a favela e seus moradores
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ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 5, N.2, 2 SEMESTRE DE 2005 107
ARTIGOS A FAVELA E SEUS MORADORES: CULPADOS OU VTIMAS? REPRESENTAES SOCIAIS EM TEMPOS DE VIOLNCIA THE SLUM AND ITS DWELLERS: GUILTIES OR VICTMS? SOCIALS REPRESENTATIOS IN TIMES OF VIOLENCE Luciene Alves Miguez Naiff* Denis Giovani Monteiro Naiff **
RESUMO As favelas, suas regras, cdigos e seus moradores so objetos de estudo privilegiado por estarem cada vez mais associados a violncia nas informaes veiculadas na mdia. Utilizando a teoria das representaes sociais procuramos investigar como cidados de classe mdia baixa percebem a violncia atual, a favela e seus moradores. Os dados foram coletados atravs do mtodo de evocao livre e analisados com o auxlio do software EVOC. Os resultados apontaram para uma percepo negativa e em movimento, relacionando cada vez mais a favela e seus moradores, s principais causas da violncia na cidade. As representaes sociais que vinculam a pobreza com a criminalidade podem gerar tomadas de posio e comportamentos que reforcem o preconceito e o alijamento dos moradores de favelas, aumentando os sentimentos de no pertencimento e negao dessa parcela da populao. PALAVRAS-CHAVE: Representaes sociais; favela; moradores de favela; violncia. INTRODUO
Diante da crescente e desenfreada violncia urbana sentida no Estado do Rio de
Janeiro, fica cada vez mais evidente a necessidade de dar voz aos grupos envolvidos
nesse processo. A presena de situaes classificadas como violentas em uma
megalpole como o Rio de Janeiro no chega a ser espantosa, pois em maior ou menor
grau esse fenmeno parece acompanhar o cotidiano de todas as grandes cidades
mundiais (NASCIMENTO, 1997). Entretanto, as estatsticas aqui so cada dia mais
* Doutora em Psicologia social pela UERJ, Professora do Mestrado em Psicologia Social da Universidade Salgado de Oliveira. Pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos sobre a Infncia da PUC Rio.
** Doutor em Psicologia Social pela UERJ, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano no contexto scio-cultural pela Universidade de Braslia - UnB e psiclogo pela UnB.
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assustadoras, com nmeros de vtimas somente comparveis a pases em guerra.
Mdicos dos hospitais da capital fluminense so especialistas em cirurgias para tentar
salvar feridos por armas normalmente utilizadas apenas em conflitos blicos declarados.
Entender essa situao partindo de um levantamento dos ingredientes que
compem essa conjuntura j forneceria por si s elementos importantes de anlise: uma
cidade super povoada, um ndice de desigualdade de aproximadamente 15 vezes entre
seus bairros mais ricos e os mais pobres (TOLEDO, 1998), comunidades carentes com
at um milho de habitantes, presena macia do narcotrfico nestas comunidades,
utilizao de armamento pesado pelos traficantes, emprego de crianas e adolescentes
nas linhas de frente do trfico, um poder policial que mais mata no mundo, falta de
polticas pblicas de incluso e gerao de renda para os jovens dessas comunidades
carentes, falta de poltica de segurana, governantes omissos. Como conseqncia desse
estado das coisas, vemos a violncia se manifestando progressivamente e acirrando
dios e preconceitos entre os grupos sociais.
Em vista dessas questes, o pobre, o negro, o morador de favela e a prpria
favela em si ficam no imaginrio da sociedade como os legtimos representantes da
violncia e de tudo o que ela significa. Atualmente, o clamor social diante de alguns
fatos significativos de violncia que ocorreram nos ltimos meses na cidade (guerra em
favelas situadas em reas nobres da cidade; fechamento de importantes vias expressas
de ligao entre diversos bairros; lanamentos de bombas e granadas em logradouros
pblicos; nibus incendiados; fechamento do comrcio, inclusive em reas nobres da
cidade, por ordem do trfico; assassinatos sistemticos de policiais; mortes de inocentes,
etc.) tm provocado e aumentado o preconceito e o abismo existente entre os vrios
segmentos da sociedade.
Neste contexto, torna-se premente uma discusso mais ampla que deva
privilegiar as representaes sociais que vm sendo formadas diante das situaes
atuais. Para dar conta da emergncia dessa nova situao de violncia exacerbada na
cidade, entendemos que as representaes sociais esto sendo reformuladas e
construdas no sentido de gerar uma tentativa de compreenso da realidade.
O temido marginal, fonte de todas as apreenses da populao, agora se
objetifica na figura do negro, pobre, morador de favela, causando o que Jodelet (1998,
p.48) chama de alteridade de dentro:
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referida queles que, marcados com o selo da diferena, seja ela fsica (cor, raa, deficincia, etc) ou ligada a uma pertena de grupo (nacional, tnico, comunitrio, religioso, etc), se distinguem no seio de um conjunto social ou cultural e podem a ser considerados como fonte de mal-estar ou de ameaa.
Infelizmente, os traficantes se aproveitam da camuflagem de moradores de
favela para se misturar e dificultar a ao da polcia. A prpria estrutura espacial, cheia
de vielas e becos, favorece a favela como local de esconderijo. Contudo, no h como
falar dos traficantes atuais sem antes buscar na histria do Brasil, e mais
especificamente na histria da cidade do Rio de Janeiro, o aparecimento de enormes
contingentes de jovens desempregados e a ocupao dos morros da cidade.
A libertao dos escravos no final do sculo XIX e a grande imigrao de
europeus no comeo do sculo XX foram responsveis por uma demanda por empregos
que a conjuntura scioeconmica da poca no conseguia absorver. Os negros ex-
escravos foram libertados sem nenhuma proposta de insero no mercado de trabalho;
pelo contrrio, foram colocados em situao jurdica irregular com a criao da lei de
represso ociosidade, um ms aps a promulgao da Lei urea. Essa populao de
escravos, somada aos imigrantes que no conseguiam se adaptar aos padres impostos
pela sociedade, formaram os contingentes de despossudos que ocupavam as ruas e os
cortios da cidade do Rio de Janeiro, vivendo em condies sub-humanas (COSTA
LEITE, 1997).
Para agravar a situao, as tropas advindas do conflito de Canudos em 1897, sem
local para se estabelecer na cidade do Rio de Janeiro, foram ocupar principalmente os
morros, em especial o da Providncia, no centro da cidade, passando a cham-lo de
Morro da Favela, aluso a um morro existente na regio de Canudos. O nome favela
acaba virando sinnimo deste modelo de moradia e outros morros ocupados passam a
receber essa alcunha.
No incio do sculo XX observamos o auge do movimento higienista, com a
finalidade de diminuir a alta taxa de mortalidade da populao mais carente, residente
nos cortios da cidade. O controle de algumas doenas, como a peste e a febre amarela,
alm da vacinao em massa contra a varola, permitiram o aumento da expectativa de
vida dos jovens pobres cariocas. Somando-se um aumento significativo de
desenvolvimento econmico da cidade, o Rio de Janeiro observa um crescimento
acelerado se sua populao: entre 1890 e 1920 ela passaria de 522.651 para 1.157.873
habitantes. O projeto de modernizao da cidade, proposto pelo prefeito Pereira Passos
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no incio do sculo XX, promove uma reforma urbana radical que, entre outras coisas,
desencadeia o bota-abaixo aos cortios existentes. Sem alternativas de moradia, as
populaes dos cortios da cidade tambm iro ocupar os morros.
Nos anos 50 e 60, foi a vez do xodo rural e regional ser responsvel por mais
um inchao nas metrpoles brasileiras. Os nordestinos e nortistas vieram para o sul
maravilha em busca de oportunidades, fugindo da misria, da fome e da seca,
concentrando-se em sua maioria nos morros e nas periferias.
A classe mdia, que vivia perodo de ascenso social e econmica na cidade, via
com desconfiana e preconceito essa ocupao dos morros pelas camadas mais pobres.
Desde ento, o morro passou a ser visto como local de gente perigosa e marginal.
Obviamente no havia ainda a influencia marcante do narcotrfico e o preconceito tinha
muito a ver com a pobreza e os costumes da populao carente.
A populao nas favelas cresceu vertiginosamente nas ltimas dcadas,
principalmente a partir do final dos anos 50. Atualmente, temos uma diminuio dos
ndices de pobreza, camuflados pelos critrios de avaliao. Apesar de o favelado de
hoje ter televiso, geladeira, fogo, vdeocassete e at microondas, essa melhora na
qualidade de vida esbarra na inrcia da vivncia da excluso durante geraes. A falta
de perspectiva de futuro e de empregos para as geraes mais novas retrata uma
subseqente reproduo da pobreza e da excluso social (VERAS, 1999).
O trfico de drogas, nesses ltimos anos, teve um excelente espao para
aumentar e se multiplicar nas favelas cariocas e de outras cidades do pas. Todas as
condies da pobreza brasileira foram favorveis ao seu crescimento, alm do descaso e
conivncia dos poderes polticos e econmicos. O trfico um grande e lucrativo
mercado, seu funcionamento global e extremamente organizado, envolvendo vrios
pases, consumidores de todas as classes sociais e executivos estrategistas. Iluso pensar
em acabar com essa prtica apenas com propostas repressivas aos jovens que esto no
ltimo escalo dessa estrutura. Temos que procurar entender a favela, suas regras e
cdigos atravs da vivncia de seus moradores e de seu impacto na sociedade. So nas
relaes humanas que as estruturas sociais fixam sua existncia. Para isso importante
investigar as representaes sociais que vm sendo formadas e reformuladas dessa
realidade, utilizando esse conhecimento como justificativa para propostas de mudanas
e polticas inclusivas de cooperao e solidariedade.
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Os pressupostos tericos e metodolgicos do presente trabalho seguem a
orientao da teoria das representaes sociais, originalmente proposta por Serge
Moscovici (1961/1979) e que, atravs de um esforo conceitual, pode ser entendida
enquanto um conjunto organizado e hierarquizado de julgamentos, atitudes e de
informaes que um grupo social elabora a propsito de um objeto (ABRIC,1996,
p.11).
Deste modo de extrema importncia entender como a sociedade, atravs dos
grupos sociais que a compem, percebe a excluso social em suas mltiplas facetas.
Segundo Abric (1996) as representaes sociais muito tm a contribuir para a anlise e
busca de solues dos problemas sociais. O autor sugere que as investigaes das
representaes sociais estejam presentes em todo o sistema social de relaes, desde a
auto-representao que os indivduos excludos tem de sua identidade e de sua
problemtica at as representaes presentes nos agentes sociais, institucionais e
profissionais, que pretendam intervir nessa realidade.
Objetivamos neste trabalho identificar elementos que comporiam as
representaes sociais que moradores de classe mdia baixa, que vivem prximos
favelas, teriam sobre a violncia, o morador da favela e a prpria favela em si.
METODOLOGIA
Foram entrevistados 152 sujeitos de ambos os sexos, estudantes de uma
Faculdade localizada na cidade de So Gonalo, segundo maior colgio eleitoral do
Estado do Rio de Janeiro, que relataram j terem sido vtimas de alguma violncia.
Quanto condio scioeconmica, 92 sujeitos declararam possuir entre R$
1.000,00 e R$ 2.000,00 de renda familiar; 45 possuam menos de R$ 1.000,00 e
somente 15 tinham como renda familiar mais de R$ 2.000,00.
Entre as opes plurimetodolgicas normalmente associadas perspectiva
terica aqui privilegiada, tem-se mostrado bastante eficaz para os nossos objetivos a
tcnica de evocao livre desenvolvida por Vergs (1999). Nesta pesquisa, ela serviu ao
levantamento dos possveis elementos centrais e perifricos das representaes sociais,
a partir das evocaes desencadeadas pelos estmulos: violncia, favela e morador de
favela; levando a uma melhor aproximao possvel dos elementos que comporiam a
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organizao interna da representao, em termos de seus sistemas central e perifricos
(ABRIC, 1994).
As evocaes produzidas pelos sujeitos foram registradas na ordem exata em
que foram emitidas, permitindo a contagem de duas ordens de dados para anlise: a
freqncia em que cada elemento foi evocado e sua ordem mdia de evocaes (se foi a
primeira a ser evocada, a segunda, etc.), considerando todos os sujeitos que o fizeram.
A anlise combinada da freqncia e da ordem de evocao das respostas
cumpre a funo de colocao em evidncia das propriedades de salincia e de
conexidade dos diferentes elementos de uma representao, de modo a prover um
levantamento inicial daqueles mais suscetveis de fazer parte do ncleo central (S,
1996, p.115).
As respostas evocadas aos termos indutores foram analisadas com o auxlio do
programa de computador EVOC (VERGS,1999).
A figura 1 representa um esquema de distribuio dos resultados encontrados na
evocao dos sujeitos ao termo indutor. Identificam-se como provveis elementos
centrais da representao os temas localizados no quadrante superior esquerdo, que
foram ao mesmo tempo os mais freqentes e os mais prontamente evocados. Por outro
lado, no quadrante inferior direito, esto localizados os elementos claramente
perifricos, com baixa freqncia e menos prontamente evocados. Nos outros dois
quadrantes, misturam-se elementos que tanto podem constituir uma espcie de
periferia prxima ao ncleo central, quanto outros mais distantes nessa subordinao
estrutural.
Ordem mdia de evocao
1. quadrante
Alta evocao + alta
freqncia
2. quadrante
Baixa evocao + alta
freqncia
Freqncia mdia 3 . quadrante
Alta evocao + baixa
freqncia
4. quadrante
Baixa evocao + baixa
freqncia
Figura 1: representao esquemtica da distribuio das cognies das representaes sociais no modelo de evocao livre.
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RESULTADOS: ANLISE E DISCUSSO
Apresenta-se a seguir o primeiro quadro de resultados (figura 2) relativo aos
elementos evocados pelos sujeitos perante a presena do termo indutor violncia.
Verifica-se que o provvel ncleo central dessa representao social representado
pelos elementos do primeiro quadrante esquerdo reflete um sentimento generalizado
que vem assustando e paralisando os moradores das grandes cidades do Rio de Janeiro:
o medo, responsvel pelo maior nmero de evocaes. Sem recursos para garantir a
proteo atravs de seguranas, carros blindados e moradias protegidas, a maioria dos
cidados se v completamente indefesa nesse contexto de aumento de violncia na
cidade. Morte e maldade foram elementos relacionados tambm ao provvel ncleo
central das representaes sociais da violncia. Essas construes sociais acompanham
a idia do medo da vivncia da violncia, pois, atualmente, qualquer assalto mais
simples vem acompanhado de situaes reais de risco de vida. A falta de educao, no
sentido de estudo formal, e a falta de amor so possveis buscas de fatores causais para a
forma como a violncia se caracteriza nos dias atuais.
O fim da violncia talvez seja a cobrana mais importante que a sociedade faa a
seus governantes. O clima de insegurana que impera nas grandes cidades do Rio de
Janeiro e o destaque dado pela imprensa aos eventos violentos colocam esse tema como
emergente no cotidiano dos cariocas. Refletindo o discurso massivamente veiculado
pela mdia, encontramos no quadrante superior direito uma tentativa de problematizar a
violncia como conseqncia do comrcio das drogas e o desejo de que ela tenha fim o
mais rpido possvel.
< 2,9
ORDEM DE EVOCAO
> 2,9
Medo 43
Tristeza 19
Morte 34 Tem que acabar 18Assalto 26 Drogas 16Falta de educao 20 Falta de amor 18 Maldade 18 Freqncia 16
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Freqncia
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moradores, e conseqncia da falta de opo mais digna de moradia destinada
populao empobrecida.
Relacionar favela, trfico de drogas e violncia so concepes atuais, levando
em conta o tempo que o narcotrfico ocupa os morros na cidade. Historicamente, desde
o final do sculo XIX, os morros da cidade so ocupados pelas classes mais pobres. No
entanto, remonta dcada de 60 e 70 o fortalecimento das redes de trfico de drogas nas
favelas. Essa situao s se tornou impactante e relevante para a classe mdia nos
ltimos 20 anos. Isso reflete que as representaes desse espao social esto em
constante movimento e sugerem que em outros grupos sociais possam j haver
mudanas.
Os dois quadrantes inferiores apresentam elementos mais perifricos da
representao social e revelam a diversidade de sentidos negativos destinados a esse
objeto social. Local sujo, triste, miservel, perigoso, sem saneamento bsico, moradia
de bandidos ou desempregados, so apenas uma pequena mostra das cognies
construdas sobre a favela.
< 2,9
ORDEM DE EVOCAO
> 2,9
Trfico de drogas 74
Violncia 38
Pobreza 69 Discriminao 18Falta de moradia 34 Sem opo 16Fome 26 Desigualdade Social 20 Freqncia 16 Freqncia
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Necessidade 06 Crime 07Comunidade 05 Morte 07 Injustia 05 FIGURA 3 Quadrantes de distribuio das evocaes livres ao tema favela.
Uma das dimenses formadora da representao social do morador de favela
est representada na figura 4. O possvel ncleo central dessa representao reflete a
personificao da figura do favelado em trs personagens emblemticos: os
traficantes, mais prontamente evocados, personificando a violncia que assola a cidade;
os miserveis, personificando os excludos sociais, a pobreza extrema; e os moradores
honestos, personificados na figura dos trabalhadores pobres.
Estes personagens freqentemente acabam se misturando no imaginrio da
populao, gerando um incremento no preconceito e na discriminao, principalmente
com o homem jovem, morador de favela. No podendo identificar claramente os
diferentes tipos criados e compartilhados pelos seus grupos sociais, aqueles que no
moram nos morros tendem a identificar o morador atravs da personificao de seu
maior pesadelo: o traficante de drogas. Opinio compartilhada pelos moradores de
favelas que reclamam que a sociedade esquece que a favela tambm moradia de
pessoas honestas e trabalhadoras e no somente de bandidos (PANDOLFI;
GRYNSZPAN, 2003).
Os quadrantes inferiores so compostos por elementos perifricos da
representao do morador de favela: um guerreiro, trabalhador e muito mais vtima do
que culpado por sua condio. Infelizmente, o recrudescimento dos ndices de violncia
urbana tem diminudo a importncia destes elementos na constituio da representao
do morador das comunidades mais pobres. A tendncia cada vez mais demoniz-lo e
responsabiliz-lo por sua condio e, pior, v-lo como conivente da situao de
violncia e expanso do narcotrfico em sua comunidade.
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< 2,8
ORDEM DE EVOCAO
> 2,8
Traficantes 57
Pobres 51 Discriminado 41 Trabalhador 26 Sem opo 25 Freqncia 22 Freqncia < 22 Falta de educao 21 Falta e oportunidade 15Ser humano 15 Medo 15Desempregado 13 Excludo 10Sofredor 12 Violncia 10Humilde 10 Pessoa honesta 11 Falta de moradia 11 Guerreiro 09 FIGURA 4 Quadrantes de distribuio das evocaes livres ao tema morador de favela.
Os grupos sociais da sociedade brasileira, que diferem pela situao
socioeconmica, so impactados de forma diferente pela percepo da violncia, da
favela e de seus moradores. O abismo est crescendo e as representaes sociais, por
sua vez, se modificando e se adaptando apreenso da realidade que esses grupos em
suas idiossincrasias precisam ter.
CONCLUSO
Devemos estar preparados e atentos para o perigo que representaes sociais,
vinculando a pobreza com a criminalidade, possam gerar em termos de atitudes,
tomadas de posio e comportamentos. Trabalhos como este pretendem ampliar a
discusso da temtica da violncia e da excluso para que, ouvindo os vrios grupos
sociais que compem a sociedade, possamos estar contribuindo para entender como
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essas situaes vo sendo incorporadas no dia a dia de uma cidade como o Rio de
Janeiro. O cidado carioca de classe mdia cada vez menos acredita na justia ou em
polticas de segurana. Os cidados das classes mais baixas, por sua vez, tambm esto
cticos quanto s promessas de mudanas e oportunidades de incluso social. Isso
coloca grupos sociais de classes socioeconmica diferentes como inimigos em uma
guerra na qual no h vencedores (ESCOREL, 1999).
Zaluar (1997, p. 11) aponta para a dificuldade de problematizar e propor
resolues para a situao de violncia, tanto do ponto de vista prtico quanto
ideolgico, quando argumenta acerca do que necessrio para melhorar esse estado das
coisas: tornar complexa a anlise dos contextos sociais mais amplos e mais locais para entendermos os motivos pelos quais cada vez um nmero maior de jovens (de todos os estratos sociais) comete crimes, o que nem sempre significa a adoo de uma carreira criminosa, e por que alguns deles passam a exercer um tipo de poder militar nas comunidades onde as instituies encarregadas de manter a lei ou esto ausentes ou tornaram-se coniventes com o negcio ilegal ou so fracas; onde as organizaes vicinais se desagregaram ou foram esvaziadas pela competio poltica entre partidos e grupos religiosos; onde figuras paternas e maternas no mais oferecem modelos nem so capazes de controlar seus filhos.
A proposta de Zaluar (1997) e o compromisso de nossa pesquisa favorecer e
ampliar a discusso da violncia na cidade do Rio de Janeiro. No podemos permitir
que esse assunto seja tratado e manipulado poltica e partidariamente por quem tem a
responsabilidade constitucional de modificar o rumo das coisas.
Zaluar (1997, p. 18) prope que essa discusso englobe o panorama mundial de
crescimento da violncia, pois no h como negar a necessidade de se entender essa onda de violncia no apenas como efeito geolgico das camadas culturais da violncia costumeira no Brasil, mas tambm dentro do panorama do crime organizado internacionalmente, do crime, tambm ele globalizado, com caractersticas econmicas, polticas e culturais sui generis, sem perder algo do velho capitalismo da busca desenfreada do lucro a qualquer preo.
Fica a sugesto de continuidade dessa pesquisa, buscando nas representaes
sociais de outros segmentos que compem nossa sociedade o entendimento da realidade
de violncia, preconceito e excluso social de grupos cada vez mais marginalizados e
marginais, e o desafio de fazer da produo desse conhecimento propostas para serem
utilizadas nas intervenes polticas e sociais. Esse o nosso compromisso social.
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ABSTRACT Favela shanty towns, their rules, codes and residents are favoured objects of study because they are increasingly associated with the violence portrayed in information broadcast by the media. Using the theory of social representations we seek here to investigate how members of the lower middle class perceive present-day violence, favelas and their residents. The data were gathered using the free-evocation method and analysis was assisted by EVOC software. The results pointed to an adverse, shifting perception that increasingly relates favelas and their residents with the major causes of violence in Rio de Janeiro. Social representations linking poverty with criminality can lead to the adoption of positions and behaviours that reinforce prejudice and exclusion against favela residents, thus enhancing feelings of not belonging and of denial among this portion of the population. KEYWORDS Social representations; slum residents; violence.
Recebido em: 07/12/2004 Aceito para publicao em: 25/01/2005 Endereo: [email protected]; [email protected]