a história do pensamento economico - roberto heilbroner

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  • A HISTRIA DOPENSAMENTO ECONMICO

  • ROBERT HEILBRONER

    A HISTRIA DOPENSAMENTO ECONMICO

  • FundadorVICTOR CIVITA

    (1907 - 1990)

    Editora Nova Cultural Ltda.

    Copyright desta edio 1996, Crculo do Livro Ltda.

    Rua Paes Leme, 524 - 10 andarCEP 05424-010 - So Paulo - SP

    Traduo publicada sob licena da Simon & Schuster.Todos os direitos reservados., incluindo o direito de

    reproduo no todo ou em partes.

    Ttulo original: The Wordly Philosophers - Robert L. HeilbronerCopyright 1953, 1972, 1980, 1992

    Direitos de traduo: Crculo do Livro Ltda.

    Traduo: Therezinha M. DeutschSylvio Deutsch

    Consultoria: Paulo Sandroni

    Impresso e acabamento:DONNELLEY COCHRANE GRFICA E EDITORA BRASIL LTDA.

    DIVISO CRCULO - FONE (55 11) 4191-4633

    ISBN 85-351-0810-6

  • Robert L. Heilbroner vem estudando os grandes economistasdesde que foi apresentado a eles na Universidade de Harvard, em1936. Formou-se summa cum laude e Phi Beta Kappa; passou apraticar economia no governo, em negcios e completou os estudosde graduao na New School for Social Research. Os Filsofos Pro-fanos, agora na sexta edio, foi seu primeiro livro e alcanou su-cesso imediato assim que foi publicado, em 1953. Desde ento, foitraduzido para doze idiomas e tornou-se a introduo padro daeconomia em muitas faculdades e universidades. Entre seus outroslivros incluem-se The Future as History (1959), The Great Ascent(1963), An Inquiry into the Human Prospect (1975), Business Ci-vilization in Decline (Penguin 1977) e The Nature and Logic ofCapitalism. O dr. Heilbroner professor de Economia de NormanThomas na New School for Social Research, em Nova York, e fezconferncias para numerosas audincias do governo e de universi-dades. Escreve para o jornal New Yorker. casado e mora nacidade de Nova York.

  • AS VIDAS, POCAS E IDIASDOS MAIORES PENSADORES

    ECONMICOS

    SEXTA EDIO

  • Aos meus mestres

  • PREFCIO DA SEXTA EDIO

    Esta a sexta edio revisada do livro que escrevi h trintae quatro anos. Ela torna Os Filsofos Profanos, em suas vriasedies, mais velho do que eu era quando o escrevi. O imprevistorumo e a vida longa assumida por esta aventura, empreendidaquando eu ainda era um estudante fazendo o curso de graduao,servem como desculpa para contar sua histria antes de dizer al-gumas palavras a respeito das mudanas que foram feitas nestasexta edio.

    Enquanto prosseguia meus estudos, no incio dos anos 50, euganhava para viver trabalhando como escritor free-lance e me aven-turava bastante longe da economia quando a necessidade exigiaou uma boa ocasio se apresentava. Como resultado da impressocausada por um ou outro trabalho, Joseph Barnes, o editor-chefeda Simon & Schuster, convidou-me para almoar, a fim de conver-sarmos sobre vrias idias a respeito de livros. Nenhuma delas mepareceu muito boa, a conversa j havia ficado desanimada quandoa sobremesa chegou, e compreendi que aquele primeiro almoo como meu editor no iria resultar em contrato para escrever um livro.Barnes, no entanto, no desistia facilmente. Comeou a me per-guntar sobre o meu curso de graduao na New School for SocialResearch e me vi falando com entusiasmo sobre um seminrio arespeito de Adam Smith que eu fazia sob a inspirada orientaode Adolph Lowe, sobre quem o leitor ir saber mais no decorrerdeste livro. Antes da sobremesa ns dois sabamos que eu tinhaencontrado o tema para o meu livro. Na primeira ocasio, assimque a aula terminou, apressei-me a falar ao professor Lowe sobreminha inteno de escrever um livro que focalizasse a evoluo dopensamento econmico.

    Exemplo tpico do mestre alemo em sua melhor fase, Loweirritou-se:

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  • Voc no pode fazer isso! declarou, com firmeza professoral.Mas eu tinha a forte convico de que podia faz-lo, convico

    essa nascida, como escrevi em algum lugar, da necessria combi-nao de confiana e ignorncia que apenas um estudante podeter. Entre trabalhos free-lances e os estudos, produzi os trs pri-meiros captulos e, um tanto ansioso, mostrei-os ao professor Lowe.Depois de os ter lido, esse homem notvel (que hoje est em suadcima dcada e ainda meu mais veemente e severo crtico) disse:

    Voc tem que fazer isso!E eu fiz, com a ajuda dele.Uma vez escrito o livro, era preciso encontrar um ttulo. Eu

    sabia que a palavra economia seria mortal, impediria at o mnimosucesso de venda, ento espremi o crebro em busca de uma boasubstituta. E aconteceu um segundo e crucial almoo com FrederickLewis Allen, editor da revista Harpers, a quem forneci uma sriede trechos; ele foi extraordinariamente gentil e prestativo. Contei-lhe sobre minha dificuldade com o ttulo e disse-lhe que estavapensando em dar ao livro o nome The Money Philosophers (OsFilsofos do Dinheiro), se bem que dinheiro no fosse bem a pa-lavra exata que eu queria.

    Voc quer dizer worldly (profano) sugeriu ele. O almoo por minha conta! garanti.Meus editores no ficaram to contentes como eu fiquei com

    esse ttulo, e depois que, para grande surpresa de todos, o livrovendeu bem, propuseram que mudssemos o ttulo para The GreatEconomists (Os Grandes Economistas). Felizmente isso no acon-teceu. Talvez eles achassem que o pblico no seria capaz de lidarcom a palavra worldly, que iria aparecer escrita wordly emmilhares de trabalhos e provas de estudantes ou talvez previssemconfuses como uma que me contaram, muitos anos depois. Umestudante pediu na biblioteca de sua escola um livro de um autorde quem esquecera o nome, mas o ttulo era, pelo que se lembrava,A World Full of Lobsters [Um Mundo Repleto de Lagostas]1.

    Com o passar dos anos, The Worldly Philosophers (Os FilsofosProfanos) vendeu mais exemplares do que eu havia imaginado serpossvel e induziu, segundo fui informado, dezenas de milhares deinsuspeitadas vtimas a fazerem o curso de economia. No possoresponder pelo sofrimento que essas vtimas tiveram em conse-

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    1 Trata-se de um jogo de palavras. O ttulo (trocadilho) The Wordly Philosophers pode ter umapronncia parecida para um estudante desavisado com A World Full of Lobsters (N. do E.)

  • qncia, mas tive o prazer de ouvir afirmarem que seu interesse poressa matria foi despertado pela viso da economia que o livro oferece.

    Esta edio difere das anteriores em trs aspectos. O primeiro que, como antes, ler suas pginas com novos olhos deu-me aoportunidade de retificar aqueles erros que ocorrem inapelavel-mente nos originais ou que so revelados por estudos e pesquisasrealizados depois da publicao. Foi uma oportunidade, tambm,de rever e alterar nfases e interpretaes que refletiam apenasminha viso influenciada pelo envolvimento. Essas mudanas sopequenas, percebidas apenas por estudiosos do tema e no erampor si s suficientes para justificar uma nova edio. Nesta revisomais recente, foi possvel incluir algumas referncias ao colapsodo comunismo sovitico, ainda iminente quando a sexta edio foipara o prelo.

    A segunda modificao mais importante. Quando Os Fil-sofos Profanos foi publicado pela primeira vez, John Kenneth Gal-braith acolheu-o com a mais generosa das reaes, mas apontouduas pequenas imperfeies. A primeira era a ausncia de pelomenos uma meno a Alfred Marshall, o grande economista vito-riano. Essa omisso foi imediatamente remediada. A segunda im-perfeio era a ausncia de algumas notas de p de pgina quehaviam sido deixadas fora pelo temor de assustar e afugentar lei-tores. Galbraith tinha razo nas duas restries que fez, mas eurelutava em modificar o nvel de apresentao do livro que obtiverato grande aceitao. No entanto, no tive sossego por causa daausncia de citaes de apoio e, afinal, nesta edio fiz as pazescom minha conscincia na forma de notas reunidas no fim do livro.Devo acrescentar que as anotaes das pesquisas com base nasquais o texto original foi escrito desapareceram h muito tempo;por isso, para citar as fontes nas notas, elas tiveram de ser pro-curadas em parte na memria, em parte na erudio e boa vontadedo dr. Jaspal Chatha, a quem devo muito. Houve alguns pontosem que todos os esforos fracassaram; eu os identifiquei nas notas.

    O mais importante de tudo, ao lado do entusiasmo colocadona produo desta edio revisada, era o desejo de considerar no-vamente o tema bsico nos captulos finais. Para isso eu tive delidar, antes de mais nada, com uma larga escala de vises, espe-ranas e pressgios dos economistas modernos. Como havia desco-berto nas cinco edies anteriores, nenhum dos prognsticos geraistinha se concretizado perfeitamente, testemunhando assim tanto

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  • a mudana institucional da realidade do sistema quanto o fracassoda cincia econmica moderna em ir adiante com uma imposio ta-xativa sobre a lgica econmica de nossa presente situao histrica.

    Mais do que tentar visualizar um outro cenrio no futuro,decidi mudar os ltimos captulos de maneira a enfatizar a naturezafundamental da pesquisa econmica em si mesma. Confio que estanova nfase ir interessar meus leitores levando-os a pensar sobrea economia como uma forma de investigao social que penetramais profundamente do que as narrativas dramticas dos filsofosprofanos. A economia um captulo cada vez mais importante nahistria do auto-entendimento humano sobre seus prprios direitos,mas no um captulo que se sustenta sozinho. O maior fascnioda filosofia econmica reside em que suas complexas anlises deganhos e perdas so os veculos para dramas muito mais profundos significados morais, contestaes do poder e, em um nvel muitoprofundo, as definitivas tenses dos vnculos sociais. O que talvezseja mais surpreendente na Histria do pensamento econmico que nem seus autores nem suas audincias deles costumam terconscincia dos aspectos fundamentais da investigao que elesesto realizando.

    Mas isso tudo est por ser demonstrado. Deixe-me concluireste cumprimento muito pessoal agradecendo aos meus leitores,principalmente estudantes e mestres, que foram atenciosos o bas-tante para me enviar comentrios de correo, discordncia ou apro-vao, todos igualmente bem-vindos, e expressar minha esperanade que Os Filsofos Profanos continue abrindo os horizontes daeconomia para leitores que pretendam tornar-se pescadores de la-gostas ou editores, assim como para aqueles coraes valentes quedecidam ser economistas.

    Robert L. Heilbroner

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  • IINTRODUO

    Este um livro sobre um punhado de homens que tm umcurioso direito fama. Segundo as regras dos livros de Histriade um colegial, esses homens nunca existiram: no comandaramexrcitos, no enviaram homens para a morte, no construramimprios e tiveram pouco a ver com os tipos de decises que fazema Histria. Alguns deles conseguiram certo renome, mas nenhumse tornou heri nacional; outros poucos foram claramente ofendidos,mas nenhum foi apontado como criminoso nacional. No entanto, oque eles fizeram foi mais decisivo para a Histria do que muitasaes de estadistas que foram envoltos em cintilante glria, pois,na maioria das vezes, perturbaram muito mais do que o ir e virde exrcitos de uma fronteira para outra, e tiveram mais poderespara o bem e para o mal do que os ditos de reis e de legisladores.Isso porque eles moldaram e agitaram as mentes dos homens.

    E como quem consegue atingir a mente do homem detm umpoder maior do que o da espada e o do cetro, esses homens moldarame agitaram o mundo. Poucos deles nem sequer ergueram um dedoem ao; na maior parte, trabalharam como estudiosos quieta-mente, despercebidos e sem dar muita importncia ao que o mundotinha a dizer a seu respeito. Mas, em seu rastro, deixaram impriosabalados e continentes arrasados; fortaleceram e solaparam regimespolticos; colocaram classes contra classes e at mesmo naes con-tra naes no com intrigas maldosas, mas com o extraordinriopoder de suas idias.

    Quem foram esses homens? Ns os conhecemos como GrandesEconomistas, mas estranho como sabemos pouco a respeito deles. de pensar que em um mundo dilacerado por problemas econ-

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  • micos, um mundo que se preocupa constantemente com interesseseconmicos e fala em resultados econmicos, os grandes economistasdeveriam ser to familiares quanto os grandes filsofos e estadistas.No entanto, so apenas sombras no passado e os temas que elesdebateram to apaixonadamente so olhados com uma espcie derespeito distante. A economia, disseram, inegavelmente impor-tante, mas fria e difcil, portanto melhor deix-la para aquelesque se sentem em casa nas obscuras paragens do pensamento.

    Nada pode estar mais longe da verdade do que isso. Um homemque considera a economia apenas como tema impors do mercado noapenas so essenciais para que se entenda o mundo de Adam Smith,como tambm fundamentam o mundo muito diferente de Karl Marxe o mundo mais diferente ainda no qual vivemos hoje em dia. Desdeque todos estamos, conscientes disso ou no, sob a soberania dessasleis, compete a ns examin-las com o maior cuidado.

    As leis do mercado de Adam Smith so basicamente simples.Elas nos dizem que a influncia de certo tipo de costume em de-terminada estrutura social pode trazer resultados perfeitamen paraas nossas vidas de trabalho dirio; as experincias que eles fizeramno podiam, como as dos cientistas, ser efetuadas no isolamentode um laboratrio. As noes dos grandes economistas foram deabalar o mundo, e seus erros podiam ser no mnimo calamitosos.

    As idias dos economistas e dos filsofos polticos,1 escreveulorde Keynes, ele mesmo um grande economista, tanto quando estocertas ou quando esto erradas, so mais poderosas do que se pensa.Sem dvida, o mundo governado por pouco mais do que isso. Oshomens prticos, que se acreditam imunes a qualquer influncia in-telectual, geralmente so escravos de algum economista j falecido.Os lderes loucos, que ouvem vozes vindas do ar, destilam sua exaltaode algum escrevinhador acadmico de alguns anos atrs. Tenho certezade que o poder de capitais investidos enormemente exagerado emcomparao com a gradual usurpao de idias.

    Na verdade, nem todos os economistas foram tits. Milharesdeles escreveram textos, alguns sendo verdadeiros monumentos estupidez, e exploraram mincias com o zelo de estudiosos medie-vais. Se hoje em dia a economia tem pouco glamour, se ainda lhefalta a sensao de empolgante aventura, no se pode culpar aningum mais a no ser seus prprios praticantes. Pois os grandeseconomistas no foram meros intelectuais trapalhes. Eles tomaramo mundo inteiro como tema e retrataram esse mundo em dziasde situaes importantes de fome, de desespero, de esperana.

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  • A evoluo de suas opinies herticas como senso comum e a re-velao do senso comum como supersties constituem nada menosdo que a construo gradual da arquitetura intelectual de grandeparte da vida contempornea.

    muito difcil imaginar um grupo mais heterogneo de ho-mens aparentemente to pouco determinados a remodelar o mundo.

    Havia entre eles um filsofo e um demente, um clrigo e umcorretor de valores, um revolucionrio e um nobre, um esteta, umctico e um vagabundo. Eram de todas as nacionalidades, de todosos nveis sociais, de todos os tipos de temperamento. Alguns erambrilhantes, outros eram maantes; alguns agradveis, outros insu-portveis. Pelo menos trs deles amealharam as prprias fortunas,mas, como tantos, jamais conseguiram dominar a mais elementareconomia de suas finanas pessoais. Dois eram importantes homensde negcios, um jamais passou de caixeiro-viajante, outro dissipousua fortuna.

    Seus pontos de vista em relao ao mundo eram to variadosquanto suas fortunas nunca existiu um grupo de pensadoresto briguentos. Um deles era um perptuo advogado dos direitosfemininos; outro insistia em que as mulheres eram evidentementeinferiores aos homens. Um garantia que os cavalheiros eram ape-nas brbaros disfarados, enquanto outro afirmava que os que noeram cavalheiros eram selvagens. Um deles que era muito rico exigia a abolio dos ricos; outro inteiramente pobre re-provava a caridade. Vrios deles garantiam que, mesmo com todosos seus defeitos, este era o melhor mundo possvel; vrios outrosdevotaram suas vidas para provar que no era.

    Todos eles escreveram livros e nunca se viu biblioteca maisvariada. Um ou dois escreveram best sellers que chegaram at asenlameadas cabanas da sia; outros tiveram que pagar para verseus obscuros trabalhos publicados e jamais atingiram pblicomaior do que os mais restritos crculos. Poucos escreveram numalinguagem que acelerou a pulsao de milhes; outros no menosimportantes para o mundo escreveram numa prosa que confundeo crebro.

    No eram as personalidades, as profisses, as tendncias, nemmesmo as idias o que mantinham esses homens unidos. O deno-minador comum entre eles era algo mais: uma curiosidade comum.Todos eram fascinados pelo mundo ao seu redor, por sua comple-xidade e sua aparente desordem, pela crueldade que tantas vezes

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  • se mascara de hipocrisia e pelo sucesso do qual muitos nem sequerse davam conta. Todos eram absorvidos pelo comportamento deseu companheiro homem, primeiro pelo modo que ele criava a ri-queza, depois pelo modo que ele passava por cima do vizinho afim de se apoderar do seu quinho.

    Eis por que eles podem ser chamados de filsofos profanos,pois buscavam encerrar em um esquema de filosofia a mais profanadas atividades humanas a luta pela riqueza. Talvez essa noseja a mais elegante espcie de filosofia, mas nem por isso deixade ser a mais intrigante e a mais importante. Quem pode pensarem exigir Ordem e Planejamento em uma famlia pauprrima ounum especulador beira da runa? Ou esperar respeito a Leis ePrincpios de uma multido marchando nas ruas ou de um qui-tandeiro sorrindo para seus fregueses? No entanto, foi a f dosgrandes economistas, que pareciam nada ter em comum entre si,que pde ser tecida numa s tapearia na qual observada asuficiente distncia o mundo triturador podia ser visto em ordeiraprogresso e o tumulto apresentava-se resolvido em harmonia.

    Sem dvida, tratava-se de uma f imensa! Contudo, por maisespantoso que parea, ela se mostrou justificada. Uma vez que oseconomistas tinham conseguido desfraldar seus modelos diante dosolhos das geraes, o indigente e o especulador, o quitandeiro e amultido deixaram de ser atores incongruentes que se haviam,inexplicavelmente, encontrado reunidos num mesmo palco; cadaqual compreendeu que, achasse agradvel ou no, tinha de repre-sentar um papel que era essencial para a continuidade do dramahumano em si. Quando os economistas assumiram seus papis, oque at ento havia sido uma rotina ou um mundo catico tornou-seuma sociedade organizada, com sua prpria vida significativamentehistrica.

    nessa busca pela ordem e pelo significado da histria socialque se encontra a alma da economia. , tambm, o tema centraldeste livro. No estamos empreendendo uma trajetria de anlisedos princpios, mas sim uma viagem atravs da histria formadorade idias. No nosso caminho, no vamos encontrar apenas peda-gogos, mas tambm muitos indigentes, muitos especuladores, pes-soas arruinadas e pessoas triunfantes, turbas e, aqui e ali, comer-ciantes. Teremos que recuar a fim de redescobrir as razes da nossaprpria sociedade na confuso dos padres sociais que os grandeseconomistas discerniram, e, assim fazendo, poderemos chegar aconhecer os grandes economistas em si mesmos no apenas por-

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  • que a personalidade deles em geral fosse pitoresca, mas sim porquesuas idias exibiam o perfil de quem as produzia.

    Seria conveniente se comessemos diretamente com o primeirodos grandes economistas o prprio Adam Smith. Mas Adam Smithviveu no tempo da Revoluo Americana e temos que levar em contao fato impressionante de que seis mil anos de Histria j se passarame nenhum filsofo profano dominou a cena at agora. Um fato estranho:o homem est s voltas com o problema econmico desde antes dotempo dos faras e nesses sculos produziu cientistas, pensadorespolticos, historiadores, artistas s dzias, estadistas s centenas. Porqu, ento, no apareceram economistas?

    Vamos precisar de um captulo para descobrir. Enquanto notivermos investigado a natureza de um mundo mais antigo e maisduradouro do que o nosso um mundo em que um economistateria sido no s desnecessrio, mas tambm impossvel , nopoderemos chegar ao estgio em que os grandes economistas ocu-param seus lugares. Nossa maior preocupao ser o punhado dehomens que viveram nos dois ltimos sculos. Primeiro, no entanto,precisamos compreender o mundo que precedeu a entrada delesem cena e temos que considerar que o velho mundo deu origem idade moderna a idade dos economistas entre a sublevaoe a agonia de uma revoluo mais importante.

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  • II

    A REVOLUO ECONMICA

    Desde que desceu das rvores, o homem encarou o problemada sobrevivncia, no como indivduo, mas como membro de umgrupo social. A continuidade de sua existncia testemunho deque ele conseguiu resolver o problema; mas a continuidade tambmda carncia e da misria, at mesmo nas mais ricas naes, evi-dncia de que essa soluo foi, no mnimo, parcial.

    No entanto, o homem no pode ser severamente censuradopor seu fracasso em construir um paraso na Terra. difcil ar-rancar um meio de vida da superfcie deste planeta. A imaginaose confunde quando se tenta pensar nos interminveis esforos quedevem ter sido despendidos nas primeiras domesticaes de ani-mais, na descoberta de sementes para plantio, no primeiro trabalhode extrao de minrio. Na verdade, o homem s conseguiu per-petuar-se por ser uma criatura socialmente cooperativa.

    Mas justamente o fato de o homem depender de seu seme-lhante tornou o problema da sobrevivncia extraordinariamentecomplicado. O homem no uma formiga, convenientemente equi-pada com instintos sociais j ao nascer. Ao contrrio, ele parecefortemente inclinado a ter uma natureza egocntrica. Se suas forasfsicas, relativamente fracas, o foram a procurar cooperao, seusimpulsos ntimos ameaam o tempo todo romper o trabalho emconjunto com seus companheiros.

    Na sociedade primitiva, a batalha entre o egocentrismo e acooperao resolvida pelo meio ambiente; quando o espectro damorte pela inanio vive encarando uma comunidade de frente como a dos esquims , a pura necessidade de assegurar a prpriaexistncia impele a sociedade a uma complementao cooperativa

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  • dos trabalhos dirios. Sob condies menos severas, dizem-nos osantroplogos, homens e mulheres realizam suas obrigaes regu-lares sob a poderosa orientao das universalmente aceitas normasde parentesco e reciprocidade: em seu maravilhoso livro dobre osbosqumanos da frica, Elizabeth Marshall Thomas1 descreve comoum rix dividido entre parentes e parentes dos parentes at que,no fim, ningum come mais do que os outros. Mas essa pressotangvel do meio ambiente ou essa rede de obrigaes sociais noexiste nas comunidades desenvolvidas. Quando homens e mulheresno lutam ombro a ombro, empenhados em tarefas diretamenteligadas sobrevivncia sem dvida quando dois teros da po-pulao jamais toca na terra, penetra em minas, constri com asprprias mos, entra em uma fbrica ou quando reclamam quea unio entre parentes desapareceu, a perpetuao do animal hu-mano torna-se uma notvel proeza social.

    mais notvel ainda se a existncia da sociedade pender porum fio de cabelo. Uma comunidade moderna encontra-se mercde milhares de perigos: seus fazendeiros podem no produzir co-lheitas suficientes, seus ferrovirios podem enfiar na cabea de setornar guarda-livros ou seus guarda-livros podem resolver tornar-seferrovirios; se poucos puderem oferecer seus prstimos como mi-neiros, como peritos na pudlagem do ao, como candidatos a vrioscursos de engenharia em uma palavra, se algumas das milharesdas entrelaadas tarefas a serem desempenhadas pela sociedadeno forem realizadas , a vida industrial se tornar desesperada-mente desorganizada. A cada dia a comunidade encara a possibi-lidade de um colapso no das foras da natureza, mas dos im-previsveis desvios humanos.

    Ao longo dos sculos o homem encontrou apenas trs caminhospara evitar essa calamidade.

    Assegurou sua continuidade organizando a sociedade em tornode tradio, transmitindo as vrias e necessrias tarefas de geraoa gerao, de acordo com os usos e costumes: os filhos substituemos pais, e, assim, o padro foi sendo preservado. No antigo Egito,diz Adam Smith, por um princpio religioso, todo homem era levadoa desempenhar a mesma ocupao que seu pai, e cometeria o maisterrvel sacrilgio se mudasse para outra.2 Da mesma maneira,at bem recentemente, na ndia, algumas ocupaes eram tradi-cionalmente atribudas de acordo com as castas; de fato, em boa

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  • parte do mundo no industrializado cada qual nasce para umadeterminada tarefa.

    Pois bem, a sociedade pode resolver o problema de maneiradiferente. Pode usar o chicote das regras autoritrias para garantirque as tarefas sejam realizadas. As pirmides do antigo Egito noforam construdas porque um empreiteiro empreendedor enfiou nacabea que iria constru-las, nem os Planos Qinqenais da UnioSovitica foram feitos porque concordavam por acaso com o costumedo toma-l-d-c ou do interesse individual. Tanto a Unio Soviticaquanto o Egito eram sociedades autoritrias; poltica parte, elesasseguravam a sobrevivncia econmica por meio dos decretos deuma autoridade e por castigos que a suprema autoridade aplicavaem cada caso.

    Por incontveis sculos o homem lidou com o problema dasobrevivncia de acordo com uma ou outra dessas solues. Quero problema fosse resolvido por tradio, quer por imposio, jamaischegou a esse campo especial de estudos denominado economia.Se bem que as sociedades da Histria tenham demonstrado a maissurpreendente diversidade econmica, se bem que tenham tido exal-tados reis e comissrios, que hajam usado bacalhau seco e pedrascomo dinheiro, se bem que tenham distribudo seus bens de acordocom os padres comunitrios mais simples ou da maneira maisaltamente ritualista, desde que se regessem por costumes ou im-posies, no precisavam de economistas para tornar esse problemacompreensvel. De telogos, tericos polticos, estadistas, filsofos,historiadores, sim no entanto, por mais estranho que parea,de economistas no.

    Aos economistas caberia a descoberta de uma terceira soluopara o problema da sobrevivncia. Eles aguardavam o desenvolvi-mento de um surpreendente arranjo no qual a sociedade assegurariasua prpria continuidade deixando cada indivduo fazer o que achas-se conveniente para ele desde que obedecesse regra principalde orientao. O arranjo foi denominado sistema de mercado e aregra era de uma simplicidade decepcionante: cada qual pode fazero que lhe for mais vantajoso monetariamente. No sistema de mer-cado, o que orientava cada qual sua obrigao era o fascnio dolucro, no a fora da tradio ou o chicote da autoridade. No entanto,se bem que cada um fosse livre para deixar que seu experientenariz o dirigisse, a ao constante das pessoas umas contra asoutras resultou na necessria tarefa de orientao da sociedade.

    Foi essa paradoxal, sutil e difcil soluo para o problema da

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  • sobrevivncia que exigiu o surgimento dos economistas. Pois, ao con-trrio da simplicidade dos costumes e do comando, no era totalmentebvio que se cada pessoa se preocupasse apenas com o prprio ganhoa sociedade poderia subsistir. Tambm no estava muito claro quetodos os trabalhos sociais tanto os sujos quanto os refinados tinham que ser feitos mesmo que os costumes e o comando j noregessem o mundo. Quando uma sociedade no mais obedece regraimposta, quem poder dizer como as coisas iro terminar?

    Caberia aos economistas esclarecer esse enigma. Mas at quea idia do sistema de mercado em si mesma ganhasse aceitao,no havia qualquer enigma a esclarecer. E at poucos sculos atrs,nem todos os homens ainda tinham certeza de que o sistema demercado era vivel sem suspeitas, desgostos e desconfianas. Omundo avanara durante sculos pelo confortvel caminho da tra-dio e da imposio; para abandonar essa segurana pelas des-concertantes operaes do sistema de mercado, fazia-se necessriauma espcie de revoluo.

    Do ponto de vista da moldagem da sociedade moderna, foi amais importante revoluo que se instalou pelo menos foi, fun-damentalmente, mais perturbadora do que as revolues francesa,americana e at mesmo a russa. Para avaliar sua magnitude, paraentender o violento abalo que ela provocou na sociedade, temos demergulhar naquele distante e esquecido mundo no qual a nossasociedade se originou. S assim poder ficar claro por que os eco-nomistas tiveram de esperar tanto tempo.

    Primeira parada: Frana, 1305.3

    Estamos visitando uma feira. Os mercadores viajantes che-garam nesta manh, com seus guardas armados, montaram suastendas alegremente coloridas, comerciam entre si e com a populaolocal. Uma variedade de exticas mercadorias est venda: sedase tafets, especiarias e perfumes, couros e peles. Algumas vieramdo Oriente, outras da Escandinvia, outras, ainda, de algumas cen-tenas de quilmetros de distncia. Entre a populao comum, lordese ladies entram nas barracas, empenhados em aliviar o tdio desuas aborrecidas, incolores e senhoriais vidas; bem depressa voadquirindo, juntamente com todas as estranhas mercadorias daArbia, novas palavras vindas daquela terra incrivelmente longn-qua, tais como div, xarope, tarifa, alcachofra, espinafre, jarra.

    Mas no interior das tendas deparamos com uma estranhacena. Livros de comrcio abertos sobre as mesas, muitas vezes no

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  • passam de simples cadernos de anotaes; exemplo das anotaes deum mercador: Um homem de Whitsuntide deve dez florins. Esquecio nome dele.4 Os clculos so feitos quase sempre em algarismosromanos e geralmente as somas saem erradas; a diviso encaradacomo um mistrio e o uso do zero ainda no foi claramente entendido.E para maior espalhafato da exposio e excitao do povo, a feira pequena. A quantidade total de mercadorias que chegam Franadurante um ano, pela Passagem de Saint Gothard5 (a primeira pontesuspensa da Histria), no encheria um moderno trem de carga; aquantidade total de mercadorias transportadas pela grande frota ve-neziana no encheria um navio cargueiro moderno.

    Nova parada: Alemanha, fins de 1550.Andreas Ryff6, um mercador barbudo e vestido em couro, est

    voltando para a sua casa em Baden; numa carta que escreve esposa conta que visitou trinta feiras e que perturbado por abra-ses provocadas pela sela. Porm, perturba-se mais ainda com osprejuzos daqueles tempos; durante a viagem parado a mais oumenos cada dezesseis quilmetros, com a finalidade de pagar pe-dgio; entre Basle e Colnia paga trinta e um tributos.

    E isso no tudo. Cada comunidade que visita tem seu prpriodinheiro, suas normas e regulamentos, suas prprias leis e orga-nizao. S na regio ao redor de Baden7 h 112 medidas de com-primento diferentes, 92 medidas quadradas diferentes, 65 medidasdiferentes para secos, 163 medidas diferentes para cereais, 123medidas diferentes para lquidos, 63 medidas especiais para bebidase 80 tipos de pesos diferentes denominados libras.

    Vamos adiante: estamos em Boston, 1639.8

    Est havendo um julgamento; um tal de Robert Keayne, umvelho professor de Evangelho, um homem de admirveis talentos,rico e com um s filho, tendo passado por cima do amor conscinciae do conhecimento do Evangelho acusado de crime hediondo:teve mais de seis pence de lucro sobre um xelim, ganho esse con-siderado ultrajante. A corte debate se deve excomung-lo pelo pe-cado cometido, mas, em vista de seu passado sem manchas, final-mente se abranda e lhe d a liberdade com uma multa de duzentaslibras. Mas o pobre sr. Keayne fica to transtornado que se apre-senta diante dos mais velhos da Igreja e entre lgrimas, exibeseu corao corrupto e ganancioso. O ministro de Boston no con-segue resistir a esta preciosa oportunidade para apontar a imagemviva de um obstinado pecador e usa a avareza de Keayne como

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  • tema no retumbante sermo de domingo sobre falsos princpios decomrcio, dos quais d vrios exemplos. Entre eles estavam estes:

    I. Um homem deve vender o mais caro que puder ecomprar o mais barato que puder.

    II. Se um homem, por casualidade, perder parte de suamercadoria no mar, etc., pode subir o preo do restante.

    III. Ele pode vender como comprou, desde que seja tam-bm caro...

    Tudo falso, falso, falso, grita o ministro; ir em busca da riquezapelo interesse na prpria riqueza cair no pecado da avareza.

    Voltamos para a Inglaterra e para a Frana.Na Inglaterra, uma grande organizao comercial, a The Mer-

    chant Adventurers Company,9 elaborou os estatutos de uma corpo-rao; entre eles h regras para os comerciantes associados: nadade linguagem indecente, de brigas entre irmos, de jogos de baralho,de vigilantes ces de caa. Ningum carrega trouxas horrveis pelasruas. Sem dvida, uma estranha empresa de negcios; mais pareceuma repblica fraternal.

    Na Frana, a recente indstria de tecidos tambm tem tomadomuitas iniciativas ultimamente e um rglement promulgado porColbert em 1666 para acabar com essa perigosa e destruidora ten-dncia. No entanto, os tecidos de Dijon e Selangey10 contm, nadamais nada menos, 1.408 fios incluindo as ourelas. Em Auxerre,Avalon e duas outras cidades industriais, os fios eram 1.376; emChtillon, 1.216. Toda roupa considerada sujeita a objees ex-posta ao ridculo. Caso seja objetada trs vezes, o comerciante tam-bm exposto ao ridculo.

    H algumas coisas em comum entre todos estes fragmentosesparsos dos mundos antigos. So elas: primeiro, a idia da pro-priedade (para no dizer necessidade) de um sistema organizadocom base no ganho pessoal ainda no criou razes; segundo, ummundo econmico isolado, auto-suficiente, ainda no surgiu comseu prprio contexto social. O mundo dos negcios prticos estinetrincavelmente misturado com o mundo da vida poltica, sociale religiosa. At que esses dois mundos se separem, nada haverque se parea com o ritmo e o aspecto da vida moderna. E paraque os dois se separem ser preciso que acontea uma longa eamarga batalha.

    Pode nos parecer esquisito que a idia de lucro seja relativamente

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  • moderna; fomos ensinados a acreditar que o homem uma criaturaessencialmente aquisitiva e que, deixada por conta prpria, ela iragir como qualquer comerciante respeitado agiria. A motivao-lu-cro, dizem-nos constantemente, to velha quanto o prprio homem.

    Mas no . A motivao-lucro como a conhecemos to velhaquanto o homem moderno. Mesmo hoje a noo de lucro peloprprio lucro estranha para uma grande parte da populao domundo e tornou-se notvel pela ausncia na maior parte da Histriaregistrada. Sir William Petty, admirvel personagem do sculo de-zessete (que foi taifeiro, vendedor ambulante, fabricante de roupas,mdico, professor de msica e fundador de uma escola denominadaPolitical Arithmetick), afirmava que quando os salrios eram bons,o trabalho era insuficiente para todos, e eles eram to preguiososque trabalhavam apenas o suficiente para comer ou ento parabeber.11 E sir William no estava apenas expressando os precon-ceitos burgueses daquele tempo. Observava um fato que ainda podeser notado entre os povos no industrializados do mundo: umafora de trabalho no habituada ao trabalho assalariado, que des-conhece a vida de fbricas, que indisciplinada e alheia idiade contnua elevao do nvel de vida, no ir produzir melhor seo salrio subir; simplesmente, passar mais tempo de folga. A idiado ganho, a idia de que cada trabalhador ou trabalhadora noapenas pode, mas deve melhorar constantemente sua vida material, uma idia completamente estranha s grandes classes baixa emdia das culturas medieval, egpcia, grega e romana, emergindoapenas durante a poca do Renascimento, da Reforma e manten-do-se amplamente ausente na maioria das civilizaes orientais.Como uma onipresente caracterstica da sociedade, ela uma in-veno to moderna quanto a imprensa.

    No s a idia de lucro no to universal como s vezessupomos, como tambm a sano social do lucro tem um desenvol-vimento ainda mais moderno e restrito. Na Idade Mdia, a Igrejaensinava que no era cristo ser mercador, e por trs desse ensi-namento havia uma perturbadora fermentao na sociedade. Notempo de Shakespeare, o objetivo da vida para o cidado comum,para todos de fato menos para a nobreza, no era melhorar a si-tuao de vida, mas sim apenas mant-la. Mesmo para os nossosantepassados Peregrinos, a idia de que o lucro podia ser umatolervel ou mesmo til finalidade na vida pareceria pelomenos uma doutrina do demnio.

    A riqueza, claro, sempre existiu e a cobia est presente

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  • at nas antigas narrativas bblicas. Mas h uma enorme diferenaentre a inveja inspirada pela riqueza de uns poucos, poderosospersonagens e a luta geral pela riqueza difundida entre a sociedade.Os mercadores aventureiros existem h muito tempo, como os ma-rinheiros fencios, e podem ser vistos ao longo da Histria nosespeculadores de Roma, nos comerciantes venezianos, na Liga Han-setica, nos navegantes portugueses e espanhis que abriram ocaminho para as ndias e para as suas fortunas pessoais. Mas aaventura de poucos coisa muito diferente de uma sociedade inteiramovida pelo esprito da aventura.

    Veja, por exemplo, a extraordinria famlia Fugger12 de gran-des banqueiros alemes do sculo dezesseis. Naquela poca os Fug-ger possuam minas de ouro e de prata, concesses comerciais eat mesmo o direito de cunhar as prprias moedas; o crdito delesera maior do que a riqueza de reis e imperadores cujas guerras (eas despesas da famlia real) eles financiavam. Mas quando o velhoAnton Fugger morreu, seu sobrinho mais velho, Hans Jacob, re-cusou-se a dirigir o imprio bancrio porque os negcios da cidadee os seus prprios negcios j lhe davam muito que fazer; o irmode Hans Jacob, George, disse que preferia viver em paz; um terceirosobrinho, Christopher, tambm no se interessou. Nenhum dos her-deiros em potencial de um reinado de riqueza parecia achar queele valia qualquer esforo.

    A no ser alguns reis (aqueles que eram solventes) e algumasfamlias esparsas, como os Fugger, os primeiros capitalistas noeram pilares da sociedade, mas sim eram freqentemente discri-minados e dracins. Aqui e ali um jovem empresrio como SaintGodric13 de Finchale podia se expandir como um vagalho reben-tando na praia, reunindo mercadorias advindas de navios mercantesnaufragados em quantidade suficiente para se tornar um comer-ciante e, depois de fazer fortuna, retirar-se envolto em santidade,como um eremita. Mas esses homens eram pouqussimos. Enquantoimperava a idia suprema de que a vida na Terra era apenas umdoloroso prembulo para a Vida Eterna, o esprito para negciosno era encorajado e no recebia qualquer tipo de estmulo espon-tneo. Os reis queriam tesouros e por isso provocavam guerras; anobreza queria terras, e, como s os nobres que no respeitavama si mesmos eram capazes de vender suas propriedades ancestrais,consegui-las significava conquista, tambm. Porm, a maioria daspessoas servos, artesos e at mesmo donos de guildas industriais

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  • queria ser deixada em paz a fim de viver como seus pais tinhamvivido e seus filhos iriam viver.

    A ausncia da idia de ganho como guia normal da vida diria na verdade, o positivo descrdito em que a Igreja manteve aidia constituiu uma enorme diferena entre o estranho mundodo sculo dez ao sculo dezesseis e o mundo que comeou a separecer com o nosso, um ou dois sculos antes de Adam Smith.No entanto, tambm aqui havia uma diferena ainda mais funda-mental. A idia de construir uma vida ainda no comeara aexistir. A vida econmica e a vida social eram uma nica e mesmacoisa. O trabalho ainda no significava um meio para uma finali-dade a finalidade de obter dinheiro e as coisas que ele compra.O trabalho era uma finalidade em si mesmo, claro, abrangendodinheiro e propriedades, mas engajada em uma parte da tradio,como um modo de viver. Em uma palavra, ainda no tinha sidofeita a grande inveno social do mercado.

    Os mercados sempre existiram, desde at onde chega nossoconhecimento da Histria. As Tbuas de Tell-el-Amarna14 mencio-nam um comrcio ativo entre os faras e os reis Levantinos, em1400 a.C.: ouro e carros de guerra eram trocados por escravos ecavalos. Mas embora a idia da troca deva ser quase to antigaquanto o homem, assim como em relao idia do lucro, nodevemos cometer o erro de concluir que o mundo inteiro tinha apropenso para negociar que tem o estudante americano do sculovinte. Apenas a ttulo de curiosidade, sabe-se que entre os maoris15

    da Nova Zelndia no se pode indagar quanta comida um anzolpara pescar um bonito vale, pois esse tipo de comrcio jamais feito e essa pergunta seria considerada ridcula. Em compensao,em algumas comunidades africanas perfeitamente legtimo per-guntar quantos bois vale uma mulher troca esta que conside-ramos to ridcula quanto os maoris consideram ridcula a trocade alimentos por anzis (se bem que ainda existam entre ns re-manescentes da tradio do dote, o que diminui o abismo que nossepara dos africanos).

    Mas os mercados, quer fossem trocas entre tribos primitivascujos objetos eram casualmente espalhados pelo cho, quer fossemas fantsticas feiras ambulantes da Idade Mdia, no so o mesmoque o sistema de mercado. Isso porque o sistema de mercado nose trata apenas de uma troca de mercadorias: um mecanismopara sustentar e manter uma sociedade inteira.

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  • E esse mecanismo estava muito longe de ser claro para amentalidade do mundo medieval. O conceito de ampliao de ganhoera profundamente blasfemo, como vimos. A ampla noo de queuma luta generalizada por ganhos iria manter uma comunidadeunida teria sido considerada pouco menos do que loucura.

    H um motivo para essa cegueira. A Idade Mdia, a Renas-cena, a Reforma sem dvida o mundo inteiro at o sculo de-zesseis ou dezessete podiam no vislumbrar o sistema de mercadopelo simples motivo de que Terra, Trabalho e Capital os agentesbsicos de produo alocados pelo sistema de mercado aindano existiam. Terra, trabalho e capital no sentido de solo, sereshumanos e ferramentas coexistiam, claro, com a prpria sociedade.Mas a idia de terra abstrata, de trabalho abstrato no sugeria mente humana, de imediato, mais do que a idia de energia oumatria abstratas. Terra, trabalho e capital como agentes de pro-duo, como entidades econmicas impessoais e no humanas, soto modernos como concepo quanto o clculo. Sem dvida, noso muito velhos.

    Tomemos a terra, por exemplo. At o sculo catorze ou quinzeno havia o conceito de terra no sentido de propriedade livrementevendveis ou propriedade produtora que poporcionava renda. Haviaterras, evidente amplas propriedades, domnios feudais e prin-cipados , mas sem dvida alguma no eram propriedades paraserem compradas ou vendidas segundo as ocasies exigissem. Essasterras formavam o cerne da vida social, proporcionavam as basespara o prestgio e o status social, constituindo os alicerces da or-ganizao militar, judicial e administrativa da sociedade. Se bemque as terras fossem vendveis em determinadas condies (commuitos veculos associados), no estavam simplesmente venda.Um nobre medieval em boa situao jamais pensaria em vendersuas terras, assim como o governador de Connecticut nunca pen-saria em vender alguns condados ao governador de Rhode Island.

    Essa ausncia de comercializao aplicava-se tambm ao tra-balho. Quando falamos em mercado de trabalho, hoje, nos referimos enorme rede de demanda de emprego na qual os indivduos ven-dem seus servios a quem oferece mais. Simplesmente, essa redede demanda de emprego no existia no mundo pr-capitalista. Haviauma mixrdia de servos, aprendizes e artfices que trabalhavam,porm a maior parte de seu trabalho jamais aparecia no mercadopara ser vendida e comprada. Nos campos, o campons vivia amar-rado ao seu senhor, dono da propriedade; ele assava nos fornos do

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  • senhor, moa nos moinhos do senhor, cultivava as terras do senhore servia o senhor nas guerras, mas raramente era pago por qualquerdos seus servios: os servios eram deveres de um servo, no otrabalho de um homem livremente contratado. Nas cidades, osaprendizes entravam a servio dos artfices ou mestres; o prazo deaprendizagem, o nmero de colegas, a cota de pagamento, as horasde trabalho, os mtodos usados eram todos regulados por uma guil-da. Havia pouca ou nenhuma barganha entre servos e senhores,a no ser por ocasio de choques espordicos em que as condiesse tornassem intolerveis. Nisso havia tanto mercado de trabalhoquanto o que existe entre internos num hospital.

    Ou, ento, recursos o capital. Com certeza o capital existiano mundo pr-capitalista, no sentido de riqueza privada. Mas sebem que os recursos existissem, no havia entusiasmo para dar-lhesum novo e agressivo uso. Em vez de tentativa e risco, o lema eraSegurana em primeiro lugar. A tcnica preferida de produoera o processo mais longo e mais trabalhoso, no o mais curto emais eficiente. A publicidade era proibida e a idia de que ummestre da guilda poderia oferecer melhor produto do que seus co-legas era encarada como traio. Na Inglaterra do sculo dezesseis,quando a produo em massa no comrcio da tecelagem mostroupela primeira vez sua assustadora cabea, as guildas protestaramcom o rei. O maravilhoso trabalho das fbricas16 que suposta-mente continham duzentos teares e uma equipe de trabalho queinclua aougueiros e padeiros para alimentar a fora de trabalho era considerado ilegal por Sua Majestade: tanta eficincia econcentrao de riqueza poderia abrir um mau precedente.

    Assim, o fato de que o mundo medieval no podia concebero sistema de mercado baseava-se na boa e suficiente razo de queos elementos abstratos da produo ainda no haviam sido conce-bidos. A falta de terra, de trabalho e de capital na Idade Mdiaresultava na falta de mercado; e como faltava mercado (apesar dascoloridas feiras locais e das feiras ambulantes), a sociedade regia-sepelos costumes e tradies. Os senhores davam ordens: a produominguava ou prosperava, de acordo com elas. Ningum dava ordens:a vida prosseguia em sua rotina. Se Adam Smith tivesse vividonos anos anteriores a 1400, no teria sentido o impulso de construiruma teoria de economia poltica. No h mistrio para penetrarna falta de compreenso que fez a Idade Mdia permanecer ina-tingvel e no permitir qualquer possibilidade para a descobertatanto da ordem quanto da finalidade. tica e poltica, sim; havia

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  • muito a ser explicado e racionalizado nas relaes entre os lordesinferiores com os lordes superiores, dos lordes superiores com osreis, e um trabalho enorme para esclarecer as confuses entre osensinamentos da Igreja e as incorrigveis tendncias da classe co-merciante. Mas economia, no. Quem iria procurar leis abstratasda oferta e demanda, dos custos, ou do valor, quando a explicaodo mundo ali estava, como um livro aberto, nas leis do feudalismo,da Igreja e nos costumes de toda uma existncia? Adam Smithpoderia chegar a ser um grande filsofo moral naquela poca toprimitiva, mas nunca teria sido grande economista.

    Por vrios sculos no havia nada que um economista pudessefazer at que o auto-reprodutivo, auto-suficiente mundo irrompeuno alvoroado, disparado e disposto a tudo, sculo dezoito. Irrom-peu talvez seja uma palavra dramtica demais, porque a mudanalevou sculos se realizando, no aconteceu em um simples e violentoespasmo. Mas a mudana, por mais demorada que tenha sido, nofoi uma evoluo pacfica: foi uma angustiante convulso da socie-dade, uma revoluo.

    S para comercializar a terra para transformar a hierarquiade relacionamentos sociais em muitos lotes sem dono e em provei-tosos terrenos exigiu nada mais nada menos do que desenraizartodo um intrincado modo de vida feudal. Transformar os protegidosservos e aprendizes em trabalhadores no importa quo ex-plorador houvesse sido o manto de paternalismo requeria a cria-o de uma assustada e desorientada classe chamada proletariado.Para transformar os mestres de guildas em capitalistas era precisoensinar a lei da selva aos tmidos habitantes do quintal.

    Alm de tudo, no se tratava de uma perspectiva pacfica.Ningum queria esta comercializao da vida. S poderemos avaliarcomo foi amarga a resistncia se fizermos uma ltima viagem aopassado a fim de observar a revoluo econmica acontecendo.

    Estamos de volta Frana, no ano de 1666.17

    Os capitalistas da poca enfrentam um desafio perturbadorque a ampliao do mecanismo do mercado trouxe com seu des-pertar: mudana.

    A primeira questo a surgir foi de que modo um mestre deguilda da indstria txtil poderia ser levado a tentar uma inovaoem seu produto. O veredicto: Se um tecelo de roupas pretendeproduzir uma pea de sua prpria inveno, no deve obt-la deseu tear; precisa antes obter permisso dos juzes da cidade para

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  • empregar o nmero e o comprimento de fios de que ir necessitar,depois que o caso for considerado pelos quatro mercadores maisvelhos e os quatro teceles mais velhos da guilda. Pode-se imaginarquantas sugestes para mudanas eram toleradas.

    Pouco depois de resolvido o problema da tecelagem de roupas,surgem os botes, que provocam uma avalanche de protesto; osalfaiates estavam comeando a produzir botes para roupas, umacoisa jamais sonhada at ento. O governo, indignado com a pos-sibilidade de que uma inovao viesse ameaar uma indstria es-tabelecida, impe uma multa aos que fazem botes. Mas os vigi-lantes dos botes da guilda no se do por satisfeitos. Demandamo direito de dar buscas nas casas e guarda-roupas de quem querque fosse, de multar e at mesmo prender nas ruas quem estivesseusando os tais renegados objetos subversivos.

    Esse medo da mudana e da inovao no apenas umaresistncia cmica de alguns poucos e assustados comerciantes. Ocapital luta com vigor contra a mudana e nenhum esforo pou-pado. Na Inglaterra, alguns anos antes, uma patente para um apa-relho de fabricar meias18 no s foi recusada, como tambm o Con-selho Privado ordenou que a perigosa engenhoca fosse abolida; naFrana, a importao de tecido de algodo estampado ameaa so-lapar a indstria de roupas. Isso enfrentado com medidas quecustam a vida de 16 000 pessoas! Em Valence, de uma s vez, 77pessoas so executadas por enforcamento, 58 so despedaadas nosuplcio da roda, 635 condenadas s gals e uma nica, felizardapessoa absolvida do crime de negociar com os proibidos tecidosestampados.19

    Mas o capital no o nico agente de produo que se debatefreneticamente na tentativa de evitar os perigos do modo de vida domercado. O que acontece com o trabalho ainda mais desesperado.

    Voltemos Inglaterra.Estamos em fins do sculo dezesseis, a grande era da expanso

    e aventura. A rainha Elizabeth fez uma viagem triunfal pelo reinoe retorna com uma estranha queixa:

    H mendigos por toda parte! reclama.Esta uma observao surpreendente, pois apenas cem anos

    antes o interior da Inglaterra consistia em grande parte de proprie-trios camponeses que cultivavam suas prprias terras; tratava-se dopequeno proprietrio, orgulho da Inglaterra, o maior grupo do mundode cidados independentes, livres e prsperos. Agora, H mendigospor toda parte!20 O que havia acontecido nesse nterim?

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  • O que acontecera fora um enorme movimento de expropriao ou, melhor, o incio desse movimento que ainda comeava a sedesenvolver nessa poca. A l tornara-se uma mercadoria nova,lucrativa, e exigira que seu produtor tivesse amplas pastagens. Ospastos fazem parte das terras comuns; uma verdadeira e loucacolcha de retalhos formada por pequenas e espalhadas propriedades(sem cerca e identificveis apenas por uma rvore aqui, uma pedraali, que funcionavam como limites entre as terras de um homeme de outro) e pelas terras comuns, nas quais o gado do pequenoproprietrio se alimenta e nas quais ele colhe a turfa. Essas terrasde repente so declaradas inteiramente como propriedades abso-lutas dos lordes e no mais disponveis para uso dos camponeses.Onde antes havia uma espcie de propriedade comum, agora existea propriedade privada. Onde antes havia pequenos proprietriosrurais, agora h ovelhas. John Hales21 escreveu, em 1549: ...ondeXL pessoas viviam, agora um s homem e seu pastor ocupam tudo...Sim, as ovelhas so a causa de todos esses males, pois expulsarama lavoura dos campos, que antes proporcionavam grande quantidadede alimentos de todo tipo, e agora s h ovelhas, ovelhas.

    quase impossvel imaginar o resultado e o impacto do pro-cesso de fechamento das terras. Mais ou menos em meados dosculo dezesseis comearam a explodir revoltas; em um desses le-vantes morreram 3 500 pessoas.22 Em meados do sculo dezoito oprocesso ainda estava em plena efervescncia; s em meados dosculo dezenove estaria completando seu terrvel curso histrico.Assim, em 1820, cerca de cinqenta anos depois da Revoluo Ame-ricana, a duquesa de Sutherland23 removeu 15 000 camponeses de794 000 acres de terra, substituindo-os por 131 000 ovelhas, e comocompensao arrendou uma mdia de dois acres de terras marginaispara cada uma das famlias desalojadas.

    Mas no apenas o confisco de terras em massa que mereceateno. A verdadeira tragdia aconteceu com o campons. Despo-jado do direito de usar as terras comuns, ele no mais podia semanter como fazendeiro. Uma vez que no havia terras venda,ele no podia mesmo que quisesse transformar-se em operrio.Tornou-se, ento, a mais miservel de todas as classes sociais, umproletrio agrcola; onde no havia trabalho disponvel em lavouras,ele acabou por se transformar em indigente, at mesmo em ladroe comumente em mendigo. Aterrorizado com o crescimento alar-mante da misria atravs do pas, o Parlamento ingls tentou lidarcom o problema, comeando por confin-lo. Ps os indigentes e

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  • mendigos sob os cuidados de asilos organizados por parquias locais,mediante um auxlio simblico, e lidou com os ladres manejandoo chicote, marcando com ferro em brasa e com mutilaes. Umclrigo do tempo de Adam Smith descrevia seriamente os asilosnos quais os pobres eram relegados como Casas do Terror.24 Noentanto, o pior de tudo era que as verdadeiras medidas que o pasadotou para proteger-se dos pobres confinando-os em suas pa-rquias, onde eram apenas mantidos vivos com um mnimo de des-pesas impediram a nica soluo do problema. No era, emltima anlise, que as classes governantes fossem indiferentes ecruis. Na verdade, elas no conseguiam compreender o conceitode uma fora de trabalho fluida, mvel, que podia ir trabalharonde quer que houvesse trabalho, de acordo com os preceitos domercado. A cada passo, a comercializao do trabalho, como a co-mercializao do capital, era inconcebvel, temida e combatida.

    O sistema de mercado com seus componentes essenciais comoterra, trabalho e capital havia, assim, nascido em agonia umaagonia que comeou no sculo treze e foi seguindo seu curso at osculo dezenove. Jamais uma revoluo foi to pouco entendida,to mal recebida, to mal planejada. Mas as grandes foras domercado nascente no podiam ser negadas. Insidiosamente, elasforam destruindo as bases dos costumes; insolentemente, desman-telavam a tradio. Apesar do clamor contra os fazedores de botes,as roupas com botes conquistaram seu espao. Apesar de toda aadversidade do Conselho Privado, a mquina de fazer meias tor-nou-se to valiosa que depois de setenta anos o mesmo ConselhoPrivado teve de proibir sua exportao. Apesar de todos os supli-ciados na roda, o comrcio de algodo estampado cresceu em paz.Apesar da desesperada oposio da Velha Guarda, terras produtivasforam desapropriadas de posses ancestrais, e apesar dos protestosde empregados e patres unidos, o trabalho domiciliar foi posto disposio de aprendizes desempregados e dos lavradores sem terra.

    A enorme carruagem da sociedade, que por tanto tempo des-lizara suavemente pela estrada macia da tradio, encontrou-seento impulsionada por uma verdadeira fornalha interior. Transa-es, transaes, transaes e lucro, lucro, lucro proporcionavam odespertar de uma nova e poderosa fora-motivo.

    Que foras teriam sido suficientemente poderosas para abalarum mundo estabelecido de maneira to confortvel e introduzirem seu lugar essa nova e no desejada sociedade?

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  • No existe uma s causa. O novo modo de viver originou-se nointerior do velho como a borboleta origina-se da crislida, no interiordo casulo, e quando o impulso de vida tornou-se forte o bastante,rompeu a velha estrutura. A revoluo econmica no foi produzidapor grandes eventos, aventuras nicas, leis individuais ou personali-dades poderosas. Foi um processo de crescimento interno.

    Primeiro, houve a emergncia gradual de unidades polticasna Europa. Sob as exploses de lutas camponesas e conquistas darealeza, a existncia de um feudalismo precoce abriu caminho paraas monarquias centralizadas. E com as monarquias deu-se o cres-cimento do esprito nacional; sucessivamente, isso significou pro-teo real para indstrias favorecidas, tais como os grandes tra-balhos de tapearia francesa, o desenvolvimento de armadas e deexrcitos, com todas as suas indstrias satlites. A infinidade deregras e regulamentos que atormentaram Andreas Ryff e seus com-panheiros mercadores durante o sculo dezesseis abriu caminhopara leis nacionais, medidas comuns e moedas circulantes mais oumenos padronizadas.

    Um aspecto da mudana poltica que estava revolucionandoa Europa foi o encorajamento da explorao e aventura de estran-geiros. No sculo treze os irmos Polo empreenderam uma auda-ciosa viagem e chegaram s terras do grande Khan como indefesosmercadores; no sculo quinze Colombo25 navegou para o que eleesperava ser o mesmo destino, sob os auspcios reais de Isabel. Amudana da explorao privada para a explorao nacional foi ele-mento e parcela da mudana da vida privada para a vida nacional.Em conseqncia, as grandes aventuras nacionais dos navegantes-capitalistas ingleses, espanhis e portugueses levaram uma ondade riqueza e conscientizao dessa riqueza de volta Europa.

    Aquele que tem ouro, disse Cristvo Colombo, faz e con-segue tudo que quiser no mundo e no fim ainda o usa para enviaralmas ao paraso.

    Os conceitos de Cristvo Colombo eram os conceitos de umaera e apressavam o advento de uma sociedade orientada para o lucroe para a oportunidade, impulsionada pela caa ao dinheiro. Deve-senotar, de passagem, que os tesouros do Oriente eram realmente fa-bulosos. Com as participaes recebidas como acionista da viagem deFrancis Drake no Golden Hynd, a rainha Elizabeth pagou todas asdvidas externas da Inglaterra, equilibrou seu oramento e investiuno exterior uma alta soma, a juros compostos, que foi responsvelpor todas as riquezas de alm-mar da Gr-Bretanha em 1930!26

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  • Verificou-se uma segunda grande corrente de mudanas nalenta decadncia do esprito religioso sob o impacto das vises c-ticas, inquiridoras e humanistas do Renascimento italiano. O mundode Hoje encontrava-se lado a lado com o mundo de Amanh e avida sobre a Terra tornou-se mais importante, assim como a noode padres materiais e confortos comuns. Por trs da mudana natolerncia religiosa encontrava-se o surgir do Protestantismo, quereforou a nova atitude em relao ao trabalho e riqueza. AIgreja de Roma sempre olhara os comerciantes com olhos duvidosose no hesitara em classificar a usura como pecado. Mas no momentoem que os comerciantes elevavam-se cada dia mais na sociedade,uma vez que eles j no eram apenas um acessrio til, mas apenasparte integrante de uma nova espcie de mundo, tornava-se ne-cessria uma reavaliao de suas funes. Os lderes protestantespavimentaram o caminho para um amlgama das vidas espirituale temporal. Longe de louvar a vida de pobreza e de contemplaoespiritual, como se fosse separada da vida mundana, eles pregavamque era piedoso utilizar na vida diria de negcios um dos maioresdons ofertados por Deus. Da faltava apenas um passo para a iden-tificao de riquezas com excelncias espirituais e de homens ricoscom santidade.

    Um conto folclrico local do sculo doze fala sobre um usurrioque foi esmagado por uma esttua que caiu sobre ele no momentoem que entrava numa igreja para se casar. Quando foram ver,descobriram que se tratava da esttua de um outro usurrio que,assim, revelara o desgosto de Deus para com aqueles que negocia-vam com dinheiro. Devemos nos lembrar, tambm, de que em mea-dos dos anos 1660 o pobre Robert Keayne colidiu de frente com asautoridades religiosas puritanas devido s suas prticas de neg-cios. Nessa atmosfera de hostilidade no era fcil para o sistemade mercado se expandir. Da por diante a gradual aceitao, porparte dos lderes espirituais, da mansido e, sem dvida, dos be-nefcios do processo de mercado foi essencial para o crescimentocompleto do sistema de mercado.

    No entanto, h uma outra profunda corrente nas mudanasmateriais que eventualmente tornou o sistema de mercado possvel.Estamos acostumados a pensar na Idade Mdia como um tempode estagnao e ausncia de progresso. Contudo, em quinhentosanos a era feudal criou mil cidades (uma grande obra), interligou-ascom estradas rudimentares, mas que funcionavam, e sustentou suaspopulaes com alimentos vindos do campo. Tudo isso desenvolveu

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  • a familiaridade com o dinheiro, com os mercados e com os hbitosde vender e comprar. No decorrer dessa mudana, naturalmente,o poder comeou a gravitar nas mos daqueles que entendiam dedinheiro os mercadores e distanciou-se da desdenhosa nobreza,que no entendia.

    O progresso no foi apenas conseqncia desse lento processode monetizao. Houve tambm o progresso tcnico, de maneiraenormemente importante. A revoluo comercial no pde comearenquanto no se desenvolveu uma forma de contabilidade racionaldo dinheiro: embora os venezianos do sculo doze j estivessemat usando mtodos sofisticados de contabilidade, os comerciantesda Europa eram pouco mais do que estudantes do primeiro grauem sua ignorncia sobre essa matria. Foi preciso tempo para quese reconhecesse a necessidade da escriturao mercantil; at o s-culo dezessete, as partidas dobradas2 ainda no existiam como umaprtica padro. E at ento o dinheiro no era racionalmente con-tabilizado de maneira a permitir que um negcio em grande escalafosse feito com inteiro sucesso.

    Pode ser que o mais importante de tudo na penetrao desseefeito tenha sido um aumento de curiosidade cientfica. Embora omundo pudesse esperar at depois da era de Adam Smith para apirotcnica exploso de tecnologia, a Revoluo Industrial no teriapodido acontecer se o terreno no houvesse sido preparado por umasrie de descobertas subindustriais bsicas. A era pr-capitalistaviu o nascimento da imprensa, da fabricao do papel, do moinhode vento, do relgio mecnico, do mapa e de uma infinidade deoutras invenes comearam a ser observadas com olhar amigvel.

    Nem uma s dessas correntes, agindo sozinha, poderia tervirado a humanidade de cabea para baixo. Mas, sem dvida, mui-tas delas poderiam provocar efeitos que causassem uma violentaconvulso na organizao humana. A histria no se desloca emngulos agudos e a vasta sublevao foi se alastrando ao longo dotempo. As evidncias da maneira de existir do mercado espalhou-sepor todos os lados da antiga maneira tradicional e remanescentesdos velhos hbitos persistiram por bastante tempo depois que omercado havia, por motivos prticos, se colocado frente como oprincpio-guia da organizao econmica. Assim, os privilgios feu-dais e das guildas s foram abolidos na Frana em 1790 e os Es-

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    2 Sistema de escriturao em que cada lanamento se faz ao mesmo tempo no deve de umaconta e no haver de outra. (N. do E.)

  • tatutos dos Artfices, que regulavam as prticas da guilda na In-glaterra, s foram revogados em 1813.

    Mas em 1700, vinte e trs anos antes de Adam Smith nascer,o mundo que julgara Robert Keayne, que proibira os mercadoresde transportar desagradveis trouxas, passou a se preocupar compreos justos e o hbito de lutar pelo privilgio de prosseguir nomesmo caminho percorrido pelos pais comeou a entrar em declnio.Em seu lugar a sociedade comeou a colocar um novo tipo de ditadospessoais. Eis alguns deles:

    Todo homem tem ambio natural pelo lucro.Lei nenhuma prevalece sobre o ganho.O ganho o Centro do Crculo do Comrcio.27

    Uma nova idia comeou a tomar corpo: homem econmico um plido esboo da criatura que seguia seu crebro mquinade somar aonde quer que este decidisse lev-lo. Os livros logocomeariam a falar de Robinsons Crusos em ilhas desertas, queorganizavam seus negcios como se fossem avarentos contadores.

    No mundo dos negcios, uma nova febre de riqueza e espe-culao apoderara-se da Europa. Na Frana, em 1718, um aven-tureiro escocs chamado John Law28 organizou uma arriscada aven-tura denominada Mississippi Company, vendendo aes de umaempresa que iria explorar montanhas de ouro na Amrica. Homense mulheres lutavam nas ruas pelo privilgio de conseguir aes,eram cometidos assassinatos, fortunas surgiam da noite para odia. Um garom de hotel ganhou trs milhes de libras. Quandoa companhia estava prestes a revelar enormes para todos os in-vestidores, o governo tratou de impedir o desastre reunindo milmendigos, armando-os com picaretas e ps, fazendo-os desfilar pelasruas de Paris como se fossem um grupo de mineiros prontos parapartir rumo ao Eldorado. Claro, a estrutura desabou. Mas que mu-dana dos tmidos capitalistas de cem anos antes para a multidodos fique-rico-depressa acotovelando-se na Rue de Quincampoix;que imensa fome de dinheiro tinha esse pblico para que houvesseengolido uma fraude to descarada!

    No h qualquer dvida, o processo terminara e o sistemade mercado nascera. Assim, o problema da sobrevivncia no seriaresolvido por costumes nem por imposio, mas pela ao livre,com finalidade de lucro, de homens que tinham em comum entresi apenas o mercado. O sistema iria chamar-se capitalismo. E aidia de lucro, que era sua base, iria enraizar-se com tanta firmeza

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  • que logo os homens poderiam afirmar vigorosamente que ela eraparte eterna e onipresente da natureza humana.

    A idia precisava de uma filosofia.J foi dito e repetido at a exausto que o animal humano

    distingue-se dos demais pelo raciocnio. Isto parece significar que,uma vez tendo formado sua sociedade, ele no se contenta emdeixar o barco correr: precisa poder dizer a si mesmo que a sociedadeparticular em que vive a melhor possvel de todas e que os arranjosfeitos nela espelham, ao seu pequeno modo, os arranjos que a pro-vidncia fez fora dela. Portanto, cada era produz seus filsofos,apologistas, crticos e reformadores.

    Mas as questes com as quais os primeiros filsofos sociaisse preocupavam focalizavam-se mais na poltica do que no ladoeconmico da vida. Enquanto os costumes e a imposio governavamo mundo, o problema dos ricos e dos pobres no incomodava osantigos filsofos: era aceito com um suspiro ou rotulado como maisum sinal da ntima baixeza humana. Enquanto os homens, comoabelhas, nascessem para ser ou no zanges, ningum se preocu-paria muito com a racionalidade do trabalho dos pobres os ca-prichos das rainhas eram muito mais elevados e fascinantes

    Desde a hora do nascimento escreveu Aristteles al-guns esto destinados sujeio, outros ao domnio29, e neste co-mentrio rene-se no apenas o desdm como tambm a indiferenacom que os antigos filsofos olhavam o mundo trabalhador da poca.A existncia de um vasto substrato trabalhador era simplesmentetomado por certo; as questes de dinheiro e de mercado eram noapenas muito enfadonhas, como tambm vulgares demais para me-recer a considerao de cavalheiros e sbios. Eram um direito dosreis, divino ou no, e eram as grandes questes do poder temporale do poder espiritual que constituam a arena para idias contes-tadoras no as pretenses de atrevidos mercadores. Embora osricos desempenhassem seu papel para fazer o mundo girar, atque a luta pela riqueza se tornasse generalizada, onipresente e deuma clareza vital para a sociedade, no houve necessidade de umafilosofia geral para a riqueza.

    Mas no se pde ignorar o desagradvel e batalhador aspectodo mundo mercantil por muito tempo, porque corria-se o risco deser fulminado por ele. Afinal, quando o mercado penetrou no san-turio dos filsofos, foi o caso de se indagar como as evidncias dealguns padres principais podiam ainda no ter sido vistas. At

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  • ento, durante duzentos anos antes de Adam Smith, os filsofosteciam suas teorias a respeito da vida diria.

    Em tese, a primeira e infeliz luta pela existncia encontrouseus princpios e sua finalidade no acmulo de ouro. CristvoColombo, Cortez e Francis Drake no eram apenas simples aven-tureiros; eram considerados tambm como agentes do progressoeconmico. Para os Bullionistas (como denominamos o grupo depanfletrios e ensastas que escreveram sobre comrcio), estavamais do que evidente que o poder nacional era o objetivo naturaldo esforo econmico e que o ingrediente mais importante do podernacional era o ouro. Pertencia a eles, tambm, a filosofia dos grandesexrcitos e das aventuras, a riqueza real e a avareza nacional,alm de uma profundamente arraigada crena de que se tudo fossepermitido na busca da fortuna, uma nao no podia deixar de setornar prspera.

    Ali pelo sculo dezoito a nfase inicial pelo ouro comeava aparecer ridiculamente ingnua. Novas escolas de pensamento surgiamenfatizando cada vez mais o comrcio como a grande fonte da vitalidadenacional. A questo filosfica que eles se propuseram no foi comocontrolar o mercado do ouro, mas como criar cada vez mais riqueza,auxiliando a classe mercantil a incrementar sua tarefa.

    A nova filosofia nasceu com um novo problema: como manteros pobres pobres. Era generalizadamente admitido que, se os pobresno fossem pobres, no seriam as ferramentas honestas para o tra-balho dirio que no pediam pagamentos exorbitantes. Para formara Sociedade Feliz..., necessrio que grande nmero de pessoas con-tinue a ser Ignorante e Pobre,30 escreveu Bernard Mandeville, o maisperspicaz e malvolo cronista social do incio do sculo dezoito. Assim,tambm os escritores mercantilistas observavam e aprovavam o baratotrabalho agrcola e industrial da Inglaterra.

    Ouro e comrcio no eram as nicas idias que impunhamalguma espcie de ordem no caos da vida cotidiana. Havia incon-tveis panfletrios, vigrios, excntricos e fanticos que clamavampor justificao ou danao para a sociedade, com dezenasde explicaes diferentes. Mas o problema residia em que todos osmodelos eram insatisfatrios. Um dizia que uma nao evidente-mente no podia comprar mais do que vendia, enquanto que outroafirmava, numa teimosia empacada, que era evidente que umanao ficaria melhor se recebesse mais do que desse em troca.Alguns insistiam que era o comrcio que enriquecia uma nao eexaltavam os comerciantes; outros argumentavam que o comrcio

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  • era apenas um crescimento parasita sobre o corpo forte dos fazen-deiros. Existia quem dissesse que Deus havia determinado que ospobres fossem pobres e que mesmo que assim no fosse, sua pobrezaera essencial para a riqueza da nao; e havia quem visse a misriacomo um mal social e no conseguisse perceber de que maneira apobreza podia gerar riqueza.

    parte o mle de racionalizaes contraditrias, apenas umacoisa sobressaiu com a maior clareza: o homem insistia em umaespcie de organizao intelectual que o ajudasse a compreendero mundo no qual vivia. O duro e desconcertante mundo econmicoque se tornava cada vez mais importante. No de admirar queo dr. Samuel Johnson tenha dito: No h nada que mais exija serilustrado pela filosofia do que o comrcio.31 Em uma palavra, che-gara o tempo dos economistas.

    Fora do mle surgiu tambm um filsofo de espantosa en-vergadura. Adam Smith publicou seu Inquiry into the Nature andCauses of the Wealth of Nations (Estudo sobre a Natureza e Causasda Riqueza das Naes) em 1776, adicionando um segundo acon-tecimento revolucionrio a esse ano decisivo. Uma democracia po-ltica nascera de um lado do oceano; um programa de ao econ-mica desdobrava-se do outro. Mas se no era a totalidade da Europaa seguir a liderana poltica da Amrica, depois que Smith pintouo primeiro verdadeiro quadro da sociedade moderna, todo o mundoocidental tornou-se o mundo de Adam Smith: sua viso tornou-sea receita para os olhos de geraes. Adam Smith nunca teria pen-sado em si mesmo como um revolucionrio; apenas procurou ex-plicar o que para ele era muito claro, sensvel e conservador. Masdeu ao mundo uma imagem de si mesmo calcada no que estavapesquisando. Depois de The Wealth of Nations, os homens passarama ver o mundo com novos olhos; perceberam de que modo os tra-balhos que desempenhavam encaixavam-se na sociedade e viramque essa sociedade estava dando um majestoso passo na direode uma meta distante, mas j claramente visvel.

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  • III

    O MUNDO MARAVILHOSO DEADAM SMITH

    Algum que visitasse a Inglaterra nos anos 1760 provavel-mente ouviria falar de um certo Adam Smith, da Universidade deGlasgow. O dr. Smith era um homem muito conhecido, se nofamoso; Voltaire ouvira falar dele, David Hume era seu amigo n-timo, estudantes haviam viajado da longnqua Rssia para ouvirsuas elaboradas, porm entusisticas, exposies. Alm do renomeque angariara pelos trabalhos acadmicos que fizera, o dr. Smithtornara-se famoso pela notvel personalidade. Era, por exemplo,notoriamente distrado: uma vez, caminhando enquanto conversavaassuntos srios com um amigo, ele caiu num buraco; contam tam-bm que fez uma bebida fermentada, a partir de po e manteiga,bebeu-a e depois comentou que aquele era o pior ch que j tomara.Mas suas singularidades, que eram muitas, no interferiam nashabilidades intelectuais. Adam Smith estava entre os primeirosfilsofos de sua poca.1

    Em Glasgow, Adam Smith dava aulas de Filosofia Moral, umadisciplina de concepo muito mais ampla naquele tempo do que naatualidade. A Filosofia Moral englobava Teologia Natural, tica, Ju-risprudncia e Economia Poltica: tudo isso orientado o tempo todo,a partir dos mais sublimes impulsos do homem em relao ordeme harmonia, em direo a atividades menos ordeiras e harmoniosasna rida atividade para conseguir viver por si mesmo.

    A teologia natural a busca por um desgnio na confusodo cosmo havia sido objeto do impulso racionalista humano desdeos tempos remotos; nosso visitante iria sentir-se muito vontade

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  • enquanto o dr. Smith expusesse as leis naturais que regem o aparentecaos do universo. Mas quando ele chegasse ao outro lado do espectro a busca de uma grande arquitetura sob a confuso da vida cotidiana, nosso viajante iria considerar que o bom doutor estava, de fato,forando a filosofia para alm dos seus prprios limites.

    Se o cenrio social ingls do final do sculo dezoito sugeriaalguma coisa, com certeza essa coisa no era ordem racional oupropsito moral. Uma vez que se olhe alm das vidas elegantesdas classes privilegiadas, a sociedade apresenta-se como uma brutalluta pela sobrevivncia em sua forma mais medocre. Fora dosluxuosos sales de Londres e das agradveis e ricas propriedadesdos condados, tudo que se via era voracidade, crueldade e degra-dao misturadas com os mais irracionais e espantosos costumese tradies daqueles antigos e ultrapassados tempos anacrnicos.Em vez de uma cuidadosamente constituda mquina onde cadaparte contribuiria para o todo, o conjunto social parecia uma da-quelas esquisitas mquinas a vapor de James Watt: negras, baru-lhentas, ineficientes e perigosas. Deve ter parecido muito esquisitoo dr. Smith afirmar que via ordem, desgnio e propsito em tudo isso!

    Suponha, por exemplo, que nosso visitante fosse conhecer asminas de estanho da Cornualha.2 Teria visto mineiros desceremat o fundo de poos negros, tirarem uma vela do cinto e deitarem-separa descansar at que a vela comeasse a gotejar. Ento, traba-lhariam por duas ou trs horas at o tradicional descanso seguinte,desta vez pelo tempo suficiente para fumar um cachimbo. Metadedo dia era passado em descanso e a outra metade cavando a mina.Mas se nosso visitante viajasse mais para o norte e tivesse coragemde descer nas minas de Durham ou de Northumberland, veria algomuito diferente. Nesses locais, homens e mulheres trabalhavamjuntos, despidos da cintura para cima e muitas vezes reduzidos aum lamentvel estado subumano de pura exausto. Os mais sel-vagens e brutos costumes estavam presentes ali; os apetites sexuaisdespertados por um olhar eram satisfeitos ali mesmo naquele am-biente horrvel; crianas de sete a dez anos, que jamais viam a luzdo dia nos meses de inverno, eram usadas e abusadas, recebendodos mineiros um msero pagamento para carregar as tinas comcarvo; mulheres grvidas puxavam carroas de carvo, como sefossem cavalos, e davam luz nas trevas das galerias das minas.

    Mas no era apenas nas minas que a vida se mostrava pito-resca, tradicional ou feroz. Dificilmente um observador teria vistotambm na superfcie qualquer indcio de ordem, harmonia e de-

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  • sgnio. Em muitas regies do pas, grupos de camponeses pobresperambulavam em busca de trabalho. No tempo da colheita, dasterras altas de Gales chegavam as Companhias de Antigos Brit-nicos3 (como eles mesmos gostavam de se intitular); s vezes tinhamum cavalo, sem sela e sem rdeas, para o grupo todo; s vezessimplesmente caminhavam. Acontecia com certa freqncia haverno grupo um que falava ingls e que servia de intermedirio entreo bando e os cavalheiros fazendeiros, aos quais pediam licena paraajudar na colheita. No seria de surpreender se o pagamento sereduzisse a seis pence por dia.

    E, finalmente, se nosso visitante chegasse a uma cidade in-dustrial, iria ver outros detalhes admirveis mas ainda nadaque sugerisse ordem a olhos inexperientes. Iria maravilhar-se coma fbrica construda pelos irmos Lombe, em 1742. Era um edifcioenorme para aquele tempo, com cerca de cento e cinqenta metrosde comprimento e seis pavimentos, tendo em seu interior as m-quinas descritas por Samuel Defoe como consistentes em 26 586Rodas e 97 746 Movimentos, que produzem cerca de 6 741 metrosde fio de seda cada vez que a roda-dgua completa uma volta, oque acontece trs vezes em um minuto.4 Igualmente dignas denota, as crianas que mantinham as mquinas em funcionamentocontnuo por doze ou catorze horas faziam sua comida em panelashorrivelmente pretas e eram alojadas em grupos em barraces onde,diziam, as camas sempre estavam quentes.5

    Esse mundo deveria parecer to estranho, cruel e acidentalno sculo dezoito quanto parece aos nossos olhos modernos. im-pressionante, portanto, descobrir que ele pde conciliar-se com oesquema de Filosofia Moral visualizado pelo dr. Smith e que ensinouo homem a buscar compreenso nos bem delineados contornos deleis vigorosas, formando um conjunto abrangente e significativo.

    Que tipo de homem era esse filsofo urbano?Nada tenho de belo a no ser meus livros, foi como certa

    vez Adam descreveu a si mesmo, orgulhoso, ao mostrar sua valiosabiblioteca a um amigo.6

    Com certeza, no era um homem bonito. Um medalho comseu perfil nos mostra o lbio inferior protuberante, como se quisesseencontrar-se com o grande nariz aquilino, e enormes olhos esbu-galhados sob pesadas plpebras. Durante a vida inteira Smith foiperturbado por intenso nervosismo; sua cabea tremia e ele falavaaos tropeos, de um jeito esquisito.

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  • Alm de tudo, havia sua notria distrao. Durante os anosde 1780, quando ele estava perto dos sessenta anos, os habitantesde Edimburgo tinham a ateno regularmente atrada pelo divertidoespetculo de seu mais ilustre conterrneo vestido com um casacobrilhantemente colorido, calas amarradas sob os joelhos, meias deseda branca, sapatos com fivelas, chapu achatado de pele de castorcom aba larga e de bengala, passeando pelas ruas caladas compedras, os olhos fixos no infinito e os lbios movendo-se em silenciosodiscurso. A cada um ou dois passos ele hesitava, como se no sou-besse se queria mudar de direo ou voltar; seu modo de andarfoi descrito por um amigo como vermicular.

    Eram comuns as anedotas sobre sua distrao. Certa ocasiosaiu de casa vestindo apenas a camisa de dormir e caminhou maisde vinte quilmetros antes de perceber o que fizera. Uma outravez, enquanto passava por uma rua na companhia de um amigoeminente em Edimburgo, um guarda lhe apresentou armas, eSmith, que fora inmeras vezes cumprimentado daquela maneira,pareceu ficar hipnotizado pela saudao do soldado; retribuiu ocumprimento com a bengala e espantou ainda mais seu acompa-nhante ao imitar com exatido cada gesto do guarda, repetindo osmovimentos da lana com a bengala. Quando o encanto se quebrou,Smith encontrou-se em p diante de uma escadaria, com a bengalaerguida. Sem ter idia do que havia feito, ele abaixou a bengalae continuou a conversa no ponto em que a interrompera.

    O distraidssimo professor nasceu em 1723, na cidade de Kirk-caldy, Condado de Fife, na Esccia. Kirkcaldy abrigava uma po-pulao de 1 500 pessoas. Na poca do nascimento de Smith, aindase usavam pregos como dinheiro em algumas cidades. Quando eletinha quatro anos, houve um incidente curioso: Smith foi seqes-trado por um bando de ciganos que passou por Kirkcaldy; graasaos esforos de seu tio (o pai dele morrera antes de seu nascimento),os ciganos foram localizados, perseguidos e na fuga abandonaramo pequeno Adam. Temo que ele teria dado um pssimo cigano,escreveu um de seus bigrafos.

    Desde pequeno Smith foi bom aluno, embora j ento fossemuito distrado. Logo ficou evidente que estava destinado a ensinare aos dezessete anos foi para Oxford com uma bolsa de estudos fazendo a viagem em lombo de cavalo e l permaneceu por seisanos. Mas ento Oxford ainda no era a cidadela de ensino quese tornou mais tarde. A maioria dos professores pblicos haviamuito tinha desistido da pretenso de ensinar. Um viajante es-

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  • trangeiro conta sobre seu espanto ao assistir a um debate pblicoem Oxford, no ano de 1788. Os quatro participantes passaram otempo todo em profundo silncio, cada qual absorvido na leiturade um folhetim popular da poca. Uma vez que instruo era exceoem vez de regra, Smith passou anos sem qualquer ensino ou orien-tao, lendo tudo que lhe caa nas mos. A propsito, ele quase foiexpulso da universidade por causa de um exemplar do A Treatiseof Human Nature, de David Hume, que foi encontrado em seuquarto Hume no era leitura considerada adequada, muito menospara um futuro filsofo.

    Em 1751 ele ainda no fizera vinte e oito anos foi ofe-recida a Smith a Ctedra de Lgica na Universidade de Glasgowe logo depois lhe deram a Ctedra de Filosofia Moral. Ao contrriode Oxford, Glasgow era o centro srio do que veio a se chamarIluminismo Escocs e abrigava uma galxia de talentos. Assimmesmo, diferia consideravelmente da concepo moderna de umauniversidade. O emproado corpo docente no aprovava inteiramentea evidente leviandade e o entusiasmo que transpareciam nas ma-neiras de Smith. Ele era acusado de ter sido visto uma vez ououtra sorrindo durante os servios religiosos (provavelmente du-rante alguns de seus sonhos de olhos abertos), de ser amigo doultrajante Hume, de no dar aulas dominicais sobre evidnciascrists, de enviar ao Senatus Academicus peties para ser dispen-sado das oraes antes do incio de suas aulas e de fazer oraesque insinuavam uma certa religio natural. Talvez isto tudo sejavisto por uma perspectiva melhor se lembrarmos que o professorde Smith, Francis Hutcheson, abriu novos caminhos em Glasgowao se recusar a dar aulas em latim para seus alunos!

    A desaprovao no deve ter sido assim to severa, pois Smithtornou-se Decano em 1758. Sem dvida alguma ele era feliz emGlasgow. noite jogava uste3 a distrao o tornava um jogadorindigno de confiana , ia a associaes de mestres e levava umavida sossegada. Seus alunos gostavam muito dele, principalmentecomo professor at mesmo Boswell foi assistir s suas aulas e seu jeito estranho de movimentar-se e de falar ganhou a home-nagem da imitao. Pequenos bustos dele eram expostos nas vitri-nas das livrarias.

    No foi apenas a personalidade excntrica que deu prestgioa Smith. Em 1759 ele publicou um livro que despertou sensao

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    3 Jogo de cartas, considerado o ancestral do bridge. (N. do E.)

  • instantaneamente. Chamava-se The Theory of Moral Sentiments(A Teoria do sentimentos morais) e catapultou Smith de imediatopara o primeiro lugar entre os filsofos. A Theory era um estudoa respeito da origem da aprovao e da desaprovao moral. Deque modo o homem, que uma criatura egosta, pode fazer julga-mentos morais nos quais o interesse prprio parece encontrar-seem estado latente ou ter sido transportado para um plano maiselevado? Smith considera que a resposta est na nossa habilidadeem nos colocarmos na posio de uma terceira pessoa, de um ob-servador imparcial, e deste modo formar uma noo complacentedos (em oposio ao egosmo) mritos objetivos do caso.

    O livro e seus problemas despertaram amplo interesse. NaAlemanha, das Adam Smith Problem tornou-se assunto favoritopara debates. Mais importante ainda, do nosso ponto de vista, otratado caiu nas boas graas de um intrigante homem chamadoCharles Townshend.

    Townshend uma daquelas maravilhosas figuras que surgiramem grande nmero durante o sculo dezoito. Homem esperto e culto,Townshend era, nas palavras de Horace Walpole, um homem dotadode todos os verdadeiros e grandes talentos, que poderia ter sido amaior personalidade de sua poca se fosse sincero, tivesse constnciae senso comum.7 A volubilidade de Townshend era famosa; um gracejoda poca dizia que o sr. Townshend sofria de uma dor de lado, masrecusava-se a especificar que lado.8 Uma prova de sua falta de sensocomum era que Townshend, como ministro das Finanas, ajudara aprecipitar a Revoluo Americana, primeiro recusando aos coloniza-dores o direito de eleger seus prprios juzes e, em seguida, impondopesados impostos sobre o ch americano.

    Mas, posta de lado sua curta viso poltica, Townshend eraum sincero estudioso da filosofia e da poltica, da devotado a AdamSmith, e, o que interessa ainda mais, encontrava-se em posio defazer-lhe uma importante oferta. Em 1754 Townshend se casaracom a condessa de Dalkeith, a viva do duque de Buccleuch, eviu-se na obrigao de procurar um tutor para o filho de sua mulher.A educao de um jovem cavalheiro da classe nobre consistia prin-cipalmente na Grande Viagem, ou seja, uma visita Europa con-tinental, durante a qual podia-se adquirir a polidez e finesse tovalorizadas por lorde Chesterfield. O dr. Adam Smith seria o acom-panhante ideal para o jovem duque, pensou Townshend, e conse-qentemente ofereceu-lhe quinhentas libras por ano, mais as des-pesas e uma penso de quinhentas libras por ano pela vida inteira.

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  • Era uma oferta boa demais para ser recusada. At ento, Smith ga-nhara no mximo cento e setenta libras, que eram o pagamento que,naqueles dias, os professores recebiam diretamente de seus alunos. interessante notar que seus alunos recusaram a devoluo do quehaviam pago ao dr. Smith e que ele lhes ofereceu de volta ao deix-los:alegaram que j tinham sido mais do que recompensados.

    O tutor e Sua jovem Graa partiram para a Frana em 1764.Permaneceram em Toulouse por um ano e meio, onde a combinaode uma abominavelmente tediosa companhia e o execrvel francsde Smith fez sua tranqila vida em Glasgow assumir o aspecto deverdadeira dissipao. Ento, foram para o sul da Frana (ondeele conheceu e adorou Voltaire e recusou as atenes de uma amo-rosa marquesa), em seguida para Genebra e, afinal, para Paris.Procurando aliviar o tdio das provncias, Smith comeou a traba-lhar num tratado de economia poltica, assunto que fora tema desuas aulas em Glasgow, que havia debatido muitas noites na So-ciedade Seleta de Edimburgo e discutido at a exausto com seuquerido amigo David Hume. O livro iria ser o The Wealth of Nations(A Riqueza das Naes), mas iriam se passar doze anos at queficasse pronto.

    Paris foi bem melhor. J ento o francs de Smith, emboraainda medonho, tornara-se bom o bastante para permitir-lhe falarcorrentemente com o maior pensador econmico da Frana. EraFranois Quesnay, um doutor da corte de Lus XV e mdico pessoalde Mme. Pompadour. Quesnay havia iniciado uma escola de eco-nomia conhecida como Fisiocracia e elaborara um esquema de fun-cionamento da economia denominado tableau conomique. O tableauera na verdade uma viso de um mdico: em oposio s idias dapoca, que ainda consideravam a riqueza como um slido acmulode ouro e prata, Quesnay insistia que a riqueza originava-se daproduo e espalhava-se atravs do pas, de mo em mo, fortale-cendo o organismo social como a circulao do sangue.9 O tableauimpressionou profundamente Mirabeau, o velho, que caracteri-zou-o como uma inveno to importante como a escrita e o di-nheiro.10 Mas o problema com a Fisiocracia era sua insistncia emque apenas o trabalhador agrcola produzia a verdadeira