la
ESMA, donde funcionó una de las maternidades clandestinas. La declaración entró en
tensión cuando el abogado defensor del represor Jorge Acosta la acosó a preguntas, lentas y
dispersas. “Esto es un juicio oral –le recordó la jueza–, intente ser ágil con las preguntas,
doctor, y si necesita ayuda, tráigase un asistente.”
A Lewin la secuestraron en mayo de 1977, a los 19 años. Pasó por lo que cree era la
comisaría 44ª y luego por una casa en la calle Virrey Ceballos, de la Fuerza Aérea, donde
estuvo diez meses. “Hasta que un día me dijeron que me iban a trasladar a un centro de
recuperación, no me dijeron la ESMA, me dijeron que iba a estar un tiempo, que iba a
mantener contacto con mi familia y después iba a ir a una cárcel para cumplir una
condena.”
Llegó a la ESMA en el baúl de un coche. Su caso estuvo a cargo del prefecto Raúl
Scheller como oficial interrogador. Al comienzo, la alojaron en Capucha. “En un momento,
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en el que yo estaba ahí, comiendo sandwiches de carne mal oliente y tazones de mate
cocido, pido ir al baño y cuando me levanto un poco el antifaz para no caerme veo, para mi
sorpresa, en el pasillo que conducía al baño, a una chica con un bebé en brazos.”
Con el tiempo supo que era Alicia Elena Alfonsín de Cabandié. “Era bajita, tenía el
pelo entre castaño y rubio, la piel blanca, muy bonita, los pechos hinchados y el vientre
hinchado como quien dio a luz hace muy poco. Su bebé estaba recién nacido –dijo– y ella
tenía un camisón azul largo. La escena me chocó, me parecía discordante en el entorno.
Ella estaba como enseñándoles con alegría el bebé a otras mujeres.” Un poco más atrás
estaba otra chica, morena, pelo largo, más delgada, con un pañuelo en la cabeza. También
estaba embarazada. Años más tarde, Lewin supo que era Liliana Pereyra.
Sólo algunas prisioneras tenían un permiso “no escrito” para acompañar a las
embarazadas, explicó. Una era Elisa Tokar; otra, Sara de Osatinsky, encargada de
acompañar los partos, partos que Lewin hoy enumera en más de quince. Y también estaba
Amalia Larralde, enfermera. “Sabíamos que el responsable era el prefecto Febres, el Gordo
Selva, entraba y salía con mucha frecuencia del cuarto de embarazadas.” Ese cuarto estaba
camino al Pañol, con la puerta generalmente cerrada. Lewin la vio entreabierta una vez y,
adentro, camitas y una cómoda. “Por las compañeras que tenían autorización para
acompañarlas –le dijo al fiscal Martín Niklison– sabíamos que los bebés los iban a entregar
a las familias mientras ellas permanecían secuestradas.” Con el tiempo, “nos fuimos dando
cuenta de que la ESMA era una verdadera maternidad donde se concentraban mujeres de
distintos centros clandestinos que no tenían facilidad de albergar embarazadas o de llevar
adelante el parto”.
En noviembre de 1978 llegó a la ESMA Patricia Roisinblit. Lewin la conocía como
Mariana, la mujer de Matías, es decir, de José Manuel Pérez Rojo, con quienes había
militado en el oeste del conurbano. Tenían una hija de más de un año y ahora Patricia
estaba otra vez embarazada. Los marinos la pusieron en el tercer piso, en un cuarto sin
ventilación ni luz natural. “Yo estaba autorizada para hablar con ella y acompañarla –dijo
Lewin–, así que pasaba a verla. Le daban refuerzo de comida, uno o dos sachets de leche al
día.”
Patricia estaba convencida de que su hija había quedado con sus padres, de que
había estado secuestrada con Matías en una especie de quinta en el oeste, donde había
quedado su marido. Lewin intentó convencerla de que para salvarse debía quedarse en la
ESMA y también habló con Scheller. Pero el prefecto le recordó algo que explica por qué
la ESMA era para algunas de las parturientas un lugar de paso: “Nos dijo que no podía
hacer nada –contó Lewin–, porque tanto ella como el bebé pertenecían a la Fuerza Aérea”.
Un día le dijeron que Patricia estaba dando a luz y la llevaron al sótano: “Abro la puerta de
la enfermería, la veo, le estaban cortando el cordón umbilical y estaban envolviendo al
bebito y colocándoselo en el pecho. Era un varón. Estaban Sara y Amalia y había un
médico que después identifiqué como Magnacco”. Lewin siguió: “Patricia estaba feliz, creo
que nunca se imaginó lo que iba a pasar. Y dijo que se llamara Rodolfo... Rodolfo le puso.
El médico le dijo que se había portado muy bien y había sido muy valiente. Nos quedamos
mirando el bebé, era lindo... rubiecito, calculo que pesaría más de tres kilos. Y después no
la vi más”.