a favela e seus moradores

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ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2° SEMESTRE DE 2005 107 ARTIGOS A FAVELA E SEUS MORADORES: CULPADOS OU VÍTIMAS? REPRESENTAÇÕES SOCIAIS EM TEMPOS DE VIOLÊNCIA THE SLUM AND ITS DWELLERS: GUILTIES OR VICTMS? SOCIALS REPRESENTATIOS IN TIMES OF VIOLENCE Luciene Alves Miguez Naiff * Denis Giovani Monteiro Naiff ** RESUMO As favelas, suas regras, códigos e seus moradores são objetos de estudo privilegiado por estarem cada vez mais associados a violência nas informações veiculadas na mídia. Utilizando a teoria das representações sociais procuramos investigar como cidadãos de classe média baixa percebem a violência atual, a favela e seus moradores. Os dados foram coletados através do método de evocação livre e analisados com o auxílio do software EVOC. Os resultados apontaram para uma percepção negativa e em movimento, relacionando cada vez mais a favela e seus moradores, às principais causas da violência na cidade. As representações sociais que vinculam a pobreza com a criminalidade podem gerar tomadas de posição e comportamentos que reforcem o preconceito e o alijamento dos moradores de favelas, aumentando os sentimentos de não pertencimento e negação dessa parcela da população. PALAVRAS-CHAVE: Representações sociais; favela; moradores de favela; violência. INTRODUÇÃO Diante da crescente e desenfreada violência urbana sentida no Estado do Rio de Janeiro, fica cada vez mais evidente a necessidade de dar voz aos grupos envolvidos nesse processo. A presença de situações classificadas como violentas em uma megalópole como o Rio de Janeiro não chega a ser espantosa, pois em maior ou menor grau esse fenômeno parece acompanhar o cotidiano de todas as grandes cidades mundiais (NASCIMENTO, 1997). Entretanto, as estatísticas aqui são cada dia mais * Doutora em Psicologia social pela UERJ, Professora do Mestrado em Psicologia Social da Universidade Salgado de Oliveira. Pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos sobre a Infância da PUC – Rio. ** Doutor em Psicologia Social pela UERJ, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano no contexto sócio- cultural pela Universidade de Brasília - UnB e psicólogo pela UnB.

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favela

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  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 107

    ARTIGOS A FAVELA E SEUS MORADORES: CULPADOS OU VTIMAS? REPRESENTAES SOCIAIS EM TEMPOS DE VIOLNCIA THE SLUM AND ITS DWELLERS: GUILTIES OR VICTMS? SOCIALS REPRESENTATIOS IN TIMES OF VIOLENCE Luciene Alves Miguez Naiff* Denis Giovani Monteiro Naiff **

    RESUMO As favelas, suas regras, cdigos e seus moradores so objetos de estudo privilegiado por estarem cada vez mais associados a violncia nas informaes veiculadas na mdia. Utilizando a teoria das representaes sociais procuramos investigar como cidados de classe mdia baixa percebem a violncia atual, a favela e seus moradores. Os dados foram coletados atravs do mtodo de evocao livre e analisados com o auxlio do software EVOC. Os resultados apontaram para uma percepo negativa e em movimento, relacionando cada vez mais a favela e seus moradores, s principais causas da violncia na cidade. As representaes sociais que vinculam a pobreza com a criminalidade podem gerar tomadas de posio e comportamentos que reforcem o preconceito e o alijamento dos moradores de favelas, aumentando os sentimentos de no pertencimento e negao dessa parcela da populao. PALAVRAS-CHAVE: Representaes sociais; favela; moradores de favela; violncia. INTRODUO

    Diante da crescente e desenfreada violncia urbana sentida no Estado do Rio de

    Janeiro, fica cada vez mais evidente a necessidade de dar voz aos grupos envolvidos

    nesse processo. A presena de situaes classificadas como violentas em uma

    megalpole como o Rio de Janeiro no chega a ser espantosa, pois em maior ou menor

    grau esse fenmeno parece acompanhar o cotidiano de todas as grandes cidades

    mundiais (NASCIMENTO, 1997). Entretanto, as estatsticas aqui so cada dia mais

    * Doutora em Psicologia social pela UERJ, Professora do Mestrado em Psicologia Social da Universidade Salgado de Oliveira. Pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos sobre a Infncia da PUC Rio.

    ** Doutor em Psicologia Social pela UERJ, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano no contexto scio-cultural pela Universidade de Braslia - UnB e psiclogo pela UnB.

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 108

    assustadoras, com nmeros de vtimas somente comparveis a pases em guerra.

    Mdicos dos hospitais da capital fluminense so especialistas em cirurgias para tentar

    salvar feridos por armas normalmente utilizadas apenas em conflitos blicos declarados.

    Entender essa situao partindo de um levantamento dos ingredientes que

    compem essa conjuntura j forneceria por si s elementos importantes de anlise: uma

    cidade super povoada, um ndice de desigualdade de aproximadamente 15 vezes entre

    seus bairros mais ricos e os mais pobres (TOLEDO, 1998), comunidades carentes com

    at um milho de habitantes, presena macia do narcotrfico nestas comunidades,

    utilizao de armamento pesado pelos traficantes, emprego de crianas e adolescentes

    nas linhas de frente do trfico, um poder policial que mais mata no mundo, falta de

    polticas pblicas de incluso e gerao de renda para os jovens dessas comunidades

    carentes, falta de poltica de segurana, governantes omissos. Como conseqncia desse

    estado das coisas, vemos a violncia se manifestando progressivamente e acirrando

    dios e preconceitos entre os grupos sociais.

    Em vista dessas questes, o pobre, o negro, o morador de favela e a prpria

    favela em si ficam no imaginrio da sociedade como os legtimos representantes da

    violncia e de tudo o que ela significa. Atualmente, o clamor social diante de alguns

    fatos significativos de violncia que ocorreram nos ltimos meses na cidade (guerra em

    favelas situadas em reas nobres da cidade; fechamento de importantes vias expressas

    de ligao entre diversos bairros; lanamentos de bombas e granadas em logradouros

    pblicos; nibus incendiados; fechamento do comrcio, inclusive em reas nobres da

    cidade, por ordem do trfico; assassinatos sistemticos de policiais; mortes de inocentes,

    etc.) tm provocado e aumentado o preconceito e o abismo existente entre os vrios

    segmentos da sociedade.

    Neste contexto, torna-se premente uma discusso mais ampla que deva

    privilegiar as representaes sociais que vm sendo formadas diante das situaes

    atuais. Para dar conta da emergncia dessa nova situao de violncia exacerbada na

    cidade, entendemos que as representaes sociais esto sendo reformuladas e

    construdas no sentido de gerar uma tentativa de compreenso da realidade.

    O temido marginal, fonte de todas as apreenses da populao, agora se

    objetifica na figura do negro, pobre, morador de favela, causando o que Jodelet (1998,

    p.48) chama de alteridade de dentro:

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 109

    referida queles que, marcados com o selo da diferena, seja ela fsica (cor, raa, deficincia, etc) ou ligada a uma pertena de grupo (nacional, tnico, comunitrio, religioso, etc), se distinguem no seio de um conjunto social ou cultural e podem a ser considerados como fonte de mal-estar ou de ameaa.

    Infelizmente, os traficantes se aproveitam da camuflagem de moradores de

    favela para se misturar e dificultar a ao da polcia. A prpria estrutura espacial, cheia

    de vielas e becos, favorece a favela como local de esconderijo. Contudo, no h como

    falar dos traficantes atuais sem antes buscar na histria do Brasil, e mais

    especificamente na histria da cidade do Rio de Janeiro, o aparecimento de enormes

    contingentes de jovens desempregados e a ocupao dos morros da cidade.

    A libertao dos escravos no final do sculo XIX e a grande imigrao de

    europeus no comeo do sculo XX foram responsveis por uma demanda por empregos

    que a conjuntura scioeconmica da poca no conseguia absorver. Os negros ex-

    escravos foram libertados sem nenhuma proposta de insero no mercado de trabalho;

    pelo contrrio, foram colocados em situao jurdica irregular com a criao da lei de

    represso ociosidade, um ms aps a promulgao da Lei urea. Essa populao de

    escravos, somada aos imigrantes que no conseguiam se adaptar aos padres impostos

    pela sociedade, formaram os contingentes de despossudos que ocupavam as ruas e os

    cortios da cidade do Rio de Janeiro, vivendo em condies sub-humanas (COSTA

    LEITE, 1997).

    Para agravar a situao, as tropas advindas do conflito de Canudos em 1897, sem

    local para se estabelecer na cidade do Rio de Janeiro, foram ocupar principalmente os

    morros, em especial o da Providncia, no centro da cidade, passando a cham-lo de

    Morro da Favela, aluso a um morro existente na regio de Canudos. O nome favela

    acaba virando sinnimo deste modelo de moradia e outros morros ocupados passam a

    receber essa alcunha.

    No incio do sculo XX observamos o auge do movimento higienista, com a

    finalidade de diminuir a alta taxa de mortalidade da populao mais carente, residente

    nos cortios da cidade. O controle de algumas doenas, como a peste e a febre amarela,

    alm da vacinao em massa contra a varola, permitiram o aumento da expectativa de

    vida dos jovens pobres cariocas. Somando-se um aumento significativo de

    desenvolvimento econmico da cidade, o Rio de Janeiro observa um crescimento

    acelerado se sua populao: entre 1890 e 1920 ela passaria de 522.651 para 1.157.873

    habitantes. O projeto de modernizao da cidade, proposto pelo prefeito Pereira Passos

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 110

    no incio do sculo XX, promove uma reforma urbana radical que, entre outras coisas,

    desencadeia o bota-abaixo aos cortios existentes. Sem alternativas de moradia, as

    populaes dos cortios da cidade tambm iro ocupar os morros.

    Nos anos 50 e 60, foi a vez do xodo rural e regional ser responsvel por mais

    um inchao nas metrpoles brasileiras. Os nordestinos e nortistas vieram para o sul

    maravilha em busca de oportunidades, fugindo da misria, da fome e da seca,

    concentrando-se em sua maioria nos morros e nas periferias.

    A classe mdia, que vivia perodo de ascenso social e econmica na cidade, via

    com desconfiana e preconceito essa ocupao dos morros pelas camadas mais pobres.

    Desde ento, o morro passou a ser visto como local de gente perigosa e marginal.

    Obviamente no havia ainda a influencia marcante do narcotrfico e o preconceito tinha

    muito a ver com a pobreza e os costumes da populao carente.

    A populao nas favelas cresceu vertiginosamente nas ltimas dcadas,

    principalmente a partir do final dos anos 50. Atualmente, temos uma diminuio dos

    ndices de pobreza, camuflados pelos critrios de avaliao. Apesar de o favelado de

    hoje ter televiso, geladeira, fogo, vdeocassete e at microondas, essa melhora na

    qualidade de vida esbarra na inrcia da vivncia da excluso durante geraes. A falta

    de perspectiva de futuro e de empregos para as geraes mais novas retrata uma

    subseqente reproduo da pobreza e da excluso social (VERAS, 1999).

    O trfico de drogas, nesses ltimos anos, teve um excelente espao para

    aumentar e se multiplicar nas favelas cariocas e de outras cidades do pas. Todas as

    condies da pobreza brasileira foram favorveis ao seu crescimento, alm do descaso e

    conivncia dos poderes polticos e econmicos. O trfico um grande e lucrativo

    mercado, seu funcionamento global e extremamente organizado, envolvendo vrios

    pases, consumidores de todas as classes sociais e executivos estrategistas. Iluso pensar

    em acabar com essa prtica apenas com propostas repressivas aos jovens que esto no

    ltimo escalo dessa estrutura. Temos que procurar entender a favela, suas regras e

    cdigos atravs da vivncia de seus moradores e de seu impacto na sociedade. So nas

    relaes humanas que as estruturas sociais fixam sua existncia. Para isso importante

    investigar as representaes sociais que vm sendo formadas e reformuladas dessa

    realidade, utilizando esse conhecimento como justificativa para propostas de mudanas

    e polticas inclusivas de cooperao e solidariedade.

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 111

    Os pressupostos tericos e metodolgicos do presente trabalho seguem a

    orientao da teoria das representaes sociais, originalmente proposta por Serge

    Moscovici (1961/1979) e que, atravs de um esforo conceitual, pode ser entendida

    enquanto um conjunto organizado e hierarquizado de julgamentos, atitudes e de

    informaes que um grupo social elabora a propsito de um objeto (ABRIC,1996,

    p.11).

    Deste modo de extrema importncia entender como a sociedade, atravs dos

    grupos sociais que a compem, percebe a excluso social em suas mltiplas facetas.

    Segundo Abric (1996) as representaes sociais muito tm a contribuir para a anlise e

    busca de solues dos problemas sociais. O autor sugere que as investigaes das

    representaes sociais estejam presentes em todo o sistema social de relaes, desde a

    auto-representao que os indivduos excludos tem de sua identidade e de sua

    problemtica at as representaes presentes nos agentes sociais, institucionais e

    profissionais, que pretendam intervir nessa realidade.

    Objetivamos neste trabalho identificar elementos que comporiam as

    representaes sociais que moradores de classe mdia baixa, que vivem prximos

    favelas, teriam sobre a violncia, o morador da favela e a prpria favela em si.

    METODOLOGIA

    Foram entrevistados 152 sujeitos de ambos os sexos, estudantes de uma

    Faculdade localizada na cidade de So Gonalo, segundo maior colgio eleitoral do

    Estado do Rio de Janeiro, que relataram j terem sido vtimas de alguma violncia.

    Quanto condio scioeconmica, 92 sujeitos declararam possuir entre R$

    1.000,00 e R$ 2.000,00 de renda familiar; 45 possuam menos de R$ 1.000,00 e

    somente 15 tinham como renda familiar mais de R$ 2.000,00.

    Entre as opes plurimetodolgicas normalmente associadas perspectiva

    terica aqui privilegiada, tem-se mostrado bastante eficaz para os nossos objetivos a

    tcnica de evocao livre desenvolvida por Vergs (1999). Nesta pesquisa, ela serviu ao

    levantamento dos possveis elementos centrais e perifricos das representaes sociais,

    a partir das evocaes desencadeadas pelos estmulos: violncia, favela e morador de

    favela; levando a uma melhor aproximao possvel dos elementos que comporiam a

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 112

    organizao interna da representao, em termos de seus sistemas central e perifricos

    (ABRIC, 1994).

    As evocaes produzidas pelos sujeitos foram registradas na ordem exata em

    que foram emitidas, permitindo a contagem de duas ordens de dados para anlise: a

    freqncia em que cada elemento foi evocado e sua ordem mdia de evocaes (se foi a

    primeira a ser evocada, a segunda, etc.), considerando todos os sujeitos que o fizeram.

    A anlise combinada da freqncia e da ordem de evocao das respostas

    cumpre a funo de colocao em evidncia das propriedades de salincia e de

    conexidade dos diferentes elementos de uma representao, de modo a prover um

    levantamento inicial daqueles mais suscetveis de fazer parte do ncleo central (S,

    1996, p.115).

    As respostas evocadas aos termos indutores foram analisadas com o auxlio do

    programa de computador EVOC (VERGS,1999).

    A figura 1 representa um esquema de distribuio dos resultados encontrados na

    evocao dos sujeitos ao termo indutor. Identificam-se como provveis elementos

    centrais da representao os temas localizados no quadrante superior esquerdo, que

    foram ao mesmo tempo os mais freqentes e os mais prontamente evocados. Por outro

    lado, no quadrante inferior direito, esto localizados os elementos claramente

    perifricos, com baixa freqncia e menos prontamente evocados. Nos outros dois

    quadrantes, misturam-se elementos que tanto podem constituir uma espcie de

    periferia prxima ao ncleo central, quanto outros mais distantes nessa subordinao

    estrutural.

    Ordem mdia de evocao

    1. quadrante

    Alta evocao + alta

    freqncia

    2. quadrante

    Baixa evocao + alta

    freqncia

    Freqncia mdia 3 . quadrante

    Alta evocao + baixa

    freqncia

    4. quadrante

    Baixa evocao + baixa

    freqncia

    Figura 1: representao esquemtica da distribuio das cognies das representaes sociais no modelo de evocao livre.

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 113

    RESULTADOS: ANLISE E DISCUSSO

    Apresenta-se a seguir o primeiro quadro de resultados (figura 2) relativo aos

    elementos evocados pelos sujeitos perante a presena do termo indutor violncia.

    Verifica-se que o provvel ncleo central dessa representao social representado

    pelos elementos do primeiro quadrante esquerdo reflete um sentimento generalizado

    que vem assustando e paralisando os moradores das grandes cidades do Rio de Janeiro:

    o medo, responsvel pelo maior nmero de evocaes. Sem recursos para garantir a

    proteo atravs de seguranas, carros blindados e moradias protegidas, a maioria dos

    cidados se v completamente indefesa nesse contexto de aumento de violncia na

    cidade. Morte e maldade foram elementos relacionados tambm ao provvel ncleo

    central das representaes sociais da violncia. Essas construes sociais acompanham

    a idia do medo da vivncia da violncia, pois, atualmente, qualquer assalto mais

    simples vem acompanhado de situaes reais de risco de vida. A falta de educao, no

    sentido de estudo formal, e a falta de amor so possveis buscas de fatores causais para a

    forma como a violncia se caracteriza nos dias atuais.

    O fim da violncia talvez seja a cobrana mais importante que a sociedade faa a

    seus governantes. O clima de insegurana que impera nas grandes cidades do Rio de

    Janeiro e o destaque dado pela imprensa aos eventos violentos colocam esse tema como

    emergente no cotidiano dos cariocas. Refletindo o discurso massivamente veiculado

    pela mdia, encontramos no quadrante superior direito uma tentativa de problematizar a

    violncia como conseqncia do comrcio das drogas e o desejo de que ela tenha fim o

    mais rpido possvel.

    < 2,9

    ORDEM DE EVOCAO

    > 2,9

    Medo 43

    Tristeza 19

    Morte 34 Tem que acabar 18Assalto 26 Drogas 16Falta de educao 20 Falta de amor 18 Maldade 18 Freqncia 16

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 114

    Freqncia

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 115

    moradores, e conseqncia da falta de opo mais digna de moradia destinada

    populao empobrecida.

    Relacionar favela, trfico de drogas e violncia so concepes atuais, levando

    em conta o tempo que o narcotrfico ocupa os morros na cidade. Historicamente, desde

    o final do sculo XIX, os morros da cidade so ocupados pelas classes mais pobres. No

    entanto, remonta dcada de 60 e 70 o fortalecimento das redes de trfico de drogas nas

    favelas. Essa situao s se tornou impactante e relevante para a classe mdia nos

    ltimos 20 anos. Isso reflete que as representaes desse espao social esto em

    constante movimento e sugerem que em outros grupos sociais possam j haver

    mudanas.

    Os dois quadrantes inferiores apresentam elementos mais perifricos da

    representao social e revelam a diversidade de sentidos negativos destinados a esse

    objeto social. Local sujo, triste, miservel, perigoso, sem saneamento bsico, moradia

    de bandidos ou desempregados, so apenas uma pequena mostra das cognies

    construdas sobre a favela.

    < 2,9

    ORDEM DE EVOCAO

    > 2,9

    Trfico de drogas 74

    Violncia 38

    Pobreza 69 Discriminao 18Falta de moradia 34 Sem opo 16Fome 26 Desigualdade Social 20 Freqncia 16 Freqncia

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 116

    Necessidade 06 Crime 07Comunidade 05 Morte 07 Injustia 05 FIGURA 3 Quadrantes de distribuio das evocaes livres ao tema favela.

    Uma das dimenses formadora da representao social do morador de favela

    est representada na figura 4. O possvel ncleo central dessa representao reflete a

    personificao da figura do favelado em trs personagens emblemticos: os

    traficantes, mais prontamente evocados, personificando a violncia que assola a cidade;

    os miserveis, personificando os excludos sociais, a pobreza extrema; e os moradores

    honestos, personificados na figura dos trabalhadores pobres.

    Estes personagens freqentemente acabam se misturando no imaginrio da

    populao, gerando um incremento no preconceito e na discriminao, principalmente

    com o homem jovem, morador de favela. No podendo identificar claramente os

    diferentes tipos criados e compartilhados pelos seus grupos sociais, aqueles que no

    moram nos morros tendem a identificar o morador atravs da personificao de seu

    maior pesadelo: o traficante de drogas. Opinio compartilhada pelos moradores de

    favelas que reclamam que a sociedade esquece que a favela tambm moradia de

    pessoas honestas e trabalhadoras e no somente de bandidos (PANDOLFI;

    GRYNSZPAN, 2003).

    Os quadrantes inferiores so compostos por elementos perifricos da

    representao do morador de favela: um guerreiro, trabalhador e muito mais vtima do

    que culpado por sua condio. Infelizmente, o recrudescimento dos ndices de violncia

    urbana tem diminudo a importncia destes elementos na constituio da representao

    do morador das comunidades mais pobres. A tendncia cada vez mais demoniz-lo e

    responsabiliz-lo por sua condio e, pior, v-lo como conivente da situao de

    violncia e expanso do narcotrfico em sua comunidade.

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 117

    < 2,8

    ORDEM DE EVOCAO

    > 2,8

    Traficantes 57

    Pobres 51 Discriminado 41 Trabalhador 26 Sem opo 25 Freqncia 22 Freqncia < 22 Falta de educao 21 Falta e oportunidade 15Ser humano 15 Medo 15Desempregado 13 Excludo 10Sofredor 12 Violncia 10Humilde 10 Pessoa honesta 11 Falta de moradia 11 Guerreiro 09 FIGURA 4 Quadrantes de distribuio das evocaes livres ao tema morador de favela.

    Os grupos sociais da sociedade brasileira, que diferem pela situao

    socioeconmica, so impactados de forma diferente pela percepo da violncia, da

    favela e de seus moradores. O abismo est crescendo e as representaes sociais, por

    sua vez, se modificando e se adaptando apreenso da realidade que esses grupos em

    suas idiossincrasias precisam ter.

    CONCLUSO

    Devemos estar preparados e atentos para o perigo que representaes sociais,

    vinculando a pobreza com a criminalidade, possam gerar em termos de atitudes,

    tomadas de posio e comportamentos. Trabalhos como este pretendem ampliar a

    discusso da temtica da violncia e da excluso para que, ouvindo os vrios grupos

    sociais que compem a sociedade, possamos estar contribuindo para entender como

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 118

    essas situaes vo sendo incorporadas no dia a dia de uma cidade como o Rio de

    Janeiro. O cidado carioca de classe mdia cada vez menos acredita na justia ou em

    polticas de segurana. Os cidados das classes mais baixas, por sua vez, tambm esto

    cticos quanto s promessas de mudanas e oportunidades de incluso social. Isso

    coloca grupos sociais de classes socioeconmica diferentes como inimigos em uma

    guerra na qual no h vencedores (ESCOREL, 1999).

    Zaluar (1997, p. 11) aponta para a dificuldade de problematizar e propor

    resolues para a situao de violncia, tanto do ponto de vista prtico quanto

    ideolgico, quando argumenta acerca do que necessrio para melhorar esse estado das

    coisas: tornar complexa a anlise dos contextos sociais mais amplos e mais locais para entendermos os motivos pelos quais cada vez um nmero maior de jovens (de todos os estratos sociais) comete crimes, o que nem sempre significa a adoo de uma carreira criminosa, e por que alguns deles passam a exercer um tipo de poder militar nas comunidades onde as instituies encarregadas de manter a lei ou esto ausentes ou tornaram-se coniventes com o negcio ilegal ou so fracas; onde as organizaes vicinais se desagregaram ou foram esvaziadas pela competio poltica entre partidos e grupos religiosos; onde figuras paternas e maternas no mais oferecem modelos nem so capazes de controlar seus filhos.

    A proposta de Zaluar (1997) e o compromisso de nossa pesquisa favorecer e

    ampliar a discusso da violncia na cidade do Rio de Janeiro. No podemos permitir

    que esse assunto seja tratado e manipulado poltica e partidariamente por quem tem a

    responsabilidade constitucional de modificar o rumo das coisas.

    Zaluar (1997, p. 18) prope que essa discusso englobe o panorama mundial de

    crescimento da violncia, pois no h como negar a necessidade de se entender essa onda de violncia no apenas como efeito geolgico das camadas culturais da violncia costumeira no Brasil, mas tambm dentro do panorama do crime organizado internacionalmente, do crime, tambm ele globalizado, com caractersticas econmicas, polticas e culturais sui generis, sem perder algo do velho capitalismo da busca desenfreada do lucro a qualquer preo.

    Fica a sugesto de continuidade dessa pesquisa, buscando nas representaes

    sociais de outros segmentos que compem nossa sociedade o entendimento da realidade

    de violncia, preconceito e excluso social de grupos cada vez mais marginalizados e

    marginais, e o desafio de fazer da produo desse conhecimento propostas para serem

    utilizadas nas intervenes polticas e sociais. Esse o nosso compromisso social.

  • ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 119

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    ABSTRACT Favela shanty towns, their rules, codes and residents are favoured objects of study because they are increasingly associated with the violence portrayed in information broadcast by the media. Using the theory of social representations we seek here to investigate how members of the lower middle class perceive present-day violence, favelas and their residents. The data were gathered using the free-evocation method and analysis was assisted by EVOC software. The results pointed to an adverse, shifting perception that increasingly relates favelas and their residents with the major causes of violence in Rio de Janeiro. Social representations linking poverty with criminality can lead to the adoption of positions and behaviours that reinforce prejudice and exclusion against favela residents, thus enhancing feelings of not belonging and of denial among this portion of the population. KEYWORDS Social representations; slum residents; violence.

    Recebido em: 07/12/2004 Aceito para publicao em: 25/01/2005 Endereo: [email protected]; [email protected]